PÂMELA CARVALHO é moradora do Parque União, no Conjunto de Favelas da Maré. Historiadora, educadora e gestora cultural, pesquisa as relações raciais de gênero e direitos das populações de favelas. Coordenadora do eixo “Arte, Cultura, Memórias e Identidades” nas Redes de Desenvolvimento da Maré e integrante do grupo Intelectuais Negras, da UFRJ, é uma das fundadoras do Quilombo Etu, um coletivo que trabalha a cultura popular a partir da educação antirracista.
Resenha de “Tudo Sobre O Amor: Novas Perspectivas”
Este texto é mais um convite do que propriamente uma resenha. É um desafio imenso resenhar as 269 páginas de um livro essencial para pensarmos o amor na contemporaneidade. Em especial, o amor dentro, com e para comunidades negras. Assim, apresentarei brevemente cada um dos capítulos de Tudo sobre o amor para, posteriormente, tecer algumas costuras e reflexões. O livro foi escrito em 2000 e é o primeiro de uma trilogia, da qual também fazem parte Salvação: pessoas negras e amor e Comunhão: a busca feminina pelo amor.
Cabe, também, retomar brevemente a trajetória da autora. bell hooks tem sido uma voz erguida no sentido das lutas das mulheres negras em âmbito mundial. Seu nome de registro é Gloria Jean Watkins, mas a feminista negra adotou o nome de sua avó, Bell Blair Hooks. A grafia em letras minúsculas de seu nome revela um importante aspecto sobre as narrativas evocadas pela escritora: para ela, o conteúdo de sua escrita deve pesar mais do que sua pessoa ou seu nome. Nascida em Hopkinsville, uma cidade ao sul dos Estados Unidos, bell se tornou professora e doutora em Literatura. Sua produção é vasta, já tendo escrito mais de trinta livros, entre eles Ensinando A Transgredir – A Educação Como Prática da Liberdade (2013, Editora Martins Fontes), Olhares Negros: raça e representação (2019, Editora Elefante), Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra (2019, Editora Elefante) e Tudo sobre o amor: novas perspectivas (2021, Editora Elefante), para o qual dedicarei as próximas linhas deste texto. Assim, estruturarei a apresentação em prefácio + 14 pílulas – nem sempre doces – sobre o amor.
PREFÁCIO – Sobre a arte de abrir caminhos
Prefácios me encantam. São a porta de entrada para os livros. Na publicação apresentada aqui, a responsável por abrir caminhos é Silvane Silva, doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora e pesquisadora do CECAFRO/PUC-SP. O prefácio à edição brasileira expõe uma perspectiva essencial para a leitura do livro: o amor é centro, e não margem. Se na canção “Deuses Ateus” o cantor e compositor Djonga afirma que “em tempos de ódio conservador, amar e mudar as coisas é luxo”, Silvane destaca que o desamor tem sido a ordem do dia. Diante disso, falar e praticar amor, em suas diversas formas, pode ser algo revolucionário.
INTRODUÇÃO: “Tocada pelo amor”
Na introdução a Tudo sobre o amor, a autora revela um aspecto que é essencial para a leitura do livro: o amor é necessário em qualquer movimento por justiça social.
hooks também fala sobre uma frase vista por ela em um grafite em Connecticut onde se lia “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. Essa frase inspirou reflexões e um movimento de autoencontro com bell. Algum tempo depois, uma construtora pintou o muro do grafite de branco, restando algumas linhas que tornavam possível – e difícil – inferir a frase. Isso motivou um encontro de bell com o artista, onde refletiram que o desejo público de ser amado pode ser visto como ameaça numa sociedade onde o desamor é a norma.
1. “Clareza: pôr amor em palavras”
No primeiro capítulo da publicação, hooks expõe que somos ensinados a chamar muitas coisas de amor. Isso torna o ato de amar mais difícil. O amor necessita de uma série de elementos; entre eles, afeição, respeito, carinho, comunicação aberta, reconhecimento e compromisso. Segundo a autora: “Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento” (hooks, 2021, p.55).
Amor é ação.
2. “Justiça: lições de amor na infância”
O machismo e o patriarcado são barreiras para o amor:
Um dos mais importantes mitos sociais que precisamos desmascarar se pretendemos nos tornar uma cultura mais amorosa é aquele que ensina os pais que abuso e negligência podem coexistir com o amor. Abuso e negligência anulam o amor. Cuidado e apoio, o oposto do abuso e da humilhação são as bases do amor. Ninguém pode legitimamente se declarar amoroso quando se comporta de maneira abusiva. Porém, em nossa cultura os pais fazem isso o tempo todo. As crianças escutam que são amadas, embora estejam sendo abusadas. (Idem, p. 64)
A punição severa não deve ser vista como ação positiva nos processos educativos. É na infância que temos o primeiro contato com o amor, a partir de nossas famílias. Isso chama atenção para a importância de garantirmos direitos para crianças e adolescentes. O desamor na infância acompanha o indivíduo por toda a sua trajetória, criando celeumas pessoais e coletivas.
3.“Honestidade: seja verdadeira com o amor”
Vivemos em uma sociedade onde a mentira é uma ferramenta para a manutenção do poder. O capitalismo e o consumismo também estimulam a mentira e o desamor.
Para termos uma sociedade pautada no amor, precisamos nos reeducar a partir da prática de emitir e receber verdades. A prática de temer a verdade – acreditando que ela sempre dói – nos afasta do amor.
4. “Compromisso: que o amor seja o amor-próprio”
O amor-próprio deve ser a base da prática amorosa. Os movimentos feministas contribuíram para que mulheres percebessem o poder da autoafirmação positiva. Muitas mulheres consideradas bem-sucedidas se observam em processo de auto-ódio, o que muitas vezes mina suas próprias realizações e seu encontro com o amor-próprio. Necessitamos trazer o amor para perto. A autora observa que:
O amor-próprio não pode florescer em isolamento. Não é uma tarefa fácil amar a si mesmo. Axiomas simples que fazem o amor-próprio soar fácil só tornam as coisas piores. Eles levam muitas pessoas a se perguntarem por que continuam presas a sentimentos de baixa autoestima e auto-ódio se é assim tão fácil se amar. […] Quando vemos o amor como uma combinação de confiança, compromisso, cuidado, respeito, conhecimento e responsabilidade, podemos trabalhar para desenvolver essas qualidades ou, se elas já forem parte de quem somos, podemos aprender a estendê-las a nós mesmos. (Ibidem, p. 94)
5. “Espiritualidade: o amor divino”
A autora percebe que o interesse pela espiritualidade foi cooptado pelo capitalismo e pelo materialismo na sociedade estadunidense. Ir à igreja ou ao templo religioso não tem sido o suficiente para preencher o vazio observado nas sociedades contemporâneas, pois esse vazio vem de dentro, da alma:
O compromisso com a vida espiritual necessariamente significa que abraçamos o princípio eterno de que o amor é tudo, todas as coisas, nosso verdadeiro destino. Apesar da pressão massacrante para nos conformamos à cultura do desamor, nós ainda buscamos conhecer o amor. Essa busca em si é uma manifestação do espírito divino. (Ibidem, p. 115)
6. “Valores: viver segundo uma ética amorosa”
Para despertarmos para o amor, é necessário abrir mão da obsessão pelo poder. É necessário adotar uma ética amorosa, que abarque, inclusive, posicionamentos políticos como a empatia com pessoas que vivem sob sistemas de opressão.
O medo da mudança faz com que muitos de nós entremos num processo de traição contra nós mesmos. A mídia tem papel importante nisso, expondo massivamente imagens de desamor, ódio e violência. Não somos educados a ver o amor.
Nosso espírito percebe quando agimos de forma antiética, e isso torna os caminhos para o amor mais tortuosos. Encarar nossos medos é uma das formas de se aproximar de uma ética amorosa pautada por cuidado, conhecimento, vontade de cooperar e respeito.
7. “Ganância: simplesmente ame”
A sociedade contemporânea tem se baseado na cultura do consumo desenfreado e do individualismo, em que o isolamento e a solidão causam ondas de depressão que acometem parcelas enormes da população mundial. Pessoas são tratadas como objetos. A autora provoca um exercício de viver a partir da simplicidade, o que nos conecta à comunidade e ao amor.
8. “Comunidade: uma comunhão amorosa”
O capitalismo afastou as famílias nucleares de suas famílias estendidas, fragmentando comunidades inteiras. Isso causa uma desordem sentimental e social, uma vez que é nas comunidades que começamos a construir e fortalecer laços de amizade. Esses vínculos nos trazem lições importantes na construção de núcleos familiares e do amor romântico.
O amor que criamos em comunidade nos acompanha pelo resto da vida.
9. “Reciprocidade: o coração do amor”
O amor nos permite adentrar o paraíso. Ainda assim, muitos de nós esperam do lado de fora, incapazes de cruzar o portal, incapazes de deixar para trás todas as coisas que acumulamos e que se interpõem entre nós e o caminho para o amor. Se, durante a maior parte de nossa vida, não fomos guiados no caminho do amor, geralmente não saberemos como começar a amar, o que deveríamos fazer e como deveríamos agir. (Ibidem, p.179)
Uma importante lição sobre o amor: é essencial olhar para nós mesmos. bell hooks estrutura este capítulo a partir de duas experiências amorosas que foram marcantes para ela, e isso nos empurra para um profundo mergulho em nós mesmos e nossos próprios caminhos.
Geralmente, são desenhados papéis dentro dos relacionamentos. Um é responsável por criar e cultivar o amor, enquanto o outro apenas o segue. Isso estabelece um jogo de poder nocivo para o amor. Precisamos rompê-lo, baseando-nos no princípio da reciprocidade.
10. “Romance: o doce amor”
O capítulo nos lança uma afirmação que soa como um soco na boca do estômago: “poucos de nós entram em relacionamentos românticos tendo capacidade de receber amor” (Ibidem, p. 200). Projetamos relacionamentos baseados em nossos traumas familiares e comumente temos dificuldade de olharmos para nós mesmos nos processos de busca pelo amor romântico. Ao longo de nossa vida, é introjetada uma ideia de que o amor necessita apenas de si próprio para existir. Porém, sem construção e investimento, não há amor.
11. “Perda: amar na vida e na morte”
A morte é um tabu em nossa sociedade, gerando uma sensação de medo coletiva baseado em estruturas de poder: “Culturas de dominação cortejam a morte. Por isso a fascinação constante pela violência, a falsa insistência de que é natural os fortes atacarem os fracos, os poderosos atacarem os sem poder. Em nossa cultura, a adoração da morte é tão intensa que se põe como obstáculo ao amor” (Ibidem, p.221).
O medo de parecermos fracos nos faz não olhar para a perda. hooks nos convida a fazer o inverso: olhar para o medo e deixar que ele nos olhe.
12. “Cura: o amor redentor”
Ao longo de nossas trajetórias, o sofrimento é inevitável. Mas está em nossas mãos o poder de decidir o que fazer com essas feridas. A cura é um ato de coletividade e comunhão. Curas individuais são árduas e muito mais propensas a possíveis decepções.
O amor é capaz de redimir. Retomando a frase que a autora destaca do grafite na introdução do livro, “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. E a busca continua porque, apesar de todo o desamor em nosso entorno, o amor é capaz de curar e regenerar. É necessário que comecemos um movimento de fazer as pazes com nós mesmos e com os outros através do amor.
13. “Destino: quando os anjos falam de amor”
Os anjos são aqueles que nos trazem boas notícias, que dão alento ao coração. Na igreja, a autora aprendeu que os anjos são “consoladores sábios nos momentos de solidão”. O amor divino muitas vezes traz conforto em momentos de solidão e os anjos são fortes aliados nesse sentido:
Donos de perspicácia psíquica, da intuição e da sabedoria do coração, eles mantêm a promessa da vida plena por meio da união entre o conhecimento e a responsabilidade. Como guardiães do bem-estar da alma, eles cuidam de nós e conosco; Nossa virada em direção aos anjos evoca nosso anseio de abraçar o crescimento espiritual. Revela nosso desejo coletivo de regressar ao amor. (Ibidem, p.253)
O poeta Lande Onawale escreveu: “O amor é coisa que mói, muximba. E depois o mesmo que faz curar” – frase que pego emprestada para intitular este texto. E o faço porque entendo que Onawale e hooks se encontram, se entrelaçam e se complementam. O amor é aquilo que dói. Requer compromisso e responsabilidade, em especial numa sociedade pautada no desamor e na violência. Mas, ao mesmo tempo, é com e para o amor que podemos alcançar a liberdade.
Nos contam mentiras sobre o amor. A sociedade não nos ensina a amar. E nem nos empodera do gesto revolucionário que é o amor. bell hooks relaciona o amor com os principais problemas da sociedade contemporânea, observando que são as ações que constroem os sentimentos e que ele o atravessa enquanto comunidade. O amor não nasce e cresce sozinho. Amor é construção cotidiana. Amar dá trabalho. Mas saio alimentada de Tudo sobre o amor. bell hooks é mais uma vez vanguarda ao convocar, através de palavras, em tempos de guerra, uma revolução de amor.
Wesley Assumpção, também conhecido como Mestre Wesley, é o mestre de bateria do Grêmio Recreativo Escola Primeira de Mangueira. Oriundo da comunidade, começou desde cedo a desenvolver sua linguagem musical ao participar do “Mangueira do Amanhã”, projeto social fundado pela cantora Alcione, e como integrante do grupo de percussão Funk’n’Lata. Recentemente, o músico teve a sua trajetória levada às telas no filme “Mangueira em 2 tempos”, de Ana Maria Magalhães.
O senhor poderia contar um pouco da sua história para quem não lhe conhece? Quem é o Mestre Wesley?
O Mestre Wesley é um rapaz, hoje, de 42 anos, nascido e criado no morro da Mangueira. Veio de uma família muito complicada, porque morar numa comunidade significa fazer um esforço para sair do caminho da criminalidade, e isso é muito difícil. E, na minha época, era mais difícil ainda, porque tinha a criminalidade dentro de casa. Meu pai era traficante do morro da Mangueira e, ao mesmo tempo, presidente da bateria da Mangueira. Então, quando eu cheguei na Mangueira, em 1987, vim através dele, porque ele queria que um dos filhos não entrasse no caminho da criminalidade e escolhesse alguma coisa na vida para se tornar uma pessoa do bem, uma pessoa positiva, uma pessoa que daqui pra frente poderia ser orgulho para alguém da família. E essa pessoa fui eu. Vim para a bateria da Escola quando era muito novo. No mesmo ano, a Alcione fundou a Mangueira do Amanhã, onde eu também me inscrevi e nela permaneci por muitos anos. Foi nela que me formei professor, diretor de bateria e, hoje, mestre de bateria. Sou alguém que lutou por muita coisa. Perdi meu pai no ano seguinte, em 1988, morrendo como indigente, sem ser enterrado. Quando isso aconteceu, a família toda pensou que o filho mais velho iria se revoltar
para tentar vingar a morte do pai, e foi totalmente diferente desde o momento em que ele me trouxe para o mundo do carnaval – porque ele achava que eu tinha que viver alguma coisa dentro desse ambiente, dentro da música –, e hoje eu sou orgulho para a família. Hoje eu sou um cara que dá palestras sobre percussão para o Brasil inteiro.
Fizeram um filme sobre a minha história. Quando eu fui na pré-estreia do filme e me percebi contando a história que eu vivi, isso não tem preço, porque você passa a agregar algo na vida das pessoas. Hoje, tenho um projeto aqui de escolinha para a comunidade, mas perdi a metade dos alunos, porque é difícil você pegar uma criança e trazer para dentro da quadra para tocar porque eles não querem mais isso. Na minha época, não. Eu vinha para cá e ficava igual maluco, queria aprender. Hoje, se você não incentivar as crianças, eles não vêm para a aula. Antigamente, a Mangueira não tinha os cursos que tem hoje. Única Escola do Brasil que tem um projeto social para as crianças da comunidade. E você vai olhar os projetos e se tiver 10 crianças da comunidade, isso é muito. Se esse oportunidade existisse na minha época, eu teria me formado um maestro no Villa-Lobos, um músico profissional do Theatro Municipal, da Orquestra Sinfônica Brasileira. Eu fui lutando contra a barreira, contra a resistência, para chegar onde eu cheguei. Quando eu junto as crianças pra falar sobre percussão nas aulas de bateria, eu comento como é importante a bateria na vida de um ser humano. A Mangueira me levou pra conhecer o mundo, por que você não pode? Costumo dizer para eles o seguinte: “Se você não acreditar em você, ninguém vai acreditar”.
Pensando a música na Mangueira, como ela chegou na sua vida? Em que momento o senhor se lembra que pensou “Eu acho que a minha pegada é a música”?
Em 1988, quando eu perco meu pai. Foi um baque na família. São três filhos. Eu, meu irmão e minha irmã. E logo que eu perdi meu pai, como eu era o filho mais velho, eu precisava sustentar a família, porque meu pai era traficante, mas não deixou legado nenhum. O máximo que ele deixou foi uma casa. Meu pai era muito difícil, minha mãe não podia botar a cara na janela que ele batia nela. Então ela não podia sair de casa. Como eu era o mais velho, eu vinha pra dentro da quadra, ficava olhando os ensaios. Eu desfilei e estreei na bateria, a gente tocando, na Mangueira bicampeã do carnaval, com meu pai ainda presente na bateria. No ano seguinte, aconteceu o que aconteceu e eu tinha que dar um jeito de levar um sustento para dentro de casa. Botei na minha cabeça que eu tinha que dar um jeito da música ser esse sustento. Aconteceu muita coisa ruim? Muita barreira? Aconteceu. Mas é o que eu falo: nunca desista de você. E eu falava “Deus, se eu te fiz alguma coisa de errado, o senhor vai me punir. E se eu não fiz, eu vou até o final e eu tenho certeza que uma hora o senhor vai me abençoar”. Quando eu tinha uns 10, 11 anos, comecei a participar da Mangueira do Amanhã. De repente, a Alcione monta um grupo de 30 ritmistas para tocar, durante três meses no Teatro Carlos Gomes, fazendo uma apresentação durante o show dela. Só os melhores, os mais destacados da Mangueira do Amanhã, e eu fazia parte disso. Aí tinha uma salariozinho. No final do ano, ela mandou cada um escolher dois presentes. Eu escolhi uma bicicleta e um videogame. Então ali as coisas começaram a caminhar e, meados de 1993, 1994, a escola principal me chama para virar um repique bossa do grupo de elite da bateria principal. Aí é onde eu começo a viajar o Brasil inteiro com a Mangueira, com a bateria, fazendo apresentações. O dinheiro começou a ser melhor do que quando eu iniciei, menor de idade. Então eu começo a ganhar dinheiro com a Mangueira viajando. E tinha um show da Mangueira, que em um momento entravam Dona Zica, Dona Neuma, Delegado, Mocinha e eu fazia o menino da Mangueira. Eu entrava com um pandeiro, no meio desses artistas todos, com a música da Mangueira. “O menino da Mangueira, recebeu pelo natal, um pandeiro…” [cantarolando]… Além de eu fazer parte desse papel que era o menino da Mangueira, eu fazia parte do repique. Então eu ganhava dois cachês. Eu chegava em casa e “Mãe, tá aí o sustento da família pro mês”. Foi aí que percebi que podia me sustentar e viver com música. De 1996 para 1997, o Ivo Meireles junto com o Alcir Explosão – que foi nosso mestre aqui e perdeu a vida para o tráfico – disseram: “O que tu acha da gente montar surdo, caixa, repique, tamborim, ganzá, botar baixo, guitarra e sopro?” Daí surge o Funk’n’Lata, e em 1998 faço a minha primeira viagem internacional, durante a Copa do Munda da França.
Você tinha quantos anos?
Eu tinha 17 para 18. Hoje, eu olhando as fotos – eu tenho essas fotos guardadas – eu falo “Caraca! Eu tava na Copa do Mundo de 1998! Eu toquei dentro do estádio da França, eu fui para Paris!” Eu fui para vários lugares do mundo com 17, 18 anos. Então ali a minha vida começa a andar. Quando eu volto da turnê internacional, eu volto com bastante dinheiro. Eu reformo a casa da minha mãe, dou uma estabilidade pra ela, mas eu tenho uma dor no meu peito, o meu irmão do meio vira traficante. Entra pra vida do crime, porque ele me vê, músico, voltando cheio de roupa importada, e o que que ele faz? Não vou ser igual meu irmão, mas quero ter o que o meu irmão tem. Com 12 anos meu irmão entra para o tráfico e não tem como tirar. Hoje ele é empresário, vive bem e tem orgulho do que faz, mas ficou três anos e sete meses preso. Hoje a família tá estabilizada. Perdi a minha mãe com essa pandemia. Tem um ano e seis meses. Mas o Funk’n’Lata ajudou a me estabilizar. Quando volto da turnê, recebo o convite para virar o primeiro mestre de bateria da Mangueira do Amanhã, onde eu fico como mestre principal até 2003. Em 2006, o Russo me chama para ser diretor da escola principal e fico até 2010, quando o Ivo me chama para tocar na banda dele e eu me afasto da Mangueira como ritmista porque abriu outros leques, outros ares e eu vou conhecer outras formações musicais diferentes. Quando o Ivo assume presidente da Mangueira, ele me chama para o o carnaval de 2012, que foi o do Cacique de Ramos. Ele precisava de alguém para dirigir o carrinho de pagode junto com ninguém menos que Alcione, Jorge Aragão, Xandi de Pilares, Duda Nobre e Sombrinha e Luizito, quena época era nosso intérprete. A responsabilidade era muito grande e, após o desfile, entendi que eu estava pronto para qualquer desafio que me dessem dentro da Mangueira. Em seguida me afastei da Escola e em 2018, quando já havia desistido de um dia ser mestre da bateria da Mangueira, até pela minha idade avançada, o presidente me liga e pergunta quais os planos que eu tenho pra bateria.“Não entendi qual a pergunta do senhor”, eu falei. “Porque eu vou trocar e eu tô pensando em você, mas eu preciso saber a proposta que você tem para a bateria. Vamos almoçar?” Eu fiquei a segunda-feira inteira sem dormir, só pensando no que eu ia falar para o presidente. Como eu desfilo aqui desde 1987, conheço todos os problemas que temos. Eu tenho tudo anotado e guardado em uma pasta. Quando chego no restaurante, eu jogo a pasta na mesa. “O projeto da bateria é esse aqui! Tem que mexer aqui, fazer isso, consertar aquilo, etc”. O presidente me anuncia mestre da bateria e eu sofro uma grande rejeição da comunidade e dos músicos, pelo tempo que fiquei afastado. A bateria chegou a rachar para fazer boicote para me tirar. Estávamos há 18 anos sem tirar nota máxima na bateria. Isso me mobilizou muito, recebi como um desafio pessoal. Eu começo a fazer um trabalho de formiguinha. Mexo no andamento, recuando ele. Mexo nas afinações, no desenho dos tamborins, altero a educação musical. Passo um pouco da minha experiência, de que quem ganha a nota é sempre a Escola, nunca você. Eu fui para a Marquês de Sapucaí com metade da bateria contra mim. Até que chega o carnaval, eu pego o megafone e falo para eles: “Ó, quem tá aqui não é o Wesley, é o comandante do barco, a nota não é minha, a nota é de vocês. Então pensem bem no que vocês vão fazer depois daquele portão ali, porque vocês não tão me sacaneando, vocês tão sacaneando a agremiação Mangueira. Então vocês têm que respeitar primeiramente a Estação Primeira de Mangueira, não a mim. Mas se vocês quiserem sacanear é um direito de vocês. Pensem bem no que vocês vão fazer porque o que eu tinha que fazer por vocês eu já fiz. O que eu tinha que fazer pela Mangueira eu já fiz, foi chegar até aqui com vocês.” E a gente entrou naquela avenida. Quando chega quarta-feira de cinza, a Mangueira tá indo muito bem nas notas. Na hora do quesito bateria, acaba a luz dentro da quadra e cai um toró d’água que fica por aqui na canela. E detalhe: acaba a luz na penúltima nota de bateria. Como é que eu vou ver a nota? Não tinha telefone com televisão digital. Um desespero danado. Eu já tinha escutado a primeira e a segunda nota, que foi 10, precisava de mais duas para tirar a nota máxima depois de 18 anos e dar o campeonato. Aí passou um menino, com telefone com televisão digital. Tomei o telefone da mão dele, já tinham dado a terceira nota 10, faltava o último jurado. Aí eu tô com o telefone dele na mão, tem uma poça de lama na minha frente, eu parado, com o telefone dele na mão, “quesito bateria, último julgador… Estação Primeira de Mangueira… – o maior silêncio – 10!”. Quando ele dá o 10, eu entrego o telefone pro menino e me jogo na poça de lama, da água da chuva, sabe? Pra tu tirar aquele peso das costas, de tudo o que você passou.
Você pode falar um pouquinho sobre as especificidades de cada instrumento? Porque as vezes as pessoas acham que todos os repiques vão fazer a mesma coisa, que todos os surdos vão fazer a mesma coisa, sendo que cada instrumento desempenha um papel diferente e ainda tem o trabalho do mestre de bateria que pode colocar um molho mais diferente ainda. O senhor pode contar um pouquinho sobre isso?
Para explicar a diferença dos instrumentos eu vou dar o exemplo da Mangueira. Os surdos, aqui, todos eles tocam iguais. O único surdo diferente que tem na Mangueira – porque a Mangueira é a única bateria do mundo que não tem primeira, segunda e terceira, só tem um único surdo, que é o surdo de primeira – é um surdo que a gente chama de surdo-mor, que ele dá umas viradas no contratempo. Agora, as caixas tocam todas iguais, repique tocam todos iguais, timbal a mesma coisa, tamborim a mesma coisa, ganzá a mesma coisa. A única diferença é o repique show. O que é o repique show? Repique show é o repique guia que dá o andamento das bossas, da paradinha do samba enredo. Ele é que conduz a bateria toda. É uma brincadeira de pergunta e resposta. Tudo o que o repique pergunta, a bateria tem que responder. Então essa é a diferença do repique – a gente costuma dizer repique show, tem gente que diz repique bossa, outras escolas dizem que é repique principal. Então ele é destacado da bateria porque ele é que dá o andamento de tudo o que vai acontecer dentro de uma bateria. Ele que dá andamento se a bateria for correr; ele que dá o andamento se a bateria for pra trás; é ele que faz as perguntas da bossa e a bateria responde. Tudo acontece relacionado a ele.
O senhor falou uma coisa muito importante, que a quadra da Mangueira foi feita onde era um terreiro. A Mangueira tem uma tradição muito forte com o território, com a favela, é uma escola que tem uma história de negritude muito grande. Como entender a relação da Escola com essa ancestralidade?
Eu não presenciei o nascimento da Mangueira no terreiro porque sou muito novo. Mas a história que dizem é que a Mangueira foi feita dentro de um terreiro de macumba, onde tinha muita mãe de santo, onde estavam as mães lavadeiras, onde os gatos serviam de couro para os tambores. Então tudo isso era num terreiro. Até que o nosso gênio, Angenor de Oliveira, nosso querido Cartola, tem a ideia de colocar o nome da nossa escola de Mangueira e tem a linda imaginação de colocar a nossa escola em verde e rosa. Costumo dizer que o Cartola, para mim, é um cara que tinha que ter uma estátua na entrada da quadra, do tamanho da quadra, porque hoje a Mangueira é o que é graças a ele. O Elmo, que foi nosso presidente na década de 1990, sempre fala: “A nossa escola é guerreira por isso, porque foi fundada dentro do terreiro das mães lavadeiras, dentro do espaço de uma gente de luta.” A Mangueira nasceu em 1928 nesse ambiente, quando as pessoas ali pegaram um tamborim, um surdo, um repique e resolveram montar uma escola de samba. O primeiro desfile oficial aconteceu em 1932, quando a escola ganhou o primeiro campeonato.
Você comentou que grava todos os ensaios para escutar quando chegar em casa. Do momento em que assume a bateria até incluir as inovações e as modificações a partir dos problemas que surgem, como funciona o seu processo criativo? Por exemplo, uma coisa que me chama muita atenção é o naipe de pratos, que mistura o que muitas pessoas consideram um instrumento dito erudito com o samba. O senhor pode falar um pouco sobre isso?
O carnavalesco apresenta a sinopse, os compositores fazem o samba e depois levam para a quadra para as eliminatórias. Ali acontece o processo de afinar. Costumam ser quatro ou cinco sambas que se destacam entre 30, 40 sambas. Em 2022, foram 51 para escolher um. É a partir dessa seleção preliminar que começo a pensar em alguma coisa. Quando chegamos a três sambas, já consigo imaginar o que Escola vai levar para a avenida. Em 2019, por exemplo, escolheram o samba da Marielle e eu era contra porque esse samba não tinha refrão, não tinha segunda. Era um samba que, nas eliminatórias, arrastava o tempo inteiro, a bateria não conseguia tocar ele, era um samba horroroso. Fui para casa contrariado e passei o domingo todo escutando a música. Em algum momento percebi que na parte “Salve os caboclos de julho, quem foi de aço nos anos de chumbo…” [cantarolando] era possível inserir uma marcha. Estava dando quatro compassos exatos. Liguei para o carnavalesco para contar isso e iniciei a montagem desse processo. Tudo precisa funcionar dentro da letra e da melodia do samba, até porque a Mangueira não tem característica de fazer bossas exuberantes, com nove, 12, 14 compassos – como outras escolas fazem – porque a gente não tem surdo de resposta. Mandei vir uns dez atabaques, que pegamos emprestados do Candomblé e comecei a construir a marcha. Em seguida, percebi que eles não estavam dando vazão e resolvi colocar o timbal, que funciona mais com a Mangueira e com a arquibancada. Os timbales entraram como se fosse um ataque: : “tchum, Mangueira!”. O carnavalesco foi à loucura quando viu. Vou para a quadra e começo a passar para o ritmista, naipe por naipe. Boto um surdo num canto, caixa pro outro, repique pro outro, tamborim vai para um lado, ganzá vai pro outro. Ficamos um mês só nesse trabalho dos naipes antes de reunir a bateria toda, chamar um cantor e um cavaco. Vamos construindo as partes até chegar no todo que vai estar na Marquês de Sapucaí.
O carnaval de 2020 foi o último que pudemos levar para a avenida antes da pandemia. Vínhamos do tema da Marielle e fomos para um outro samba muito denso, que gosto muito, mas não consigo sambar: “A verdade vos farás livres (…) / Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher / Moleque pelintra no buraco quente / Meu nome é Jesus da gente…”. É uma das coisas mais fortes que já ouvi na vida. Como aconteceu o processo desse samba?
Muito parecido com o que se deu em 2019. Mas , na verdade, demorei pra entender a sinopse e o enredo desse samba. Achei ele muito perigoso, porque, como diz o ditado “O carnaval é da carne”. Você falar de Jesus, Jesus moleque, Jesus trans, eu acho muito pesado, mas eu respeito a opinião do carnavalesco. Ele queria contar um Jesus diferente, mas eu achei muito pesado, tanto que nosso instrumento tem um menino Jesus negro na favela, com um helicóptero no fundo, e ele com a mão furada, como se tivesse sido baleado na mão com a roupa do colégio. Eu só pensava o que eu podia fazer nesse samba. Quando encontrei a parte do “Favela, pega a visão”, logo lembrei que, como favelado, foi o Funk’n’Lata que me levou para conhecer a Europa com 17, 18 anos. Então resolvi colocar um funk ali, e me parece que é a única parte do desfile que o público curte um pouco, porque o resto do samba a arquibancada toda fica parada querendo entender o que a Mangueira está passando na quadra. A Mangueira foi muito criticada por causa desse enredo. No último carro, em que apresentamos um negro de cabelo louro, pra mim é uma das imagens mais fortes já feitas em todos os carnavais. Quando começa o desfile, eu vejo a arquibancada muito silenciosa, calada, porque as pessoas queriam entender o que a escola ia passar. E a própria escola e os seus integrantes estavam meio frios. Quando chegamos na dispersão, eu falei para todo mundo: “Vamos fazer de tudo pra gente tirar a nossa nota lá, porque a tendência é a gente não voltar, não, porque foi muito ruim”. E a quarta-feira de cinzas provou isso. A Mangueira ficou em sexto e voltou no dia das campeãs porque as notas da bateria seguraram. Tiramos quatro notas 10. Conseguimos salvar a Escola.
Nessa edição da Amarello, estamos falando muito do Barroco, a partir de um ideia de que o movimento artístico está presente em algo da identidade brasileira, nos seus contrastes, cor e diversidade. O samba-enredo de 2020 tem muito desse jogo de luz e sombra, algo que as pessoas não estão acostumadas, a misturar carnaval com temas sociais delicados da nossa sociedade. Como o carnaval pode contribuir para pensarmos – e repensarmos – a identidade brasileira?
Olha, eu acho que o nosso carnaval vem manchado desde a Ditadura. Se você aparecesse na rua com um tamborim, com uma lata, tu era preso. Então, não podia ter samba de terreiro, não podia ter samba em roda, que todo mundo ia preso. Eu acho que a discriminação já vem lá de trás. Então, o que que a Mangueira faz? A Mangueira tem um projeto social pra gente mostrar o contrário disso. Nesse projeto, eu dou aulas de percussão para pessoas de dentro e de fora da comunidade. Sempre que tenho a oportunidade, procuro mostrar um pouco da nossa cultura e falar sobre a cultura da favela, seja no Brasil ou fora dele. Recife tem favela? Tem. Fortaleza tem favela? Tem. Mas favela de lá não é igual a nossa aqui, que tem fuzis para tudo quanto é lado. Eu falo da favela porque é nela que eu vivo. As pessoas me dizem: “Eu acho que já tá na hora de você ir embora da comunidade”. Eu não vou, e sabe por que? Porque eu vou perder a minha raiz. É a partir dessa minha realidade que eu ensino meus filhos o que é o certo e o errado, não é saindo da comunidade que as coisas vão melhorar. Precisamos aprender a ter respeito pela decisão das pessoas. Para nosso país mudar, tem que mudar muita coisa. Tem que mudar educação, tem que mudar saúde, tem que mudar governo. Para mudar o país, a primeira coisa que tem que mudar é o sistema, e o sistema é muito difícil de lidar. Nós fazemos a nossa parte nessa mudança. O projeto social que falei já recebeu o Pelé, o Bill Clinton. O Philippe Coutinho saiu daqui. Muita gente saiu do projeto social da Mangueira. A Mangueira entende esse sentimento do Barroco, porque tem a proposta de mostrar pras pessoas que a gente consegue, se a gente se unir, a gente consegue sim criar uma nova realidade. Se o Brasil for um pouquinho mais unido, principalmente os negros, é possível ter esperança. Pra gente tentar mostrar alguma coisa, primeiro temos que mudar entre nós, cada um de nós.
Barroco: substantivo masculino 1. Pérola de formato anômalo, caprichoso. 2. História da Arte: na pintura, escultura, arquitetura e artes decorativas, estilo, com elementos do alto Renascimento e do Maneirismo e ligado à estética da Contrarreforma, nascido em Roma c.1600 e cujas características básicas são o dinamismo do movimento com o triunfo da linha curva e (esp. na escultura e pintura) a busca da captação das reações emocionais humanas [Cedo internacionalizado, o estilo ganhou traços específicos em cada país.].
Dinamismo. Movimento. Triunfo da Curva. Captação das reações emocionais humanas. Contraste. Sagrado-Profano. Características do barroco enquanto estilo inserido na História da Arte brasileira e mundial, mas que em 2021 podem ganhar outros contornos. É preciso aquecer o barroco. É necessário estabelecer conexões entre a história da arte estudada nas universidades e a história da arte que é feita nas favelas, quebradas e periferias. O barroco está aqui. Desfragmentado, renomeado, mais preto, mais vivo. Ouso aqui pensar o barroco do meu lugar. De uma mulher negra e favelada, que pensa e escreve arte desde a favela.
Do Dinamismo:
Podemos entender que dinamismo é por essência a junção de forças que geram movimento. É esta uma das características do estilo barroco. Assim como era também uma das características de Dona Orosina Vieira. Vista por alguns historiadores como a primeira moradora do Conjunto de Favelas da Maré (Rio de Janeiro), Orosina construiu residência no Morro do Timbau (primeira favela da Maré), com madeiras sobre a área que ainda era mangue.
No mesmo contexto, surgiram outras casas e núcleos familiares, intensificando o fluxo populacional da região, que hoje abriga mais de 140 mil pessoas. De uma casa sob o manguezal para um dos maiores conjuntos de favelas do país, o dinamismo foi palavra chave a partir da construção de mulheres e famílias essencialmente negras. O dinamismo estético apresentado no barroco também pode ser visto em estéticas faveladas. A pulsão do movimento é constante, desde a arquitetura, passando pelas gambiarras territoriais e desembocando em uma série de tendências que, como ondas, influenciam a sociedade como um todo. Biquíni de fita, alongamentos de unhas, descoloração de cabelos, “falhas” na sobrancelha não nos deixam mentir. A favela constrói uma visualidade dinâmica.
Do Movimento:
No livro “Cabeças da Periferia: Taisa Machado e a Ciência do Rebolado”, a atriz, pesquisadora e escritora conta que:
[…]eu tava no baile, e tinha um show de um MC que eu não vou lembrar nome, e tinha uma dançarina com ele. Era um momento muito louco, era 2013, pegando fogo, e tinha um evento enorme no Complexo do Lins. Eu ia naquele baile todo sábado, e todo sábado devia ter umas 15 mil pessoas. Naquele dia tinha até mais gente, tinham duplicado o baile. […] Nessa noite tinha o tal do show desse MC com a dançarina. Ela era a famosa gostosa. Sabe quando você joga no Google “gostosa”? Aparece a foto de uma mulher tipo aquela. E ela tava de burca. Não uma burca ortodoxa, mas uma burca de show de funk, uma burcazinha que tapava só a cara. E dançando ela deu uma surra de bunda num cara. Surra de bunda é quando a mulher apoia os pés no ombro do cara e fica batendo com a bunda no rosto dele. Ela dançou pra caramba e os bandidos ficaram tão felizes com o show daquela mulher, que foram todos pra frente do palco. Eu tava lá na frente também. […] Eu não sei como me narrar nesse momento, mas com certeza eu tô trabalhando pra me narrar como eu narro essa mulher do baile.”
O causo narrado pela pesquisadora nos apresenta uma série de camadas. A favela. O baile. A dança. A burca. A surra de bunda. Todas elas permeadas e costuradas pelo movimento. Enquanto escrevo esse texto, observo as crianças correndo na minha rua, aqui no Parque União. Ao mesmo tempo ouço o som na rua paralela à minha. É sexta-feira, dia de baile do PU. As motos cruzam a favela, aceleradas na mesma via em que andam os pedestres, uma vez que por aqui calçada é raridade. Dizem que favelas como Nova Holanda e Parque União não dormem. Eu diria que não são apenas as duas. Diria que as favelas de forma geral não dormem. O indo e vindo infinito faz com que o movimento seja palavra essencial para pensar favela. Esse cotidiano insone e vivo reflete a necessidade de movimento de territórios, onde a inventividade se impôs como condição para a manutenção da vida.
Uma dançarina de funk de burca estabelece uma relação estética quase impensável. Mas esta relação se materializa quando falamos de barroco. Especialmente do barroco relido e revisto desde a favela. A conversa entre sagrado e profano ganha outro tom com o causo de Taisa. E é esse tom que me interessa.
Do Triunfo das Curvas:
Outra marca do barroco são as curvas, que sinalizam também o movimento, a dúvida, a fluidez. Porém, vivemos uma sociedade que por muitas vezes elege a linha reta. A firmeza, a dureza, a falta de flexibilidade e de “recheio”. O oco e reto. Assim, aqueles que apresentam a curva em suas ideias, corpos e modos de viver, acabam por ser marginalizados. Numa linguagem contemporânea a palavra “curva” virou sinônimo para falar de corpos (especialmente de mulheres) que fogem do padrão magro. Esses corpos muitas vezes são exotizados ou rejeitados. A sociedade brasileira ainda renega a curva.
Em contrapartida, observo uma outra epistemologia da curva se formando em favelas e periferias, assim como em espaços LGBTQIA+. Formas outras de ver o mundo e de se relacionar com os corpos-curvas. Entendo aqui o corpo como plataforma de viver e de produzir arte. E as favelas são pioneiras no processo de fazer do corpo uma tela.
As unhas têm sido utilizadas como forma de demonstração de poder, autoestima e de afirmação ao longo da história da humanidade. No Egito Antigo – cabe lembrar que o Egito está situado em África –, o uso de unhas de marfim sinalizava status social, além da beleza estética. No Brasil contemporâneo, as extensões em materiais conhecidos como “acrigel” ou “fibra de vidro” marcam uma linguagem visual própria. Nesse quesito, a cantora Alcione aparece como uma referência destes corpos-plataforma artística, que permitem que os desejos, histórias e cores se apresentem como visualidade. Em programa de TV, Alcione relatou que “O povo lá em casa diz que gosto de um balangandã, de um colorido, é aquela raiz africana que a gente tem. Por isso essas unhas”. Alcione reforça a relação – não óbvia – que levanto aqui. O barroco tem muito a aprender com os balangandãs, com as “raízes africanas” e com as estéticas faveladas.
Da Captação das reações emocionais humanas:
O livro “O afrofunk e a ciência do rebolado” traz ainda uma reflexão sobre “o artista que se desenvolve na guerra”, a partir da mesma história citada por Taisa anteriormente. A dançarina de burca não interrompeu sua performance nem durante as rajadas de tiro disparadas durante o baile. A autora afirma que “Não tinha nada melhor do que o que aquela mulher tava fazendo na nossa cara, no meio de 15 mil pessoas.” A observação de Taisa, assim como o olhar de muitas e muitos favelados age como este captador das reações emocionais humanas. Estamos falando aqui de uma barroquice favelada ou de uma favela barroca, pensando que esses espaços não devem ser romantizados. Mas a proposta é que se veja também a favela como lugar de liberdade. Liberdade inclusive para ser barroca. É nessa liberdade que residem as emoções humanas, sentidas, vistas e vividas em intensidade por aqui.
Esta ousadia conceitual de pensar o barroco a partir da favela – e vice-versa – vem de um desejo de nos provocar enquanto sociedade. Vem da ânsia de ver mais favela na história da arte clássica. De rever os padrões de identidade nacional e os dogmas da Academia. Por isso, esse texto é um desejo. Desejo aqui um barroco com balangandã. Um barroco da gambiarra, que se constrói a partir de rolos de fio de “gatos” de luz. Um barroco forjado no movimento de expansão das favelas. Um barroco de curvas de mulheres lindas e pretas tomando sol na laje. Um barroco cada vez mais quente. Cada vez mais vivo.
Desde sempre conheço o trabalho de Elza Soares. Digo “desde sempre” porque me recordo de, pequena, ouvir uma voz rouca na sala de casa e depois vir a saber que era dela. Lembro de, por volta do ano 2000, ficar impactada com a interpretação de Elza em seu vestido tubinho preto, em um DVD de Jorge Aragão, interpretando a canção Malandro. Me recordo também de sentir medo e tristeza ao, ainda adolescente, ouvir Elza cantar Meu guri, de Chico Buarque. A voz rouca e forte cortava o ar da sala da casa na rua Silva Vale, no Rio de Janeiro, cantando:
Chega estampado, manchete, retrato com venda nos olhos, legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço fazendo alvoroço demais O guri no mato, acho que tá rindo Acho que tá lindo de papo pro ar Desde o começo, eu não disse, seu moço Ele disse que chegava lá Olha aí, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí
E, sempre que possível, nesse trecho da música eu fechava os olhos e pedia dentro de minha cabeça: “Tomara que papai ou mamãe tire essa música. Eu não quero ouvir. Eu não quero sentir essa dor”. Ainda muito jovem, a verdade da voz de Elza me invadia. Mexia comigo num lugar que eu ainda nem acessava conscientemente. Eu ainda não tinha a reflexão política que tenho hoje, mas dentro de mim e dentro da minha família toda pretinha eu tinha pavor de que meus irmãos ou um filho meu tivessem o mesmo destino do “guri de Elza”. Entendo que a arte tem papel político e de reflexão. De mexer com as nossas entranhas mesmo. E Elza fazia — e faz — isso com maestria.
Em 2018 eu pude tocar em Elza. Num mundo pré-pandemia, onde o toque físico era cotidiano, Elza pegou em minha mão. Em dois momentos distintos. Um deles no Festival Mulheres do Mundo, realizado pela Redes de Desenvolvimento da Maré na praça Mauá (Rio de Janeiro), e outro no MAR de Música, programação musical do Museu de Arte do Rio. Nas duas ocasiões eu era a apresentadora do show de Elza. Eu ia chamar seu nome. Frio na barriga, noites sem dormir, textos escritos e reescritos… Como anunciar a voz que entrava em minha alma na infância? Como chamar a Mulher do Fim do Mundo? E o fiz com todo o meu coração, respeito e admiração. Ao fim da apresentação, na entrada para o palco, Elza pegou na minha mão e disse: “Muito obrigada pelas suas palavras”. E pude olhar nos seus olhos e ver Elza Soares. Mas também vi Elza Gomes da Conceição. Em sua humanidade e imensidão.
Elza Gomes da Conceição nasceu mulher negra, num Rio de Janeiro racista e desigual. Elza é — mesmo não estando mais em vida em seu corpo físico — uma mulher de demolições. Seu local de nascimento nos leva a uma fissura no espaço-tempo. A multiartista nasceu em uma favela que não existe mais. Hoje conhecida como Vila Vintém, no bairro Padre Miguel, Rio de Janeiro, a favela Moça Bonita foi palco de estreia de Elza no mundo. Posteriormente, Elza e seus dez irmãos foram morar num cortiço no bairro Água Santa. O cortiço, também numa favela, foi alvo de políticas higienistas, como vários outros no Rio de Janeiro.
Tanto a favela quanto o cortiço são formas de habitação ocupadas majoritariamente por pessoas negras e pobres. São soluções de moradia surgidas na ótica da necessidade de sobrevivência ante um Estado que pouco avança em políticas públicas para habitação, racismo e desigualdade social. Os locais onde a multiartista nasceu e foi criada são essenciais para pensarmos a ótica de demolição que permeou sua trajetória, bem como a de várias mulheres negras.
Os territórios são espaço de construção política e subjetiva, articulando aspectos históricos, sociais e culturais. Os territórios também revelam perspectivas políticas ao longo de nossa formação como sociedade. O Estado brasileiro sempre desenvolveu uma relação ambígua em relação aos territórios de favela — por vezes paternalista e assistencialista, por vezes genocida e destruidora. As primeiras ações do Estado em favelas partiam do pressuposto de que esses espaços eram problemas sociais que precisavam ser resolvidos. A favela deveria ser retirada da paisagem carioca. As favelas foram vistas e apresentadas à sociedade como um impeditivo do progresso. Exemplo disso foi a destruição do Morro do Castelo, justamente no contexto do centenário da independência do Brasil, sob a alegação de que era necessário modernizar a cidade. A narrativa pública construída colocava a favela — e seus moradores — como sinônimo do atraso. Em 1947, o jornal Tribuna Popular escreveu sobre a Vila Vintém, que estava surgindo:
“A Vila do Vintém é a mais nova das favelas do Rio de Janeiro. Está nascendo agora. São centenas e centenas de trabalhadores escorraçados da cidade pela crise de moradia. Gente cujo salário insuficiente não lhe permite, sequer, morar numa “cabeça de porco”. Naqueles terrenos que a princípio diziam ser da prefeitura e, agora, já afirmam ter outro dono, a viúva Pinheiro Machado, a favela cresce espantosamente com o trabalho diário dos moradores. Não custa nada: é só chegar, armar quatro esteios de bambu, cobrir com folhas de zinco e pronto, está construída a nova moradia. (Jornal Tribuna Popular, 1947, p. 4).”
As “centenas de trabalhadores escorraçados” são povo de Elza. As moradias narradas em um tom carregado de preconceito são similares ao lar onde Elza nasceu. O universo apresentado pelos jornalistas, políticos e figuras públicas na época constrói o Planeta Fome, de onde Elza saiu diretamente para os programas de calouros e palcos do mundo todo.
A contribuição de Elza neste plano extrapolou o campo da música. Ela se tornou uma das principais referências quando falamos na luta por igualdade racial e de gênero. De “A carne mais barata do mercado é a carne negra” (canção A carne, gravada por Elza em 2002) a “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim!” (canção Maria de Vila Matilde, gravada pela deusa-artista em 2015), Elza inspirou lutas por todo o Brasil. Fruto disso são os diversos coletivos e instituições de movimentos sociais autodenominados “Elza Soares”.
Atualmente moram mais de 15 mil pessoas na Vila Vintém. O local é reduto de movimentos de resistência cultural, especialmente em relação ao samba. Na região estão localizadas duas grandes agremiações do carnaval carioca: a Unidos de Padre Miguel e a Mocidade Independente de Padre Miguel (Mocidade que, em 2020, homenageou Elza com o enredo Elza Deusa Soares). Elza foi louvada em vida no mesmo chão onde deu seus primeiros passos. Vinda de uma realidade de desigualdades históricas, demoliu preconceitos, cercas e muros. E construiu caminhos para que quem vem possa passar.
Brasil, enfrente o mal que te consome Que os filhos do planeta Fome não percam a esperança em seu cantar Ó nega! Sou eu que te falo em nome daquela Da batida mais quente O som da favela É resistência em nosso chão Se acaso você chegar com a mensagem do bem O mundo vai despertar, Deusa da Vila Vintém Eis a estrela Teu povo esperou tanto pra revê-la.
(Samba Enredo 2020 da Mocidade Independente de Padre Miguel)
Eu pude conhecer Nlaisa diversas vezes. Primeiro, conheci a Nlaisa educadora popular. Depois, ouvi falar da Nlaisa ativista. Posteriormente, passei a ver uma mulher de olhar marcante e doce, com quem cruzava caminhos pela Maré. Até que pude ouvir Nlaisa. Ouvir com os ouvidos e com os olhos também. Com o respeito e o carinho de quem tem muito a aprender com ela. Os padrões de gênero, associados às questões de raça e classe acabam por reforçar desigualdades e processos de exclusão. Pensar gênero a partir de vozes que rompem com os padrões hegemônicos é urgente. É caminhar no sentido da reflexão, da revolução e da igualdade. Com a palavra, Nlaisa Luciano:
Pâmela Carvalho –Nos conte sua história, caminhos que percorreu, desejos e formas de ver o mundo.
Nlaisa – Eu me tornei a pessoa que, na infância, era interrogada. E lembro de todas as interrogações que me cercavam. Lembro das minhas inquietações de não me sentir inteiramente. Lembro de todos os medos que senti. Estou no processo de travessia com o meu corpo, minha mente e meu espírito. Sou também negra, mulher e travesti, numa reinvenção para além do binário. Eu me amo hoje. E me amar foi um processo doloroso. Desabrochar foi difícil e ainda é. Desabrochar é um processo, e que bom que é! Cada traço do meu corpo é um contorno de memórias que disputam a vida quando a mim só querem a morte. Sou fronteira entre a margem e o centro. Sou muitas versões ao longo da minha trajetória-história e quero ser mais versões de mim. Me transformo apreciando a beleza que trago e, assim, me interpreto também. Meu corpo é um lugar de experiência. Me preencho pela necessidade do registro-escrita como forma de resistência. E, pensando nessa mulhernagem — já que de homenagem o mundo está cheio — escrevo um relato também. Estou construindo em meu corpo um lugar para remontar às experiências no útero que foram vividas mas não são lembradas. Lá, algo eu estava sendo, mesmo que não soubesse o que eu era. As paredes do útero protegem o crescimento ao mesmo tempo que limitam os movimentos. Dói formar seu próprio corpo, dói querer ir para fora. Como pensar a formação? No meu movimento não há restrição. Eu estou e sou meu próprio útero. Útero como espaço de escutar, sentir, olhar e pensar o que é corpo. Chamei a mim pelo nome Nlaisa, recorrendo, em sua construção, aos estudos, à memória afetiva, à inversão das normas da língua, à exclusividade de ser a única. E, carregando esse “N” mudo que também fala, tal como em Nzinga, Nkosi… Pulsando ancestralidade, chamego e dengo.
Qual é sua relação com o seu território? E como ele contribui em sua construção enquanto ser político e social?
Meu território é meu corpo que se entendeu nas entranhas da favela e gerou uma vida nos becos. Enxergo, no passado, a falta de informações que poderiam se manter no hoje através das vozes e arquivos documentais que registrassem a trajetória genealógica da minha vida. As travessas onde morei foram percursos, e as relações estabelecidas em vida trouxeram convivências cotidianas. Construir possibilidades coletivas e estratégias individuais de permanência não é fácil. Conforto e desconforto são confrontados por perguntas e respostas a partir de informações e desinformações expressas entre meu ser político e a política de ser favelada. A favela é parte do que sou. Quem eu sou parte também da favela como identidade, memória e resistência.
O que é gênero para você?
Não quero, em nenhum momento, determinar ou difundir uma ideia de que sou capaz de falar sobre gênero em sua totalidade e com propriedade. Por isso, deixarei evidente minha perspectiva a partir de acessos, estudos e vivências. Gênero é uma palavra ligada a origem. Podemos dizer que gênero é uma forma de dar sentido às diferenças percebidas socialmente e nessas diferenças, historicamente, se estabeleceram relações de poder que se perpetuam culturalmente nas sociedades. Percebemos, então, a existência de uma norma incidindo em nossos corpos, em nossa mente e na forma como enxergamos o mundo, e há pessoas que estão de acordo com essa norma. Para pensarmos o conceito de gênero, precisamos nos incomodar, nos despir e exercitar reflexões sobre como se instauram os aspectos socioculturais que legitimam, condicionam e invadem nossa maneira de significar as coisas. De significar o que é ser homem e mulher, por exemplo. De significar o que é cisgeneridade e transgeneridade. De significar o que é binário e não binário. De significar como a estrutura nos faz repetir e reproduzir as lógicas que foram construídas e impostas mas que podem ser modificadas, porque não há uma fixidez quando identificamos a pluralidade e diversidade de existências possíveis neste mundo.
Você acha que os papéis de gênero contribuem para a forma como a sociedade está estruturada?
É perverso ver, frequentemente, chá revelação. É violento presenciar um ritual em que pessoas se encontram para “revelar” uma vida que será definida a partir do momento em que a genital será um marcador de uma pessoa que nem nasceu mas já foi anunciada e será selecionada, encaixada e atribuída a um mundo rosa ou azul. Mundo de possibilidades limitantes, pensamentos projetados, ideais arquitetados manipulando uma vida que nem tem consciência de que está sendo desenvolvida. A associação de cores girando em torno dessa vida reforça a existência de que papéis sociais de gêneros já são e estão diluídos na sociedade, e, em muitos momentos, desobedecer dói. Nesse exemplo, percebemos como a estrutura da branquitude binária, cisgênera e heteronormativa vai exercer um poder perverso e violento sobre todas as pessoas que serão categorizadas como anormais caso não se adequarem ou se encaixarem nesses padrões preestabelecidos, sendo vistas como pessoas que se desviam do “único caminho possível”, punidas com exclusão, criminalização, rejeição, violação e morte.
É possível pensar uma perspectiva de abolição ou demolição do gênero?
Acredito que sim, mas antes precisamos nos incomodar também. Há muitas situações confortáveis. Há muitas situações que nos acomodam. Há muitas situações em que não queremos abrir mão de certo poder, de certo privilégio. Se gênero é uma construção, ela pode ser abolida e está sendo demolida, inclusive por muitas pessoas que estão confrontando diariamente o próprio gênero. Se há um desconforto e uma urgência de falar, pensar e refletir o que é gênero, precisamos, cada vez mais, agir! Construir estratégias coletivas de possibilidades outras. Há dificuldade em dizer que gravidez, útero e menstruação não são questões exclusivamente de mulheres, por exemplo, porque isso mexe numa delicada conjuntura cis-heteronormativa. É cansativo, doloroso e incomoda debater e experienciar narrativas que não estão em conformidade com a lógica que está estruturada. Viver, na pele, em muitos momentos, é se ver vulnerável. A linguagem, por exemplo, é um mecanismo que sustenta poderes, estigmas, categorias e rótulos. Devemos exercitar, diariamente, propostas que rompam com a norma e inaugurem movimentos e mecanismos que protejam e façam permanecer as novas existências.
Você acha que gênero, raça e classe se misturam quando falamos de sociedade e sistemas de opressão e privilégio?
Não há como ignorar ou desconsiderar que todos esses temas se atravessam e são interseccionais. Não acredito que existam possibilidades de debater gênero dissociadamente de raça e de classe, por exemplo. O cistema é tão bem amarrado e estruturado que é mais fácil cairmos em armadilhas do que achar brechas para modificá-lo. Por isso, é de extrema importância nossa consciência de que esses debates e essas lutas estão misturados e não isolados.
Quais caminhos você vê como possibilidades de avanço nas questões de gênero na sociedade brasileira?
Convido as pessoas leitoras a pensar sobre os desvios que podemos construir a partir de uma lógica que altera os caminhos já impostos. Há pessoas que entendem, a partir da sua vivência, lógicas depositadas sobre si, responsabilizadas ou culpabilizadas de efeitos que lhes afetam diretamente, quando estes são, em realidade, efeitos de mecanismos de poder e elementos de saberes que incidem direta e indiretamente sobre nossos corpos. E assim, entre camadas e camadas do que nos foi depositado, somos constituídes enquanto pessoas sujeitas — no sentido de se sujeitar. Se podemos pensar que o determinante do ser é a ação, o que constrói os sistemas são as relações concretas. Num regime de organização social capitalista em que a desigualdade é cada vez maior, desenvolver coletivamente as lutas é se envolver na prática com as ações de lutas. Precisamos, quando já informades, sermos fôrmas para que outras pessoas se informem e se formem numa formação da práxis. Não é só teoria. É teoria e prática. Não há possibilidades de discursos isolados só em tempos em que a exigência de posicionamento é pulsante. A nossa obrigação é também praticar o que falamos, ser capazes de agir e, agenciando, construir possibilidades estratégicas de mudanças efetivas. É interessante pensar conceitos e debatê-los em redes sociais, mas as pessoas na sua rua sabem o que é gênero? Sabem o que é classe social? Elas já se entenderam pretas, por exemplo? Quando e como você se entendeu nos seus processos? Sua identidade de hoje é tão óbvia para sua vizinhança? Estamos construindo novas lógicas transgressoras, mas não podemos esquecer que toda transgressão causada num regime já instaurado se torna conservadora em alguma medida. Não à toa, preferimos seguir reproduzindo opressões quando já alcançamos certa “liberdade da própria voz”. A tradição é quebrada e se torna uma nova tradição. Cuidado! Desenvolvam a formação. Não é só defender o que somos, mas também rejeitar o que querem impor aos nossos corpos. É identificar, nas normas, nossos desejos de repeti-las e desobedecê-las.
Em 1766, fez-se ouvir uma reclamação vinda de quitandeiras que trabalhavam em frente ao prédio do Senado (região onde hoje é a Praça XV de Novembro), no Rio de Janeiro. Mesmo pagando “pelo ponto”, elas estavam recebendo ameaças de despejo. Diante da situação, escreveram formalmente para a Mesa da Câmara dos Vereadores. Conseguiram como aliado o procurador da Câmara Municipal da Colônia e, como resposta, receberam o parecer favorável, que determinou que as quitandeiras retornassem ao seu local de trabalho, sob a alegação de que o “bem comum” deveria ser priorizado.
O vocábulo “kitanda” tem origem da região centro-ocidental da África, onde se referia a espécies de feiras e mercados organizados especialmente entre os povos de origem quimbundo. As vendas eram realizadas na rua, e as principais agentes do comércio eram mulheres, que trabalhavam majoritariamente com itens alimentícios como peixe seco, frutas, legumes, doces, sem deixar de lado a venda de fumo, aguardente e outros objetos e utensílios. Esse formato se mantém nos centros urbanos, demarcando um espaço físico de disputa, protagonismo negro e feminino e, especialmente, possibilidade de criação e encantamento político, subjetivo e simbólico.
O “causo” e marco histórico que envolveu as quitandeiras no século XVIII sinaliza um avanço em relação à cidadania plena no Brasil, mas demonstra também uma questão essencial para a discussão que veremos a seguir: a capacidade de organização, articulação e incidência política de mulheres negras, entre elas as empreendedoras e artistas.
A pintura de Henry Chamberlain é apresentada aqui como recurso artístico, social e político situado em determinado espaço-tempo. Não representa, de forma alguma, um retrato totalmente fidedigno da realidade, mas uma possibilidade de interpretação desta. Entremos nela.
A cena ilustrada por Chamberlain apresenta algumas pistas interessantes para nosso caminho entre a kitanda e o samba. A predominância de figuras femininas é um dos primeiros aspectos que chamam atenção. Sejam escravizadas, escravizadas de ganho, libertas ou livres, as mulheres negras possuíam uma forte circulação nas áreas urbanas do Rio de Janeiro, sendo essenciais na economia da cidade e na manutenção das atividades no que é considerado o centro da cidade. Forneciam alimentos para os que iam e vinham e, também, para aqueles que mandavam e desmandavam. É das mãos de mulheres negras que vem a comida que alimenta a economia e a política carioca. O caráter semiambulante é outro que chama atenção. Era possível perceber bancas, espaços de certa forma estruturados, porém muitas das quitandeiras vendiam seus quitutes e utensílios em vasilhas equilibradas sobre a cabeça, ou em tabuleiros ou cestos. Coexistiam as quitandas “estacionárias” e as quitandas ambulantes. O terceiro aspecto que cabe ressaltar é a presença de instrumentos musicais na pintura. As quitandas eram também locais de troca, encontro e reinvenção subjetiva e artística entre indivíduos negros. Muitas vezes vistos como “arruaça”, os “divertimentos das gentes negras” ocorriam dentro de uma lógica de inventividade constante.
Enquanto circulavam as quitandeiras no Rio de Janeiro, nascia, em Santo Amaro, Hilária Batista de Almeida, posteriormente conhecida por Tia Ciata. O fluxo entre Bahia e Rio de Janeiro reforçou um roteiro transatlântico de identidades negras, que marcou muitos dos fenômenos culturais e epistemológicos que construíram nosso país. As “cidades negras” possuíam diálogos neste e em outros planos. Aos 22 anos, Ciata chegou ao Rio de Janeiro, indo morar na região da Pequena África e, depois, na área da Cidade Nova. Iniciada no candomblé na Casa de Bambochê (nação Ketu) e continuando seus preceitos na casa de João Alabá (Rio de Janeiro), Ciata despontou como uma incentivadora e mantenedora das práticas religiosas e culturais negras, mesmo diante da forte repressão implementada pelo Estado brasileiro. Sua casa na Praça Onze tornou-se espaço de encontro e criação entre grandes nomes do samba no Rio de Janeiro. Formava-se, assim, um dos mitos criadores do samba no Rio de Janeiro, onde a figura central é uma mulher negra.
Assim como as quitandeiras, Tia Ciata retomou o elo entre o que hoje chamamos de empreendedorismo e as artes negras. Conhecida como “tia baiana”, foi uma das responsáveis por fortalecer o ofício das baianas quituteiras, que, assim como as quitandeiras, vendiam seus produtos e tinham grande influência na comunidade. Destacam-se também tias baianas como Dona Bebiana, Dona Carmem, Dona Amélia, Dona Perciliana, entre outras.
Mesmo sendo essenciais para a existência do samba, as mulheres negras não escaparam do silenciamento e das diversas opressões derivadas do machismo e do racismo. Dona Ivone Lara – uma das pioneiras no samba –, por exemplo, teve seus sambas muitas vezes apresentados por seu primo Mestre Fuleiro, uma vez que mulheres compositoras eram vistas ainda com muitos preconceitos. Ainda assim, foi a primeira mulher a assinar sambas, especialmente na área de sambas-enredo.
Clementina de Jesus era neta de escravizados. Nascida em 1901, Quelé, como ficou conhecida, ajuda-nos a visualizar como a escravidão estava e ainda está perto. Subvertendo a lógica de subjugação da intelectualidade negra, Clementina passeava entre o samba, o jongo, o lundu e diversas outras manifestações da musicalidade negra. Tanto que, além de “Quelé”, ganhou um segundo apelido, “Rainha Ginga”, tamanha era a força da ligação entre África e Brasil que vinha das produções da sambista, que lançou 11 álbuns ao longo de sua vida e carreira.
Assim como Clementina, a história da sambista Jovelina Pérola Negra também é um desenho da realidade brasileira quando falamos de mulheres negras. A carreira no samba começou quando a artista tinha mais de 40 anos, pois grande parte da vida de Jovelina foi dedicada à profissão de empregada doméstica. O apelido “Pérola Negra” marcava um forte aspecto da sua carreira: a valorização da negritude. Importante destacar que, diferente de outros compositores e cantores (em grande parte homens e/ou brancos), o reconhecimento veio tarde, e Pérola Negra não recebeu em vida o retorno financeiro que merecia. Ficou plantada a semente do samba e aberto o caminho que sambistas negras percorrem hoje.
Tia Ciata, Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus, Dona Dodô da Portela, Leci Brandão, Elza Soares, Tia Surica, Alcione, Teresa Cristina, Mariene de Castro, Fabiana Cozza, Mart’nália, Nilze Carvalho e tantas outras marcam a presença ininterrupta das mulheres negras no samba. Embora muitas vezes invisibilizadas pelo machismo e pelo racismo, não há samba sem as mulheres negras, responsáveis por criar estratégias de organização coletiva extremamente sofisticadas, tanto no âmbito operacional quanto no simbólico – alimentando em suas quitandas, disputando narrativas para a manutenção dos espaços de convívio comunitário, compondo, tocando, cantando, sambando e existindo. Repito: não há samba sem a mulher negra.
Desde as quitandeiras, passando pelas tias baianas, as sambistas cariocas, as compositoras e todas as “engenheiras do samba”, podemos perceber que foram as mulheres negras que acenderam a faísca que hoje mantém o samba aceso como fenômeno musical e espaço de sociabilidade.
Muito além de arte e empreendedorismo, kitanda e samba formam uma ponte para a manutenção de tradições africanas e lembranças de algo que nunca devemos esquecer como sujeitos em diáspora: nossa identidade negra.
Eu tinha uns doze anos. Estava passando uma novela de que eu gostava muito, não me esqueço. Estávamos eu, meu irmão e minha irmã – ela, três anos mais velha que eu e ele, com uns cinco anos de idade. Nossos pais estavam retornando do trabalho.
Começou a chover. A chuva começou fininha. Mas depois engrossou. Chuva, vento, raios. Elementos da natureza em seu estado puro. Era muita água que caía do céu. E essa água começou a não escorrer pelos bueiros da Rua Silva Vale. Rapidamente a rua onde eu morava virou um rio. Um rio sem margens. E a água foi tomando todos os espaços. Entre eles, o quintal da minha casa. E depois, a casa por inteiro.
Quando a água começou a entrar simultaneamente pelo banheiro e pela sala, eu e minha irmã começamos uma maratona de recolher a água com baldes. Foram muitos baldes. Mas não havia baldes que dessem conta da força da água que invadia todos os cômodos. Então decidimos parar de lutar contra a natureza. Concentramo-nos em retirar alimentos, documentos e itens domésticos das partes baixas da casa, colocando-os nos lugares mais altos. Eram três crianças dentro de casa e dentro da água. Em um dado momento, eu e minha irmã percebemos que, como a água estava subindo muito, nosso irmão mais novo estava correndo o risco de, em algum momento, ficar submerso. Ali percebemos que, mesmo estando dentro de nossa casa, corríamos risco. Entregamos nosso irmão para nossa avó, que morava no mesmo terreno, em uma casa mais alta. E retornamos para tentar salvar mais algumas coisas. Nossos pais ficaram presos dentro do ônibus uma vez que a cidade do Rio de Janeiro entrou em estado de calamidade. Muitas horas depois, eles chegaram. Passamos a madrugada e os dias seguintes lavando os cômodos, jogando parte de nossos brinquedos, comidas, itens pessoais e afetos no lixo. E tentando calcular o estrago.
Este episódio me marcou. Ele ocupa um espaço especial nas gavetas de minha memória. Antes dele, eu já tinha passado por algumas experiências desafiadoras com relação à água. Mas essa me colocou de frente para a possibilidade concreta de perder muita coisa. Inclusive a vida de pessoas muito queridas. Depois disso me tornei uma adolescente e posteriormente uma adulta que tem muito medo de chuva. Onde quer que eu esteja, se vejo o tempo nublar, me arrepio de medo. Automaticamente as gavetas de minha memória se abrem e saem delas aquela criança dentro da água vendo seus brinquedos boiando e tentando se acalmar pensando “o jornal diz que isso é um desastre natural”.
Já adulta, morando em uma casa no terceiro andar, tive a sensação de segurança com relação à chuva, pelo menos quando eu estivesse em minha residência. Porém, num dia de tempestade, a água começou a entrar pela telha da cozinha. Entre pegar baldes, potes e panos de chão, a criança de doze anos pulou novamente da gaveta da memória, com todo o seu medo de chuva. Novamente para acalmá-la pensei “Isso é um desastre natural.”
Cresci. Comecei a observar que, enquanto a água invadia a minha casa pelo quintal ou pelo teto, outras pessoas continuavam tendo seus lares secos e bem cuidados. Percebi também que, enquanto morros, encostas e favelas desmoronavam em épocas de chuva, as áreas consideradas nobres da minha cidade em sua grande parte mantinham-se intactas mesmo após os temporais. Percebi que não era todo mundo que tinha medo de chuva. Percebi que talvez os desastres naturais não sejam tão naturais assim.
As perspectivas eurocêntricas de mundo e sociedade separaram homem de natureza colocando o primeiro como superior. Ele deveria dominar a natureza e colocá-la a seu serviço. Isso cria uma série de convulsões socioambientais que trazem severas consequências.
Observando esse quadro em contexto global, o ativista pelos direitos civis das populações negras nos Estados Unidos, Benjamin Chavis, lança mão do termo “racismo ambiental” em 1981, num contexto de observação das relações entre áreas de despejo de resíduos tóxicos com locais majoritariamente ocupados por pessoas negras estadunidenses.
Em 1993, é publicado o livro “Confronting environmental racism: voices from the grassroots” (“Confrontando o racismo ambiental: vozes do movimento de base”), organizado por Robert D. Bullard, intelectual afroamericano que cunhou o termo justiça ambiental. No livro, Chavis define racismo ambiental como:
“Discriminação racial na elaboração das políticas ambientais, aplicação e regulação de leis, o ataque deliberado às comunidades de cor por meio de instalações de resíduos tóxicos, a sanção oficial de venenos e poluentes cuja presença causa risco de vida para nossas comunidades e a história da exclusão de pessoas de cor da liderança dos movimentos ecologistas.”
De modo global, podemos estranhar algumas questões que são colocadas como norma. Os países do norte do globo terrestre, historicamente tecem relações desiguais com os países do hemisfério sul. Exploração de mão de obra, despejo de resíduos tóxicos, exploração desmedida de recursos naturais, falta de paridade nos espaços de tomada de decisão são algumas das questões que pautam as relações ambientais no âmbito global entre países do norte e do sul. Isto não é natural. É fruto de uma lógica colonial baseada em racismo, desigualdade e escravidão, que se reproduz até o tempo presente.
Quando falamos de Brasil, as relações não são muito diferentes. Concentração de poder e de renda, falta de escuta com a natureza, exploração da vida e mão de obra de populações negras, indígenas, faveladas, ribeirinhas e periferizadas marcam políticas de injustiça e racismo ambiental. Quando a ganância e o racismo se chocam com os limites de uma natureza explorada até sua última gota, emerge o termo “desastre natural” para justificar tragédias anunciadas como as de Mariana e Brumadinho.
No livro “Os Indígenas e as Justiças no Mundo Ibero-Americano (Sécs. XIV – XIX)”, o intelectual Ailton Krenak contribui com o artigo “O insustentável abraço do progresso ou era uma vez uma floresta no Rio Doce” (2019) e expõe de forma aprofundada as relações de desigualdade ambiental:
“Para maior segurança, ainda difundiram, por todos os meios, que esta região era ocupada pelos bravos e arredios Botocudos, descritos como temíveis canibais. Assim foi justificada a guerra que moveu a Coroa portuguesa contra os povos que formavam a nação dos Botocudos, guerra justa decretada por D. João VI quando chegou com a corte para se estabelecer no Rio de Janeiro em 1808. A vida destes povos nunca mais foi a mesma com a implantação de quartéis nos afluentes do dos rios Doce, São Mateus e Jequitinhonha, formando aldeamentos e postos de controle da movimentação dos índios, que mesmo nas matas eram perseguidos e arregimentados para o trabalho forçado nas novas colônias que avançavam sobre a região.”
A disseminação de ideias racistas sobre populações nativas e negras se perpetua nos dias atuais, sendo utilizada para justificar expropriação de terras e genocídio. Quando olhamos para os números das já citadas tragédias brasileiras percebemos que em 2015, 84,5% das vítimas do rompimento da barragem em Mariana (MG) eram negras. Além das mortes imediatas, a empresa Samarco ainda foi responsável por poluir os rios com rejeitos da mineração e intoxicar peixes e diversos animais do ecossistema com lama tóxica. O povo indígena Krenak da região, bem como a população ribeirinha sentem os impactos do desastre até hoje.
Em 2019, na ocasião do rompimento da Barragem de Brumadinho (MG) 58,8% dos 259 mortos e 70,3% dos 11 desaparecidos também eram pessoas não brancas. A ação, de responsabilidade da Vale, até hoje impacta a população local, em especial o povo Pataxó. A injustiça ambiental nos retira formas de subsistência e nos deixa marcas que resistem ao tempo. Um aspecto fulcral do racismo ambiental é a prevalência do lucro em detrimento da vida. Em especial, de vidas não brancas.
Os episódios narrados por mim no início deste texto ocorreram em casas situadas em favelas, ou bairros periferizados. A casa da Rua Silva Vale (Cavalcanti, Rio de Janeiro) fica às margens de um rio, que foi transformado em valão. Construiu-se uma linha de trem nas margens, aterrou-se grande parte e acreditou-se que o poder público não precisaria fazer um acompanhamento contínuo do fluxo de águas, esgotos e desenvolvimento populacional do território. Rio é vida. Água é vida. E vidas precisam ser cuidadas. A água que entrava na minha casa era a água da chuva, mas era também a água do rio que foi forçado a caber em um lugar que não comportava sua imensidão. Como cantam as rappers Tasha e Tracie, “água não se dobra, ela desliza.”
O relato da água que entra pelo teto também é fruto da falta de investimento em saneamento e moradia digna para moradores e moradoras de favela. O censo de 2010 mostra que das 616.814 casas em favelas do Rio de Janeiro, 78% estariam ligadas à rede geral de esgoto ou águas pluviais; 91% à rede geral de distribuição de água e 96% aos serviços de limpeza. Porém, além de termos um hiato de dados por conta dos boicotes à pesquisa nos últimos anos no Brasil, a realidade mostra que esses dados robustos não condizem totalmente com a realidade das favelas e periferias. O fluxo de esgoto não consiste em apenas “dar a descarga” e se livrar dos dejetos, por mais que essa seja a compreensão do senso comum e que se reflete no censo. O fluxo de água e de esgoto vai muito além disso, e o que vemos nas favelas é que muitas residências ainda não têm acesso a uma rede completa de esgoto, uma vez que esse é muitas vezes despejado em locais inadequados, como valas, rios, fossas, lagos ou mar. O racismo ambiental cria uma esfera de desinformação e pouca acessibilidade aos mecanismos de poder e incidência, ao redor de pessoas não brancas e empobrecidas.
Por fim, a meu ver, um dos aspectos mais cruéis do racismo ambiental: a sensação de morte ao ter contato com um elemento que, em sua essência, simboliza a vida – a água. Algumas correntes teóricas acreditam que os primeiros sinais de vida em nosso planeta surgiram na água. Enquanto seres humanos, desenvolvemo-nos no período de gestação dentro do ventre da mãe, imersos em água. Mesmo fora do ventre, mais de 70% do corpo humano se mantém sendo água. Em diversas religiões, a água representa o nascimento do indivíduo dentro daquele grupo e cosmogonia. Desde os primeiros vestígios de história da humanidade, água é sinônimo de vida. Que um dia possamos superar as barreiras físicas e subjetivas construídas pelo racismo cultural, reconectar-nos de forma honesta com a natureza e que, em nossas gavetas da memória, possamos perder o medo da chuva.
Podemos considerar que existem três tempos. Passado, presente e futuro. Estes três tempos nos ajudam a fazer leituras sobre a realidade, as relações sociais e os acontecimentos históricos. Nos deslocamos nestes tempos que estão interligados e que fazem a roda do mundo girar. Um tempo influencia diretamente o outro e nós, seres humanos, muitas vezes nos perdemos neles, visto que o véu metafórico que os divide é quase invisível.
Assim, temos um futuro que só será o que será a partir do que está sendo construído no tempo presente. Bem como agora nos alimentamos do passado, para desenhar o presente e vislumbrar o futuro.
O ideograma adinkra Sankofa nos ajuda a pensar estes tempos. Sankofa é um pássaro. Na origem da palavra, o termo Sankofa pode ser traduzido como “volte e pegue”: san – “voltar”, “retornar”; ko – “ir”; fa – “olhar”, “buscar” e “pegar”. Porém, com o intelectual negro Abdias do Nascimento, a palavra-conceito teve interpretações ainda mais profundas, podendo ser lida como “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.
O movimento proposto por Sankofa nos é muito útil para ler o mundo, especialmente os espaços geopolíticos marcados pela colonização e pela construção de diásporas negras, como é o caso do Brasil.
Quando pensamos em nosso país, muitas vezes somos remetidos aos símbolos nacionais, às paisagens, à cultura. Mas é essencial que politicamente não percamos de vista que o Brasil, enquanto nação, foi formado num contexto bastante específico.
Entre o fim do século XVIII e meados do século XIX, chegaram às terras do que hoje chamamos de Brasil cerca de um milhão de africanos escravizados. Dentro desse período, a primeira metade do século XIX registrou o fluxo mais intenso do tráfico atlântico, em que os africanos representavam cerca de 80% dos habitantes em fase adulta nas fazendas de café e açúcar nos atuais estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Este sistema estruturou relações econômicas, políticas, sociais, culturais e principalmente relações de poder. A crença na supremacia branca versus a inferioridade negra foi plantada na mentalidade nacional e nas estruturas do país.
Desta forma, o racismo foi construído em nosso país como um “crime perfeito”. Algo que baseia as nossas relações, está presente em nosso cotidiano e na construção da sociedade, mas que, ao mesmo tempo, algo em que não se pode tocar e que é veementemente negado quando falamos de indivíduos. O Brasil é um país construído sobre bases explicitamente racistas, mas onde ninguém comete racismo.
É importante salientar que o racismo faz parte de um projeto político amplo, produzido racionalmente, e não por acaso, como se pode pensar. Durante o século XX, pseudocientistas e estudiosos aparelhados pelo sistema racista desenvolveram estudos com a finalidade de comprovar a inferioridade da população negra e estimar em quanto tempo pessoas pretas e pardas desapareceriam do Brasil. Nesse sentido, as teorias de “democracia racial” também foram importantes mecanismos no movimento de mascarar o racismo, a partir da crença na harmonia entre as raças no Brasil e apresentava a miscigenação como um processo de evolução da população negra, mediante embranquecimento.
O intelectual Silvio de Almeida escreve o livro O que é racismo estrutural, em 2018, onde observa a formação do racismo e das teorias raciais no Brasil e no mundo, estando inserido na Teoria Social e estruturado nas formas de organização da sociedade. O autor aponta que:
“Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade, a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal” (ALMEIDA, 2018: 63).
Assim, o acesso à educação apresenta-se como uma importante pauta para os movimentos negros de todo o país. A possibilidade de gerar impactos positivos e desenhar outros contornos para trajetórias marcadas pelo racismo e pelas desigualdades, bem como a articulação entre saberes acadêmicos e práticos aproximam juventudes negras de uma reflexão na qual a educação seria um passo acertado. Porém, nos espaços de educação, também é possível perceber e ser vitimado pelas estruturas racistas de nossa sociedade. Não estamos imunes, nem em espaços educativos, e isso foi percebido e discutido firmemente por pesquisadores e ativistas negros.
A entrada de estudantes negros nas instituições de ensino passa a ser pauta prioritária nos movimentos negros. Um importante momento nesse contexto é a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e pela vida, na qual é desenvolvido um plano para a superação do racismo, denominado como Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial. Neste programa, a educação é apresentada como um possível ponto de partida para a caminhada rumo à superação do racismo. Nele, havia propostas como a implementação da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial no Ensino, monitoramento dos livros didáticos e programas educativos. Algumas dessas demandas foram atendidas pelo poder público, marcando a capacidade de incidência política dos movimentos negros organizados.
Podemos perceber que, graças a pressões, propostas e investimentos políticos dos movimentos negros, a partir da década de 1990, começam a ocorrer mudanças consideráveis no que diz respeito à educação, ao antirracismo e ao acesso. Um exemplo disto é a LDB – Lei de Diretrizes e Bases e as leis municipais acerca da educação. Em 2003 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizou a alteração na Lei Nº 9.934, de 1996 (que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional), implementando a Lei 10.639/2003, que prevê a obrigatoriedade do ensino de História da África, dos africanos e história da cultura afro-brasileira. Ainda assim, é importante destacar que a fiscalização a fim de verificar a real implementação dessas diretrizes ainda precisa avançar muito.
Ainda pensando ações afirmativas, a Lei das Cotas (Nº 12.711) foi aprovada em agosto de 2012, como política pública de ação afirmativa na Educação Superior no Brasil. A lei previa que as universidades reservassem 50% das vagas para estudantes vindos das redes públicas de ensino. E, dentro desta porcentagem, haveria reserva de um percentual específico para estudantes negros (pretos e pardos) e indígenas. A porcentagem varia de acordo com o percentual dessas populações em cada território, de acordo com o IBGE.
Em 2022, temos o marco dos dez anos da Lei de Cotas. Em 2011 – um ano antes de minha entrada na universidade -, do total de 8 milhões de matrículas, 11% foram feitas por alunos pretos ou pardos em universidades federais. Em 2016, o percentual de negros matriculados já havia subido para 30%. Não podemos afirmar que todos estes estudantes ingressaram no ensino superior através de ações afirmativas, mas o incremento nos números é expressivo e pode ser entendido como uma possibilidade de ascensão social e econômica quando falamos de populações historicamente empobrecidas e vitimadas pelo racismo estrutural. A escritora nigeriana Chimamanda Adichie afirma:
“Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e ressaltar o mal. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. A escritora americana Alice Walker escreveu isto sobre seus parentes do sul que haviam se mudado para o norte. Ela os apresentou a um livro sobre a vida sulista que eles tinham deixado para trás. ‘Eles sentaram-se em volta, lendo o livro por si próprios, ouvindo-me ler o livro e um tipo de paraíso foi reconquistado.’ Eu gostaria de finalizar com esse pensamento: Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso.”
Para tentarmos superar o passado racista, é necessário seguirmos Sankofa e apanhar o que ficou para trás. É essencial recuperarmos as narrativas, epistemologias e dignidade dos povos negros, subjugados pelo racismo e pelas desigualdades.
A frase acima foi atribuída a Maria Antonieta (1755-1793), rainha da França entre 1774 e 1792, e demonstra um importante aspecto nas relações sociais: o desprezo dos mais ricos pelos mais pobres. Ainda que não haja comprovação científica de sua veracidade, a fala de Antonieta diante de uma crise econômica que fez faltar até mesmo o pão nas mesas do povo francês sinaliza o cinismo das classes dominantes ao longo da história da humanidade. A frase que virou ditado popular pode até não ter saído da boca da rainha, mas é uma excelente alegoria acerca da mentalidade daqueles que historicamente costumam estar no poder. Séculos se passaram, léguas separam a França do século XVIII do Brasil contemporâneo; entretanto, os abismos sociais e econômicos se mantêm.
Somos um país em que a fartura e a falta são faces da mesma moeda: a desigualdade. A história da desigualdade brasileira é tão antiga quanto o próprio Brasil. Nestas terras, antes de 1500, habitavam diferentes povos que hoje conhecemos como indígenas. Na África, os diferentes grupos construíram civilizações complexas, em relação dialógica e complementar com a natureza, gozando de abundância de saberes, dinâmicas sociais e recursos naturais. E em outra região do planeta, povos brancos sentiam a falta de alguns desses recursos, especialmente os oriundos da natureza. O encontro entre essas faltas e abundâncias poderia ter sido harmônico e pautado na troca, mas não foi. O escritor Manuel Rui narra esse momento:
“Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala, mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar os canhões.”
A partir de então, inicia-se o estabelecimento de uma lógica que não é baseada na harmonia das relações e na distribuição igualitária de recursos e bens. Instaura-se, sim, uma dinâmica colonial que faz com que, para sobrar de um lado, tenha de faltar do outro.
O Brasil enquanto Estado foi fundado sobre os paradigmas da escravidão, da exploração do trabalho e da propriedade privada. Quando observamos em âmbito mundial, a desigualdade aparece em diversos países ao longo da história. Porém, colocando em diálogo nações como Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e França, o Brasil desponta ao construir o que podemos chamar de uma “história da desigualdade”. E a colonização — a posição de colônia — foi determinante nisso.
A propriedade privada é fator decisivo quando falamos de faltas e privilégios. Ao longo da história do Brasil, ter bens sempre foi determinante na ocupação social possível para cada indivíduo ou grupo.
Num país baseado em escravidão, pessoas negras eram vistas como propriedade. Como possuir, ter bens, se a propriedade é você? Como acumular capital se o seu corpo é a principal moeda de troca no sistema econômico vigente? Essas são perguntas que a sociedade brasileira até hoje não conseguiu — ou não quer — responder. Essa dicotomia entre possuir e ser posse de outrem não se encerrou com o fim do ciclo colonial brasileiro.
O Brasil teve várias oportunidades de criar outras lógicas para as questões de falta, abundância e desigualdade. Uma delas foi a abolição da escravidão. Outra foi a proclamação da República. A Lei Áurea, assinada em 1888, poderia ter sido um ato revolucionário no Brasil e nas Américas. Não foi. O fim do regime escravocrata não propiciou a inserção social de pessoas negras. Ela também não propiciou processos de reparação para ex-escravizados e seus dependentes. O processo foi tão raso, quando falamos de condições práticas, que chamamos o que ocorreu no Brasil de “abolição inconclusa”. Faltou abolição na abolição.
Um ano depois, surgiu uma nova oportunidade a partir do marco histórico do fim da monarquia. O rompimento com o sistema vigente tinha como base alguns ideais republicanos, como a liberdade, a igualdade, a dignidade da pessoa humana e a justiça. Ora, se as elites monárquicas eram de certa forma as principais responsáveis pela falta de inserção social sofrida por negros, indígenas e empobrecidos, o fim da monarquia poderia significar uma mudança de paradigma. Não significou. A transição da monarquia para a república, em 1889, ocorreu sem participação popular. Por mais que a proclamação tenha marcado um rompimento com determinados modelos de relação internacional, na prática, os rompimentos foram mínimos. Faltou ousadia na jovem república. Faltou liberdade. Faltou igualdade. Faltou garantir dignidade para todos. E, principalmente, faltou justiça.
As elites, ou os ricos, não são um grupo socioeconômico homogêneo. Elas englobam pessoas com diferentes rendas, perfis e interesses. Porém, historicamente são elas que detêm o poder na nossa sociedade e influenciam diretamente as normas e os códigos sociais. Entre a invasão do território hoje brasileiro, o advento da república e o Brasil contemporâneo, pouca coisa mudou nessa balança onde pendem abundâncias e ausências.
Entre 1964 a 1985, foi implantada a ditadura militar no Brasil. Para além do poderio bélico, os militares também constituem uma classe que detém capital financeiro e enorme capacidade de influência. Foi um período de imensos retrocessos, quando falamos de direitos humanos e civis, ao mesmo tempo em que foi observado o que ficou conhecido como “milagre econômico”.
Os maiores beneficiados foram os próprios militares e as elites econômicas. Esse milagre excluiu a população em geral, em especial as classes trabalhadoras e as populações empobrecidas.
Após o fim da ditadura, sucessivos governos democráticos comandaram o país. Desde Fernando Collor, que prometeu uma “caça aos marajás” e o fim de privilégios e acabou causando um dos maiores escândalos econômicos do país, até o governo de Jair Bolsonaro, que anunciou fim da corrupção e acabou com casos envolvendo milícias, violência e ataques aos direitos humanos, cada governo apresentava suas ideias, plataformas e propostas de mudança. Algumas políticas realmente foram implementadas, como no governo Lula (2006–2010), quando se observou significativa redução da pobreza e da desigualdade social. O país passou da décima para a sexta posição como maior economia mundial. Mas a balança entre a “sobra” e a falta continua a pender para o “lado mais fraco”.
Em outubro de 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou um estudo que mostrou o aumento da concentração de renda em 2018 e uma consequência catastrófica: o incremento das desigualdades sociais extremas. O rendimento mensal do 1% da população mais rica no país correspondia a 33,8 vezes o valor recebido pela parcela da população mais empobrecida. Segundo o estudo, aproximadamente 50 milhões de pessoas viviam abaixo da linha da pobreza no Brasil durante o período da coleta de dados.
De acordo com o estudo Mapa da nova pobreza, desenvolvido pelo FGV Social a partir de dados disponibilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) e divulgados pelo IBGE, o número de pessoas com renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais atingiu 62,9 milhões de brasileiros em 2021. Isso representa 29,6% da população brasileira.
O processo de cidadania inacabado que vivemos faz com que haja uma imensa concentração de renda na mão de uns enquanto outros vivem de mãos vazias. De tanto que sobra de um lado, falta do outro.
Esta revista é um dispositivo de projeção futurista e que deve ser utilizado como passaporte para a sua viagem. Abra. Leia. Vá e volte. Leia de novo. Rabisque. Olhe. Sinta. Quando sentir o chamado, embarque. E então, imagine.
Todos aqueles que vivem têm capacidade imaginativa. Na Bíblia, livro religioso, mas que aqui será discutido enquanto material histórico, lemos uma passagem em que Jesus Cristo diz: “Portanto, Eu lhes digo: tudo o que vocês pedirem em oração, creiam que já o receberam, e assim lhes sucederá” (São Marcos 11,24). A esse movimento circular de pedir, crer e receber chamaremos pulsão imaginativa — pulsão esta reconhecida pelo maior profeta da humanidade.
Nos primórdios de nossa história, quando o sol beijava a terra diariamente e as estrelas iluminavam a escuridão noturna, surgiu a necessidade humana de medir o tempo. As pessoas observavam o movimento celeste, a alternância das estações, e buscavam formas de compreender e organizar o fluxo do universo. Assim, foram inventados os primeiros rudimentos de medida de tempo. As sombras projetadas pelos objetos, os relógios solares e os marcadores naturais, como as flores desabrochando e as folhas caindo, foram recursos utilizados para marcar o avançar das horas e dos dias. Com o passar do tempo e dos mergulhos imaginativos, surgiu o conceito de horas divididas em partes menores. Foram criados relógios mecânicos, relógios de areia, ampulhetas e outros feitos engenhosos para medir o tempo de maneira mais precisa. O ser humano imaginou o tempo e a sua medida.
O ser humano também imaginou a escrita. A criou enquanto estratégia de comunicação e transmutou da mente para uma plataforma física a sua permanência no tempo e no espaço. Assim, da pele da cobra, do cordeiro ou da ovelha se fizeram pergaminhos. Do ato de olhar algum destes animais e imaginar a escrita, se fez a construção física. Da observação de plantas aquáticas no Egito se imaginou o que conhecemos como papiro. A ação de escrever foi precedida pela imaginação da escrita. A imaginação por vezes é multifatorial.
Há milênios, a invenção de navios e embarcações marcou um ponto crucial na história humana. A criação de poderosas estruturas flutuantes abriu caminho para a exploração dos vastos oceanos, conectando pessoas, culturas e continentes distantes. A partir do século XV, uma nova era marítima começou, com as ditas Grandes Navegações. Os navios tornaram-se mais resistentes, rápidos e capazes de enfrentar os desafios impostos pelos oceanos turbulentos. Caravelas, galeões e navios a vapor possibilitaram a descoberta de novos continentes e a criação de impérios coloniais. A invenção dos navios e de embarcações modificou a forma como nos relacionamos com o mundo e também as relações humanas, de consumo e de poder. A imaginação é capaz disso.
Há de se assentir que a presença da imaginação é forte em nossa história. Antes de executar diferentes feitos que deram o tom de eras, fatos e movimentos históricos, o ser humano ousou imaginar. Porém, a possibilidade de transformar a imaginação em ação não é e não foi distribuída de forma igualitária entre as pessoas. As ideias sempre foram livres; alguns seres humanos, não.
Jesus Cristo, nascido na região da Galileia, foi um dos homens mais importantes da história da humanidade. Embora sua representação visual ao longo dos séculos tenha sido predominantemente branca, existe uma importante e significativa discussão sobre a possibilidade de Jesus ter sido negro. Essa perspectiva desafia a narrativa tradicional e radicaliza um dos principais paradigmas das sociedades modernas: aquele que foi um dos primeiros a estimular a radicalização da imaginação como potência propositiva pode ter sido um homem negro.
Já a escrita, uma das invenções mais significativas da humanidade, tem raízes profundas, que remontam a tempos antigos na África. Na região do Egito Antigo, por volta de 3200 a.C., surgiu uma das primeiras formas de escrita conhecida, chamada hieróglifos. Esses símbolos complexos foram utilizados para registrar a história, a cultura e os conhecimentos da época. Além do Egito, outras culturas africanas também desenvolveram sistemas complexos de escrita. Na antiga Núbia, por exemplo, surgiu a escrita meroítica, por volta do século III a.C., que era utilizada pelos reis e governantes. A escrita ge’ez, originária da Etiópia, é outra forma de escrita africana, tendo sido utilizada para registrar textos religiosos e literários.
A escrita africana não apenas registrou eventos históricos, mas também expressou conhecimentos científicos, filosóficos e culturais. Ela desempenhou papel vital na preservação e transmissão de tradições orais, além de permitir o desenvolvimento de sistemas de governo, leis e documentos legais. Esses sistemas de escrita africana são testemunhos da criatividade e da habilidade intelectual das civilizações africanas. Civilizações negras. Eles desafiam uma narrativa eurocêntrica que tende a negligenciar as contribuições do continente africano para o desenvolvimento humano. Esse esforço imaginativo que revolucionou o mundo é, também, negro.
As embarcações e navios, também fruto da imaginação humana e celebrados enquanto ferramenta de desbravamento, foram instrumentos de subjugação e racismo. As embarcações que foram utilizadas como navios negreiros durante a era da escravidão representam um dos capítulos mais sombrios e cruéis da história da humanidade. Esses navios eram instrumentos de opressão e deterioração, utilizados para transportar milhões de homens, mulheres e crianças africanas em condições desumanas. As Grandes Navegações são frequentemente celebradas como marcos da exploração e da descoberta, mas também devem ser conduzidas criticamente. Sob o pretexto da busca por riquezas e da expansão territorial, essas expedições europeias resultaram em invasões violentas, exploração desenfreada e devastação de culturas e vidas indígenas e africanas.
A escravidão da população africana foi um crime contra a humanidade, uma violação brutal dos direitos fundamentais e uma manifestação do racismo e da supremacia branca em esfera global. Os navios negreiros eram os símbolos móveis desse sistema desumano, que roubava vidas, direitos e liberdade.
A imaginação radical, em sua essência, refere-se à habilidade de pensar o mundo, a vida e as instituições sociais não conforme são, mas de acordo com as possibilidades de como poderiam ser. Para exercê-la, é necessário coragem. É preciso um olhar ousado e audacioso para transmutar a realidade e inspirar ações concretas.
Imaginar radicalmente também tem a ver com reescrever o passado. Tem a ver com sankofa. Sankofa é um conceito poderoso, que tem suas raízes na cultura akan, da África Ocidental. Ele expressa a ideia de olhar para trás, voltar ao passado, para avançar e crescer no presente e no futuro. Sankofa nos lembra da importância de reconhecer e respeitar nossas origens, tradições e experiências passadas enquanto buscamos inovar e reinventar.
Reinventar o passado envolve a imaginação e a criatividade, pois exige que pensemos de forma inovadora sobre como podemos utilizar as histórias e as experiências anteriores para informar nossas ações no presente. Podemos buscar alternativas e soluções que não foram consideradas anteriormente, incorporando sabedoria ancestral e trazendo novas perspectivas. Ao reinventar o passado, abrimos caminho para a ressignificação de narrativas e a promoção de mudanças positivas. Podemos questionar narrativas dominantes e ampliar vozes historicamente silenciadas e marginalizadas.
É importante perceber que reinventar o tempo passado não é tarefa individual, é esforço coletivo. É através do compartilhamento de conhecimentos e experiências que podemos reunir as peças do passado de forma significativa, criando uma narrativa que orienta nosso presente e nos inspira a construir um futuro pleno de direitos. As populações negras e indígenas são um chamado à imaginação radical, assim como as favelas, as periferias e os movimentos sociais o são. Nas margens se criam espaços imaginativos que subvertem as lógicas coloniais. Das vozes historicamente silenciadas emergem as possibilidades mais radicais de imaginação e existência. Antes da ação há a imaginação. Antes da execução do racismo enquanto modelo de sociedade, essa forma de se posicionar no mundo foi elaborada mentalmente por pessoas brancas. Do outro lado, a imaginação negra, muitas vezes enclausurada em senzalas, prisões, camburões ou manicômios, inventou formas outras de ser e estar — formas que apresentam ao mundo uma caminhada pautada em valores civilizatórios de circularidade e escuta. Pautar potência em meio à escassez é ser radical.
Que a imaginação radical seja nossa bússola, nos levando por caminhos menos óbvios e mais justos, revelando belezas ocultas e histórias soterradas e, finalmente, nos conduzindo à plenitude de ser quem somos.
Não existe senhora preta sem história triste pra contar (…) Quantas vezes já parei pra refletir que os seus passos são pesados quase sempre esparramados os dedos na sandália sempre gastas de unhas grossas e esmalte por tirar. Por onde passaram esses pés? Quanta sola já foi gasta, quanto a pé já não andou, quanto aperto não passaram esses pés para que o luxo dos sapatos novos fosse dado somente aos tantos filhos. E quanto aos seus filhos, qual deles ainda lhe faz a gentileza de cortar suas unhas? Quanto pescoço e pé de galinha comeu fingindo que gosta para deixar as outras partes do ensopado a quem mais ama? Ninguém gosta de pescoço de galinha, senhora. Enquanto caminha no sol por ser calor sua pele sua e a toalha de mão arrasta naquela testa O que pensa aquela testa? Quanto de pensamento não esquentou aquela testa além do sol? Esse suor que toca salgado a raiz do cabelo na testa. Quem ainda te alisa o cabelo? Quem ainda te obriga a fazer isso? Quanta ordem esse cabelo já recebeu? Quanto tempo de sua vida ali em frente ao espelho infeliz com ele Onde deita essa cabeça, senhora? E quando deita, qual teto enxerga até adormecer? O que sonhou essa cabeça? Quanta inteligência nessa cabeça A do cozinhar, a do costurar, a do resolver tudo por conta própria foi substituída pela vergonha do não saber como ensinam nas escolas Do não saber falar. Quanta timidez senhora, por não saber falar. Quanta vergonha sob essa testa que a toalha de mão arrasta foi obrigada a passar. Eu vejo uma dor que é suada e seca, Como se mesmo chorando, essa senhora preta nunca tivesse sentido pena de si do jeito que a gente chora. Quanta pena de mim eu já senti por perder um ônibus na minha pressa, Quanta pena de si ela deixou de ter por não ter podido mesmo se dar esse luxo. Quanto choro silencioso e seco já chorou nesses seus setenta, Sessenta, sessenta e oito anos. Quanta simplicidade contemplou como se ouro fosse Quanta alegria te deu a laje pronta, a festa que a filha foi de sandália nova, porque a sua já tão gasta ainda aguenta esse passo firme. Em direção a quem caminham esses pés? Qual o seu desejo pra hoje, senhora? É que seus filhos sejam felizes? É que tenha lugar na condução? Qual seu lugar, senhora, explica. Porque me entristece a injustiça dos que não te enxergam aqui passando majestosa. Onde puseram seu trono, senhora? E de repente, já terminei aquela rua e aquela senhora já caminhou pra não sei onde E aquela energia pendente como rastro no caminho me faz indagar coisas como: Quem cortará minhas unhas quando eu for senhora? Quanto ainda caminharei até encontrar meu trono?
— Luciene Nascimento, em Tudo nela é de se amar.
Na primeira vez que li esse poema, ele me rasgou. Me partiu ao meio. Na segunda também. E na terceira. E na quarta, na quinta, em todas. Porque ele tem cheiro, tem gosto e tem rosto. O da minha avó. O da minha mãe. O de tantas nós.
Eu sou neta de duas mulheres negras. Maria Teixeira de Carvalho e Maria Aparecida Leite Nunes. A primeira nasceu em Campos dos Goytacazes, município do interior do estado do Rio de Janeiro. A segunda, nasceu na Comunidade Quilombola Sítio dos Crioulos, situado na zona rural da cidade de Jerônimo Monteiro, região sul do Espírito Santo. Ambas migraram para a cidade do Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. As similaridades entre elas não param por aí. As duas começaram a trabalhar muito cedo em “casas de família”, tomando conta de outras crianças enquanto eram crianças também, limpando a sujeira que os mais abastados não queriam limpar. Essas duas mulheres negras se encontraram no Morro do Juramento, zona norte do Rio de Janeiro, onde meus pais se conheceram e constituíram a família que me origina.
No poema Vozes-mulheres, Conceição Evaristo escreve:
A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos de uma infância perdida.
A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela.
A linha narrativa desenhada pela autora retrata o caminho percorrido por muitas famílias negras. Em meio a violações, processos de escravidão e racismo contemporâneo, tentamos construir possibilidades outras de existir. Quando leio Conceição e Luciene, me recordo de uma conversa que tive com Dona Miguelina, minha parente do coração. Ela nasceu em Maceió, capital do estado de Alagoas. Veio para o Rio, como minhas duas avós. Ainda muito jovem, foi empregada doméstica. Alguns dos trabalhos desempenhados não eram remunerados financeiramente. A casa, a alimentação e por vezes um sapato ou vestidinho novos eram “a paga” pelos serviços prestados. Essa conversa mudou algo dentro de mim. Dona Miguelina não tinha dimensão da exploração que tinha vivido. Também não tinha o ódio que me surgiu ali, naquele momento, ao ouvir que a família era “até carinhosa”. Eu não conheci essa família, mas, de longe, eu a odiei, devo confessar. Não me senti digna de falar para uma senhora de mais de 70 anos que algo que ela guarda como memória afetiva era exploração. Não houve militância, leitura ou acúmulo acadêmico que desse conta do que aconteceu ali naquele quarto-sala na favela Nova Holanda. Mas desde então me pus a pensar nisso.
De tempos em tempos, emergem nos veículos de comunicação e redes sociais casos de situações de trabalho análogo à escravidão, nas quais geralmente senhoras negras foram as vítimas. Isso falando dos casos que ganham visibilidade. Sabemos que há milhares de histórias como essas soterradas. Um desses casos veio à tona em abril de 2022 e aconteceu em Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador. Madalena Santiago da Silva tinha oito anos quando começou a trabalhar como empregada doméstica na casa de uma família de classe média alta baiana. Durante todo esse tempo, Madalena não recebeu salário. Em muitos momentos, sofreu violências e maus tratos, sem contar o racismo. Além disso, a filha dos patrões fez empréstimos no nome dela e ficou com R$ 20 mil da aposentadoria da empregada doméstica. Esse caso evidencia a falta de fiscalização eficaz por parte das autoridades, bem como a exploração impiedosa e o desrespeito aos direitos humanos mais básicos. Após ser resgatada, Madalena foi entrevistada por Adriana Oliveira, repórter da TV Bahia. Durante a conversa, a jornalista pegou na mão de Madalena, que disse: “Fico com receio de pegar na sua mão branca”. Adriana insistiu no toque, afirmando que não havia diferença entre as duas.
Quando tinha 61 anos, Leda Lúcia dos Santos foi resgatada de uma casa onde trabalhava desde os nove anos, no bairro Patamares, também em Salvador, sem receber pagamento. A idosa, que já havia tentado fugir diversas vezes — sendo ameaçada em todas — não sabia que tinha o direito de ganhar dinheiro pelos serviços prestados. Após o resgate, Leda passou a receber um salário mínimo e vive em um abrigo municipal.
Na cidade de Fortaleza, em maio de 2023, uma senhora de 78 anos, de nome não divulgada, foi encontrada em situação de trabalho análogo à escravidão. Ela prestava serviços há mais de 40 anos para a mesma família. A “remuneração” era casa e comida. Ela não recebia salário. Além disso, a senhora não tinha folgas ou férias. O trabalho era de domingo a domingo, por 40 anos a fio.
De forma geral, a “terceira idade” ou velhice costuma ser o momento em que nós, mais novos, vislumbramos o tão sonhado descanso após anos de trabalho. É quando esperamos ter o reconhecimento por nossas contribuições para a sociedade e sonhamos com o gozo pleno de direitos, um pouco menos amarrados pelas cordas da produção capitalista. Mas, falando de pessoas negras, muitas vezes o tão sonhado descanso não chega em vida.
Os três casos citados expõem uma ferida aberta nas sociedades ocidentais: a falta de cuidado com os mais velhos, especialmente os negros, indígenas e empobrecidos. As condições de trabalho enfrentadas por essas senhoras, bem como as encontradas pelas minhas avós e por Dona Miguelina são herança de uma mentalidade colonial que vê em mulheres negras de mais idade o lugar da abdicação, do cuidado e, por que não, da exploração. Os quartos de empregada são senzalas pintadas de modernidade.
Assim, é importante nos questionarmos: quem tem direito a envelhecer? Conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizada em 2019, em Santa Catarina, um dos estados brasileiros com uma das maiores rendas médias per capita, a expectativa de vida média era de 79,9 anos. Já no Maranhão, o estado com a menor renda média do país, a expectativa de vida média naquele ano foi de 71,4 anos. É relevante ainda a informação levantada no Relatório Anual das Desigualdades Raciais do Núcleo de Estudos de População, elaborado pela Universidade Estadual de Campinas (Nepo/Unicamp), de que os brancos vivem seis anos a mais que os negros, em média.
A maior parte da população brasileira é composta por pessoas negras (pretas e pardas). Porém, esses grupos enfrentam maiores desafios em relação ao acesso à educação, à saúde e ao saneamento básico e estão mais expostos a condições de trabalho degradantes, o que resulta em limitações no acesso a direitos básicos, como salário-mínimo e aposentadoria. Além disso, pessoas negras sofrem com níveis mais elevados de violência e são as principais vítimas de processos de genocídio, especialmente os homens negros.
Quando li o poema de Luciene Nascimento, além de sentir o cheiro da minha avó, me lembrei de uma pergunta que me perturbava a cabeça quando era criança e assistia ao Sítio do Picapau Amarelo na TV: porque a marca da farinha de trigo se chama Dona Benta, se quem faz as receitas é a Tia Anastácia? Eu mesma espantava a pergunta de minha mente, pois achava que era bobagem. Não é.
É histórico o processo de roubo de histórias de nossas mais velhas, negras. É histórico o roubo de suas vidas. Tia Nastácia é frequentemente retratada como cozinheira da família, caracterizada por sua pele escura e por seu corpo gordo, sendo muitas vezes rotulada como a “negra de estimação”. Sua posição, marcada pela subordinação e pelo serviço à família da fazenda, ilustra o estereótipo da mulher negra que dedica sua vida a uma família branca, conhecida como “mãe preta”. Esse estereótipo é recorrente em produções cinematográficas, novelas e séries. Ele contribui para um imaginário que faz parecer natural explorar a mão de obra de mulheres negras por anos e não lhes pagar um único centavo.
Há um provérbio africano que diz que, quando um velho morre, é uma biblioteca que queima. Isso porque são os mais velhos e as mais velhas que, por seu tempo acumulado e vivido nesta terra, guardam uma maior quantidade de vivências e saberes. Afinal, percorreram muitos caminhos que podem ajudar quem está chegando agora na estrada da vida. Porém, para que essas bibliotecas possam compartilhar seus conhecimentos e desfrutar da leveza do ser ainda precisamos avançar enquanto sociedade e quebrar o paradigma de vivermos num tempo em que muitos querem envelhecer, mas poucos respeitam aqueles que já chegaram lá.
Era 13 de janeiro de 1854 em Santo Amaro. Nascia Hilária Batista de Almeida. Desde muito jovem, Hilária já se destacava por seus feitos. Com apenas 16 anos teve papel fundamental na criação da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, no Recôncavo baiano. As irmandades eram organizações que agregavam indivíduos de diversas origens sociais, estabelecendo laços de solidariedade que se organizavam com o propósito de promover a devoção a um santo padroeiro e também para fins beneficentes para os membros que se comprometeram a participar das atividades da irmandade. Os benefícios oferecidos – como assistência em caso de doença, invalidez ou morte – variavam de acordo com os recursos disponíveis na irmandade, sendo proporcionais às posses financeiras de seus membros. Num período de total ausência de direitos e políticas voltadas para as populações negras, as irmandades foram essenciais na garantia da dignidade destes indivíduos. Essa irmandade, que é fundamental nas historicidades negras até os dias de hoje, faz parte do seu legado. Como filha de Oxum, foi iniciada nas tradições religiosas da nação Ketu na casa de Bambochê.
Aos 22 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde construiu uma nova família ao casar-se com João Baptista da Silva, um funcionário público. Segundo relatos históricos, tiveram quatorze filhos. Ela continuou a seguir as práticas e os ensinamentos religiosos na casa de João Alabá, onde foi Mãe Pequena. Hilária passa a ser conhecida por outro nome. E, assim, firma-se o legado cultural e religioso de Tia Ciata.
Ciata finca raízes na região que hoje conhecemos como centro do Rio de Janeiro. Morando primeiramente na Pedra do Sal, passando pelo Beco João Inácio, posteriormente residindo no número 304 da Rua da Alfândega, com passagens pelas ruas General Pedra e Rua dos Cajueiros. Entre 1899 e 1924, residiu na Rua Visconde de Itaúna. O centro da cidade do Rio de Janeiro tem muito de Ciata. Durante esse tempo, ela desempenhou um papel crucial na solidificação do samba carioca e tornou-se uma figura de destaque nas comunidades negras da Pequena África e do Rio de Janeiro como um todo.
Ciata desempenhou um papel crucial como uma das tias baianas pioneiras na introdução da tradição das baianas quituteiras no Rio de Janeiro. Essas mulheres, as tias baianas, foram responsáveis por estabelecer esta tradição e por uma estética própria e africanizada, com suas roupas coloridas, colares, contas e pulseiras enquanto mantinham uma base sólida religiosa e política que permeava suas atividades. Foi nos quintais de baianas como Tia Ciata que nasceu o samba, e nesses mesmos espaços eclodiram movimentações culturais e simbólicas que forjaram identidades negras na diáspora brasileira. Considerado o primeiro samba, “Pelo telefone” foi composto numa roda de samba no quintal-terreiro de candomblé de Tia Ciata.
O século XX teve seu início marcado por uma grave crise habitacional. A população aumentou, e a quantidade de habitações não. Nessa equação, os mais fragilizados faziam parte da população de baixa renda. Isso resultou no aumento constante da superlotação e na interferência das casas alugadas. A ausência de habitações populares a preços acessíveis forçou uma grande parcela de trabalhadores com baixo poder aquisitivo a viver em condições insalubres e precárias, amontoados em casas e cortiços no antigo centro da cidade. Essas eram habitações coletivas que tinham deixado uma marca profunda na paisagem urbana da cidade ao longo do século XIX, sendo alvos da chamada “ação modernizadora” da República. A localização central desses cortiços despertou grande interesse entre os setores envolvidos na especulação imobiliária, que viram ali uma oportunidade de negócios lucrativos. Além disso, as teorias higienistas viam nos cortiços a grande causa para epidemias de doenças respiratórias, contagiosas e toda sorte de má saúde que assolava a cidade. Era um caso evidente de racismo e preconceito de classe mascarado de política pública de saúde e urbanização.
Segundo essa perspectiva, dos cortiços emanavam não apenas doenças e epidemias, mas também indivíduos desocupados, dependentes químicos, praticantes de jogos de azar, delinquentes, pessoas embriagadas e “marginais”. Consequentemente, esses locais eram vistos como territórios perigosos, habitados por indivíduos com potencial para representar ameaças. Assim, era necessário traçar estratégias para conter essa população e os efeitos por ela causados na cidade. Começa o processo de erradicação das habitações populares por meio de sua remoção física e deslocamento de seus moradores da área central da cidade. O primeiro alvo da ação de demolição da modernização republicana foi o famoso cortiço conhecido como “Cabeça de Porco”. Situado na Rua Barão de São Félix, era o maior cortiço da cidade. Os cortiços e seus moradores deveriam abrir espaço para a construção de amplas avenidas destinadas ao trânsito comercial e para a edificação de novos edifícios de escritórios, armazéns, cafés, teatros e cinemas. Porém, não houve preocupação com os novos locais de moradia desta população e nem foram propostas políticas de longo prazo para resolver as questões de habitação no Rio de Janeiro.
Assim, famílias inteiras que precisavam manter-se próximas da região central para trabalhar, começaram a subir os morros. Como os moradores tinham as mesmas origens dos que habitavam os antigos cortiços – é importante notar a carga de preconceito embutida em toda essa “História” – os estigmas subiram o morro também. Então, para as elites, era imperativo exigir a luta que havia começado contra os antigos cortiços, uma vez que o “adversário” – ou seja, as “classes perigosas” – permanecia o mesmo, apenas se manifestando em maneira e localidade diferentes. Começa assim uma série de movimentos, às vezes incisivos e diretos e por vezes ambíguos, para “resolver o problema das favelas”. Um que merece destaque foi promovido pelo prefeito à época: Pedro Ernesto. Ele foi um dos pioneiros em adotar uma política de aproximação com as favelas e seus moradores, registrando as dificuldades enfrentadas e, ao mesmo tempo, buscando capitalizar politicamente a partir dessas mesmas adversidades. Um exemplo disso: Pedro Ernesto tinha pelo menos 100 afilhados em várias favelas da cidade e se colocava como uma espécie de intermediário entre os interesses dos moradores de favelas e o governo. Esse mesmo Pedro Ernesto foi figura emblemática e importante para pensarmos a história das baianas no Brasil.
A partir de 1929, o poder público começa a organizar o carnaval popular, que acontecia em periferias da cidade e também era visto como manifestação cultural das ditas “classes perigosas”. Cortiço, favela, carnaval e baiana têm muito em comum. Nesse processo são definidas as rotas dos desfiles, o apoio financeiro às associações, bem como a criação de estatutos e regulamentos para a distribuição desses fundos, e é nesse contexto que se firmam no âmbito carnavalesco figuras como a baiana e o malandro. Em 1933, o prefeito Pedro Ernesto criou a ala das baianas nas escolas de samba, através de decreto de lei. Assim, ela passa a ser oficialmente incorporada aos desfiles das escolas de samba. Desde então, o grupo de baianas passa a ser elemento significativo que dialoga entre a tradição e as inovações dos carnavais das escolas de samba. Essa ala carrega não somente uma tradição carnavalesca. Ela simboliza também um pedaço da história do Brasil e apresenta um repertório estético específico.
O uso do termo “baiana” para se referir às mulheres negras trabalhadoras da Bahia começou a surgir no final do século XIX e foi associado mais ao estilo de vestimenta de origem africana e às tradições culturais que essas mulheres mantinham, como suas crenças em religiões afro-brasileiras e habilidades culinárias, do que à sua procedência geográfica. As baianas extrapolaram as fronteiras de cidades, estados e países. A representação da baiana é formada por elementos visuais que se relacionam com a variabilidade de contextos sociais e históricos.
O traje tradicional da baiana, tal como conhecemos atualmente, é composto por diversos acessórios e elementos visuais diversos, incluindo uma saia longa e redonda, que por vezes esconde uma anágua ou armação. Saia essa enriquecida com rendas, turbante ou torço na cabeça, pano da costa, batas rendadas e balangandãs. Essa vestimenta é uma evocação às roupas usadas pelas “tias baianas”, mulheres que migraram da Bahia para o Rio de Janeiro com suas famílias, muitas das quais eram vendedoras de acarajé e iguarias, e que estabeleceram comunidades com sua própria expressão cultural nesse novo ambiente e fizeram brotar, em seus quintais, ervas, incidência política e muito samba.
Assim como o primeiro samba, “Pelo Telefone”, o Império Serrano nasce na casa de uma mulher negra, liderança local, Dona Eulália do Nascimento. Fundou-se em 23 de março de 1947, durante uma reunião na Rua Balaiada, número 142, no Morro da Serrinha.
A agremiação surge de uma dissidência da escola de samba Prazer da Serrinha. Entre os seus fundadores há nomes essenciais no cenário do samba carioca como Sebastião Molequinho, Elói Antero Dias, Mano Décio da Viola, Silas de Oliveira, Aniceto Menezes, Antônio dos Santos (Mestre Fuleiro) e Eulália do Nascimento. O nome “Império Serrano” foi sugerido por Sebastião Molequinho e faz alusão ao Morro da Serrinha. As cores da escola, verde e branco, foram escolhidas por Antenor Rodrigues de Oliveira. O símbolo do Império é a Coroa Imperial Brasileira. São Jorge é reverenciado como o santo padroeiro da agremiação.
E é essa miscelânea que nos leva à Avenida Edgard Romero, 114, em Madureira, no Rio de Janeiro. Lá, Geni Lopes, presidente da ala das baianas, recebe-nos com sorriso e braços abertos. Chegar ao Reizinho de Madureira – forma carinhosa de chamar o Império Serrano – e ser recebida pelas baianas é como mergulhar num mar verde e branco. Cheio de histórias, movimentos, cheiros e sorrisos. As baianas são o coração de qualquer Escola de Samba, e no Império Serrano não é diferente. São senhoras, idosas, mães, avós, tias que carregam a ancestralidade e o axé do samba. A ala teve muitas personagens emblemáticas como Jovelina Pérola Negra, Tia Maria do Jongo e Dona Ivone Lara. Segundo Marta D’Oyá, baiana do Império:
“A baiana é a mãe do samba e o Império sempre foi uma escola democrática, cantando a democracia. Nós tivemos mulheres importantíssimas na ala das baianas. Se estamos aqui é porque essas mulheres botaram o pé. Elas foram pastoras da escola, foram baianas. O samba só era aprovado quando passava pelas pastoras. Pastoras e baianas sempre andaram lado a lado. A religiosidade que existe aqui é muito forte. Isso tem que ser falado.
”Assim, agradecemos as Yabás Dalva Reis (59 anos), Sônia Conceição (68 anos), Lucia Iara (65 anos), Márcia Helena (60 anos), Marta D’Oyá (56 anos), Lucimar da Silva (61 anos), Maria de Lourdes (67 anos), Maria Elisabeth (75 anos), Maria Lúcia (74 anos), Sandra Maria (69 anos), Regina Antunes (79 anos), Vera Lúcia dos Reis (68 anos), Vera Lúcia Cunha (61 anos), Geni Lopes (57 anos) e Vera Lúcia do Nascimento (76 anos). São essas algumas das guardiãs do samba imperiano e, mais do que isso, guardiãs da história, do tempo e da memória daquelas que plantaram a semente da cultura brasileira.
O ano era 2012. Só agora percebo que já se passaram mais de 10 anos do momento em que conheci o professor Flávio dos Santos Gomes no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Talvez soe estranho começar uma resenha assim em primeira pessoa, mas o livro que será comentado nas próximas linhas me atravessou dessa forma. Na primeira pessoa mesmo. Enquanto jovem estudante de licenciatura e bacharelado em História, a publicação, bem como a posterior orientação do professor Flávio Gomes, abriram um novo horizonte para mim: era possível reler minha própria cidade e meu próprio país a partir de uma lente que visibilizasse trajetórias negras. E é com essa lente que escrevo a resenha que segue.
Diferentemente das plantations estadunidenses, caracterizadas por grandes plantéis, agroexportação e feitores, grande parte do processo de escravidão no Brasil se deu em contexto urbano ou semiurbano. Milhares de escravos, tanto africanos quanto crioulos, entrelaçaram-se com marinheiros, caixeiros, comerciantes, viajantes e outros segmentos sociais do mundo transatlântico.
De 1570 até meados do século XIX, o Brasil recebeu entre 38% e 43% de todos os africanos traficados para as Américas, estimando-se esse total em aproximadamente dez milhões. Esses indivíduos desempenharam papéis cruciais nas zonas rurais, contribuindo para atividades como o cultivo de café, açúcar, algodão, tabaco, além da pecuária e da extração de ouro e diamantes. Paralelamente, moldaram diversas instituições relacionadas a tradições, família, culinária, música e cultura material em geral. Também formaram quilombos e nos contextos urbanos deram origem às irmandades.
O livro Cidades Negras, de Juliana Barreto Farias, Flávio dos Santos Gomes, Carlos Eugênio Líbano e Carlos Eduardo Moreira de Araújo, destaca algumas das instituições forjadas pelas populações negras nos contextos urbanos. Africanos e seus descendentes emergiram como figuras importantes nos universos do trabalho e da cultura urbana durante o século XIX, inventando territórios urbanos e diásporas, redefinindo identidades e sentidos de existência.
A publicação foi escrita a quatro mãos. Juliana Barreto Farias atua como editora-assistente na revista Nossa História e obteve o título de mestre em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Flávio dos Santos Gomes é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Carlos Eugênio Líbano Soares desempenha a função de professor na Universidade Federal da Bahia. Carlos Eduardo Moreira de Araújo é mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas.
Os autores destacam que antes mesmo de vários países se constituírem enquanto Estados nacionais, em suas terras já havia territórios negros. Na primeira metade do século XIX, O Rio de Janeiro se destaca nesse sentido, sendo a maior cidade escravista das Américas. Em 1821 escravizados representavam 45.6% da população das freguesias urbanas do Rio. Observando a freguesia da Sé na cidade de São Paulo, 20% da população era composta por escravizados. Em freguesia homônima no Pará, a população cativa somava 51,8%.
Ainda em período próximo, em 1872 em Curitiba, 33% da população livre era formada por pardos, pretos e caboclos (termo usado à época para se referir à população indígena). Já na província do Ceará, escravizados eram 35%. No Espírito Santo, pretos e pardos (livres, libertos ou escravizados) formavam um contingente de 74% da população. Assim, podemos elencar algumas importantes cidades negras no contexto de escravidão brasileira: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luís e Porto Alegre.
Com relação à origem, na região do Rio de Janeiro destacam-se os negros de origem angola, cabinda, cassange, benguela e congo, chegando a cerca de 80%. Em São Luís há destaque para os cabinda, moçambique, angola e mina. Já em Salvador destaca-se o perfil ocidental, com origem nagô, jeje e hauçá.
Porém, a virada de chave de Cidades Negras se dá justamente em apresentar de início ao leitor uma série de dados e análises demográficas — que sem dúvida corroboram com a tese de que vivemos em um território negro enquanto país — e finalmente discutir que o conceito que dá nome ao livro vai muito além de dados. As cidades apontadas são negras não só por historicamente ter uma população de maioria africana ou afro-brasileira. Falamos de cidades negras porque estas populações inventaram e reinventaram identidades.
As identidades se tornam questão importante no debate. O conceito de identidade é complexo. Segundo o sociólogo Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade:
A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente.
O caráter mutável e até mesmo contraditório das identidades apresentado por Hall dialoga com o que lemos em Cidades Negras:
Africanos e crioulos não eram necessariamente uma multidão ou massa escrava nos centros urbanos. Os recém-chegados produziam identidades diversas, articulando as denominações do tráfico, aquelas senhoriais e a sua própria reinvenção em determinados cenários. Ser um africano mina em Salvador não era o mesmo que no Rio de Janeiro. Os próprios minas do século XVIII no Rio de Janeiro eram outros daqueles do século XIX.
Assim, os tempos, espaços, redes de contato e de sociabilidade, bem como objetivos e articulações, foram essenciais para forjar diferentes identidades entre negros escravizados, livres e libertos que formavam as cidades negras no contexto escravocrata.
Os autores discutem também aspectos que interferiram diretamente nos fluxos de vida e de morte dessas populações. Os portos foram considerados “laboratórios de enfermidades” e de práticas de cura, a partir do intenso vai e vem de embarcações abarrotadas de pessoas em condições sub-humanas. A principal doença que acometia os trabalhadores escravizados era a tuberculose, seguida de disenteria, varíola, tétano e malária. Até metade do século XIX as forças do escravizado eram levadas ao seu limite, uma vez que era razoavelmente fácil realizar a substituição desta mão de obra em caso de morte. A partir de 1850, com a proibição do comércio negreiro o trabalhador escravizado fica mais caro, culminando em alguns cuidados maiores por parte dos senhores. Não por humanidade. Mas pela diminuição da oferta. Este quadro era semelhante em diferentes “cidades negras”.
As fugas também são analisadas, não como movimentação heroica de poucos, mas sim como atos políticos e organizados:
Nas cidades, as ações de fuga estavam inseridas na experiência cotidiana dos cativos. Revelavam tanto mecanismos de protesto como a constituição de comunidades e culturas na diáspora. Nesse processo, desvendam-se lógicas dos cativos e universos sociais das cidades negras (cotidiano, relações de trabalho, controle social, etc.).
No contexto de organização social e política, nos documentos de fuga e busca de escravizados, são encontrados relatos de africanos e crioulos com certo grau de profissionalização. Carpinteiros, barqueiros, sapateiros, alfaiates… Estas ocupações contribuíam para que esses indivíduos conseguissem reconstruir suas vidas após a fuga. Os fugitivos encontravam nos quilombos — rurais ou nas periferias urbanas — um destino frequente, de diferentes tamanhos e formas, especialmente nas proximidades das principais capitais coloniais. Exemplos são o Quilombo de Laranjeiras, localizado próximo à Corte, e o Quilombo do Urubu, situado na freguesia do Cabula, nos arredores da Cidade da Bahia (atual cidade de Salvador).
Ainda no sentido de reconhecer a agência dos negros, cabe destacar o papel dos marinheiros nos processos de fuga e ressignificação. Sua posição, podemos dizer “privilegiada” ao estarem em navios, facilitava a comunicação e percepção de políticas. Era nos portos, conveses e navios que as informações de África, Américas e Europa se encontravam e de certa forma ajudavam a alimentar redes de solidariedade entre negros.
Para concluir, cabe destacar a capoeira como fenômeno de resistência e agência, podendo ser interpretada como um dos maiores exemplos da reinvenção cultural urbana na diáspora brasileira. A participação dos capoeiras na Guerra do Paraguai contribuiu com o reconhecimento desse grupo social como grandes “lutadores de rua”. Em Cidades Negras percebemos que a capoeira passou por transformações, transitando da expressão africana para a crioula durante o século XIX, à medida que o número de africanos desembarcados diminuía. Podemos perceber um movimento de crioulização — ou, nas palavras de hoje, brasileirização — da capoeira, articulada em maltas, algumas de grande notoriedade nas cidades negras.
Assim, o livro Cidades Negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX defende brilhantemente a tese de que as principais capitais do Brasil colonial podem ser consideradas territórios negros. E não há como não concordar. Uma análise crítica e sensibilizada pelas políticas públicas do Brasil contemporâneo reforça a percepção de que escravizados criaram diversos mecanismos cotidianos para resistir e mitigar os impactos da escravidão, bem como para criar e recriar identidades e subjetividades nas cidades negras por todo o Brasil.
A música, em suas diferentes formas, é um poderoso instrumento de expressão social. Ela reflete as crenças, os valores, os costumes e os desafios de cada tempo e espaço, servindo como um espelho da sociedade em que é criada, e através dela podemos tecer diferentes leituras sobre a história, as angústias e os desejos da humanidade. A música — e a musicalidade enquanto expressão sensível — pode nos ajudar a entender como pensam, sentem e se relacionam os indivíduos, embalando amores, gozos, dores, afetos e tensões sociopolíticas.
Uma tese interessante para pensar musicalidade e linguagens cifradas é a de que a dita cultura do duplo sentido no Brasil, tão presente em nossa linguagem e expressões artísticas, tem suas raízes nos processos de escravização e na chegada das populações africanas no Brasil. Em um contexto de opressão e censura, a comunicação velada era um instrumento de resistência, permitindo aos escravizados driblar a vigilância e expressar seus sentimentos e ideias sem represálias.
O século XVIII foi marcado por uma efervescência musical, com o surgimento de novos estilos que conquistaram o público popular. A ascensão da burguesia e a crescente urbanização impulsionaram a demanda por entretenimentos mais acessíveis, que pudessem ser apreciados em ambientes domésticos ou em pequenos espaços públicos. Nesse contexto, surge a moda portuguesa. No Brasil, a moda também se desenvolveu, com características próprias que a distinguiam da versão portuguesa. Domingos Caldas Barbosa, um talento “mestiço”, educado em colégios jesuítas, foi um dos grandes nomes desse movimento.
Caldas Barbosa absorveu da cultura popular carioca um rico repertório musical, incorporando-o à sua arte. Em Portugal, ele foi aclamado por seus dotes artísticos, mas também enfrentou críticas e repulsa. As letras da modinha brasileira abordavam o amor de forma mais sensual e explícita, com insinuações e requebros que encantavam e escandalizavam ao mesmo tempo.
Dando um salto no tempo, o século XX presenciou uma revolução musical impulsionada pelo rádio. A música podia então ser apreciada por um público amplo e diverso, transcendendo fronteiras nacionais e continentais. Essa democratização moldou a experiência sonora do século XX de diversas maneiras.
Assim como nas modinhas do século XVIII, o século XX também trouxe os desejos do corpo e as genialidades da mente em forma de música. Um exemplo disso são as cançonetas, gênero musical marcado pela descontração e, muitas vezes, pelo duplo sentido. Isso se vê na cançoneta Boceta de rapé, de Mario Pinheiro, datada entre 1904 e 1906, na qual se canta:
“O que é que aparece Raspada, seu compadre? Ora, ora, ora O que é que aparece raspada A boceta de vovó Quando aparece Raspada a boceta de vovó Homem, vocês inventam Cada coisa (haha) Vocês são danados, diabo!”
A boceta seria uma pequena caixa redonda, oval e alongada, usada para guardar diversos objetos e/ou coisas. No caso da cançoneta, a boceta guardaria rapé, extrato de tabaco em pó, muito usado para liberação das vias nasais. Porém, na linguagem popular, o termo também se refere ao órgão sexual cisgênero feminino. A brincadeira entre as “bocetas” no início do século passado revela que talvez o conservadorismo seja um fenômeno mais contemporâneo do que costumamos pensar.
Na década de 1920, o Brasil vivia uma busca incessante por uma voz artística própria. Foi nesse contexto efervescente que o teatro de revista encontrou seu “tom”, assumindo a forma brasileira que o consagraria. Ele se tornou um caldeirão cultural, onde a música, a dança, a sátira política e o humor se entrelaçavam em um espetáculo único. As vedetes, figuras emblemáticas desse gênero, brilhavam com figurinos exuberantes e carisma contagiante, enquanto o humor irreverente e as críticas sociais afiadas divertiam e provocavam o público. A música era a alma do teatro de revista. Através de sambas, marchinhas e outros ritmos brasileiros, as canções retratavam a vida cotidiana, as mazelas sociais e as alegrias do povo. Compositores talentosos como Noel Rosa e Ataulfo Alves eternizaram suas composições nesse palco.
Entre os grandes nomes da revista brasileira, Arthur Azevedo se destaca como um dos mais influentes. Em A fantasia (1896), ele define o gênero com uma receita picante:
“Pimenta sim, muita pimenta E quatro, ou cinco, ou seis lundus, Chalaças velhas, bolorentas, Pernas à mostra e seios nus”
O humor irreverente e as falas de duplo sentido eram armas poderosas para driblar a censura e provocar o riso. Canções “apimentadas” e hinos picarescos completavam a festa, celebrando a alegria e a liberdade de expressão. Ou seja, o teatro de revista se apresentava como um caleidoscópio da sociedade brasileira, com seus vícios, volúpias, hipocrisias e costumes expostos à luz da sátira.
As marchinhas de carnaval também revelam espaços de debate amplo sobre erotismo e sexualidade. Ao longo do tempo, elas acompanharam mudanças nos costumes e valores da sociedade brasileira. As letras, que antes eram mais veladas e sutis, tornaram-se mais explícitas e diretas, abordando temas como o sexo casual, o uso de preservativos e a igualdade de gênero. Quem nunca ouviu que “a pipa do vovô não sobe mais”? Mesmo com muitas ressalvas e contradições, havia permissão para a ousadia no contexto do carnaval.
Nesse sentido, a musicalidade nordestina se destaca. Genival Lacerda, natural de Campina Grande, na Paraíba, é um dos maiores nomes da música de duplo sentido no Brasil. Com seu estilo caricatural, marcado por vestes espalhafatosas e a famosa dança “sensual”, ele influenciou artistas como Reginaldo Rossi e Falcão. Em 1975, Genival e João Gonçalves lançaram o forró Severina Xique-Xique, que se tornou um marco do gênero. A letra, mais explícita do que as marchinhas da época, mas ainda ambígua, tece um emaranhado de sugestões sobre a tal “butique” da protagonista.
Em suma, a música não é apenas uma forma de entretenimento ou arte; é um reflexo profundo da sociedade, uma linguagem que transcende o tempo e o espaço para expressar valores e desafios. Através dela, podemos entender não apenas como as pessoas se relacionam entre si, mas também como se criam suas mentalidades e costumes. As expressões artísticas de duplo sentido mencionadas, desde as modinhas do século XVIII até os forrós de Genival Lacerda, nos mostram que a ousadia e a sátira sempre foram formas de desafiar normas e tabus.
Samba, o dono do corpo
O Samba — assim, com “S” maiúsculo — é um estado de espírito, e é também um ser tecnológico ancestral africano que nos conecta e está para além do entendimento humano. Assim, podemos nos conectar com esse estado de espírito de diferentes formas. Uma delas é a partir dos afetos, como os eróticos ou sexuais. Essa ligação se dá de formas não óbvias. Muito longe dos estereótipos ligados à hiperssexualização de pessoas negras — aquelas que intelectualmente construíram o samba —, essa conexão tem muito mais a ver com linguagem, afeto, ritmo e inventividade.
Assim como o jongo, a capoeira e diferentes musicalidades de origem africana, o samba pode funcionar como ferramenta de comunicação. Regido por Exu no sentido de falas, escutas, aberturas e caminhos, as musicalidades negras permitem que se jogue — com as palavras, com o tempo, com a vida — ao mesmo tempo em que se canta e dança. Samba-se e tramam-se lavantes. Samba-se e tecem-se romances. Samba-se e forra-se a cama onde se deitam volúpias, desejos e paixões.
No palco do samba, o corpo é protagonista. Seja o corpo enquanto território de Exu — segundo o intelectual Muniz Sodré, falar em “dono do corpo” é outra forma de referir-se a Exu —, seja o corpo enquanto plataforma em que se sofrem opressões e ao mesmo tempo produzem-se prazeres.
Composto por Sinhô e gravado em 1928, o samba Jura ilustra bem essa possibilidade de ler e sentir o samba:
“Daí então Dar-te eu irei O beijo puro Da catedral do amor Dos sonhos meus Bem junto aos teus Para fugirmos Das aflições da dor”
A ousadia de articular imagens ligadas à religiosidade cristã — que muitas vezes foi uma das responsáveis por processos de repressão e castração afetiva e sexual — com a narração de um ato sexual de forma bela e sutil revela a capacidade do samba de ser uma esteira — cadenciada — para os afetos. Muito mais do que uma igreja, a “catedral do amor” pode ser interpretada como uma porta para o prazer e para o gozo — feminino.
Em O espírito da intimidade, Sobonfu Somé traz reflexões importantes sobre relações, intimidade e comunidade pensadas a partir da população negra. Segundo Somé, “o povo Dagara não tem uma palavra específica para se referir ao sexo. Expressamos o conceito de sexo como uma viagem com alguém. A pessoa não quer fazer sexo com outra; ela quer ir a algum lugar. Normalmente esse lugar é desconhecido para os dois.“
Seguiremos com Sobonfu, nesta viagem. Toda viagem necessita de rituais e de ritmo para seu percurso. O samba e o sexo também. No sentido dos rituais, é necessário “preparar a canoa antes de entrar no mar”. Os rituais não são receitas de bolo. No samba e no sexo, eles são mutáveis a cada tempo, espaço e necessidade. Em ambos ocorrem trocas de energias — entre presenças no plano terreno e em outros planos, e para isso é importante preparar-se. É necessário “afinar” os instrumentos — musicais, espirituais, corporais — para seguir nessa viagem.
Assim como o samba, o sexo e o romance têm um ou vários andamentos. O partido alto, por exemplo, tem um andamento mais acelerado. Numa roda de samba ou de sexo, começar com um “vai lá, vai lá” pode atropelar o fluxo natural do processo. É importante dar tempo para que cada nota, gosto, cheiro seja sentido e saboreado. No compasso inicial dessa viagem, o clássico Deixa eu te amar, datado de 1984 e composto por Agepê, pode ajudar a embarcar:
“Quero saciar a minha sede No desejo da paixão que me alucina Vou me embrenhar em densa mata só porque Existe uma cascata que tem água cristalina Aí, então, vou te amar com sede Na relva, na rede, onde você quiser Quero te pegar no colo Te deitar no solo e te fazer mulher.”
Esse mergulho sutil e intenso pode abrir caminhos para uma viagem afetiva e sexual em que o veículo é o samba. Nele, este ser supremo, há uma síncopa interativa que existe nas musicalidades africanas e que não se sabe exatamente onde está. E é o que faz arrepiar, sentir, rir e chorar. É onde mora o mistério do samba.
Em Samba, o dono do corpo, Muniz Sodré afirma:
“Ritmo é a organização do tempo do som, aliás, uma forma temporal sintética, que resulta da arte de combinar as durações (tempo capturado) segundo convenções determinadas. Enquanto maneira de pensar a duração, o ritmo musical implica uma forma de inteligibilidade do mundo, capaz de levar o indivíduo a sentir, constituindo o tempo, como se constitui a consciência.“
Dentro de uma lógica musical, o samba é um ritmo binário. Isso significa simplesmente que o tempo será dividido em dois (ou em múltiplos de dois). O ritmo binário é composto de duas batidas. O que também costuma ser binário são os movimentos de uma relação sexual. Senta-se em dois tempos. Chupa-se em dois tempos. Faz-se sexo — e, por que não, amor — no mesmo ritmo em que se faz samba. E voltamos à síncopa, que não se sabe de onde vem e nem onde está, mas que abre um terreno vasto para a expressão de diversas emoções, como alegria, tristeza, saudade, amor e desejo.
A roda de samba, a sexualidade e as tensões sociais
Se no carnaval observa-se um passaporte carimbado para o “brincar” em suas diferentes possibilidades, a roda de samba parece impor um ar mais sério. Em contrapartida, é essa mesma roda que faz girar uma série de energias. Nela gira ancestralidade e fundamento, mas também paquera e tesão, uma vez que a troca de afeto é inerente ao ser humano. E o samba pode ser palco para isso, assim como pode ser palco para que se extravasem desejos reprimidos ou mesmo condenados pela moralidade. Em 1977, Leci Brandão compôs e gravou a canção Ombro amigo:
“Você vive se escondendo Sempre respondendo Com certo temor Eu sei que as pessoas lhe agridem E até mesmo proíbem Sua forma de amor E você tem que ir pra boate Pra bater um papo Ou desabafar E quando a saudade lhe bate Surge um ombro amigo Pra você chorar Num dia sem tal covardia Você poderá com seu amor sair Agora ainda não é hora De você, amigo, poder assumir Por isso tem que vir pra boate Pra bater um papo Ou desabafar E quando a saudade lhe bate Surge um ombro amigo Pra você chorar”
A canção fala abertamente sobre “uma forma de amor” reprimida pela sociedade. A canção Ombro amigo, que, de forma explícita, oferece apoio àqueles que enfrentam o desafio de aceitar sua homossexualidade, revela também a capacidade política do samba — e de Leci — de cantar os afetos não pautados pela heteronormatividade ainda dentro de um contexto nacional de ditadura militar.
Em 1976, Leci lançou Questão de gosto, seu primeiro álbum por uma grande gravadora. O disco incluiu a faixa As pessoas e eles, considerada uma das primeiras canções brasileiras a abordar abertamente o tema da homossexualidade. Com versos como “As pessoas não entendem / Porque eles se assumiram / Simplesmente porque eles descobriram / Uma verdade que elas proíbem”, a música desafiava o preconceito e a invisibilidade impostos à comunidade LGBTQIA+.
Ainda na esteira das práticas de afeto perseguidas ou reprimidas pela sociedade cis-heteronormativa e baseada no patriarcado e na monogamia, em 2002, Renato César e Toninho Branco compõem Duas paixões, conhecida na interpretação do grupo Bokaloka:
“Adoro a minha namorada Que é minha amiga e eu a conheço bem Mas desejo uma morena linda Que já faz parte da minha vida Eu sempre digo que a amo, meu bem E eu nunca digo isso pra ninguém Mas se estou com minha namorada Eu digo também Pra ter as duas paixões, não tem jeito Só tendo dois corações no meu peito Mas eu só tenho um Pra suportar esse amor incomum”
A canção narra a história de um homem dividido entre duas mulheres, ambas com qualidades distintas. Na sabedoria popular, ficou conhecida como “hino da infidelidade”. Mas aqui, um pouco mais desapegados dos julgamentos morais — sem deixar de lado o olhar cuidadoso sobre as hierarquias de gênero geralmente impostas às mulheres —, podemos lançar um outro olhar. A música revela um dilema imposto pela monogamia, a impossibilidade de amar ou se relacionar afetivo-sexualmente com mais de uma pessoa. Os amores múltiplos geram tabus, repressões e incompreensões na sociedade mais tradicional. E, uma vez que o processo de composição parte da mola das emoções, tem sido cantado e vivido nos sambas.
Em 1989, Jorge Aragão e Jotabê compõem Logo agora:
“Agora Justamente agora Agora que eu penso em ir embora você me sorri Me sorri Passou a noite inteira Com seu amor do lado Fingindo um bocado Mas, hoje em dia Os amores são assim Ele foi embora Nem faz uma hora Pensando, quem sabe Nos beijos que você lhe deu Tolo Pensou que beijar sua boca Foi consolo Despertou o instinto da fêmea E agora quer se deixar abater Se sentir caçada Dominada até desfalecer Agora entendo o sorriso Ele é que não entendeu Se não fez amor com você Faço eu Eu também Agora entendo o sorriso Ele é que não entendeu Se não fez amor com você Faço eu”
Se a possibilidade de viver amores múltiplos e de muitas vezes vilipendiar as estruturas monogâmicas é cantada por homens, há também exemplos de relações em que as mulheres priorizam seu prazer em detrimento das estruturas sociais.
O samba é um organismo vivo dentro da sociedade e tende a caminhar junto com os movimentos desta. Assim, como há temas e formas de se relacionar que são importantes de serem cantadas e contadas, há de se pensar também que não há mais espaço para algumas outras relações — na música a na vida.
Em 1932, Noel Rosa apresentou Mulher indigesta:
“E quando se manifesta O que merece é entrar no açoite Ela é mais indigesta do que prato De salada de pepino à meia-noite Mas que mulher indigesta, indigesta Merece um tijolo na testa”
Posteriormente, em 1998, o grupo Exaltasamba lança Cartão postal:
“Como sempre distraída Te filmei você não viu É a coisa mais bonita O seu corpo de perfil Pode parecer bobagem Um impulso infantil Meu amor não é chantagem Mas você me seduziu Te proponho amor Um trato que tal se render Eu te dou o seu retrato Mas quero você Você na foto toda nua Num banho de lua Meu cartão postal Meu corpo deu sinal Deu sinal, deu sinal O meu desejo continua Desejando a sua boca sensual Meu sonho real”
Sem nenhuma intenção de “cancelamento”, há de se observar que entre Noel Rosa e Exaltasamba há similaridades no sentido de violências ligadas a gênero e sexualidade. Ambas as letras acabam por expor ou reproduzir comportamentos presentes em nossa sociedade, em que a maior parte das vítimas desse tipo de violência são mulheres e pessoas LGBTQIA+. Se em Noel Rosa a violência é física e explícita, com “Exalta” a violência se atualiza, num crime conhecido como “revenge porn”, ou pornografia de vingança, que consiste na exposição de imagens íntimas ou na realização de chantagens tendo este material como barganha. No samba, e na sociedade como um todo, não pode mais haver espaço para isso. Se dizemos que o jongo é o pai do samba, quando falamos de maternidade, o samba pode ser imaginado como parido do ventre de uma mulher preta e gorda, uma imagem talvez aparentada com Tia Ciata. E esse matriarcado tem de ser honrado.
Assim, colocando um ponto e vírgula neste enredo, podemos observar que o “duplo sentido” é mais do que um mero artifício linguístico. Talvez ele não encontrasse um campo tão vasto em outros países. Aqui encontramos uma associação entre linguagem, cultura, comunicação não literal e construções sociais e políticas que propiciaram a criação epistemológica e musical de formas de expressão musicada, que “dizem sem dizer” e mesmo assim tocam onde tem de ser tocado.
Maxixe, lundu, modinha, samba revelam uma interface entre tecnologias de comunicação e levantes disruptivos no campo do prazer, criando caminhos dentro de uma perspectiva hegemônica e colonizadora de castração de desejos. Não sabemos se é a vida que imita a arte ou a arte que imita a vida, porém, pensando o samba como um imenso baobá, com diferentes galhos, um deles é da sexualidade. Portanto, o samba pode, sim, ser uma camada poética para falar de amor e sexo. Temos visto no samba pessoas mais dispostas a romper com o tradicional. E temos visto também, pessoas mais dispostas a amar.
A ideia de pecado permeia diferentes culturas e religiões ao longo da história humana. Apesar das variações nas definições e crenças específicas, a ideia central do pecado geralmente se refere a transgressões contra normas sociais, leis divinas ou princípios éticos. Discutir e – principalmente – questionar as origens e desdobramentos da ideia de pecado nas sociedades é fundamental para compreendermos aspectos da moralidade, do direito e das estruturas sociais.
Em sociedades anteriores à era cristã, o conceito de pecado estava frequentemente ligado a tabus e crenças animistas. Ações que violassem a ordem considerada natural ou ofendessem os espíritos ancestrais eram vistas como pecaminosas e podiam trazer malefícios à comunidade. Com o advento das ditas “primeiras civilizações”, leis e códigos religiosos codificaram o comportamento moral, definindo quais ações eram consideradas pecaminosas e puníveis.
Analisando diferentes culturas de forma comparativa, podemos identificar alguns temas comuns relacionados ao pecado: a violação de regras ou normas sociais, como leis, costumes ou tabus, frequentemente vista como um ato pecaminoso; a noção de impureza, que consiste em ações que “contaminariam” a pureza física ou espiritual do indivíduo ou da comunidade; a ofensa, uma vez que o pecado também pode ser entendido como uma ofensa a uma divindade ou à ordem moral estabelecida; e a ideia de intenção, que estaria por trás da ação e também seria importante na determinação do pecado. Ações realizadas com má intenção são geralmente consideradas mais graves do que aquelas feitas por engano ou ignorância.
Porém, para além desses aspectos em comum, a ideia de pecado em diferentes sociedades encontra outro ponto de contato: a demonização de determinados corpos, grupos e comportamentos.
O ditado “não existe pecado do lado de baixo da linha do Equador” logo vem à mente quando discutimos essa noção. Ele apresenta um enigma que intriga e fascina. Alguns o interpretam como um reflexo da repressão sexual imposta pelas instituições religiosas, especialmente durante o período colonial. A Igreja Católica, com seus dogmas e costumes rígidos, teria sufocado a expressão natural da sexualidade, criando uma atmosfera de “ascetismo e moral dogmática”. Outros defendem a ideia de que ele celebra a liberdade e a naturalidade da sexualidade no Brasil. A miscigenação e a herança cultural indígena e africana teriam criado um ambiente mais permissivo, em que as diversas formas de expressão sexual são aceitas e incorporadas ao ethos nacional.
O dito popular não deve ser interpretado como uma verdade absoluta. O “pecado” é um conceito religioso subjetivo e varia de acordo com cada crença e cultura. No Brasil, como em qualquer outro lugar do mundo, existem diferentes níveis de religiosidade e moralidade, e, em nosso caso, deve-se adicionar uma camada densa, que foi basilar na construção da ideia de “pecado nos trópicos”: a colonização.
A ideia de pecado permeou a colonização e a escravidão de negros africanos — e posteriormente crioulos — e indígenas nas Américas, tecendo um manto de culpa e sofrimento que ainda hoje se faz sentir. Para os colonizadores europeus, imbuídos de uma visão etnocêntrica e religiosa, os povos nativos e africanos eram considerados “inferiores” e “pecadores”. Essa crença serviu como justificativa para a brutalidade da invasão e da exploração, legitimando a subjugação e a desumanização dos colonizados.
A crença na anarquia moral “abaixo do Equador” impulsionou aventureiros europeus do século XVI a cruzarem o mar em busca de um lugar livre das convenções do Velho Mundo. Guiados pela cobiça por poder, mas também pela fascinação pela transgressão, esses aventureiros desembarcaram nas Américas, onde seus desejos foram colocados em prática em forma de um expurgo colonial com vítimas muito bem definidas.
Desde o início da colonização, a narrativa do pecado original foi utilizada para justificar a dominação. Segundo essa visão, os povos nativos e africanos carregavam o fardo da culpa herdada de Adão e Eva, condenando-os à inferioridade e à servidão. Essa crença serviu para deslegitimar as culturas e a fé dos que foram colonizados, reforçando a ideia de que estes precisavam ser “salvos” pela fé cristã e pelos valores europeus.
A escravidão era vista como um castigo divino pelos pecados dos negros e indígenas. A brutalidade do sistema escravocrata, com seus castigos físicos, as humilhações e a subjugação psicológica e cultural, era justificada como uma forma de “purificação” e “redenção”. A desumanização dos escravizados se materializava a partir da coisificação desses indivíduos, uma vez que grande parte dos colonizadores os consideravam “coisas” sem alma, desprovidos de qualquer direito ou dignidade. Em Uma história do negro no Brasil, Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho afirmam que:
Na ideia dos europeus, o tráfico era justificado como instrumento da missão evangelizadora dos infiéis africanos. O padre Antônio Vieira considerava o tráfico um “grande milagre” de Nossa Senhora do Rosário, pois, retirados da África pagã, os negros teriam chances de salvação da alma no Brasil católico.
O conhecimento sobre a organização social da colônia nos primeiros séculos é fragmentado. As principais fontes de informação são os relatos dos jesuítas e dos viajantes europeus. Essas narrativas, muitas vezes carregadas de preconceitos, retratam os indígenas como seres “ingênuos” e “selvagens”, necessitados da “salvação” e do “aculturamento” pelos colonizadores Assim, a Igreja Católica desempenhava um papel fundamental na perpetuação da ideia de pecado como justificativa para a colonização e a escravidão. Missionários atuavam como agentes de colonização, catequizando os povos nativos e africanos e impondo-lhes a fé cristã. A educação religiosa era utilizada para doutrinar os colonizados, inculcando-lhes as ideias de culpa e a submissão.
Ao contrário do que se possa imaginar, a demonização dos indígenas no período colonial não se baseava unicamente na crença de que eles eram adoradores do diabo. A visão predominante entre os jesuítas, como Cardim e Anchieta, era a de que os indígenas eram “pouco endemoniados” e, em sua maioria, praticavam uma “ingênua irreligiosidade”. Embora reconhecessem o uso da dita “feitiçaria” entre os indígenas, os jesuítas argumentavam que essa prática não era resultado de um pacto com o diabo, mas sim uma forma de lidar com doenças e outros problemas. Para eles, a falta de conhecimento sobre Deus tornava impossível a crença no diabo.
O que realmente inquietava os colonizadores era a aparente falta de leis e regras que regulassem a vida dos indígenas, especialmente no que diz respeito à sexualidade. A nudez, a poligamia e o “canibalismo” eram práticas que chocavam os valores europeus e reforçavam a visão do indígena como um ser “animalesco”, “selvagem” e “monstruoso”. A demonização dos indígenas era parte de um processo mais amplo de construção da alteridade, que visava justificar a dominação colonial. Ao negar aos indígenas a sua humanidade, os colonizadores se colocavam em uma posição de superioridade moral e religiosa, legitimando a conquista e a exploração dos seus territórios.
Primeira missa no Brasil, Victor Meirelles. 1859-1861. Óleo sobre tela.
O Brasil colonial foi palco de um intrincado jogo de poder entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica. A Reforma Protestante, com seu desafio à hegemonia papal, impulsionou a Contrarreforma e a criação do Tribunal do Santo Ofício, conhecido como Inquisição. Essa instituição, com seus tentáculos espalhados por Portugal e seus domínios, buscava reprimir qualquer forma de heresia e dissidência religiosa.
Os primeiros cronistas europeus que chegaram ao Brasil ficaram chocados com a nudez e a aparente falta de pudor dos indígenas. Para eles, essas características eram provas da “vassalagem” que os indígenas prestavam ao diabo.
Fernão Cardim, um jesuíta que inicialmente viu inocência na nudez dos indígenas, comparou o interior das ocas a um “labirinto infernal”. O fogo, aceso dia e noite, era a única “roupa” que os indígenas usavam. Cardim ficou particularmente perturbado com a dita promiscuidade em que viviam. Cem ou duzentas pessoas viviam em uma única oca, “sem repartimento algum ou divisão”, cada casal em seu rancho, mas “todos à vista uns dos outros”. Para ele, era como se estivessem sempre em público, “fazendo o que lhes aprazia”. A liberdade dos povos indígenas era um insulto aos colonizadores.
Os jesuítas no Brasil colonial consideravam os costumes matrimoniais indígenas “falsos” e “pecaminosos”. A poligamia, a instabilidade das uniões e a considerada infidelidade eram práticas que contrariavam a moral católica. Para “civilizar” os indígenas, os jesuítas os pressionavam a se casar na forma e sob as regras da Igreja. O casamento era visto como um instrumento fundamental para aculturar os indígenas e integrá-los à sociedade colonial. Através do matrimônio, os jesuítas buscavam impor a monogamia e a indissolubilidade do casamento, controlar a sexualidade e a reprodução, transmitir valores e costumes cristãos e sedentarizar os indígenas e integrá-los à comunidade. Instituições como a família e o casamento são muito mais do que meras formações afetivas ou relacionais; são — ou podem ser — ferramentas de dominação de corpos e mentes.
No contexto da colonização, a família era vista como a pedra angular da sociedade e a principal responsável pela perpetuação da fé católica. A Igreja, através da Inquisição, intervinha na vida privada dos colonos e indígenas, ditando normas de conduta e punindo severamente qualquer transgressão. É curioso observar que essa linha argumentativa retornou às bocas e mentes no Brasil contemporâneo, em discursos inflamados pela extrema direita, que, mesmo que não tão profundamente vinculada ao ideário de pecado colonial, não abriu mão de perseguir determinadas existências que já eram alvo de repressões ao longo da história, como mulheres, pessoas LGBTQIA+, negros e indígenas.
Ao longo da história colonial brasileira, os africanos foram frequentemente retratados como seres lascivos e incontinentes, entregues aos “vícios da desonestidade”. Essa visão distorcida, presente em autores como José de Anchieta, Fernão Cardim e André João Antonil, servia para justificar a escravidão e reforçar a dominação colonial. Segundo esses autores, os africanos eram naturalmente inclinados à “fornicação”, excedendo em lascívia os “brutos mais libidinosos”. Essa caracterização, além de negar a diversidade cultural africana, ignorava as complexas relações de poder e as condições precárias de vida impostas pela escravidão.
Os jesuítas também acusavam os senhores de engenho de contribuir para a “licenciosidade” dos negros. Ao permitir o ócio, negar a educação religiosa e recusar-se a casá-los segundo a Igreja, os senhores criavam um ambiente propício ao pecado. Ao mesmo tempo em que condenavam a sexualidade dos negros, os jesuítas denunciavam a hipocrisia dos senhores que mantinham relações sexuais com escravizadas e geravam filhos “mestiços”. Essa crítica evidenciava uma face importantíssima para pensarmos a construção da ideia de pecado: a contradição entre a moral cristã pregada e a realidade da sociedade brasileira.
A ideia de “lascívia negra” se atualizou e perseguiu os passos das populações afro-brasileiras. O termo “cor do pecado” é largamente utilizado para se referir a pessoas negras, dentro da ideia de que estas seriam capazes de corromper os demais indivíduos e os arrastar para atos pecaminosos. Essa percepção aparece também em materiais artísticos, como filmes, telenovelas e canções. A música Da cor do pecado, com letra de Bororó, apresenta uma descrição sensualizada do corpo de uma mulher negra, associando-a à maldade e ao pecado. Essa visão, presente também na obra de Gilberto Freyre, reflete a concepção colonial que liga a mulher negra à sexualidade exacerbada. A letra da música destaca a cor da pele da mulher como algo pecaminoso e desejável. O corpo “moreno” é descrito como “cheiroso e gostoso“, “delgado” e “de fazer tão bem”. O beijo da mulher é “molhado” e “escandalizado”, e suas palavras “com graça” escondem a “maldade da raça”.
Ainda na interseção entre o pecado e o gênero, é importante observar que, ao longo da história, as mulheres foram frequentemente representadas como figuras pecaminosas e tentadoras, desde Eva, no Jardim do Éden, até as bruxas perseguidas na Idade Média. Essa construção social, baseada em estereótipos e misoginia, serviu para justificar a subordinação das mulheres e a violência contra elas.
A crença no pecado feminino se traduziu em diversas formas de perseguição e controle ao longo dos séculos. As mulheres foram silenciadas, excluídas da vida pública e privadas de direitos básicos. A sexualidade feminina era vista como algo perigoso e que precisava ser controlado, resultando em práticas como a castidade imposta, o casamento forçado e a punição de mulheres consideradas “adúlteras” ou “sem moral”.
Também perseguidos pela invenção da noção de pecado foram aqueles que apresentaram dissidências com relação à cisgeneridade e à heteronormatividade em suas relações e existências. Por mais que os dogmas cristãos façam parecer que práticas homoafetivas, por exemplo, são recentes, é importante reconhecer que elas não são um fenômeno novo ou singular. Registros históricos demonstram a existência de práticas e relações homossexuais em diversas sociedades antigas, como no Egito, na Grécia e em Roma. A diversidade de expressões sexuais e de gênero era vista como parte da natureza humana, e não necessariamente como algo pecaminoso ou anormal.
Com o advento do Cristianismo, a partir do século I d.C., a homossexualidade passou a ser considerada um pecado grave. Passagens bíblicas foram interpretadas como condenações à prática homossexual, dando início a um período de perseguição e repressão que se estenderia por séculos. Durante a Idade Média, a Igreja Católica Romana desempenhou um papel fundamental na demonização da homossexualidade. A Inquisição, tribunal religioso criado para punir hereges e pecadores, perseguiu e condenou milhares de pessoas por práticas homossexuais. As punições variavam de chibatadas e humilhação pública até a pena de morte. No período moderno, a partir do século XVIII, a homossexualidade passou a ser objeto de estudo científico. No entanto, a medicalização da homossexualidade a classificou como uma doença mental, reforçando o estigma e a marginalização.
Nas últimas décadas, diversos países avançaram na legislação e no reconhecimento de direitos para a comunidade LGBTQIA+ — a homossexualidade foi descriminalizada e o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado em vários países. No entanto, ainda há muitos desafios a serem superados. A homofobia, a transfobia e o preconceito ainda são realidades presentes em muitas sociedades sob a égide do pecado e da moral.
Assim, ao longo do tempo, a ideia de pecado foi utilizada como um instrumento poderoso para justificar a dominação, a opressão e a violência contra diversos grupos sociais. A análise crítica dessa construção social revela como o pecado foi inventado para servir aos interesses de elites e grupos hegemônicos. É fundamental, portanto, desconstruir a ideia de pecado como algo inerente a determinados grupos ou determinadas práticas. O pecado é uma construção social, utilizada para controlar e oprimir. Respondendo à pergunta que intitula este texto, podemos ousar pensar que o pecado foi inventado para manter uma estrutura sólida e rígida de poder e desigualdade.
Na efervescência do Carnaval do Rio de Janeiro, surge uma figura marcante: os bate-bolas, também conhecidos como clóvis, pierrots ou clowns. Originários dos subúrbios ou das periferias cariocas, principalmente nas Zonas Norte, Oeste e Baixada Fluminense, esses foliões mascarados carregam consigo uma rica tradição, que se entrelaça com a história da própria festa.
Acredita-se que suas raízes remontam aos colonizadores portugueses e à Folia de Reis, mas o nome “clóvis” teria surgido no início do século XX, inspirado na palavra inglesa “clown”, que significa “palhaço”. Uma interpretação popular teria transformado o termo em um apelido para os foliões fantasiados.
Vestidos com fantasias vibrantes e máscaras que mesclam o cômico com o macabro, os bate-bolas se organizam em turmas, dedicando-se durante todo o ano à criação de seus trajes e à organização de eventos carnavalescos. Fogos de artifício, festas e churrascos animam a comunidade, ao som de hinos, marchinhas e funks próprios de cada grupo.
A diversidade marca a presença dos bate-bolas. Seus estilos variam, desde o clássico “bola e bandeira” até o criativo “evolution’, passando por “leque e sombrinha”, “bicho e sombrinha”, “pirulito” e “de capa”. As fantasias também apresentam diferenças regionais: na Zona Oeste, predominam os modelos “bujão”, com mais tecido, enquanto na Zona Norte a criatividade impera.
Os nomes das turmas refletem essa multiplicidade, carregando sentimentos, atitudes, personagens fictícios ou até mesmo o barulho e a desordem que acompanham a folia. Humildade, Emoção, Explosão, Alegria, Bom Gosto, Tirania e Fascinação são alguns exemplos. Na Zona Oeste, nomes de personagens como Mario, Urtigão e Kuka se destacam, enquanto turmas de “bola e bandeira” homenageiam a agitação com títulos como Tropa Embrazada, Zorra Total e Barulho.
Mais do que simples foliões, os bate-bolas representam a cultura popular carioca em sua essência. Sua tradição, preservada ao longo de décadas, foi reconhecida em 2012, quando os grupos foram declarados Patrimônio Cultural Carioca. Hoje, os bate-bolas continuam a encantar e desafiar estereótipos, colorindo o Carnaval com a alegria, a irreverência e a vibração única do subúrbio carioca.
Convidamos Mayara Assis, pesquisadora e brincante da cultura bate-bola, para um breve papo-vivência:
Muitos trabalhos que discutem ou apresentam a cultura bate-bola o fazem por um viés estético visual. Porém, seu trabalho extravasa essa fronteira e leva o bate-bola para uma dimensão do corpo. Que corpo é esse?
Esse corpo é do medo ou respeito, aquele que coloca em dúvida os discursos da moralidade. E esse corpo, que está na dimensão da cultura dos bate-bolas, também, mas está em outros lugares, e é aí que a gente vai chegar. Porque, na minha perspectiva, eu não pretendo somente estar dentro, inserindo a minha pesquisa na cultura dos bate-bolas, se é um lugar pelo qual eu passo para ir de encontro. É ali que eu digo: existe esse corpo estanque, ele se reproduz aqui também. Que é esse corpo que, ao passar pela rua, ao entrar numa sala, parece sempre estar prestes a arruinar com tudo, com tudo que foi feito, com tudo que foi construído? Esse corpo que é estranho, esse corpo que, quando chega, já anunciou certo desconforto no espaço.
O meio bate-bola acaba sendo um espaço com muito protagonismo masculino. Como você vê o papel e a importância das mulheres nesses espaços?
Mesmo não sendo a minha questão principal de debates, o protagonismo na expressão de gênero masculino nas turmas de bate-bola, vou falar sobre isso e trazer pra questão que eu não compro essa briga. Eu acredito que tem muito protagonismo feminino, da expressão de gênero feminino, na turma de bate-bola. Eu acho que o ponto que é importante de ser falado, quando a gente questiona e traz esse questionamento necessário sobre esse lugar, um espaço ocupado ou com a presença do protagonismo masculino ao feminino, é que as nossas relações estão em crise, e essa crise precisa ser estampada. A principal crise que precisa ser estampada é que sempre, quando a gente conta a história da cultura popular brasileira, a gente diminui a importância do trabalho das mulheres, e principalmente das mulheres negras dentro das culturas. Eu comecei a ter interesse na cultura das turmas de bate-bola por conta de costureiras, e essas costureiras se sentem as primeiras pessoas que dão continuidade à turma de bate-bolas. São fazedoras de bate-bola, fazedoras de casaca, imprensa, fazedoras de máscara. Quem faz a indumentária, quem está com as mãos no trabalho, se sente totalmente responsável pela continuidade da cultura. E isso você vê de memória e de presença mesmo em cada cultura que é mantida por um grupo tradicional, seja no perímetro urbano ou até mesmo no perímetro rural. Eu vi que isso se replica, e que a importância feminina é subtraída quando a gente fala, às vezes, da nossa própria cultura. Existem turmas inteiras de bate-bolas só de mulheres,e também existem turmas em que, majoritariamente, o grupo que sai fantasiado é um grupo de homens, mas o carnaval não se encerra nesse grupo, é toda uma comunidade em torno disso, tem famílias dos bate-bolas. Gera renda também, circula a renda entre os pequenos produtores desses elementos que compõem a turma, e muitos desses fazedores são fazedoras, na verdade. Muitos desses trabalhadores são mulheres.
Então as mulheres são essenciais nessa cultura, certo?
Não que o papel das mulheres esteja encerrado, que a importância das mulheres nessas culturas dos bate-bolas ou até na cultura brasileira esteja encerrado ao espaço de organização, confecção, produção dos conteúdos, dos elementos. O papel das mulheres é de responsável pela continuidade do divertimento. E isso eu vejo em toda a cultura brasileira. Na cultura dos bate-bolas, elas já vêm encontrando espaços pra que elas mesmas possam também dizer desde o princípio o que elas querem que visualmente seja entregue, e esse é, vamos dizer, um outro caminho que vem sendo redesenhado pelas mulheres mais novas juntamente com mulheres mais antigas, que já frequentam turmas de bate-bola de outras datas e que têm feito turmas femininas e promovido ainda mais a voz das mulheres nesse contexto, no contexto em que elas também dispõem, vamos dizer assim, do mesmo desejo de manifestar o seu interesse pela liberdade, pelo prazer e pelo divertimento que é você confeccionar desde o princípio uma roupa e uma turma, toda uma organização de uma turma de bate-bola. Isso é algo que eu vejo agora. Na verdade, eu acho que esse é um protagonismo que eu vejo surgindo, emergindo mais forte agora, mas não acho que não existisse.
O carnaval muitas vezes é um momento em podemos experimentar outras subjetividades e formas de existir. E assim, também, sonhar. Você acha que nas favelas, nos subúrbios e nas periferias (espaços onde costumamos ver mais a cultura bate-bola), ser bate-bola é realizar um sonho?
Pra responder essa pergunta, eu vou começar dizendo que, se a gente tirar o bate-bola da cultura estética, de você ter poder e comprar, adquirir, obter, sei lá, comprar um tênis, comprar uma roupa, se a gente tirar ele desse lugar e pensar pela perspectiva da formação de uma turma, da formação de um núcleo que se comunica com outro núcleo, e com outro, e que são famílias juntas e que têm as suas denominações, que se reconhecem com ou sem os seus elementos em diversos cotidianos que não são somente o carnaval, isso por si só funciona como uma realização coletiva de um sonho, de um sonho de estar e fazer parte de uma comunidade, de ser aceito em um lugar. Isso é muito quem são também essas pessoas do bate-bola. Quem são eles é muito isso também, sentir-se parte de uma coisa, e cada um ali é fundamental, todo mundo bota a mão pra trabalhar na confecção das coisas, na realização, na concretização do sonho. Estar numa coletividade dessa forma, em que você se entrega desse jeito pra além dos mecanismos funcionais da estrutura global do mercado, de como o mercado funciona, ali dentro se constrói uma outra forma política, e essa forma política é o ideal coletivo, mas também é a realização de um sonho, de estar e fazer parte de uma comunidade. Eu já vi acontecer, em saídas de turmas de bate-bola, por exemplo, da pessoa responsável ter confeccionado umas roupas que poderiam equivaler pra crianças, e aí as crianças, que não participaram de nenhum dos outros movimentos que as pessoas mais velhas participaram desde o início do ano, naquele dia, do carnaval, estavam ali desde cedo em cima das pessoas da turma, querendo saber. Aquelas crianças ali ganham um bate-bola e saem. Essa sensação, essa memória da infância, essa relação com a cultura também é a realização de um sonho coletivo, de um sonho coletivo que se encontra dentro das periferias urbanas e da forma como a cultura pode ter continuidade nesses espaços das favelas e dos subúrbios, que é através da criança, estimulando o próximo, o mais jovem, o mais novo. E esse estímulo também é uma forma de realizar um sonho. Não sei se necessariamente todos que estão ali estão sendo coletivamente com essas questões subjetivas que eu estou trazendo, mas é o que a gente vê acontecer. Muitos ali só chegam com o único pensamento de construir. Quem é líder dentro da turma, quem é liderança, vai pensar o carnaval desde o princípio e querer que ele aconteça da forma como foi planejado. Tem gente que vai entrar que o sonho é só sair de bate-bola. E essas pessoas vão sair, porque é a realização de um sonho também. Mas não é só o sonho de comprar um bate-bola, de comprar um tênis, é o sonho de fazer parte de uma grande coisa. Eu sinto muito, às vezes, vindo dos corpos com os quais a gente está se direcionando, com os quais a gente está se comunicando, que são esses corpos que parecem estar andando por aí como se estivessem prestes a arruinar tudo. São muitas essas pessoas, muitas dessas pessoas procuram essas culturas, as culturas que impõem medo ou respeito, a cultura do funk, a cultura do bate-bola que, pra mim, estão muito atravessadas, e muito atravessadas às culturas negras, cujas origens são africanas. Eu falo isso porque isso me lembra o sentimento do quilombo, que, já diria Abdias Nascimento, é o sentimento de uma comunhão existencial negra. Ainda que nem todos ali sejam negros, essa cultura vibra nesse mesmo tambor, ela tem essa mesma vibração.
Sonho meu, sonho meu Vai buscar quem mora longe Sonho meu Vai mostrar esta saudade Sonho meu Com a sua liberdade Sonho meu No meu céu a estrela-guia se perdeu A madrugada fria só me traz melancolia Sonho meu
(Sonho meu, de Délcio Carvalho e Yvonne Lara da Costa)
Os sonhos, essas vivências sentidas na mente e no corpo, muitas vezes bizarras, que povoam nossas mentes durante o sono, há séculos fascinam e intrigam a humanidade. Envoltos em mistério, eles desafiam interpretações simples e abrem portas para um universo onírico de simbolismos e reflexões profundas sobre nós mesmos.
Do ponto de vista científico, os sonhos são eventos mentais que ocorrem principalmente durante a fase conhecida como REM (rapid eye movement) do sono, quando a atividade cerebral se intensifica e se assemelha à vigília. Nessa etapa, o cérebro processa informações, consolida memórias e libera emoções reprimidas, tecendo narrativas complexas que podem ser vívidas, emocionantes ou até mesmo perturbadoras.
Embora a ciência ainda busque desvendar segredos dos sonhos, algumas teorias tentam explicar sua função e seus significados. Para a psicanálise, os sonhos são a janela para o subconsciente, revelando desejos, conflitos e medos reprimidos que, por vezes, se manifestam de forma simbólica ou distorcida. Já a neurociência propõe que os sonhos sejam uma forma do cérebro se livrar de toxinas e processar informações acumuladas durante o dia, consolidando memórias e aprendizados. Os sonhos, muitas vezes vistos como meras fantasias da mente adormecida, também podem ser a força motriz por trás de grandes mudanças sociais e políticas. São eles que alimentam a esperança por um futuro melhor, inspiram a luta por justiça e igualdade e impulsionam a inovação e o progresso.
Sendo assim, cabe traçar um paralelo entre os sonhos já citados — aqueles fenômenos que ocorrem enquanto dormimos e o sonho num sentido simbólico e político, no sentido de projeções de algo que se tem desejo de concretizar, ver, ter ou fazer.
Em O dono da dor, música lançada em 1997, composta por Nelson Rufino e conhecida na voz de Zeca Pagodinho, canta-se que:
“Ninguém pode imaginar O que não viveu”
Esse verso, cantado a plenos pulmões em milhares de rodas de samba, abre despretensiosamente o caminho para refletirmos: como imaginar ou sonhar com aquilo que não vivemos ou que não nos foi permitido viver? Essa vida vivida e sonhada sem permissão é algo que comumente perpassa a existência e a produção intelectual e artística de pessoas negras.
A literatura negra tem sido um espaço vital para a exploração de temas profundos e complexos, incluindo os sonhos e a imaginação. Autores negros, em diversos contextos históricos e culturais, têm usado esses elementos como ferramentas para desafiar narrativas opressoras, reimaginar realidades alternativas e afirmar suas identidades. A imaginação, para muitos deles, não é apenas um exercício criativo, mas uma forma de posicionamento e sobrevivência.
Toni Morrison, por exemplo, em Amada (Beloved), utiliza elementos do sobrenatural e do sonho para explorar traumas passados e a memória coletiva dos afro-americanos. A presença do fantasma de Amada (Beloved) simboliza não apenas a perda e o luto, mas também uma forma de retomar a agência sobre um passado doloroso. Morrison cria um espaço no qual o real e o imaginário se entrelaçam, permitindo que a história de uma comunidade seja contada de forma não linear, desafiadora e profundamente humana.
Os sonhos, na literatura negra, muitas vezes servem como projeções de esperança e desejos para um futuro outro. No romance Homem invisível (Invisible Man), de Ralph Ellison, o protagonista sonha com uma sociedade em que ele é visto e valorizado, contrastando com sua realidade de invisibilidade social. Esses sonhos não são meramente escapistas, mas funcionam como críticas contundentes às estruturas sociais existentes e como expressões de um desejo profundo por mudança e reconhecimento.
Octavia Butler, uma das mais proeminentes escritoras de ficção científica negra, utiliza a imaginação para reconfigurar identidades e explorar possibilidades alternativas para a humanidade. Em Kindred, Butler mistura elementos de viagem no tempo com uma narrativa profundamente enraizada na experiência afro-americana. Através da protagonista Dana, a autora explora como as identidades são moldadas e reconfiguradas pelo passado e pelo presente, utilizando a imaginação para criar uma narrativa que transcende as limitações temporais e espaciais.
Nas literaturas africanas, o sonho frequentemente assume uma dimensão coletiva, refletindo as aspirações de comunidades inteiras. Chinua Achebe, em O mundo se despedaça (Things Fall Apart), captura o espírito de uma sociedade à beira da mudança. Embora o romance se concentre principalmente nas realidades sociopolíticas de uma comunidade igbo, os sonhos e as visões das personagens revelam um anseio por equilíbrio entre tradição e modernidade. Esses sonhos, muitas vezes fragmentados e intercalados com realidades duras, oferecem uma visão sobre as tensões e esperanças dentro da comunidade.
Autores contemporâneos, como N. K. Jemisin, têm expandido ainda mais os limites da imaginação na literatura negra. Em sua trilogia A terra partida (Broken Earth), ela constrói um universo complexo no qual a geologia e a magia se entrelaçam, criando um mundo que é ao mesmo tempo familiar e radicalmente diferente. Através de uma narrativa que mistura elementos de fantasia e ciência, Jemisin explora temas como opressão, sobrevivência e transformação, utilizando a imaginação para questionar e desafiar as realidades do nosso próprio mundo.
Passear pelo universo dos sonhos e da imaginação na literatura negra não é apenas um testemunho da criatividade e resiliência da autoria negra, mas também uma poderosa ferramenta de proposição social, incidência e afirmação cultural. Através das obras de Morrison, Ellison, Butler, Achebe, Jemisin e muitos outros, podemos perceber e experimentar formas para reimaginar identidades, desafiar estruturas opressivas e projetar esperanças para o futuro.
Os sonhos não são apenas retrospecções ou formas de escapismo, mas também projeções de futuros possíveis e desejáveis. Para o movimento negro, a capacidade de sonhar com um futuro melhor tem sido fundamental para a motivação e mobilização. Martin Luther King Jr., em seu famoso discurso Eu tenho um sonho (I Have a Dream), encapsula a essência desse impulso. Seu sonho de uma sociedade justa e igualitária serviu como um poderoso catalisador para a luta pelos direitos civis, inspirando milhões a acreditar e trabalhar por essa visão de futuro.
Quando Dona Ivone Lara fala de “buscar quem mora longe, sonho meu” podemos fazer uma leitura óbvia sobre um amor perdido ou distante. Mas também podemos ir além e pensar esse sonho e essa busca como banzo. O banzo pode ser entendido como um fenômeno histórico e cultural que afetou profundamente a população africana escravizada no Brasil. Trata-se de um estado de melancolia profunda, nostalgia e depressão experimentado por escravos africanos, muitas vezes levando-os à morte por inanição ou ao suicídio.
Do ponto de vista psicológico contemporâneo, o banzo pode ser compreendido como uma forma extrema de depressão. Estudos em psicologia e psiquiatria mostram que a perda de laços sociais e culturais, combinada com condições de vida abusivas, pode levar a estados severos de depressão. A ausência de perspectivas de liberdade e o tratamento desumano contribuíam para um estado de desespero tão profundo que muitos escravizados perdiam a vontade de viver. Clinicamente, o banzo pode ser comparado a transtornos depressivos maiores, com sintomas como perda de apetite, insônia, apatia e pensamentos suicidas. Politicamente, o banzo evidencia a crueldade do sistema escravocrata e serve como testemunho da resistência física e espiritual dos escravizados. Embora frequentemente interpretado como uma forma de desistência, o banzo também pode ser visto como um ato de resistência silenciosa. Ao se recusar a participar do sistema que os oprimia, os escravos que sucumbiam ao banzo estavam, de certa forma, reivindicando autonomia sobre suas vidas e mortes.
O banzo, esse estado de melancolia profunda, e o sonho, tanto como forma de resistência quanto de esperança, são conceitos interligados na experiência da diáspora africana. Essa relação é complexa e multifacetada. Ambos são respostas ao mesmo conjunto de circunstâncias opressivas, mas manifestam-se de maneiras diferentes. Numa visão mais superficial, o banzo pode ser visto como um colapso da esperança, um diálogo com o desespero, enquanto o sonho pode representar a projeção de uma outra realidade. No entanto, mesmo no banzo, pode haver traços de sonho: a nostalgia e o desejo de retorno à terra natal podem ser vistos como uma forma de sonhar com uma realidade perdida ou que pode ser (re)inventada.
A imaginação tem papel central na reconfiguração das identidades negras, desafiando estereótipos e preconceitos. E assim voltamos a Zeca. Se ninguém pode imaginar o que não viveu, inventamos! Ao longo de séculos, a existência negra tem alternado entre a concretude de sociedade racistas e a projeção de universos outros, nos quais se pode existir de forma menos cruel e cristalizada. No contexto do movimento negro, os sonhos e a imaginação não são apenas individuais, mas coletivos. Eles ajudam a fortalecer a coesão comunitária, criando um senso de propósito e solidariedade. O movimento Black Lives Matter, por exemplo, utiliza a imaginação para vislumbrar um mundo sem racismo sistêmico e violência policial. Esse sonho coletivo fornece um quadro para a ação política e social, inspirando protestos, políticas e mudanças comunitárias. São essas projeções que têm impulsionado lutas concretas com resultados palpáveis e mensuráveis.
O poder dos sonhos não se limita a escritores, artistas, grandes líderes e movimentos sociais. Ele reside também em cada indivíduo que ousa imaginar um futuro diferente, que se recusa a aceitar o status quo e que luta por um mundo equânime.
Sonhos podem ser subversivos, desafiando as estruturas de poder existentes e questionando as normas sociais, especialmente quando falamos de trajetórias negras. Eles podem ser a faísca que inicia revoluções, as vozes que denunciam injustiças e a força que impulsiona a busca por um mundo mais justo e sonhado.
Quem é Fabio de Souza e o que, como e por que você sonha?
Sou um artista carioca, cenógrafo, diretor de arte stylist e produtor cultural. Sou formado em comunicação social e, durante vinte anos, trabalhei como tour manager de artistas e bandas brasileiras. Quando me mudei pra São Paulo, fui selecionado para entrar na Universidade Antropófaga do Teatro Oficina como ator e cantor, e ali eu reiniciei o contato com a arte. Eu cuidava da arte dos outros, e então passei a me reconectar com a minha própria. Foi nesse momento que despertei para minhas investigações artísticas.
A minha questão com o sonho é interessante, porque percebi que eu sonho pouco, fisicamente. Sonho muito mais acordado do que dormindo, e sonhar acordado, pra mim, é como uma investigação das possibilidades de voo. Quando eu estou sendo eu mesmo, quando estou criando narrativas e possibilidades artísticas, estou sonhando. Então eu sonho pra transformar a minha existência em algo iluminado, em uma vida em que me conecto com minhas raízes, com belezas que me façam acreditar em uma vida boa.
Você fez cenografias para artistas como Fafá de Belém, Geraldo Azevedo, Rita Benneditto. Conta um pouco sobre seu processo criativo, sobre criar cenografias e figurinos tão diversos e ao mesmo tempo tão únicos?
O meu processo criativo vem de muita pesquisa e respeito a quem, pra quem ou para o quê estou criando, como uma pesquisa do real propósito. Através da arte, eu busco o encantamento, eu quero dar asas a quem vem ao encontro como um bordado de afetos, um artesanato de encontros. Eu me inspiro na natureza humana, na poesia dos sentidos, em todas as coisas do mundo. Como diz Paulinho da Viola, as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender. Eu busco ver beleza na simplicidade. Em um mundo tão tecnológico, imerso em telas de LED, celulares e máquinas. Quero despertar sinestesias, desejos e o que é onírico em cada pessoa.
O sonho, num sentido científico, costuma ser percebido como um processo inconsciente de imaginação. Porém, podemos ter sonhos conscientes também. E podemos, através da arte, propor universos mágicos e de sonhos, como suas cenografias, por exemplo. Qual é o papel do sonho no seu processo de criação?
O papel do sonho no meu processo de criação entra em um lugar de me dar asas pra que eu veja o mundo e as pessoas com os olhos livres, sem julgamento. Tudo é possível no tempo das coisas, no respeito à natureza e nesse lugar de efemeridade da vida.
Então, quando eu estou pensando numa cenografia, quando estou num processo criativo, o sonho vem muito como um aliado. Muitas vezes eu penso que, quando tenho uma caixa cênica, estou vestindo espaços, estou buscando narrativas para novos voos.
Agora pensando nos figurinos: você acha que é possível vestir um sonho? (Porque, quando vejo seu trabalho, sinto que sim)
Quando penso em figurino, eu imagino dar mãos e asas a quem estou criando. Acredito que o figurino tem um poder imenso de consagração a quem estamos vestindo. Então, procuro criar possibilidades para que a pessoa se autocoroe, para que ela se sinta forte, como um escudo. É como a pessoa fechar os olhos e ela se autoencantar. Me interessa que a pessoa se sinta absolutamente à vontade com o que ela está vestindo. Esse é um propósito. Não é o que eu penso como o melhor pra ela, eu quero que ela, nesse lugar de se vestir, se veja em outras possibilidades.
Recentemente, você participou de um debate que pensava moda, figurino e cenografia, num caminho entre os resíduos e a criação. Mano Brown diz que “até do lixão nasce flor”. Você acha possível criar essas peças e cenografias a partir de materiais que, num primeiro olhar, poderiam ter sido descartados?
Sim, eu não apenas acho possível criar como acredito que também seja um preceito de divisão pra um mundo em que a gente vê cada vez mais a natureza dando sinais de que a gente precisa ter essa consciência na escolha. Amplificar visões de novas possibilidades de materiais e resíduos visando a sustentabilidade é de extrema importância. E ver beleza no que é visto como lixo, dar novos significados, dar importância a materiais não vistos como belos e possíveis muito me interessa. Há alguns anos, eu utilizo materiais que vão pro lixo e os transformo em arte, caixas de papelão, jornal, plástico, são matérias-primas muito interessantes. Já criei alguns cenários que foram muito especiais nesse sentido. Uma vez, no lançamento de um disco do cantor Chico Chico, me veio a ideia de criar um baobá de cinco metros de altura, todo feito de caixas de papelão. Pensando na trajetória dele, pensando na Cássia Eller e pensando nessa árvore frondosa da arte. E foi muito interessante, ficou muito bonito, aquela árvore toda feita de folhas, caixas de papelão transformadas em folhas de uma árvore frondosa. Outro cenário, que eu criei em 2023 pro cantor Geraldo Azevedo, era um arraial, me veio à cabeça uma obra do Matisse que se chama A dança, que são cinco pessoas dançando em roda. Como era um arraial, e eu fiquei pensando numa ciranda, me vieram vários artistas à cabeça. Eu transformei caixas de papelão e jornal em cinco pessoas de mais ou menos dois metros, que ficavam em cima do Geraldo e da banda, com o mesmo bailado da obra do Matisse, e essas pessoas vestidas com roupas juninas. E isso me despertou um lugar de muita consciência pelos materiais que eu estava usando, dando novas possibilidades a eles. A natureza agradece. E eu me lembro muito de um desfile, Do luxo ao lixo, do Joãosinho Trinta [oficialmente Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia]. O carnaval é uma fonte grande de pesquisa pra mim, nele a gente vê o encantamento que se dá através de muitos materiais que são descartáveis também.
Meus tios se beijam no rosto e sempre achei isso a coisa mais linda do mundo. Sou fruto de uma família completamente negra, em que, por parte de pai, tenho quatro tios: Alberto Carlos, Carlos Alberto, José Carlos e Carlos José. Além de minhas tias Célia Regina e Regina Célia. Para além da comicidade dos nomes invertidos, algo sempre me chamou atenção em meus tios: o hábito de se beijarem no rosto e demonstrarem carinho entre si fisicamente em público.
Ora, numa sociedade machista, assistir cinco homens — contando com meu pai — expressarem seu amor de forma pública é algo não tão comum. Ouvimos muito que “homem não chora”, que “homem de verdade” não dá beijo, apenas aperta a mão, entre outros jargões carregados de preconceito. Porém, mesmo sem me desgarrar completamente da possibilidade de reproduzir machismo em algumas esferas, observei que, para meus tios, havia uma outra forma de se relacionar e de construir afeto dentro de uma família negra.
Esta construção afetiva desafia paradigmas impostos e dialoga com processos de afeto, proposições relacionais e irmandade — sanguínea ou não — que permeiam a história de famílias negras no Brasil.
Considerada o primeiro grupo de socialização, a família é profundamente influenciada pela dimensão política e também é vista como um espaço para o exercício da cidadania. É dentro dela que se inicia a compreensão dos direitos e deveres, o que envolve o desenvolvimento de práticas como a tolerância, a divisão de responsabilidades, a busca coletiva por estratégias de sobrevivência, a construção de laços de solidariedade e a assimilação de valores culturais, entre outros.
Aqui, a família é entendida a partir da perspectiva da historiografia moderna, ou seja, como uma instituição social fundamental, que evolui tanto no tempo quanto no espaço. Dessa forma, rejeita-se a ideia de um único modelo de organização familiar. Mesmo que as duas famílias aqui consideradas sejam compostas por pai, mãe e filhos, essa estrutura não foi o resultado de uma escolha deliberada.
A trajetória de socialização de uma pessoa abrange os diversos contextos nos quais ela está inserida: família, escola, grupos de iguais, vizinhança e a sociedade em geral. A história sociocultural brasileira influenciou os modos de vida e a formação das famílias negras, gerando muitas descontinuidades, como sobrecarga, perdas, mortes e traumas. Nos últimos tempos, tem ocorrido um resgate historiográfico que examina a evolução da família negra, desde o período da escravidão até os dias atuais, com o objetivo de, por meio dessa perspectiva histórica, entender as consonâncias e continuidades desse grupo.
No entanto, como ocorre com várias categorias sociais, há um processo de hegemonização do conceito de família. Quando nos referimos a essa instituição de maneira geral, tomamos como modelo a família nuclear euro-americana, que é privilegiada em detrimento de outras formas de organização familiar. Assim, pensaremos o conceito de família desde outras perspectivas, em especial aquelas que emergem do continente africano e atravessam as práticas culturais e sociais de povos negros.
A herança africana, sem dúvida, foi uma parte integral da experiência vivida pelos cativos em sua condição de escravizados. Transportados de suas terras de origem e compartilhando o mesmo navio negreiro que os levava ao novo destino, começavam ali — ou até mesmo antes — a se formar os traços culturais que uniriam grupos previamente “dispersos” e estabeleceriam as bases das comunidades africana e afro-brasileira.
Seja mantendo seus costumes culturais ou recriando em solo brasileiro os elementos que lhes permitiam se identificar como africanos, não há dúvidas de que a vivência dos cativos africanos, junto com seu legado cultural, exerceu uma profunda influência nas comunidades escravas. Isso se manifestou tanto nas áreas rurais quanto urbanas, no nordeste e no sudeste do Brasil. Os traços da herança africana, constantemente revitalizados pelo tráfico de escravos, estavam presentes diariamente entre os cativos. Essa influência se expressava por meio do casamento, das práticas de nomeação e apadrinhamento de seus filhos, na religiosidade, nas resistências contra a opressão dos senhores e em muitas outras ações que buscavam conquistar algum grau de autonomia, mesmo que limitado, dentro do sistema escravista.
As “raízes” africanas não eram definidas por um lugar geográfico específico, mas sim pelos laços de parentesco, pelos ancestrais e por uma memória genealógica compartilhada, pois “os africanos carregam seus ancestrais consigo quando mudam de lugar, independentemente de onde eles estejam enterrados”.
A “família escrava” — para usar um termo de época — teve um papel fundamental na vida cotidiana dos cativos, oferecendo-lhes a chance de preservar e redefinir suas raízes africanas. A família também serviu como uma instituição poderosa que lhes proporcionava ganhos sociais, econômicos e políticos, além de criar espaços de sociabilidade e solidariedade. Aqui, referimo-nos a famílias escravas que iam além dos “núcleos primários”; ou seja, famílias intergeracionais e ampliadas, fundamentadas tanto no parentesco consanguíneo quanto nos laços rituais, estendendo-se muito além dos limites de qualquer unidade familiar ou laços de sangue. Essas famílias podiam atravessar os limites legais da escravidão, envolvendo relações entre cativos e pessoas livres ou libertas.
A historiografia recente tem feito progressos notáveis na discussão sobre as vivências dos africanos e seus descendentes nas Américas. Desde os anos 1970 e 1980, as pesquisas sobre a família negra durante o período da escravidão, especialmente no sudeste escravista, têm atraído a atenção dos estudiosos.
Entre os diversos mecanismos, o casamento se destacava como um capital social que ajudava na integração ao novo ambiente. Esse ato proporcionava um senso de pertencimento, especialmente quando realizado segundo os ritos católicos, pois criava laços na sociedade.
A Igreja Católica não apenas dominava a vida religiosa, mas também estabelecia normas sociais e morais de conduta. A rotina das pessoas era pautada por eventos religiosos, como procissões, missas e vigílias, e celebrações da vida, como batismos e casamentos, assim como da morte, através dos rituais fúnebres. Ao menos uma vez na vida, todos recorriam à Igreja para participar de um dos sacramentos: batismo, crisma, eucaristia, penitência, unção dos enfermos, ordenação e matrimônio. Os párocos eram responsáveis por realizar e registrar esses rituais em livros específicos, que eram mantidos nas igrejas. Devido ao padroado régio, os documentos gerados pelos sacerdotes possuíam tanto valor religioso quanto civil.
Os sacramentos, considerados na época como o caminho para a salvação da alma, também funcionavam como uma forma de reconhecimento social. Para os negros livres, que eram frequentemente percebidos como escravos pela sociedade, um registro de batismo, por exemplo, era essencial para comprovar sua condição legal em caso de questionamento. Da mesma forma, a inscrição de um casamento garantia ao cônjuge sobrevivente o direito de herdar e administrar os bens da família. O sacramento do matrimônio criava um vínculo permanente e indissolúvel entre homem e mulher, fundamental para a formação de uma família.
De acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, o casamento tinha três objetivos principais: o primeiro era a procriação, destinada a honrar e servir a Deus; o segundo, a fidelidade mútua que marido e mulher deveriam manter entre si; e o terceiro, a indissolubilidade do vínculo conjugal, simbolizando a união entre Cristo e a Igreja Católica. Além desses propósitos, o casamento também era visto como um “remédio para a concupiscência”, conforme aconselhado por São Paulo àqueles que não conseguiam conter seus desejos.
Contudo, para os africanos libertos, o casamento assumia outras dimensões. Conforme apontado por Maria Inês C. de Oliveira, a união conjugal significava um acordo de apoio mútuo, visando à melhoria das condições de vida de ambos os parceiros. Tanto homens quanto mulheres eram responsáveis pelo patrimônio e pela manutenção do casal, desde que houvesse trocas de benefícios e garantias. A mulher poderia assumir a gestão da casa e dos afazeres domésticos na ausência de escravos, enquanto o homem desempenhava o papel de provedor, oferecendo à companheira o suporte masculino necessário em uma sociedade patriarcal. Além disso, uma característica notável entre os ex-escravos era a tendência de se unirem a pessoas de condição social semelhante, aumentando as chances de seus descendentes se afastarem do cativeiro. Em suma, para os africanos em liberdade, o casamento tinha propósitos concretos e específicos para sua realidade social.
Distante do ideal burguês de romantismo e das normas impostas pela Igreja, o que realmente importava para esses casais era a camaradagem, a confiança mútua, os projetos comuns, o apoio recíproco e a garantia da legalização da transmissão de bens.
Além das trocas de benefícios materiais, o casamento realizado na Igreja também conferia status. Para os africanos, frequentemente marginalizados socialmente, formalizar a união pelo rito católico era uma maneira de acessar os espaços privilegiados dos nascidos livres.
Os esforços dos libertos para arcar com as taxas elevadas cobradas pela Igreja refletem sua busca por respeitabilidade no mundo dos brancos. Essa busca pode ser evidenciada pela escolha das testemunhas do matrimônio. As testemunhas escolhidas conferiam credibilidade à união, especialmente quando eram pessoas de boas condições financeiras e já casadas, o que aumentava a legitimidade dos noivos. No entanto, em uma sociedade onde a cor da pele determinava o status social, ter pessoas brancas como testemunhas de cerimônias importantes, como o matrimônio, já era um sinal da ascensão social do liberto.
Analisar as relações conjugais e a estrutura familiar entre africanos e crioulos, sejam eles escravizados ou libertos, também exige considerar as estratégias empregadas por eles para conquistar a liberdade.
A família e os laços de parentesco, assim como outras formas de interação social, foram fundamentais no processo de obtenção da alforria. Amantes se libertavam mutuamente; mães juntavam recursos para libertar seus filhos; pais resgatavam seus filhos, fossem eles legítimos ou não; irmãos trabalhavam para assegurar a liberdade uns dos outros; filhos manumitiam seus pais; padrinhos e madrinhas negociavam o valor para libertar seus afilhados. Além disso, companheiros de cativeiro e parentes da mesma origem étnica se apoiavam mutuamente na aquisição de suas cartas de liberdade.
Tornar-se forro e formalizar a criação de uma família foi um aspecto central na vida dos africanos e crioulos. Isso não apenas representava um avanço em direção à autonomia, mas também possibilitava o rompimento com as redes de controle dos senhores, principalmente quando toda a família — filhos e outros parentes ainda escravizados — conseguia a liberdade.
De certa maneira, a alforria era mais acessível para aqueles que estavam legalmente casados, em união estável, ou tinham algum grau de parentesco. Entretanto, embora os laços familiares ou de parentesco facilitassem as negociações para a alforria, isso não eliminava as possíveis divergências e tensões entre os indivíduos, especialmente após conquistarem a liberdade.
Na diáspora, instituições como o parentesco — seja por afinidade (como cunhados, sogros, genros/noras) ou espiritual (padrinhos e afilhados, compadres/comadres) — não apenas permitiram que os africanos reorganizassem suas famílias durante as experiências da escravidão e da liberdade, mas também os transformaram de meros aglomerados de pessoas em membros de comunidades específicas, como irmandades, espaços de trabalho e vizinhanças, onde teceram redes de solidariedade.
As relações de compadrio e apadrinhamento, como já discutimos, iam além dos limites da Igreja. Esses vínculos reforçavam laços familiares existentes, solidificavam relações sociais entre indivíduos de status semelhante e estabeleciam conexões entre pessoas de diferentes grupos sociais. Por essa razão, ao selar tais relações, as pessoas geralmente escolhiam indivíduos da mesma posição social ou de status superior, como observa Stuart Schwartz na obra Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial:
“[…] no ato ritual do batismo e no parentesco religiosamente sancionado do compadrio, que acompanha esse sacramento, temos uma oportunidade de ver a definição mais ampla de parentesco no contexto dessa sociedade católica escravocrata e de testemunhar as estratégias de escravos e senhores dentro das fronteiras culturais determinadas por esse relacionamento espiritual.”
O batismo cristão tornou-se uma instituição poderosa e valorizada por todas as camadas da sociedade brasileira, incluindo os cativos. Esses indivíduos buscavam esse sacramento e, através dele, construíam redes de solidariedade e reciprocidade, que se materializavam por meio do compadrio (parentesco espiritual). Além do significado católico, os laços que os cativos estabeleciam com seus padrinhos iam além do espaço religioso e se manifestavam em toda a sociedade.
Esses vínculos também possuíam uma dimensão social fora da estrutura da Igreja. Podiam ser usados para fortalecer laços familiares já existentes, solidificar relações com pessoas de status social semelhante ou criar conexões entre indivíduos de diferentes classes sociais. Iniciado na Igreja e estendido ao convívio social, “o compadrio representava, acima de tudo, a formação de uma aliança que unia, à beira da pia batismal, os pais de uma criança e seus padrinhos”.
Pais frequentemente selecionavam como padrinhos e madrinhas de seus filhos pessoas respeitadas na comunidade ou em outros círculos da cidade, uma vez que essas alianças familiares criavam redes sociais valiosas para todos os envolvidos, onde se cultivavam relações de clientelismo, que incluíam concessões de favores de cima para baixo, bem como promessas recíprocas de serviços, obediência, deferência e lealdade.
O livro A Cor do Amor, da socióloga americana Elizabeth Hordge-Freeman, explora caminhos que nos ajudam a refletir sobre famílias negras em contexto moderno e/ou contemporâneo, uma vez que a autora examina a dimensão emocional das relações raciais, com foco em como o processo de racialização se manifesta através da linguagem e das interações familiares. Ao contrário do mito de que o amor supera tudo, Hordge-Freeman argumenta que o afeto pode ser distribuído de forma desigual, dependendo das características raciais dos indivíduos.
A partir dessa premissa, o livro destaca que as análises dos processos de socialização racial não podem ignorar as dinâmicas afetivas, especialmente no contexto familiar. Como a autora afirma, “o lar é onde o sofrimento está”, mas também é um espaço onde a dominação racial pode ser desafiada e desfeita. Sem recorrer a simplificações, a obra explora as formas criativas e contraditórias pelas quais as famílias afro-brasileiras negociam as hierarquias raciais e se envolvem nos processos de socialização racial: seja resistindo a elas, seja reproduzindo ideologias raciais ou seja, em alguns casos, fazendo ambos simultaneamente.
Ao refletir sobre o papel das mulheres nas famílias negras, a autora observa que um dos efeitos mais nocivos das hierarquias raciais e de gênero é que o trabalho emocional realizado pelas mulheres inclui tanto a vigilância de seus próprios corpos quanto a responsabilidade de transmitir as normas e rituais raciais. Essas práticas são consideradas necessárias para que os membros da família aprendam a lidar com as opressões racistas. A autora, assim, sublinha que:
“Elas [as mães] se encontram dilaceradas pelas barganhas raciais generificadas que devem atacar enquanto lutam para preparar seus filhos para um mundo exterior que os trata como sub-humanos, enquanto também tentam preservar e até mesmo apreciar a humanidade deles. No centro desse trabalho está a evidência de que as trocas afetivas, a linguagem e as práticas concretas de socialização racial devem ser contextualizadas como respostas a uma sociedade absurda e perversa na qual simplesmente existir enquanto negro é considerado ofensa.”
Ainda numa perspectiva interseccional entre raça e gênero, alguns autores apontam que a fragmentação da família africana foi uma das consequências da escravidão. A participação da mulher negra no ciclo reprodutivo da família branca dificultou, para os escravos, a formação de um espaço próprio para a reprodução. Dessa forma, as relações entre os escravizados eram instáveis e temporárias, muitas vezes acontecendo sem o consentimento dos próprios envolvidos. Os interesses dos senhores prevaleciam, já que eles estavam mais focados em garantir a reprodução de sua força de trabalho. A legislação escravista priorizava a unidade “mãe-filhos”, preocupando-se mais com a separação dos filhos da mãe do que do pai, além de desconsiderar a separação entre os cônjuges. Esta fragmentação deixa consequências até os dias de hoje, sem impedir que famílias negras se reorganizem e reinventem diante das opressões de raça e de gênero.
Em Socialização e relações raciais, Irene Maria Barbosa investigou a socialização em famílias negras na cidade de Campinas e observou que os pais fornecem aos filhos “elementos ambíguos no processo de socialização”. Em outras palavras, não há uma orientação clara por parte dos pais sobre como enfrentar as questões raciais, e, ao mesmo tempo, as situações de racismo que os filhos enfrentam os levam a questionar a educação que receberam.
Para a autora, no processo de socialização, é essencial reconhecer que “todos os indivíduos que participam da vida social são influenciados, em maior ou menor grau, pelas forças socializadoras, o que os torna mais ou menos alinhados aos padrões da sociedade em que vivem”. Barbosa ressalta esse ponto para destacar que a socialização é uma das funções mais importantes da família em geral, e da família negra em particular.
A partir desta breve reflexão sobre a socialização e a construção de afeto nas famílias negras no Brasil, podemos perceber como essas dinâmicas desafiam os modelos hegemônicos de família e revelam a complexidade das relações dentro do contexto racial e histórico. As experiências vividas por essas famílias, como a dos meus tios que expressam seu afeto publicamente, ilustram a resistência às normatividades impostas por uma sociedade racista e machista. Mesmo com as marcas deixadas pela escravidão — como a fragmentação das famílias africanas —, os laços de solidariedade, carinho e resistência continuam a se reinventar, formando um contraponto poderoso às forças que tentam suprimir as identidades e tradições negras. Dessa forma, as famílias negras no Brasil não apenas sobrevivem às opressões, mas também criam novos espaços de afeto, cidadania e identidade, que continuam a influenciar profundamente a sociedade como um todo.
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