#38O RostoArteArtes Visuais

Hand anatomy head famous of the mandible female pelvis world scapula nasal nasal famous: a pintura de figura humana na arena

por Alvaro Seixas

Sem título (I am not a still life), de Alvaro Seixas (2018)

Há quase duas décadas, a pintura figurativa e, em particular, a representação do corpo humano reapareceu em cena no palco da pintura. Competindo pelo privilégio da representação da figura humana com a fotografia, o vídeo e a performance, as telas e tintas buscam se reafirmar como dispositivos de debate atrelados às políticas em torno do corpo, com seus agentes valendo-se uma certa gama de argumentos e discursos. 

Esse fenômeno, o da presença da figura humana nas diferentes mídias artísticas e principalmente a sua retomada pela pintura, parece ter se intensificado com a justificativa política de que o corpo precisa viver e exercer de fato a sua liberdade, e não apenas ser aprisionado na falsa ideia de liberdade produtificada pelo neoliberalismo e a mera e cínica “liberdade” de comprar indiscriminadamente, colocando-se na eterna condição de endividado, tornando-se um prisioneiro do sistema. Uma grande retrospectiva itinerante da pintora estadunidense Alice Neel (1900-1984), intitulada People Come First (As Pessoas Vêm Primeiro), apresentada este ano no importante Metropolitan Museum e que seguirá para o Guggenheim Bilbao, terminando nos Fine Arts Museums de San Francisco, traz em seu título uma importante mensagem para nossos tempos e dá nova dimensão à pintura dessa retratista. Neel declarou em 1950: “Tentei afirmar a dignidade e a importância eterna do ser humano.”1

Dentre os muitos exercícios da liberdade evocados pela arte contemporânea, em particular pela pintura figurativa, vemos os debates raciais e de gênero, a denúncia do chamado estado de exceção, questões que perpassam não apenas as obras de uma vasta gama de artistas que emergem no cenário atual, mas principalmente aos discursos de críticos e críticas de arte, jornalistas, curadores e curadoras, influencers, galeristas, diretores de museus, casas de leilão e colecionadores. 

Hoje, a pintura figurativa, em especial a de artistas negros e negras ou pertencentes a grupos periféricos, parece emergir como uma ferramenta importante para inversões simbólicas conceituais e, principalmente, tentativas de rearranjos políticos e justiça social. É o caso dos estado-unidenses Henry Taylor, Kerry James Marshall e Kehinde Wiley e, mais recentemente, muitos jovens artistas no Brasil, alguns deles bem rapidamente já representados por galerias e incluídos em mostras sobre, por exemplo, questões raciais e de gênero em museus nacionais e internacionais. 

Muitos de nós temos tentado repensar, cada um a partir de nossos respectivos lugares mais ou menos privilegiados, os legados de determinados artistas. Dentre eles, Tarsila do Amaral, mulher branca, que pintou A Negra, de 1923, uma ode ao Brasil popular em nome da invenção e do progresso do vocabulário moderno nacional, mas que infelizmente também reforçou certos estereótipos raciais. Trata-se de uma pauta urgente, mas é importante lembrar que o mercado e a sociedade de consumo e os interesses privados sabem lidar bem com urgências. A assustadora velocidade com que certos artistas figurativos estão sendo arremessados ao sucesso e sua acelerada institucionalização parece falar menos sobre um realismo pictórico, crítica à real condição das instituições públicas, e mais sobre um “Realismo Capitalista”, para citar uma expressão de Mark Fisher. 

Dessa forma, parte da pintura figurativa atual se insere nesses exercícios de empatia, alteridade e performatividade, confrontando tempos de tristes shows do ego e produtificação do Eu, mesmo correndo o risco de sua cooptação e banalização pelo sistema, que, justamente, produtifica tudo. Há, também, uma busca por uma intimidade perdida, um resgate de uma ancestralidade ou memória local, uma tentativa de preservação das especificidades regionais, uma retomada de certa dimensão não apenas narrativa, mas também ficcional, delirante e onírica da pintura, de sua capacidade de criar mundos e não apenas ser mais um mero (hiper)reality show. Em um mundo dominado pelo audiovisual e digital, muitas pinturas buscam se opor a certo realismo excessivo, ou mesmo hiper-realismo, de uma parcela da fotografia, do cinema, das telas de smartphones e, principalmente, da fome de real dos documentários. 

Para tanto, essas pinturas figurativas buscam ficcionalizar ou repensar a realidade, valendo-se de antigos recursos expressivos, exageros e deformações caricaturais (Marlene Dumas, Lynette Yiadom-Boakye, John Currin, George Condo e Dana Schutz); traços e pinceladas violentas (Tracey Emin, Jenny Saville e Yan Pei-Ming); alegorias (Glenn Brown); presença física (Cecily Brown); apagamentos sombrios (Luc Tuymans e Wilhelm Sasnal); criação de mundos fantásticos (Michaël Borremans e Lisa Yuskavage); espacialidade, monumentalidade e intervenções no espaço urbano (Banksy). Mesmo através da ficção, ou mesmo da ficção científica, certos artistas tentam realizar críticas políticas e sociais. É o caso de nomes como o do alemão Neo Rauch, e sua realidade ricamente distópica, representando um mundo eternamente em construção e revolução, cenários estranhos, povoados monstros que parecem ter saído de um filme B, em sintonia com os dilemas de um mundo pós-orgânico. 

Além dos nomes mencionados anteriormente, hoje temos grandes representantes estrangeiros, e já podemos chamar históricos, da pintura figurativa, todos focados ou muito envolvidos na representação da figura humana, e ainda em plena atividade, que merecem destaque. Dentre eles estão Alex Katz, Gerhard Richter e Georg Baselitz, ainda capazes de gerar notáveis replicantes que povoam as redes sociais, alimentam algoritmos e/ou galerias de arte, museus e coleções ao redor do globo. Isso não é necessariamente ruim, apenas quando feito de maneira alienada, acrítica e/ou estritamente comercial e elitista. 

Aqui no Brasil, a figura humana na pintura sempre esteve presente na obra de nomes referenciais como Victor Arruda e seu imaginário ácido pop-político-surreal, Luiz Zerbini e suas intrincadas e espetaculares montagens quase cenográficas e Adriana Varejão, com sua requintada e sedutora investigação dos traumas de nosso passado (e presente) colonialista e racista. São nomes marcantes que continuam influenciando novas e mesmo antigas gerações. Apesar desses importantes nomes, de 1990 até a primeira década dos 2000, nosso mainstream artístico experimentou uma grande escassez de ordem representacional da figura humana na pintura: onde foram parar as faces, os corpos e o páthos? Onde estava a tradição de nomes como Pedro Américo, Heitor dos Prazeres, Djanira, Anita Malfatti, Tarsila, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Lasar Segall, Portinari, Guignard, Carybé, Iberê Camargo, Rubens Gerchman e Glauco Rodrigues, mestres dos retratos ou da transposição da fisicalidade humana para o plano pictórico? É possível que muitos bons nomes da pintura figurativa no Brasil tenham sido ocultados por determinados discursos desse mainstream, gerando o apagamento de suas carreiras. 

Na pintura figurativa atual, assim como nas demais mídias, o ativismo político tem se afirmado como uma questão urgente. Toda arte é política, alguns creem. Em certas obras de arte, de fato, a política e a economia parecem emergir de maneira sutil e não explicitamente panfletária – não que um panfleto artístico ou uma arte-panfleto seja algo ruim. Por exemplo, nos corpos deformados, quase abstratos, de Francis Bacon, há uma conversão da luta wrestling, tradicionalmente homofóbica e competitiva, num jogo de afetos eróticos, num potente entrelaçamento visceral das carnes, algo desviante, uma singular pulsão expressionista e homoerótica. Algo, portanto, político. Quadros pintados em plenos preconceituosos anos 1950. E os corpos gays e trans que sangraram, agredidos, mortos ou suicidados pela sociedade daquele tempo ainda sangram nas ruas das cidades ao redor do globo pelos mesmos motivos.

Gostaria de citar outros dois marcos da pintura figurativa moderno-contemporânea, que ainda impactam gerações após gerações: Jean-Michel Basquiat e Philip Guston. Primeiro, gostaria de comentar os gestos políticos da pintura de Basquiat, focada principalmente no corpo humano. Em uma grande quantidade de suas obras, cabeças negras, muitas vezes apenas apresentadas sob a forma de silhuetas, muitas delas autorretratos do artista, buscam lições visuais nas máscaras africanas e artefatos ritualísticos de outras culturas, no cubismo de Picasso, na art brut de Dubuffet e nos rabiscos ainda provocadores de Cy Twombly. As figuras negras de Basquiat emergem num meio artístico hegemonicamente branco, coroadas pelos seus famosos dreadlocks – e temos aí um notório gesto de afirmação e pertencimento por parte do artista, sua autoproclamação, sua autoinstituição. 

Já em de suas mais notórias telas, e já tida como uma obra-prima da pintura contemporânea, Defacement (The Death of Michael Stewart) / Desfiguração (A morte de Michael Stewart), de 1983, vemos uma pintura-denúncia-protesto-memorial, à qual o Guggenheim de Nova York dedicou toda uma exposição em 2019. Uma pintura figurativa e política, como muitas outras de Basquiat, que tematiza a violência policial nos EUA contra homens e mulheres, jovens e crianças negras. Um trabalho da arte contemporânea que, num olhar apressado, pode se assemelhar a um cartoon encontrado em um caderno espiral de um adolescente ou parede de banheiro público, mas que se insere dentro da tradição da arte sacra, justamente ao dessacralizar a auréola católica, representada sob a forma de um austero rabisco negro, que, no lugar de santificar homens e mulheres brancas, coroa o jovem negro Michael Stewart, um grafiteiro marginalizado, um semelhante do próprio Basquiat. 

Só a arte narrativa e, talvez, a arte figurativa de traços expressionistas são capazes de converter um jovem assassinado de maneira simbolicamente tão ágil e marcante num Cristo negro, oprimido e escarnecido, situado entre dois “soldados romanos” da NYSP, o departamento polícia de Nova York. Basquiat pinta suas faces cruéis propositalmente rosadas, para que se assemelhem a porcos, e desenha presas afiadas de javali – criaturas chafurdadas na lama da corrupta e yuppie Manhattan de 1980. 

Mas o poder de mobilização de algumas pinturas figurativas políticas que se valem, buscam plasmar ou, ao menos, evocam sofrimento na imagem do outro geram muitas vezes atritos, polêmicas e constrangimentos. Todos eles, entretanto, são necessários no debate democrático. No turbulento ano de 2020, em meio à explosão da pandemia da Covid-19, vimos também o adiamento para 2024 da retrospectiva itinerante de Philip Guston, mas não apenas por conta do vírus letal. A exposição seria apresentada em 2020 e 2021 na National Gallery of Art de Washington, D.C., no Museum of Fine Arts de Boston, no Museum of Fine Arts de Houston e na Tate Modern de London. 

A decisão de protelar a retrospectiva em quatro anos teria sido realizada com o intuito de reformular a mostra para que ela passasse a discutir e refletir melhor sobre as “urgências do momento”, nas palavras dos diretores dos quatro museus em um comunicado conjunto. É inegável que as figuras cartunescas de Guston, aliadas a uma sofisticada paleta de cores em que se destacam tons de rosa e vermelho, elementos gráficos e contornismo, que o inserem na linhagem expressionista, contribuíram para afirmar Guston como um dos maiores nomes da arte do século XX. Seus retratos dos membros da KKK por vezes também se confundem com autorretratos do artista, visto como um ser fadado ao individualismo, refém do ateliê e das tintas, um fumante compulsivo, atormentado pela passagem do tempo, como indica o relógio pintado na parede. 

No início, essas obras não foram bem recebidas pela crítica, por serem um movimento chocante não apenas dentro da carreira de Guston, antes um pintor abstracionista de renome, mas também do “encadeamento lógico” da arte dos EUA. Se observamos um retorno à figuração em uma notável parcela das exposições e do mercado de arte, é importante lembrar que é papel dos e das artistas estarem alertas às unanimidades do sistema. Guston sempre esteve atento às unanimidades, e sua opção foi não representar qualquer face unânime e positiva, mas sim faces negativas e talvez as mais polêmicas e assassinas dos EUA, correndo o risco de ser assombrado por esses fantasmas. 

Grande parte das obras cartunescas ou “HQ” de Guston são verdadeiros trabalhos de metalinguagem e crítica institucional, que questionam não apenas o racismo na América, mas também o papel da pintura nesse debate e o de um artista branco no contexto dos anos 1960 e 1970. Seus encapuzados seriam também nossos alter egos, qualquer espectador branco que adentra o espaço elitista dos museus e galerias. Afinal, até que ponto somos de fato engajados em mudanças sociais profundas? 

Entretanto, os críticos na mostra natimorta destacaram que essas potentes imagens figurativas que evocam um tema tão doloroso para os EUA e para o mundo mereciam mais, e esse mais significa dar atenção a “outras vozes” que deveriam ter sido mais escutadas na organização da mostra. Muitos detratores da mostra concordaram. No catálogo, havia, entre depoimentos de uma série de artistas, textos de dois artistas negros, Glenn Ligon e Trenton Doyle Hancock, mas, mesmo assim, as vozes e dores evocadas por Guston são muito profundas.

Esses acontecimentos demonstram que a pintura figurativa, e mesmo obras produzidas há décadas, de um artista falecido, ainda são capazes de revelar, a qualquer momento, sua capacidade provocadora junto ao público, mesmo num ano em que, talvez, muitas pessoas não imaginassem que a pintura fosse capaz de atrair para si a foco das atenções, sem que fosse pelas cifras milionárias e hiperinflacionadas pagas pelas obras de certos artistas nas casas de leilão. 

Esses dois casos, Basquiat e Guston, são duas referências para a novíssima safra de pintura contemporânea. Basquiat, em particular, desde sua morte vem impactando hordas de artistas replicantes de seu estilo pictórico – basta pesquisar a hashtag #basquiat no Instagram para encontrar tudo, menos imagens de obras do próprio Basquiat. Sua influência não se restringe apenas ao plano da pintura, mas também aos “shows do eu” do meio de arte, já que Basquiat era também habilidoso em se autopromover e sempre ambicionou a fama. Seu status de celebridade, reforçado pela morte prematura, de certo modo impulsiona a escolha de uma parcela de artistas por estilos que evoquem Basquiat, sua vida cinematográfica e mitologia. Essa escolha acaba se expandindo para a pintura figurativa ou narrativa em geral, para a escrita sobre tela, criando também uma expectativa e demanda por parte do mercado por novos Basquiats, cuja imagem seja de fácil consumo pelo público e cuja obra possa ser hiperinflacionada rapidamente. 

Os (eternos) booms ou retornos à pintura figurativa foram marcados, por exemplo, com a publicação, em 2002, pela editora Phaidon, do livro Vitamin P, que ganhou edições subsequentes (Vitamin P2 e P3). Destacam-se a  abundância das reproduções em cores das obras e os textos de letras diminutas. Essas e outras publicações, incluindo revistas especializadas como a Artforum e seus inúmeros anúncios de galerias comerciais, passaram a dar a aparente, mas desejada, segurança a muitos jovens artistas, artistas em início de carreira ou velhos artistas em eterno início de carreira, de que a pintura figurativa tem seu lugar ao sol reservado junto a certos curadores e curadoras, museus e, principalmente, a todas as galerias, casas de leilão e grandes coleções privadas. 

Saindo do plano da pintura, mas para reforçar a importância simbólica e, acima de tudo, política da figura humana quando representada nas obras de arte, cabe falar de certos monumentos que temos visto serem queimados, destroçados, derrubados ou afundados. Falamos das tristes eternizações do passado que representam racistas, assassinos e torturadores dos EUA, da Inglaterra e do Brasil, genocidas que derramaram sangue inocente em nome da relativa ideia de “civilização”. Os algozes, os antigos colonizadores, mesmo que simbolicamente, precisam tombar ou queimar, defendem as novas gerações. Os reacionários pedem a prisão dos responsáveis pelos atos de iconoclastia, acusam-nos de terrorismo em publicações e comentários na internet. Muitos desses reacionários, triste e cinicamente, habitam o meio de arte. 

Inspirada nessas ações, a pintura figurativa se encontra em um momento crucial. Ela deverá exercer um importante papel nessa necessária iconoclastia, mesmo que não de forma literalmente destrutiva. Fica o desafio para nós, artistas da pintura, atingirmos a grandiosidade simbólica e política do ato que é atear fogo em uma escultura de um assassino do passado cuja imagem insiste incomodamente em permanecer colossal no presente. Nós, atualmente, vivemos uma maldição: a de viver em uma época interessante. Tal como dizia um grande narrador e pensador, Albert Camus: 

“(…) até agora, o artista estava à margem, nas arquibancadas (…) Ele cantava por nada, para si mesmo ou, na melhor das hipóteses, para encorajar o mártir e distrair um pouco o leão do seu apetite. Hoje, pelo contrário, o artista se encontra no anfiteatro. Sua voz, por necessidade, não é a mesma; ela é bem menos segura. Estamos em uma arena. (…) Criar hoje é criar perigosamente!”2

É só depois que nos damos conta de que alguns dos atos simbólicos mais potentes de protesto recentes não foram executados por artistas de renome, das capas de revista badaladas, mas por pessoas comuns, trabalhadores oprimidos – os Sísifos que lotam os metrôs dia após dia. É só depois disso que muitos de nós somos jogados para o centro da “arena” mencionada por Camus. Se não aprendermos com essa “arena”, com essa tomada de consciência, se não sairmos das arquibancadas da história, corremos o risco de nossas pinturas, figurativas ou não, virarem ou continuarem a ser meras reproduções de antigas fórmulas, commodities ou joguetes mercadológicos. 


Notas:
1https://www.metmuseum.org/exhibitions/listings/2021/alice-neel
2Camus, Albert. Create Dangerously. Londres: Penguin books, 2018. Tradução do autor. 

The Dazzle Club, série de Cocoa Laney (2021)

“Por outro lado, minha mulher de 52 anos me parece tão atraente quanto no dia em que a conheci. Se eu dissesse isso em voz alta ela diria: ‘Que clichê, Douglas! Ninguém prefere rugas, ninguém prefere cabelo branco’. Ao que eu responderia: mas nada disso me surpreende. Espero para observá-la envelhecer desde que nós nos conhecemos. Por que isso deveria me incomodar? É o rosto que eu amo. Não este rosto, não este rosto aos vinte oito, trinta e quatro ou quarenta e três anos. É este rosto.”
(David Nichols, Nós)

Meu rosto é um acervo

Meus olhos são herança do meu avô. Meu nariz tem as raízes italianas do meu pai, meu queixo é igualzinho ao da minha mãe. No meu filho, enxergo os olhos do meu marido, castanhos, profundos, e em seu sorriso, os dentes da minha sogra. Na minha filha, encontro meus olhos e cabelos, as mesmas sardinhas de quando eu era criança, que com o tempo sumiram. E elas logo são a ponte para a lembrança da textura dos dedos jovens de minha mãe, acariciando minhas bochechas quando chegava do trabalho.

Meu rosto atual revela minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos – como diria Ney Matogrosso. É a soma de todos os genes que me foram ofertados, desde que nasci. Minha avó espanhola, meu avô mineiro, o avô italiano que nem conheci. Eu sou todos eles quando me olho no espelho. Meu rosto é um acervo.

Como diz Freud: “o Eu é um precipitado de catexias objetais abandonadas”. Sou todos que passaram pela minha vida de alguma maneira e em mim investiram afetivamente, seja de forma direta ou indireta. E essa presença deixa vestígios tanto externos quanto internos.

Numa cena do filme Extraordinário, o menino que havia feito várias cirurgias em função de uma síndrome rara pergunta para a mãe porque sua face é tão marcada por cicatrizes. Ela responde que nosso rosto é o mapa por onde nosso coração passou: “essa ruga aqui é da primeira briga que tive com seu pai, já esse pé de galinha das inúmeras vezes que você me fez sorrir, essa ruga da testa conta quanto tempo durou sua primeira cirurgia”.

Há alguns anos, minha mãe fez na casa dela uma parede de porta-retratos que ela chamou de “parede dos meus mortos”: tem meus avós na lua de mel, sua melhor amiga que partiu e todos que marcaram sua trajetória de 82 anos, mas que dela não mais participam. No começo achei tudo aquilo esquisito e mórbido, mas o amadurecimento me revelou a importância daquela parede. Em cada retrato, um alguém que a construiu; um laço do seu tecido de memória está pregado e emoldurado em seu museu pessoal, feito obra de arte. Assim, ninguém desaparece por completo.

Por vezes, esqueço o rosto das pessoas que amei, que já partiram, e sou tomada por um desespero, como se estivesse na iminência de perder lugares sagrados onde meu coração pousou. Quando a imagem vem, numa lembrança, eu escorrego para dentro dela, tento agarrar aqueles rostos com tanta força que fico até com medo de abrir os olhos e perdê-los outra vez. Semana passada fui visitada pelo sorriso de uma amiga que morreu. A imagem era tão nítida que quase a ouvi gargalhar. De vez em quando, esqueço da minha tia; fecho os olhos com força e a resgato. Estou salva, ela preservada. Sorrio secretamente quando me pego lembrando do olhar do meu pai. Rostos são sagrados.

Meu rosto é um produto

Atualmente, vivemos uma banalização de nossa imagem: o celular que destrava com face ID, o reconhecimento facial no banco, minha foto que avisa minha passagem pelos lugares.

Assim como João e Maria, vamos deixando migalhas de pixel por onde passamos. O tempo todo somos filmados num experimento sem precedentes, invadidos na nossa história pessoal. Grandes empresas colhem nossos dados e estão sempre alertas, tratando-nos como um produto a ser investigado. O objetivo é obter mais lucros, traqueando nossos caminhos, segredos e buscas. Meu rosto hoje virou produto.

O histórico da internet é um mapa do tesouro contemporâneo que revela o que pensei e pesquisei. O aplicativo de trânsito, por onde andei. Tudo que compartilhei já não me pertence mais, e aquilo que não compartilhei, mas procurei, busquei, pesquisei, fica também aprisionado. Há algo que é recolhido de mim, sem que eu mesma perceba.

Shoshana Zuboff descreve a violência dessa experiência no livro A Era do Capitalismo de Vigilância. As grandes empresas funcionam, de acordo com a autora, como os antigos colonizadores que entravam nos países invadindo e doutrinando aqueles que estavam lá anteriormente.

Num conto chamado “Livro de areia”, Borges descreve um livro amaldiçoado, que não possui começo, meio ou fim, cujas páginas são hipnotizantes e aprisionantes – assim como nosso feed, que nos alimenta todos os dias, e alimenta os outros com pedaços de nossa história. Não por acaso, chama-se feed. Nossos dados são alimentos para uma indústria ávida cujo alcance não conseguimos sequer dimensionar. A voracidade do mundo virtual é capaz de engolir nossas almas, nossa imagem, tratando nossa história como mercadoria. Recentemente, li numa matéria que a Amazon está dando desconto de cerca de 10 dólares em crédito promocional se você registrar suas impressões palmares nas lojas sem pagamento que abriu e vinculá-las à sua conta da empresa. “Os dados biométricos são uma das únicas maneiras pelas quais empresas e governos podem nos rastrear permanentemente. Você pode mudar seu nome, você pode mudar seu número de Seguro Social, mas você não pode mudar sua impressão palmar. Quanto mais normalizarmos essas táticas, mais difícil será para escapar delas”, disse Albert Fox Cahn, diretor executivo do Surveillance Technology Oversight.

Nossas digitais estão sendo deliberadamente entregues; damos as linhas da nossa vida de mão beijada.

Minha alma cativa (obrigada novamente, Ney) hoje é cativa da internet.

Meu rosto resgatado

Num trabalho recente, alguns ativistas se uniram para um movimento antivigilância. Iniciado em 2012, realizam oficinas gratuitas conduzidas por tecnólogos que ensinam as pessoas a usar a internet de forma anônima, criptografada. A criptografia nada mais é que o anonimato online. O objetivo: proteção de dados e a tentativa de garantia da liberdade individual, usando aplicativos que não são facilmente rastreáveis, tais como Telegram e Wire, cujas conversas não ficam salvas.

Protestam também contra a banalização de algo tão privado como a imagem pessoal pintando seus rostos, numa tentativa de camuflagem, desenhando formas geométricas, para evitar o reconhecimento facial, que recebe o nome de “antirrosto”.

Por trás desse manifesto há a revelação de um desejo de voltar a se apropriar de si. Ao mesmo tempo, se preciso mudar meus traços para não ser reconhecido pelas grandes empresas, preciso de um disfarce para continuar sendo eu? Só posso ser eu mesma me camuflando?

Ao ler essa notícia, lembrei de um e-mail que recebi de uma amiga que tinha um canal de YouTube. Dizia que havia se cansado da persona que ela havia construído para estar na internet. Contou sobre sua exaustão por tentar editar uma versão de si que lhe trouxesse mais seguidores, o quanto percebeu-se sequestrada em sua identidade ao longo desse processo. Carol voltou a se sentir Carol quando se despediu do canal que ela mesma criou. Qualquer semelhança com Fausto de Goethe ou O Médico e o Monstro não é mera coincidência. 

Porém, como amiga, percebia que mesmo quando a via na internet, conversando com as seguidoras, logo era transportada para o tempo em que eu e ela mais jovens morávamos fora e íamos todo domingo comer falafel, lá pelos anos 2000. Minha amiga não era aquela. Em mim, ela nunca deixou de existir. Ninguém me tira as lembranças da juventude que vivemos juntas e o prazer que sinto ao rememorá-las. Nem a internet, nem o envelhecimento, nem a morte.

Uma história engraçada: numa noite, derrubei vinho em seu laptop. O teclado ensopado chegou até a soltar fumaça. Na manhã seguinte, saímos as duas desesperadas atrás de assistência técnica. Quando finalmente encontramos, o técnico nos olhou, apontou o computador e decretou: “il est mort” (ele está morto). Chateadas, voltamos para casa, até que ela se deu conta de que, estando offline, não precisava mais checar se o ex-namorado estava online no MSN. Isso a libertou para viver sua vida fora das telas. Posso dizer, então, que já é a segunda vez que a vejo se libertar.

A verdade é que, ainda que a internet tente capturar nossa imagem, há algo que sempre será impossível de ser armazenado: a força de nossas memórias. Estas seguirão sempre sendo só nossas. São alimento do meu feed subjetivo, pessoais e intransferíveis. Eu as alcanço ao fechar os olhos, sem precisar de Wi-Fi, e lá sou sempre livre – ando nua, sem pintura, sem tecnologia. Nossas lembranças são um refúgio pessoal e moram numa parede viva dentro de nossos labirintos mentais. Esse tesouro não será entregue jamais para as grandes empresas. Eis nosso ato de resistência.

Não há gigabyte que alcance o cheiro da canja da minha infância ou a visão de minha tia amassando pão de queijo.

E, de vez em quando, passeio por Paris, gargalhando jovem com minha querida Carol, tomando vinho e falando sobre música, ainda que meu rosto revele que há tempos não tenho mais vinte anos. 

Menina com pêssego, de Valentin Serov (1887)

Sempre soube que atores e cantores compartilhavam segredos e afinidades. Assim, quando descobri que o lendário Stanislavski, ao reduzir suas atividades ao máximo em razão de grave enfermidade, manteve apenas dois empregos – um com atores e outro com cantores –, senti-me antes feliz por confirmar uma intuição do que realmente surpreso. Por essa razão, começarei falando de atuação para, em seguida, passar à canção.

Um ator, quando deseja viver de fato a existência de um personagem que ele representa, precisa convencer sua mente, seu cérebro e seu corpo de que aquela situação imaginária é real. Isso que, colocado dessa maneira, parece simples, é um dos desafios mais complexos do mundo das artes, pois significa dizer que um ser humano que tem toda uma vida pregressa (infância, memórias, sentidos, experiências, relações, traumas, conquistas) será capaz de substituí-la por outra vida que nunca viveu (aquela que foi inventada pelo autor de uma peça ou roteirista de um filme para um personagem). Assim, do mesmo modo que um bailarino se capacita para dançar um balé criado por um coreógrafo e um músico desenvolve habilidades múltiplas para, com seu instrumento, transformar em som vibrante uma partitura morta, o ator que se propõe a construir um personagem em si mesmo e dar vida a esse alguém que só existe, em estado de latência, na superfície de um papel, precisa desenvolver um manancial de recursos técnicos que permitam a ele operar esse milagre artístico. Tal milagre consiste em deixar alguém existir fora da mente, para além das palavras adormecidas na folha branca, alguém que possui largura, corpo, volume densidade, cheiro e cor.

Esse trabalho artístico, é bom que se diga, não equivale, em nenhuma hipótese, a enlouquecer ou alucinar. Não terei tempo aqui para expor as diferenças entre o artista e o louco, mas considero uma ofensa a ambos a confusão entre uma vocação profissional e pessoal (inscrita na esfera do trabalho e do desenvolvimento afetivo-intelectual) e as condições mentais e patológicas que, na maior parte das vezes, trazem uma ruptura com as relações afetivas e a realidade, causando dor, alheamento e sofrimento psíquico indescritível para aqueles que as atravessam. O artista pode sofrer de transtornos mentais, assim como alguém pode estar mentalmente adoecido sem professar arte alguma, mas esse tipo de atuação à qual me refiro – cujo grande pioneiro e maior arregimentador de ideias foi Constantin Stanislavski – situa-se na esfera do trabalho artístico e pode ser resumida na seguinte frase de Sanford Meisner, um de seus muitos discípulos: “Atuar é a habilidade de viver verdadeiramente sob circunstâncias imaginárias”

Aqui começa minha proposição sobre canção, que em tudo está ligada à atuação e ao título deste artigo: o cantor-intérprete, cujo “eu-pessoal” deseja experimentar a vida do “eu-personagem da canção”, é um cantor stanislavskiano, ainda que não tenha consciência. Ao vivenciar como se fosse seu o sofrimento ou a alegria de um outro ser, no aqui-agora, o cantor se aproxima do ator realista, ou seja, ele se propõe a ocupar seu próprio rosto com a máscara de outrem (do personagem criado pelo compositor), dando a esse outro uma existência que se funde à sua, por meio de um processo complexo que, na área da atuação, chama-se “construção de personagem”. Quando Elis Regina, em sua antológica versão de “Atrás da Porta”, debulha-se em lágrimas ao entoar o drama e os conflitos vivenciados pela mulher retratada na letra de Chico Buarque, é óbvio que ela não está representando mecanicamente uma ideia alheia e generalizada de sofrimento. Ao experienciar a dor profunda da personagem, a intérprete está, tal qual um ator realista, entrando em fase com a estrutura do conflito – no caso específico, o tormento da separação, do abandono e da solidão – a partir de suas próprias experiências pessoais. Elis é capaz de sentir, “em tempo real”, uma dor que não é sua, ao menos naquele momento, porque consegue vivenciar em seus afetos as circunstâncias que lhe foram dadas pelo autor da música. Desse modo, seu corpo, sua psique e sua voz são envolvidas por condições afetivas que, naquele exato instante, não estão ocorrendo. Isso é a verdade absoluta da ilusão, a fé cênica cujo apelido é máscara. 

A verdade da máscara, por sua vez, contrapõe-se à ilusão da vida. O teatro do real, da vida real (que não se confunde com o teatro realista), nada mais é do que a encenação socialmente endossada de circunstâncias dadas por um ator desconhecido (ou por múltiplos atores invisíveis). Se a filha de fulano é aprovada em um concurso para a magistratura, ou se beltrana é eleita deputada, ou se sicrano é vencedor do Big Brother Brasil, ninguém questiona o quão irreal é esse jogo de máscaras. Todavia, tanto a juíza quanto a deputada e o vencedor do Big Brother são ilusões enunciativas de uma sociedade que pode desfazê-las a qualquer tempo, desde que um processo histórico se constitua como tal. A essa instável ilusão, costumamos dar o nome de realidade. Porém, basta que uma desventura histórica permita a um capitão de fragata qualquer romper a ordem democrática e o juiz será destituído, o cargo de deputado extinto e os personagens lançados em outros papéis (quanto ao Big Brother, salvo raras exceções, o próprio tempo se encarregará de destituí-lo). Por isso, para quem deseja realmente entender sobre a verdade, o primeiro critério é saber que ela é absoluta na medida das construções sociais, mas nem por isso é mentira; verdades são entes concretos que operam em nossas vidas até que sejam substituídas por outras mais efetivas. 

Neste trecho de meu artigo, faz-se necessário um pequeno aparte para tratar da expressão “ilusão enunciativa”, que foi retirada do artigo de Luiz Tatit, a “Ilusão enunciativa na canção”. Ilusão enunciativa é um termo brilhante (e cauto) do igualmente brilhante (e cauto) Luiz Tatit – cancionista, compositor e linguista –, utilizado para descrever o processo que, segundo ele, faz com que o ouvinte de canção tenha sempre “a sensação de que os sentimentos descritos nos versos são vivenciados aqui e agora pelo cantor”. Tatit afirma que o canto tem o poder de transformar o “ele” em “eu”, ou seja, o personagem da canção se transforma na figura do próprio cantor, e segue dizendo que “a expressão direta do ‘eu’ na letra de uma canção (…) produz no ouvinte a ilusão de que o intérprete fala de si como ser humano”. Mas Tatit vai além. Ele propõe que, mesmo quando a letra está em terceira pessoa, as modulações da voz e a própria melodia se encarregam de aproximar o cantor do personagem da canção: “Lembremos da canção Domingo no Parque (Gilberto Gil), cuja intensa expressão melódica do intérprete (eu) elimina qualquer possibilidade de isenção enunciativa, ainda que a letra se construa em terceira pessoa e tente se ater aos fatos e à descrição dos sentimentos que geraram a crise entre ‘João’, ‘José’ e ‘Juliana’. Não se pode negar que o aumento progressivo da tensão emocional que afeta o personagem ‘José’ (ele) se manifesta claramente nos contornos melódicos realizados pelo eu-cantor”. E, para que restem comprovadas suas proposições, ele afirma ainda o seguinte: “Os sentimentos atribuídos a ‘ele’ (o personagem da canção) são infletidos pelas modulações vocais do intérprete, portanto, do ‘eu’ (o cantor). Tudo que a letra desconecta da enunciação, a melodia se encarrega de reconectar.

Essa digressão sobre o artigo de Tatit, longe de ser gratuita, é pedra fundamental para o entendimento do que estou a discorrer: a ilusão enunciativa é um conjunto maior dentro do qual o cantor-ator-realista é um subconjunto. O intérprete que vivencia a experiência do personagem como se fosse sua, no aqui-agora, é, para pegar um termo emprestado da biologia, a espécie dentro do gênero. Minha proposição deixa entrever o seguinte: há muitas maneiras de se aproximar do material cancionístico; uma delas assemelha-se ao modo como o ator realista stanislavskiano lida com seu material. Eu, particularmente, adoro esse tipo de interpretação. Amo a catarse e o aprendizado sobre a vida que tiro da observação ativa de uma existência se abrindo à minha frente. Mas, por outro lado, também venero cantores cuja experiência artística é proposta sobre outras relações com o material – por exemplo, a sensualidade somática e rítmica da letra, em que o vigor das sílabas e os ataques às notas ganham proeminência sobre a narrativa. Refiro-me aos cantores dos fluxos somáticos, corporais, aqueles em que a musicalidade das palavras e da melodia são vivenciadas com uma importância cem vezes maior do que um suposto sentido da letra. João Bosco, Marvin Gaye, João Gilberto, Mayra Andrade, Fatoumata Diawara, entre muitos outros, são cantores capazes de construir narrativas sensoriais para além do sentido literal das frases e sentenças, levando-nos a uma outra modalidade de fruição artística, que passa pela potência dos timbres, dos sons, das articulações vocais que moram numa outra dimensão da palavra. Eles também usam máscaras, mas, em muitas canções, trata-se de uma máscara sonora que em tudo se difere da máscara-personagem. 

Finalmente, a respeito da máscara, vale dizer que a verdade do cantor que se coloca no lugar do personagem da canção é referendada por um item apenas: a fé cênica. A fé cênica, por sua vez, não reside na consciência ou no intelecto do cantor, mas em seu corpo, em seu comportamento, nas respostas motoras e sensoriais que são acionadas pelo intérprete no momento exato em que ele se sente fundido, transfundido e confundido com o eu-personagem da canção. É somente a partir dessa simbiose física, mental e espiritual que o artista sangra e sua, chora e ri, toca e sente os conflitos da personagem como se fossem os seus e, o que é mais importante, age e reage a estímulos que nascem de seu inconsciente, dando vazão a impulsos tão surpreendentes que podem espantar tanto quem ouve quanto o próprio intérprete. Essa capacidade de alguns cantores de entrar em conjunção com o “eu da canção” parece-me muito semelhante à do ator stanislavskiano no seu processo de construção de personagem. Para além da ilusão enunciativa, brilhantemente proposta por Tatit, interessa-me conhecer melhor os procedimentos utilizados por intérpretes relevantes da música brasileira, cuja formação teatral, na maioria das vezes, é inexistente, para convencer sua psique de que ele (cantor) e o “eu da canção” (personagem) são um só.  

Já ouvi, por diversas vezes, fofocas, anedotários, relatos impublicáveis de estratégias utilizadas por cantores e cantoras para gravar suas canções com esse elã de verdade. Durante muito tempo, deixei-as, por pura ignorância, no terreno do exotismo. Hoje compreendo que o que há ali é a construção intuitiva de uma técnica, de um experimento, de um processo que, se não for pesquisado, permanecerá eternamente no terreno mágico do segredo. A verdade das máscaras é tão real (e fascinante) quanto a ilusão da vida.

Autorretrato, de Iberê Camargo (1984)

Ninguém é tão parecido assim consigo mesmo. Exemplo casual mas significativo: depois da caracterização de Bruno Ganz (em A Queda! As últimas horas de Hitler), o famigerado teria muito o que aprender para se tornar outra vez parecido consigo mesmo.

Concluído o célebre retrato de Gertrude Stein, como sempre, não faltaram fariseus para reclamar que não estava nada parecido com a escritora. Picasso: não se preocupem, vai ficar.

Giacometti recusava a abstração, mas, evidentemente, desdenhava a mímesis tradicional. Passou a vida buscando, ansioso, o que chamava de ressemblance. Na versão cézanniana do artista, uma espécie de ontologia das aparências, o termo não consente tradução corriqueira. Semelhança, a tradução oficial, é palavra inócua. Só me ocorre um monstrengo: parecença. Algo que liga vagamente tudo a todos; no entanto, exige da parte do retratista a exata particularização. Só assim ele alcança o estatuto de mestre das aparências: o parecençador. 

A imagem imobiliza as aparências. Interrompe seu fluxo, fixa uma presença ostensiva. Imagem deriva da imago, a imagem do morto. Desde logo, pertence ao passado. A câmera fluida de Cartier-Bresson, porém, derrota o seu mecanismo: ela não reproduz; produz novas aparências. Por osmose. 

Giulio Carlo Argan, o grande historiador de arte italiano, era um crítico ideológico da pop art. Isso não o impediu de acertar na mosca ao definir Warhol como o técnico da imagem. Ele sabia instintivamente que o próprio da imagem é a evanescência, a rápida decrepitude. Por isso a captava sempre no início do declínio, nunca em seu volátil apogeu. Daí a aura de irrealidade que cerca suas Marilyns, sensacionais, meio fora de foco. Daí também a afinidade entre a expressão um tanto parva da personagem e o fetichismo que alimenta o mito das celebridades.

Desconheço, na história da pintura, rosto mais inexpressivo do que o de Filipe IV da dinastia dos Bourbon. Com o perdão de seus descendentes, eu diria que se aproximava bravamente do perfeito pateta. Sequer exibia a feiura agressiva dos modelos de Goya. Pois é, Velázquez transfigurou esse tipo ingrato num conjunto incomparável de telas. Nunca a luz da pintura brilhou tanto, inclusive nos famosos pigmentos negros espanhóis. Moral (meio abstrusa, reconheço) da história: nenhum rosto é tão íntegro assim que não permita descaracterização. O rosto de Filipe IV, felizmente, virou parte da paisagem. 

A aproximação entre Shakespeare e Rembrandt é moeda corrente na história cultural do Ocidente. O crítico literário Harold Bloom não fez por menos: nomeou seu monumental volume sobre Shakespeare A invenção do humano. Do mesmo modo, caberia muito bem chamar os autorretratos de Rembrandt “A invenção do rosto”. Pela primeira vez, na civilização cristã europeia, o homem mostrou, à vera, seu rosto pessoal e mortal. Sentimos o halo do frio, ou do álcool, que exala o pintor enquanto pinta. A chama de vida nos retratos de juventude, a amarga e digna sabedoria naqueles de sua velhice. A alma encarna de cima para baixo em Michelangelo; em Rembrandt, a alma encarna de baixo para cima. 

Iberê tem um pequeno autorretrato, capa de um dos livros reunindo sua obra, que resume sua trajetória de sulista visceralmente ligado à terra. É de um verde pastoso, acinzentado, com uma tinta espessa e viscosa, enlameada, que vai se revolvendo até plasmar a fisionomia incomum do artista. “Sou um homem da planície”, costumava dizer, isto é, reduzido ao básico, sem o sublime das montanhas, distante do mar atraente ou tempestuoso. Tinta, matéria orgânica. 

O que vemos no espelho é uma imagem do passado. Nosso rosto atual jamais coincide com ela. Tanto que está sempre mudando, e não enxergamos o processo. Ninguém conhece o próprio rosto. Estamos à mercê dos outros. O onipresente dito sartriano, contudo, é só uma frase de efeito – o inferno são os outros. Mentira: não conhecemos nenhum dos dois.

Fotos de Davi Reis no ateliê de Alberto Pitta, em Salvador

Criar e estampar os tecidos. Há mais de 40 anos, essa é a vida do artista plástico baiano Alberto Pitta, idealizador e fundador do Bloco Cortejo Afro – bloco que nasceu no bairro de Pirajá (Salvador) e, nos seus mais de 20 anos, tem exaltado a fantasia, a poesia e a cultura negra com um repertório relevante e original, valorizando aspectos da cultura africana contemporânea.

O filho da educadora, bordadeira e ialorixá Mãe Santinha de OYÁ – grande inspiração e razão para ter seguido o caminho das artes – sonhava em ser goleiro de futebol, até que surgiram os blocos Afro, que trouxeram toda uma proposta estética de empoderamento para o carnaval baiano no final dos anos 70 – um discurso que nos trouxe até aqui e que faz da Bahia um lugar diferente no Brasil.

“A partir desse movimento do Ilê, da década de 70,
tudo foi mudando na cidade”

SUAS ORIGENS E INFLUÊNCIAS

Minha arte vem da minha mãe (Ialorixá Anísia da Rocha Pitta e Silva, Mãe Santinha de Oyá), como era conhecida a antiga líder do terreiro Ilê Axé, porque ela, além de educadora, trabalhando em escolas, era uma bordadeira. Então, tinha todo um processo criativo ali, para você bordar, fazer um Richelieu, e tudo aquilo desde o início me interessava. Um segundo ponto era pelo fato de minha mãe ser uma ialorixá. Isso significa terreiros de candomblé, histórias, religião, religiosidade e os elementos que compõem os terreiros, além das indumentárias, das ferramentas dos orixás, dos animais, dos adereços. Tudo isso foi me chamando atenção por uma questão, a princípio, estética. Um terceiro ponto foi o surgimento dos blocos Afro. Eu já gostava muito dos blocos de índio, então me interessavam muito os desfiles do Apache, do Comanche, Caciques, Guaranis e Tupis. Depois, vieram os Blocos Afro e surgiu o Ilê Ayê, com toda uma proposta estética de empoderamento, um discurso pan-africanista, e tudo aquilo foi me interessando. Como eu já gostava do carnaval, resolvi mergulhar no universo dos Blocos Afro e Afoxés. Na época, eu já fazia serigrafia, e dali para passar para o processo criativo e ser convidado a fazer parte de grupos e blocos, foi um pulo. Estamos falando do final dos anos 70. Antes disso, era mais o interesse pelos desfiles: como aquilo era feito, de onde vinham aqueles grupos, acompanhar ensaios. Porque tinha uma negrada se movimentando e interessada num discurso – um discurso que nos trouxe até aqui e que faz da Bahia um lugar diferente no Brasil, a partir das cores do Ilê Ayê. Eu sempre entendo assim: a partir desse movimento do Ilê, a partir da década de 70, passando pelos Blocos de índio, tudo foi mudando na cidade. Então meu trabalho foi esse. Ele vem nessa esteira, do chamado carnaval negro baiano, e eu estou organizando, justamente agora, um livro contando essa história, esses mais de 40 anos fazendo tecidos para os Blocos Afro e Afoxés.     

RELAÇÃO COM O ESPORTE

Eu sempre quis ser jogador de futebol. Não é como hoje, que os pais colocam os filhos na escolinha. Na época, jogar bola era sinônimo de malandragem.

Meu pai não tinha interesse que eu fosse jogador, gostaria que eu fosse mecânico, chapista, assim como ele. Que tivesse uma profissão que me garantisse financeiramente. Se de fato eu mergulhasse no futebol, sei que teria toda possibilidade, e numa posição difícil, de goleiro. Então treinava nos times aqui de Salvador tranquilamente, fui aprovado e fiquei um tempo no Botafogo, mas aí deixei e me enveredei pelo caminho das artes. 

RELAÇÃO COM O ESPORTE CLUBE YPIRANGA

Eu tinha um primo de Cachoeira (BA), Evandro Soares, que era juiz de futebol e advogado. Ele era torcedor do Ypiranga, e o futebol da época não tinha grandes empresários. Teve um momento em que ele até levou o material do time na minha casa, para minha mãe benzer, aquelas coisas do futebol baiano. O time do Bahia fez muito bem isso, essa aproximação com as religiões de matrizes africanas. Quando vi aquelas cores, me interessei por tudo aquilo. Quando cheguei a treinar na Vila Canária (Time Ypiranga) em 1977, fui até convidado por Emerson Ferreti (que foi goleiro do Bahia, Flamengo, Grêmio e Vitória) para fazer parte da Diretoria do Ypiranga. No ano em que ele saiu como candidato a presidente, me convidou para ser vice na chapa, e aí eu fui vice-presidente do clube por 4 anos. Isso eu estou falando de 4 anos atrás. Mas até hoje faço parte do Conselho do Ypiranga, com reuniões de 15 em 15 dias. O clube surgiu em 1906, como um time feito, na época, para negros jogarem bola. Essa foi a ideia do Ypiranga, com suas cores amarelo e preto, e por isso que a capoeira angola tem essas cores. Ypiranga era o time de muitas personalidades, como Mestre Pastinha, Irmã Dulce, Jorge Amado e Zezinho (pai do Caetano Veloso).     

“Por que eu vou fazer só para negros comprarem
meu tecido e vestir?

USO DAS SIMBOLOGIAS DO CANDOMBLÉ ALÉM DOS BLOCOS AFRO

Eu acho que tudo faz sentido. Lógico que você tem que saber como. O que é que você está usando? O que é que você está fazendo? O que significa isso? De onde vem? Você tem que ter ideia dessas coisas. Mas, por outro lado, também é uma forma de perpetuar e divulgar. Hoje nós temos vários cânticos e várias músicas de candomblé, gravadas por artistas que usam algumas como refrões de suas canções e muita gente acha que não deveria, mas essas canções podem sumir. Tem dezenas delas que ninguém sabe mais e que se foram com a Mãe Menininha do Gantois, por exemplo. Eu lembro que Zeno Millet (neto de Mãe Menininha) chegou para mim uma vez e falou: “Poxa, Pitta, sobre essas coisas de símbolos, de signos, dessas histórias, você sabe mais do que eu. É verdade! Minha avó compôs várias canções que nós não soubemos aproveitar e tornar isso público. Terminou virando canções de domínio público. Quem fez? Quem é o autor? Ora, alguém escreveu”. Ele estava falando sobre essas coisas, e até cantou uma ou duas canções. 

O próprio Carybé foi isso a vida toda. Um cara que sai da Argentina, chega nesse lugar e diz: vou ficar por aqui. Porque me identifiquei com isso! E a vida dele toda foi isso. A arte de Carybé é pautada justamente no terreiro de candomblé. Enfim, mas também está registrado, senão essas coisas se perdem. Daqui a 50 anos, um monte de coisa você não vai mais saber sobre. Se não estiver registrado, se não estiver pintado, se não tiver virado publicação, se não for cantado, some. Isso é fato! Nesse sentido, eu não tenho nada contra.

Eu acho que tem que se ter respeito em tudo que se faz. Pode ser nas religiões de matrizes africanas, de outras matrizes ou qualquer coisa na vida. E também sobre a questão da apropriação cultural, eu não tenho muita preocupação com isso. Lógico, como eu falei, tem que ter respeito. Você vê uma mulher loira com o cabelo trançado, ornado com contas, e diz “aquilo não pode, é apropriação cultural!” Eu não vejo problema, porque a questão não é ela ter feito isso, e sim eu fazer isso e ser barrado no shopping ou coisa semelhante, por conta da minha estética, e ela não. Então é esse equívoco que temos que combater, e não o fato de as pessoas usarem as cores, saírem com uma roupa nas cores do Ilê Aiyê, com o cabelo trançado, sendo pessoas brancas. Acho que a conversa é outra. Até porque você vai no Centro Histórico e dezenas de turistas o tempo todo estão fazendo tranças com as trançadeiras negras, que sobrevivem disso. Porque dificilmente vai aparecer uma preta e sentar ali para ser trançada. As pretas trançam seus cabelos em casa. Elas já se conhecem, ligam ou vão até sua trançadeira e já têm quem pega na sua cabeça. Porque nem todo mundo gosta que qualquer um pegue em sua cabeça. Mas as pessoas brancas não estão nem aí. Eles se interessam pela estética, vão lá, sentam, pagam cinquenta, cem reais, e a trançadeira resolve a vida. Como é que você conta essa dita apropriação cultural? A mesma coisa digo dos tecidos. Eu estampo em tecido, e um metro de tecido meu é caro! O de Goya Lopes é caro, a arte de J. Cunha é cara. Então, se você pode comprar, você vai comprar. Por que eu vou fazer só para negros comprarem meu tecido e vestir? Não. Quando eu faço, eu quero vender. Porque aí eu sei que vou poder fazer mais. Vou poder fazer mais coisas. Então tem o interesse comercial. É você aprender a lucrar em cima da arte. Caetano já fala isso na música. Se você ouvir o álbum O Sorriso do Gato de Alice, tem um trecho da canção “Bahia, Minha Preta” que fala isso: “Vender o talento e saber cobrar, lucrar”. Tem que entender até onde vai o limite dessas coisas. 

Se você pensar em cota, aí já é uma outra história. Eu tenho meu bloco aqui com 100 fantasias e vou priorizar segmentos, porque é de interesse meu para a construção do meu próprio trabalho e do que eu estou fazendo ali. Mas, de fato, eu quero que todo mundo saia no bloco e quero que paguem. Tem uma classe média branca que se interessa pelo Cortejo Afro, e eu quero que paguem por isso. Não tenho nenhum problema! Até porque 70% do público do Cortejo Afro, nos ensaios, são brancos e LGBTQIA+, e quando eu saio dali, venho e boto aqui.

Se você olhar as salas lá em cima, que estão em reforma, eu tenho a vista da bacia. Pego a grana e faço coisas, porque eu gosto do que é bom. A pobreza tem que passar longe da gente. Eu trabalho com estética, e não posso pensar em pobreza. Preciso pensar em riquezas, que é uma herança nossa. Você não pode ter medo das coisas. Eu não tenho medo de absolutamente nada. Eu tenho medo de mim, pelo fato de não ter medo de nada. Eu vou e faço minhas coisas o tempo inteiro. Faço uma história no carnaval, as pessoas olham e dizem “não entendi”. Ótimo que você não entendeu, mas só pelo fato de você dizer que não entendeu, você já observou, você já pensou sobre o processo e, depois, você busca a resposta. A que você encontrar, é! Então não tenho nenhuma preocupação com essa questão de apropriação, de símbolos, signos ou da questão estética das roupas, das batas, dos vestidos.

Outro dia eu vi uma mulher no shopping com um vestido preto longo, de Goya Lopes, e estava lindo demais aquilo. Uma mulher branca, aparentemente de classe média, que foi ali e pagou uns R$ 600, naquele vestido. E, com certeza, Goya já pôde pagar o funcionário que estampou aquele tecido, e está resolvido. Daqui a uns anos, a mulher que comprou ainda terá o vestido e vai lembrar da artista Goya Lopes. Uma artista negra engajada, que tem um discurso, sabe das coisas. Eu quero que Goya se dê bem, e eu também quero me dar bem. A gente tem que se dar bem, e não podemos ter medo de comprar o carro e pensar que vão falar: “Olha lá o cara. O dono do bloco”. É o quê? Vovô do Ilê vai ter que ficar andando a pé para provar o que, para quem? João Jorge (diretor do Olodum) tem que ter o carro dele. Carlinhos Brown fala isso o tempo inteiro: “Como é que eu vou ter vergonha de comprar uma cobertura? Se eu tiver a grana, eu vou comprar mesmo e acabou a história”. Quando ele fez Guetho Square lá no Candeal, foi um efeito estético. Depois do Guetho, de toda história de Brown com a Timbalada, pode descer, é tudo pavimentado. Antes era um esgoto a céu aberto. Não havia interesse e ninguém olhava aquele lugar. Hoje as casas são pintadas, decoradas, com grafismo que veio através desse processo.

BLOCO CORTEJO AFRO 

O Cortejo Afro foi idealizado e fundado por mim em 1999 e surgiu da necessidade de reafirmação dos valores e aspectos da cultura negra na Bahia, respeitando a diversidade e incorporando novos elementos, visando ao crescimento das comunidades do século XXI.

A concepção artística do Cortejo Afro se apresenta através de releituras de sons e ritmos e resgata as cores perdidas do carnaval baiano, reafirmando seu conceito ético e estético.

Minha intenção é resgatar as cores, sons e ritmos do carnaval que o tempo se encarregou de apagar, tornando a maior festa popular do mundo numa pasta só. Daí a introdução predominantemente do branco sobre branco, azul e prata, que são cores de Oxalá. Já os grandes sombreiros visam passar o visual dos reinados das tribos africanas, especialmente de Benin, Costa do Marfim, entre outros países africanos. Arto Lindsay, Davi Moraes, Caetano Veloso, Gerônimo, a cantora islandesa Björk, Dog Murras, além de participarem dos tradicionais Ensaios do Cortejo Afro, no Centro Histórico de Salvador, também fizeram participações nos Carnavais, junto com o Cortejo Afro em cima do trio elétrico.

ARTES PLÁSTICAS COMO DESLOCAMENTO E TRANSFORMAÇÃO      

Eu estou fazendo agora um trabalho com a estilista Mônica Anjos. Ela quer fazer um trabalho com dança que vai lançar no São Paulo Fashion Week. Eu disse para ela: tenho um limite. Então eu estampo 200m de tecido com três tipos de estampa, que vão lhe sugerir movimento. Ela esteve aqui e já sugeriu outras coisas. Ou seja, seu trabalho, por si só, já causa um deslocamento estético. Eu estou com uma série que chamo de Mariwô. Primeiro, eu faço as ferramentas dos orixás e, depois, estampo o Mariwô sobre elas. Aí essas ferramentas passam a ser a coisa secundária. O Mariwô, falando de modo geral, é aquela palha de Ouricuri que fica nas janelas e nas portas dos terreiros de candomblé, que é um elemento de proteção. Essa série terá 16 orixás, criando símbolos e signos que os representam. Você pode ver, aqui, que eu sou um artista da contramão nessas coisas das telas. Normalmente usam cavaletes, sentam e ficam pintando. Eu coloco a tela aqui e faço aí. Então, se um metro de tecido meu custa R$100 essa tela aqui vai custar R$20.000. 

Eu estou com uma série que chamo de Mariwô. Primeiro, eu faço as ferramentas dos orixás e, depois, estampo o Mariwô sobre elas. Aí essas ferramentas passam a ser a coisa secundária. O Mariwô, falando de modo geral, é aquela palha de Ouricuri que fica nas janelas e nas portas dos terreiros de candomblé, que é um elemento de proteção. Essa série terá 16 orixás, criando símbolos e signos que os representam. Você pode ver, aqui, que eu sou um artista da contramão nessas coisas das telas. Normalmente usam cavaletes, sentam e ficam pintando. Eu coloco a tela aqui e faço aí. Então, se um metro de tecido meu custa R$100 essa tela aqui vai custar R$20.000. 


Capa do livro Em Tempos de Cárceres, composto por obras feitas no primeiro ano da pandemia e inspiradas nas pinturas rupestres

Também estou com uma série Tempos de Cárcere, que fiz de março até o final do ano. Com a coisa da pandemia, que ninguém esperava, eu pensei: na pandemia, o que eu vou fazer? Acabou o carnaval e eu sou um cara do carnaval. Mas eu percebi que iria piorar, porque já saímos do carnaval 2020 com notícias disso. Só não levamos fé! Então o que vou fazer? Estou em cárcere. Como eu gosto das figuras rupestres, me baseei nisso, nessa paleta de cores das cavernas. Porque estamos em lockdown, ou seja: estamos em cavernas. Para mim, a tradução de lockdown é caverna, movimento rupestre. Isso foi no ano passado. Agora estou na série Mariwô, que também é tudo por trás, tudo escondido. Tudo nesse sentido. Criações em tempo de pandemia. Quem tem essa sorte, de se dar ao luxo de trabalhar com arte como eu, consegue atravessar, mas tem gente que não tem para onde correr e cai em depressão. 

PROJETOS SOCIAIS DO INSTITUTO OYÁ

Aqui é um Terreiro de Candomblé, e nós temos o Instituto Oyá de Arte e Educação. Foi fundado pela minha mãe (Mãe Santinha de Oyá) e minha sobrinha, que herdou a casa. Ela toca o trabalho social do Instituto, que é um trabalho junto à comunidade, com crianças e adolescentes, acompanhamento escolar e pedagógico, como parte do Oyá Educa e o Oyá Criativa, que é esse da questão estética, com cursos de estamparia, moda, corte e costura, percussão, teatro e capoeira. Tem essas duas vertentes dentro do trabalho social do Instituto. É o Candomblé mais uma vez dizendo: olha, estamos aqui, a serviço da comunidade.

PROJETOS ARTÍSTICOS FUTUROS 

Saímos recentemente do projeto Histórias em Tecidos, com três lives, sobre a ideia de escrever e contar histórias nos panos dos Blocos de Índio, Blocos Afro e Afoxés. Porque os tecidos dos blocos têm essa função de contar histórias. Agora o outro resultado disso é o lançamento do livro Histórias em Tecidos – O Carnaval Negro Baiano. Vai ser uma série de estampas, que será lançado em novembro pela Fundação Pedro Calmon, que já demonstrou interesse.

O presente texto tem como objetivo trazer um olhar Pankararu em relação ao termo “folclórico” atribuído à tradição Pankararu, presente nos registros da Missão de Pesquisas de Mário de Andrade. Neste sentido, falaremos de aspectos do ritual Corrida de Imbu, procurando trazer elementos do sagrado e do espiritual em contraponto à ideia de popular.

Somos povos originários filhos da mãe Pindaé, surgimos das locas das pedras, vivemos gerações nas serras, grotas, cachoeiras e Opará. Resistimos por 520 anos a um contato originado com a invasão europeia em nosso mundo e suas práticas de barbárie, negação, silenciamento e apagamento das línguas, culturas e povos indígenas em nosso próprio mundo.

As diferentes organizações impostas na contemporaneidade jamais exterminaram nossa ciência encantada porque ela está além do concreto e do visível. É um espaço que os não-indígenas jamais poderão enxergar. Motivo esse que leva nossos grandes sábios a salvaguardar nossos saberes e experiências cotidianas e tradicionais.

Ser detentor dos saberes tradicionais não está meramente no próprio querer, no desejar ser. Depende de uma ordenança ancestral, que tem uma forte ligação com o dom e o merecimento.

Temos como reflexão o acervo da comissão de Mário de Andrade, da capital de São Paulo, do ano de 1938, cuja missão foi documentar e registrar as pesquisas folclóricas da Região Nordeste. A referida missão explicita, em seu acervo, a negação da diversidade sociocultural do Nordeste, bem como das sociedades não-indígenas dessa região. Mostra as belezas culturais de todos os povos indígenas e sociedades, mas numa única ótica, que unifica as lentes das múltiplas culturas.

Ainda que os fenômenos socioculturais e cosmológicos sejam desconhecidos e invisíveis para sociedades não-indígenas, nós somos a resistência viva. Nossas vivências e experiências e nossa historicidade territorial mostram nossos sentimentos de pertencimento e afirmam nossa valiosa identidade étnica e cultural.

Atualmente, as crianças aprendem acompanhando os jovens, os seus pais, homens e mulheres, na afirmação do conhecimento através das práticas dos nossos patrimônios culturais. Ainda que interajamos com outras realidades das sociedades contemporâneas, nossas missões aqui são essenciais, e jamais esquecidas ou apagadas do que somos. Nada vai nos excluir, ou nos fazer deixar de ser Pankararu. Mesmo que sejamos até vaidosos, isso não fere nossos valores quando entendemos nossos limites e regras, até onde podemos ou não interagir com outros mundos. Essas são liberdades respeitadas por todos nós, durante gerações e gerações.

Dentro dessas organizações sociais, tanto nos movimentos de luta quanto nas tradições culturais, quero aqui destacar a presença fundamental da mulher. Ela merece destaque por cumprir fortemente suas missões sociais e na religiosidade. Nossas mulheres pertencem a diferentes espaços, conforme suas determinações e ordenanças, através de seus dons e merecimentos da ciência sagrada, expressos por elas próprias, e não por uma indicação. 

Nosso mundo encantado é uma realidade viva de conhecimentos, comunicação, orientação, união, fortaleza e cura. Então, homens e mulheres têm missões iguais e diferentes, que emanam do conhecimento coletivo da ciência sagrada, sem superiorizar ou inferiorizar um gênero. Nossas cerimônias, rituais, toantes (cantos) e danças, todos têm regras, valores e significados, vividos e respeitados por todos nós, homens, mulheres, crianças e jovens. Na verdade, nossa cultura não tem explicação; as obrigações cerimoniais acontecem em qualquer espaço, tudo depende da necessidade, do tempo e, também, do merecimento de se atender ao chamamento.

Mesmo lutando contra as contínuas e graves violações dos nossos direitos, os prejuízos irreparáveis ao nosso povo, não perdemos a especificidade da religiosidade cultural e social. Resistimos sempre, através dos conhecimentos tradicionais das Corridas de Imbu, do Menino do Rancho, das Três Rodas, da medicina indígena, etc. Interagimos com o mundo contemporâneo e tecnológico onde as mudanças acontecem naturalmente de uma era para a outra, dependendo do tempo e do espaço em que se encontram, de como se complementam na coletividade cotidiana e da ciência. Isso porque entendemos a dinâmica da cultura e mantemos muito forte a continuidade das nossas práticas culturais.

As Corridas de Imbu são parte de nossa ciência e se iniciam no final de cada ano, quando um Pankararu encontra o primeiro imbu maduro, que não pode chupar e deve levar para o terreiro do poente. Regra esta que respeitamos e tememos com muita fé aos mestres encantados. Assim que o imbu é entregue, é comunicada a chegada do tempo para o fechamento do imbu. Os toques das gaitas soam pelos ares anunciando a todos que seguem ao terreiro do poente. Ao som dos maracás, do rabo de tatu, cantam, dançam e pisam com fé, seguindo o batalhão que guia o povo para o terreiro do muricizeiro, espaço sagrado que faz parte da tradição. Assim, homens e praiás se preparam, carregando arcos e flechas, para flechar o primeiro imbu maduro, que já se encontra pendurado entre duas forquilhas no meio do terreiro.

Logo que se cumpre essa obrigação no finalzinho do dia, a guardiã, que é a mulher mais velha, se aproxima e entrega uma ponta de um imenso cipó ao povo do lado do nascente e outra ponta ao povo do lado do poente. É um momento de firmeza e concentração, em que o cipó é movido pela fé e a força de todos nós que compomos cada ponto do terreiro. Assim, o cipó pode descer para o poente ou subir para o nascente.

Quando o cipó desce de cabeça para o poente, os olhares de todos brilham de alegria e saúdam a mãe-natureza pela certeza de um ano bom, com chuva e muitas farturas para nós. Porém, quando o cipó sobe de cabeça para o nascente, a natureza nos comunica que o ano nos trará sérios castigos: seca, doenças e mortes…

O cumprimento desse reconhecimento da primeira parte acontece no domingo, completando os quatro finais de semana, sendo cinco sábados e quatro domingos. O primeiro sábado é determinado somente para o chamamento das moças que terão a obrigação de botar o cesto no terreiro e dançar as pombas durante os quatro sábados à noite, seguidos da queima do cansanção durante três domingos, pois no quarto e último domingo não acontece a queima do cansanção.

Essa tradição é uma viagem sagrada, no tempo e nos referidos espaços, dando continuidade à sabedoria dos nossos antepassados. Durante os quatro sábados no terreiro do poente, na calada da noite, ao clarão do luar e de uma fogueira, homens, mulheres e crianças obedecem e se entregam ao chamamento de cada cantador, com os praiás vadiando (dançando) por todo o terreiro. Depois da meia-noite, a Lua já nas alturas, a grande sábia pisa no terreiro, cumprindo sua missão tradicional. Este é o momento dos passos, das pombas ou das tubibas, ciência inexplicável, dotada de uma única sábia que conhece os cantos, o tempo, o aviso e a ordenança de passar essa obrigação para outra pessoa.

Já no clarear do dia dos quatro domingos, as moças vão apanhar os imbus, que são o elemento principal e essencial para se botar nos cestos e levar para o terreiro. Crianças, mulheres e homens com a pintura corporal sagrada, o santo barro branco, como seu feixe de cansanção, seguem com seu batalhão dos praiás para o terreiro do Aratikun. Chegando ao terreiro do muricizeiro, os cestos já estão em fileiras, embelezando o terreiro, onde são marcados com uma varinha pelos seus donos. No último domingo da corrida, todo o povo sobe a serra para o ajuntamento do encontro com o grande mestre, o Mestre Guia. Essa ciência nos encanta e, no silenciar do nosso mundo, a natureza nos comunica que é chegada a hora do nosso mestre dos mestres vir benzer e curar nossa nação. É essa força viva que nos une e fortalece a nossa identidade étnica.

Também temos outros rituais, como os já mencionados Menino do Rancho e Três Rodas, em que cumprimos essas obrigações dançando três torés, que significa para nós uma vitória ou uma graça alcançada. O toré é celebrar a relação viva com a natureza e os encantados. É o momento de saudar e agradecer aos nossos encantados.

Essa tradução da fé e do sagrado Pankararu que trazemos aqui através da escrita busca romper com a ideia de folclore. Embora o folclore tenha seu valor cultural, são valores diferentes.

Pâmela Carvalho Foto © Douglas Lopes

Se você tá a fim de ofender
É só chamá-lo de moreno, pode crer
É desrespeito à raça, é alienação
Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamado de negão
Se você tá a fim de ofender
É só chamá-la de morena, pode crer
Você pode até achar que impressiona
Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamada de negona

(“Alienação” – Ilê Ayê)

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“A preferência é ser chamada de negona”

Em 2015, Mario Pam e Sandro Teles escrevem “Alienação”, no contexto do movimento artístico-político Ilê Ayê. E é com o Ilê que começaremos este breve caminho por algumas cidades do Brasil, que trazem em suas ruas, rostos e movimentos artísticos importantes lições sobre mestiçagem, racismo e reeducação das relações raciais no Brasil.

O Ilê foi fundado por Antônio Carlos dos Santos e Apolônio de Jesus no bairro do Curuzu, sendo o mais antigo bloco afro do carnaval da cidade de Salvador. Veio do Terreiro Ilê Axé Jitolu em 1974. Sua história se costura com a do terreiro e de sua Yalorixá, Mãe Hilda. Antes de receber o nome que conhecemos hoje, a ideia era que o bloco se chamasse “Poder negro”, mas esse nome nunca pôde ser utilizado. A Polícia Federal proibiu o uso, alegando conotações negativas e “alienígenas”. Isto contribuiu para que o bloco ficasse associado a uma ideia de subversão no período.

A fundação do Ilê Ayê escancarou a falácia da democracia racial. O bloco foi duramente criticado publicamente. Um marco dessa perseguição política foi a manchete veiculada em 12 de fevereiro de 1975 no jornal A Tarde, onde se lia “Bloco Racista, nota destoante”. Já nos anos 1970, o Ilê seria acusado do que posteriormente viria a ser chamado de racismo reverso – um grande engodo contemporâneo, que só se sustentaria com a humanidade voltando no tempo e reescrevendo a história mundial. Nos dias de hoje, o Ilê é considerado como patrimônio cultural baiano, tendo cerca de 3 mil associados e oferecendo uma série de atividades ligadas à arte, cultura e combate ao racismo. 

Para além da contribuição musical, o consagrado “bloco negro do sábado de carnaval” traz uma proposta política e estética essencial para discutirmos a reeducação das relações raciais no Brasil. Um símbolo dessa proposta é a Noite da Beleza Negra. A festa ocorre desde 1979, inspirada nos concursos de rainhas do carnaval, mas, na noite do Ilê, a “rainha” escolhida é consagrada como Deusa do Ébano. 

Mais do que realizar a escolha da divindade, o evento é uma celebração da raça negra. Os parâmetros para a escolha não são os mesmos utilizados na maioria de concursos, que acabam por reforçar um padrão de beleza que exalta a branquitude, a magreza e a juventude. No Ilê, o que configura uma Deusa do Ébano é sua “força de deusa negra”, sua performance articulando dança, potência negra e práticas antirracistas que passam pelo corpo e pela música.

Pensar a música no Brasil por um viés racializado é essencial para compreendermos algumas relações de opressão e movimentos de resistência que muitas vezes não recebem o devido crédito ou visibilidade. 

Noite da Beleza Negra

Durante o século XX, a música foi muito utilizada como aliada na construção de um projeto de identidade nacional pautado pela miscigenação e pela mestiçagem – ferramentas para eliminar a população negra do Brasil de forma gradual apresentadas como algo positivo. A música sempre foi instrumento político, e não vê-la assim é um equívoco. Durante o século XIX, a mestiçagem foi largamente tratada como algo negativo, capaz de formar indivíduos “física e moralmente pervertidos”. Porém, na virada para o século XX, a mestiçagem passou a ser usada pelo Estado para encobrir conflitos raciais e disseminar uma imagem de paraíso racial, onde todas as raças conviveriam harmonicamente – teoria que ganhou força com intelectuais como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Noel Rosa e Ataulfo Alves.

Os termos “negro” ou “negra” aparecem associados a algumas produções musicais do século XIX. Um exemplo disso são as canções que recebem tratamento a partir do espectro religioso, como a conhecida canção “Lamento Negro”, interpretada pelo grupo Trio de Ouro em 1941 e composta por Constantino Silva e Humberto Porto. O jongo também acaba por entrar nesta categoria, que chamarei de “Lamento Negro”, pegando emprestado o título da canção já citada. Menos associada à religião e mais associada ao que era considerado “canto de trabalho”, a manifestação surgida no Vale do Rio Paraíba também é abarcada pelo guarda-chuva das musicalidades que costumavam ser acompanhadas do termo “negro” ou “negra”. O termo “samba” era pouco empregado, sendo mais comum encontrarmos termos como “batuques” ou “macumbas”, marcados por certo “africanismo” associado a escravizados, ex-escravizados e pessoas negras de pele escura ou retinta nascidas no Brasil. A estas, no campo da música, restava o lugar do sofrimento, do “lamento negro”, da escravidão.

Podemos observar uma expansão do samba como fenômeno nacional a partir dos anos 1930. A presença da figura do africano e do negro retinto diminuem, dando lugar à figura do moreno e do mulato, animado e alegre, associado à bebida, à dança e à sexualização, em especial quando se falava de mulatas. As marchinhas de carnaval acabaram por reforçar alguns desses estereótipos, endossando o mulato não como fruto de um processo de genocídio racial, e sim como produto da harmonia entre as raças no Brasil. Em “Moreno”, gravada por Aurora Miranda no ano 1936 e escrita por Synval Silva, temos que:

Moreno, tu nasceste para ser o meu amor […]
Não posso viver sem os carinhos teus,
Moreno, tu foste tocado pelas mãos de Deus.

Ao “moreno”, ou “mulato”, restam o lugar do sexo, do amor – objetificado – e até mesmo de identidade nacional ou de produto de exportação. Cabe ressaltar que essas categorizações, ao longo de nossa história, vêm majoritariamente de agentes externos, como pesquisadores e folcloristas brancos imersos em processos políticos de embranquecimento da população brasileira.

Muitos direitos foram negados a pessoas negras. Entre eles, o de ser senhor de seu destino, de sua identidade e de seu nome. O nome, geralmente escolhido pelos progenitores, ganha tons ainda mais relevantes quando são associados a pessoas negras, assim como apelidos ou eufemismos utilizados para falar de negritude. Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor, expõe a importância da palavra, do nome, ao narrar a vida de Luísa Mahin, mãe do líder abolicionista Luiz Gama:

Nós não víamos a hora de desembarcar também, mas, disseram que antes teríamos que esperar um padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha sido batizada em África, já tinha recebido um nome e não queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em terras do Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria através do meu nome que os voduns iam me proteger…” (Gonçalves, 2006, p. 63)

Capa do álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), dos Racionais MC’s

A forma como somos chamados diz respeito à nossa história, nossa identidade. E denuncia, também, estruturas de poder baseadas no patriarcado e no racismo.

Muitas vezes, vemos perguntas como “o certo é chamar de negro ou de preto?”. Reforço aqui que as questões não são sempre dicotômicas. Nem sempre será “ou isto ou aquilo”, especialmente quando falamos de uma questão tão complexa como as relações raciais no Brasil. É importante estar atento ao uso, ao tom e ao contexto dos termos. 

O vocábulo “nego” (leia-se “nêgo”) é importante nesse sentido. Usado entre pessoas negras, muitas vezes ele expressa carinho e proximidade. Principalmente quando acompanhado de “meu” ou “minha”, como em frases como “está tudo bem, meu nego?”. A mesma palavra, quando usada por pessoas brancas, em especial acompanhadas do termo “seu” ou “sua”, pode adquirir tom de agressividade e menosprezo, como em “o que é, sua nega?”, por exemplo. Os sufixos de diminutivo e aumentativo complexificam ainda mais esta questão. O termo “neguinho” pode desejar demonstrar afeto, mas pode também ser usado para ridicularizar e inferiorizar o indivíduo negro, além de falar de um sujeito indeterminado, sem identidade como em “aquele neguinho lá”. O mesmo serve para o aumentativo. “Negão” pode ser usado para exaltar um semelhante ou ser usado, por exemplo, para objetificar a pessoa negra.

Retomando a pergunta “o certo é chamar de negro ou de preto?”, é importante reforçar que chamar alguém pela sua cor e não pelo seu nome desumaniza o indivíduo. Segundo Luísa Mahin, narrada por Ana Maria Gonçalves no já citado livro, “através do meu nome que os voduns iam me proteger”. As palavras e os nomes têm um enorme poder nas tradições africanas e afro-brasileiras. Um indivíduo negro não se chama “Nego”. Também não se chama “Preto”. Nem “Moreno”. E muito menos “Escurinho”. Temos nome, sobrenome, identidade e trajetória.

Para além dos termos utilizados a fim de inferiorizar pessoas pretas, há também os eufemismos, palavras usadas para “suavizar” a negritude de alguém. E, especialmente, para não pronunciar a palavra “negro”, que, para alguns, ainda soa como ofensa ou como um termo que “não cabe em bocas civilizadas”. “Escurinho”, “moreno”, “moreninho”, “marrom bombom”, “pegado na cor” e “mulato” são alguns dos vocábulos usados. “Moreno”, por exemplo, é um termo muito utilizado a fim de trazer ambiguidade e “suavidade” ao debate racial. O “moreno” teria identidade indefinida. O “moreno” não pertence a raça alguma. O “moreno” é o termo-corpo que representaria o sucesso do mito da democracia racial. Por isso, a afirmação de que “a preferência é ser chamada de negona” é tão importante. A autoafirmação e autoidentificação racial foram direitos conquistados por pessoas negras – e que ainda estão em disputa. Assim, quando o tema é raça, não há por que usar eufemismos. 

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considera a categoria racial “negro” como a soma da população preta e parda. Essa definição também foi incorporada ao Estatuto da Igualdade Racial. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, 46,8% da população do Brasil se autodeclara parda e 9,4% se autodeclara preta. Temos, assim, 56,2% de população negra no país.

Retomando o termo adotado pelo IBGE, trago Mano Brown para nos ajudar a pensar o grupo racial “pardo”:

Eu sou o mano, homem duro, do gueto, Brown, Obá
Aquele louco que não pode errar
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk
E de onde vem os diamantes? Da lama
Valeu mãe, negro drama.”

Pedro Paulo Soares Pereira (mais conhecido como Mano Brown) é um intelectual, rapper e compositor brasileiro de São Paulo. É integrante dos Racionais MC’s, grupo fundado em 1988 que revolucionou a cena do rap nacional. Além de Brown, o grupo é composto por Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador) e KL Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões). São deles os versos acima, do rap “Negro Drama”, escrito em 2002 para o álbum Nada como um dia após o outro dia. 

A pele parda evocada pode causar estranhamento quando lembramos que quem a evoca tem o nome de “Brown”, que significa marrom, traduzindo-se do inglês. Porém, é preciso lembrar que, no Brasil, a maior parte da população negra se autodeclara parda. Segundo o já citado IBGE, pardos constituem o grupo étnico negro. É possível ser pardo e ser “brown” ao mesmo tempo. É possível ser pardo e “ver e viver o Negro Drama”.

“O termo “pardo” expõe o histórico de apagamento e abandono das populações negras e indígenas no Brasil”

Também é importante termos em mente que o termo “pardo” muitas vezes é utilizado para referir-se a populações indígenas. Em ambos os grupos étnicos, precisamos estar atentos aos possíveis apagamentos trazidos pelo termo. Na mesma canção, Brown reforça que:

Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olha outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro, sem rosto e coração
[…]
Luz, câmera e ação, gravando a cena vai
Um bastardo, mais um filho pardo, sem pai.
Ei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé.

O termo “pardo”, empregado com excelência por Mano Brown há 19 anos, expõe o histórico de apagamento e abandono das populações negras e indígenas no Brasil, ainda que seja essencial quando falamos de políticas públicas e dados oficiais. O Brasil apresenta população negra e indígena em infinitos tons de pele e diferentes contextos sociais, e isto não pode ser esquecido. Autodeclaração é política. Raça é política.

Precisamos observar o que significa “uma negra e uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço”. Precisamos nos atentar ao que Brown lança luz ao falar de “mais um filho pardo, sem pai”. A miscigenação no Brasil revela um histórico de estupro, misoginia e racismo. É importante nos lembrarmos do consagrado quadro A redenção de Cam, de Modesto Brocos, que apresenta o “produto do sucesso da miscigenação no Brasil”. Ainda e apesar de, estamos aqui.

É preciso ter sensibilidade e olhar historicizado ao analisar as conformações raciais em nosso país. É a partir da categoria negro (junção de pretos e pardos) que conseguimos disputar projetos de nação. É a partir desse grupo racial (negros) que podemos afirmar que o processo de aniquilação total das populações negras – ainda em curso – não vingou no Brasil. A deseducação racial oferecida pelo nosso Estado consiste num projeto de apagamento físico, histórico e epistemológico. 

O rap carioca também nos ajuda a pensar a música como ferramenta de reeducação das relações raciais. Em “Favela Vive 2”, o rapper da Cidade de Deus, MV Bill, canta:

Na gaveta gelada do IML
Vários amigos que foram abatido pela cor da pele
Tática inimiga, bota a bala pra comer e menos um nigga
Atiram na nuca primeiro, derrubam certeiro, pra perguntar depois

A cada 23 minutos, morre um jovem negro no Brasil. As ruas têm dito muitas coisas, e um dos dizeres que ouvi recentemente é que ser negro no Brasil é nascer com uma marca na pele. Por vezes mais escura, por vezes mais clara. Mas a pele negra, o corpo negro, ainda é sinônimo de alvo numa sociedade racista.

Movimentos negros contribuíram para a ressignificação de termos como “negro” e “preto”, que foram, ao longo de nossa história, largamente utilizados para referir-se à população escravizada a fim de desumanizá-la, criando, nas populações negras, medo e dificuldade de associar-se à sua própria raça.

Em 1992, o compositor carioca Jorge Aragão compôs “Identidade”, que acabou por se tornar uma espécie de “hino” entre sambistas negros e negras:

Se o preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade

A reflexão de Aragão reforça que necessitamos de um processo de reeducação das relações raciais. Demandamos letramento racial para que encaremos questões como mestiçagem, miscigenação e racismo como projetos criados de forma legalizada pelo Estado brasileiro a fim de fazer vencer a ideia de um país com identidade branca. É essencial que façamos o resgate da nossa identidade levantado pelo sambista. E pela porta da frente. Só assim alcançaremos cidadania plena, como diria a intelectual Azoilda Loretto da Trindade.

A escravidão – legalizada – durou aproximadamente 350 anos no Brasil. O processo foi responsável por trazer cerca de 4 milhões (37% da população de escravizados trazidos para as Américas) de africanos e africanas para o país. Esse processo deixou feridas em nossos corpos, histórias e memórias. Afirmar que temos nome é um caminho para a conquista de nossas subjetividades. Afirmar que “a preferência é ser chamada de negona” em detrimento de termos como “morena” é se levantar diante do apagamento de nossas identidades como população negra. E é desta forma que, acredito eu, daremos continuidade aos caminhos abertos por nossos mais velhos e mais velhas, reconstruindo nossas histórias e buscando um futuro ancestral.

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Sobre As Experiências Africanas e Indígenas Nos Quilombos Brasileiros

por Stephane Ramos da Costa

As pesquisas sobre história do Brasil que não se referenciam por um viés colonial e europeu crescem de forma exponencial. São muitos os trabalhos que buscam analisar os processos históricos sob uma perspectiva que não invisibilize as experiências não brancas. De todo modo, o caminho ainda é longo, e há muitos embates a serem travados. Um exemplo que confirma isso são os conteúdos expostos nos currículos das escolas de grande parte do país, que perpetuam noções dualistas e simplistas e muitas vezes reproduzem narrativas que não pontuam as permanências e descontinuidades com o tempo presente. Vamos voltar no tempo: há grandes chances de que, no período em que você, leitor, teve algum tipo de contato com as experiências negras e indígenas no colégio, estas tenham sido representados pelo viés da colonização e escravidão. A narrativa oficial que permanece até os dias atuais nas escolas é de que os indígenas foram utilizados como mão de obra escravizada até a chegada de africanos, sendo substituídos logo em seguida pois eram “preguiçosos” para trabalhar nas grandes lavouras e na casa grande. Não há qualquer menção sobre possíveis interações entre esses dois grupos, e hoje a historiografia já expõe indícios suficientes para se comprovar o contrário. É sobre isso que este texto versará, a partir de uma breve resenha crítica de um dos clássicos da historiografia brasileira. 

A obra do historiador brasileiro Flávio dos Santos Gomes, intitulada Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil mobiliza muitos detalhes sobre as formações, dinâmicas e permanências de movimentos de resistência das populações de origens africanas e indígenas. O autor menciona que, entre os primeiros indivíduos sequestrados para o trabalho compulsório no território que hoje compreende o Brasil, já havia o que era chamado de mocambo – denominação mais antiga, registrada no final do século XVI – e, posteriormente, quilombos – a referência a esse nome vem de regiões da África Central, no sentido de designar “acampamentos improvisados”, passando a ser mais utilizado a partir dos séculos XVIII e XIX (GOMES, 2015, p. 10). Na maior parte dos casos, associamos essas ações como exclusivas das populações que os europeus vieram a nomear de africanos. E trata-se de uma inverdade, visto que, desde o século XVI, a colônia portuguesa designava alguns territórios da Amazônia como “mocambos de índios” para caracterizar locais onde indígenas que conseguiam fugir se instalavam (GOMES, 2015, p.59). 

Em um país que recebeu mais de 5 milhões de homens e mulheres do continente africano para sistemas de trabalhos compulsórios e perversos durante os mais de três séculos sob o regime escravista, acredito que o debate sobre os movimentos de fuga e construção de quilombos ainda se restringe muito ao Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga, e a comunidades exclusivamente africanas/crioulas. Essas ações proliferaram no Brasil como em nenhum outro país das Américas. A população cativa de origem indígena formava alianças e fortalecia seus agrupamentos. Há indícios de quilombos construídos por negros e indígenas nas regiões baianas (especialmente na área do sertão baiano), Goiás e Mato Grosso (GOMES, 2015, p. 60-61). 

Como já mencionado, por muitas vezes o senso comum e até mesmo os currículos escolares tratam as experiências das populações de origem indígena no cativeiro de forma rasa, reproduzindo a ideia de que estes foram logo substituídos pela mão de obra escravizada africana devido a “maus comportamentos”, como desobediência e preguiça, que contrastavam imediatamente com a população de origem africana, caracterizada por sua adaptação e obediência em terras brasileiras (GOMES, 2015, p. 58). Essa afirmação, além de reproduzir noções racistas de populações indígenas “preguiçosas”, faz a manutenção de um discurso – também preconceituoso – de indivíduos negros como naturalmente dispostos a trabalhar em regimes desumanos organizados pelo sistema plantation no Brasil e nas Américas.

O que os estudos historiográficos vêm demonstrando é a multiplicidade étnica dos agrupamentos de cativos durante o período colonial. Grupos indígenas como os xavantes, carijós, maracazes, araxás e pataxós eram alguns dos que construíam essa empreitada com africanos escravizados, oriundos de regiões como a África Central e Ocidental, Luanda, Senegâmbia, Baía do Benin, entre outros. Foram cenários para acolhimentos, mas também tensões, ocasionadas por diversos motivos. Essas comunidades de fugitivos por vezes eram projetadas ainda em ambiente de trabalho. Segundo Flávio Gomes, não é difícil imaginar essas populações fugindo juntas e concretizando seus objetivos ao construírem comunidades quilombolas. O autor expõe aspectos que demonstram as possíveis “zonas de proteção” e de trocas culturais no sentido de impedir que seus inimigos em comum – no caso, os setores coloniais – adentrassem seus territórios de resistência, tendo inclusive a presença dos chamados “caborés”, frutos das reproduções entre indígenas e africanos. Todavia, é importante não mobilizar narrativas que endossem perspectivas românticas e que tratem dessas convivências de forma estritamente pacífica. As tensões eram evidentes, visto que há indícios de sequestro de mulheres africanas e indígenas por parte dos quilombolas, bem como ataques e disputas étnicas sob muitas justificativas (GOMES, 2015, p. 60). Esses processos impactaram as sociedades no entorno, influenciando elementos como os conflitos entre quilombolas e colonos – dos quais dou ênfase para o grupos dos bandeirantes –, miscigenações e o que entendemos como “religiosidade”.  

Outra narrativa que aparenta estar muito disseminada no imaginário de nós brasileiros é a que descreve as dinâmicas dos territórios quilombolas de forma isolada. Enganam-se aqueles que acreditam não ter havido ao menos trocas comerciais entre os quilombos e as regiões do entorno. Esses espaços também eram edificados em regiões fronteiriças das colônias de Portugal e da França. Mesmo que esses fossem territórios de disputas, os fugitivos se aventuravam e se encontravam para realizar seus sonhos de liberdade. Muitos dos mocambos e quilombos foram construídos em locais que pudessem contribuir para a permanência de indígenas e africanos, como florestas e regiões que beiravam rios e cachoeiras, bem como territórios com imprecisões fronteiriças e jurídicas entre Portugal, França e Holanda. O território limítrofe entre Brasil e Guiana Francesa em diversos momentos era ocupado por quilombolas, com várias fontes documentais que comprovam as disputas espaciais de agrupamentos como os que eram erguidos entre o então Grão-Pará e a Guiana Francesa, assim como a região amazônica e a então Guiana Holandesa. 

As trocas comerciais também merecem destaque, visto que esses homens e mulheres possuíam perspectivas de maior autonomia ao tingirem roupas, plantarem na roça, pastorearem gado e fabricarem tijolos no verdadeiro sentido de, apesar do receio das tentativas de destruição por parte da colônia, construírem suas estratégias emancipatórias (GOMES, 2015, p. 66). Com acesso a documentos do século XVIII, é possível perceber as negociações que as próprias autoridades locais possuíam com os quilombolas de determinadas localizações ao norte do país. É mais um exemplo de que as experiências dos mocambos e quilombos e os setores dominantes eram regidas por constantes tensões e acordos, relações bem mais complexas do que algumas pessoas descrevem ao darem preferência a simples narrativas de fuga, total isolamento e confrontos. 

À guisa de conclusões parciais sobre a temática, reafirmo a necessidade urgente de buscarmos os indícios de relações mais estreitas entre as populações de origens indígenas e africanas, assim como ampliar nossos olhares sobre as experiências de afirmação e resistência de quilombolas. Esse é um dos caminhos para que as narrativas e disciplinas históricas possam ganhar novos contornos, que sigam no sentido de olhar esses corpos não brancos como protagonistas de suas próprias trajetórias.

Quais são as distâncias que separam Brasil e Moçambique? Poderíamos pensar que são as águas profundas e antigas dos oceanos Atlântico do lado de cá e Índico do lado de lá. Porém, se nos atentarmos melhor, perceberemos que existem muitos outros caminhos que podem ser traçados, ou, melhor dizendo, trançados.

Para esta edição da revista Amarello, que trata especialmente de afetos e resistências indígenas e negras, escolhi falar sobre o trabalho de Juh Almeida, diretora e fotógrafa baiana, residente em São Paulo. Na verdade, acredito que eu tenha sido escolhida porque, ao ver as imagens feitas durante sua estadia em Maputo, Moçambique, em abril de 2019 – resultado de um projeto premiado pela Secretaria de Cultura de Salvador junto com o Centro Cultural Brasil-Moçambique –, fui arrebatada pela profusão de beleza, cores e formas que Juh encontrou por lá. 

O intuito do projeto era dar aulas de fotografia para mulheres, mas o que vemos nas imagens são registros do cuidado de mulheres africanas com seus cabelos e tradições. As fotos aqui compartilhadas abordam dois momentos da fotógrafa em Moçambique: o seu encontro com Dona Aurora, retratada nas imagens em preto e branco e dona das tranças que abrem este texto. Uma mulher trabalhadora e atravessada pelas histórias permeadas por diferenças de classe no país, e um dia no salão de beleza da cabelereira Constance Chamboco, situado em Ngalanza, 7ª província de Maputo. As fotos coloridas por tons de rosa e verde água mostram Juh retratando crianças fazendo travessuras, mulheres cuidando de seus cabelos, trocando confidências cotidianas, transparecendo cumplicidade e familiaridade com as lentes. Imagens em que a fotógrafa nos mostra as semelhanças entre Moçambique e Brasil, algo que talvez só pudesse mesmo ter sido captado por uma mulher negra como a Juh. 

Ao reparar nas cores, texturas e jeitos de trançar, facilmente poderíamos confundir lá com aqui. A construção das belezas negras passa diretamente pelo afeto, pela diversão, pelo riso solto de Constance e de suas amigas e clientes, todas juntas. É um momento de celebração e encontro – ou melhor, reencontro. De Juh com o continente de seus mais velhos e de estéticas muito antigas que tanto no Brasil como na África se reinventam e se atualizam através das mechas de cabelos repartidos, no pente garfo que encontra e desfaz os nós do crespo prestes a ser entrelaçado por saberes ancestrais. As capulanas coloridas, tecidos tradicionais de Moçambique, adornam os corpos negros; o trançado parece uma costura.

Presenciar os processos de trançar em Maputo e em Salvador sugere uma travessia de saberes, uma permanência de vivências, que, por sua vez, estabelece um laço de identidade, um tipo de processo afetivo de construção da beleza que atravessa o mar e pode ser encontrado aqui. As tranças são, sobretudo, símbolos que não guardam apenas um rico patrimônio estético, mas também têm um sentido político: a experiência negra do trançar e do viver, com seus afetos, maneiras e pensamentos, seja na África, seja no Brasil, é uma experiência de luta e resistência. Estabelecer essas pontes de identidade é fortalecer-se com os dois lados do mar.

Em conversa com a Juh, tive a oportunidade de ler um fragmento do seu diário de viagem, relato que só coroa o que podemos ver nas imagens. Por isso, a convidei para assinar este texto comigo, compartilhando com vocês, leitores, algumas passagens:

Maputo, 26 de abril de 2019

Por Juh Almeida

Som de cabelo sendo penteado por um pente garfo, música baixa no rádio, vozes de mulheres falando como se cantassem, “homem, pega ali minha cerveja”, “trança do lado de cá também”, “você acha mesmo que eu fico bonita com esse penteado?” E foi com essa paisagem sonora que meus pés me levaram para dentro do salão da Constance, na sétima província de Maputo, em Moçambique. Com a licença, entrei, cumprimentei cada uma delas e meu coração confirmou que já nos conhecíamos há muito tempo. Meu corpo de mulher negra, afro-brasileira e diaspórica tremeu ao atravessar o Atlântico e pisar no Índico, e ali, entre as paredes esverdeadas, eu lembrei do mar, e não me sentia mais naufragada, mas como se pisasse em terra segura. Fui arrebatada pela potência e força que emanava daquelas mulheres. Suas histórias escoavam pelos meus pensamentos como lembranças antigas, do verde-água pintado pela própria mão da Constance, mão ligeira que agora ali trançava o cabelo das suas amigas, mãos que seguravam sua filha nos braços, mãos que amarraram como presente uma capulana na minha cintura e que, em um abraço-acalanto, eu pude entender: eu estava em casa.

Que possamos seguir em boas travessias.

Com afeto.


Detalhe de Se eu Fosse Vocês Olhava pra Mim de Novo, da série Pardo é Papel (2019)

No espaço da pintura, Maxwell compreende que pode manipular as marcas e símbolos que moldam as vidas e ditam os comportamentos”

#37Futuros PossíveisArteArtes Visuais

Pardo é papel: Maxwell Alexandre

O nome de Maxwell Alexandre apareceu quase instantaneamente no campo das artes. Em apenas 4 anos, o artista saiu do anonimato para a fama internacional. Literalmente, da Rocinha, a maior e mais populosa favela brasileira, onde nasceu e vive, para um dos museus de arte contemporânea mais prestigiados do mundo, o Palais de Tokyo, em Paris, onde tinha exposição marcada para junho de 2020 (adiada para outubro de 2021 devido à pandemia de Covid-19).

Narrada assim, sua história ganha ares de conto de fadas. Mas a verdade é que, por mais breve que seja, sua ascensão é marcada por determinação e, talvez mais importante do que isso, pelo entendimento lúcido sobre como funciona o circuito das artes. Lugar que, como ele mesmo aponta, é um espaço de privilégios, movido por uma lógica branca e elitista. Não por acaso, sua obra, contundente, fala sobre a cultura da sua comunidade, predominantemente preta e pobre.

Formado em Design pela PUC-Rio, onde foi aluno bolsista, foi lá que teve seu primeiro contato com a arte contemporânea, através das aulas com o artista Eduardo Berliner. Esse encontro foi decisivo para que compreendesse que era este o caminho que perseguia. A partir desse momento, começou a estudar a lógica do campo da arte e entendeu que era preciso operar de forma estratégica. De cara, compreendeu que se intitular “artista” trazia mais prestígio do que “designer”, além de alargar as possibilidades do seu futuro profissional. 

Foi em 2017, no evento Carpintaria para Todos, promovido pela galeria Fortes D’Aloia e Gabriel, no Rio de Janeiro, a primeira vez que Maxwell pendurou uma obra sua na parede de uma galeria tradicional do sistema das artes. Nesse dia, as portas estavam abertas a todos que aspiravam um espaço no circuito (e mercado) das artes. Bastava chegar com um trabalho que não ultrapassasse as dimensões da porta de entrada. Maxwell apresentou a obra Tão saudável quanto um carinho (2017) – parte da série Reprovados, que “surgiu para tratar de questões mais ácidas da vivência preta, como o conflito da comunidade com a polícia, a dizimação e encarceramento da população negra, a falência do sistema público de educação”, conforme escreve. 

Do evento na Fortes D’Aloia e Gabriel, Maxwell passou a ser artista representado pela galeria A Gentil Carioca, que o levou para a consagrada feira Art Basel. Apadrinhado, partiu para uma residência na Delfina Foundation, em Londres, e outra em Lyon, que resultou na sua primeira individual fora do país, Pardo é papel, no Museu de Arte Contemporânea de Lyon. No retorno ao Brasil, a mostra itinerou por importantes instituições nacionais, como o Museu de Arte do Rio de Janeiro e a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Nesse percurso, fez também sua primeira exposição solo no Reino Unido, na galeria David Zwirner, de Londres. 


Sem título, das séries Novo Poder e Pardo é Papel (2019)

Se o primeiro trabalho apresentado ao circuito trazia uma visão mais dura e pesada da periferia – e, é necessário apontar, extremamente realista –, expondo tudo aquilo que fica perversamente velado pelos donos do poder, a série Pardo é papel traz um pouco mais de humor. Nela, a figura do homem preto aparece em meio aos símbolos e marcas que representam o status de poder e de bonança dentro da favela. Danone, Toddynho, Adidas, correntes de ouro, jatinhos, carros conversíveis se misturam ao brasão da polícia, aos uniformes escolares da rede pública de ensino, à laje, à piscina de plástico da marca Capri (cujo desenho padrão se espalha como pano de fundo de muitas das obras), às viaturas de polícia, às armas. É possível identificar representantes da luta social, bem como ícones da cultura popular. Marielle Franco marca presença. E os pretos ascendendo às camadas de poder, também. 

Ao pintar corpos pretos sobre o papel pardo, afirma o ato estético também como político. Pardo é a designação utilizada em documentos oficiais, como certidões de nascimento, e pelo Censo do IBGE, por exemplo. Entretanto, hoje em dia, a comunidade preta entende que tal denominação está ligada a um processo de clareamento, e negação, da sua verdadeira cor. O crescimento das discussões e a tomada de consciência da população preta passa também pela construção de uma autoestima que aceita e enaltece suas características e que passa a enxergar, nesse tipo de termo, uma conotação pejorativa.

O personagem de cabelo descolorido que aparece nas pinturas é seu autorretrato. No espaço da pintura, Maxwell compreende que pode manipular as marcas e símbolos que moldam as vidas e ditam os comportamentos. Ao deslocar essa realidade para o plano pictórico, dando-lhes um novo tempo e espaço, seus trabalhos possibilitam o questionamento não apenas dos valores sociais, mas do lugar do preto em nossa sociedade, que por tantos anos negou sua existência. Os títulos de algumas de suas obras fazem essa conexão de forma direta: O mundo é nosso, Se eu fosse vocês olhava pra mim de novo, Até Deus inveja o homem preto, etc.


Detalhe de Pisando no Céu, da série Pardo é Papel (2020)

Detalhe de Megazord Só de Power Ranger Preto, da série Pardo é Papel (2018)

O grande formato de suas pinturas também tem a ver com isso. “Achei pertinente assumir esse formato de pintura monumental, para intensificar o diálogo entre a quantidade de papel articulada e o número de corpos pretos em posições contemporâneas de poder”, escreve em texto publicado no catálogo da exposição Pardo é papel. Para quem teve a oportunidade de ver tais obras ao vivo, fica evidente o contraste criado pela monumentalidade das obras e a fragilidade do material, que acaba tendo rasgos e remendas aparentes, algo que foi pensado propositalmente pelo artista. 

Maxwell é membro d’A Noiva, ou a Igreja do Reino da Arte, que reúne artistas de várias áreas e onde acontecem encontros, exposições, trocas de ideia, além de rituais próprios das igrejas, como batismo, peregrinações e festas. É também a partir desse templo, como ele se refere, que tenta levar a arte contemporânea para dentro da comunidade onde vive, na Rocinha. Ali, ele propõe o autoconhecimento e a salvação pela arte. É mais um caminho que traça para aproximar a favela do sistema excludente da arte contemporânea. Em um post em sua conta do Instagram, publicado em 27 de dezembro de 2019, ele escreve sobre um culto de batismo realizado na Igreja: “A Igreja se instalou aqui na favela muito para fazer valer de fato as máximas idealizadas e romantizadas pelo circuito: a Arte democrática, a Arte para salvação do mundo. Isso nunca foi uma verdade aqui, porque a Arte como objeto de valor especulativo e principalmente distinção social tem sido um programa implementado para que os crias daqui não se sintam à vontade de chegar perto, consumir ou entender. Se é que precisa entender, neh (sic)?”

A relação que mantém com a música, como pessoa e em sua produção artística, também faz parte dessa estratégia. Suas maiores referências e pares de trabalho são cantores de rap, sobretudo da geração atual, como Baco Exu do Blues, Djonga e Bk’. O rap é uma inspiração direta para sua pintura e também uma escolha perspicaz de como aproximar a sua comunidade do campo das artes visuais.


Detalhe de Não foi Pedindo Licença que Chegamos Até Aqui, da série Pardo é Papel (2018)

Poucas pessoas têm a coragem de falar sobre o sistema das artes com a franqueza que o faz Maxwell Alexandre. Para ele, nascido na periferia – um lugar aonde a arte não chega porque não há tempo a perder com algo que alimente o espírito e não mate a fome depois de um dia de trabalho –, o entendimento da arte como um lugar de privilégio e de acúmulo de capital simbólico e econômico é claro. Ciente de tudo isso, e uma vez dentro do sistema, seu trabalho vai na direção de provocar e desestabilizar esse cenário. Sua obra aparece em um momento em que a luta contra o racismo tem tomado força e somado vozes. Sua trajetória, sua obra e sua posição jogam essa luz no centro do campo da arte, ao mesmo tempo que apontam, também, para a necessária reflexão sobre a estrutura social como um todo. É preciso olhar atentamente cada pincelada, que, mais do que tinta e domínio técnico (e este está, sim, presente), sinalizam que os pretos não vão mais ficar calados. E nem poderiam. A nós, brancos, cabe, mais do que contemplar, refletir. 


Dalila Retocando Meus Dreads, da série Pardo é Papel (2020)
#37Futuros PossíveisArtigo

O pensamento indígena contemporâneo e o papel da mulher na cultura Pankararu

por Elisa Urbano Ramos

Na narrativa mítica, na orientação espiritual e cotidiana do Tronco Pankararu, há uma visão de uma figura feminina vista como mãe do criador e da criação, a mãe natureza, que compreende e protege os espaços onde há vidas. Todos os seres vivos humanos e não humanos, também as pedras, as águas e espíritos sagrados femininos e masculinos. O entendimento e conhecimentos deixados por nossos antepassados: os saberes tradicionais.

Introdução

Ao constituir essa composição, procuramos buscar elementos a partir de dois contextos. O primeiro momento foi mergulhar no interior das aldeias e, assim, encontrar essências que fazem essa trajetória entre o passado e o presente. O segundo momento foi tecer um olhar acerca do que está conjugado sobre questões indígenas atualmente. O objetivo foi encontrar, a partir dessas reflexões, a importância da presença das mulheres nesses lugares.

A princípio, nosso lugar de fala é o território sagrado do Povo Pankararu. Nesse sentido, podemos dizer que vivemos em uma sociedade matriarcal também, dada a presença de grandes lideranças femininas que atuam nos mais diversos campos, seja na tradição ou em questões de políticas públicas.

Dessa forma, voltando a meio século atrás, ou um século, o convívio na aldeia teve, em diferentes momentos e espaços, várias mulheres que hoje seriam chamadas de lideranças, mas que naquele contexto eram mulheres de notoriedade, portanto figuras emblemáticas, que conduziam as demais pessoas no sentido de orientá-las individualmente e atuavam à frente de atividades coletivas.

O Povo Pankararu tem um histórico de lideranças femininas de bastante destaque em todos os campos. Desde a atuação com os saberes tradicionais e a organização social, de cunho interno, até outros campos diversos e políticos, como a participação em estâncias municipais, estaduais e nacionais, bem como a atuação no movimento indígena no que diz respeito a questões como educação, saúde e outras demandas que acontecem em espaços externos.

As mulheres da Tradição

Conforme os ensinamentos dos mais velhos e mais velhas, que são passados de geração a geração, existem seres sagrados em forma de mulheres, com hábitos de mulheres. Portanto, somos seres divinos na nossa representação e, no mundo dos mistérios espirituais, a essência feminina se faz presente em um mesmo patamar que os seres sagrados masculinos.

Muitas são as mulheres Pankararu que possuem a qualidade de guardiãs e detentoras de saberes tradicionais, que recebem ensinamentos da Mãe Natureza que chamamos de “dom”. São práticas que se traduzem através dos conhecimentos sobre a medicina tradicional em toda a sua diversidade e os procedimentos de cura. As mulheres também são capazes do conhecimento dos rituais e dos cantos de contato com os encantados, além de tantos outros procedimentos ligados a esses costumes.

Nossas mulheres conhecem e podem participar dos processos de cura, podem conduzir e zelar pelos objetos e rituais sagrados que simbolizam a crença, cozinhar a comida sagrada para os rituais e outras atividades. Devido aos saberes que essas mulheres detêm, elas são consideradas sábias, na mesma dimensão dos homens que detêm esses saberes e ocupam esses espaços considerados sagrados.

O encontro do tradicional com a contemporaneidade

Como os tempos vão passando e a história permanece, pensamos na contemporaneidade sob vários aspectos e vertentes, mas sem fugir da valorização e do fortalecimento da cultura Pankararu. As mulheres emblemáticas que, no passado, eram rezadeiras, curandeiras, parteiras, artesãs, chefes da tradição, chefes de família vão atravessando um caminho no tempo em que vão se encontrando com outras mulheres que são caciques, pajés, lideranças políticas, profissionais de saúde e de educação escolar, representantes de organizações de estudantes, de mulheres, associações, etc.

Nesse sentido, a contemporaneidade não tira o espaço do tradicional, mas se soma a este e se torna um conjunto de ações de fortalecimento, de luta por direitos, de valorização aos aspectos da cultura. Podemos encontrar diversas pessoas que protagonizam esse campo, ou esses campos tão diversos, mas que se encontram e se articulam.

Um dos tantos exemplos que trazemos aqui é que o Povo Pankararu é considerado um dos povos que atualmente têm o costume e a valorização do parto feito por parteiras do lugar, hoje chamadas de tradicionais. Esse fenômeno se deve ao fato de termos na história famosos nomes de parteiras, lembrados e seguidos como exemplo até os dias de hoje. 

O que fez com que essa tradição continuasse, já que o nosso acesso a bens da modernidade aumentou? Pois então! Não estou falando apenas de mulheres que fazem partos em casa, mas, sobretudo, mulheres que trazem consigo uma boa parte dos saberes diversos citados acima. Por isso inspiram confiança; pela ligação de fé e a relação com o sagrado que possuímos.

O que vem à nossa memória agora é a influência e a participação ativa que algumas mulheres do povo tiveram nos movimentos e atividades coletivas com a institucionalização das políticas públicas para saúde e a educação escolar indígena, embora, em relação à questão da terra, ainda haja uma complexidade de luta maior. A importância dessas poucas mulheres presentes é que, gradativamente, esse quantitativo vai aumentando.

Para o movimento indígena, essa questão é a mais importante, no sentido de que “a luta pela terra é a mãe de todas as lutas”. Na história Pankararu, a luta pelo território não seria diferente. E a participação das mulheres sempre foi efetiva, desde a década de 1930. Por exemplo, na Constituinte de 1988, Quitéria Binga Pankararu, que lutou juntamente com outras lideranças pela regulamentação do território e foi vítima de ameaças, mas faleceu em sua cama. Sua história é um grande exemplo e legado de lutas e conquistas do povo. Ainda hoje nossas lideranças femininas estão ameaçadas, por isso estão sob proteção dos defensores dos direitos humanos.

A luta pela terra por parte das mulheres começa com o zelo pela terra como mãe de todos os seres humanos e não humanos, árvores, vegetais e minerais. A proteção da terra é o que garante nossa sustentabilidade física, cultural e espiritual. É um território sagrado, morada dos nossos ancestrais, local dos espaços e rituais sagrados. Nossas mulheres têm uma identidade com a terra, com a narrativa mítica, por isso sua participação é tão expressiva em todos os contextos sociais, em Pankararu e além do território Pankararu.

As aldeias são os pontos de partida que dimensionam a construção dessas personalidades; a relação de convivência com pessoas mais velhas e o envolvimento nos movimentos internos são estruturas que norteiam essa trajetória. Para além da vivência, se constitui indiretamente uma relação de aprendizado dos saberes passados através das pessoas sábias nos povos. Nesse sentido, é importante mencionar os diferentes espaços de representatividade em que diferentes mulheres atuam, buscando na história, a partir da memória de nossas interlocutoras até a atualidade.

Assim, traçamos uma caminhada aos espaços que essas mulheres ocupam e como suas atitudes marcam suas presenças, traduzindo, através de um contexto momentâneo, o histórico de diversas formas organizativas no estado de Pernambuco e além deste.

Apresentaremos aqui organizações de mulheres e outras instituições de caráter e mistos, que atendem homens e mulheres, e outros coletivos que se destinam a uma população que inclui índios e não-índios. Nesses espaços, as mulheres se destacam na defesa da presença indígena, na busca de seus direitos e no reconhecimento de suas diferenças. A especificidade dessas organizações é que estão ligadas a bases como as organizações de jovens e mulheres e as associações comunitárias, mas elas podem ultrapassar as fronteiras das aldeias e compor conselhos municipais, estaduais e nacionais de diferentes naturezas. 

Educação escolar

Embora o protagonismo das líderes mulheres seja secular e inspire essa nova geração pós-anos 1990, há um marco temporal relativo a uma retomada das discussões sobre educação escolar indígena a partir do qual novas reflexões foram fortalecidas diante de alguns dilemas nos lares das professoras que representavam seus povos.  

Falaremos sobre a questão de dualidade indígena para além das questões de gênero e sobre a importância das lideranças tradicionais, que se configuram em pajés, caciques e detentores/as de saberes tradicionais, também ligados à espiritualidade, que em certas ocasiões transportam seus papéis diretamente das aldeias para se unir a pessoas consideradas como lideranças políticas. Essa segunda categoria pode ter o perfil da primeira, mas possui uma identidade de entendimento mais técnico sobre os assuntos que se coloca a debater, e até está mais ligada à luta por questões institucionais, como educação escolar, saúde, enfim, contextos administrativos.

As lideranças femininas desse movimento foram constituídas no decorrer de uma luta por direitos relacionada às instituições escolares presentes nos territórios indígenas e aos elementos objetivos e subjetivos relacionados a elas. Nesse caso, ganha visibilidade esse papel de influências e, consequentemente, o fato de estarem em um espaço de poder devido à sua função social própria e às relações que a partir dali são tecidas.

Mesmo antes de 1999, já havia uma mobilização por parte das lideranças indígenas no sentido de refletir sobre “a escola que temos e a escola que queremos”, trazendo à tona a necessidade gritante de uma escola que fortalecesse e valorizasse a cultura daqueles grupos e, principalmente, existisse em prol de um projeto societário e de futuro. Essa mobilização foi intensificada em 1999 por força da legislação vigente, que, naquele contexto, contemplava os ideais do movimento indígena e indigenista e, sobretudo, as necessidades dos povos indígenas.

Ao fazermos menção ao protagonismo das mulheres, poderia se pensar que, naquele contexto, em Pernambuco, o número de mulheres professoras era maior. No caso dos povos indígenas, havia uma característica diferente nessas profissionais, que diz respeito ao perfil. Atender a esse perfil é exatamente ir além do espaço escolar, nas lutas coletivas dos seus povos. Trata-se da relação de convivência com os demais membros da comunidade no que tange ao projeto societário, uma educação escolar articulada com a vida nas aldeias.

No que se refere à educação escolar indígena e o protagonismo das mulheres, temos a estruturação da COPIPE como organização indígena de âmbito estadual. A Comissão de Professores/as Indígenas em Pernambuco (COPIPE), desde sua criação em 2000, é composta pela representação de duas professoras e uma liderança de cada um dos 11 povos que a compõem: Xukuru, Kapinawá, Tuxá, Pipipã, Kambiwá, Pankararu, Entre Serras Pankararu, Pankaiucá, Atikum, Pankará e Truká.

Essa participação mais efetiva de mulheres no campo da educação escolar indígena, em todos os povos e ao mesmo tempo, não se resume aos muros dos prédios escolares nem a ações meramente pedagógicas. Alcança uma dimensão social muito intensa e de caráter crescente, à medida que se interlaça a outras temáticas, a outros sujeitos internos e externos. Ou seja, perpassa o que comumente se trata da instância escolar nas demais sociedades não-indígenas. 

Contextualizar a trajetória da educação escolar indígena nesses últimos vinte anos consiste também em observar suas formas de aplicabilidade nas aldeias e pelos mecanismos governamentais. Encontraremos entraves e conquistas, mas uma luta constante através das mulheres mencionadas aqui. A partir de suas reflexões sobre o papel da mulher indígena em seus territórios, elas abrem caminho para outras agentes de transformação e se tornam corresponsáveis pelo formato de organização de mulheres em Pernambuco.

No entanto, não podemos deixar de mencionar a célebre frase do movimento indígena em Pernambuco: “educação indígena se aprende mesmo é na comunidade, e a escola sistematiza esses saberes” – o que nos remete a uma conexão contemporânea entre os saberes da escola e os saberes do Povo.

Saúde

Para os povos indígenas, em suas maneiras de viver antes e depois do contato com o colonizador, houve e ainda há a convivência com seus próprios sistemas de saúde. Tratar da saúde indígena como sistema ou sistemas também é compreender que existe uma rede de elementos relacionados a um complexo envolvimento de saberes, desde o conhecimento das plantas nativas até a comunicação com os espíritos sagrados.

A partir dessa compreensão, vamos pontuar ações em que se destacam mulheres tanto nas práticas de saúde tradicional como na militância pelo direito aos serviços de saúde no âmbito das políticas públicas, bem como na execução e administração destas. Essas figuras femininas possuem conhecimento sobre a manipulação das ervas nas diversas formas de cura e rituais envolvendo outros elementos da natureza. A partir das práticas dessas pessoas em prol da saúde da comunidade, várias são as denominações a elas atribuídas: parteiras, pajés, curandeiras e benzedeiras, entre outras.

Para buscarmos nossas personalidades no âmbito da saúde indígena, que chamamos de medicina tradicional, se faz necessário compreender esta como uma rede saberes que existe há séculos, sendo, por isso, um sistema de saúde que perpassa gerações e gerações e sobrevive até os dias de hoje. Esse sistema de cura tem as mais variadas dimensões, compreendendo a cura das mazelas do corpo, da mente e da alma, o que, obviamente, tem a ver com a forma de vida desses povos.

Considerações

Ao observar e trazer experiências no Povo Pankararu sobre contemporaneidade e atuação de mulheres, podemos afirmar que há um feminismo indígena em curso, protagonizado por lideranças femininas que atuam em diversas áreas sociais e em conjunto com os homens nos blocos de direitos coletivos.

Nessa construção histórica, de ação participativa nas aldeias e de luta dentro do movimento social, barreiras vão se rompendo, e as mulheres vão ganhando acesso ao mundo que subjetivamente se propõe aos homens. Esse movimento de ação contínua nos faz compreender que mulheres indígenas não são apolíticas e que a ação dessas mulheres vem trazendo uma nova onda de feminismo.

A partir dos nossos acompanhamentos e observações, podemos definir feminismo indígena como um conjunto de ações das mulheres indígenas em prol dos direitos coletivos, que refletem, no presente, a trajetória de luta dessas mulheres fortalecidas nas suas espiritualidades, de forma que seus corpos estão para seus territórios como um corpo coletivo dotado de histórias, culturas e memória de seus antepassados. Além disso, na sua especificidade, comunga com a luta de outras mulheres contra violências de qualquer natureza.

Falar de feminismo indígena é falar do heroísmo dessas mulheres que, na condição de seres humanos, a partir do sofrimento e das angústias de seus povos, chamam para si a luta pela causa coletiva. Onde e em quem buscar compreen- são e colaboração para situações tão diferentes de nobreza e de conflitos? A busca na ancestralidade traz respostas para que a força da palavra convoque os homens a conjuntamente conduzirem essas jornadas. Mas também é preciso vencer o pensamento machista, que, infelizmente, ainda é uma mazela dentro dos povos e do movimento indígena.

Resenha de
“Tudo Sobre O Amor: Novas Perspectivas”

Este texto é mais um convite do que propriamente uma resenha. É um desafio imenso resenhar as 269 páginas de um livro essencial para pensarmos o amor na contemporaneidade. Em especial, o amor dentro, com e para comunidades negras. Assim, apresentarei brevemente cada um dos capítulos de Tudo sobre o amor para, posteriormente, tecer algumas costuras e reflexões. O livro foi escrito em 2000 e é o primeiro de uma trilogia, da qual também fazem parte Salvação: pessoas negras e amor e Comunhão: a busca feminina pelo amor.

Cabe, também, retomar brevemente a trajetória da autora. bell hooks tem sido uma voz erguida no sentido das lutas das mulheres negras em âmbito mundial. Seu nome de registro é Gloria Jean Watkins, mas a feminista negra adotou o nome de sua avó, Bell Blair Hooks. A grafia em letras minúsculas de seu nome revela um importante aspecto sobre as narrativas evocadas pela escritora: para ela, o conteúdo de sua escrita deve pesar mais do que sua pessoa ou seu nome. Nascida em Hopkinsville, uma cidade ao sul dos Estados Unidos, bell se tornou professora e doutora em Literatura. Sua produção é vasta, já tendo escrito mais de trinta livros, entre eles Ensinando A Transgredir – A Educação Como Prática da Liberdade (2013, Editora Martins Fontes), Olhares Negros: raça e representação (2019, Editora Elefante), Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra (2019, Editora Elefante) e Tudo sobre o amor: novas perspectivas (2021, Editora Elefante), para o qual dedicarei as próximas linhas deste texto. Assim, estruturarei a apresentação em prefácio + 14 pílulas – nem sempre doces – sobre o amor.

PREFÁCIO – Sobre a arte de abrir caminhos

Prefácios me encantam. São a porta de entrada para os livros. Na publicação apresentada aqui, a responsável por abrir caminhos é Silvane Silva, doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora e pesquisadora do CECAFRO/PUC-SP. O prefácio à edição brasileira expõe uma perspectiva essencial para a leitura do livro: o amor é centro, e não margem. Se na canção “Deuses Ateus” o cantor e compositor Djonga afirma que “em tempos de ódio conservador, amar e mudar as coisas é luxo”, Silvane destaca que o desamor tem sido a ordem do dia. Diante disso, falar e praticar amor, em suas diversas formas, pode ser algo revolucionário.

INTRODUÇÃO: “Tocada pelo amor”

Na introdução a Tudo sobre o amor, a autora revela um aspecto que é essencial para a leitura do livro: o amor é necessário em qualquer movimento por justiça social.

hooks também fala sobre uma frase vista por ela em um grafite em Connecticut onde se lia “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. Essa frase inspirou reflexões e um movimento de autoencontro com bell. Algum tempo depois, uma construtora pintou o muro do grafite de branco, restando algumas linhas que tornavam possível – e difícil – inferir a frase. Isso motivou um encontro de bell com o artista, onde refletiram que o desejo público de ser amado pode ser visto como ameaça numa sociedade onde o desamor é a norma.

1. “Clareza: pôr amor em palavras”

No primeiro capítulo da publicação, hooks expõe que somos ensinados a chamar muitas coisas de amor. Isso torna o ato de amar mais difícil. O amor necessita de uma série de elementos; entre eles, afeição, respeito, carinho, comunicação aberta, reconhecimento e compromisso. Segundo a autora: “Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento” (hooks, 2021, p.55).

Amor é ação.

2. “Justiça: lições de amor na infância”

O machismo e o patriarcado são barreiras para o amor:

Um dos mais importantes mitos sociais que precisamos desmascarar se pretendemos nos tornar uma cultura mais amorosa é aquele que ensina os pais que abuso e negligência podem coexistir com o amor. Abuso e negligência anulam o amor. Cuidado e apoio, o oposto do abuso e da humilhação são as bases do amor. Ninguém pode legitimamente se declarar amoroso quando se comporta de maneira abusiva. Porém, em nossa cultura os pais fazem isso o tempo todo. As crianças escutam que são amadas, embora estejam sendo abusadas. (Idem, p. 64)

A punição severa não deve ser vista como ação positiva nos processos educativos. É na infância que temos o primeiro contato com o amor, a partir de nossas famílias. Isso chama atenção para a importância de garantirmos direitos para crianças e adolescentes. O desamor na infância acompanha o indivíduo por toda a sua trajetória, criando celeumas pessoais e coletivas.

3.“Honestidade: seja verdadeira com o amor”

Vivemos em uma sociedade onde a mentira é uma ferramenta para a manutenção do poder. O capitalismo e o consumismo também estimulam a mentira e o desamor.

Para termos uma sociedade pautada no amor, precisamos nos reeducar a partir da prática de emitir e receber verdades. A prática de temer a verdade – acreditando que ela sempre dói – nos afasta do amor.

4. “Compromisso: que o amor seja o amor-próprio”

O amor-próprio deve ser a base da prática amorosa. Os movimentos feministas contribuíram para que mulheres percebessem o poder da autoafirmação positiva. Muitas mulheres consideradas bem-sucedidas se observam em processo de auto-ódio, o que muitas vezes mina suas próprias realizações e seu encontro com o amor-próprio. Necessitamos trazer o amor para perto. A autora observa que: 

O amor-próprio não pode florescer em isolamento. Não é uma tarefa fácil amar a si mesmo. Axiomas simples que fazem o amor-próprio soar fácil só tornam as coisas piores. Eles levam muitas pessoas a se perguntarem por que continuam presas a sentimentos de baixa autoestima e auto-ódio se é assim tão fácil se amar. […] Quando vemos o amor como uma combinação de confiança, compromisso, cuidado, respeito, conhecimento e responsabilidade, podemos trabalhar para desenvolver essas qualidades ou, se elas já forem parte de quem somos, podemos aprender a estendê-las a nós mesmos. (Ibidem, p. 94)

5. “Espiritualidade: o amor divino”

A autora percebe que o interesse pela espiritualidade foi cooptado pelo capitalismo e pelo materialismo na sociedade estadunidense. Ir à igreja ou ao templo religioso não tem sido o suficiente para preencher o vazio observado nas sociedades contemporâneas, pois esse vazio vem de dentro, da alma:

O compromisso com a vida espiritual necessariamente significa que abraçamos o princípio eterno de que o amor é tudo, todas as coisas, nosso verdadeiro destino. Apesar da pressão massacrante para nos conformamos à cultura do desamor, nós ainda buscamos conhecer o amor. Essa busca em si é uma manifestação do espírito divino. (Ibidem, p. 115)

6. “Valores: viver segundo uma ética amorosa”

Para despertarmos para o amor, é necessário abrir mão da obsessão pelo poder. É necessário adotar uma ética amorosa, que abarque, inclusive, posicionamentos políticos como a empatia com pessoas que vivem sob sistemas de opressão.

O medo da mudança faz com que muitos de nós entremos num processo de traição contra nós mesmos. A mídia tem papel importante nisso, expondo massivamente imagens de desamor, ódio e violência. Não somos educados a ver o amor. 

Nosso espírito percebe quando agimos de forma antiética, e isso torna os caminhos para o amor mais tortuosos. Encarar nossos medos é uma das formas de se aproximar de uma ética amorosa pautada por cuidado, conhecimento, vontade de cooperar e respeito.

7. “Ganância: simplesmente ame”

A sociedade contemporânea tem se baseado na cultura do consumo desenfreado e do individualismo, em que o isolamento e a solidão causam ondas de depressão que acometem parcelas enormes da população mundial. Pessoas são tratadas como objetos. A autora provoca um exercício de viver a partir da simplicidade, o que nos conecta à comunidade e ao amor.

8. “Comunidade: uma comunhão amorosa”

O capitalismo afastou as famílias nucleares de suas famílias estendidas, fragmentando comunidades inteiras. Isso causa uma desordem sentimental e social, uma vez que é nas comunidades que começamos a construir e fortalecer laços de amizade. Esses vínculos nos trazem lições importantes na construção de núcleos familiares e do amor romântico.

O amor que criamos em comunidade nos acompanha pelo resto da vida.

9. “Reciprocidade: o coração do amor”

O amor nos permite adentrar o paraíso. Ainda assim, muitos de nós esperam do lado de fora, incapazes de cruzar o portal, incapazes de deixar para trás todas as coisas que acumulamos e que se interpõem entre nós e o caminho para o amor. Se, durante a maior parte de nossa vida, não fomos guiados no caminho do amor, geralmente não saberemos como começar a amar, o que deveríamos fazer e como deveríamos agir. (Ibidem, p.179)

Uma importante lição sobre o amor: é essencial olhar para nós mesmos. bell hooks estrutura este capítulo a partir de duas experiências amorosas que foram marcantes para ela, e isso nos empurra para um profundo mergulho em nós mesmos e nossos próprios caminhos.

Geralmente, são desenhados papéis dentro dos relacionamentos. Um é responsável por criar e cultivar o amor, enquanto o outro apenas o segue. Isso estabelece um jogo de poder nocivo para o amor. Precisamos rompê-lo, baseando-nos no princípio da reciprocidade.

10. “Romance: o doce amor”

O capítulo nos lança uma afirmação que soa como um soco na boca do estômago: “poucos de nós entram em relacionamentos românticos tendo capacidade de receber amor” (Ibidem, p. 200). Projetamos relacionamentos baseados em nossos traumas familiares e comumente temos dificuldade de olharmos para nós mesmos nos processos de busca pelo amor romântico. Ao longo de nossa vida, é introjetada uma ideia de que o amor necessita apenas de si próprio para existir. Porém, sem construção e investimento, não há amor.

11. “Perda: amar na vida e na morte”

A morte é um tabu em nossa sociedade, gerando uma sensação de medo coletiva baseado em estruturas de poder: “Culturas de dominação cortejam a morte. Por isso a fascinação constante pela violência, a falsa insistência de que é natural os fortes atacarem os fracos, os poderosos atacarem os sem poder. Em nossa cultura, a adoração da morte é tão intensa que se põe como obstáculo ao amor” (Ibidem, p.221).

O medo de parecermos fracos nos faz não olhar para a perda. hooks nos convida a fazer o inverso: olhar para o medo e deixar que ele nos olhe.

12. “Cura: o amor redentor”

Ao longo de nossas trajetórias, o sofrimento é inevitável. Mas está em nossas mãos o poder de decidir o que fazer com essas feridas. A cura é um ato de coletividade e comunhão. Curas individuais são árduas e muito mais propensas a possíveis decepções.

O amor é capaz de redimir. Retomando a frase que a autora destaca do grafite na introdução do livro, “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. E a busca continua porque, apesar de todo o desamor em nosso entorno, o amor é capaz de curar e regenerar. É necessário que comecemos um movimento de fazer as pazes com nós mesmos e com os outros através do amor.

13. “Destino: quando os anjos falam de amor”

Os anjos são aqueles que nos trazem boas notícias, que dão alento ao coração. Na igreja, a autora aprendeu que os anjos são “consoladores sábios nos momentos de solidão”. O amor divino muitas vezes traz conforto em momentos de solidão e os anjos são fortes aliados nesse sentido: 

Donos de perspicácia psíquica, da intuição e da sabedoria do coração, eles mantêm a promessa da vida plena por meio da união entre o conhecimento e a responsabilidade. Como guardiães do bem-estar da alma, eles cuidam de nós e conosco; Nossa virada em direção aos anjos evoca nosso anseio de abraçar o crescimento espiritual. Revela nosso desejo coletivo de regressar ao amor. (Ibidem, p.253)

O poeta Lande Onawale escreveu: “O amor é coisa que mói, muximba. E depois o mesmo que faz curar” – frase que pego emprestada para intitular este texto. E o faço porque entendo que Onawale e hooks se encontram, se entrelaçam e se complementam. O amor é aquilo que dói. Requer compromisso e responsabilidade, em especial numa sociedade pautada no desamor e na violência. Mas, ao mesmo tempo, é com e para o amor que podemos alcançar a liberdade.

Nos contam mentiras sobre o amor. A sociedade não nos ensina a amar. E nem nos empodera do gesto revolucionário que é o amor. bell hooks relaciona o amor com os principais problemas da sociedade contemporânea, observando que são as ações que constroem os sentimentos e que ele o atravessa enquanto comunidade. O amor não nasce e cresce sozinho. Amor é construção cotidiana. Amar dá trabalho. Mas saio alimentada de Tudo sobre o amor. bell hooks é mais uma vez vanguarda ao convocar, através de palavras, em tempos de guerra, uma revolução de amor.

Racismo e a tentativa de colonização dos corpos negros

O racismo é uma tecnologia de poder que opera por meio do controle a partir da discriminação sistêmica de grupos étnico-raciais subalternizados e, no Brasil, sempre esteve relacionado com o fenótipo, que é o conjunto de características físicas tais como a textura dos cabelos, o formato dos lábios, do nariz e, sobretudo, a cor da pele.

Um líder Iorubá conta que uma prática comum aos europeus que chegavam aos portos para sequestrar e trazer pessoas africanas em condição de escravizadas para os territórios invadidos (colonizados) era, antes de embarcá-los, obrigá-los a circundar uma árvore a qual chamavam de “árvore do esquecimento”. Assim, suas memórias sobre seu povo, sua família, sua cultura, tudo seria apagado, o que facilitaria o processo de subjugação.

A “árvore do esquecimento” que temos circundado até os dias atuais pode ser compreendida como o processo de apagamento ao qual a população afrodiaspórica tem sido submetida há séculos. Fomos paulatinamente desconectados de nossas origens étnicas, nossas ciências, nossos sistemas espirituais e nossos referenciais estéticos.

O processo racista de controle social atua, entre outras frentes, na destruição da autoestima e da autoimagem que pessoas negras têm sobre si e seus iguais. Temos sido expostos a imagens de homens, mulheres e crianças negras em contextos de violência e resumidos a estereótipos inferiorizantes. Corpos como os nossos são maioria no sistema prisional e nas estatísticas de assassinato. Esses estereótipos são repetidamente exibidos e reforçados nos livros didáticos, nas propagandas, passando pelos filmes e telenovelas exibidos em horário nobre. Dificilmente temos acesso a imagens de pessoas negras ocupando espaços de poder.

Embora sejam muitas as camadas de complexidade em um sistema estruturado no racismo, sempre houve articulação organizada e protagonizada pela população negra. Dos levantes quilombolas ao Black Lives Matter, pessoas africanas e seus descendentes têm se reerguido como morada de potência.

A geração tombamento: um movimento afrofuturista

Lacração ou tombamento são expressões muito utilizadas pela comunidade negra e LGBTQIA+ para reafirmar seu poder, sua beleza e sua ousadia em ser quem são diante de uma sociedade que impõe padrões hegemônicos aos corpos, entendendo como belos, dignos de afeto e respeito os corpos brancos, magros, heterossexuais e cisgênero. 

A partir de 2014, devido ao sucesso do hit “Tombei” da rapper curitibana Karol Conká, o movimento protagonizado pela juventude negra dos grandes centros urbanos do Brasil que se empodera através da estética passou a ser conhecido pelo nome “Geração Tombamento”. É importante, porém, ressaltar que o uso das estéticas negras como ferramenta de combate ao racismo está presente em diversos momentos da história e em muitos territórios ao redor do mundo.

Uma das principais inspirações estéticas para a “Geração tombamento” são os Sapeurs ou La Sape (Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes). Os Sapeurs são grupos originários de Kinshasa, na República Democrática do Congo, e Brazzaville, na República do Congo.

A rapper Karol Conká (Divulgação)

O movimento surgiu na década de 1920 como uma forma de resistência ao jugo da colônia Belga. Para eles, vestir-se bem é uma forma de confrontar o ideal de superioridade europeia. 

Ativa até hoje, a comunidade La Sape é extremamente respeitada pela população. Seus trajes luxuosos contrastam com a realidade de extrema vulnerabilidade socioeconômica à qual seus países estão submetidos, e é justamente através desse contraste que os Sapeurs expõem sua crítica. Ser um Sapeur é um ato de rebeldia. É dizer para o mundo que luxo, beleza e exuberância são direitos de todos.

Contestar os padrões impostos é um posicionamento político que vem de dentro para fora e do passado para o presente. Neste sentido, podemos afirmar que os movimentos políticos de resgate da autoestima de pessoas negras operam na perspectiva de Sankofa, um valor civilizatório de povos da África Ocidental que consiste em retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Sankofa vai dialogar diretamente com a perspectiva do afrofuturismo, corrente de pensamento na qual a “geração tombamento” muito se inspira.

 O conceito de afrofuturismo chegou ao ambiente acadêmico no início da década de 1990 através dos estudos do pesquisador estadunidense Mark Dery. Mark, homem branco, escreveu o artigo “Black to the future”, no qual pretendia investigar a ausência de narrativas negras na cibercultura, nas tecnologias computacionais e nas obras de ficção especulativa. O artigo de Mark e seus desdobramentos, inclusive dentro da comunidade negra, apontavam para um questionamento central: por que é tão difícil para a população negra vislumbrar imagens efetivas de futuro? 

O processo de apagamento do referencial cultural das pessoas africanas desterritorializadas e de seus descendentes negou o direito ao passado. Ora, sem imagens positivas de passado, como poderíamos gozar das mesmas possibilidades de projeção de futuro das quais gozam os grupos não racializados? 

Ainda na década de 1990, o conceito de afrofuturismo foi apropriado e ressignificado pela comunidade negra dos Estados Unidos e logo se tornou uma corrente crítica de pensamento em toda a diáspora africana, inclusive no Brasil.

A curadora de arte, pesquisadora e atriz estadunidense Ingrid LaFleur define o afrofuturismo como “uma forma de imaginação de futuros possíveis através de uma lente cultural negra”. É através dessa lente-espelho que a juventude negra tem se olhado e encontrado, no presente, trajetórias do passado que pavimentam as possibilidades de futuro.

Somos tombamento, somos Black Power – referências históricas da resistência negra através da estética

Para que fosse possível, no século XXI, a existência do movimento lacração/tombamento, houve uma longa caminhada de lutas pela emancipação, pelos direitos e pela recuperação da autoestima da população negra. A reconstrução dessa autoimagem só é possível através de um processo coletivo de retorno às raízes.

A pedagoga Nilma Lino Gomes discute essa temática em seu livro O Movimento Negro Educador. Ela diz: 

“O corpo negro não se separa do sujeito. A discussão sobre regulação e emancipação do corpo negro diz respeito a processos, vivências e saberes produzidos coletivamente

(…)

Há aqui o entendimento de que assim como “somos um corpo no mundo”, somos sujeitos históricos e corpóreos no mundo. A identidade se constrói de forma coletiva, por mais que se anuncie individual.” (Gomes, 2017, p. 94)


Manifestação do partido dos Panteras Negras, 1970. Divulgação.

Earth, Wind & Fire. Banda que traz em sua estética fortes referências africanas e futuristas. Divulgação.

Sapeurs do Congo. Divulgação.

Uma das principais referências no que diz respeito à reivindicação do orgulho negro é o movimento Black Power, que surgiu nos Estados Unidos na década de 1960. Inspirados no “Harlem Renaissance” da década de 1920, o movimento Black Power fomentou a criação de diversos espaços educacionais e culturais independentes para a população negra, além de romper com padrões estéticos impostos pela branquitude, tais como o uso de químicas para o alisamento dos cabelos. 


Priscila Carvalho durante participação do Coletivo As Panteras Negras na Marcha das Mulheres Negras do Rio de Janeiro, 2018.

Já no Brasil, um dos maiores símbolos do orgulho negro é o bloco afro Ilê Aiyê. Fundado em Salvador, Bahia, em 1974, o Ilê Aiyê se consolida no auge do renascimento cultural negro que se desenvolvia nas diásporas africanas.

Para além de um bloco, o Ilê é um movimento político de reeducação, conscientização e empoderamento para o povo negro.

Uma das atividades mais conhecidas do bloco Ilê Aiyê é a “Noite da Beleza Negra”, evento no qual é coroada a Deusa do Ébano, a rainha do bloco. O objetivo da coroação da Deusa é exaltar o poder, o talento e a beleza herdada dos ancestrais africanos.

A “Noite da Beleza Negra” tem um importante impacto social, econômico e simbólico na comunidade do bairro da Liberdade, onde fica a sede do bloco. Os impactos atingem também o campo do subjetivo, sobretudo para crianças e jovens negros. Muitas meninas negras passaram a reconhecer a própria beleza através da imagem das Deusas do Ébano. É a reconstrução da autoestima que o racismo fragmentou. 

 Retomando a perspectiva de Sankofa e do Afrofuturismo, percebemos que “tombamento” é o movimento constante de uma juventude negra que revisita o ontem e ressignifica o hoje para criar o amanhã. É essa juventude que tem ocupado as ruas e disputado os espaços de poder. É essa juventude que tem ditado moda, comportamento, consumo e nichos de mercado. É essa juventude que “lacra” na estética, afronta os padrões e se apresenta como corpos políticos exercendo seu direito de existir em plenitude.


Yemi Alade, cantora nigeriana que apresenta em sua estética referências de reinos e civilizações tradicionais do continente africano numa releitura futurista. Divulgação.
#37Futuros PossíveisCulturaEducação

Dois e dois são dois: Kênia Freitas e Fábio Kabral

Pesquisadora, crítica e curadora de cinema. É doutora pela Escola de Comunicação da UFRJ e fez estágios de pós-doutorado na UCB e na Unesp. Realizou a curadoria das mostras Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica, A Magia da Mulher Negra e Diretoras Negras no Cinema Brasileiro. Integrou as equipes curatoriais do IX CachoeiraDoc (2020) e do Festival de Cinema de Vitória (2018). Escreve críticas para o site Multiplot!. Ministra cursos e oficinas sobre crítica, cinema negro, afrofuturismo e fabulações.

Escritor de ficção especulativa com foco em fantasia. No momento, passa seus dias pesquisando e escrevendo seu próximo livro: um épico de fantasia centralizado na mitologia afro-brasileira dos Orixás, que será publicado pela Editora Intrínseca em 2021. Seus livros publicados são: Ritos de Passagem (Giostri, 2014), O Caçador Cibernético da Rua 13 (Malê, 2017) e A Cientista Guerreira do Facão Furioso (Malê, 2019).

Kênia — Eu ouvi falar de afrofuturismo pela primeira vez no final de 2012, começo de 2013, e foi uma coisa muito por acaso. Fui escutar um programa de rádio de um camaronês-francês chamado Georges Collinet, em que ele fala sobre música de África, música da Afrodiáspora, música negra de forma geral, e o programa falava muito sobre uma certa ideia de pensar as raízes negras da música eletrônica e várias coisas que a gente ainda associa a uma cultura muito branca, como as raves. Nesse programa, eles mencionaram o techno de Detroit, e o chamaram de afrofuturismo. Eu nunca tinha ouvido falar nesse termo. O programa falou muito rápido sobre o que estavam chamando de afrofuturismo, a ideia desse som eletrônico, meio abstrato, que, ao mesmo tempo, tinha toda uma simbologia, todo um direcionamento para falar de coisas da ficção científica, de fazer música para extraterrestre, música para a Lua. Isso tudo no contexto daqueles jovens do final dos anos 80, começo dos anos 90. Jovens negros, de família de classe trabalhadora, sem muita renda, que viviam em uma cidade que havia sido por muito tempo um grande parque industrial e que, a partir dos anos 70, foi esvaziada, com desemprego e fábricas abandonadas. Então, por um lado, havia aquela cidade que foi supertecnológica e viu a tecnologia tornar-se decadente, e, por outro lado, esses jovens negros sem muita perspectiva de futuro. A música que eles fizeram como resposta a isso é uma música diferente, por exemplo, do universo do hip-hop, em que se fala das questões negras dos Estados Unidos de uma forma muito direta, muito explícita, muito realista. A solução do techno de Detroit foi pensar sobre a situação de uma maneira especulativa, mais voltada para essas ficções do imaginário.

Esse debate foi algo que me atravessou muito. Pensar nessas possibilidades e nesses termos significava entender que, talvez – e acho que esse foi o primeiro estalo – existam formas de falar sobre a experiência negra no mundo, inclusive sobre aspectos traumáticos e complicados, sem passar pelas narrativas naturalistas e realistas. Na época, eu estava no doutorado em Cinema, e me interessou muito pensar como isso poderia se dar em um novo registro formal, saindo da música para o cinema. Foi quando busquei textos sobre o assunto e comecei a pesquisa, que resultou em uma mostra de cinema em 2015, na Caixa Belas Artes de São Paulo. Essa curadoria era a vontade de pensar o afrofuturismo, relacionando o universo da música com o do cinema. Acho que pensar o afrofuturismo é pensar nesses conceitos em evolução, desde quando surge pela primeira vez, naquele texto de 1993, em que o Mark Berry entrevista pessoas negras, até os seus desdobramentos. Eu gosto de começar por um lugar mais simples, para entender, e depois, quando chegamos nos exemplos, eles obviamente se complicam. Mas, para mim, afrofuturismo é esse universo de criação que relaciona a experiência negra – e, quando eu falo de experiência, eu estou falando também de autoria e de reflexão, dentro das obras, da presença negra – com os universos das ficções especulativas, que são bastante variadas em si também e já são todo um grande debate, desde a ficção científica, a fantasia, alguns gêneros dentro do terror, enfim, esse guarda-chuva grande que chamamos de ficção imaginativa. De alguma forma, elas criam outras formas de abordagem em relação ao mundo, distintas do realismo. Eu me interessei muito em pensar esse conceito na sua concepção política, e essa política com seus formatos estéticos variados, como o techno de Detroit. Quando falamos de ficção especulativa a partir de experiências negras, estamos falando também de questionamentos que são diretamente políticos e estéticos. 

Fábio — Para mim, até hoje tenho dificuldade de falar e entender como foi a aproximação com esse termo. Na verdade, foi por volta de 2014. Eu não sei se alguém me falou essa palavra ou se eu vi na internet, em algum site de quadrinhos americanos ou videogames. O que eu lembro é que, quando me deparei com a palavra, eu pensei: “o que é afrofuturismo?” Imediatamente, pensei: “o que eu faço com isso, o que eu crio com isso?” Eu já tinha um livro de ficção publicado no mesmo ano, em janeiro de 2014, chamado Ritos de Passagem, que é uma ficção de fantasia, só que, obviamente, inspirado na África, não na Europa. Seria uma África fantástica sem ser a África. Digo que se passa na África por causa dos personagens, das vestimentas, da cultura ali apresentada. Eu estava para descontinuar esse universo do Ritos de Passagem quando surgiu o afrofuturismo, e comecei a criar um segundo universo, inspirado num jogo da série Final Fantasy, que habita um mundo futurista, com tecnologia mágica. Esse universo as pessoas hoje olham e entendem como um “mundo futurista” ou “o futuro da Terra”, mas eu nunca criei literatura baseada no planeta Terra. Quer dizer, toda ficção é baseada na realidade, mas não é uma ficção realista. Nunca fiz uma ficção que se passasse na Terra, e sim em universos alternativos. Iniciei esse universo com a cidade que chamei de Ketu 3, dessa vez inspirado nas mitologias do povo iorubá e na mitologia afro-brasileira dos orixás. Com isso, fiz um mundo alternativo mais próximo do nosso mundo real, no sentido de que as pessoas usam roupas, têm comportamentos e tecnologias semelhantes às nossas – só que é uma tecnologia obviamente fantástica. Quando você fala que um celular, ou qualquer tecnologia, é movida por energia eletromagnética dos ancestrais, e que parte da população tem poderes psíquicos, pessoas que voam, sacerdotisas, mães-de-santo empresárias com poderes paranormais, para mim isso é literatura fantástica, e isso é o que costumo fazer. Só que, quando esse meu segundo livro publicado, O Caçador Cibernético da Rua 13, chegou às livrarias, as pessoas passaram a associar com o afrofuturismo. Até hoje muita gente diz isso. Eu acho curioso. Ritos de Passagem foi publicado em 2014, e O Caçador foi publicado em 2017. Eu vi a primeira manifestação declaradamente afrofuturista no Brasil em 2015, graças à Kênia, na mostra Afrofuturismo do Cine Belas Artes, em São Paulo. Foi a primeira vez que eu ouvi a palavra afrofuturismo em solo brasileiro. Eu achei muito bacana, fiquei bastante inspirado, mas fui trabalhar no meu livro, que estava quase pronto, faltando os últimos trâmites com a editora. Ocorreu de, nesse período, me encomendarem um artigo, em 2016, para falar sobre afrofuturismo. Eu expliquei “gente, eu não sei falar disso”. Mas beleza, me encomendaram. E aí começou a minha tentativa de elaborar o que seria afrofuturismo. Sempre deixei nítido que não sou acadêmico, não sou jornalista, não sou, por exemplo, como a Kênia. A Kênia é uma profissional, analista, que faz análise conceitual, acadêmica. Eu sou só escritor de ficção. Mas tudo bem, já que havia poucas pessoas falando sobre, tentei dar minha contribuição. Nesse sentido, comecei a criar uma série de artigos, e hoje eu vejo que vários desses artigos, pelo menos na minha opinião, visto como o afrofuturismo está se desenvolvendo hoje, estão meio desatualizados. Então foi assim, comecei a criar esses artigos e as pessoas começaram a apontar, “nossa, ele é afrofuturista”. Continuei fazendo artigos, mas sempre deixando nítido: eu não sou especialista no assunto, sou só escritor de ficção, estou aqui só dando uma contribuição, procurem pessoas que saibam mais do que eu. Fui publicando meus livros, e quando lancei o A Cientista Guerreira do Facão Furioso o pessoal continuava comentando como se eu fosse “o mestre afrofuturista”.  

As definições que aprendi na época, naquele primeiro artigo de 2016, eram de um movimento de recriar o passado, transformar o presente e projetar um futuro através da nossa própria ótica. Isso, para mim, é a própria definição do afrofuturismo. Na verdade, essas linhas eu criei, botei no artigo, e aí em 2017 me surpreendeu muito ter essa definição citada no livro do Lázaro Ramos, Na Minha Pele. Em 2018,  surgiu um convite para ministrar uma oficina sobre escrita afrofuturista. Eu pensei: “eu sou escritor, não sou professor de escrita, como é que vou fazer isso?” Tive que pedir uma ajuda para minha esposa, que já trabalhou na área de educação. Como não gostamos de enganar as pessoas, estudamos o máximo possível sobre afrofuturismo e, na verdade, vimos que não havia muita coisa ainda. É um movimento, pelo menos no nome, muito novo, mesmo que haja quem diga, de forma retroativa, que o afrofuturismo existe desde o Egito Antigo. Eu não concordo com isso, mas eu respeito, entendo esse ponto de vista. Então a gente se ateve muito às definições mais acadêmicas, pegando lá de trás, desde Sun Ra e George Clinton. Fizemos leituras críticas sobre isso, e entendo que contribuímos de alguma forma. Mas hoje, inclusive, fiz um post dizendo que eu estou me retirando do afrofuturismo. 

Kênia — Só um comentário rápido: lembrei que Ritos de Passagem é um dos livros que o escritor Waldson Souza analisa na sua dissertação de 2019, sobre literatura afrofuturista no Brasil. Ele analisa três obras, uma da Lu Ain-Zaila, uma do Fábio e uma do Julio Pecly. E aí ele comenta que, de alguma forma, já é possível encontrar elementos que são identificados por uma lente crítica afrofuturista. E eu concordo muito com essa análise. Talvez isso seja uma coisa próxima de algumas questões que o Kabral tem, de que o afrofuturismo é mais do que uma caixinha em que a gente fecha as obras e diz que tem que ter tal e tal característica – porque isso limita muito a criação. Se você limitar tudo que o Fábio faz a afrofuturismo, parece que acabou a conversa aí. Não, isso é o começo da conversa. A ideia é pensar o afrofuturismo como uma lente crítica, uma lente teórica, que tenha alguns repertórios que partem dela e que dialogam com ela, mas que não é um fim em si mesmo. Ao criar uma caixinha e colocar todo o trabalho criativo ali, parece que o artista fica preso. Deixa de ser algo que move a criação e vira algo que quase mata a criação. Eu acho que, se a gente pensa mais nessa ideia de lente crítica e menos na ideia de categoria fechada, não sufocamos tanto as obras. Porque é possível pensar, por exemplo, os livros do Fábio junto com vários outros repertórios, não só com o repertório afrofuturista. O repertório das religiões de matriz africana, o repertório das histórias de super-herói… Acho que tem muita coisa ali que atravessa a criação, que se mistura e possibilita muitas leituras, muitas abordagens. Os conceitos se tornam perigosos quando eles ou são definidos de uma maneira bem louca, ou viram uma prisão.

Fábio — Sim, exatamente. O problema não é o movimento em si, mas é o que as pessoas fazem com isso. E aí eu, como autor, me sinto meio encurralado, no sentido de que se jogou muito isso em cima de mim. Primeiramente, eu não considerei justo, porque tanto você quanto o Waldson, por exemplo, na minha opinião, falam com mais propriedade sobre o tema – e não é questão de me colocar inferior, não é isso, só acho que cada um tem o seu papel. Meu papel é pensar na criação, e não necessariamente analisar. Eu gosto de criar, de fazer, e deixar que outros falem, expliquem o que eu estou fazendo. Pessoas como a Kênia vão explicar muito melhor o que eu estou fazendo, inclusive vão enxergar coisas que eu não enxerguei. Se, dentro da ficção, limitando o afrofuturismo apenas à ficção, como é a minha ideia, isso já me incomoda, isso se torna um problema quando as pessoas expandem para outros cenários, para outras possibilidades que estão fora do meu alcance. Quando as pessoas apontam o afrofuturismo como entendimento da sociedade, de ditar os rumos da sociedade, eu sempre chego e falo “não, eu não tenho como fazer isso, eu não sou cientista político”. Na minha cabeça, apenas crio mundos fantásticos. Eu entendo as implicações que esses mundos podem ter, eu entendo as motivações, o que eu represento ali, entendo quando alguém me diz isso, mas não tenho a pretensão de chegar e falar “eu quis fazer isso”, “eu quis passar essa mensagem”. Eu quero passar várias mensagens, mas não quero dizer que estou passando várias mensagens; quero só fazer, e que as pessoas analisem. Então isso estava me incomodando bastante, porque as pessoas me chamam mais para falar sobre afrofuturismo do que para falar sobre escrita. Se for para falar, eu quero falar sobre escrita, sobre o que eu estou fazendo, sobre o que me inspira a escrever. Também chegou num ponto em que o afrofuturismo começou a tomar rumos que estão fora do meu alcance, como o afroempreendedorismo. Para mim, não tem muito a ver, porque o afrofuturismo está no campo da ficção, e o afroempreendedorismo é algo prático, real, não tem a ver com o fazer ficcional. Eu acabei entendendo, de fato, o que diz a Nnedi Okorafor, uma autora afro-americana de origem nigeriana que nega veementemente ser afrofuturista. Porém, como a Kênia bem diz, a Okorafor criou o africano-futurismo, African futurism, para explicar o que ela faz, e o que ela diz que é o africano-futurismo é o que eu achava que era o afrofuturismo. Aí a Kênia diz que o africano-futurismo nada mais é do que uma vertente do afrofuturismo; não deixa de ser afrofuturismo. Por isso, eu entendo que tudo que eu escrever e fizer, por causa das características da forma como eu escrevo e do que eu escrevo, sempre vai ser considerado afrofuturismo. Tudo bem. Minha questão não é negar que eu seja afrofuturista, que o que eu escrevo seja afrofuturista, mas os rumos que o afrofuturismo está tomando hoje. Eu decidi que pararia de comentar sobre afrofuturismo porque não acompanho mais essa cena. Percebi isso quando vi que estávamos fazendo as oficinas no piloto automático. Entendi que nunca foi uma vontade minha, que eu estava só fazendo e seguindo a demanda. E, quando chegou a pandemia, senti que não tinha vontade de fazer live sobre isso. Até porque não tenho mais o que falar sobre o assunto.

Kênia — Mas acho que isso gera vários pontos, Kabral. De uns dois em dois anos, o afrofuturismo fica na moda. Teve o Pantera Negra, e tudo passou a ser afrofuturismo, surgia gente de tudo quanto é lado falando do assunto, da arquitetura, da música, etc. Aí veio a Beyoncé ano passado com Black Is King, e brotaram vários jornalistas para perguntar sobre afrofuturismo. E muita gente nem tem a preocupação de ler as coisas que você já escreveu, outras entrevistas que você deu, que eu dei ou mesmo o que muita gente tem produzido sobre o assunto. Eu vejo uma contribuição muito grande no que você fez, quando escreveu os textos no blog. Textos que não são acadêmicos e, portanto, são muito acessíveis. Isso é muito bom. E você comentava ou traduzia um trecho, já que muita coisa estava escrita em inglês, como você fez com o texto em que a Okorafor falava sobre africano-futurismo. Essas abordagens nos aproximam do conceito, trazendo ele para um lugar brasileiro. Era um jeito ao mesmo tempo elaborado e acessível, feito para as pessoas entenderem o debate. Isso cumpriu um papel muito importante. Agora começamos a ver dissertações como a do Waldson, sobre afrofuturismo no cinema, na literatura e na música, mas, quando você começou a fazer esse movimento de escrita, não tinha ninguém. Então acho que foi muito importante esse gesto. O problema é uma certa abordagem sobre afrofuturismo que fica, mesmo, muito superficial, como se gente preta usando roupa colorida, de preferência que brilhe, bastasse para significar afrofuturismo. Não, né? Espera aí. Às vezes me parece que há uma superficialidade – e não estou dizendo superficialidade no sentido de que só estudo acadêmico seja profundo e outras formas de abordagem não sejam. Acho que a sua forma de abordagem era muito condizente com a internet sem ser superficial. Tinha estudo ali, tinha vontade, tinha pesquisa. Pegar textos em inglês e fazer um comentário sobre ele, permitindo que um monte de preto que não sabe falar inglês tenha acesso ao debate, relacione e pense o conceito, é um gesto muito necessário. Você não tirava os negócios da sua cabeça e escrevia; sempre teve pesquisa. Então acho que a superficialidade está muito em algumas outras abordagens, que entram nesse modismo. Aí caímos nesse espaço perigoso. 

Fábio — Eu entendo, sim, que meus textos acabaram sendo uma linguagem acessível num primeiro momento, mas aí eu vejo que hoje tem uma galera muito mais inserida na internet. Na verdade, o que eu vejo é que eu fiz uns cinco artigos e muitos ali são redundantes. No segundo artigo, faço uma associação com afrocentricidade, e não é necessariamente isso, mas é como eu quis enxergar. E eu comecei a ver que muita gente também está enxergando como quer. Se, ao mesmo tempo, eu falo que tudo bem, porque eu acho que cada um faz o que quiser, também tenho a minha opinião. Da mesma forma que vi que eu estava errado em associar com afrocentricidade, também considero que não tem a ver associar com afroempreendedorismo, com militância negra. Sim, estão interligados; sim, tem uma questão política no afrofuturismo. Eu entendo. E seria leviano falar que a minha obra não é afrofuturista quando todas as minhas obras, absolutamente todas, têm um elenco 100% negro. Não é apenas um mundo de elenco 100% negro, são sempre mundos centrados numa mitologia e espiritualidade de matriz africana. Eu entendo o impacto que isso tem. Eu entendo o recado que isso dá. Então é igualmente leviano você ter uma causa e associar ao afrofuturismo somente por ser conveniente, porque é o nome da moda. Como a Kênia disse, o afrofuturismo estourou no Brasil com o Pantera Negra e, depois, com o Black Is King. A partir disso, vi muita coisa e pensei “não concordo”, mas, ao mesmo tempo que eu não concordo, repito: cada um tem direito de fazer o que quiser. No pouco tempo em que fiz faculdade de Letras, entendi que as palavras têm significados livres, não podemos prender as palavras nos significados. Elas ganham novos significados. 

Kênia — Eu fico contente com esses momentos de agitação. E eu acho que, primeiro, é um conceito novo, se a gente for pensar em termos de quando a palavra apareceu – o fazer afrofuturista é muito anterior à palavra –, e tem mesmo definições e usos que são diversos. Ainda tem algo, nesse campo, que me parece possível dialogar. Porque é diferente falar “ficção especulativa negra” e falar “afrofuturismo”, e as imagens que isso convoca. Acho que é um termo que mexe com o imaginário, mexe com as pessoas. Mas se, sei lá, no fim das contas o afroempreendedorismo ganhar, se virar só sinônimo de preto com roupa colorida, beleza. A gente vai continuar usando e pensando esse universo de criação e essas questões e vai chamar de outra coisa. Imagino que o Kabral já escrevesse isso que a gente chama de afrofuturismo antes de todo mundo chamar de afrofuturismo, e vai continuar escrevendo das formas criativas dele, mesmo que o termo seja usado para outras coisas. Eu concordo muito que se agarrar a um conceito e ter que defendê-lo não faz sentido; o conceito é livre, os usos são livres e os entendimentos que cada um faz dele também são. Não vou falar de coisas que eu não sei. Não vou falar de empreendedorismo, não vou falar de assuntos que eu não domine. Não acho que a gente tem que morrer abraçado nos conceitos. Um conceito é rico enquanto ele consegue despertar esse lugar de imaginação, de criação. Se ele já não desperta isso na gente, bom, talvez seja hora de se apaixonar por outras formas de falar. Eu, por exemplo, não sei o que vai ser do afrofuturismo, mas eu sei que, e me anima saber que, você vai continuar escrevendo, pensar no que vai acontecer com Ketu 3 e, depois, se virão outros universos. Isso me interessa mais do que ficar brigando se o afrofuturismo é isso ou aquilo.

Fábio — Eu fui criado naquela escola de grandes histórias, sabe? Histórias longas, livros, séries. Eu tinha intenção de fazer isso com Ritos de Passagem, mas aí, por questões profissionais, questões contratuais e tal, a editora deixava no ar que eu só podia escrever as histórias naquele universo. Aí eu fui para a editora Malê e decidi criar um novo universo, para não ficar preso a ninguém. Quando veio o convite da editora Intrínseca, até falei das histórias de Ketu 3 que eu tinha em mente, mas já não se interessaram. Aí eu falei de uma ideia que estava muito fresca, que surgiu quando eu estava jogando um videogame. É engraçado que a maioria das histórias surge quando estou jogando. Por isso jogo bastante. Quando estou lá, jogando, o ócio criativo é real. Quando eu comentei sobre essa ideia, ainda muito primitiva, eles se interessaram na hora. Agora, pela editora Malê, vai sair um terceiro livro, O Blogueiro Bruxo das Redes Sobrenaturais – para Ketu 3 eu vou sempre fazer esses nomes esdrúxulos, mas vou parar por aí, por enquanto. Não vou matar o universo, mas vou parar por ali. Quando eu estava estudando sobre técnicas narrativas, vi que Ketu 3 é meio que esse universo de episódios, um universo em que eu falo mais sobre questões do cotidiano e questões pessoais dos personagens. Agora, estou experimentando brincar com a noção de saga épica. Ao mesmo tempo que gosto muito de consumir esse gênero, nunca me vi escrevendo nesse estilo. Mas vou fazer uma brincadeira com esse recurso literário, que é a história não só sobre o universo particular do personagem, mas sobre os grandes acontecimentos de um mundo, geralmente sobre salvar ou destruir esse mundo. Então eu estou brincando com esse terceiro universo através de uma saga épica. 

Kênia — Daqui a pouco, vai ser mais difícil de acompanhar que o universo da Marvel. Vai ter que sair com tabela, cronograma, como cada universo se relaciona. Mas eu acho maravilhoso. Eu estou curiosíssima com esse novo.

Fábio — Ah, você vai adorar. O que me entristece é reduzirem o movimento a isso ou aquilo. Seria muito triste se o afrofuturismo fosse simplesmente negros na ficção científica ou negros na ficção fantástica. Se é assim, vamos chamar de ficção científica, de ficção fantástica, vamos chamar de ficção especulativa. Não tem por que botar numa caixinha, como se fosse para separar. Trata-se da mesma forma. Há várias camadas nisso tudo, e as pessoas resolvem reduzir a apenas afrofuturismo?

Kênia —Se olharmos o cinema negro atual, finalmente começou a ter maior participação de diretores e diretoras, críticos e críticas, curadores negros. Ainda muito aquém do que é a presença negra na sociedade brasileira, mas exponencialmente maior do que se comparado a cinco anos atrás. É possível ver um momento de efervescência. Por outro lado, tem sempre uma certa briga, que envolve tentar impedir que a arte negra seja aprisionada por questões que são repetições do racismo estrutural. Então, por exemplo, quando o cinema negro vai ser definido, em muitos lugares em que a curadoria é branca, é preciso ficar atento para que não sejam valorizados apenas filmes negros de uma mesma linguagem, que falem de racismo de uma determinada forma, filmes que sejam muito didáticos em relação ao racismo – quase aquele filme que ensina alguma coisa às pessoas brancas. Isso seria não valorizar toda a variedade de filmes negros que existe, e correr o risco de perpetuar essas caixinhas que limitam a criação e a sua diversidade. A ideia de que, se você é negro e faz filme, você tem que fazer um filme que preencha certas características, que fale da violência urbana ou de racismo, me parece muito perigosa e limitante. Pensando naquele texto do Gillespie e da Racquel Gates, que está no site da Abraccine [Reivindicando os Estudos de Filme e Mídia Pretos], gosto muito de falar de representação, porque essa discussão é complicada. A discussão não pode ser só sobre isso, como se – saindo do cinema, mas para voltar a ele – a gente olhasse os livros do Kabral, em que 100% dos personagens são pretos, e considerasse como um fim em si mesmo. Isso é um aspecto dos livros, é o começo de onde as narrativas se desdobram; a partir delas, você tem mais um monte de coisa acontecendo em termos de estrutura narrativa, estrutura formal e escolhas de escrita que os livros desenvolvem. Se você diz que o livro é bom porque todos os personagens são negros e ponto, então você limitou. Essas questões da representação, da representatividade – e é disso que o Gillespie e a Gates vão falar um pouco – , são um ponto de partida, são começos. As questões formais interessam, sem ir para uma essencialidade – o que é um cinema negro, uma literatura negra? Não existe essa essência. As experiências negras são muito variadas. Tentar criar essas caixinhas é algo que limita muito. Limita a possibilidade de criação dos artistas. Acho que tem que ficar atento a essas coisas. Se, num país tão grande e com uma população negra tão numerosa, a gente acaba em uma espécie de consenso estético acerca do 

#36O MasculinoCulturaSociedade

Por que duvido da minha masculinidade

por Eugênio Bucci

A essa altura da vida (e da morte), quando o destino me concedeu o prazer de olhar para o meu passado com olhos de descoberta e de mirar o futuro sem tantas ansiedades, quando tenho uma certa aceitação das vergonhas e já não levo tão a sério a ideia de que sou especial ou bom, penso que o verso que mais me agrada em toda a extensão e profundidade do cancioneiro pátrio, da nossa música popular, é um que devemos ao gênio de Caetano Veloso: “Eu sou neguinha”.

É claro que preciso explicar melhor esse negócio – por isso, topei escrever o artigo que se segue. Às pupilas que me seguiram até aqui, rogo que não desistam. Não vou decepcioná-las de todo ao fim da curta jornada que nos aguarda.

Começo por dizer que nós, brasileiros, não somos brancos. Não apenas não somos brancos: nós não podemos sequer nos pretender brancos. Um pouco de África, ou mesmo muito, corre em nossas veias sem memórias, quero dizer, em nossas veias cujas memórias são guardadas por entidades inacessíveis às nossas vãs consciências. Mas o que mais me interessa agora não é a questão da cor, senão a questão do gênero que vem inscrita no verso “eu sou neguinha”. Aí é que mora o encanto. Eu realmente tenho dúvidas quanto às armaduras de masculinidade que emolduram aqueles que nasceram com um pênis – coisa que se deu comigo. Duvido das armaduras que nos amordaçam, que nos armam, que nos asfixiam. Eu mesmo, que me sinto gente – e de modo tão apaixonado, embora tímido – posso dizer que me sinta “homem”. Definitivamente, não sou como esses homens aí que tanto se jactam de ser homões. Eu não. O meu gênero não é o mesmo deles. A minha sexualidade não é igual à deles.

Pelo que sei de mim, digo que há tantas sexualidades quanto pessoas na face da Terra. Cada um é uma sexualidade. Cada um tem um jeito masculino e feminino de ser que é único, não é categorizável. Nessa matéria, o que mais me atrai é atirar-me. Deixe-me dizer melhor: o que me atrai é atirar-me “no acaso e amar o transitório” – para fiar-me em outro bom verso, este de Carlos Penna Filho.

No mais, se pararmos para pensar em que consiste o gênero a que chamamos “masculino”, talvez não encontremos grande coisa ali que não seja um invólucro, um sarcófago, um rótulo desprovido de espírito. Ou duvidamos disso agora, ou empenharemos mais e mais as nossas almas a emprestar vida artificial a invólucros ressequidos que não somos nós.

Tomo para mim o que Simone de Beauvoir disse sobre as mulheres: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Bem sei que a frase virou um chavão. Bem sei que os chavões são insuportavelmente insuportáveis. Bem sei que o uso indiscriminado e panfletário dessa frase de efeito – uma frase com defeito – logrou empobrecê-la e reduzi-la a uma palha morta do discurso político. Uma pena. No trecho em que a filósofa rabiscou essas palavras, no começo do livro “O Segundo Sexo”, ela carregava pensamento com ela e pretendia discutir mais o gênero do que o sexo. Ela queria dizer, e de fato disse, que é a cultura, não a biologia, que impõe o padrão de gênero, de tal sorte que a mulher só vira mulher depois de construída assim por força dos valores sociais que moldam a personalidade infantil de um ser em formação. Nas palavras de Simone de Beauvoir, “é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino”.

E por que eu, que sou um suposto homem, tomo para mim uma passagem tão ardentemente feminista? A resposta é simples: porque me ocorre que ela vale também para mim, assim como vale para as mulheres, isto é, vale para mim e para todos os homens do mesmo modo que vale para todas as mulheres. Também homem não se nasce. Também homem, torna-se. É tormentoso e sangrento o método pelo qual a civilização esculpe, com navalhas, formões e cinzéis simbólicos, o feitio do homem másculo sobre um pedaço de madeira virgem chamado criança. E esse processo não é indolor, assim como não é bom.

Ser um ser masculino é arcar com um arquétipo vazio – insisto no vazio – e pesado. Um estereótipo absurdo, porque anacrônico e ultrapassado. “Homem que é homem não chora”, canta Martinho da Vila. Ele tem razão, se o oposto de “homem” for a criança. Mas não tem razão, se o oposto de homem for a mulher. Homem chora quando perde a mãe. Todas as vezes em que perde a mãe. Mulher também. O resto é cultura.

Falemos um pouco mais de cultura. Atribui-se ao masculino uma certa agressividade perfunctória, invasiva, incisiva, que seria parte essencial da experiência humana. Tenho dúvidas. De outra parte, atribui-se ao campo dito feminino virtudes como acolhimento, abrigo, maternidade. Tenho dúvidas também. O masculino leva traços de linhas retas e ângulos arestosos; o feminino tem formas arredondadas, aconchegantes. Não sei não. O masculino encarna força; o feminino, leveza. O masculino governa; o feminino aquiesce. Ora, por favor.

A menos que se lide com essas categorias como polos de uma tensão indivisível, ou seja, a menos que se aceite que o feminino e o masculino não se apresentam sozinhos, mas sempre conjugados, como o yin e o yang, não há mais sentido – se é que um dia houve – em alguém se ver como uma península masculina ou uma baía feminina. Somos sempre as duas formas geográficas.

Eis, em suma, por que duvido da masculinidade que a mim se atribuiu. E mais ainda duvido da masculinidade que se proclama em certos brados tão em voga. A masculinidade – veja que ironia, que contradição – vem se tornando uma afetação gestual. Na onda de autoritarismos que varre o mundo se encena essa apoteose de masculinidade, com pelos como espinhos, com músculos feito aço, com armas e trejeitos alegadamente testosterônicos que, francamente, não passam de teatralizações performáticas e ficcionais.

E olhe que não me refiro apenas ao machismo, esse fator de ordenamento de discursos que nos submete a todos e a todas. Eu não me refiro apenas ao estreitamento linguístico e político do machismo, que, por vezes, pode até ser cavalheiresco sem deixar de ser machista. Eu não me refiro apenas ao machismo que oprime as mulheres e ultraja os homens que, como eu, duvidam desses padrões de masculinidade afetada, essa masculinidade exibicionista e tresloucada. Eu não me refiro, enfim, apenas ao machismo que só pode ser desmontado conforme se desmontem os enunciados peremptórios com os quais ele ergue suas fortificações. O combate ao machismo que se impõe como um grilhão sobre o que é humano (pois o machismo é desumano) só se faz por meio da costura e da descostura das palavras de que ele se serve. O machismo se enfrenta no enfrentamento dos signos. Só assim vamos nos livrando desse machismo que tantas vezes consegue nos transformar em seus agentes inconscientes (o pior do machismo aparece quando nos flagramos falando o machismo – ou pior, quando nos flagramos tendo falado o machismo por tanto tempo e tão bestamente).

Mas, além do machismo, eu quero e devo me referir à caricatura do macho que vem sendo agora convertida em signo político. É constrangedor quando nos damos conta da miséria ridícula das autoridades que “falam” em furos como se com essa palavra, “furos”, pudessem demonstrar sua superioridade fálica sobre as mulheres. Não vejo humanidade nisso. Duvido dessa hombridade funesta, um tanto escatológica. Penso que não quero isso para mim. Sinto que não tenho parte nessa barbárie dessas figuras medonhas que erguem o braço como uma cancela de quartel, que fazem cara de malvados, que se deleitam empunhando coronhas, eles, com sua vaidade ignara e seu desejo adestrado – um aterrador desejo obediente.

O que há de masculino em mim, nesta hora, diz “não”.

#36O MasculinoArtigo

O Nascimento do Homem-Todo

por Vicente Góes

Poder e Racionalidade

Existem duas grandes entidades capazes de uma transformação essencial na realidade que conhecemos, atravessada pela crise pandêmica do coronavírus. A primeira delas, já claramente nomeada no século XX, é a Complexidade. A segunda, vemos nascer hoje aos prantos na sociedade globalizada, a Incerteza, vivida como sinônimo de insegurança. Como entidades míticas, estão presentes desde o começo dos tempos, surgindo a cada Era com seus próprios nomes.

As duas grandes entidades desferem um agudo golpe narcísico no paradigma de masculinidade ainda cristalizado, que se baseia na articulação de Poder e Racionalidade. Esse masculino criou um mundo para sua morada, um conhecimento para sua expansão e uma ideia de vida para gozar de si mesmo. Fez desses dois recursos espada e escudo, martelo e prego, pena e papel. Ferramentas plasmadas nas organizações, na tecnocracia, no intelectualismo, nos poderes instituídos e suas polícias, na relação com a natureza e com dinheiro, resumidas hoje na imagem do homem branco de terno e gravata e seus análogos pós-modernos.

Por cerca de quinhentos anos, esse homem trabalhou intensamente, fazendo dos mundos, conhecimentos e vidas plurais um mundo único, um conhecimento único e uma vida única, ao ponto de ter atraído para si, o que é de toda mitologia ou soberba, sua própria ruína. Açoitadas, Complexidade e Incerteza lançam um adversário ferrenho, a subversão do que o homem buscou como qualidade: Corona simboliza “poder”, símbolo máximo do domínio sobre o mundo material. Vírus vem de virius, que significa “homem” – de onde surgem as palavras virilidade e virtude. 

Mas, como herói, esse homem fracassou retumbantemente, e, como Hidra, Complexidade e Incerteza apenas crescem à medida que as armas Poder e Racionalidade contra-atacam cada vez mais violentas. 

O Poder não pode senão reduzir a Incerteza ao contorno do nomos, do controle, do visível como matéria, conceito ou informação. Mas incerteza se faz sempre às margens, e assim, quanto mais poder, maior a marginalidade que ele produz. Das bordas da margem, no invisível e desconhecido, acena a Incerteza.

A Racionalidade não pode senão travesti-la de dedução e conjectura, fragmentando a Complexidade, dualizando a realidade – verdadeiro ou falso, risco ou segurança, sucesso ou fracasso. Mas a Complexidade mora justamente no entrecoisas, nos sentidos que atravessam as “partes” cortadas de realidade, e, assim, quanto maior a fragmentação (vide a realidade multitarefas do isolamento social em um contexto familiar), maior a Complexidade. 

Nas últimas décadas, este termo passou a significar o hype, como uma hipermetodologia que precisamos para lidar com uma hipernormalidade. Um esforço computacional – “big data” – e uma aceleração da linearidade que levanta voo – “exponencial”. Tudo como era antes, só que complexo. Como se o Tudo e o Todo não tivessem diferença. Por via das dúvidas, no elã quantitativo, ficamos com o Tudo em conotação de materialidade vantajosa, objeto direto do verbo ter. O homem-Tudo.

O problema pandêmico aciona uma atitude quase generalizada de interpretação, especulação e análise de dados de um lado e, de outro, o fechamento completo, negacionismo violento da ciência ou das possibilidades além da razão. Poder e Racionalidade, em ambas versões, fazem juntas o parto da certeza. Os dois lados pressentem a notícia de que sim, o mundo acabou. Para a arrogância reducionista do homem-Tudo, se seu mundo acaba, o mundo acaba e usamos a complexidade para farejar com pressa o que vai emergir – yes, nós temos tendências. Só podemos largar uma certeza por outra, mais atualizada.

“Emergir”, para essa masculinidade, se refere às novidades, padrões “obviamente inusitados”, kickoff da versão mais recente. O homem-Tudo já está expert no “novo normal”. “Antifrágil”, “Ágil”. Pela lente de última geração do Poder e da Racionalidade, a Vida se torna identificada com a estratégia de adaptação, resiliência, edeseja permanência através de suas atualizações.

Proteger-se na crise toma o sentido do isolamento e do acúmulo de recursos, mas ai de quem tocar nas minhas liberdades individuais – uso máscara seu eu quiser, “com quem o senhor pensa que está falando?”. Respondemos ao contexto atual com mudanças que ironicamente servem para resistirmos à transformação. Mudanças resolvem problemas, ao passo que transformações – habitar o que está entre, através e além das formas – deslocam as premissas do mundo.

As duas entidades passam a ser um problema para se resolver – o mundo V.U.C.A. –, e devemos conquistá-las criando uma certeza altamente desenvolvida ou ser derrotados, aniquilados pelo caos destruidor – antes ser engolido pelo caos que se vulnerabilizar.

Complexidade e Incerteza

Torná-las um problema é justamente o que nos obriga a uma direção única na interação com a realidade imposta: resolvê-las, planificando nossos próprios mundos.

A Complexidade, que desobedece a todos os sentidos da palavra plano, não nos coloca problemas – estes vêm de um pensamento inadequado ao seu contexto –, ela coloca a vida. A problemática da complexidade acontece quando, em vez de aceitarmos perder o posto do saber e controlar, insistimos nos sentidos que já temos para aquilo que ainda não se sabe (se oferece). “Tudo” é uma palavra estática. O homem-Tudo não consegue se deslocar para a complexidade. 

É necessário outro pensamento para descrevê-la e sustentá-la. Uma linguagem própria para a Incerteza, que aproxime a Complexidade, sem conquistá-la. “Emergir”, nessa linguagem, é como a escuta das lacunas, das fendas nascertezas. Precisamos agora mais de Sentido – uma finalidade, um ir em direção a, disposto a abertura do caminho, contendo em si o sentir, o desvelar – do que de Significado – uma correspondência fixada, nome de coisa, fechado, pretensiosa verdade –, pois o homem-Tudo carece do primeiro e excede no segundo. 

O que estamos vivendo como realidade social é flagrante dos limites de um modo de pensar e perceber a realidade. Como entidades sobre-humanas dessa mitologia contemporânea, Complexidade e Incerteza guardam uma benevolência misericordiosa uma vez arrefecido o ímpeto do homem-Tudo por Poder e Racionalidade.

As entidades não pedem necessariamente o fim desse homem, mas sua abertura. Abertura à Vida, que se torna identificada não mais à estratégia e à permanência, mas ao processo e à continuidade. Vida que não temos, mas nos atravessa; à qual não damos ordens, e sim damos passagem. Complexidade ela mesma, sem reduções interpretativas.

Proteger-se, então, como entrar em relação (mesmo que à distância), interdepender e deixar-se atravessar, compartilhar sentido mesmo que incerto. Incerteza deixa de ser insegurança quando nos ancoramos no sentido compartilhado. “O” mundo se dilui, fazendo emergir “os” mundos, e o que os pertence se torna um cosmo maior – o Todo.

Complexidade e Incerteza, escutadas pela masculinidade, falam de outro homem, o homem-Todo, cuja atividade é buscar coerências no lugar de certezas. Coerências em movimento. A orientação a uma verdade única (seja progressista ou conservadora), a um poder único, pode dar lugar à integração, à reflexão que assuma a frágil experiência de ser homem neste tempo. O homem-Todo aprende a descentralizar a si mesmo quando a multiplicidade do mundo se encontra em uma mesma atitude: escuta.

Permanência e Continuidade

A crise não pode ser escutada senão através de sua cacofonia. Poder e Racionalidade não estão dando conta e não podemos permanecer. Estamos impedidos de ser, neste momento, a demanda atendida, o problema resolvido. Não mais respondemos à realidade-problema, e sim integramos a realidade-questão. A crise transborda uma mera reorganização das coisas, um “fazer assim” em vez de “assado”, a busca apressada do “novo normal”. Inferir que há uma mensagem a ser capturada pode mesmo nos impedir de ouvi-la em sua própria voz

Ouvir. Pois a Incerteza quase nunca é algo que sabemos escutar. Pois o nascimento do homem-Todo não depende tanto da linguagem em que descrevemos esta crise quanto da linguagem em que a escutamos. Incerteza nos fala de transformação, e transformação não é uma solução de problema, mas a abertura à finitude de uma permanência. Incerteza ela mesma, sem interpretação.

A continuidade, no lugar da permanência, não fecha contornos visíveis. É processo, intuída no salto da semente ao ramo e deste ao fruto, sentida na sucessão de identidades que somos ao largo da vida e das gerações no tempo e simbolizada nos ciclos, nas espirais e toroides, mas não pode ser tomada pelo poder nem decifrada pela racionalidade.

Pode ser angustiante conviver com a diligência de não fechar contornos nas questões que vivemos, questões envolvendo identidade, destruição, morte, isolamento, finitude. Mas é justamente nessa atitude que podemos aproximar a Complexidade e quiçá aprender com ela a transferir nossa identidade ao que continua, mas não permanece.

A angústia é a marca de uma maneira de existir que intui seu fim. Esse mito, a partir da pandemia, se encerra com dois pontos, ao que segue o fim do texto e a continuidade do leitor:

#36O MasculinoCulturaLiteratura

Redonda

por Bruno Cosentino

Segundo alguns mitos de origem, a criação é antecedida por uma forma circular, que representa a totalidade primordial. Somente quando o mundo é criado, se dá então o seccionamento – a diferenciação entre bem e mal, claro e escuro, céu e terra, masculino e feminino etc. Antes, portanto, está tudo contido nessa unidade redonda. O ovo é, por excelência, o símbolo dessas cosmogonias, mas não somente ele.  

No livro Os nagô e a morte, Juana Elbein dos Santos nos conta o mito do nascimento de Exú. Exú é considerado o primeiro nascido, da mãe e do pai primordiais, simbolizados pelas metades inferior e superior de uma cabaça, que recebe o nome de Igbá-odù. Os dois poderes – masculino e feminino – se comunicam e encontram equilíbrio no filho, associado, por isso, ao andrógino. O mito do andrógino tornou-se conhecido no ocidente através do discurso de Aristófanes, em O banquete1, de Platão. Ele nos diz que antes do homem e da mulher existia o andrógino, ser de duas cabeças, quatro braços, quatro pernas, que, devido à sua forma circular, se locomovia velozmente dando cambalhotas. Por isso, os andróginos eram muito fortes e pretenderam desafiar os deuses.

No amor, dizendo acto de o sagrar,
apertado o corpo do recém-nascido
no ovo solar, há ainda um outro
corpo incluído,
mas um corpo aquém
de ser são ou podre,
um repuxo, um magma,
substância solta,
com pulmões.

Luiza Neto Jorge, “O corpo insurrecto”

Andrógino, de Leonardo da Vinci

Ao saber da afronta, e com o intuito de enfraquecê-los, Zeus cortou-os ao meio – “como os que cortam ovos com cabelo”. O procedimento é rico em detalhes: “torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição” [grifo meu].

(Esse trecho me veio à cabeça quando, certa vez, trocando a fralda do meu filho, vi aquela cicatriz que começava no ânus, percorria o saco escrotal e terminava na pele que envolve a glande do pênis. Fiquei admirado, pois as tais pregas não polidas, assim deixadas por Zeus “para lembrança da [nossa] antiga condição [de andrógino]”, estavam ali, inscritas no corpo dele – eram a evidência irrefutável do antepassado ancestral. Pensei: “então, de fato, fomos um ser único e redondo, separados posteriormente em homem e mulher!”. É claro que o que se passa é o contrário: foi a partir da observação dessa marca de nascença que homens e mulheres trazem no corpo desde o nascimento que a história foi inventada para explicar o inexplicável: a criação. Mas a cicatriz do meu filho, que eu podia ver e cujo relevo podia sentir com os dedos, era por demais forte para me fazer acreditar no contrário – e aí está a pregnância encantada do mito na realidade concreta das coisas e do mundo.)  

Em manobra posterior, Zeus muda o sexo dos andróginos “para a frente – pois até então o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras.” Terminado o expediente e separadas as criaturas em homens e mulheres, as partes passaram a buscar para sempre a metade perdida. Essa é a moral da história. Como consequência disso, nutrimos algumas ilusões de retorno a esse um. A primeira se dá pelo sexo – o encaixe do pênis, que se projeta para fora, no buraco da vagina, seu receptáculo, recompõe a unidade originária –, nos corpos unidos de duas cabeças, quatro pernas e quatro braços, e através da despersonalização do gozo. Mas se dá também pela reprodução. E aqui, Platão encontra Exú. Filhos e filhas serão eternos portadores das essências masculina e feminina de pai e mãe e, portanto, necessariamente ligados à ancestralidade andrógina. 

(Ainda na barriga redonda da mãe, até a décima segunda semana de gestação, não há determinação dos órgãos sexuais no embrião, cujo desenvolvimento, a partir da mesma estrutura, se dará dali em diante, a depender da produção ou não de hormônios, e resultará no clitóris das meninas e na glande dos meninos, seu análogo. Os bebês, quando nascem, também possuem aparência andrógina — difícil dizer o sexo de um recém-nascido sem os sinais da cultura que o distinguem: brincos, cabelo, lacinhos, roupas, brinquedos etc.)

Assim, o feminino e o masculino se atraem – não se trata de gêneros, sequer de homem e de mulher, mas de energias contrárias postas em tensão em todas as pessoas, independentemente de orientação sexual ou de gênero – como desejo inconsciente de retorno à forma primeira. Impulso que liga os fios do início e do fim, como a descrever um círculo de proteção, uma mandala, ou a posição fetal em que aguardamos o nascimento dentro da barriga da mãe e na qual quedamos desamparados na hora fria da morte – quando, enfim, seremos absorvidos pela terra do planeta redondo. 

1 Todas as citações deste texto foram retiradas da edição bilíngue de O banquete, com tradução de José Cavalcante de Souza, pela Editora 34, de 2016.
#36O MasculinoArteArtes Visuais

Fotos de família de Gabriella Garcia

por Victor Gorgulho

O fazer escultórico é sempre uma espécie de dança entre o artista e seus materiais. Em constante negociação, conduzem um bailado ora conflituoso, ora harmônico, até uma decisão mútua em direção ao fim. Nessa dinâmica, seria ingênuo acreditar em qualquer inocência da matéria: uma vez presente, ela não se esquiva de falar, faz questão de ter voz ativa por todo o processo.

Esculpir, portanto, pode ser pensado como uma coreografia que rasga o espaço em movimentos capazes de deixar rastros de naturezas diversas. Em sua série Pilastros, iniciada em 2019, Gabriella Garcia arquiteta estruturas em gesso sobre bases de serralheria. O esqueleto, no entanto, nunca nos é visível. Quem fala, nesta dança, é a massa amorfa e inquieta do gesso, sobre a qual sobrepõem-se camadas de cor. 

Dentro da produção da artista, pouco ou nenhuma hierarquia se dá entre suportes e formatos. Assim, seus pilastros são pensados enquanto pinturas na paisagem, cujos tons de rosa, pastel, bege e afins evocam a gradação cromática dos movimentos do sol, do nascer ao poente. A coreografia diária do astro-rei no espaço sideral. 

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Em seu sentido original, a palavra coreografar pressupõe organizar os movimentos no espaço. Mas pode designar também um tipo de desenho, um movimento. Em grupo, a Foto de família de Garcia está pronta, cada integrante em sua posição demarcada, preparados para a abertura das cortinas. Em uma dança pontuada pelo gesto — pelas mãos da artista — cada escultura busca seu equilíbrio em um impreciso balé da forma. Edificam-se no espaço, rochosas, maciças e corpulentas. Leves, suaves e etéreas. Pura teatralidade e ilusão. 

**

Se uma escultura é sempre um campo ampliado de possibilidades de significação, poderíamos ler os trabalhos de Gabriella Garcia como edificações fálicas, erguidas em direção ao alto. Na arquitetura greco-romana, as colunas desempenhavam o papel alegórico da força masculina, simbolizando a força dos deuses que sustentavam os templos. Os pilares eram tomados, então, como vértebras a fortalecer tais estruturas. 

Se lidas enquanto colunas, as esculturas de Garcia seriam falhas: tortas, enviesadas, retorcidas. Se está em jogo aqui certo duelo entre abstração e antropomorfia, são obras que recusam definições rasteiras, colocam em cheque qualquer desejo vão de binarização. Seriam falos em desconstrução. Falos sem fala. 

#36O MasculinoArteArtes Visuais

A Esfera Imaginal de Alex Červený

por Rodrigo Petronio

Desde a Antiguidade, artistas e preceptistas se preocupam com duas formas de imitação: a icástica (física) e a fantástica (metafísica). Como alternativa à hegemonia da pintura icástica greco-latina, o historiador de arte Jurgis Baltrušaitis (1903-1988) identificou na arte medieval um dos pontos culminantes do fantástico. Não as catedrais, a retidão românica, as ogivas e os vitrais. Mas as iluminuras, as gárgulas, os livros de horas, a planimetria, as anamorfoses, os bestiários, as tanatologias, o mundo às avessas, a carnavalização. 

Baseada em premissas metafísicas, a fantasia atravessa ordens distintas de realidade, enaltece a analogia, gira a grande cadeia dos seres e joga com o cosmos, em um louvor às metamorfoses. Não se preocupa em representar a natureza. Preocupa-se em representar o continuum da natureza. Os animais e os minerais, os vegetais e os humanos, os seres animados e os inanimados, o objetivo e o subjetivo: todas as substâncias participam umas das outras e se interpenetram neste drama divino. 

A partir dos séculos XVI e XVII, com a ascensão da perspectiva, do ponto cêntrico albertiano e daquilo que Marcel Duchamp definiu como arte retiniana, começa um novo ciclo hegemônico do icástico. O fantástico, denegado, migra para os tratados de alquimia e de magia, os livros de rebus e a hieroglifilia, as empresas e os emblemas, as teofanias heterodoxas, os labirintos de conceitos, os enigmas e os tratados de hermetismo, os gabinetes de curiosidades, as ilustrações naturalistas de uma fauna e de uma flora inexistentes, os relatos dos viajantes.

Nessa mesma época ocorrem dois fatos decisivos: a emergência do racionalismo e a conquista da América. Por isso, alguns autores identificam aqui um paradoxo fundamental. Enquanto a Europa coroa a cisão cartesiana entre sujeito e objeto, alicerce do projeto expansionista, a América se dedica a um movimento de contracolonização. Para tanto, reorganiza os signos flutuantes da fantasia e expande as fronteiras do imaginário, em poderosas operações de anacronismo deliberado (Didi-Huberman). 

Na esteira da grande arte dos séculos XX e XXI, brasileira e mundial, a obra de Alex Červený se baseia nestes dois movimentos complementares: navega na contracorrente dessa fratura entre sujeito e objeto e desbrava territórios imaginários livres, potencializados pela herança americana e pelo atavismo de uma fantasia robusta. 

Em Todos os Lugares, temos uma curadoria preciosa tanto da variedade formal quanto da riqueza imaginativa de seu universo. A exposição da Casa Triângulo abrange aspectos e fases da obra como um todo. O livro homônimo, publicado pela editora Circuito, concentra-se nas imagens e nas descrições de cidades ao redor do mundo visitadas pelo artista, intenso viajante. São visões complementares sobre o universo visual de Červený. Ambas abordam a multiplicidade de camadas e os caminhos apresentados por esta obra singular e multifacetada. 

Os lugares de Červený são entrelugares: espaços de intersecção. O grande campo vivo desses lugares-imagens relacionais é o corpo. Entendido como entidade fantástica, o corpo é orgânico, mas não biológico. É uma esfera animista de animação. O ponto privilegiado onde os seres da physis se reúnem e se dispersam, em movimentos de expansão e contração: o editus e o reditus de que falam os místicos. 

Ao enfatizar a figuração e a planimetria metafísica, desprezadas por muitos modernos, a obra de Červený ganha duplamente. Primeiro porque se vê livre para transgredir os pressupostos da ilusão realista e tridimensional. Segundo porque passa a atuar, de saída, em um espaço sem fronteiras, sem bordas e sem limites. Habita a identidade absoluta entre real e imaginário. A partir do místico sufi medieval Ibn ‘Arabī, podemos chamar essa esfera de mundo imaginal (mundus imaginalis). 

A variedade de técnicas, suportes e materiais da obra de Červený é admirável e singular na arte contemporânea. Parte da colagem, da assemblage, dos palimpsestos, das esculturas e das intervenções, passa pelos diversos tipos de gravura, incluindo clichê em vidro (cliché verre), técnica francesa rara do século XIX, e chega à pintura, à aquarela, à ilustração (Darwin, Boccaccio, Collodi) e ao desenho propriamente dito. 

Nesse sentido, o desenho pode ser visto como fio condutor do pensamento-imagem de Červený, não por acaso um exímio desenhista. Não o desenho entendido apenas como técnica, mas a linha explorada como conceito. Diferente do senso comum, a linearidade não é uma cesura, um corte, uma contenção. A linha é o prolongamento do olhar em direção ao indeterminado e ao inextenso. Em uma palavra: em direção ao infinito. 

Essa zona de indiscernibilidade linear se encontra no âmago desta obra. E se manifesta em uma de suas principais matrizes formais: a relação imagem-letra. Se as palavras e as coisas, os signos e seus referentes, a linguagem e o mundo nunca se romperam pela fratura aberta entre sujeito e objeto, um fino fio de ouro de Homero (aurea catena Homeri) conecta letra e natureza, texto e mundo, significantes e imagens, imagens e escrita. 

Por isso, corpos se fundem a letras. Letras emolduram o sexo. O umbigo aflora em um R. Um H divide o corpo de um humano. Um pênis é englobado em pleno gozo por um Q. Como queria Derrida, a escrita é anterior à fala porque a letra (gramma) é linguagem. Mas a escritura também é grama: as folhas simples da relva em que pisamos. A natureza é um livro anônimo. O mundo, uma assinatura infinita das coisas. 

Esta cosmologia singular de Červený transborda as demarcações constitutivas do texto e da textura, do grâmico e do gráfico, da granulação e da frase, da semântica e da cor. Por isso sua obra consegue operar modulações entre elementos aparentemente tão distantes quanto versos dos Lusíadas de Camões, duas gravuras de Cornelius de Bruyn (c. 1715), Aleppo e Jafa, um panfleto da revolução cultural chinesa e referências a telenovelas, a canções populares, ao cinema, à cultura pop e sobretudo aos signos circenses, um dos esteios e das principais inspirações desta arte do imaginal em estado puro. 

Jung definiu a alquimia como a linguagem do inconsciente. Červený define o inconsciente como a linguagem da arte. Por extensão, arte, inconsciente e alquimia têm em comum o fato de serem operações anímicas de pura transferência. Tudo nesses regimes é derivado, deslocado, flutuante. Não há sentido próprio. Há apenas significantes apropriados. A revelação profana da alquimia visual de Červený consiste nisso: uma misteriosa transmutação dos seres, entre a natureza e a linguagem, entre a letra e a figura, do nigredo ao albedo, rumo a uma improvável transfiguração.

#36O MasculinoArtigo

O Masculino: direto do subsolo à cozinha daqui de casa

por Carlos Antonio Ferreira

Carl Gustav Jung (1875 – 1961).
(Photo by Hulton Archive/Getty Images)

Há alguns anos, quando não sabia ao certo para onde ir, ouvi de um amigo sobre a tradição de certa tribo africana. Os mais velhos se reúnem com quem está se sentindo perdido e começam a chamá-lo por seu apelido de infância – todos na tribo têm um. Recordam juntos momentos marcantes da vida daquela pessoa, trazendo à tona memórias afetivas de sua história. Quando um não sabe para onde ir, é preciso lembrar de onde veio.

Da mesma forma, quando não sei ainda para onde um texto irá me levar, recorro ao velho hábito de consultar dicionários e buscar pela etimologia das palavras. Foi assim também com o “masculino”, mesmo que hoje seja muito difícil decidir onde buscar definições para este adjetivo que a cada dia se apresenta mais complexo.

Mas.cu.li.no (mɐʃkuˈlinu): adjetivo.
1. relativo ou pertencente a homem;
2. relativo ou pertencente a macho;
3. Botânica: diz-se da flor que possui apenas estames;
4. Gramática: diz-se do gênero gramatical que se opõe ao gênero feminino ou aos gêneros feminino e neutro; e
5. relativo a comportamento ou aparência tradicionalmente associados aos homens.

Mesmo sendo o dicionário de edição recente, suas definições não me satisfizeram. Recorri então às estruturas da psique observadas pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, autor da psicologia analítica, segundo a qual os princípios psicológicos do masculino e do feminino exercem papel fundamental na constituição da natureza humana e no seu processo de desenvolvimento.

Todos nós, humanos, temos presentes em nossas personalidades ambos os aspectos, contrapostos e bem definidos. Da tensão entre esses opostos surge nossa capacidade e potencial de crescimento. Do convívio harmônico das potencialidades do masculino e do feminino emerge nosso potencial criativo, nossa oportunidade de cocriar nossa própria identidade. Um “eu” maior, capaz de reconciliar esse casal invisível do nosso inconsciente pessoal, ampliando nossa consciência e percorrendo o caminho que Jung nomeava individuação, o encontro profundo com nossa essência, única, indivisível.

Jung reconhece as qualidades psicológicas femininas inconscientes que o homem possui, assim como as masculinas possuídas pela mulher. Enquanto o aspecto feminino em nós é o que tem contato com nossas emoções, o que nutre, cuida, acolhe, o aspecto masculino é o da lógica, da racionalidade, é o que estabelece as regras, as leis e a ordem – o código de Hamurabi é um dos conjuntos de leis escritas mais antigos e bem preservados da nossa história, elaborado por volta de 1772 a.C., na Mesopotâmia. Recomendo uma busca pela imagem desse monumento, talhado em pedra, que ora se encontra no Museu do Louvre, em Paris. Ele fala por si só.

Jung atribuía ao princípio feminino nossa capacidade de seguir a vida aceitando mudanças, com confiança, segurança e esperança diante dos encerramentos de ciclos e renascimentos que formam nossos aprendizados. Ao masculino, nossa capacidade de tomar decisões, de ser independente e de nos tornar agressivos e competitivos, mas também responsáveis, provedores, figuras de autoridade. É o princípio que nos guia para separar o bem do mal, o certo do errado, o permitido do proibido, não só ditando disciplina e ordem, mas também criando e colocando limites para nós mesmos e para os outros.

No passado, o conflito mais comum entre esses princípios se dava em nossa cultura, na dificuldade e até mesmo na proibição de que os homens acolhessem e lidassem com seus aspectos femininos e as mulheres o fizessem com seus aspectos masculinos.

Hoje, com uma melhor compreensão sobre a diversidade de gêneros, ainda que engatinhando, já é possível observar e lidar melhor com os potenciais positivos e negativos do feminino e do masculino. Não se pode fazer referência a um sem o outro.

As réguas da masculinidade são o sucesso, o poder, a admiração que uma pessoa provoca – ela busca ser independente, audaciosa, agressiva, capaz de tomar riscos e decisões importantes. Como natural decorrência dessas qualidades, colhemos a violência pessoal e coletiva, a competição desenfreada e sem propósito, o estresse, a obsessão pelo alto desempenho.

Essa masculinidade é constantemente ameaçada pela intimidade, pelo sentir, chorar, pela afetividade característica do feminino. Proibido, ponto de fraqueza, a ausência do feminino torna a pessoa incapaz de se entregar a uma relação verdadeira.

A redução do mundo dos afetos ao sexo permite o jogo da sedução, mas evita o envolvimento, o compromisso, produzindo parceiros-objetos, quaisquer que sejam suas naturezas biológicas, gêneros ou opções sexuais.

A ausência do feminino nos distancia da natureza, dos instintos, da intuição. Perdemos a alegria de viver, a confiança na vida, a oportunidade de lidar com incertezas, com o imponderável. Já a ausência do masculino nos leva a um atoleiro de emoções que nos confunde, nos impede de agir racionalmente, facilmente nos deixando mais melindrados com tudo e todos, reagindo com mais sarcasmo, jogando indiretas ao invés de objetivar a situação ou experiência que vem sendo vivida.

Essa busca não deve ser de um em detrimento do outro, mas sim da presença marcante de um e de outro, em diálogo e não em competição. É preciso ser masculino e feminino para ser humano. Tarefa simples de ser escrita, uma epopeia a ser vivida, muitas vezes conflitante com nossa natureza biológica e cultural. Trabalho para corajosos ou loucos que se aventuram na jornada do autoconhecimento.

Comecei este nosso diálogo no subsolo de minha casa, já que, por conta do confinamento imposto pela Covid-19, minha esposa se estabeleceu no meu escritório e consultório para realizar suas videoconferências de trabalho, o que é a própria síntese do que tento compartilhar agora.

No campo psicofilosófico a que me atenho, veja bem – a que me atenho -, cor, preferência(s) sexual(is), prática(s) (ou não) religiosa(s), dietas, estilos de se vestir ou falar pouco ou praticamente nada importam. Muito pelo contrário, quanto mais diversos, mais ricos, mais elucidativos, mais humanos.

Mesmo assim, me sinto de alguma forma preso, ao escrever, pelas estúpidas amarras a que estamos nos permitindo ser atados. O sofisma já se inicia quando julgamos que possa existir uma forma única possível de agradar a todos.

Portanto, balela! É praticamente o mesmo dilema da porta: eu gosto de abrir portas: do carro, da casa, das salas, do elevador, quer seja para mulheres, homens, trans, homos, héteros, jovens, idosos, atletas, amorfos, pretos, brancos, amarelos, vermelhos ou verdes.

Sinto-me bem explicitando minha reverência ao outro. Faço isso sempre. Muitos gostam; outros, não, se sentem mal, ofendidos ou subjugados. Discordo, mas respeito, porque o que eu penso sobre o outro é irrelevante. O que ele sente é o que existe quando se propõe de fato a uma conexão com o outro. Mas sempre corro o risco de abrir a porta, observando a reação, que definirá se continuarei ou não a abrir portas para este um específico.

Já percebeu o tamanho da minha encrenca? No mundo machista, sou excessivamente gentil, talvez falso ou até mesmo efeminado. No feminista, subjugo a força e a independência das mulheres. Porém nada me impediria de ser eu mesmo.

Voltando ao meu subsolo, vamos recuperar a imagem da minha esposa trabalhando no meu escritório enquanto eu me exilo no subterrâneo de nossa casa. Precisei descer e me trancar nesse pseudoútero para fazer parir essas ideias que queria compartilhar.

Se no passado a singularidade dos modelos de homem, mulher, pai, mãe, masculino, feminino, nos oprimia e amputava, a pluralidade atual mais confunde do que nos orienta. Oscilamos do masculino para o feminino, da norma rígida para a ausência de regras e ordem.

Estamos vivendo uma grande carência de modelos. Modelos de ser humano no século XXI, em busca de mais e melhor integridade, de jogar fora rótulos sob os quais políticos e marqueteiros hoje deitam e rolam, enquanto a natureza e o desenvolvimento humano choram por abandono.

Ser íntegro, ou buscar integridade, é buscar por completude, totalidade, consciente e inconsciente, individual e coletiva, bonita e feia, feminina e masculina. É buscar tornar-se um indivíduo: aquele que não se divide, que não se pode dividir.

Termino agora, já de volta ao meu escritório, em domingo ensolarado, porque preciso preparar o almoço de dia das mães. Em homenagem a elas, quem cozinha aqui em casa, todos os dias, sou eu.