Há quase duas décadas, a pintura figurativa e, em particular, a representação do corpo humano reapareceu em cena no palco da pintura. Competindo pelo privilégio da representação da figura humana com a fotografia, o vídeo e a performance, as telas e tintas buscam se reafirmar como dispositivos de debate atrelados às políticas em torno do corpo, com seus agentes valendo-se uma certa gama de argumentos e discursos.
Esse fenômeno, o da presença da figura humana nas diferentes mídias artísticas e principalmente a sua retomada pela pintura, parece ter se intensificado com a justificativa política de que o corpo precisa viver e exercer de fato a sua liberdade, e não apenas ser aprisionado na falsa ideia de liberdade produtificada pelo neoliberalismo e a mera e cínica “liberdade” de comprar indiscriminadamente, colocando-se na eterna condição de endividado, tornando-se um prisioneiro do sistema. Uma grande retrospectiva itinerante da pintora estadunidense Alice Neel (1900-1984), intitulada People Come First (As Pessoas Vêm Primeiro), apresentada este ano no importante Metropolitan Museum e que seguirá para o Guggenheim Bilbao, terminando nos Fine Arts Museums de San Francisco, traz em seu título uma importante mensagem para nossos tempos e dá nova dimensão à pintura dessa retratista. Neel declarou em 1950: “Tentei afirmar a dignidade e a importância eterna do ser humano.”1
Dentre os muitos exercícios da liberdade evocados pela arte contemporânea, em particular pela pintura figurativa, vemos os debates raciais e de gênero, a denúncia do chamado estado de exceção, questões que perpassam não apenas as obras de uma vasta gama de artistas que emergem no cenário atual, mas principalmente aos discursos de críticos e críticas de arte, jornalistas, curadores e curadoras, influencers, galeristas, diretores de museus, casas de leilão e colecionadores.
Hoje, a pintura figurativa, em especial a de artistas negros e negras ou pertencentes a grupos periféricos, parece emergir como uma ferramenta importante para inversões simbólicas conceituais e, principalmente, tentativas de rearranjos políticos e justiça social. É o caso dos estado-unidenses Henry Taylor, Kerry James Marshall e Kehinde Wiley e, mais recentemente, muitos jovens artistas no Brasil, alguns deles bem rapidamente já representados por galerias e incluídos em mostras sobre, por exemplo, questões raciais e de gênero em museus nacionais e internacionais.
Muitos de nós temos tentado repensar, cada um a partir de nossos respectivos lugares mais ou menos privilegiados, os legados de determinados artistas. Dentre eles, Tarsila do Amaral, mulher branca, que pintou A Negra, de 1923, uma ode ao Brasil popular em nome da invenção e do progresso do vocabulário moderno nacional, mas que infelizmente também reforçou certos estereótipos raciais. Trata-se de uma pauta urgente, mas é importante lembrar que o mercado e a sociedade de consumo e os interesses privados sabem lidar bem com urgências. A assustadora velocidade com que certos artistas figurativos estão sendo arremessados ao sucesso e sua acelerada institucionalização parece falar menos sobre um realismo pictórico, crítica à real condição das instituições públicas, e mais sobre um “Realismo Capitalista”, para citar uma expressão de Mark Fisher.
Dessa forma, parte da pintura figurativa atual se insere nesses exercícios de empatia, alteridade e performatividade, confrontando tempos de tristes shows do ego e produtificação do Eu, mesmo correndo o risco de sua cooptação e banalização pelo sistema, que, justamente, produtifica tudo. Há, também, uma busca por uma intimidade perdida, um resgate de uma ancestralidade ou memória local, uma tentativa de preservação das especificidades regionais, uma retomada de certa dimensão não apenas narrativa, mas também ficcional, delirante e onírica da pintura, de sua capacidade de criar mundos e não apenas ser mais um mero (hiper)reality show. Em um mundo dominado pelo audiovisual e digital, muitas pinturas buscam se opor a certo realismo excessivo, ou mesmo hiper-realismo, de uma parcela da fotografia, do cinema, das telas de smartphones e, principalmente, da fome de real dos documentários.
Para tanto, essas pinturas figurativas buscam ficcionalizar ou repensar a realidade, valendo-se de antigos recursos expressivos, exageros e deformações caricaturais (Marlene Dumas, Lynette Yiadom-Boakye, John Currin, George Condo e Dana Schutz); traços e pinceladas violentas (Tracey Emin, Jenny Saville e Yan Pei-Ming); alegorias (Glenn Brown); presença física (Cecily Brown); apagamentos sombrios (Luc Tuymans e Wilhelm Sasnal); criação de mundos fantásticos (Michaël Borremans e Lisa Yuskavage); espacialidade, monumentalidade e intervenções no espaço urbano (Banksy). Mesmo através da ficção, ou mesmo da ficção científica, certos artistas tentam realizar críticas políticas e sociais. É o caso de nomes como o do alemão Neo Rauch, e sua realidade ricamente distópica, representando um mundo eternamente em construção e revolução, cenários estranhos, povoados monstros que parecem ter saído de um filme B, em sintonia com os dilemas de um mundo pós-orgânico.
Além dos nomes mencionados anteriormente, hoje temos grandes representantes estrangeiros, e já podemos chamar históricos, da pintura figurativa, todos focados ou muito envolvidos na representação da figura humana, e ainda em plena atividade, que merecem destaque. Dentre eles estão Alex Katz, Gerhard Richter e Georg Baselitz, ainda capazes de gerar notáveis replicantes que povoam as redes sociais, alimentam algoritmos e/ou galerias de arte, museus e coleções ao redor do globo. Isso não é necessariamente ruim, apenas quando feito de maneira alienada, acrítica e/ou estritamente comercial e elitista.
Aqui no Brasil, a figura humana na pintura sempre esteve presente na obra de nomes referenciais como Victor Arruda e seu imaginário ácido pop-político-surreal, Luiz Zerbini e suas intrincadas e espetaculares montagens quase cenográficas e Adriana Varejão, com sua requintada e sedutora investigação dos traumas de nosso passado (e presente) colonialista e racista. São nomes marcantes que continuam influenciando novas e mesmo antigas gerações. Apesar desses importantes nomes, de 1990 até a primeira década dos 2000, nosso mainstream artístico experimentou uma grande escassez de ordem representacional da figura humana na pintura: onde foram parar as faces, os corpos e o páthos? Onde estava a tradição de nomes como Pedro Américo, Heitor dos Prazeres, Djanira, Anita Malfatti, Tarsila, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Lasar Segall, Portinari, Guignard, Carybé, Iberê Camargo, Rubens Gerchman e Glauco Rodrigues, mestres dos retratos ou da transposição da fisicalidade humana para o plano pictórico? É possível que muitos bons nomes da pintura figurativa no Brasil tenham sido ocultados por determinados discursos desse mainstream, gerando o apagamento de suas carreiras.
Na pintura figurativa atual, assim como nas demais mídias, o ativismo político tem se afirmado como uma questão urgente. Toda arte é política, alguns creem. Em certas obras de arte, de fato, a política e a economia parecem emergir de maneira sutil e não explicitamente panfletária – não que um panfleto artístico ou uma arte-panfleto seja algo ruim. Por exemplo, nos corpos deformados, quase abstratos, de Francis Bacon, há uma conversão da luta wrestling, tradicionalmente homofóbica e competitiva, num jogo de afetos eróticos, num potente entrelaçamento visceral das carnes, algo desviante, uma singular pulsão expressionista e homoerótica. Algo, portanto, político. Quadros pintados em plenos preconceituosos anos 1950. E os corpos gays e trans que sangraram, agredidos, mortos ou suicidados pela sociedade daquele tempo ainda sangram nas ruas das cidades ao redor do globo pelos mesmos motivos.
Gostaria de citar outros dois marcos da pintura figurativa moderno-contemporânea, que ainda impactam gerações após gerações: Jean-Michel Basquiat e Philip Guston. Primeiro, gostaria de comentar os gestos políticos da pintura de Basquiat, focada principalmente no corpo humano. Em uma grande quantidade de suas obras, cabeças negras, muitas vezes apenas apresentadas sob a forma de silhuetas, muitas delas autorretratos do artista, buscam lições visuais nas máscaras africanas e artefatos ritualísticos de outras culturas, no cubismo de Picasso, na art brut de Dubuffet e nos rabiscos ainda provocadores de Cy Twombly. As figuras negras de Basquiat emergem num meio artístico hegemonicamente branco, coroadas pelos seus famosos dreadlocks – e temos aí um notório gesto de afirmação e pertencimento por parte do artista, sua autoproclamação, sua autoinstituição.
Já em de suas mais notórias telas, e já tida como uma obra-prima da pintura contemporânea, Defacement (The Death of Michael Stewart) / Desfiguração (A morte de Michael Stewart), de 1983, vemos uma pintura-denúncia-protesto-memorial, à qual o Guggenheim de Nova York dedicou toda uma exposição em 2019. Uma pintura figurativa e política, como muitas outras de Basquiat, que tematiza a violência policial nos EUA contra homens e mulheres, jovens e crianças negras. Um trabalho da arte contemporânea que, num olhar apressado, pode se assemelhar a um cartoon encontrado em um caderno espiral de um adolescente ou parede de banheiro público, mas que se insere dentro da tradição da arte sacra, justamente ao dessacralizar a auréola católica, representada sob a forma de um austero rabisco negro, que, no lugar de santificar homens e mulheres brancas, coroa o jovem negro Michael Stewart, um grafiteiro marginalizado, um semelhante do próprio Basquiat.
Só a arte narrativa e, talvez, a arte figurativa de traços expressionistas são capazes de converter um jovem assassinado de maneira simbolicamente tão ágil e marcante num Cristo negro, oprimido e escarnecido, situado entre dois “soldados romanos” da NYSP, o departamento polícia de Nova York. Basquiat pinta suas faces cruéis propositalmente rosadas, para que se assemelhem a porcos, e desenha presas afiadas de javali – criaturas chafurdadas na lama da corrupta e yuppie Manhattan de 1980.
Mas o poder de mobilização de algumas pinturas figurativas políticas que se valem, buscam plasmar ou, ao menos, evocam sofrimento na imagem do outro geram muitas vezes atritos, polêmicas e constrangimentos. Todos eles, entretanto, são necessários no debate democrático. No turbulento ano de 2020, em meio à explosão da pandemia da Covid-19, vimos também o adiamento para 2024 da retrospectiva itinerante de Philip Guston, mas não apenas por conta do vírus letal. A exposição seria apresentada em 2020 e 2021 na National Gallery of Art de Washington, D.C., no Museum of Fine Arts de Boston, no Museum of Fine Arts de Houston e na Tate Modern de London.
A decisão de protelar a retrospectiva em quatro anos teria sido realizada com o intuito de reformular a mostra para que ela passasse a discutir e refletir melhor sobre as “urgências do momento”, nas palavras dos diretores dos quatro museus em um comunicado conjunto. É inegável que as figuras cartunescas de Guston, aliadas a uma sofisticada paleta de cores em que se destacam tons de rosa e vermelho, elementos gráficos e contornismo, que o inserem na linhagem expressionista, contribuíram para afirmar Guston como um dos maiores nomes da arte do século XX. Seus retratos dos membros da KKK por vezes também se confundem com autorretratos do artista, visto como um ser fadado ao individualismo, refém do ateliê e das tintas, um fumante compulsivo, atormentado pela passagem do tempo, como indica o relógio pintado na parede.
No início, essas obras não foram bem recebidas pela crítica, por serem um movimento chocante não apenas dentro da carreira de Guston, antes um pintor abstracionista de renome, mas também do “encadeamento lógico” da arte dos EUA. Se observamos um retorno à figuração em uma notável parcela das exposições e do mercado de arte, é importante lembrar que é papel dos e das artistas estarem alertas às unanimidades do sistema. Guston sempre esteve atento às unanimidades, e sua opção foi não representar qualquer face unânime e positiva, mas sim faces negativas e talvez as mais polêmicas e assassinas dos EUA, correndo o risco de ser assombrado por esses fantasmas.
Grande parte das obras cartunescas ou “HQ” de Guston são verdadeiros trabalhos de metalinguagem e crítica institucional, que questionam não apenas o racismo na América, mas também o papel da pintura nesse debate e o de um artista branco no contexto dos anos 1960 e 1970. Seus encapuzados seriam também nossos alter egos, qualquer espectador branco que adentra o espaço elitista dos museus e galerias. Afinal, até que ponto somos de fato engajados em mudanças sociais profundas?
Entretanto, os críticos na mostra natimorta destacaram que essas potentes imagens figurativas que evocam um tema tão doloroso para os EUA e para o mundo mereciam mais, e esse mais significa dar atenção a “outras vozes” que deveriam ter sido mais escutadas na organização da mostra. Muitos detratores da mostra concordaram. No catálogo, havia, entre depoimentos de uma série de artistas, textos de dois artistas negros, Glenn Ligon e Trenton Doyle Hancock, mas, mesmo assim, as vozes e dores evocadas por Guston são muito profundas.
Esses acontecimentos demonstram que a pintura figurativa, e mesmo obras produzidas há décadas, de um artista falecido, ainda são capazes de revelar, a qualquer momento, sua capacidade provocadora junto ao público, mesmo num ano em que, talvez, muitas pessoas não imaginassem que a pintura fosse capaz de atrair para si a foco das atenções, sem que fosse pelas cifras milionárias e hiperinflacionadas pagas pelas obras de certos artistas nas casas de leilão.
Esses dois casos, Basquiat e Guston, são duas referências para a novíssima safra de pintura contemporânea. Basquiat, em particular, desde sua morte vem impactando hordas de artistas replicantes de seu estilo pictórico – basta pesquisar a hashtag #basquiat no Instagram para encontrar tudo, menos imagens de obras do próprio Basquiat. Sua influência não se restringe apenas ao plano da pintura, mas também aos “shows do eu” do meio de arte, já que Basquiat era também habilidoso em se autopromover e sempre ambicionou a fama. Seu status de celebridade, reforçado pela morte prematura, de certo modo impulsiona a escolha de uma parcela de artistas por estilos que evoquem Basquiat, sua vida cinematográfica e mitologia. Essa escolha acaba se expandindo para a pintura figurativa ou narrativa em geral, para a escrita sobre tela, criando também uma expectativa e demanda por parte do mercado por novos Basquiats, cuja imagem seja de fácil consumo pelo público e cuja obra possa ser hiperinflacionada rapidamente.
Os (eternos) booms ou retornos à pintura figurativa foram marcados, por exemplo, com a publicação, em 2002, pela editora Phaidon, do livro Vitamin P, que ganhou edições subsequentes (Vitamin P2 e P3). Destacam-se a abundância das reproduções em cores das obras e os textos de letras diminutas. Essas e outras publicações, incluindo revistas especializadas como a Artforum e seus inúmeros anúncios de galerias comerciais, passaram a dar a aparente, mas desejada, segurança a muitos jovens artistas, artistas em início de carreira ou velhos artistas em eterno início de carreira, de que a pintura figurativa tem seu lugar ao sol reservado junto a certos curadores e curadoras, museus e, principalmente, a todas as galerias, casas de leilão e grandes coleções privadas.
Saindo do plano da pintura, mas para reforçar a importância simbólica e, acima de tudo, política da figura humana quando representada nas obras de arte, cabe falar de certos monumentos que temos visto serem queimados, destroçados, derrubados ou afundados. Falamos das tristes eternizações do passado que representam racistas, assassinos e torturadores dos EUA, da Inglaterra e do Brasil, genocidas que derramaram sangue inocente em nome da relativa ideia de “civilização”. Os algozes, os antigos colonizadores, mesmo que simbolicamente, precisam tombar ou queimar, defendem as novas gerações. Os reacionários pedem a prisão dos responsáveis pelos atos de iconoclastia, acusam-nos de terrorismo em publicações e comentários na internet. Muitos desses reacionários, triste e cinicamente, habitam o meio de arte.
Inspirada nessas ações, a pintura figurativa se encontra em um momento crucial. Ela deverá exercer um importante papel nessa necessária iconoclastia, mesmo que não de forma literalmente destrutiva. Fica o desafio para nós, artistas da pintura, atingirmos a grandiosidade simbólica e política do ato que é atear fogo em uma escultura de um assassino do passado cuja imagem insiste incomodamente em permanecer colossal no presente. Nós, atualmente, vivemos uma maldição: a de viver em uma época interessante. Tal como dizia um grande narrador e pensador, Albert Camus:
“(…) até agora, o artista estava à margem, nas arquibancadas (…) Ele cantava por nada, para si mesmo ou, na melhor das hipóteses, para encorajar o mártir e distrair um pouco o leão do seu apetite. Hoje, pelo contrário, o artista se encontra no anfiteatro. Sua voz, por necessidade, não é a mesma; ela é bem menos segura. Estamos em uma arena. (…) Criar hoje é criar perigosamente!”2
É só depois que nos damos conta de que alguns dos atos simbólicos mais potentes de protesto recentes não foram executados por artistas de renome, das capas de revista badaladas, mas por pessoas comuns, trabalhadores oprimidos – os Sísifos que lotam os metrôs dia após dia. É só depois disso que muitos de nós somos jogados para o centro da “arena” mencionada por Camus. Se não aprendermos com essa “arena”, com essa tomada de consciência, se não sairmos das arquibancadas da história, corremos o risco de nossas pinturas, figurativas ou não, virarem ou continuarem a ser meras reproduções de antigas fórmulas, commodities ou joguetes mercadológicos.
Notas:
1https://www.metmuseum.org/exhibitions/listings/2021/alice-neel
2Camus, Albert. Create Dangerously. Londres: Penguin books, 2018. Tradução do autor.