#21SolidãoCulturaLiteratura

L’enfer, c’est les autres: mas e se o inferno for estar sozinho?

por Leticia Lima

O que significa estar sozinho? Para alguns, a solidão vem de um estar-sozinho tangível. Estar fisicamente só provoca uma sensação de solidão. Para outros, porém, a solidão nasce quando você se sente sozinho apesar de estar acompanhado.

O filósofo existencialista Jean Paul Sartre tem uma frase famosa, “O inferno são os outros”. Sua peça “Huis Clos” (1944) explora a frustração de se estar sendo constantemente vigiado – observado – por outros. Essa observação constante nos faz sofrer o inferno que é existir por meio da consciência de outro. Talvez seja essa discrepância entre o que acreditamos ser e o que acreditamos que os outros pensam que somos que causa esse grande abismo de solidão que às vezes sentimos na companhia de outros.

Na peça de Sartre, os três personagens principais morrem e partem para a vida após a morte. O inferno deles, porém, não é nada do que esperavam. Um quarto bem equipado, decorado no estilo do segundo império, com três sofás. Inicialmente parece que se trata de um inferno benigno, mas, à medida em que o tempo vai passando, entendemos que não há inferno pior que ficar eternamente preso com as mesmas pessoas com um medo constante do julgamento delas. Enquanto Garcin, Inez e Estelle descobrem a verdade a respeito um do outro – o primeiro, um traidor covarde que maltratava a mulher, a segunda levou o amante ao suicídio e a terceira, uma mãe que matou seu recém-nascido por vaidade –, eles são carregados cada vez mais longe do perdão que procuram. Em vez disso, se encontram condenados a reviver seus terríveis pecados na companhia limitante um do outro pelo resto da eternidade.

Sartre acreditava que a consciência humana diferia das outras no sentido que confere aos humanos a capacidade de escolher sua essência; somos condenados a ser livres. Enquanto ele argumenta que o “Inferno são os outros”, ele, no entanto, acredita que esses “outros” não conseguem tirar nossa liberdade. Essa liberdade de pensamento, ação e escolha é a ideia central por trás do existencialismo de Sartre. De acordo com o filósofo, essa liberdade de escolha implica uma responsabilidade absoluta por nossas ações: somos deixados a sós, sem desculpas. Uma vez que fazemos uma escolha, aquela escolha se torna parte de nossa essência e vai nos seguir pelo resto da vida. Quando confrontado com o universo vasto e sem sentido, o enorme medo da responsabilidade que vem com a escolha força muitos de nós a ignorar esse medo e responsabilidade e deixar que outros façam nossas escolhas por nós. Relembrar os pecados que carregamos do nosso passado sob o constante olhar alienante de outros pode ser a verdadeira definição de inferno.

Eu não posso evitar estremecer com a ideia de passar a eternidade no inferno de Sartre. A impossibilidade de escapar, o horror de estar presa por toda a eternidade no mesmo quarto, com as mesmas pessoas – é indescritível. Porém, estamos todos presos em um inferno desse tipo, apesar de ser um inferno em escala muito maior. Estamos presos na Terra, todos os mais-de-alguns-bilhões de seres humanos. Não conseguimos viver em nenhum outro lugar – pelo menos ainda não. Nosso planeta tem espaço, recursos e atmosfera finitos, mesmo enquanto aumentamos em número a cada década que passa. E, enquanto ainda há espaço o suficiente para permitir que a gente (ou pelos menos alguns de nós) possamos “escapar” de nossas vidas rotineiras adentrando outros bairros, cidades ou países, não conseguimos escapar o que estamos colocando no nosso planeta, ou o que retiramos dele. Estamos presos, como no inferno de Sartre, com os pecados de nossos passados, e com pouca simpatia uns pelos outros.

Talvez seja esse um medo subconsciente partilhado por toda a humanidade. Afinal, desde o início da humanidade as pessoas têm forçado seus limites cada vez mais. O historiador Frederick Jackson publicou, em 1893, um ensaio intitulado The Significance of the Frontier in American History [A importância da fronteira na história americana], no qual descreve o desejo de conquistar a fronteira ocidental como uma característica fundamental do caráter americano e da evolução. De certa forma, o desejo de forçar nossos limites definiu um dos traços mais fundamentais e bem sucedidos da adaptação humana. E a última fronteira, claro, é o espaço sideral.

O esforço que fizemos para escapar de nosso inferno terreno sartreano nos impulsionou a explorar as estrelas. Os astrofísicos, filósofos do mundo moderno, ainda discordam sobre a existência de vida humana inteligente. Eu, pessoalmente, gosto de concordar com Stephen Hawking, talvez o mais famoso de todos eles, quando ele afirma enfaticamente que não estamos a sós no universo. Eu certamente não sou nenhuma especialista, mas os números parecem apontar uma probabilidade avassaladora de haver vida inteligente no nosso universo. Somente em nossa galáxia existem aproximadamente entre 100 e 400 bilhões de estrelas. Para cada uma dessas há o equivalente de uma galáxia equivalente lá fora. Em outras palavras, para cada estrela na Via Láctea existe uma galáxia inteira no universo – algo em torno de 1022 e 1024 estrelas. Não se sabe quantas dessas estrelas têm luminosidade, temperatura e tamanho parecidos com nosso Sol, mas os conservadores acreditam que se trata de 5%, ou seja, 500 quintilhões de estrelas similares ao Sol.

Um debate igualmente acalorado ocorre em torno da porcentagem de planetas que são equipados para sustentar vida. Mas o planeta em si ter condições não é o suficiente. O planeta também precisa orbitar uma estrela similar ao Sol em uma orbita que é próxima o suficiente – mas não próxima demais. Estima-se que esse cenário ocorra com 1% das estrelas do universo; 100 bilhões de bilhões de planetas. Isso significa que mesmo que a vida se desenvolva em apenas 1% desses potenciais planetas, somente na Via Láctea já teríamos 100.000 planetas com vida inteligente.

A questão é: onde está todo mundo? Existem três respostas possíveis. Para colocar a coisa em termos um tanto grosseiros: ou somos raros, ou somos os primeiros, ou estamos fodidos. Se somos raros, então evoluímos por uma série de circunstâncias que são praticamente impossíveis de ocorrer simultaneamente. Em outras palavras, chegou um certo ponto onde outras formas de vida atingiram uma grande barreira, o Grande Filtro, através do qual não conseguiram evoluir. Nós conseguimos nos espremer através dele. Se somos os primeiros, então também fomos bastante sortudos. Pode ser que apenas recentemente as condições do universo se tornaram favoráveis à existência de vida, e nós simplesmente corremos em disparada à frente dos outros. A terceira possibilidade é que o Grande Filtro ainda está por vir, e que não somos nem os primeiros, nem raros, mas simplesmente os mais recentes a atingir esse ponto na escala evolucionária antes de – poof! – sermos obliterados por seja lá o que for que impede outras civilizações de avançarem. Isso torna o nosso futuro bastante sinistro.

Pode haver outras razões pelas quais não encontramos provas da existência de vida inteligente no espaço. Neil deGrasse Tyson, chefe do planetário Hayden no Rose Center for Earth and Space, em Nova York, argumenta de forma irreverente que “Eu me pergunto se, de fato, nós já fomos observados por alienígenas e, após uma observação minuciosa, eles concluíram que não há sinal de vida inteligente na Terra”. Depois, mais sério, concluí que “declarar que a Terra deve ser o único planeta do universo com vida seria imperdoavelmente pretensioso de nossa parte”. Stephen Hawking, por sua vez, tem tanta fé de que há vida inteligente lá fora que se envolveu no projeto Breakthrough Listen. O projeto de £64 milhões, apoiado pelo bilionário russo Yuri Milner, permite que pesquisadores importantes tenham acesso a radiotelescópios, pelos quais conseguem ouvir emissões extraterrestres a uma distância dez vezes maior que jamais antes, com uma sensibilidade cinquenta vezes maior.

No lançamento do projeto na Royal Society em julho, Hawking se pronunciou: “Talvez em algum lugar do cosmos, alguma vida inteligente esteja observando estas nossas luzes, cientes do que elas significam”, então ponderou “Ou será que nossas luzes estão viajando por um cosmo sem vida – faróis que nunca serão vistos, anunciando que aqui, sobre uma rocha, o universo descobriu sua própria existência?”.

Independente de se nossa busca pelo espaço sideral revelar que estamos completamente sozinhos, ou se encontrarmos outras formas de vida inteligentes, a humanidade nunca vai parar de tentar escapar os confinamentos do planeta Terra. Nossa busca para além desses confinamentos nos torna responsáveis, de forma irrevogavelmente sartreana, por nossa liberdade como espécie. Se Sartre estiver certo e o inferno for mesmo as outras pessoas, só espero que a gente não descubra que o inferno são outros alienígenas também.

#21SolidãoArteArtes Visuais

Los finales de una obra de Vitor Florido

por Victor Florido

Em Imagem e semelhança, Víctor Florido analisa operatórias da imagem em relação ao funcionamento da memória a respeito do verosímil, valendo-se da restituição ao uso comum de um corpus diverso de imagens para levá-los a um novo lugar, no qual, diagrama uma reflexão sobre a função da reminiscência, o estatuto da representação e o real verídico.

Os diferentes trabalhos aqui reunidos estruturam uma narrativa de conteúdo fantasmagórico e claustrofóbico. Configurada a maneira de instalação, na que em cada uma das obras combina diversos gêneros pictóricos, propõe ao olhar um percurso convincente e sinuoso pelas diferentes superfícies das obras e dos assuntos e procedimentos que as conformam. Quartos constituídos como espaços pictóricos que abrigam naturezas mortas, retratos, cenas de evocações históricas. Diferentes mobílias, como painéis, camas e mesas, sobre os quais ficam espalhados livros, molduras, papéis e potes. Representações do entretenimento, do fluxo informacional e do consumo massivo que dialogam com retratos de homens de diferentes idades embasados, cobertos, obliterados.

Este corpus de obras mostra uma narrativa estruturada sobre representações que toma elementos de fotografias que integram o arquivo familiar e um atlas pessoal em permanente formação. Florido não realiza uma transposição exata da imagem fotográfica ao pictórico, outrossim, que com atenção à especificidade linguística própria, opera através dum processo de tradução, edição e seleção com o intuito de oferecer cenas que chamam para um olhar demorado, estudo e descoberta onde os detalhes espelham o carácter artificioso da construção do verosímil.

Logo, se procura mostrar uma construção que propõe uma narrativa convincente, por sua vez, pela sua própria especificidade, fica sublinhado que não se estrutura como a fidelidade certeira dum modelo externo. É o atributo do que possui probabilidade de veracidade, com a pretensão de ser ainda mais exigente que o “real” pela chamada à confiança nos sintagmas que o constituem. Nesse sentido, na sua pesquisa sobre a configuração da imagem, Florido discorre sobre três instâncias móveis, porosas e indissolúveis: o conceito mental, a representação manufaturada e o referente dessa representação. Esse diagrama entre imagem, suporte e referente opera o tempo todo na mostra. Imagem e semelhança faz uso dos elementos linguísticos do dispositivo pintura, para nos mostrar que a memória, essa ficção construída por imagens, ativa-se por, e configura-se em elementos reconhecidos e por sua vez pelo contexto onde surgem, estranhos. As obras aqui reunidas nos apontam que é a partir dos detalhes que elas se potencializam e se conformam em uma sequência verosímil. Muros que se superpõem com paredes, painéis flutuantes, sombras inverossímeis, planos rebatidos, perspectivas confusas… Detalhes confeccionados pela própria linguagem pictórica que deixam a mostra o carácter artificial da memória e refratam sobre a configuração do verosímil.

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Nuvens em Kassel

por Emilio Fraia

Estou no aeroporto, em Auckland, indo para Queenstown, são oito da manhã e o weather channel do iPod marca sete graus. Em maori, Nova Zelândia quer dizer “a terra da grande nuvem branca” — o que é bonito, pois é como se “nuvem” fosse um elemento que pertencesse à terra.

Achei que conseguiria te escrever antes, mas só agora abri o computador, na sala de embarque lotada, que talvez não seja o lugar mais apropriado para pensar sobre as relações entre solidão e arte.

Porque é essa a minha tarefa agora: escrever um texto sobre a importância (ou não) de se apartar do mundo para produzir algo, um romance, por exemplo.

Trouxe comigo um livro, Kassel no invita a la logica, do catalão Enrique Vila-Matas. Acabei de passar da página duzentos. Você iria gostar. O protagonista é um escritor que é convidado a ir à Documenta, em Kassel, com uma missão: passar as manhãs, ao longo de três semanas, num restaurante chinês da cidade, e ali, na frente de todos, escrever uma ficção, de preferência interagindo com eventuais curiosos.

Ao entrar no Dschingis Khan (é o nome do restaurante), ele vê seu posto: uma mesa redonda num canto triste do estabelecimento chinês. Nela, há um “horrendo vaso de flores” e um “cartaz amarelo gasto e envelhecido” em que se lê: writer in residence. Sua vontade, claro, é de sumir.

Avançamos sobre esta que é uma das fronteiras últimas do privado (a escrita, a realização de uma obra)? A experiência contemporânea permite que fiquemos sozinhos? Tudo é feito para ser mostrado? O eixo da intimidade se deslocou irremediavelmente? Foram perguntas que fui me fazendo ao longo da leitura, de olho no texto que deveria escrever, sobre solidão e arte, arte e solidão. O personagem de Vila-Matas lembra de Kafka, que, em uma carta à noiva Felice Bauer, escreve: “A melhor vida para mim consistiria em ficar confinado com uma lâmpada e com o necessário para escrever no lugar mais profundo de um amplo porão fechado”. Em outra carta, de 1913, o tcheco expressava o seu medo de que Bauer, quando se casassem, espiasse tudo o que ele escrevia. Diz a lenda que, de fato, Felice havia comentado carinhosamente por escrito o seu desejo de, no futuro, sentar-se ao lado do noivo enquanto este escrevia.

Entre 1910 e 1923, Kafka escreveu um diário. Quarenta anos mais tarde, o polonês Witold Gombrowicz também escreveu um diário. Mas, enquanto Kafka relatava para si, e somente para si, suas noites de raios e trovões, Gombrowicz sabia que seu diário seria lido, escrevia para isso. A espontaneidade passava a ser um efeito. A partir de Gombrowicz, o diário — ou a correspondência (como em Querida família, as cartas que Manuel Puig enviou da Europa a seus pais, entre 1956 e 62) — torna-se um gênero, artificial, construído. Moral da história: Gombrowicz estaria mais à vontade escrevendo à vista de todos nos fundos de um restaurante chinês em Kassel do que Kafka.

O interessante é que, apesar do tom irônico, ao narrar as peripécias do escritor residente no restaurante chinês, Vila-Matas não é pessimista. Em suma: não acredita que o mundo de Gombrowicz seja pior do que o de Kafka. O que o catalão vai fazer é justamente o contrário: uma defesa da vanguarda, do contemporâneo, do novo. E é bonito ver isso vindo de um escritor, ver seu interesse em narrar histórias, sim, mas não opor isso à invenção e ao empenho em buscar o novo.

Bom, já falei demais. Vou tentar escrever alguma coisa sobre isso, agora, antes que tudo se dissipe, como uma grande nuvem branca. Você sabia, aliás, que existe uma “Sociedade de Admiração das Nuvens”? Foi criada na Inglaterra, mas há muitos membros neozelandeses. Vou tentar encontrar algum deles por aqui. Na carta de princípios da sociedade, eles dizem que se comprometem a combater a “mentalidade do céu azul onde quer que ela exista”, porque a vida seria tediosa sem as nuvens.

Acho que isso pode ser um bom guia por aqui — ou para uma ida a Kassel.

Até muito breve,

E.

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A morte do encontro

por Anthony Ling

A cidade é feita de encontros. Humanos se aglomeram em cidades para se relacionar, para potencializar suas redes sociais.

Nossas cidades cresceram para atender a essa vontade – necessidade? – de estarmos próximos uns aos outros.

O passado é uma herança de bons exemplos, nas antigas cidades europeias, nos nossos centros históricos anteriores às utopias. Neles, tudo parece próximo, são “caminháveis”, o espaço público é vivo e a verticalização ocorreu como uma resposta natural a uma demanda por solo urbano.

Algo aconteceu de lá pra cá.

Nossas cidades se tornaram “paliteiros”, uma infinidade de torres isoladas umas das outras. As torres pouco respondem às demandas por espaço, pois ocupam a cidade com garagens e áreas condominiais esquecidas e empoeiradas. Cada vez mais o que liga esses espaços não é mais a rua, mas o carro – uma moderna cápsula de isolamento.

O resultado não foi por acaso, mas por consequência: o urbanismo modernista, obsessivo pelo controle humano da natureza, tentou “organizar” o que é o organismo vivo de uma cidade.

A verticalização em edifícios soltos – os tais palitos – era pregada como forma de liberar a cidade para áreas verdes, tentando garantir, de forma ingênua, uma quantidade de sol e de espaço de lazer para todos.

A tentativa de controle da natureza desta vez não foi inconsequente.

O isolamento inviabilizou o contato das edificações com a calçada e umas com as outras. O comércio no térreo sumiu. Não por falta de interesse, mas pelo afastamento do pedestre. Não só as atividades ficaram mais distantes como parecem ainda mais, dado o ambiente inóspito da rua vazia. Em um ciclo destruidor, a insegurança gerada pela falta de vida levou as torres a se isolarem ainda mais, com suas cercas e seus muros.

O isolamento dos espaços edificados incentiva o isolamento no trânsito entre eles. Em uma triste ironia, a tentativa de promover sol e espaços de lazer resultou justamente no contrário, cidadãos presos nas suas salas, nos seus carros.

A acessibilidade do pedestre é muito mais importante do que as pessoas imaginam. O pedestre é a raiz de todas as formas de transporte além do carro. É preciso caminhar para chegar na parada de ônibus, na estação do metrô, para guardar a bicicleta, para entrar na loja. Cidades que inviabilizam a caminhada inviabilizam todo o resto do sistema de transporte – e, por sua vez, o encontro, mesmo que desproposital e inusitado.

Isolamento não deve ser confundido com privacidade. Privacidade é nossa relação com o ambiente privado, preferência totalmente natural de termos nosso canto, nosso espaço na selva metropolitana. Já isolamento se refere à nossa relação com o ambiente público.

O isolamento, a falta de contato com pessoas e ambientes diferentes, eliminando as surpresas positivas que a cidade constantemente nos oferece, deixa o cidadão cego ao que acontece ao seu lado. Leva a segregações tribais e, no limite, reforça os preconceitos apesar da vida cosmopolita da metrópole. Leva a críticas sobre espaço e transporte urbano das próprias pessoas que contribuem para que os problemas existam, sem sequer imaginarem que isso seja possível. Ter privacidade não requer tal isolamento.

A privacidade, no entanto, deve ser balanceada, com seu limite de abrangência no próprio cidadão, já que sua extrapolação pode comprometer a própria existência da cidade. A metrópole é, por definição, um massivo organismo social, que tem seu bônus e seu ônus. É contraditório querer o bônus – uma vasta gama de oportunidades, atividades, opções, relações, enfim, pessoas – e, ao mesmo tempo, pregar por características rurais de privacidade total: silêncio, paz e falta de contato humano. Nenhuma opção é melhor ou pior, mas o cidadão deve estar pronto para escolher qual o seu ponto de preferência, e pronto para aceitar as consequências da sua decisão, pois cidade não existe sem gente.

A vida gerada por esse planejamento inconsequente, nos tornando dependentes do uso do carro, é ainda pior. O paulistano que anda de carro gasta três horas dentro dele por dia. Em um quinto do seu tempo acordado está preso. Preso pois está sozinho atrás da direção, obrigado a executar uma única atividade para evitar assassinatos com a sua grande máquina de metal.

O que já foi um símbolo da liberdade se tornou o do isolamento, e o que era para ser planejado se tornou um caos – ou pelo menos provou que com o caos não se brinca.

A cidade nos deu uma privacidade muito além do que se esperava, pois a morte dos encontros é a morte da própria cidade.

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Paris, solidão e Proust

por Thiago Blumenthal

“Faze o que quiseres”, eis o dístico sobre a porta da Abadia de Thelema, construída por Gargântua, na célebre obra de Rabelais. Única do palácio, no entanto, tal regra apresentava um terrível contraponto: “desde que agrade ao príncipe”. A galante vida da corte francesa demandava lá seus divertimentos espetaculares, para dar conta do enfado do dia a dia, e, a partir de um circuito fechado, acabou engolindo a si mesma; o lazer, a diversão e as extravagâncias impuseram novos sacrifícios, novos deveres, novos tédios.

Estudar a história francesa a partir do signo da melancolia aponta a caminhos dos mais diversos e, na vereda literária, a uma inevitável e desejável solidão. De Ronsard aos modernos, não faltam relatos de personagens solitários, a caminhar pelas ruas de Paris. Não por acaso a Cidade Luz ter inspirado uma das figuras literárias mais problemáticas, e também estudadas, que é a do flâneur. O flâneur do século XIX, o flâneur de Baudelaire, e até mesmo o de alguns séculos antes, é em essência um ser solitário. Caminhar pelas ruas de Paris tornou-se, em especial, a partir da apreciação crítica de Walter Benjamin, um emblema da experiência urbana moderna.

Quando chegamos em Proust, que creio ser o epítome que lacra a literatura francesa em dois momentos distintos de sua evolução, a solidão sofre um importante golpe que alteraria a experiência daquele que vê-se sozinho. Proust observa que desde Louis XIV, ou seja, desde a segunda metade do século XVII, a sociedade francesa, representada pela metrópole parisiense e seus arredores, passou por profundas transformações. A ritualística palaciana e aristocrática já não mais agradava ao príncipe. Todo o barroco da majestade do soberano, a cortesia dos cavalheiros, a beleza das mademoiselles, seus cavalos e suas carruagens, o alto espírito da realeza e seus cultos e discursos, tudo transformara-se em tédio profundo, antecipando e prevendo a repetição cotidiana da metrópole e de seus funcionamentos.

Proust, seja na ficção ensaística de Contre Sainte-Beuve ou pela narração de sua Recherche, estrutura a solidão como um movimento de escape das opressões tirânicas do hábito e observa o espaço do sujeito solitário fragmentando-se em cidades-modelo projetadas para destruir um dos últimos refúgios das liberdades urbanas. As estreitas ruas medievais de Paris e seus cul-de-sacs foram arrasados em detrimento de enormes bulevares, em uma espécie de coerção a partir do cenário urbano. O flâneur, por assim dizer, não deixou de existir, mas viu seu terreno completamente minado de uma coletividade, da qual sempre pretendeu fugir. Tal qual o albatroz de Baudelaire, que preso nas tábuas do convés, debate-se em um espaço que não é o seu. Como se o calçamento de Paris, surgido em 1184, de repente fizesse surgir uma armadilha terrível. A armadilha do bulevar, com a família a passear e os militares a observarem.

A solidão, para Proust, passa pela resolução de uma equação para lá de complicada. Nascido ainda sob os ecos sociais da supressão da Comuna de Paris, com o declínio da aristocracia e a insurgência da classe média durante a Terceira República, Proust construiu sua biografia em torno deste contexto em particular. Com livre acesso aos salões da alta burguesia, o autor era um fino observador da psicologia humana em pleno fin de siècle. O mundo pedia uma nova apreciação, que respondesse a novas ânsias de um novo mundo e, mais, de um novo fazer literário, por um distanciamento que condicionava uma nova, e problemática, solidão.

Nessa distância, também temporal, que reside o grande infortúnio da solidão de Proust que, para resolvê-la, precisa voltar para si mesmo e para suas memórias e reconstruir não apenas uma gênese do universo ficcional (e real, quando a nós espelhada) mas uma gênese do romance e da literatura – gêneses essas vinculadas por dois extremos, o do desejo e o da tristeza, mas que se tocam no ponto comum da solidão.

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América

por Willian Silveira

on which
i write the circumstances,
you are the solitude
that goes against me.

Sufjan Stevens




Passar a vida em uma cidade é o melhor jeito para jamais conhecê-la a fundo. O enraizamento – algo como viciar-se no cotidiano – traz o conforto ao preço de passar um verniz fosco sobre todas as coisas.

Andy Warhol sabia disso. Nascido em Pittsburgh, em 1928, mudou-se para Nova York aos 21 anos. Uma vez lá, poderia ter seguido o caminho dos colegas de geração Lucien Carr, Allen Ginsberg e Jack Kerouac. A inquietude para tal certamente não lhe faltava. Contudo, diferentemente do trio beatnik, Warhol não viu na estrada a saída para a falta de perspectiva dos paradoxos aparentemente incontornáveis dos Estados Unidos. Atravessar o país a esmo era uma escapatória possível para os garotos bem criados, tomados por pulôveres e gravatas da Columbia University. Para um aluno do operário Carnegie Institute of Technology, filho de pais imigrantes da Eslováquia, movimentar-se aleatoriamente não seria novidade, no máximo dandismo inconsequente.

Ainda que seja delicado afirmar o que fixou Warhol em Nova York, se a convicção das possibilidades ou a necessidade de se estabelecer, o certo é que ele fez da cidade o seu lar. Ao invés de compensar o momento norte-americano com errância, procurou entender os Estados Unidos. Para isso, viajou pelo país recolhendo impressões dos costumes e fotografando os contrastes encontrados. O resultado de uma década de viagens se encontra em América: “se tiver uma oportunidade de viajar pelo país, deve tentar aproveitá-la. Em especial, deve tentar ficar por algum tempo em cada lugar e dar uma boa olhada. Ninguém na América tem uma vida comum.”

Publicado tardiamente, em 1985, apenas dois anos antes da morte de Warhol, o livro é o último e mais inusitado projeto da sua carreira. Durante os anos 60, em especial a partir da inauguração do The Factory, Warhol se fez conhecer por uma série de investidas artísticas, entre elas as latas de sopa Campbell (“Campbell’s Soup Cans”, 1962), a série multimídia “Exploding Plastic Inevitable” (1966-1967), encabeçada pelo The Velvet Underground, e o filme “Chelsea Girls” (1966), codirigido por Paul Morrissey. O apelo pop da arte erigiu um mito, que transformou Nova York em um universo próprio e se tornou seu astro.

Entretanto, a fama que revela também oculta. A imagem pública construída à custa das celebridades pintadas sob mil cores, da ironia desmedida e do apreço pelo mundo das aparências transformou-o em um personagem, literalmente. Aos 40 anos, tamanha alienação quase lhe custou a vida quando Valerie Solanas, figurante de seu filme “I, a Man” (1967), tomada pela personalidade ausente do diretor, entrou na “fábrica” e disparou um par de vezes. Falar com ele, declarou Solanas, era como falar com uma cadeira.

América recupera para a posteridade a humanidade em Warhol. Espécie de antropologia artística da sociedade americana, no livro o artista pop atravessa o país com um olhar aguçado para transformá-lo em um índice sobre a cultura dos Estados Unidos: do amor ao exibicionismo (em vitrines), passando pelo comportamento das pessoas (em people), pelo culto ao corpo (em physique pictorial e vogue) e às celebridades (em all-stars), até chegar ao futuro (em life). No centro de todas essas reflexões, assinala os contrastes dos lugares pelos quais passou, como Washington, Kentucky, Texas, Aspen, Califórnia e, obviamente, a cidade de Nova York. Todos, diz Warhol, têm uma América própria, e todos têm os fragmentos de uma América fantasiosa que acreditam existir, mas não podem ver.

Aos 56 anos, depois do trauma de ter sido declarado clinicamente morto e ressuscitado, Warhol enxerga a América – que é como entende que os Estados Unidos devem ser identificados – com maturidade, voz essa distante daquela da personalidade emotivamente blindada das décadas de 1950 e 1960. Aqui, as diferenças se fazem sentir. O homem uma vez dado à vida noturna dá espaço à sinceridade em declarações como: “Sou do tipo que ficaria feliz em não ir a lugar algum, contanto que tivesse a certeza de saber exatamente o que está acontecendo nesses lugares. Sou do tipo que adoraria ficar em casa e assistir a todas as festas a que sou convidado em uma tela no meu quarto.”

Aos olhos de Warhol, a sua pátria é um cenário gigante, um aglomerado de pessoas diversas, de diferentes estilos e pensamentos. Mas o caráter heterogêneo, o traço que transforma a diferença cultural em orgulho nacional, soma-se a peculiaridades de formação, como a necessidade de viver no eterno “hoje”, fracionando e isolando os indivíduos. A solidão – ou o individualismo, essa versão moderna do mesmo – compactua com um retrato muito presente na arte norte-americana, do realismo de Edward Hopper (1882-1967) ao expressionismo abstrato de Mark Rothko (1903-1970).

Pela primeira vez desde o popismo, Warhol abre mão de apontar ironicamente as aparências para dialogar seriamente com os sentimentos da sua terra. Na passagem pelos cantos do país, pôde perceber que a cultura que tanto o inspirara era a mesma responsável por produzir a solidão em série. Por trás do desejo de fama, sobravam homens e mulheres desfigurados, irremediavelmente órfãos da notoriedade que lhes escapará cedo ou tarde. Se você tem uma vida real, chega a admitir Warhol, pode achar que é um grande perdedor; pode achar que, se pelo menos fosse rico e famoso, ou bonito, sua vida também seria perfeita.

Em América, a reflexão é um paradoxo entre a estupefação e a culpa. O avanço do projeto tecnológico-científico simula à população a possibilidade de chegar ao futuro primeiro. Esse timing desmedido fará do amanhã uma eterna expectativa, postergando e agravando o autoengano e a frustração. Em uma das fotografias de páginas inteiras do livro vemos Jean-Michel Basquiat (1960-1988). Artista original e de potência criativa ímpar, Basquiat tornou-se o protegido de Warhol. A relação, misto de admiração mútua e substituição paterna, resultou em uma parceria artística e afetiva rara, mas que não sobreviveria à vaidade daquele mundo por muito tempo. O rompimento afastou-os por um período suficiente para que Warhol, ao saber que perdera Basquiat prematuramente sem fazer as pazes, desejasse ter sucumbido ao atentado.

Sem melancolia e igualmente destituído de sentimentalismo, América é o retrato cru de um homem encarando o mundo. É o processo profundo de um artista frente às origens das suas alegrias e tristezas – frente ao mundo que criou e pelo qual foi criado.

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Gaviões noturnos

por Ananda Rubinstein

Perto de casa, num bar/café que é a cópia perfeita do diner de “Nighthawks” do Hopper, tomo um café morno, tristonho. A cafeteira gigante com ar retrô, os homens de chapéu, as mulheres que forjam um mistério distante, de outro tempo, como se o que existe não desse conta, as revistas de época espalhadas pelo balcão e a música vinda do jukebox compõem o clima emocional do Phillies – uma ilha de nostalgia pelo que não se viveu, onde tudo é analógico e hiper-real.

Ou quase tudo. Debaixo de um chapéu de feltro pork pie, um tipo interessante bebe algo e folheia uma Manchete, na capa “a grande festa do Carnaval de 76”. Percebe o meu olhar e eleva o dele, sem esboçar sorriso; um olhar fixo e circunspecto que mexe, imediatamente, com meu ritmo cardíaco. O homem acende um cigarro eletrônico e volta a ler. Meu corpo treme em ondas erráticas.

Faz semanas que não troco mais de meia dúzia de palavras com outro ser. Falo sozinha, para não esquecer o som da minha voz e quebrar o silêncio; invento diálogos em que travo as duas partes. Penso nos ensinamentos do Dr. Sidharta, meu neo-psicanalista que flutua, e me esforço para resgatar memórias, colocando-as no papel. Mas elas são uma faca de dois gumes: preenchem o vazio ao mesmo tempo em que desenham novas fronteiras de isolamento.

Escrevo cartas curtas que serão lidas por mim mesma no futuro – se é que este presente um dia acaba. Escrevo diariamente para que a “futura eu” possa compartilhar do que sinto agora. O homem de chapéu pork pie lê a Manchete de mais de meio século atrás como se buscasse ali uma resposta. Escrevo como se fizesse o mesmo.

Querida Futura Lara,
Você teve alguns relacionamentos no último semestre, mas nada sério e todos com bots. Há um limite de intimidade possível de ser compartilhada com um robô que emite frases automáticas como “tira a sua calcinha agora” e “vou te comer todinha” (mesmo que ele o faça com maestria). Logo a bateria acaba e é você com você mesma, diante do espelho, tirando o rímel, (des)acompanhada de um robô que cessou de existir e tudo o que resta é sua ausente presença metálica, vagamente assustadora e, sobretudo, entediante. Fuja dos que te privam da solidão sem te fazer, em troca, qualquer companhia.

Com afeto,
Lara de 2049.
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Sinto o peso do olhar do homem de chapéu pork pie. Alguns momentos se passam (quanto mesmo?). Ele fecha a revista, se levanta, vem em minha direção; apoiado no balcão, fixa seus olhos em mim e pede ao deprimido cara do bar um café curto. O homem de chapéu pork pie fica de pé, ao meu lado, pensativo. Eu não mais escrevo; ele não mais lê. Ficamos os dois ali, existindo. Do jukebox, Tom Waits canta “Jersey Girl”. O homem de chapéu pork pie olha para mim e sorri. Ele deposita um pacotinho de sal em seu café. Eu tento impedi-lo, em vão. As linhas que delimitam meu isolamento se redefinem.

Na teia infinita profunda da web, eu tinha contato com fragmentos de arte que de alguma forma me curavam da sensação de não-pertencimento adensada pela vida a cada segundo. Minha última relação começou online com um Surreal Doll® de silicone, um robô bonitão, barbudo. Douglas® – era seu nome de fábrica –, como tantos outros bots, agia como um ser humano normal, de inteligência artificial mediana, com “opiniões” – pouco importava se eram dele ou não – sobre política e cultura pop. Ele gostava de mim, de forma meio programada, mas e daí? O que ele não tinha era um inconsciente. Eu mesma vivia num enorme deserto de alienação, com alguns oásis em forma de insights e pretensas tomadas de consciência, e passava a maior parte dos dias com saudade de algo que não sabia o que era. De alguém que ainda não conhecia.

O fato é que, antes das sessões de terapia com o Dr. Sidharta surtirem qualquer efeito e eu conseguir ter acesso a pastas ocultas de memórias, minhas horas livres eram gastas em chats de encontros virtuais, onde todos os gatos eram pardos.

André, o homem de chapéu pork pie – ou Cyberman 13®, seu nome original –, não é homem nem ciborgue. Não há nada orgânico em seu corpo. Mas ele sonha. Estou diante de um dos primeiros bots dotados de consciência artificial. Não sei por que estou te contando tanta coisa, ele me confessa, entre goles do seu terceiro café, agora açucarado e que, por alguma razão, não tem efeito sobre ele. Tomamos um vinho?, sugiro.

Falamos livremente, Cyberman e eu; e muito nem precisa ser dito. Nossa comunicação se dá em outros níveis. Passo a desconfiar de que talvez não sejamos mais os indivíduos que já fomos um dia. Ainda sólidos, com barreiras de pele e ossos que nos separam brutalmente uns dos outros, sim. Ainda impossibilitados de realmente conhecer outro ser. O que e como sente a minha mãe? Meu ex-namorado? O que Cyberman deseja lá no fundo? Já fui amada? Mas, além de sermos os corpos que nos separam, somos também redes, máquinas que habitam a mente de outras pessoas. Somos memória e estamos o tempo todo deslizando para dentro uns dos outros, nos entremeando e saindo de novo, ad infinitum e sem nenhuma explicação.

O relógio de parede aponta 1 da manhã, a hora instável, quando o nó no peito aperta. Dou por mim e estamos só nós dois no Phillies, além do deprimido atendente do bar, por quem sinto a maior compaixão do mundo. Respiro profundamente. Sou feliz neste instante. A música é interrompida e o cara do bar avisa, ainda mais deprimido, que é hora de fechar.

#21SolidãoEditorial

Editora convidada: Manuela Costalima

por Manuela Costalima

Desde pequena aprendi a gostar da solidão. Em muitos intervalos da escola, enquanto as outras crianças pulavam corda, jogavam queimada e amarelinha, eu olhava aquilo tudo em silêncio, sentada em um canto. Naquele tempo, passava horas na biblioteca do meu pai, onde desenhava, mexia nos livros dele, folheava gibis. Ali inventava histórias, percorria mundos e me punha a sonhar.

Hoje navego pela internet. Que ideia mais estranha e tentadora essa de visitar mundos longínquos num simples impulso da vontade. Ontem mesmo resolvi passear pelo Google Street View. Estava chovendo. Então, aproveitei o computador para conhecer um novo lugar. Abri o mapa numa cidade pequenina no centro da Itália, dessas com mais de mil anos, construídas no topo de um morro, cercadas por muros de pedra, com uma grande praça central e, em frente a ela, uma igreja românica. Saí caminhando como faria se estivesse de fato naquele lugar. Da praça fui para uma rua mais estreita, onde avistei, numa venda, alhos, tomates e garrafas de azeite e, pouco depois, um toldo verde que parecia a entrada de um hotel. Segui até o fim da ruela, dei no muro de pedra e virei à esquerda numa passagem que dava num casario. Avistei então uma janela aberta, de onde olhava uma mulher com cabelos castanhos presos e uma roupa vermelho-escuro abotoada até o pescoço. A mulher segurava um tecido branco, que balançava ao vento. Dei um zoom para ver melhor a cena toda. Havia lá dentro algo que parecia um varal…

Ela devia estar dobrando as roupas secas quando ouviu um barulho e foi espiar o que acontecia lá fora. No forno, um daqueles pães que só se come em casa deve estar assando, e um espaguete deve estar pendurado, secando até a hora do jantar. O chão de sua casa deve ter muitas marcas, mas ela deve lustrá-lo toda semana, e no quintal imagino vasos de acanto e um pé de manjericão que nunca morre… Quase posso sentir o cheiro do pão assando, quase posso lhe dizer bom dia e perguntar qual o caminho de volta à praça. Quase posso ouvir seu convite para entrar um pouquinho, beber um copo de água e contar histórias de onde vim. Gosto dessa conversa silenciosa.

Há algum tempo encontrei outro espaço para meu silêncio: as ruas. São poucas as coisas que me trazem mais prazer do que uma longa caminhada na cidade. Perdida no meio da multidão apressada, exposta ao barulho das buzinas, ao cheiro de urina e fezes humanas, aos motoristas enlouquecidos, prontos para atropelar alguém na próxima esquina, me sinto bem.

Nas ruas não posso reeditar o que falo, não posso escolher o que encontro, não posso afastar para longe, com meus dedos, aquilo que me desagrada. O mendigo dorme na calçada, o motorista grita comigo porque atravessei fora da faixa, o vendedor quer me convencer a todo custo de levar as rosas já murchas. Mas, no meu caminho, acabo descobrindo uma mostra de filmes árabes, as frutas bonitas na venda da esquina, um cachorro peludo e sarnento, que abana o rabo quando passo por ali.

Nas ruas posso encontrar Gildo, que mora na escadaria da Igreja, veste sempre a mesma camisa amarela puída e sorri generoso e triste com os poucos dentes que lhe restaram. Às vezes divido com ele um café, enquanto me conta do seu Pernambuco, da comida da mãe, da vida no canteiro de obras e dos filhos que deixou para trás. A realidade é menos idílica do que a minha cidade italiana ou os mundos que percorri nos gibis. Meu amigo dorme no chão, tem fome e cheiro de cachaça. Deixo de inventar histórias. Na rua com Gildo não dá mais para sonhar nem viver a solidão.

#20DesejoCulturaLiteratura

Os olhos de Sidharta

por Ananda Rubinstein

Não sinto nada, a não ser um gosto de metal na boca; é o que digo na sessão com o Dr. Sidharta Singh, a primeira, no seu consultório branco e minimalista, com toques orientais de um passado recente.

Ele me observa sob seu turbante azul, com olhos negros, por um tempo que não sei medir, já que vivemos um presente sem fim. Da cadeira ovo em que me sento posso ver – estamos no 39o andar – algumas cápsulas voadoras que passam disparadas à altura da janela. Famílias entediadas, coletivos sem propósito e viajantes com destinos ultraplanejados transitam no ar. É um dia bonito de junho, ano de 2049. Sinto o sol quente e o prazer instantâneo do calor na pele logo dá lugar a um vazio frio. Tento me lembrar por que estou aqui, mas meu cleverphone está sem sinal.

Meu diagnóstico, eu mesma adianto: desejo hipoativo. Dr. Sidharta diz, Fale mais sobre isso, Lara. Não sinto nenhum desejo nem a formação de nada que se pareça com a inspiração de um querer mais profundo. Alguns espiritualistas diriam que você se livrou do sofrimento de desejar, ele tenta. Olho para ele com meus olhos opacos.

Sabe como é, tudo o que faço na web, cada busca, cada post, alavanca um novo produto criado especialmente para me definir ou aplacar minhas compulsões. Os infinitos hashtags permitem que em zeptosegundos milhares de conexões sejam feitas entre um prazer instantâneo e a possibilidade de um desejo de consumo que não chega a nascer, porque já foi intuído e transformado em wish list inconsciente. Não é desejo; é vício.

Tudo o que tenho de fazer é dizer sim, não há nãos. Minhas bandas, livros e filmes favoritos foram tão plagiados, e com tanta eficiência, que só posso apreciá-los friamente. As emoções não são muito suscitadas: atrapalham o funcionamento das coisas. Importante é o próximo estímulo. Fazer sexo com humanos ainda rola, esporadicamente, mas com softwares de inteligência artificial, robôs ou desconhecidos on-line, o custo/benefício tende a ser maior.

Por quê? O prazer é maior?, ele pergunta. Não. Eu hesito: às vezes, na verdade; essas máquinas são treinadas para fazer exatamente o que quero. Então é consistente, sem todos os riscos que relações com humanos podem trazer: os robôs nunca te dão foras. E tem um que entende de arte, é engraçado até; ando passando mais tempo com o Cyberman 13. Existe um afeto, então?, questiona Dr. Sidharta. Quando ele é recarregado por tempo suficiente… mas… é uma pulsão de vida que me falta. Tem cura, Dr. Sidharta? Nos olhos negros não há resposta.

Você pode me falar de momentos prazerosos que já tenha vivido?, ele indaga.

Não tenho acesso a estas pastas, explico.

Quando percebi que estava perdendo a memória ou o acesso a ela, uma amiga hacker me apresentou alguns fóruns da teia infinita profunda. Há milhares deles. Frequento um clube submerso em que é possível ter contato com os chamados ‘feelings’, reminiscências de um passado moderno/romântico. Ali há restos de memória, fala-se de tempo e desejo; de sensualidade, mundo, poesia, espiritualidade; conceitos que hoje não são mais que ficções.

Chá? Aceito uma xícara para tirar o gosto da boca. O calor perfumado sobe pelas minhas narinas, forte, picante, e chega no meu cérebro como um choque elétrico. Meu corpo todo parece vibrar. Há anos não sinto cheiro de nada!, digo, e tento escanear as reações sutis da experiência. Sidharta me olha, seus olhos sem íris, de tão pretos.

Algumas cenas e imagens são descarregadas das minhas pastas mentais. Sou presa nas engrenagens de uma máquina; danço com um homem de polainas; um trenó me leva rapidamente para a infância; um homem me lambuza de whip cream e lambe; num conversível, me jogo no abismo. Calma, não reconheço essas memórias!

Não se preocupe com memórias muito claras; elas não são tão confiáveis, de qualquer forma. Ele se levanta e se aproxima quando diz isso, me guardando um segredo, o mais importante: a memória é o hiperlink para o desejo.

Mas essas memórias não são minhas, digo, atônita, e mais uma pasta se abre: estou num campo de trigo, com corvos; o céu escuro, três possibilidades de caminho; as cores vibram. Dr. Sidharta me olha, respira fundo e faz som de telefone, que não existe mais, trim trim, 2049 para Lara. Vivemos uma hiper-realidade, lembra? Tanto faz se as memórias são ficções: são suas ficções. O importante é a conexão, é ter contato com elas, diz Sidharta, agora quase flutuando.

Então, quer dizer que, baseada em memórias fictícias, vai brotar um desejo real? E como vou saber se esse desejo é meu mesmo?

Suas memórias – fabricadas ou emprestadas – já apontam para um desejo. Ou para múltiplos desejos. Um não existe sem o outro. Até a próxima semana?

Já? O efeito do chá passou. Olho mais uma vez nos olhos do Dr. Sidharta, agora flutuando, para ver se sinto alguma coisa. Não. Por enquanto, nada.

“Só receio uma única coisa neste mundo –
os momentos em que a vida se congela dentro de mim.”
Marina Tsvetáieva

Na virada para o século XX, observou-se no mundo ocidental uma guinada de produções intelectuais que priorizavam o uso da imaginação na busca pelo conhecimento. Ao negar tanto o realismo quanto o romantismo, autores como Freud e Proust reconheceram, cada um em seu métier, a importância da fantasia na reflexão sobre a realidade. É recorrente nesses autores a evocação de imagens – principalmente de sonhos e memórias – para investigar as profundezas da mente humana. Ao apreender as imagens, o olhar legitima a descoberta, mas também abre espaço ao desejo, que pode se ver frustrado.

O advento do cinema na última década do século XIX decorreu de descobertas tecnológicas, mas seu desenvolvimento só pôde se dar nesse terreno fértil. Afinal, o que é a narrativa cinematográfica senão a tentativa – mediante cortes e movimentos de câmera, que permitem sugestão – de adicionar um toque de imaginação à representação da realidade, a fim de superá-la? Gostaria de me debruçar sobre o lugar reservado à fantasia na obra de Alfred Hitchcock.

Em uma entrevista a François Truffaut, Hitchcock explica a diferença entre suspense e surpresa: caso haja uma bomba próxima ao protagonista, o diretor pode assustar o espectador desavisado com uma explosão ou mostrar-lhe a bomba e permitir que sua própria imaginação crie o suspense. Ao dar lugar à fantasia do espectador, a angústia e a tensão provocadas podem ser intermináveis, e Hitchcock percebeu que nossos desejos podem se realizar, em alguma instância, por meio do voyeurismo.

Psicose (1960) é seguramente o caso mais emblemático. Nesse filme carregado de elementos psicanalíticos, penetramos pouco a pouco – e a cada passo cientes dos desejos de “má conduta” que liberamos ao assistir um filme sobre comportamentos inadequados – o mistério em torno de Norman Bates e sua mãe. Hitchcock explora a fantasia do espectador em cada plano do longa-metragem, em especial na célebre cena do chuveiro.

Em Festim Diabólico (1948), dois amigos assassinam um colega e colocam o corpo no baú da sala onde oferecem um jantar. Entre os convidados estão os pais e a noiva do morto, e ele mesmo é esperado. Ao nos revelar desde o início do filme seu paradeiro e o plano dos assassinos, Hitchcock permite que nos sintamos parte do plano e que suspendamos, sem perceber (ou quase) nossas convicções morais. Saboreamos como nossa, com prazer e apreensão, a tensão do criminoso que desejava praticar o crime perfeito.

Esse abandono de convicções também está em Janela Indiscreta (1954), um filme que aborda esse prazer advindo do olhar e da imaginação. Assim como o protagonista, Jeff, está preso a uma cadeira de rodas, estamos presos ao seu olhar conforme ele observa os vizinhos pela janela dos fundos. Espiar a vida alheia certamente não é uma conduta admissível, mas, como espectadores, percebemos ser aquilo que buscamos ao assistir um filme. Quando Jeff identifica comportamentos estranhos em um dos apartamentos que observa, acompanhamos o percurso de sua imaginação, desde a angústia pela ausência de provas contra o suposto assassino à apreensão por Jeff e sua noiva.

O primeiro filme no qual Hitchcock explorou esses elementos foi Rebecca (1940). Ali, a obsessão da governanta pela memória da falecida torna a mansão macabra tanto para a protagonista quanto para o espectador, ambos os quais desconhecem a verdadeira Rebecca. Seu fantasma se esconde em cada cômodo da casa, e, assim como em Janela Indiscreta, tememos o que construímos em nossa mente – que pode ser ainda mais terrível que a realidade.

A experiência subjetiva do espectador tem papel importante nos filmes de Hitchcock, e os medos e desejos despertados, uma vez depositados na narrativa, a intensificam. Ele conduz o espectador a evocar – e desafiar – o obscuro da narrativa e de sua própria mente. Essas e outras razões tornam sua obra perene e fazem dele um mestre do suspense – e do cinema.

Ao analisar a produção cinematográfica atual, contudo, percebemos que realidade e fantasia vêm desvinculadas. Há uma preferência ou pelo realismo exacerbado ou pela criação de um universo fantástico que foge completamente de nossa realidade. O cinema está perdendo suas nuances, e a falta de espaço destinado à imaginação impossibilita que realizemos desejos a partir do prazer que sentimos ao olhar.

#20DesejoArteMúsica

Sobre o que não se pode falar

por Leandro Oliveira

Chega inevitavelmente a todos a hora em que somos chamados a justificar nossos pensamentos e palavras, nossos atos e omissões. E qual não foi minha surpresa quando, da simpática revista Amarello, surgiu essa convocação. Acabo de ser consultado sobre o falatório da arte de nosso tempo – afinal, por que precisamos de tantas teorias, bulas, contextualizações e justificativas quando lidamos com a arte? A pergunta, escusado escrever, expõe as minhas próprias entranhas profissionais, já que vivo de teorizar, receitar, contextualizar e justificar em palavras e textos o maravilhoso e complexo mundo da música clássica. Assim me resta apenas defender, para os séculos dos séculos, a minha profissão.

Começo pelo princípio: é um mito recente imaginar que a compreensão intelectual da música seja caso de nossa modernidade (ou, já que estamos no terreno apocalíptico, de nossa pós-modernidade). Umberto Eco comenta, em algum momento de seu livro sobre a estética medieval, que já por ali se verificava algo muito sintomático: ao falarem de “músico”, entendiam os medievais “o teórico, o conhecedor das regras matemáticas que governam o mundo sonoro, enquanto o executante é frequentemente apenas um escravo sem perícia e o compositor é um instintivo que não conhece as belezas inefáveis que só a teoria pode revelar”.

Talvez sejamos de outra cepa, talvez não. Mas é claro que o vício de nossa teorização tem outras matrizes. A mais significativa delas diz de sua finalidade: hoje, nossa teoria vem para explicar a obra – a arte, a música, o texto – e não, como para os medievais, para explicar o mundo. Isso é assim porque, se um dia a preocupação da oportunidade da ação do homem para a boa lógica do cosmos era o que justificava a alta conta da teoria, atualmente a fórmula se inverte: é a própria expressão individual da obra de arte, por vezes com predicados íntimos ou puramente solipsistas; é a própria expressão, ia dizendo, que deverá servir como medida para a ordem do cosmos. Teorizamos pois cremos encontrar na música respostas para o Universo, e não o contrário.

Mas há um risco, e acho que de sua percepção partiu a convocação dos editores de Amarello. Afinal, quando a música ou a arte em geral se tornam prosélitos da subjetividade, convidam a nós do público a sermos, com os criadores, meros sensacionalistas, no sentido daqueles tomados por impressões ligeiras, emoções e percepções intuídas. Ora, o leitor há de saber que, se expressar medidas íntimas não é fácil, evidentemente entendê-las é ainda mais difícil – se é que possível. Incorremos no risco do sensacionalismo quando usamos a teoria como uma muleta, falando de música por crer que os elementos objetivos para sua avaliação são falidos.

Ou, dizendo de modo mais generoso: para nossa era, a música e a arte são o transporte para um lugar especial, que podemos chamar poeticamente de “geografia das emoções”. Mas o que fazemos individualmente por aquelas searas, como nos prendemos ou somos levados para este lado e não aquele, por que paramos em dado recanto e por ali nos regozijamos, isso é matéria misteriosa, pois dali retiramos um “significado”. Entre a “emoção” e o “significado”, dois gestos íntimos, ficam as nossas fabulações, mero exercício de entender e se fazer entendido.

#20DesejoAmarello Visita

Café, água e bolacha: Teo Vilela

por Revista Amarello

Você nasceu em Araçatuba. Me conte um pouco sobre como veio parar em São Paulo.

Eu me formei em Direito e vim a São Paulo para trabalhar. Trabalhei com direito por um período muito curto, dois, três anos, e nesse período já estava superinsatisfeito com o que fazia, porque não gostava, e só fazia por uma obrigação familiar. Nunca fui de ficar parado, e, como sempre gostei de decoração, de arrumar a casa, deixar a casa mais bonita – não com um projeto novo, mas com o que tinha mesmo, com o que já existia –, resolvi fazer um curso de decoração. Comecei a fazer uma graduação na Belas Artes – era a primeira faculdade com curso de Design de Interiores que existia no Brasil –, mas aí, por falta de paciência minha, um professor me sugeriu mudar para um curso livre no SENAC, que era bem mais curto, e com certeza eu iria chegar também aos meus objetivos. Como já havia cursado quase um ano na Belas Artes, fiz o curso do SENAC em um ano, e já comecei a trabalhar nesse período na Tok&Stok, no final de semana. Durante a semana ainda trabalhava num escritório de advocacia. Teve todo um processo, porque minha família não queria muito que eu fizesse outra coisa além do direito, mas resolvi mesmo que não era o que queria e decidi correr atrás do que gostava. Nessa época, conheci uma senhora que trabalhava com antiguidade; ela comprava e vendia peças informalmente, e comecei a me envolver com isso e fazer também compra e venda informal de antiguidades.

E isso foi quando, mais ou menos?

Em 2001, me associei à Associação dos Antiquários de São Paulo. E, logo depois, já comecei a fazer as feirinhas de antiguidade, a comprar e vender – comprava para vender nos finais de semana na feirinha, tanto a da Benedito Calixto, no sábado, como a do MASP, no domingo.

Não sabia dessa sua passagem nas feirinhas.

Sim, durante a semana entrava no D&D às dez horas da manhã. Antes disso, acordava às seis e ia a vários pontos estratégicos onde conseguia garimpar coisas; Família Muda-se, etc. Mudei meu horário de trabalho para conseguir fazer todo o garimpo na parte da manhã e trabalhar à tarde. Mas passou um tempo, e a coisa do empreendedor, que sempre tive muito forte, falou mais alto, e não dava mais para ficar trabalhando exaustivamente durante a semana, e no final de semana também trabalhar nas feirinhas. Foi aí que comecei a perceber que o meu próprio trabalho estava dando mais lucro que meu emprego fixo, e que poderia me dedicar a ele durante a semana também.

Então, em 2004, fui passar um período em Londres, e foi lá que comecei a reparar que o mobiliário brasileiro já estava sendo muito comentado, e que os antiquários já estavam meio que abandonando a parte clássica e entrando em um período modernista.

Você voltou em 2005 para abrir a loja?

Voltei já com o intuito de abrir a loja. Como tinha ficado um ano de folga, tinha que trabalhar de novo, e acabei abrindo-a em novembro de 2007. Mas, até 2011, continuei fazendo as feirinhas de fim de semana, para pagar as contas.

E qual é a peça mais procurada na loja?

O que as pessoas mais compram são poltronas. Acho que é um detalhe importante e que dá um charme diferente na casa. É um lugar que você chega, senta, descansa, você vai ler ou vai bater papo… Então, acho que é uma das principais coisas que você vende.

E para você, qual é seu objeto de desejo?

Eu olho sempre tudo, gosto de tudo. Quando entro em um lugar, faço um raio-x de tudo que existe ao meu redor. É impressionante. Às vezes fico até sem graça, porque é instintivo. Olho do rodapé ao teto. Sou preocupado com uma linguagem, sei identificar o que não está feito direito ou que foi totalmente alterado. Quando fazemos um restauro, uma tapeçaria nova, tento deixar a peça o mais próximo da originalidade possível. Então, isso me chama muito a atenção. Está vendo aquela poltrona? (Aponta para uma poltrona perto de onde estávamos sentados). É uma Zalszupin forrada com tecido de nuvem. Como uma pessoa chegou em algum momento e resolveu colocar um tecidinho de nuvem em uma poltrona feita de couro há sessenta anos?

Excelente!

É muito doido isso, são modismos que passam. Oitenta por cento dos móveis que compro já sofreram algum tipo de intervenção.

Então existe um trabalho de pesquisa imenso?

Sim, e o material didático praticamente não existe. Quando vou comprar algo, de uma pessoa, por exemplo, fico batendo papo com a senhorinha, com o senhorzinho um tempão para pegar alguma informação nova, porque essas coisas não existem! A pesquisa é muito grande. Você vai procurar uma revista, às vezes, da época, uma Casa e Jardim, que existe há mais de cinquenta anos, a Casa Cláudia, ou então busco uma revista estrangeira mesmo. Existem fábricas aqui da década de 1920 que já faziam mobiliário moderno, mas pouca gente fala disso. Quando começaram a falar aqui no Brasil, o principal era o Warchavchik, que veio para cá nos anos vinte com a família, mas deve ter começado a trabalhar na década de 1940. O primeiro dado de que falam é que o Warchavchik começou a fazer o móvel modernista para combinar um pouco com a arquitetura que estava sendo feita na época. Mas Niemeyer também, Sérgio Rodrigues, Lúcio Costa, todos eles fizeram um pouco de mobiliário para acompanhar a arquitetura que faziam.

Mas, se Warchavchik começou a produzir nos anos 40, quem são essas pessoas dos anos vinte de que você falou?

Móveis Cimo, que era uma loja em Lageado, no Paraná, e já era uma fábrica da década de 1920. Essa fábrica funcionou por muitos anos, e é muito difícil encontrar um dado a respeito do design, de quem desenhou. Eles fizeram muitos móveis – não era um móvel superfino, mas teve uma inserção no mercado muito grande.

Como você formou sua equipe?

Está cada vez mais raro encontrar essa mão de obra. Antigamente era um ofício, as pessoas estudavam no Liceu de Artes e Ofícios para se tornar marceneiros. Um deles trabalha na parte de estofamento há mais de trinta anos, e o outro deve trabalhar com isso há quase trinta anos também. São pessoas que, com o tempo, vão absorvendo essas técnicas no trabalho de pai para filho. Eu me lembro que, lá atrás, quando fiz o curso de decoração e ainda nem sabia que iria trabalhar com o que trabalho, fomos visitar uma marcenaria, aqui perto de São Paulo, com a Etel Carmona (proprietária da Etel Interiores). Na época, ela havia pego grande parte do pessoal do Liceu de Artes e Ofícios e levado para trabalhar com ela. Me chamou muita a atenção, era um trabalho superartesanal, um trabalho de amor.

Tem um tapeceiro meu, baiano, que é muito cuidadoso. Ele pega o tecido e fala: “Ah, não, esse tecido é muito mole, vai acontecer isso e isso, tudo bem? Quero que você saiba.” “Esse tecido é muito duro, vai acontecer isso, porque a curva…” É uma pessoa que pega um móvel e não olha simplesmente como uma coisa que tem que cobrir de tecido. Olha com carinho, como um médico vai olhar para um paciente. Porque, muitas vezes, para essas pessoas mais antigas, a capacitação fazia parte do processo. Ele falou que trabalhou dois anos numa tapeçaria que até hoje é considerada uma das melhores de São Paulo, como assistente na mesa. Após dois anos, se fosse capacitado, aí poderia assumir outra posição. É demorado, toma tempo. Existem tapeçarias em cada esquina, restaurador de móvel em toda esquina, mas a pessoa às vezes não está preocupada com o que no móvel precisa ser feito, e faz de qualquer jeito, coloca um prego em um móvel que foi todo construído, colado e encaixado. É muito complexo, e de repente você detona, porque espana, estraga, muda a estética.

Sempre procurei saber pesquisando, perguntando. Às vezes você tem que trocar uma folha de uma madeira de um móvel, mas essa madeira não existe mais. Então às vezes você tem que comprar um móvel que está totalmente danificado, ou você procura o resto de uma peça, que foi abandonada em algum lugar, para poder restaurar.

Como você acha que o local de trabalho influencia a sua produção?

Ter espaço é essencial, porque consigo manusear com facilidade, e ver as peças de diversos ângulos. A minha área de trabalho sempre foi muito mais cheia, funcionava como depósito e restauro. Antes era tudo junto. Agora, com as áreas separadas, a produção fica melhor. Conseguimos ver melhor os defeitos, temos mais tempo para cuidar dos móveis e prepará-los bem para o mercado novamente.

Existe algum projeto específico pelo qual você tenha mais carinho?

Existe. Recentemente comprei uns móveis de uma senhora judia que sempre foi supercuidadosa com as peças. Ela encomendou um projeto de mobiliário do Tenreiro, em 1969, 70. Ela tinha um amor tão grande, sabia de toda a história. Foi muito legal bater papo com ela porque ela contou da negociação, contou de como foi feito o processo, como ele desenhou os móveis. Ela não estava interessada só em vender. Estava preocupada com o destino daqueles móveis. Eram peças de 46 anos, que nunca tinham sido mexidas. Comprei a casa toda.

Era tudo de jacarandá?

Tudo de jacarandá! Você vê o peso desse sofá? (Mostra o sofá em que estamos sentados). Está vendo? Tudo maciço, e tudo torneado. Imagina quantas árvores usaram para fazer isso, não existe mais.

Que coisa linda a estrutura dele por dentro.

É uma preciosidade. O trabalho do Tenreiro é um trabalho que não existe. É trabalho feito por artesões, trabalhos artesanais de séculos. No caso dele, a geração do pai dele era de marceneiros, o avô dele era marceneiro. É uma coisa que você vê a construção, o jeito, é tudo muito bem pensado. Ele não fazia o móvel só pela beleza. Fazia pelo conforto. O móvel dele é, muitas vezes, muito delicado também, mas, por exemplo, as cadeiras dela, ela soube cuidar muito bem, e estavam todas intactas. É lógico, um verniz está feio, ou outra coisa. Mas é coisa simples de corrigir. Acredito que o móvel do Tenreiro é o móvel brasileiro mais inspirador. O móvel mais bonito.

Teo, existe alguma peça de desejo que você procura e até hoje não encontrou?

Existe. A cadeira de três pés do Tenreiro. Essa eu gostaria de ter para mim, que é um móvel raro, feito numa edição superlimitada. Desde que comecei aqui, já chegaram pelo menos umas três na minha mão, mas vieram réplicas, não as originais.

Falando dessa questão da réplica, que é uma boa discussão – que, por um lado, democratiza a possibilidade de pessoas poderem ter…

Mas, quando falo da réplica, é quando alguém produz dizendo que é original, e não uma releitura.

Existem pessoas que acabam extraindo um jacarandá (jacarandá está em extinção, e não pode ser mais usado para fins comerciais) que existe por aí ainda, ou uma madeira muito similar ao jacarandá, e produzem móveis dizendo que são originais. Inclusive, recentemente, um artista plástico comprou as cadeiras e eu falei: “Essas cadeiras já vieram para mim, e não são originais. Não tenho por que te falar que é original, não estou querendo acabar com o seu tesão pelas peças”. Mas existe uma turma aí, de bons marceneiros, que está fazendo para ganhar dinheiro.

É porque uma coisa é réplica, né?

É, e uma outra coisa é uma releitura. Eu acho que a releitura faz parte. Acho que é bacana que o trabalho de um designer, depois de ter caído no esquecimento por décadas, volte à tona, como foi o caso do Sério Rodrigues e do Zalszupin, que ainda está vivo. O Sérgio Rodrigues teve altos e baixos enormes na vida dele. Uma pessoa que ficou durante um bom tempo sem nada. E uma pessoa que sempre foi supercriativa, premiada, mas de repente é esquecida. Acho que democratizar o design é importante, mas uma coisa que eles não vão conseguir é a qualidade. Incentivar esse mercado paralelo de madeiras que não existem mais também, porque é totalmente insustentável. A madeira certificada brasileira, que é plantada para produzir a madeira maciça boa, praticamente 90% vai para fora do Brasil. E é um processo que é tão caro que a indústria nacional não consegue absorver. Os lotes bons, as melhores pranchas de jacarandá, iam para a Escandinávia, não para cá.

Você troca bastante as coisas da sua casa?

Moro num apartamento que é dos anos 60, e que até hoje não reformei. Ele está com as paredes originais, as tomadas originais. Tenho que fazer uma reforma nele, mas fico um pouco tenso de ver essas mudanças muito grandes, fico um pouco preocupado. Mas tudo tem uma evolução.

E quais seriam as suas maiores fontes de inspiração?

Acho que a minha família é uma das minhas maiores fontes de inspiração. Tanto meu pai como minha mãe foram pessoas que trabalharam a vida inteira, sempre gostaram do que faziam, e ficaram orgulhosos do que me tornei independente do que tivessem traçado na cabeça deles.

Sempre gostei muito de antiguidade, isso veio muito da minha mãe, ela gostava muito. Lembro que em Araçatuba tinha uma mulher chamada Tereza Cacarecos e que minha mãe adorava ir na tal da Tereza Cacarecos. Era uma mulher que juntava coisas, ia nas fazendas lindas de Minas Gerais, comprava tudo, e empilhava tudo na casa dela – parecia com isso aqui que vocês estão vendo. (Aponta para o galpão de centenas de móveis que ainda serão restaurados). Era uma diversão ir até lá, nem que fosse para tomar um café com aquela senhora. No dia em que minha mãe falava que iríamos lá, ficava sentado na cadeira esperando ansiosamente. Minha mãe sempre gostou muito de reciclar coisas – sempre foi preocupada em reutilizar coisas que talvez já não tivessem mais uso, não jogava nada fora. Venho pensando muito nisso. Talvez o meu gosto venha muito daí. Acho que o design, de uma maneira geral, me inspira.

#20DesejoArteArtes Visuais

O gabião de Manuela Costalima

por Manuela Costalima

Numa pedreira, a enorme massa mineral dobrou-se à vontade humana, desfazendo-se em pequenas partes. A grelha de metal encerra esse conjunto de pedras.

Um gabião é um bloco estanque, um troço que sustenta os cortes que o homem infringe na terra crua. Por meio dessa gaiola de pedras a terra é ali contida, para não ocupar espaço indesejado. Um gabião, apesar de composto por um conjunto de pedras, dá a impressão de corpo homogêneo, assim como parece ser coisa única a multidão. Quando dela se aproxima é que se percebe as singularidades das partes que a compõem. A pedra foi retirada da paisagem. Ela é bem maior do que as da pedreira. Sua forma é única, moldada pela natureza. Essa pedra rompe a tela metálica e passa a fazer parte do conjunto, está interposta, parte fora, parte dentro da gaiola. Ela se destaca no conjunto, está emoldurada por ele. Amolece o bloco rijo e traz a ele novos significados. Por meio dessa grande pedra retoma-se à natureza primeira das outras. Ela é, deste trabalho, pedra angular.

#20DesejoCulturaSociedade

Protect me from what I want

por Helena Cunha Di Ciero

Somos feitos de som e fúria, já dizia Shakespeare. O velho Freud adicionaria que, entre fezes e sangue, nascemos. A verdade é que não somos assim tão puros e limpos, como postamos por aí… Embora os filtros virtuais tentem a todo custo disfarçar nossas impurezas, existem desejos inconfessáveis inclusive para nós mesmos: provocam vergonha, são menos civilizados, trazem afetos menos aceitos, mais brutos, e geram culpa, medo, inveja. Embora o desejo nos mova, nem sempre pode ser comunicado às claras.

No entanto, sofremos. É que nossos desejos não partem da nossa reflexão, nem sempre combinam com nossa parte consciente, com os caminhos escolhidos. Eles vêm de outro lugar, menos racional, mais bicho, menos elaborado, indomável e esfomeado, que busca satisfação e prazer. Sua força é violenta, embora a gente viva tentando controlar. A tal bruta flor do querer se prima pela desobediência.

Muitas vezes é preciso reprimir certos sentimentos para manter determinadas escolhas. Mas, por outro lado, o que fortalece o desejo é a sua repressão. Quanto maior for, maior a força na tentativa de realizá-lo. Nossos instintos costumam ser teimosos e persistentes.

Nessa tentativa de domínio, o indivíduo sofre. Conclusão: essa luta constante gera uma tensão muito forte. De um lado, uma exigência de satisfação; de outro, as leis, a moral, as minhas escolhas.

O desejo nasce num lugar poderoso, uma instância psíquica inconsciente que recebe o nome de Id e vive em pé de guerra com um outro lado, responsável pela censura – que recebe o nome de Superego, igualmente forte, responsável por representar internamente a moral, as leis vigentes e os valores familiares.

A civilização funciona como uma tentativa de dominar os desejos, de freá-los. Sejam os sexuais ou os agressivos, a sociedade de alguma forma tenta manter certa ordem, a fim de que a humanidade se preserve de seus próprios instintos. Sabemos que a violência do homem é inerente, tornando-o facilmente presa. Por mais falha que seja a sociedade, o ser humano precisa dela para se organizar relativamente. Essa repressão seria uma tentativa de controle.

Mas existe um lugar onde meu desejo encontra uma possibilidade de existir: os sonhos. Quando sonhamos, estamos com a censura baixa, e certas coisas podem aparecer. Mesmo assim, algumas são censuradas por nós mesmos – juntando uma série de elementos que fazem uma espécie de quebra cabeça simbólico, somando vivências e experiências singulares e individuais. Ou seja, certas coisas aparecem de forma disfarçada. Por isso, dicionário de sonhos não deve ser levado muito a sério. Para cada um, um símbolo que aparece num sonho tem um significado específico, que só pode ser decifrado pelo próprio sujeito sonhador. O sonho é o território da realização do desejo. Mesmo que apareça de maneira torta, ele conta sobre um sentimento que acordado pode ser muito ameaçador.

É como se, dormindo, nosso desejo acordasse no sonho em que apresentasse de uma forma mascarada. Isto é, a fantasia é um dos veículos onde o desejo se apresenta. Lá, tudo pode acontecer. E o ato de sonhar e fantasiar nos possibilita uma tolerância maior da realidade. Não é raro sabermos de pessoas que suportaram uma condição muito difícil utilizando a imaginação. Anne Frank é um exemplo. O filme A vida é bela, outro. Precisamos do sonho para dar voz ao nosso desejo, e assim resgatar a força de lutar para viver.

#20DesejoCulturaLiteratura

Pão de queijo

por Eduardo Araújo

Quando eu era criança, ia para a casa da minha vó em Goiânia, onde morava, todos os finais de semana. Lá, meus primos e eu subíamos na jabuticabeira, que ficava nos fundos da casa, e fazíamos “elevadorzinho” com potes de Kibon amarrados com barbantes em uma pedra, que servia como contra peso. Os potes eram daqueles amarelos com a tampa azul, alguém ainda se lembra daquilo? Também fazíamos lagos na terra, com comportas e tudo, utilizando uma mangueira. Eu não me lembro bem, mas com certeza fazia uma sujeira tremenda.

O ponto alto das manhãs era quando meus pais, tios e tias reuniam toda a criançada para chupar laranja. Para quem não sabe, descascar laranja, sem ferir a parte branca dela, dá um trabalho do cão. Minha teoria é que os adultos procrastinavam ao máximo esse trabalho, nos deixando fazer o que queríamos, sujando o que quiséssemos, algumas vezes nos estropiando inteiros. E garanto: limpar toda aquela lambança, toda aquela molecada suja de barro, nem se compara com o trabalho de descascar dúzias de laranjas.

E o que mais eu comia quando era criança? Nas tardes de domingo, tinham os bolinhos de nó que a minha mãe fazia. Bolinhos de nó são isso mesmo que o nome diz, uma massa bem fofinha, em formato de nó, que cresce duas vezes, é frita e depois passada em uma calda de açúcar. Só de falar deles me lembro de quando caçava loucamente os menorzinhos, ainda quentes, que tinham a proporção perfeita entre a massa e a calda. Também tinha as rabanadas. Ah, as rabanadas! Rabanadas são, basicamente, pães velhos transformados em um dia de Natal.

Durante a semana, o cardápio era diferente. Comida simples, de mãe. Muito arroz com feijão, carne de panela, macarrão com molho de carne moída. Algumas vezes, feijão com bacon, outras, um feijão “gordo”, com linguiça, mas, na maioria delas, era feijão de caldo grosso mesmo, bem temperado e sem muitas frescuras.

À tarde, depois de chegar do colégio, assistia a um programa ou outro. Tirando poucos programas, televisão me entedia até hoje, então acho que enrolava na frente dela só até a hora do lanche, para depois poder brincar no playground do prédio. E sim, desde pequeno eu já pensava bastante em comida.

Nesses cafés da tarde, costumava tomar leite batido com chocolate, uma paixão do meu pai. Imitava-o colocando bastante Toddy no copo e completando com leite! Para acompanhar, minha mãe preparava pão na chapa ou pão de queijo. O pão na chapa era feito com pão de forma, macio por dentro e com aquela casquinha crocante de manteiga por fora. E o pão de queijo era uma receita que minha mãe descobriu, e que dizia ser a mesma “de uma marca famosa de Minas”! Eu ficava imaginando: “Será que na fábrica desta tal ‘marca famosa’ o cheiro era o mesmo que saia da nossa cozinha? Como os funcionários se seguravam para não abocanhar aquelas delícias?”

Hoje percebo que todas essas lembranças de criança construíram os meus desejos de agora, que muito do amor que minha mãe me deu foi através da comida. Mimando-me com centenas de laranjas arduamente descascadas, bolinhos de nó, rabanadas, pães na chapa e pães de queijo. Percebo também que essa é uma das formas como amo a minha namorada, meus familiares e meus amigos. Cozinhando para eles, dividindo uma boa mesa.

Espero que os modismos atuais do “sem glúten”, “sem lactose” ou sem sabor não acabem com os nossos desejos. Pois não comíamos pão de queijo porque não tem glúten, mas porque era gostoso mesmo. Não comíamos bolo de chocolate sem farinha de trigo porque, desta forma, não teria a mal falada “farinha branca, que é refinada”, mas porque a farinha de trigo tinha acabado – e “ah vá” que minha mãe ia buscar farinha só pra fazer um bolo!

E você, o que comia quando era pequeno? O que deseja hoje e o que vai desejar amanhã? Pão de queijo sem glúten?

Fotos de Nicholas Alan Cope

A displicência no modo de caminhar, o chapéu sobre os olhos e a grande saia com circunferência de 20m, o new look de 1947, representaram a grande onda lançada por Christian Dior em contraponto ao fim da Segunda Guerra. Alguém com a ideia de relançar o luxo num país paralisado por 3 milhões de grevistas, e que criou saias rodadas com tal leveza e quantidade de tecido num período econômico tão delicado, teria de ser considerado um alucinado por muitos. Mas o new look foi mais do que um sopro, foi uma ventania misteriosa nas ruas de Paris. Foi a resposta definitiva de esperança do estilista francês às intempéries causadas pelo fim da grande tristeza mundial. Dior achava que as mulheres precisavam de um motivo para sonhar, de um respiro de felicidade, de uma energia de esperança e amor.

Seria então necessário alguém com o princípio minimalista de Raf Simons para injetar um bom compasso de modernidade à maison Dior, num momento em que o mundo passa, de novo, por grandes ventanias, e para redescobrir a alta costura?


Ao longo da vida da marca, todos os criadores que por ali passaram, cada um com seu próprio carimbo, ovacionaram a extravagância e o exagero: “John Galliano fechou os portões da temporada de criações tão poderosas e excessivas no mundo da moda paralelamente à morte de Alexander McQueen”, lembra João Braga. Estava na hora, portanto, de flertar com o universo do consumidor mais jovem, tempo de menos teatro e super poses. Hora de usar alta costura no cinema, na galeria de arte, na gig, na aula de pilates e no café da manha.

Raf Simons, nascido na calma vila rural de Neerpelt, na Bélgica, filho único, cresceu rodeado de tios, tias, primos, em meio à natureza. Formou-se em design industrial e de mobiliário em Genk, onde fazia parte da turma dos estilistas Martin Margiela, Helmut Lang e Catherine Malandrino (integrante do grupo conhecido com o nome de Antuérpia 6).

Em 1995, Raf lançou sua primeira marca de roupas masculinas, incentivado por Linda Loppa, da Academia Real da Antuérpia (respeitada escola no mundo das Artes e da Moda), ao som de new wave e punk, mesma época em que relançou o skinny black suit. Música sempre fez parte do trabalho de Simons; em 1998, ele colocou os membros da banda Kraftwerk na passarela como modelos de seu desfile.

Sua primeira coleção foi inspirada em uniformes escolares — inspiração recorrente em sua vida, pois estudou em escola católica rígida. As duas seguintes também continuaram traduzindo essa mesma ideia de formas. A coleção de 1996, que se chamava We only come out at night (“A gente só sai à noite”), foi lançada em um vídeo feito por meninos que se reuniam no porão depois de uma festa de família, trocavam suas roupas sociais por roupas confortáveis e jogavam sinuca, retrato de sua geração.

Seu primeiro show foi apresentado em Paris, em 1997, e já nasciam naquele momento características que mais adiante seriam parte de seu estilo minimalista, executado com grande perfeição na alfaiataria masculina. Cinco anos após sua primeira apresentação, por meio da qual se firmou com um olhar à frente entre as marcas de menswear, seria responsável por romper padrões, misturar roupas casuais aos ternos e subverter as formas da alfaiataria.

Quando à frente da marca Jil Sander, onde ficou até o convite para integrar o time da Dior, a editora do The New York Times, Cathy Horyn, escreveu sobre ele: “A coleção do Sr. Simons para a Jil Sander – a sua terceira desde que se tornou diretor criativo da marca, há 18 meses – é perfeita. Vai fazer com o que todo o resto pareça pouco inovador, desajeitado e um pouco pateta”.

Trabalhando com Jil Sander, a darling do minimalismo belga, ele encontrou silhuetas ainda mais refinadas, lânguidas, e soluções para um estilo que sempre teve no seu DNA. Simons foi até o âmago do assunto com a “mestra” da questão e atingiu propriedade absoluta no minimalismo. Nada mais sensato do que o grande desafio que viria depois, o de rejuvenescer a Dior.

Dessa maneira, parece que as formas similares ao new look jamais foram revistas com conexão tão real e contemporânea ao espírito de 1947. Simons é conectado, à sua maneira, com a alma transgressora de Christian, o que é mais do que uma ligação puramente material ou física com suas criações. É uma ligação espiritual com todos os códigos da marca.

Há uma leveza insolente que caracteriza a maior parte da coleção de alta costura apresentada pela marca – em saias que aparentam quase sempre uma elegância tranquila e brilhantemente sofisticada.

Raf é dono de uma mentalidade artística obsessiva, ao mesmo tempo que se mantém conectado com suas verdades do coração, as quais transpõe às mãos — o que se supõe de um artista que comanda a arte da alta costura. Se no menswear ele colaborou ao eliminar volumes nos ombros, agora é o mágico reconstrutor que redefine a basque de Dior brincando com enchimentos que, em 1947, foram responsáveis por chocar um planeta. Manteve o busto ajustado, mas inventou um novo jeito malemolente de se mover, com saias livres e ultraelegantes, para quem, como eu, se interessa também em celebrar a vida com algum movimento.

#19UnidadeArteFotografia

Universo particular

por Leka Mendes

“Para cada pessoa que você olhar, você consegue enxergar um universo em seus olhos; se você realmente estiver olhando.”

George Carli

#19UnidadeArteArtes VisuaisCulturaSociedade

Um baile de máscaras

por Alberto Rocha Barros

No dia 21 de julho de 1914, enquanto parte do mundo se preparava para um terrível conflito internacional que marcaria a história do século XX, três irmãos adolescentes – Max, Jacques e Louis – saíram para explorar um sistema de cavernas pouco conhecido que integrava terras de seu pai, o Conde Henri Bégoën, localizadas na comuna de Montesquieu-Avantes, em Ariège, no extremo sul da França. Enquanto a Europa marchava em direção aos horrores da guerra moderna, os rapazes estavam prestes a se defrontar com o longínquo passado humano.

A aventura culminou na descoberta de uma das obras-primas das artes pré-históricas. Num dos mais profundos recintos da caverna, hoje conhecida como Grotte de Trois-Frères, num recanto claustrofóbico, de difícil iluminação, onde o lúgubre silêncio da caverna é quebrado, de tempos em tempos, por estranhos sons e ruídos geológicos, no alto de um nicho quase inacessível, havia uma estranhíssima figura semi-humana: o chamado Feiticeiro de Trois-Frères. Estima-se que foi pintado há cerca de 13.500 anos.

O sistema de cavernas criado pela ação do rio Volp contém uma série de importantes gravuras rupestres. Mas a caverna, que foi batizada em homenagem aos três irmãos, possui a singularidade de ter, dentre suas imagens, duas figuras híbridas, que misturam elementos humanos e animalescos de maneira tensa e poderosa. O feiticeiro mede cerca de 76 cm de altura por 45 cm de largura. O rosto remete ao de um homem maduro, barbado. Braços e pernas foram desenhados ambiguamente, com elementos humanos e animais. Galhadas brotam de sua cabeça e, talvez a característica mais desconcertante de todas: ele se volta para nós, mirando-nos fixamente com olhos que parecem tresloucados, como se o houvéssemos surpreendido em meio às suas misteriosas andanças ancestrais pela escuridão de seu santuário rochoso.

Ninguém sabe ao certo o que significa ou representa a estranha imagem. Seria um deus arcaico? Uma abominação monstruosa, dessas criadas pela imaginação de adultos e crianças de todas as idades e culturas? Um xamã? Alguma espécie de espírito? O que é certo é que estamos observando uma fascinante união entre homem (há um pênis claramente desenhado) e um ser zoomórfico (um cerdo e/ou bisonte). Talvez estejamos contemplando uma espécie de “fotografia instantânea” rupestre – um snapshot paleolítico – captando um momento de um processo de transformação homem-animal ou animal-homem.

Fantasias a respeito desse tipo de transformação ou hibridismo são comuns a nós homo sapiens sapiens (pense nos deuses zoomórficos dos egípcios antigos, ou no Minotauro da mitologia grega clássica, ou nos homens-jaguares das culturas ameríndias, ou em mais um sem número de exemplos…). Mas os seres humanos descobriram um outro artifício para dar vida a esses impulsos criativos de união, fusão e transformação animal: o uso de máscaras. Alguns pesquisadores aventam a ideia de que o Feiticeiro de Trois-Frères representa a contrapartida mágica ou estética de algum rito que continha um participante mascarado (quiçá a representação idealizada do próprio mascarado).

Máscaras são objetos que o homo sapiens sapiens reconhece, manipula e se relaciona com, exibindo alta destreza e familiaridade. Ocorrem nas mais variadas regiões, culturas e contextos; de rituais a festas folclóricas, de bailes às fantasias cinematográficas de Hollywood – a hoje famosa máscara do vilão Darth Vader da saga Guerra nas Estrelas tornou-se instantaneamente reconhecível e corre o risco de ser assimilada profundamente pelo nosso cânone cultural.

Máscaras também são surpreendentemente antigas. Até março deste ano, o Museu de Israel, em Jerusalém, apresenta a exposição Face to Face: The Oldest Masks in the World (Cara a Cara: As Máscaras Mais Antigas do Mundo). São máscaras pré-históricas, do período conhecido como Neolítico Pré-cerâmico B (8.300 – 5.500 a.C.), oriundas da Judeia e feitas de rochas sedimentares, especialmente calcário e giz.

O período é de extrema importância na história humana. Foi quando ocorreu a chamada Primeira Revolução Agrícola (também conhecida como Revolução Neolítica), quando a economia de caçadores-e-coletores nômades se converteu em uma economia de fazendeiros assentados em terras fixas, com grande salto no processo de domesticação de animais, momento em que a chamada dieta paleolítica foi substituída por um regime alimentar inteiramente novo. Informações arqueológicas sobre essas máscaras são escassas, mas hipóteses sugeridas incluem a de que possam ter alguma ligação com a nascente necessidade de assinalar a posse de terra, ou com a proximidade dos mortos que a vida sedentária traz consigo. As características plásticas de algumas sugerem união com o mundo animal, mas a maior parte indica outro tipo de fusão: entre vivos e mortos, entre a singularidade do retrato e a universalidade do crânio.

É possível categorizar máscaras de diversas maneiras, um recurso que nos permite iniciar o estudo científico dessa inclinação humana. Aponto quatro recortes que me parecem particularmente importantes:

Quanto ao uso: algumas máscaras são criadas para serem usadas sobre o rosto, enquanto outras integram vestimentas complexas em posições as mais criativas possíveis; algumas são criadas para recobrir o semblante dos mortos, enquanto outras não são para serem usadas, sendo, por vezes, objetos íntimos, que somente podem ser vistos por algumas pessoas especiais, ou em ocasiões especiais.

Quanto à figuração: máscaras operam num binômio entre o antropomórfico e o não-antropomórfico (podem ser zoomórficas, corporificar monstros ou representar espíritos ou deuses, etc.). Arriscaria sugerir que a sofisticação e a variedade das máscaras não-antropomórficas servem para sublinhar a radical não-humanidade delas.

Quanto à imaginação: em alguns casos, tanto o mascarado quanto sua plateia flertam com a ideia de uma transmutação de um ser em outro – o mascarado se transforma na máscara ou vive uma situação limiar e paradoxal (é, a um só tempo, a representação e o representado, o ator e o personagem) –; em outros casos, a transmutação não é vivenciada nem é um requisito.

Quanto ao contexto cultural: máscaras são usadas tanto em contextos laicos, com pouca ou nenhuma ritualização, quanto em situações fortemente carregadas de energia sacra – as encontramos em coloridas festas populares, em cerimônias tribais ou como adereços fúnebres.

Para mim, o Feiticeiro de Trois-Frères e as máscaras neolíticas da Judeia representam os dois polos mais típicos deste tão humano baile de máscaras. De um lado, temos as máscaras antropomórficas, que, demarcando território ou disfarçando o semblante morto das pessoas amadas, parecem dizer “isto é humano, ser gente significa isto”, uma espécie de exibição da condição humana. De outro, as zoomórficas parecem destacar a nossa união com o mundo natural, especialmente com os animais vertebrados. Ao vesti-las, o homem alude ao seu paradoxo solitário e singular: o de ser apenas um animal, mas um animal como nenhum outro.

#19UnidadeArteCinema

Os filmes por trás do diretor

por Willian Silveira

Você se preocupa em encontrar a voz dos seus trabalhos. Perde o sono na tentativa de achar a unidade que guia os seus projetos. Esqueça. Isso só vai paralisá-lo. “Criar é viver a dúvida”, diria Rilke (1875 – 1926). O resultado íntimo da carreira de quem cria está amarrado ao talento e à sorte, e se fará ouvir somente no decorrer do percurso.

Aos 29 anos, o diretor norueguês Kristoffer Borgli segue a incerteza do caminho. Com uma das carreiras audiovisuais mais interessantes dos últimos tempos, o jovem é um exemplo de quem aceita o desconhecido. Vivendo em Oslo, onde nasceu, Borgli produz comerciais, videoclipes e ficção. A cidade, que lhe dá acesso a um cenário particular e inusitado, desconhecido mesmo para os europeus, serve como ponto geográfico anônimo, distante das referências óbvias, como os centros Londres, Paris e Berlim.

A relação de Borgli com o visual começou cedo. Influenciado pelo irmão mais velho, dono de uma locadora de filmes, assistiu a uma infinidade de títulos antes de encontrar no estabelecimento um de seus primeiros empregos, aos 18 anos. O gosto pelo cinema – lado a lado com o skate e o grafite – foi a inspiração para a estética de Kristoffer, que trabalha com vídeos de até 15 minutos filmados em digital, formato em que combina planos longos com montagem ágil. A escolha pelo estilo, que mescla o tradicional com o moderno, é o primeiro traço a chamar atenção para o diretor e revelar a sua preferência pela narrativa, em detrimento do modelo atual, em que se procura impactar pelo conjunto de imagens em velocidade.

Em um tempo dominado pela linguagem visual frenética, imposta pelos videoclipes dos anos 1990, Borgli caminha na direção contrária. Não porque ir de encontro à corrente lhe renda mais reconhecimento, mas porque a sua criação parte da singularidade. As experiências pessoais do diretor juntam-se a acontecimentos insólitos e tornam-se fagulhas para acender os enredos. Ao sabermos pouco sobre a fronteira entre realidade e ficção, Kristoffer prefere assumir a confusão.

Síndromes”, “Sonhos juvenis” e “Primeiros dias de algo” são traduções livres para alguns dos trabalhos do diretor. Como quem sai de si para ver-se à distância, Borgli expressa os sentimentos da geração que se convencionou chamar de Millennials (ou “geração Y”). Assim, a principal característica dos seus personagens está em viver a instabilidade, seja no emprego ou nos relacionamentos. Tornar-se adulto surge como um desejo complicado e uma obrigação frustrante. Criados a partir de sonhos e de expectativas inatingíveis, o mundo descortina-se como um lugar tomado por situações peculiares. Quando a realidade não parece convidativa, o melhor refúgio está dentro de si. I could be bounded in a nutshell and count myself a king of infinite space, confessa Hamlet, na tragédia homônima de William Shakespeare.

“O fator dominante”, diz Borgli, “é a questão do momento em que realizamos. Isso diz respeito a filmar e criar um instante.” No mínimo reveladora, a declaração, que soa quase como um desabafo, pode ser uma pista sobre a duração da criação, que não precisa se preocupar em ter um impacto perene. Mais do que se concentrar em realizar obras consideradas geniais, o diretor procurou explorar o que tinha de verdadeiro em cada vídeo. Sondando as emoções que o consumiam, Kristoffer conseguiu uma série de filmes que o permitiram expressar-se em um estágio preciso de sua vida. Pouco importa se hoje os filmes não o representam mais, pois os personagens e as suas circunstâncias bastam aos inúmeros espectadores que ali se reconhecem.

Produzir para si é o jeito mais fácil de atingir os outros. “Assim como muitos diretores, eu trago muito das minhas memórias e experiências para os filmes”. O que está por trás de ser plural, de abordar diversos assuntos, não é a falta de sintonia com uma linha de pensamento. A criação realizada por necessidade – seja pela cobrança de prazos ou por circunstâncias pessoais – desconstrói um dos mitos mais antigos da produção artística: a de que o criador precisa esperar pela inspiração. “Eu acredito na produtividade tanto quanto na criatividade, porque, sempre que um processo criativo leva muito tempo, eu perco o interesse e não sigo adiante.”

Os temas de Kristoffer não foram elaborados antecipadamente ou decididos para gerar valor a longo prazo. “Eu não diria que qualquer dos meus trabalhos é autobiográfico. Eu estou interessado em borrar as fronteiras entre realidade e ficção, criando um espaço em que você vê a história enquanto história, mas repentinamente se depara com uma nova dimensão no meio disso” , diz o diretor. O que se vê são obras aleatórias, realizadas pela urgência do presente. Mesmo assim, o fio que as conduz é sutilmente preciso: as nadadoras presas em um ginásio aquático, o músico que aceita o insucesso da carreira, os primeiros dias após o fim de um relacionamento, um amor de verão, duas crianças sozinhas em casa. Kristoffer trata do raro e da beleza (em geral melancólica) naquilo que é incomum. Ou comum, porém doloroso. Enjoy the ride, sugere a unidade por trás do trabalho do norueguês.

#19UnidadeArteArtes Visuais

Sobre o divisor de Lygia Pape

por Diego Matos

Em 1981, na fase terminal de um regime antidemocrático, O Pasquim publicaria uma entrevista com Mário Pedrosa, dirigida e realizada por um grupo de formadores de opinião, no qual felizmente encontrava-se Lygia Pape. Ao discorrer acerca da natureza do intelectual público, Pedrosa é pego pela cumplicidade da artista ao deflagrar a pergunta afirmação: “Quem nasce para a aventura não toma outro rumo”. À qual o crítico de arte responde enfatizando sua experiência política em primeiro lugar e colocando “arte e pensamento” como uma dupla irrefutável na construção revolucionária da vida.

A aventura, enquanto experiência vivida, comparece como o cerne da questão. E, para que aconteça e ganhe corpo enquanto arte, a sua razão é complementar à da política. É sobre o espírito imbuído de estar no front, portanto, libertário, que a obra coletiva do mundo se constrói atentando para o diverso – ou melhor, a alteridade. Sobre isso e muito mais, nada mais exemplar que a relação criador e criatura que aqui se apresenta, símbolo de uma construção coletiva – Lygia Pape e a obra Divisor (1968).

Três elementos podem conferir substratos à leitura da experiência artística do Divisor – o protagonismo da artista, a relação espaço-tempo e a conjunção poético-simbólica da obra. Pape é um dos vértices da base triangular do movimento neoconcreto e, de certo, parte da invenção do contemporâneo pelos lados de cá – ao lado de Lygia Clark e Hélio Oiticica. A arte aproximava-se dos processos da vida, deslocando a natureza artística para o espaço social. Grosso modo, via-se a contaminação do rigor concretista pelos meandros da cultura urbana conflituosa. Por intermédio do que Oiticica definira como participador, o artista multiplicaria a existência dos Parangolés e dos Bólides, Clark radicalizaria a experiência sensorial construindo, por exemplo, A Casa é o Corpo, e Pape produziria trabalhos em que o uso era horizontal e sem hierarquia, cujo exemplo de maior clareza é o Divisor.

Como definiu a própria artista, o Divisor seria “a pele de todos: lisa leve como nuvem: solta”. Um dispositivo tão simples quanto um lençol de 30 metros quadrados com furos pelos quais podem passar as cabeças de quem quiser vesti-lo e participar de uma brincadeira sem regras preestabelecidas, nas ruas e nos parques da cidade. Nasce no uso daquele imenso manto uma coreografia espontânea, em que um mar de individualidades reveladas pelas cabeças dos indivíduos conduziria um movimento de permanente negociação coletiva.

A performance e situação pública nasceram da negação de um saber restrito à artista e do estatuto de uma galeria de arte (ou de seus espaços de contenção). Delegando o lugar de ação de sua obra a terceiros, a artista inventaria aspectos de uma criação orgânica e plural em oposição à racionalidade e à previsibilidade das máquinas. Nesse ímpeto de abertura, a artista relativizava também a noção de autoria. Ao motivar a performance e a participação, sejam elas programadas ou espontâneas, Lygia Pape arregimenta um conhecimento artístico de aspirações coletivas.

Processo e conceito, ludicidade e sensibilidade, aliados à amplitude participadora no trabalho de arte, parecem ser os elementos que fazem da obra de Pape reveladora da noção de diversidade. Colocava-se “o vasto e o íntimo” – como diria o crítico Guy Brett – em uma zona de instabilidade física, confundindo o fora e o dentro, o público e o privado, o consenso e o dissenso. Essa é a razão do Divisor.

De forma mimética, essa razão transparece a turbulência daquele ano de 1968. O recrudescimento de um estado de exceção tentava segurar as rédeas de uma ordem social em pleno crescimento exponencial das cidades e, por consequência, da diversidade urbana. Curiosamente, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) inaugura sua nova sede naquele ano, presenteando São Paulo com um amplo espaço de negociação política: o vão livre de Lina Bo Bardi e, por conseguinte, a definição de um lugar de acolhimento à experiência coletiva. Se Lina, sob o gesto subversivo do seu desenho, oferece o espaço arquitetônico do coletivo ao particular, Lygia apresenta, a partir da experiência particular mas compartilhada, a concepção coletiva de um lugar arquitetônico em movimento. Simbolicamente, tem-se nesses dois gestos criativos e complementares a evidência da indissociável relação entre arte e pensamento – ação política por excelência na aventura revolucionária da vida.