No poemaEspeculação em torno da palavra homem, Carlos Drummond de Andrade começa se perguntando, ou nos perguntando, que coisa é o homem. Provavelmente, a pergunta mais importante que nos fazemos desde que passamos a ter consciência de nós mesmos, tanto quanto dos outros ao nosso redor. Mas essa questão se refere ao Homem, que é a própria entidade, dona dessa consciência materializada no mundo. Talvez, antes mesmo de querer saber o que é a vida, saímos em busca do que é o eu e o outro. E o que é o Homem, que transcende o gênero e que designa o ser humano como um todo? E a mulher, onde se insere? Gostaria de saber porque não somos sinônimos de algo maior.
Saindo do âmbito do maiúsculo, é óbvio que também queremos saber o que é o homem, o minúsculo. Quando abrimos um aplicativo de relacionamentos e passamos o cardápio disponível de um lado para o outro, o que há de semelhança e diferença entre cada um daqueles perfis que posam de frente para o espelho, abraçando um cachorro, fazendo escalada, em cima de um cavalo ou posando em frente à torre Eiffel?
Descobrir o que é o homem é uma pergunta que jamais poderá ser feita no singular, assim como sua resposta não será única. O homem ganha mais, manda mais, mata mais, transa mais, talvez? Ele não é sexo frágil, dizem. Não sangra todo mês e não borra a maquiagem por deixar-se chorar.
Há, sim, múltiplos homens — um para cada experiência, cada margem, cada invisível que nasce em nossos modos de existir. Em cada forma de expressão artística, na literatura, na música, no cinema, encontraremos perfis e categorias de homens, com suas experiências e idiossincrasias. Por isso, selecionei algumas canções para encontrar algumas categorias desses seres nem sempre misteriosos. E, ironicamente ou não, quis nomeá-los, como em um jogo, refletindo sobre essa condição flutuante no tempo e na matéria.
A partir das canções, o homem se revela, seja no que carrega de eterno ou efêmero, nos ecos do passado ou nos sonhos do futuro, na simplicidade de ser apenas e ou nunca suficientemente… Humano.
Homem Ontológico
Existirmos: a que será que se destina? (Cajuína – Caetano Veloso)
Homem Afeto
Eu passei muito tempo Aprendendo a beijar outros homens Como beijo o meu pai (Pai e mãe — Gilberto Gil)
Homem Flor
Os mundos são mais belos Quando olhados pela janela E as colinas estão repletas de homens fortes E eu olho pra elas porque elas são o mundo inteiro E eu olho pra eles porque eles são o mundo inteiro E eu olho pra elas porque elas são o meu terreno E eu olho pra eles porque eles são o meu terreno Onde eu vou plantar Onde eu vou plantar Flores homens, Homens flores (Homens flores — Luis Capucho e Marcos Sacramento)
Homem com H
Por favor não implora, Porque homem não chora E não pede perdão, e não pede perdãoVocê foi a culpada desse amor se acabar (Porque homem não chora — Beto Nascimento e Ronivon Alves Da Silva)
Homem Provisão
Maurino que é de ‘guenta, ‘guentou Dadá que é de labuta, labutou Zeca, esse nem falouEra só jogar a rede e puxar (Milagre — Dorival Caymmi)
Homem Lápide
O homem é sempre só O fim é sempre pó (A ponte — Elton Medeiros e Paulo César Pinheiro)
Homem Ancestral
Eu sou folião de todos os carnavais É sempre a mesma fantasia Costume que herdei Dos meus ancestrais (A mesma fantasia — Nelson Sargento)
Homem Sábio
Desde o começo do mundo Que o homem sonha com a paz Ela está dentro dele mesmo (Todos estão surdos — Roberto Carlos)
Homem Guerreiro
Jorge sentou praça na cavalaria Eu estou feliz porque Eu também sou da sua companhia (Jorge da Capadócia — Jorge Ben Jor)
Homem Involução
Desde os primórdios Até hoje em dia O homem ainda faz O que o macaco fazia (Homem Primata — Titãs)
Homem Pureza
Há um menino, há um moleque Morando sempre no meu coração Toda vez que o adulto fraqueja Ele vem pra me dar a mão (Bola de gude — Fernando Brant e Milton Nascimento)
Homem Ironia
Oh, senhor cidadão Eu quero saber, eu quero saber Com quantos quilos de medo Com quantos quilos de medo Se faz uma tradição?
(Senhor Cidadão — Tom Zé)
Homem Maluco Beleza
Lembro, Pedro, aqueles velhos dias Quando os dois pensavam sobre o mundo Hoje eu te chamo de careta, Pedro E você me chama vagabundo
(Meu amigo Pedro — Raul Seixas e Paulo Souza)
Homem Casamento
Doutor, jogava o Flamengo, eu queria escutar Chegou, mudou de estação, começou a cantar Tem mais um cisco no olho, ela em vez de assoprar Sem dó falou que por ela eu podia cegar (Incompatibilidade de gênios — Aldir Blanc e João Bosco)
Homem Arte
Como é maiúsculo O artista e a sua canção Relação entre Deus e o músculo Que faz poderosa a sua criação Pensando bem É um mistério Como é misterioso o coração
(Maiúsculo — Sérgio Sampaio)
Homem Clichê
Talvez queira me avisar Que no coração de Bia Meninos não têm lugar Porém nada me amofina Até posso virar menina Pra ela me namorar (Canção para Bia — Chico Buarque)
Homem Abjeto
Eles fuzis e botas em altos brasões Forjam verdades e conspirações Raio divino exterminação, pura avareza Eles reivindicaram nossa proteção Mentindo sobre a própria criação (Eles — Maglore)
Homem Empresa
Se você quiser ficar por perto Estou no meu auge Na minha firma de sonhos (Veleiro contra o mar — Giovani Cidreira)
Homem Homem
Você precisa é de um homem Pra chamar de seu Mesmo que esse homem seja eu (Mesmo que seja eu — Erasmo Carlos e Roberto Carlos)
Homem Patriarcado
Pai na cabeceira: é hora do almoço Minha mãe me chama: é hora do almoço Minha irmã mais nova, negra cabeleira Minha avó reclama: é hora do almoço (Na hora do almoço — Belchior)
Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, recebeu uma adaptação do Teatro Oficina entre 2002 e 2006, gerando um conjunto de cinco espetáculos, que se reporta às três partes que compõem o livro original (A terra, O homem e A luta). Na montagem, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, temos as peças A terra (2002), O homem 1 e O homem 2 (2003), A luta 1 (2005) e A luta 2 (2006), que viajaram pelo Brasil com a composição inteira a partir de 2007, inclusive para Canudos, fazendo os sertões circularem pelo país. Zé Celso encarnou Antônio Conselheiro, criando uma ópera–odisseia-carnavalesca e promovendo ressignificações desse personagem histórico, de Canudos e do conflito que ali se deu.
“Zé Celso descobre em Antônio Conselheiro e no povo de Canudos essa energia latente de transformação do ‘homem’, tomado enquanto metonímia da condição humana”
Euclides da Cunha foi associado ao Pré-Modernismo na literatura brasileira, termo hoje problematizado em função da centralidade que dá ao Modernismo, em vez de tomar o fenômeno literário em si, sem “linha evolutiva”. De todo modo, sabemos que o livro está relacionado ao contexto da Primeira República e a seu projeto excludente e violento de “modernização”. A esse processo contínuo de aniquilamento dos espaços, de pessoas e dos modos de vida e cultura dos povos que formaram o país, responderam uma série de revoltas populares. A resistência de um Brasil popular e negro-indígena-miscigenado ao processo de elitização e embranquecimento atravessa a história de Canudos e é a chave da leitura que Zé-Conselheiro vaticina.
O livro de Euclides da Cunha é um relato da viagem que o autor fez aos sertões da Bahia, em 1897, para acompanhar a “campanha de Canudos”, como correspondente do jornal Estado de São Paulo. O escritor, imbuído dos ideais naturalistas e positivistas de seu tempo, encontrou nessa experiência as contradições internas de uma jornada existencial a um Brasil que lhe era desconhecido. A nota preliminar do livro já situa essa incongruência, quando prevê o avanço da “civilização” pelos sertões e “o esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”, mas constata que ali houve um crime a ser denunciado.
A frase que se tornou emblema da obra, “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, trabalha no fio das oposições entre sertão e litoral, mas também entre Hércules e Quasímodo, imagem paradoxal entre a força e o desvio. A citação, pertinente à parte O homem, vem no conjunto das análises sobre os processos de miscigenação no Brasil. O livro todo parece desconfiar do que afirma sobre as hierarquias raciais e culturais, diante da complexidade do sertanejo: “Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se”.
Zé Celso descobre em Antônio Conselheiro e no povo de Canudos essa energia latente de transformação do “homem”, tomado enquanto metonímia da condição humana. O “caboclo” revela-se aqui como ponto de cruzamento, e faz com que Zé Celso veja em Conselheiro um xamã, líder espiritual-político-filosófico que age no sentido da cura do ser e da terra. Deslocando as reverberações messiânicas e sebastianistas do líder em direção à centralidade de um presente marcado pela terra, pelo humano e pela luta constante, o espetáculo conjuga o futuro e o passado, e revela as possibilidades permanentes de mudança no agora.
Nesse sentido, abro um parênteses para falar de Roda viva, peça de autoria de Chico Buarque, de 1968, remontada em 2019. Na montagem do Oficina, surpreende a incorporação da canção homônima, de Chico, a princípio um lamento sobre o tempo e a violência da “roda viva”. No entanto, na encenação, os atores em giro, de parangolés coloridos, quase celebram a ação permanente do tempo, que a tudo leva-e-traz. No Youtube, temos um registro do espetáculo, em que a dança termina com uma criança da plateia que ganha a cena. Ela caminha saltitante de um lado para o outro e, no final, para espontaneamente no centro da roda, sorrindo e aplaudindo, revestindo a canção de sua força de promessa-realização.
Voltemos a Os sertões. Em A terra, Zé Celso aborda a relação entre o meio e o homem, e encena a célebre afirmação do livro de que o “o martírio do homem ali […] nasce do martírio secular da Terra…”. O espetáculo investe em construções antropomórficas, já presentes no original, para dar corpo à natureza. Segundo a descrição do Oficina, “os atores são terra, vegetação, vento, animais, rios, seca”, “revelando os segredos mais íntimos da natureza, que vibram também nas artérias humanas e trans-humanas.”. A contiguidade entre homem e natureza chama atenção, menos para o determinismo do que para a relação orgânica entre o humano e o natural.
Em uma das cenas, afirma-se que “o tempo não é linear; é um maravilhoso emaranhado em que a qualquer momento podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções sem começo nem fim”, oferecendo um horizonte de vitória. Canudos está por toda parte, em todos os tempos, presentifica-se no teatro. Aqui entramos no tempo circular, que Antonio Bispo dos Santos anuncia em sua conhecida formulação, “começo-meio-começo”, e que se encontra no expresso circular e no Tempo-rei de Gilberto Gil, na Refazenda, na Refavela, no Realce.
A segunda peça tem como título O homem 1: do pré-homem à re-volta. Aqui se encontram as premissas oswaldianas do passado alçado ao futuro, caminho para a modernidade brasileira. Destacando a formação da palavra “re-volta”, revela-se seu ideal de retorno às origens, adiante, fazendo coro à máxima de Ailton Krenak de que o futuro é ancestral. Não por acaso, a terceira peça tem por título O homem 2: da re-volta ao trans-homem. A escolha do prefixo “trans” reverbera o “super-homem” de Nietzsche, mas aponta mais para a transformação que para a grandeza, e menos para o masculino do que para o que o transcende.
Em uma cena icônica de O homem, gravada em Canudos, um coro de crianças sertanejas recitam e performam o longo fragmento que começa em “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, enquanto dançam e perambulam pelo palco-passarela. Em dado momento, imitam com seus corpos o “Hércules-Quasímodo”, em seguida ficam de cócoras sobre os calcanhares, e deles se levantam titânicas, enquanto reproduzem a linguagem sofisticada e complexa do livro: “da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”. As crianças devoram Euclides da Cunha, deslocam seu lugar de enunciação, forçam o texto a dizer além.
Chegamos, enfim, à luta, também dividida em duas partes. A história de Canudos se vê atravessada pela disputa de mais de quarenta anos do Teatro Oficina com o grupo Sílvio Santos, longo processo de conflito entre os planos expansionistas do empresário-artista, que comprou terrenos no entorno do Oficina e pretendia construir um complexo com shopping e centro de convenções, sufocando o teatro. Silvio Santos chegou a visitá-lo em 2004.
Zé Celso insistiu muitas vezes: “ele é um artista; vai me entender”. A verdade é que Silvio Santos é também personagem paradoxal, dono de um oligopólio de mídia e de empreendimentos comerciais, mas também criador de um universo de programas, músicas e personagens populares. Em todo processo, Zé Celso desempenhou o gesto tropicalista: tentou comer seu inimigo, incorporá-lo, exigir dele que se fizesse também o trans-Sílvio, cobrando que o artista se sobrepusesse ao investidor.
A primeira parte de A luta é dedicada aos primeiros episódios de resistência de Canudos contra as expedições violentas do exército republicano, inclusive a liderada pelo Coronel Moreira César, morto pelos resistentes. Mas refere-se também a Silvio Santos, e faz o terreiro eletrônico do Oficina, cercado pelos empreendimentos capitalistas, tornar-se uma terra a ser protegida e demarcada. Os consecutivos projetos de tombamento do teatro, primeiro em 1982, depois em 2010, foram ajudando a proteger o terreno e a belíssima construção de Lina Bo Bardi. Zé Celso, ameaçado pelas invasões, dobrou a aposta: liderou a imaginação de um teatro-estádio, e depois do Parque do Bixiga. Antônio-Celso multiplica-se nos elencos numerosos em disputa pela cidade.
Em A luta 2, temos uma peça dedicada a “todo poder de desmassacre da Arte e à atuação do Poder Trans-humano da Multidão”. Trata-se, na verdade, da sequência final do livro, em que o envio da expedição derradeira veio a vencer os sertanejos de Canudos e matar Antônio Conselheiro. No entanto, o espetáculo encena a luta sem aceitar o massacre, tampouco a derrota. Lembremos que um dos capítulos finais de Euclides afirma: “Canudos não se rendeu”. E essa é a grande façanha celebrada pelo Oficina-Canudos em pleno século XXI.
Aliás, é muito emblemático que a palavra “favela” tenha sido originada do nome do arbusto típico e de um morro em Canudos. A presença da planta no morro na Gamboa, atual Providência, concedeu-lhe o nome de Morro da Favela. Lembremos: as favelas cariocas surgem da mesma modernização excludente da República, que arrasou com os cortiços e fez suas populações subirem as encostas dos morros da cidade. E é também nas favelas que tantos sertanejos vieram morar ao longo do século XX, em subsequentes processos de migração.
Na literatura, os sertões também se refizeram nas canções de Luiz Gonzaga, nos cordéis populares e nas letras de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa. Em Grande sertão: veredas, Riobaldo termina sua fala constatando, sobre Deus e o Diabo, que “o que existe é o homem humano”. Rosa potencializa o termo “humano”, adjetivo de função restritiva, mas que, após o percurso da narrativa, parece atravessada por uma incontinência de sentidos, que transbordam. Na “travessia” que encerra o livro está pós-fixo o morfema “trans”, oculto e óbvio.
No dia em que Zé Celso se transmutou, no lugar de um velório tradicional, houve uma grande celebração a ele no Oficina. Em dado momento, Chico César começou a cantar os versos de Béradêro: “Catolé do Rocha / praça de guerra/ Catolé do Rocha / onde o homem bode berra”. As pessoas cantavam, batiam palmas e dançavam em torno do corpo (no final, tudo é sobre o corpo), pulando e pisando com força o chão do terreiro (desde o início, tudo é sobre a terra). Tudo é sobre luta, demarcação e re-existência. Canudos não se rendeu. Evoé!
Agora: no cume da montanha, Teresa e o livro. Estamos distantes, em pontos assinalados no mapa, estamos aqui, no cume da montanha, onde começa novamente a falar a noite. Teresa, filha de Joana Vaz de Barros, irmã de Lucrécia e Bernarda, mortas em Évora no ano de 1591, pela Inquisição do Santo Ofício. Teresa, em febre, escapa para o livro, sentindo na memória rude de suas digitais a envergadura gasta da lombada, sugerindo que houvesse mar no título desta linhagem, que à língua de tocar suas impressões nas coisas das palavras, ficasse rugindo a reabertura das águas, o esconderijo delas, no cume da montanha, e desatasse as centenas de violações sugadas pelos corpos marinhos. Da febre de Teresa passam ao largo os guaranis carijós que seu irmão, Pedro, capturara para a exploração enquanto carpia o demônio velho do mundo, estrada afora. Pedro, que assumira o cargo de capitão-mor da Capitania de São Vicente, junto com seu irmão António, que se fizera padre do Recife, detido também pela Santa Inquisição, depois de estuprar crianças no confessionário. Teresa para naquela palavra detido, deixa os dedos nela. Sua outra mão súbita está enfiada em seu próprio umbigo, mais um receptáculo do colar de cicatrizes — ela diz — repetindo com a pálpebra do indicador: detido. Detido, mas não morto como suas irmãs Bernarda e Lucrécia. Detido mas não mulher. E a crista da cicatriz do umbigo ouriça-se como um clitóris cheio de sangue. Teresa reabre o livro, agora com a língua úmida de seu nome. Agora, no cume da montanha. Subiu cedo da noite a encosta da serra do mar, olha do cume a ponta esquiva da areia lambendo o convento dos caranguejos, onde, junto a outras mulheres, se conheceu mulher. Sente o empuxo lunar de fazer nascer a voz, voz flutuante de idosa menina, voz cheia de sua vulva agora colada à capa do livro gasto, o livro molhado, das linhagens. Teresa escreve contra a guerra. Ama profusamente o livro. Confia em sua servidão que não cede a nenhuma impostura. É ele, o caos central que sustentará a noite, a noite de Teresa, os quinhentos anos desta mulher viva, apoiando, agora, o corpo à precisão do gozo de uma vogal cujo agudo é impronunciável, a não ser. A não ser — disse ela — que o vento. A lombada ereta da página ao meio de sua mão, cintilando sob a volumosa cadência que seus dedos sabiam fazer, dedos de mar, Teresa empunhava a voz do livro, chamando-o, ao aceso daquela vogal, sua festiva turbulência, o ponto de giro da dor, finalmente, o rasgo da ferida. É chegada a hora.
À hora dos ventos, deixo-te de lado, livro de linhagens, cicatriz nuclear, fechados tu e eu na página ao meio. É um ritual, só pode ser aprendido no corpo, corpo-a-corpo com as ostras, quebrando-se abaixo de nós no limite das águas e abrindo-se sinuosas, com a língua que insiste em soletrar seu próprio precipício. Só então, depois de concentrados, tu e eu, passo o dedo em teu farfalhar. Uma barcarola chamada Paixão, para Teresa é Livro de Vento. Posso respirar só com o dedo, saber teu pulso pelo felpo. Minha voz perde os muros, ensopa-se com os visgos das algas, com sua própria lentidão em relevo. Vou achando os modos de viajar o vento, deixo entrar na boca seu vaivém hospitaleiro, seu tropeçar dúbio, suas fugas fazendo cócegas na fundura da garganta, criando algo como uma exposição total à ausência de constrangimentos. Devolvendo o corpo ao desconhecimento do medo, limpando as guerras todas, cujos quelóides são agora vértice de prazer. O vento vai temperando a voz e ambos vão desanuviando as tramas do corpo, já arredondando-se sem quinas, tremeluzente e pinçado por arrepios sutis nascidos da coluna e dos ísquios, Teresa com suas ancas imensas sobre o livro. No vento cabem todas as mãos, todos os dedos, todas as músicas. Nas suas páginas todas as línguas falam o s e o t do nome poliforme de Teresa, o nome de seu corpo bicho, seu sexo molhado de fé e alforria. Com a outra mão abaixo a saia, tiro-a por completo, só não descubro as costas, para que o vento não se demore muito por ali. Vou girando as ancas, pernas altaneiras, sentada, no cume, até encontrar a direção prometida. O vento brinca comigo e rodopia também no bico dos meus seios, enquanto aperta com seu fôlego quente a minha nuca, dirigindo minha cabeça para o espaço, descobrindo uma mola sideral na pele dos meus olhos. Conheço do corpo do vento a sensação do bem, e sei que cheguei aqui carregada por ti, abrasada em tua garupa — ela acaricia o livro sob seu prazer. É mais para leste, um pouco para sul, e muda o tempo todo. Teresa encontra a fenda que diz sul, a metamórfica. Os ísquios tilintam e então, de pernas arqueadas, abre-se desmesurada, ursa, imensa, ouriça, ostra, toda ela um motor de mínimos ajustes, um ritmo arredio, desconjuntado, canalizando na vulva as diabólicas delícias das línguas do ar. Venta forte, tudo massageia meus lábios, vai quebrando o canto dentro de mim. Toco o sino das igrejas, aquela torre mínima onde moram meninas espertas, acidultantes, meninas que escrevem contra a guerra, meninas divertindo-se com os espólios de seu passado fruto violador, meninas que beijam a boca do vazio e não são detidas. Espátula de carne a enrijecer conforme o som e a pôr todo o corpo numa mesma viração. O vento entra, Teresa rodopia, uma mão ajeita o equilíbrio móvel da posição, a outra pousa em ti, elo do contágio. O vento afunila, cava com as mãos até o útero, conduzido por um prelúdio de temporal. Já relampeia fora, o céu boquiaberto, e é Teresa quem abre a goela com a cabeça jorrada para trás, já não usa nenhuma das mãos, estão em algum lugar de liberdade, no alto cume da montanha. Do cós da garganta vejo que é a voz com que amo. A voz dos indistintos, voz sem gente dentro, voz de pessoa que antigamente, no lugar do futuro, saberá voar. Estou no mar, o corpo todo é mar. Tu, encharcado, perdido, boia já longe dentro de mim. O mesmo mar é um lugar onde caberá nossa distância. É essa a voz que repete, remoça e remenda o amor. O vento nos trouxe, ao mesmo mar. Possuída, Teresa deita o livro debaixo da terra, ecoando ainda o silvo do cume de seu corpo, a montanha, no meio de suas pernas, na página em que a memória se revive aguardente, brasão sem dono, desatrelada lareira que aquece sem fazer latejar na retina da mulher que se senta em frente a ela, com livro nas mãos, dentro de si, dor nenhuma, nenhuma inquisição, homem ou dono nenhum. E aqui onde Teresa grita morará o mar. E o poema do mar ondula pelos ovários sopranos das lavas de Teresa. Tudo vertendo água — água que não cessa, jorro absoluto para nenhuma reprodução. Livro próprio, destino selado.
A Literatura Indígena Contemporânea no Brasil é um movimento estético-político protagonizado pela identidade indígena. A identidade indígena é originária, ancestral, e reside nos corpos de nossos antepassados, de nossos povos, os primeiros que caminharam sobre esta terra, muito antes de os brancos existirem aqui, como disse o cacique Raoni Metuktire.
“Até a Constituição Federal, em 1988, o país não aceitou a possibilidade de a identidade indígena ter direitos legais”
A conjuntura política, colonial e republicana, como mostrou Maria Santos e Guilherme Felippe, foi escravocrata e repressiva com os povos originários. Essa sistemática violência física impossibilitou a expressão indígena na literatura brasileira, mas não impediu que os escritores brasileiros usassem as referências de corpos e tradições originários a partir de seu espelho colonial. A literatura brasileira acompanhou o projeto de Estado-nação que visava dar cabo dos povos indígenas para apropriar-se de suas terras e direitos. Ambos os projetos, indianista e modernista, colaboraram para recrudescer políticas indigenistas que atacavam a humanidade, a identidade e o direito à cidadania indígena.
As políticas de extinção dos povos indígenas foram executadas em primeiro lugar em nome de Deus. Os missionários jesuítas, e outros, vieram com a missão simbólica de salvar a alma indígena, mas não só. Paradoxalmente, a retórica da salvação, diz Walter Mignolo, na obra A ideia de América Latina: a ferida colonial e a opção decolonial, vem acompanhada de apropriações de grandes extensões territoriais, genocídio e escravização. Não foi diferente aqui. Num segundo momento, houve o ataque à identidade indígena por meio da política conhecida como “integração”, ensejada sobretudo a partir de 1910, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais, agência estatal que ficaria conhecida como SPI e seria substituída, em 1967, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). As publicações brasileiras acompanharam o pano de fundo político sobre o qual versava o Estado.
Nesse sentido, é importante perceber que os povos indígenas têm direito à sua identidade originária, que é anterior à identidade do Estado-nação brasileiro. E se os sujeitos indígenas a endossam tão veementemente é tão somente porque ela só pôde ser afirmada há 35 anos. Importante lembrar também que o Brasil ainda é um Estado-nação, isto é, que defende uma identidade apenas, apesar dos 305 povos indígenas existentes e reconhecidos nacionalmente.
Vou explicar brevemente a lógica da identidade nacional. Quem nasce no Estado brasileiro, para existir como pessoa jurídica, como sujeito de direito, deve ser registrado pelos responsáveis. Esse primeiro documento, o registro de nascimento, dá uma certidão ao sujeito. Mais tarde, ele poderá retirar com ela o Registro Civil, o Cadastro da Pessoa Física (CPF), a Carteira de Trabalho, entre outros documentos, todos servindo a seus direitos, mas também deveres legais de acordo com a conjuntura jurídica estabelecida no país. Quem nasce no território brasileiro, em qualquer um dos 26 estados ou na capital federal, automaticamente possui a cidadania brasileira. A rigor, quem possui a cidadania também compartilha da identidade brasileira, pois está num território reconhecido como o Estado-nação Brasil, no qual território, nação e identidade se identificam como brasileiros. Porém, os povos indígenas já estavam nesse território antes mesmo de ele se chamar Brasil e de ter suas atuais configurações.
Até o advento da Constituição Federal, em 1988, o país não aceitou a possibilidade de a identidade indígena ter direitos legais, e por isso decretou a “integração”. Acusando os indígenas de primitividade e selvageria, ele se empenhou em extinguir a identidade nativa. Para existir aqui, era preciso dominar os costumes e as ferramentas do homem branco. Além disso, um documento da FUNAI decretou o fim dos (poucos) direitos indígenas, que passariam a viver apenas sob o guarda-chuva dos direitos brasileiros, como podemos ver no Estatuto do Índio, de 1973. Assim, os indígenas deixavam simbolicamente de existir para o Estado brasileiro. Isso significava que o indígena era visto como alguém que tinha evoluído de primitivo/selvagem para cidadão brasileiro/integrado, e agora podia, assim, trabalhar como qualquer outro cidadão.
É por isso que não vemos um movimento literário de escritores indígenas antes da década de 1990 — pois existir e ocupar outro ofício na sociedade dominante teria significado a derrocada da identidade indígena. Os intelectuais, políticos e ativistas indígenas, enquanto movimento político, já vinham enfrentando tais políticas de extinção desde a década de 1970. Essa resistência ficou conhecida como Movimento Indígena, que teve como êxito a assinatura dos direitos indígenas no artigo 231 e 232 da Constituição Federal de 1988.
A publicação editorial de obras indígenas, isto é, de autores indígenas, a partir da década de 1990, viria confirmar a urgência em protagonizar a identidade indígena, pois nela residia memórias e histórias ancestrais, evidenciando-se os conflitos territoriais ensejados pela sociedade dominante, o presente histórico dos povos ocultado sob falsas premissas, as estéticas presentes nas culturas e nas narrativas originárias e o paradigma indígena assentado na floresta, que ressaltaria a urgência da proteção ambiental em nível global.
Autoria individual, identidade de povo
Segundo a Bibliografia das publicações indígenas do Brasil, há 58 escritores indígenas listados, classificados em suas respectivas identidades de povos. Isso porque ser indígena é se reconhecer e ser reconhecido como pertencente a um povo originário, chamado de pré-colombiano, isto é, com existência anterior aos brancos nestas terras.
Quando os indígenas se veem em confronto direto com a sociedade dominante, resultado da configuração colonial do século 16 em diante, eles buscam ferramentas para lutar pela sua cultura e por seus territórios. Dessa maneira, vimos surgir, no cenário brasileiro editorial, Daniel Munduruku, Kaká Werá e Olívio Jekupé na década de 1990. E, na década subsequente, Eliane Potiguara, Tiago Hakiy, Yaguarê Yamã, Roni Wasiry Guará, Graça Graúna, entre outros. A publicação editorial, além do surgimento em segmentos culturais, desmistificaria todo o sistema da “integração” construído para negar a identidade indígena.
Com suas identidades de povos originários, os sujeitos indígenas inauguraram outro movimento, na cultura, que Daniel Munduruku chamou de “indígenas em movimento”, isto é, a atuação individual em ofícios negados a eles pelo Estado brasileiro, que são de ordem de direitos humanos básicos: com a nova legislação, podiam ser escritores, cantores, professores, artistas visuais, pintores, contadores de histórias, ou seja, atuar na sociedade dominante sem que isso lhes tirasse a identidade indígena legalmente. Essa atuação informou a sociedade da existência indígena a partir de outro olhar que não o da integração, mas do pertencimento e da celebração da identidade de muitos povos que sempre existiram aqui.
A atuação dos sujeitos indígenas no ofício de escritor não pode ser confundida como uma representação política. É preciso entender que toda sociedade indígena possui seus próprios mecanismos de representação política e que um indígena escritor que atua na sociedade dominante, escrevendo e publicando livros, embora tenha uma identidade coletiva, faça parte do povo cujo nome carrega o nome. A identidade em seu existir no mundo e em seus livros não substitui as lideranças políticas do cacique (em alguns casos, o nome é intitulado tuxaua), do vice-cacique e do secretário que atuam na defesa do território e das comunidades. Acredito que o termo mais apropriado seja representatividade, ao pensarmos como a presença de um indígena no mercado literário — no caso do escritor Daniel Munduruku, através da promoção de concursos literários que incentivam a literatura indígena no país — repercute na autoestima dos indígenas, sobretudo os jovens que passaram a crescer com uma referência, algo que a geração da década de 1990, como é o meu caso, não viveu.
As poéticas indígenas são ancestrais e cantam a terra, a pluralidade de seres humanos e não humanos que habitam a floresta, os cosmos e os universos. Mas não só: cantam, contam ou escrevem sobre a soberania violada, denunciando a história do Império colonial que nos subtraiu o direito de determinarmos nosso próprio destino. Assim, é ancestral e histórica concomitantemente.
Por tudo isso, reafirmamos a reivindicação pela nossa soberania e nossa autodeterminação. Que seja reconhecido o nosso direito originário de determinarmos nosso próprio destino, que a nossa escrita e as nossas expressões sejam reconhecidas como humanas, em todas as complexidades que isso envolve, e que o Brasil possa ponderar sobre a sua história sem parcialidade predominante.
Dia desses, eu quase desisti. Acordei, tomei um café, fumei um cigarro, mas daí eu subi e tomei os remédios. E arrumei a cama, mais ou menos. Deus não gosta de quarto bagunçado, embora Ele tenha se encontrado com Jonas dentro do estômago de um grande peixe. Eu também estou aqui descumprindo ordens, consciente. Matando a fome do meu “pequeno monstro”, o meu vício. Quando penso que estava no controle, o furacão Milton chegou em São Paulo. Os coqueiros no quintal envergaram. Eu estava justamente, lendo O Método fácil de parar de fumar de novo, e a minha mãe me ligou para falar do aniversário da Mônica.
“Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas me convêm; todas as coisas me são lícitas, mas eu não serei levado sob o controle de nenhuma”1.
Meu vício é uma criança tratada como um adulto escutando um disco do Julio Iglesias. Eu penso, sou nova criatura, ela reaparece, em carne viva, a menina de Mambucaba é quem escuta a história do aniversário da Mônica, desliga o telefone sem força, a casa sem energia elétrica. Ela quem brincava de fumar, de ser a secretária bilíngue da Odete Roitman, assinando os cheques do Unibanco.
Eu desisto logo de manhã cedo. Não porque é o cigarro mais gostoso, segundo o autor do livro, é por causa da abstinência de sono. Alimento o meu pequeno monstro com café e uma garrafinha de lactobacilos vivos, que eu amo. Mas o livro afirma que ninguém ama um relacionamento tóxico. Nenhum viciado, em qualquer substância, de carne e osso ou veneno, ama o seu pequeno monstro. E, de fato, eu odeio o meu pecado. E, de fato, é como um sapato apertado que eu não tiro. É muito bom esse livro. Mas não é melhor que Paulo. Porque faço o que eu não quero, e o que eu quero eu não faço. Não refreio a minha língua. Sou tentada a cada telefonema.
A doutora Ana não acredita na minha Bíblia. Ela fala que o vício é uma doença, que eu não devia me preocupar com isso agora; porque ela acha, mas não fala, que o cigarro é o menor dos meus males. Ela não entende. Abençoado é o homem que resiste à tentação. Eu me sinto o cocô do cavalo do bandido, fumando um cigarro, rejeitando cada palavra do relato do aniversário. Onde está o meu amor ao próximo?
Todo mundo carrega uma cruz, um desassossego. Eu arrumo meu quarto, ainda com a sapatilha brilhante que a tia Kelly escolheu para eu desfilar sozinha, como se eu tivesse condições de uma coisa dessas. Eu não tinha. Eu joguei tudo fora, coisas valiosas, diplomas, coisas da vaidade, coisas do apego, tudo num saco preto de cem litros. Fui para o clube, puxei ferro, almocei um peixinho com legumes, mas guardei a saudade. Como esse vento de 150 km/h derrubando as árvores.
Eu achei que estava de pé. Quando vi os fios jogados no chão da Pedroso, que a Enel não veio consertar, vi o homem deitado, paralítico fazia trinta e oito anos, entendi que o filho do Deus vivo veio, soube que ele vivia naquele estado durante todo aquele tempo. Ele perguntou: “Você quer ser curado?”.
Hoje faz quinze dias que eu não fumo.
O paralítico explicou que era paralítico, os outros passavam na sua frente, “eu não tenho ninguém que me ajude a entrar no tanque”. Então Jesus lhe disse: “Levanta. Enrola a tua esteira e anda”.2
O corpo humano é mil vezes mais eficiente que o homem. Em duas semanas, 99% da nicotina desaparece do organismo, e os sintomas da síndrome de abstinência são tão leves que a maioria dos fumantes nem sequer os percebe. Eu cri.
Na minha pequena fé, menor que um grão de mostarda, eu sabia que poderia mover uma montanha, se quisesse, que dirá uma saudade. Ele me disse: já é chegada a hora de serem testados, humilhados, vomitados, sede sóbrios e vigilantes; resiste.
Não é um método fácil. Foram quatro dias sem luz, o tempo todo estava faltando algo, tabaco, água gelada, bateria, abajur, banho quente. A doutora Ana ficou toda feliz. Porque a neurociência isso, a neurociência aquilo, a perda súbita de um cuidador direto afeta o autocuidado e a disciplina, por isso eu vou no Mambo de pijama, por isso eu como croissant com manteiga, mas agora eu me portei como um adulto escutando um disco do Julio Iglesias.
Às vezes a doutora Ana parece o Al Pacino elogiando o Keanu Reeves na última cena daquele filme/documentário, O advogado do diabo. Tá repreendido, em nome de Jesus Cristo.
Para os povos indígenas, o território ancestral é a própria essência de nossa identidade. É nele que se realizam os rituais sagrados, que se aprende a respeitar a natureza e que os conhecimentos sobre as curas com benzimentos e ervas medicinais, a arte, as narrativas, a língua ancestral, a vida, o espírito, as cosmovisões e os grafismos são repassados e criam conexões entre o passado e o presente.
“A desconexão e a falta de identidade com a natureza levam a uma série de atitudes violentas, marcadas pelo desrespeito e pela destruição ambiental”
Nós, povos indígenas, compreendemos o território ancestral como sendo a conexão viva e contínua entre um povo e seu território, entendendo-o não apenas como um espaço físico, mas como um ser integral e espiritual, onde se manifestam a história, a cultura, a memória, as narrativas, os saberes que fortalecem a identidade coletiva dos povos indígenas. Ele carrega memórias e energias dos antepassados e sustenta, protege e comunica com os que nele vivem. Essa concepção do território como extensão da identidade reflete uma visão de mundo onde o solo, os rios, as florestas e os animais são considerados parentes e elementos sagrados, que guardam histórias e memórias ancestrais.
Para muitos povos indígenas, viver no território é seguir uma cosmovisão que permite o equilíbrio entre o ser humano e os elementos naturais, um ensino transmitido pelos anciãos e pelos espíritos da floresta, guiando práticas e rituais. Assim, a espiritualidade indígena não se separa da luta pela preservação e demarcação das terras. Defensor do território é também defensor da cultura, da autonomia e da própria existência indígena, que se encontra na terra do seu lugar sagrado, onde passado, presente e futuro se entrelaçam. Essa conexão representa não apenas um vínculo espiritual, mas também um ato de resistência contra as pressões externas que ameaçam essa relação tão vital.
Ao longo dos séculos, nossos ancestrais viveram em seus territórios ancestrais em uma relação de cooperação e respeito com a natureza. Existia um equilíbrio sagrado entre os humanos e o meio ambiente, onde cada um ocupava seu lugar e o sustento era obtido sem que os ecossistemas sofressem grandes impactos. Minha avó costumava dizer que, para encontrar um jabuti, bastava olhar no quintal — ele estava ali, ao nosso alcance. Os rios eram repletos de peixes, e o roçado florescia até nos períodos mais quentes, garantindo fartura para as famílias. As cheias, que hoje trazem destruição, eram então mais suaves, sem deixar marcas devastadoras. Contudo, com o passar do tempo, essa relação harmoniosa foi profundamente afetada. O que antes era uma convivência respeitosa com a natureza transformou-se em um cenário de desequilíbrio ambiental, fruto do distanciamento e da falta de respeito.
Aponto isso para destacar que o território não é apenas essencial para fortalecer as relações que se constroem dentro de seus limites ou ao seu redor, mas também é fundamental para que as pessoas que vivem em comunidade, especialmente os povos indígenas em aldeias, desenvolvam um vínculo de identidade com a própria terra. O território é compreendido como fonte de vida, uma verdadeira mãe que nutre e sustenta. Esse entendimento não é meramente simbólico, mas um princípio que molda a visão de mundo e a existência coletiva, onde a terra se revela como parte indissociável da própria identidade.
A desconexão e a falta de identidade com a natureza levam a uma série de atitudes violentas, marcadas pelo desrespeito e pela destruição ambiental. A crise climática que enfrentamos atualmente não atinge apenas os povos indígenas — suas consequências afetam o mundo inteiro de forma catastrófica. As florestas são devastadas, os rios secam, as estações tornam-se imprevisíveis e as colheitas já não trazem a mesma abundância de outrora. Essa transformação, resultado das ações humanas que ultrapassam os limites do meio ambiente, desestabiliza não apenas o planeta, mas também os modos de vida daqueles que sempre acreditaram na responsabilidade de cuidar e preservar a terra. Esses povos, que historicamente mantêm uma relação de harmonia e respeito com o território, agora se veem ameaçados por mudanças que colocam em risco o próprio bem viver tão estudado pelas universidades e tão falado no sentido de buscar entender e viver para poder contribuir com o adiamento do fim do mundo.
Todavia, mesmo diante dos impactos devastadores das mudanças climáticas — como secas, enchentes, perda de biodiversidade e invasões territoriais — muitos povos indígenas demonstraram uma resiliência profunda. Essa força está enraizada nos saberes ancestrais, nos rituais espirituais e nas práticas tradicionais de manejo da terra, externas para a preservação do equilíbrio ecológico. Ao resistirem às pressões externas, como a exploração desenfreada de recursos e a apropriação de suas terras, os povos indígenas seguem firmes na defesa de seus territórios sagrados, reafirmando uma relação espiritual com a natureza.
Para os povos indígenas, o território ancestral é a raiz que nutre a identidade desde o primeiro instante em que uma criança nasce. O hábito de subir nas árvores, de observar pelos rios, de nadar em suas águas e de imitar o canto dos pássaros, em perfeita sintonia com a vida ao redor, não são apenas brincadeiras – são lições profundas que a natureza oferece. Cada gesto, cada som, cada pulsar da floresta ensina à criança que ela faz parte de algo maior, uma conexão que fortalece os ensinamentos transmitidos pela aldeia. Assim, a criança cresce entendendo que tudo está interligado na grande casa comum; ela aprende que não é separada da natureza, mas sim que ela própria é a natureza, entrelaçada em um tecido de mundos e saberes.
Para os povos indígenas da Amazônia, o rio é visto como um ancião, um ser sábio, com o corpo marcado pelo tempo. Essa personificação é mais do que uma metáfora cultural: há relatos de indígenas que dizem tê-lo visto sentado sobre uma árvore caída ou transportado pelas praias com o corpo coberto de feridas. Tais imagens evocam a poluição que o aflige e nos levam a refletir sobre as feridas que, diariamente, infligimos a esse ser sagrado. O rio, ao transmutar-se em figura humana, nos transmite uma mensagem clara: seu corpo está doente e precisa urgentemente de cura. Mas quem tem o conhecimento ou a medicina capaz de restaurar a saúde desse ser que é vital para toda a vida na Amazônia? Essa é uma pergunta que devemos nos fazer.
É importante dizer também que a identidade indígena, apresentada na literatura produzida por autores indígenas, se manifesta como uma extensão viva do território. Nessa literatura, o território se revela não apenas como espaço físico, mas como um tecido pulsante de memórias, histórias e ancestralidade. A palavra escrita se torna a materialização da oralidade — é o prolongamento da narrativa tradicional, das vozes dos líderes e do entendimento profundo que se adquire observando a natureza. A literatura indígena traduz, em sua essência, a sabedoria ancestral e as vivências que emergem do contato íntimo com a terra e com seus elementos.
Ao narrar o mundo indígena, esses textos tecem uma ponte entre os ensinamentos antigos e o presente, formando uma trama que une o corpo, o espírito e o território. Cada verso, cada conto, é uma afirmação da identidade e da visão do mundo indígena, compondo, junto ao território, uma identidade coletiva. Assim, a literatura é ao mesmo tempo expressão e extensão do território, um lugar de resistência e celebração, no qual as histórias dos povos indígenas encontram uma nova forma de existir e de serem partilhadas.
A literatura indígena é mais do que um exercício criativo; é um ato de resistência e uma afirmação de identidade. Ao transportar a oralidade para a palavra escrita, escritores indígenas transformam suas histórias, seus saberes e sua espiritualidade em um território simbólico que continua a viver e a se expandir. Esse espaço literário se torna uma extensão do próprio território físico e ancestral, fortalecendo a relação íntima entre os povos indígenas e a terra, seus elementos e seus ensinamentos. Através da literatura, essa identidade ganha novas formas de expressão e visibilidade, preservando saberes que desafiam o esquecimento e convidando o leitor a enxergar o mundo pela perspectiva dos povos originários. Assim, a literatura indígena reafirma o papel fundamental do território não apenas como espaço geográfico, mas como um tecido cultural e espiritual, em que palavra e terra se entrelaçam para manter vivas as raízes de um povo e seus ensinamentos.
Por fim, é essencial compreender que a luta contra o marco temporal vai muito além de uma questão legal — é uma luta pela própria vida nos territórios indígenas. Nessas terras, onde a ancestralidade se mistura ao cotidiano, fortalece-se uma rede de relações que abarca afetos, resistência e espiritualidade. Ali, cada elo entre as pessoas e a terra nutre o sentido profundo de pertencer, de honrar as raízes e de proteger um legado que sustenta não apenas as comunidades indígenas, mas a biodiversidade e o equilíbrio natural do planeta.
Quando os povos indígenas falam em “parente”, evocam um conceito que transcende o laço de sangue. Essa palavra carrega em si a força da união, da parceria, da solidariedade e da identidade coletiva. Ser “parente” significa considerar noutra uma extensão de si mesmo, uma ligação que se fortalece diante das ameaças e dos desafios. A luta pela terra é também uma luta pela diversidade dessas relações que, assim como o território, são constitutivas de um tecido de saberes e de apoio mútuo.
Defender o território contra o marco temporal é, portanto, proteger o direito de existir em harmonia com a natureza e com os laços comunitários. É garantir que as futuras gerações possam ser refletidas num espaço onde possam ser quem são, onde a terra e os trajes sejam preservados. É, acima de tudo, afirmar que a identidade indígena não pode ser definida por limites temporais impostos, mas sim pelo vínculo atemporal com a terra.
Esses nomes foram dados pelos missionários jesuítas aos indígenas no Brasil a partir da visão étnica do povo Tupinambá, e eles se tornaram a única distinção no país na época da colonização. Apalavra “tapuia” não significa “índio bravo”, como se costuma ler em livros didáticos, mas tem significado original na língua Tupi (abanheenga) e quer dizer “inimigo” — significado modificado posteriormente, com a implantação da língua Nheengatu no norte do Brasil (tapuya) e que veio designar o próprio indígena, em oposição ao homem branco (karaywa).
O que devemos alertar é que, em pleno século XXI, a grande maioria dos brasileiros ignora a diversidade de povos indígenas que vivem no país, mantendo o preconceito dos primeiros colonizadores.
Estima-se que, na época da invasão, houvesse mais de mil povos compostos de até dez milhões de pessoas. Hoje, segundo dados atualizados do IBGE, da FUNAI e do CIMI, há ao menos 267 povos. Cada povo com sua língua, sua cultura, seu território… Consequentemente, são seis famílias e dezenas de subfamílias linguísticas que agrupam esses povos. A maior é a família Tupi, que é erroneamente chamada de tronco e que agrupa dezenas de povos e subfamílias linguísticas. As demais são: Jê, Arawak, Karib, Pano e Tukano, também agrupados em subfamílias.
Os povos Arawaks vivem nas Antilhas e por toda a Amazônia internacional, além do Pantanal. Os Jês habitam o Brasil central, o Nordeste, o Leste e o Sul. Os Karibs se estendem desde as costas caribenhas das Guianas até a região Centro-Oeste brasileira, passando pela Amazônia. Os Tupis habitam toda a extensão do país, desde o Sul até a Amazônia, havendo também representantes deles nos países platinos. Os Tukanos, além da Colômbia, do Peru e do Equador, habitam a região denominada Cabeça de Cachorro, no extremo norte do estado do Amazonas. E os povos de etnia Pano vivem na Amazônia meridional, entre os estados do Amazonas e do Acre e das fronteiras com o Peru e a Bolívia.
Povo indígena não é tribo
Povo indígena não é “tribo”. Esta palavra tem conotação preconceituosa, e a ideia é desqualificar o povo. Tribo, na realidade, é a divisão de um povo, o mesmo que clã.
O que há no Brasil são nações. Dependendo das variações de pesquisas, são em torno de 267 nações indígenas conhecidas no Brasil — há mais, considerando-se aquelas sem contato com a sociedade dominante (civilização ocidental). Cada nação fala sua língua, pratica seus costumes e sua religiosidade.
Um exemplo de nação e sua divisão é a Mawé, da terra indígena Andirá-Maráu, entre os estados do Pará e do Amazonas, cuja terra pátria, que vai além da área indígena demarcada pela FUNAI, se chama Mawézia. Os Mawés se dividem em cinco clãs ou tribos principais, que são: Sateré (lagarta de fogo), Napu‟wanyá (guaraná), Waturiá (uaçaí), Koreriwá (cutia) e Hwariá (gavião), além de dois subgrupos, que vivem como cabocos, os Kuriwató e os Aponariá, que são conhecidos pela FUNAI como povo isolado (sem contato), os “índios abelhas” (awi’á).
Outro exemplo é o povo Munduruku, que se divide e se organiza em duas metades clânicas: a metade branca e a metade vermelha.
Também os Maraguás se dividem, estes em seis principais clãs: Piraguaguá, Aripunãguá, Çukuryeguá, Yaguareteguá, Tawatoguá e Pirakeguá, e um subgrupo, Ulahoguá. Esses nomes clânicos viraram, hoje em dia, sobrenomes.
A diversidade dos povos que habitam o Brasil é muito grande. Tantas línguas, tantas culturas… A ignorância da imprensa e dos livros didáticos nos faz ignorantes com relação aos indígenas. Infelizmente a mídia procura passar um estereótipo indígena ridicularizado, que nada tem a ver com nossas nações. Lembrando que o conceito de nação é: grupo étnico que tem uma mesma origem, fala língua distinta, tem cultura diferenciada… Pode haver nações com Estados (governo próprio) e nações sem Estado. As nações indígenas, no Brasil, são nações sem estado.
A nacionalidade brasileira foi imposta à força a todos que aqui viviam antes da invasão. Genocídio e etnocídio são praticados até hoje, e nenhuma lei contempla a existência dos povos — nações — que aqui já viviam e que ainda resistem. A constatação de indígenas como não brasileiros vai além da necessidade de distinção, pois de fato existem outras nações.
Se uma palavra soa como pejorativa, evitemos. Ainda que não vejamos nela problema algum, por considerá-la até “bonitinha”. A pessoa ou o grupo social étnico ofendido agradece.
Dessa feita, menção a povos e nações indígenas como tribos é sim preconceito e traz forte cunho racista.
Como saber? Segundo a geografia e a sociologia, tribo é a divisão de um povo. E usá-la de maneira não correta acarreta desvalorização dele.
“Ah, mas todo mundo fala assim, quando se trata de indígenas”, alguém dirá. Então vejamos algumas palavras preconceituosas faladas por séculos pela minoria racista e que graças a Deus está desaparecendo: neguinho, índio, mulato, carvão, mameluco, cafuzo, judiação, pretalhada, bola oito, Zé queimado, indiarada, bugre…Alguns ainda insistem em falar, claro, mas, com a conscientização, muitos já evitam.
Nas escolas, nossos professores têm se esforçado em ajudar a não difamar alguém, explicando o que há por trás de uma alcunha e de algumas palavras que parecem “carinhosas”.
Para quem não pertence a determinado grupo, tudo é fácil — como dizer que não vê problema quando quem é de dentro sofre diariamente com perjúrios e difamação.
Se sentir no lugar do outro é uma qualidade. Respeitar sua preferência sobre como prefere ser chamado é humanismo. Vamos dar mais atenção ao pedido diário de conscientização que muitos fazem.
Tribo não é povo. Tribo e a divisão de um povo. Isso pouco se entende numa sociedade complexa que perdeu a tradição da divisão, como a brasileira. Talvez por isso precisamos explicar aos demais. Não tem problema. Explicar ajuda todo mundo a entender melhor as coisas e evitar erros criados por pessoas mal intencionadas do passado.
Indígenas não são iguais
Indígena não tem a mesma cara nem os mesmos traços físicos, como se costuma pensar. São tantas as nações… A etnicidade se compõe de famílias, povos e subgrupos. Cada etnia com sua característica, com seus olhos, seus rostos…. Assim, pode-se comprovar a grande diversidade dos povos que nada têm a ver com a única imagem que a mídia costuma mostrar, a de indígenas do Xingu.
Além do mais, existe a miscigenação, que é grande no Brasil. Para ser indígena, não precisa ser “puro”, como a maioria dos brasileiros pensa. Ser mestiço não significa que não seja indígena ou menos “índio” que os demais; pelo contrário, às vezes se é até mais “índio” que os que têm a característica que a mídia insiste em afirmar.
A alma é “índia”, então indígenas todos são, basta ter raízes ancestrais e amor à origem. A meu ver, quem tem vergonha de ser “índio” é quem não é indígena.
A região Nordeste é onde os indígenas mais se miscigenaram aos negros, e, no Sul, aos brancos. Pataxó, Pankararu, Xukuru, Kaxixó, Kalankó, Xokós, Kariri… Todos povos miscigenados, porém sem deixar sua origem e seu orgulho.
No Amazonas, por exemplo, vários povos indígenas se miscigenaram, inclusive com negros, como os Muras e Mundurukus. Os Maraguás também — parte do povo é Mayri, ou seja, tem características francesas e indígenas. As famílias Saunier e Butel, que chegaram à região da Amazônia em 1800, casaram-se com indígenas que aqui já habitavam e tornaram a nação heterogênea. Hoje, parte das famílias do Baixo Amazonas, entre o Paraná do Ramos e o Paraná do Limão, tem essas características.
Viva os indígenas do Nordeste, do Centro-Oeste, do Sudeste, do Norte, do Sul… A cor da pele não diz muita coisa, mas a alma sim, essa diz tudo. Deixemos de lado o preconceito!
Portanto, nem pensar em se manter a ideia de que indígenas são todos iguais. Ha “índios” mestiços de negros, “índios” mestiços de brancos, “índios” mestiços de “índios”… Essa diversidade só aumenta nossa beleza. Viva os indígenas de todas as cores!
a fecundidade da vida estala na estante frente a mim minha mãe adolescente em 12 retratos num só quadro em cada um um aspecto da sua bela florescência coisa recente do pós-guerra década de 1940 ancestral para mim não para o livro sobre a Idade Média que o quadro recobre porém para mim é o arcano que não poderia conhecer a não ser pelos causos de família contados por gerações de rapsodos familiares entre eles ela que numa fotografia com meu pai da década de 1970 que fui eu mesmo quem tirei como se cresce rápido estão na Piazza Michelangelo com Florença ao fundo enlutada com a morte de Allende de nada ser adulto já sou e meu tempo que viverei já se mistura ao Renascimento que em Brunelleschi vim tanto a amar e ao país próximo em que começo a perceber teve o trágico destino do meu mas uma outra fotografia verde e cinza tão verde quanto o cinza é cinza tirada na Irlanda por minha filha já no século XXI me leva à paz sempre possível ao verde que te quero verde qual seja o cinza a acinzentar e há vento nuns galhos da paisagem pouco mas o vento sempre é vento na rapsódia das fotografias na minha estante o mundo meu pequeno mundo parece aparece no grande mundo com seus encantos nos pequenos presentes tudo são presentes sobre os livros da minha estante sentado estou sobre o chão de pedra com a lareira às costas da Fallingwater num cartão de viagem mandado por meu pai os Jogadores de Cartas de Cézanne com cachimbos e mãos de artesãos lembram meu avô paterno meus netos meus filhos a família inteira desfila seus tempos nas prateleiras na cerca da fotografia de todo ano de todo julho na fazenda e numa obra de outras fotografias de minha filha caço codornas belo é o trabalho do cachorro o resto é o animismo de homem e caça que provei um dia meu filho na Austrália meu filho por toda parte meu netos pulam alto ao mesmo tempo patriarca sou numa foto de agora aos 70 anos década de 2020 um vaso comprado no Alhambra ao lado um simples vaso escandinavo com a forma da água que transborda do vaso de núpcias da antiga Grécia dado a meus pais pelos quatro filhos nas bodas nas núpcias deles a de 50 anos ouro de cor leitosa do líquido do avoengo banho de núpcias do amamentar da merenda da escola quando criança e criança sempre serei a imensidão da história é inalcançável tantas voltas tantos desvios tantos pecados alguma virtude para voltar ao início os livros estão bem arrumados da lógica até a poesia passando por tudo desse tudo que de tudo sei um pouco de nenhum pouco sei um tudo e menino confesso não fui o bravo Aquiles talvez o solerte Ulisses pois à casa à casa de todas as minhas casas enfim retorno
A Amarello celebra 15 anos de arte e cultura com o lançamento da edição 51 — O Homem. Tematicamente inspirada no segundo capítulo de Os Sertões, de Euclides da Cunha, a revista revisita criticamente a obra para pensar a identidade nacional.
Quinze anos é muito tempo. Pensar no mundo de quinze anos atrás e no de agora chega a dar vertigem, de tantas mudanças. Os smartphones se tornaram mandatórios, a política voltou a partir afetos, e as redes sociais dominaram a comunicação mudando a forma como interagimos e compartilhamos informações. O papel perdeu o lugar que tinha, as mudanças climáticas se agravaram, as lutas sociais ganharam uma força nunca antes vista… Fato é que, nesse período, a história moderna assistiu a várias rupturas com o passado e, depois da pandemia, adentramos, de fato, em uma nova era.
Como é dever de uma revista documentar o seu tempo, e eu me interesso pelo tempo em que vivo, proponho para esta edição comemorativa uma reimaginação dos cinquenta temas que estamparam nossas edições, traçando um panorama da vida de lá para cá.
Também para esses quinze anos, montamos o espetáculo Do pré-homem à revolta, apresentado no dia 3 de dezembro de 2024, no Teatro Oficina, baseado n’O Homem, a segunda parte do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. Resgatar esse livro hoje, um retrato fiel de sua época e de todas as suas conjunturas, nos coloca de frente a um espelho que escancara nossas diferenças abissais, ainda tão vivas e não enxergadas. Euclides é o seu pré-conceito, o alto da favela é seu legado, o sertanejo, sua pátria e o apagamento de Canudos, tão em evidência hoje. Euclides também nos inspirou a criar a edição que você tem em mãos. “O Homem”, o ser humano, que de um jeito ou de outro, abarca todos os temas que trabalhamos nesses anos — a cultura em brasileiro, o feminino, o masculino, os sonhos, as emoções e questionamentos que nos fazem existir. São os tempos que correm, correram e ainda hão de correr.
Fazer esta revista me transformou. Cresci, rodei o país, conheci muita muita gente, conheci muita muita gente, deixei para trás o Brasil idealizado e aprendi a respeitá-lo como ele de fato é, fruto do sincretismo, da mistura, da bagunça que tanto gosto, de todos os povos que chegaram e dos que aqui sempre estiveram. Olhemos para eles. Meus olhos se abriram para o que antes eu não via. Me dá orgulho ter criado um veículo que não tem medo de abraçar a fluidez e que oferece conteúdo sério e pontos de vista diversos para que leitores o interpretem à sua maneira, sem imposições. A série Brasa, de Gleeson Paulino, que generosamente ilustra as páginas desta edição, representa bem esse crepitar interno, sutil no olhar, mas forte o suficiente para mover montanhas.
É nisso que acredito. Páginas, ideias e uma esperança irrefreável na transformação constante de cada um de nós.
Apesar de tudo, me animo com o futuro
Obrigado por estar aqui, Tomás Biagi Carvalho Canudos, 14 de novembro de 2024
Há uma poesia discreta na dança do fogo, um equilíbrio entre luz e sombra que nos conecta ao essencial. É algo capaz de capturar nossa atenção, convocando-nos ao momento presente. Inspirada por essa força primitiva e contemplativa, a WENTZ apresenta Objects for Silence, uma coleção de acessórios que fornece ao habitar cotidiano rituais de calma e introspecção. A chama, com seu movimento sereno, se torna o epicentro de uma proposta que une forma, funcionalidade e emoção, refletindo o espírito de um luxo silencioso.
Desde sua fundação em 2016, a WENTZ, liderada pelo designer Guilherme Wentz, tem se consolidado como uma marca de design autoral que celebra justamente a serenidade e a simplicidade. Com a nova coleção, essa visão alcança novos patamares, sendo um convite para desacelerar e encontrar, a partir da convivência com objetos cuidadosamente criados, um refúgio para os sentidos. No mundo atual, que parece avesso à frenagem, cada peça acaba sendo uma ode ao silêncio e a tudo que ele quer dizer. Todas constituem um espaço para respirar em meio ao ritmo acelerado tanto da vida urbana quanto da digital.
E o “como” da história toda é o mais interessante. Afinal, como invocar silêncio em peças de mobiliário? Para dialogar diretamente com a luz e a chama, a coleção apresenta criações que exploram materiais como alumínio e inox em formas minimalistas e geométricas. Porta-incensos, lamparinas, castiçais e luminárias portáteis — cada objeto foi desenhado com a intenção de ressaltar o protagonismo da luz e do fogo, sem competir com sua essência. Essa simplicidade calculada não é apenas estética, ela tem aspectos funcionais. Tal qual a dança serena ritmada pelo crepitar pacífico de uma fogueira, esses objetos evocam toda a fluidez e graciosidade contida no ato de pausar, ainda que a combustão siga acontecendo. É a revolução que acontece num único lugar, aqui e agora.
Guilherme Wentz, não à toa, destaca que o silêncio é uma fonte constante de inspiração, especialmente em meio à agitação da vida urbana, que muitas vezes demanda o resgate de uma vivência mais natural e contemplativa. Para ele, a chama do fogo, com sua calma e difusão, é um elemento que conduz a esse estado de contemplação. É um recurso praticamente terapêutico, uma abordagem de mindfulness aplicada ao design de móveis. Essa visão reflete a profundidade de seu processo criativo, em que os objetos transcendem sua funcionalidade para se tornarem portais de experiências sensoriais.
Além dos novos acessórios, a coleção ressoa com outros itens emblemáticos do catálogo da marca, como a Manta 001, a Vela Volta e o Perfume de Ambiente 001. Juntos, eles constroem um universo em que o design atua como mediador entre corpo e espaço, entre a mente e o agora, transformando ambientes em extensões do cuidado pessoal. É assim que a ideia de silent living ganha materialidade, com um estilo de vida sereno, no qual o verdadeiro valor está nos momentos que cultivamos com intencionalidade.
A expansão internacional da WENTZ, com presença sólida em mercados como Estados Unidos, Itália e Dubai, reforça a relevância do design brasileiro em um cenário global. Contudo, é na intimidade de cada criação que reside a maior parte de sua força. Sem jamais esquecer seu propósito primordial de ser uma coleção funcional que tem muito a adicionar em termos práticos e estéticos à vida de qualquer pessoa, Objects for Silence é um manifesto sobre como o design pode redefinir a relação entre o ser humano e o espaço que habita.
Saiba mais em nossa conversa com Guilherme Wentz:
Como o silêncio se transformou no ponto de partida para a criação de Objects for Silence?
O silêncio é um conceito presente desde o início da marca. Sempre pensamos no morar comoesse refúgio silencioso, um escape da vida moderna. Essa coleção surgiu de uma vontade deamplificar essa mensagem através de peças que estimulam determinados rituais que deixam o silêncio ainda mais evidente.
Qual foi a primeira imagem ou sensação que veio à mente ao pensar em uma coleção inspirada na chama do fogo?
Um final de tarde em uma cabana imersa na natureza, quando começamos a desacelerar eacender o fogo para se preparar para a noite.
A escolha do alumínio e inox é central na nova coleção. Como esses materiais dialogam com o conceito de silêncio e contemplação?
Os metais polidos aqui cumprem a função de refletir a chama do fogo. Esses materiais sempreaparecem como uma solução em nossos projetos porque são materiais precisos e, acima de tudo,silenciosos por não possuírem cor e terem a capacidade de se mimetizar com o ambienteenquanto refletem tudo à sua volta.
Como o contraste entre os objetos e as chamas guiou o desenho das peças?
O processo de design foi reduzir os objetos ao mínimo da forma e deixar a chama do fogo como protagonista. Eu acredito também que as formas geométricas simples são o melhor caminho parauma comunicação universal, já que elas podem ser entendidas por todos, ao mesmo tempo quepodem gerar diferentes significados para cada um. Depois de ter os primeiros protótipos prontos,tive a sensação de que se tornaram objetos quase religiosos, embora tenham sido criados a partir de uma intenção completamente mundana.
Que papel a luz e a sombra desempenham no uso das peças da coleção?
A luz é o protagonista da coleção. O que criamos foram apenas suportes para ela. Os objetos só“acontecem” quando acessos. O fogo tem esse poder sobre nós, algo muito primitivo, que nos fazrefletir, contemplar. E espaços iluminados pontualmente por velas e lamparinas, também ajudama criar uma cena íntima e natural, diferente do excesso de luz branca que encontramos pela cidade enas telas. Também faz parte da coleção uma pequena luminária portátil, que foi nossa tentativa debuscar as mesmas sensações, mas com uso da tecnologia.
Em termos de design, qual foi o maior desafio técnico ao reduzir as formas ao essencial?
Sempre lembro da frase do Brancusi que diz que “a simplicidade é a complexidade resolvida”. A redução é um dos processos mais difíceis tecnicamente porque exigem repensar os materiais, osprocessos e o desenho. Eu acredito que essa busca rigorosa por soluções que simplificam a formafinal da peça é o que faz um bom design. Encontrar os materiais e processos para manter a pureza dasformas é a maior parte do nosso trabalho.
A WENTZ, como um todo, busca inspiração na natureza para criar. Como o conceito de habitar natural e urbano se entrelaça em suas criações?
A ideia é se aproximar de um habitat natural, mas se aproveitar das tecnologias disponíveis parafazer isso de uma forma contemporânea. Estamos olhando para o futuro do habitar e não para anostalgia em um passado rústico. E é nesse design com inspiração natural que podemos encontrar umrefúgio para a vida urbana moderna.
Além da nova coleção, quais outros rituais de autocuidado você considera importantes e como o design pode elevá-los?
A casa por si só é uma plataforma de autocuidado. Acho que todos os elementos da casa podemter um significado: a forma de sentar, iluminar, as obras de arte que estimulam um determinado pensamento, a presença de natureza, e todas as formas de interagir com o espaço. É no silêncio, na solitude e no desacelerar que encontramos as respostas para nossos anseios e, portanto, a melhor forma de autocuidado nos tempos atuais.
O que você espera que as pessoas sintam ao interagir com as peças de Objects for Silence?
Espero que inspire momentos mais lentos e contemplativos e que, mesmo de uma forma muitoindireta, consigam se conectar consigo mesmos.
Como você enxerga a evolução do design brasileiro no cenário internacional e o papel da WENTZ nesse movimento?
Esse é um bom momento para mostrarmos o design brasileiro para além dos mestresmodernistas. A presença da WENTZ em algumas das maiores lojas/galerias de design do mundocomprova que o Brasil pode ter um desenho relevante para uma audiência global, unidos cominovação tecnológica e qualidade de execução necessárias para estar ao lado das marcascentenárias europeias que sempre dominaram esse mercado. O Brasil pode exportar muito alémde commodities.
Tomar café na casa de alguém é um convite para conhecer profundamente essa pessoa. Nossa casa é a casca que nos proteje do mundo. Ela é parte importante de nossa cultura particular, e reflete a maneira como enxergamos e gostaríamos de nos inserir no mundo.
Aqui, dividimos casas de pessoas que gostam de casa. Que têm suas casas vivas, cheias de objetos que contam a história de uma vida, sem um lugar perene em seus espaços.
Cristina Borges é arquiteta e designer de interiores. Morou na Gávea, no Rio de Janeiro, por muito tempo, até se apaixonar por Copacabana, em um apartamento de família, a ponto de nunca mais querer sair de lá.
Cris, me conta quando e como começou a relação com este apartamento.
Este prédio foi construído pelo meu bisavô em 1928, ou seja, daqui a quatro anos ele completa cem anos. O prédio sempre foi inteiramente da minha família, até que, de uns trinta anos para cá, meu tio vendeu as duas unidades dele, meu tio-avô morreu, deixou parte para os seus sobrinhos, deu uma diluída. Hoje em dia, proprietário, da família, temos três. Como a vida inteira eu morei na Gávea, Copacabana era uma coisa distante da minha vida. Eu tinha horror a Copacabana, era uma coisa que me exasperava só de pensar. Mas sempre amei esta cobertura. Quando minha tia-avó morreu, minha mãe comprou do herdeiro dela e ficou alugando a vida toda.
Apesar de eu achar o apartamento em si muito jeitoso, não via ele como moradia. Morava numa casa feita por mim, um projeto meu em que juntei duas casas de vila em uma, fiz uma super casa. E aí, a vida mudou, eu me separei, meu marido faliu, eu fiquei ali segurando, segurando, até que chegou um ponto que não se justificava mais morar numa casa na Gávea, com dois filhos na PUC consumindo tudo que eu botava dentro de casa. Foi quando conversei com a minha mãe e peguei o apartamento, fiz as reformas necessárias e aluguei a minha casa da Gávea. Com o aluguel da casa da Gávea, fiz toda a obra primordial daqui, que era toda a parte de elétrica, de encanamento… E assim vim para cá com os dois meninos. Um depois foi embora, ficou morando com o pai e, na pandemia, voltou.
O que você acha que este apartamento te oferece, em termos de conforto e bem-estar?
Antes de mais nada, podemos falar do ponto. Eu não tenho mais carro. Eu desço e sou praticamente atropelada pelos táxis. Fora que tem Uber também, então isso foi um salto na qualidade de vida para mim, parar de dirigir nesta cidade. Em Copacabana, você dá uma volta no quarteirão e é como se desse uma volta ao mundo, tem mexicano, português, italiano, árabe, brasileiro, bistrô, a quilo e, às quintas-feiras, ainda tem a feira. Para mim, que tenho um pouquinho de TOC de arrumação de geladeira, manter a minha semivazia é uma bênção.
Isso é o ponto número um. Número dois, a vista. Número três, a arquitetura do apartamento: são três metros e trinta de pé direito. Mesmo que eu não tivesse o mezanino, já seria uma glória. Essa arquitetura me favorece muito, e eu agradeço demais por morar num lugar tão lindo. Além disso, estou há oito minutos do aeroporto. Eu tive uma loja no MAM, então eu sei que são oito minutos mesmo. E ainda tem o clube Marimbás, de que eu sou sócia, e o namorado, que mora no posto seis. Então, entre o posto dois e o posto seis, tenho tudo que posso querer ter. Sair daqui, nem pensar.
E você frequenta a praia?
Vou à praia todo santo dia.
Você mergulha?
Mergulho, dependendo do dia. Hoje está frio. Mergulho, imagine, pego sol. Sou do tipo que ainda se bronzeia.
Como você acha que a sua profissão influencia no seu gosto pessoal? E como foi a evolução desse gosto?
Completamente. Eu nasci e fui criada dentro de obra. Eu morei numa das casas mais bonitas da Gávea, do tempo dela. Meu avô era uma pessoa muito sofisticada, foi um dos dez [homens] mais elegantes, teve o primeiro carro, o primeiro pastor-alemão, era um dândi. Basta dizer que meu pai nasceu no Parque da Cidade, que era a casa dele, e depois ele vendeu pros Guinle, e os Guinle doaram para a cidade para fazerem o parque. Então, eu acho que nasci e fui criada nesse berço bacana, chique, uma coisa quase minimalista. A casa do meu avô era imensa, mas tinha dois sofás numa sala e no outro canto um recamier.
Devia ser muito moderno para a época. A gente não pensa em um lugar minimalista atrelado àquela época. A gente está falando de que década?
Minha avó nasceu em 1900, então, década de 20.
Devia ser muito arrojada a casa para a época. Imagina! Na mesma época este prédio aqui estava sendo construído, todo neoclássico.
A casa até que não era muito estilosa por fora, não, mas por dentro… Minha avó e meu avô eram loucos por jardim, foi um francês que fez todo o paisagismo. Essa coisa do jardim eu acho que herdei deles. A coisa do belo eu acho que herdei dos dois lados, porque, pelo lado da minha mãe, a minha avó também era louca por jardim. Não tinha, naturalmente, o poder aquisitivo do outro lado, porém, quando [ela] fez a casa dela, chamou o Carlos Leão para ser o arquiteto, então a casa era toda jeitosinha — pequena, dentro de um lote no Humaitá, mas era uma casa muito bem arrumada. E a arte entra porque meus tios têm uma galeria de arte. A dona deste apartamento aqui, que era irmã da minha avó, era sócia dos meus tios numa galeria no Copacabana Palace, a Galeria de Arte Ipanema. Depois que ela saiu da sociedade, era o tio mais velho e, depois, entrou o tio mais moço, e ficaram eles dois. Eles fizeram a Galeria de Arte Ipanema, em Ipanema, que ainda existe. Hoje, eu particularmente acho que a obra que foi feita não serve para galeria, mas está lá a galeria, com um pé direito que você quase raspa a cabeça. Quando inaugurou, tinha um Lescher lá no fundo, que você via cortado pelo meio. Tudo bem, ali tinha um pé-direito para ele caber, mas o resto da galeria…
Então, isso me moldou como ser humano. Eu amo o belo, quer dizer, o belo que eu entendo como belo. Quem ama o feio, bonito lhe parece. Então eu procuro viajar, estou sempre comprando coisas, sempre trazendo coisas.
Muito provavelmente esse ambiente em que você nasceu e viveu, desde sempre, te levou à sua profissão.
Provavelmente. Mas eu acredito que existe uma aptidão também. Porque eu não fiz faculdade e não me formei arquiteta, mas, desde garota, fazia maquetes com as caixas de sapato. Sempre gostei disso. Meu quarto, quando criança, nunca foi o mesmo por mais de três meses. Este apartamento, até eu entender ele, foi 280 coisas diferentes.
Você ia acrescentando peças ou mexia 280 vezes com as mesmas coisas?
Mudou assim: quando eu me mudei, eu não tinha sofá, eu tinha uns bancos que eu mandei fazer no Fernando Mendes para a casa da Gávea, que eram quatro metros de banco, dois de dois metros, e neles eu tinha televisão, CD — a gente tinha CD na época, então eram pilhas de CD.
Precisava desse espaço.
Eram bancos de setenta centímetros por dois metros que, juntos, faziam os quatro metros. E aí eu acabei mandando eles para a Bahia, porque eu usava ali, mas era muito grande para o todo, e esse negócio eu joguei ali, porque não cabia. Eu não posso ter nada, conforme te digo, eu não posso comprar objeto de mesa, por exemplo. Quando eu tirei essas portas aqui, tinha uma prateleira em cima, onde eu tinha várias coisas que tive que levar para a Bahia, porque eu não tinha onde botar. Até a minha sereia, que eu não levei porque estou com medo de ela enferrujar toda. A sereia ficava aqui, que eram só coisas do mar, tinha um Artur Baglio, que era uma mulher embaixo d’água, esse Vasarely ficava ali também, tinha aqueles negócios de vela que eu trouxe do Egito e que, sempre que recebia alguém, acendia. Agora não tenho onde botar, foi para debaixo da escada.
Como você acha que o seu gosto se desenvolveu ao longo de todos esses anos?
Eu acho que, quanto mais você viaja, quanto mais você vê coisas que têm um foco, muita arquitetura… Sou louca por arquitetura tanto quanto sou por arte. E por jardins. Por exemplo, eu fui a Londres, passei quatro dias em Londres, um dia inteiro foi no Kew Gardens, que é lindo, uma coisa imperdível. Já fui aos jardins botânicos em Nova Iorque, em Berlim, em todo lugar que eu vou. Em Berlim, Sanssouci, o que é aquilo? Você já foi? É a coisa mais linda. Era para o filho gay do rei sei lá das quantas. Ele construiu para isolar o filho, desaparecer com ele da corte, entendeu? E é deslumbrante, na frente tem uns degraus, uns patamares. Aí eu comecei a reparar que tinha uns armários incrustados. Eram hortas no inverno, todas envidraçadas, mas incrustadas nos patamares, para dentro. Uma coisa, uma beleza. Pagode chinês. Olha…
Lá no Kew Gardens, você foi naquele pavilhão da ilustradora? Como que ela chama?
Margaret Mee. Gente, qualquer lugar naquele Kew Gardens.
Então, acho que viajar te joga numa coisa diferenciada. Tudo bem, eu nasci e fui criada na Bocaina, que é um lugar selvagem, virgem. Então eu acho que a minha vida sempre foi permeada entre o muito sofisticado e o muito rude.
É bom, porque tem a natureza completamente interligada.
A gente é raiz, meu pai era mergulhador, foi pentacampeão mundial de caça submarina, foi um dos fundadores do Marimbás. Ele era da equipe dos Marimbás, com Santarelli, Bruno Hermanny, era da turma deles, meu tio João [também]. Viajaram o mundo inteiro caçando. Então eu acho que esse lado bem raiz está no meu sangue por conta do meu pai. E por conta da minha avó também.
Avó de pai?
Avó de pai. Meu avô caçava. Ele conseguiu achar a Bocaina caçando. Comprou aquilo tudo, fez um barraco só para pernoite. E aí depois o meu pai foi evoluindo e fez a lodge, meu irmão depois pegou e fez uma pousada, que ele teve durante anos. E aí, quando ele encheu o saco da pousada, fechou, e agora é a nossa fazenda de novo.
Trabalhando com arquitetura e decoração, ou seja, fazendo casa para os outros, o que você acha que deixa uma casa única?
A personalidade do proprietário.
Às vezes, ele não consegue colocar isso na casa, você não acha?
Eu acho que se ele tem um mínimo de cultura e personalidade, consegue. Eu já fiz apartamento para clientes que eu não gostei, mas eles amaram. Então o meu compromisso não é comigo, não é a minha autoria, é fazer um lar para quem vai morar nele. Por exemplo, eu não sou uma pessoa que entra na casa de uma pessoa e manda jogar tudo fora e vamos fazer tudo [de novo]… “Móvel? Nem pensar, marcenaria, porque é onde se ganha muito dinheiro”. Eu faço a casa dos outros, não a minha. Eu já cansei de entrar em casa que você [diz] “isto aqui é uma casa do Cláudio”, “esta aqui é a casa do Eric”. Eu não quero entrar na casa dos outros. Tem uma história do Cláudio muito engraçada, que, quando ele foi fazer o apartamento do Caetano, a Paula começou, “Olha, eu queria que você visse o teto do meu vizinho aqui de baixo, que no vizinho de cima tem não sei o quê”. Ele olhou para ela e falou assim: “Faz uma coisa, Paula, chama o arquiteto dele”.
O que você acha que torna uma casa brasileira?
Linho, algodão, tem gente que põe brocado — isso é uma moda que eu acho que já passou. Casa brasileira é palha, madeira, e eu acho que ventiladores de teto, uma coisa bem tropical. Cores claras. Depende se a pessoa não gosta de quadro, não tem apreço por comprar arte, aí eu entraria com uma estampa. Talvez uma cor na parede; espelhos, se tem vista. Porque eu acho o uso do espelho extremamente perigoso, pode ficar um monstro e pode ficar lindo. Quando o espelho serve para abrir uma janela, estou dentro; esconder uma coluna, tudo bem. Agora, quando é um espelho tipo decorativo, para não refletir nada, no meu pensar, já cai na cafonice. Mas eu uso, eu gosto de espelho no ambiente, acho que favorece.
Fica uma casa muito adequada ao clima, sim. E, obviamente, falamos muito aqui no domínio da culinária. Qual você acha que é o papel da comida e da alimentação dentro de uma casa?
Eu acho que o agregador da família é a comida, sem a menor dúvida. O que junta é a mesa. E é o que talvez falte muito nos dias atuais, aquele momento de as pessoas se olharem e conversarem, contarem como é que foi o dia, como é que vai ser — se for almoço, como é que vai ser dali para frente… E eu acho que isso é um movimento que está acontecendo. Ontem, por exemplo, eu tentei desmarcar um dentista e não consegui, porque eles agora têm hora de almoço. Acho que é muito importante esse countdown, e a mesa é tudo numa casa. Eu fiz um apartamento, uma vez, que a mulher me disse: “Eu não quero sala de jantar, não, aqui a gente come de bandeja”. Eu falei: “Tudo bem, dá para fazer”. Mas que pena, porque era uma mulher com três filhos, sem marido — sei lá do marido, podia ser separada —, mas cada um comia numa hora, com uma bandeja e vendo televisão. É um desperdício monstruoso de aproximação para uma família. Para mim, a parte da cozinha… Inclusive, ter uma cozinha participativa seria melhor ainda, não ter aquela cozinha…
Ali, você vai estar vendo. Ela é participativa no sentido de as pessoas cozinharem juntas, isso eu acho muito interessante. Meus filhos, desde que ficaram em pé, eu empurrava a cadeira para o fogão e eles cozinhavam comigo. Sabem fazer tudo.
Hoje eles cozinham?
Tudo.
É fundamental isso, a gente ganha muita autonomia na vida. Não é só autonomia para saber se alimentar bem, com qualidade e ter saúde, mas acho que a cozinha ensina muita autonomia de vida para a gente.
Total. Porque você come o que você quer. Ter uma boa cozinha, os ingredientes bons… Você tem isso se a mãe tem esse conceito. Eu nunca tive pacote dentro de casa. Podendo, não tenho. Só, assim, quando era para a merenda dos meninos. Até o meu filho pedir para parar de mandar merenda, porque os colegas ficavam invejando a merenda dele, era muito chato. Fazia tudo bonitinho, um chocolatinho, um sanduichinho, um Toddynho ou uma água de coco, qualquer coisa, e mandava. Porque tinha dois recreios, um para comer e outro para brincar. E o de comer não dava tempo se a pessoa ficasse na fila, ela não conseguia chegar e comer. Então eu mandava. Aí começou a causar problema com os colegas e eu parei.
E o que você acha que a palavra “casa” significa? Quer dizer, o que significa para você?
Eu li uma definição do Hélio Oiticica uma vez, ele falava que a casa… Não lembro se era a casa ou era a casca do ovo, e nós somos o núcleo do ovo. Então, eu acho que a casa é isso, é o lugar que te protege, te abriga, te faz feliz. A minha vontade sempre é de voltar para casa. Acho que quem não tem vontade de voltar para casa está perdido no mundo. Para mim, a casa é o lugar de acolhimento, de afeto, de amor, é o lugar em que você recebe os seus amigos ou não — mas você se recebe, se recicla, se alimenta. Dependendo da casa, dependendo de quem mora na casa. Eu saí de uma casa para vir morar num apartamento que foi transformado numa casa. Eu acho que a casa é você que faz, e faz de acordo com as suas necessidades. Para mim, [a casa] é conforto e alegria, tudo o que preciso na vida é ter minha casa. Eu amo viajar, agora, voltar para casa é uma coisa quente no coração.
Qual é o papel da arte na sua casa?
Na minha casa, são as minhas paredes. Arte para mim é parede. Em casa, é isso. Eu não quero, até já tentei pintar, mas não quero, já tem coisa demais. Na minha vida, é me deixar feliz
Que projeto você acha que ainda não realizou na sua vida?
Eu não escrevi um livro. De resto, plantei todas as árvores, fiz filho, cozinho, lavo e passo roupa, bordo, faço tudo.
Vai escrever?
Acho que sim. Falta conhecer muitos pedaços do mundo e escrever um livro. Não descarto a possibilidade.
Do que seria?
Eu acho que seria um livro de receitas mais amplas.
Em que sentido?
Receitas de cozinha mas que fosse, por exemplo, a receita de um jantar. Aí eu vou fazer a foto da mesa e vou aumentar essa receita para o tipo de papo, o tipo de pessoa que vem. Eu li uma vez um livro de uma mulher de um diplomata italiano, Ornella… Esqueci o nome dela. Perdi muitos livros na mudança, perdi caixas e caixas de livros, mas também não teria onde botar. Ornella Muti, quem sabe? Não, é uma atriz, uma cantora. Ornella não sei das quantas. Ornella Del-Sol, eu acho. [Orietta Del Sole]
Eu pesquiso depois, tento achar e te falo.
O nome do livro é Nunca treze à mesa. Ela fazia a receita do jantar e escrevia sobre os convidados, o papo que rolou na mesa. Então, eu acho que seria isso, com fotos — foto da mesa posta, foto das comidas, dando as receitas. Acho que o meu grande lance é realmente a parte de casa.
Seria quase um livro de atmosfera.
É, por aí. Uma coisa que eu pudesse misturar, com um quadro que teria apego àquilo, uma coisa assim, com algumas referências para ilustrar aquela receita. Mas tendo a receita também. Podendo dar dica de onde comprar, o que fazer aqui no cantinho, enfim, coisas assim, arranjo de flor que ficaria legal com aquela louça — porque minha mãe também é artista, teve o momento louças, eu tenho louça de milho, louça de…
O que você acha que significa essa frase, “passar para tomar um cafezinho” com alguém ou na casa de alguém?
Eu acho que é marcar um encontro, o que é sempre bom entre duas pessoas que se gostam, se admiram, se respeitam. Em casa eu acho sempre melhor, porque adoro receber. Dá preguiça, mas se é uma pessoa com quem você tem intimidade, ela chega, vai junto na cozinha, abre a geladeira… Aqui em casa, a pessoa é de casa, não tem essa de fazer cerimônia. Tenho amigos mais antigos também, então tem gente que vem aqui que já vai e já entra. A única coisa que eu mando tomar cuidado é com o degrau.
O livroO Capital Está Morto, da australiana McKenzie Wark, faz mais do que esmiuçar o estado atual do capitalismo: com lucidez categórica, a obra escancara uma transformação radical que altera a própria essência da ordem econômica. Para Wark, o que chamamos de capitalismo na verdade já se desfez em pedaços para se tornar algo mais invasivo e controlador do que imaginamos — por incrível que pareça, isso é sim possível. Nesse novo sistema-titereiro, a informação tornou-se o principal recurso estratégico e a elite dominante opera sob um novo conceito de classe, chamada pela autora de “vetorialista”.
A classe vetorialista, ao contrário do que nos vem à mente quando pensamos em grupos que prevalecem sobre outros, não detém seu poder com base na posse dos meios tradicionais de produção, mas o faz a partir do controle dos vetores de informação. Isto é, todas as redes e sistemas que dão forma e sentido aos dados que governam a sociedade e influenciam o comportamento humano. Esse controle da informação define novas formas de exploração e desigualdade, tornando-se central para o funcionamento da economia global.
O entendimento tradicional da informação como algo abstrato, leve e quase etéreo é posto em cheque por Wark. A informação, como ela observa, depende de suportes materiais, infraestrutura de redes de dados, servidores, dispositivos e energia que sustentam o fluxo incessante de dados na sociedade contemporânea. Esse novo recurso, então, representaria uma reconfiguração das forças produtivas, na qual os vetores de informação e suas complexas camadas de circulação tornam-se um campo de poder que redefine as relações econômicas e sociais. Wark sugere que a informação, capturada e mercantilizada, transforma-se inevitavelmente em uma ferramenta de dominação, estendendo o controle até os aspectos mais cotidianos da vida, desde as redes sociais até os assistentes digitais que respondem aos nossos comandos de voz e monitoram rotinas pessoais.
Empresas como Google, Amazon, Facebook e Apple exemplificam essa nova ordem em que o valor está no controle dos dados e na capacidade de influenciar/prever os comportamentos humanos. O verdadeiro poder da classe vetorialista reside na “assimetria da informação”, o que quer dizer que, enquanto o público tem acesso a uma pequena fração dos dados, as corporações retêm e acumulam vastos conjuntos de informações, mantendo uma vantagem constante na criação de valor e intensificando o poder sobre a sociedade.
Como um dos resultados desse caos, Wark destaca o surgimento de uma classe subordinada, chamada por ela de “hackers”, composta por todos aqueles que produzem novas formas de informação. Esses trabalhadores criativos (programadores, artistas, escritores, acadêmicos) geram conteúdo e inovação, mas veem suas criações apropriadas — pra não dizer surrupiadas — pela classe vetorialista, que detém o controle e os direitos sobre a circulação dos produtos informacionais. A relação de exploração se intensifica, pois o valor é extraído do trabalho físico, intelectual e de todas as formas de criação que se transformam em mercadoria nas plataformas vetorialistas. Cada pedaço de informação gerada pelos hackers é apropriada e monetizada, gerando mais valor para as plataformas e deixando seus próprios criadores ao deus-dará.
Não bastasse o controle econômico e social, Wark aponta para uma camada biopolítica mais profunda. O domínio vetorialista — e isso percebemos de maneira mais clara a cada dia que passa — alonga suas unhas até chegar à esfera do corpo humano, com tecnologias que monitoram o organismo e transformam aspectos físicos em dados. Relógios inteligentes e outros gadgets capturam informações sobre nossa saúde, sono, movimento e comportamento, criando um ciclo em que cada aspecto da vida se torna um insumo para o capital vetorialista. Quando os dados capturados continuamente ajustam o comportamento humano às demandas de um sistema que faz da vida cotidiana uma matéria-prima de valor, um preocupante sistema de retroalimentação é fomentado.
Fica impossível não se questionar: onde isso vai parar, hein?
Os insights de Wark questionam as noções tradicionais de classe, valor e trabalho, já que, na era do vetorialismo, o valor econômico não se limita ao trabalho direto, ele provém da capacidade de capturar, organizar e transformar dados em capital. O controle da informação vira um meio de controle social abrangente e os vetores que movimentam os dados são os mesmos que moldam as formas de socialização e as próprias escolhas individuais. Essa transformação exige uma nova compreensão da exploração, que incorpore a captura de dados e a constante vigilância de aspectos da vida pessoal.
A resistência à ordem vetorialista demanda novas formas de organização e consciência, pois as lutas tradicionais contra a exploração capitalista não respondem aos desafios do sistema atual. É preciso desenvolver meios de coletivizar o conhecimento e desafiar o monopólio da informação.
A informação, afinal, não deve ser vista apenas como uma ferramenta, mas como uma força de produção com poder de moldar a vida social e política. É por essas e outras que a voz de alguém como McKenzie Wark precisa ecoar, sendo ao mesmo tempo um alerta e uma inspiração para resistir.
Confira nossa conversa com a autora:
Considerando a sua proposta de que o capitalismo foi substituído por uma nova ordem, como você enxerga o papel de uma obra como O Capital Está Morto? Qual a relação da classe vetoralista com os livros?
McKenzie Wark: O capitalismo foi apenas substituído como o modo dominante de produção. Sempre há múltiplos modos de produção que se sobrepõem e se entrelaçam. Livros já foram produtos da indústria cultural, vendidos como mercadorias, e, muitas vezes, seu conteúdo era moldado pela própria forma de mercadoria. Isso ainda ocorre em parte. Mas o “livro” agora também se tornou algo que a nova indústria de “conteúdo” entrega mais como um serviço, na forma de texto digital. O que é único sobre o texto é que ele se tornou uma relação dinâmica, de mão dupla. Ao ler um texto em uma interface, a interface também lê você, extraindo dados sobre seus hábitos e desejos. Esse regime do texto é extrativo de um jeito que o mundo dos livros não era. Com todas as suas falhas—ainda prefiro escrever, e ler, livros.
Na sua visão, o que tem sido mais difícil para a sociedade contemporânea entender sobre essa nova estrutura de poder baseada em dados e informações?
MW: Isso sempre nos é vendido como uma atualização daquilo que já conhecemos. Chegou até nós com a aparência dos meios de comunicação familiares e ainda usamos os termos antigos para isso — filme, livro, televisão e por aí vai. Assim, o lado mais sutil da mudança no modo dominante de produção passa despercebido.
Em uma sociedade que recompensa cada vez mais a velocidade, a produtividade e a exploração de dados, qual é o papel do silêncio, da pausa e da reflexão na construção de uma alternativa a esse sistema?
MW: Não acho que seja tão simples quanto lentidão versus velocidade, silêncio versus cacofonia. De certa forma, a infraestrutura técnica sobre a qual toda a economia agora repousa também é, em certo sentido, lenta. É incrivelmente difícil modificá-la para qualquer direção que não seja sua destruição constante do planeta. Acho que se trata mais das táticas de velocidade, de ter acesso a diferentes velocidades e intensidades.
O processo de coletivização do conhecimento parece fundamental para desafiar a classe vetorialista, mas há muitos desafios práticos para isso. Quais seriam as primeiras etapas para criar uma resistência informacional em direção à autonomia?
MW: Como todas as formas de trabalho e produção de conhecimento podem colaborar na tarefa comum de conhecer o mundo e criar uma relação com ele, dentro dele, que seja sustentável e mantenha esse sustento? Isso é incrivelmente difícil. Nos oferecem apenas formas de coordenação pelo mercado ou autoritárias. Então, trata-se de experimentar formas de trabalho e conhecimento baseadas na camaradagem. Isso pode ocorrer dentro das instituições existentes, enquanto elas durarem, ou fora delas.
Ao explorar o controle sobre o corpo e a mente através dos dados, surgem questões éticas profundas. Como você vê o papel da ética na ciência e na tecnologia hoje, e o que deveria mudar para que a informação sirva à sociedade em vez de controlá-la?
MW: “Ética” é a disciplina que encontra justificativas para as relações existentes de dominação e exploração. Precisamos de uma política da tecnologia e, curiosamente, de uma estética, uma arte experimental dela. Temos muito pouca autonomia em relação à grande infraestrutura da economia vetorial, então é uma questão de começar pequeno, criando ilhas de consciência e autonomia.
Em vários momentos, o livro parece um experimento de linguagem e pensamento. Você vê essa subversão no que escreveu?
MW: O mais difícil é escrever de uma maneira que seja contemporânea. Há uma influência de ideias recebidas, de uma linguagem convencional, incluindo a linguagem conceitual. Ou, ainda, há a tendência de exagerar na novidade, perder de vista a inovação incremental. Para mim, isso significa trabalhar sempre para pressionar a linguagem, para desnaturalizá-la.
Escrever sobre a perda de autonomia e o aumento do controle pode ser um processo que traz inquietação. Foi doloroso ou desconfortável para você escrever sobre a ascensão dessa classe vetorialista?
MW: Quando escrevi Um Manifesto Hacker (2004), eu estava em um momento otimista, o que é menos evidente em O Capital Está Morto (2019). Ganhamos algumas batalhas, mas perdemos a guerra, por assim dizer. As atuais relações sociotécnicas são o resultado de uma série de lutas, não por causa de alguma “essência” da tecnologia. Está ruim porque perdemos. Não estou aqui para vender otimismo. Mas, pelo menos quando as coisas estão ruins, há menos oportunistas. A luta agora é defensiva.
Sua escrita carrega um tom de urgência e um senso de alerta. Qual é o papel da linguagem e do estilo na transmissão dessa mensagem, e como você encontrou o tom ideal para falar sobre essas mudanças de forma acessível e envolvente?
MW: Sou uma escritora. Para mim, os livros são obras de arte tanto quanto qualquer outra coisa. Escrevi todos eles da melhor forma que pude. Leva muitas versões e muitos recomeços. Mas não é apenas por minha conta. Aprendo com outras pessoas, com outros escritores, tanto do passado quanto do presente. E também conversando com pessoas que fazem coisas e sabem de assuntos fora do meu campo de referência. Estou tentando apresentar a escrita como uma espécie de trans-texto, rompendo as divisões de trabalho, de gênero, de disposições estabelecidas, como um estímulo a um tipo de trabalho coletivo e alegre de fazer a vida juntos de uma maneira diferente.
O que você diria para alguém que, ao ler seu livro, se sente profundamente desanimado com a situação? Você vislumbra algum espaço para otimismo ou imagina que precisamos de uma perspectiva mais crítica e desconstrutiva para mudar o sistema?
MW: É uma pergunta muito abstrata… Todos os nossos humores variam de dia para dia, ou até de minuto a minuto! Quem sabe o que vai acontecer no futuro? Que parte das nossas vidas hoje podemos construir juntos agora? Essa é a pergunta.
Conteúdo exclusivo da edição digital Família — Amarello 50
Em um verão do início da década de setenta, Masahisa Fukase (1934 – 2012), um dos maiores nomes da fotografia moderna japonesa, voltou para sua cidade natal em Bifuka, Hokkaido. Depois de ter ficado quase vinte anos em Tóquio, um período em que fez ensaios para inúmeras revistas e se tornou um nome importante da cena avant-garde do país, o retorno, além de um movimento geográfico, constituía uma travessia emocional em direção às suas raízes e à complexidade das relações familiares. Em 1971, ele iniciou uma série de retratos da própria família no estúdio fotográfico dos pais, que viria a se tornar uma das obras mais celebradas, e doloridas, de sua carreira.
Ao longo das duas décadas seguintes, esses retratos, que começaram como uma exploração simples, quiçá até despretensiosa, das dinâmicas familiares, transformaram-se em monumentos de perdas, de fracassos e, sobretudo, da eterna capacidade da fotografia de congelar momentos e capturar tanto a vida quanto a morte — a morte enquanto em vida e a vida enquanto em morte.
Ao lado de nomes como Shomei Tomatsu, Daido Moriyama e Nobuyoshi Araki, Fukase desafiou as fronteiras tradicionais da fotografia, elevando-a de uma prática documental a uma forma de arte introspectiva, pessoal e perturbadora. Seu trabalho, caracterizado por uma fusão de melancolia e intensidade de emoções, muitas vezes explorava sua vida como matéria-prima. Em sua série mais famosa, Karasu (Corvos), de 1986, usou imagens sombrias da ave para simbolizar a devastação emocional de seu divórcio de Yoko, sua segunda esposa. Mas, com Kazoku (Família), expandiu suas narrativas sentimentais a um grupo maior, justamente aquele conjunto de pessoas com quem compartilhava sangue, numa espécie de veneração fúnebre às atribulações familiares e à inevitável erosão da vida.
O ambiente em que Kazoku foi criado não poderia ser mais simbólico. A família Fukase geria um estúdio de fotografia tradicional em Bifuka, onde, desde cedo, Masahisa foi exposto ao mundo da fotografia. O jovem, no entanto, nunca sentiu-se completamente à vontade com essa tradição, pelo menos não com a visão negocial e praticamente não-artística que o estúdio da família lhe impunha. Desde os seis anos, ele era incumbido de lavar as fotos em um pequeno quarto escuro, aquecido por um braseiro de carvão e impregnado pelo cheiro ácido de vinagre. Aquilo, para ele, tinha uma aura de opressão, uma herança familiar que ele parecia destinado a rejeitar.
Em um ensaio escrito em 1991, Fukase refletiu sobre a escolha que fez ao sair de casa para estudar na Nihon University College of Art, em Tóquio. De acordo com o próprio, ele se via dividido entre seguir a carreira de shashin-shi (fotógrafo de estúdio) ou shashin-ka (um fotógrafo-artista no sentido moderno). Embora tenha optado pela última, a conexão com suas raízes e o estúdio familiar continuava a assombrá-lo, até porque fez questão de se manter no mundo da fotografia. Assim, ao retornar em 1971, ele voltou também aos braços desses fantasmas emocionais banhados a sulfito de sódio que o acompanhavam.
Os primeiros retratos da série são, à primeira vista, convencionais. Eles mostram o núcleo familiar de Fukase: seus pais, Sukezo e Mitsue, seu irmão Toshiteru, sua irmã Kanako e seus sobrinhos. A atmosfera é quase reconfortante, à moda de retratos familiares, com os pais sorridentes e todos reunidos. No entanto, a presença de Yoko introduz uma camada perturbadora (ainda mais conhecendo, em retrospecto, o tom pesaroso da série Karasu). Em uma das imagens, ela aparece usando apenas um koshimaki — faixa de algodão tradicional usada debaixo de kimonos — com os longos cabelos cobrindo o peito nu. Essa justaposição entre a formalidade da fotografia familiar e a nudez de Yoko sugere uma tensão subjacente, uma ruptura entre tradição e modernidade, entre o que é visto e o que permanece oculto. Os corvos já grasnavam alto naquelas sonorizações imagéticas.
Essa tensão segue pulsando em variações subsequentes da mesma cena. Em outro registro, Yoko está de costas para a câmera enquanto o resto da família olha diretamente para a lente; em outro momento, é a família que se vira de costas enquanto Yoko encara a câmera. Esses jogos de perspectivas sugerem não apenas o papel da fotografia como mediadora entre o fotógrafo e o objeto fotografado, mas também a alienação crescente de Fukase em relação a Yoko e aos outros ao seu redor. A relação deles, era claro, se deteriorava. Logo após essas fotos, ela o deixaria, citando a fotografia como a barreira que os separava. “Nos dez anos de nosso casamento”, escreveu em 1973, “ele só me viu através da lente de uma câmera, nunca sem ela.”
As imagens refletem uma dor silenciosa e sutil, ladeadas por uma certa dose de teatralidade, com Fukase incorporando bailarinas e atrizes seminuas para posar ao lado de seus familiares. Essas cenas, ainda que chamativos jogos visuais, não podem ser dissociadas do processo de autodescoberta e autoanálise que permeia o trabalho. Ele costumava dizer que seu material de trabalho sempre começava “com o que está mais próximo, com as pessoas que posso alcançar e tocar.” A dor, para todos os efeitos, era próxima o suficiente para que pudesse ser tocada por ele.
Conforme os anos passaram, a série Kazoku muda de tom. A jovialidade dos primeiros retratos é aos poucos substituída por uma atmosfera turva de perda e luto. A família Fukase começa a encolher. Em um dos retratos mais pungentes, sua irmã Kanako segura um retrato de sua filha Miyako, que morreu aos cinco anos. Dois anos depois, a mesma composição é repetida, mas desta vez com Kanako segurando uma foto do pai de Fukase, que também falecera. A progressão das imagens revela a história mais antiga, inevitável e lamentável: o desaparecimento gradual da vida e o esfacelamento da estrutura familiar.
Em 1987, depois da partida de seu pai, a fotografia final da série é uma composição sombria e silenciosa, com sua mãe, Mitsue, sentada em um banco, curvada pela idade e pelo peso do luto, acompanhada apenas por seus filhos e o retrato de seu falecido marido. A imagem parece marcar o fim de uma era, tanto para a família quanto para o estúdio, que logo fecharia as portas.
O fotógrafo, por sua vez, também estava próximo do fim de sua jornada artística. Pouco depois dessa fotografia, ele sofreu uma queda em seu bar favorito, um incidente que o deixaria em coma por mais de duas décadas, até sua morte em 2012. O ciclo de vida que ele documentou em Kazoku se fechou de forma trágica, com o próprio fotógrafo sendo aprisionado em um estado de animação suspensa, incapaz de continuar seu trabalho ou de interagir com o mundo.
O que torna a obra de Masahisa Fukase tão comovente é a capacidade de transformar momentos aparentemente comuns em meditações poéticas sobre a existência humana. A série Kazoku, exemplo categórico disso, evoluiu para um estudo complexo sobre o tempo, a memória e a inevitabilidade da morte. Cada fotografia capturava um momento de vida, mas, ao mesmo tempo, prenunciava a transitoriedade dessa mesma vida, congelando-a no tempo para sempre. Ao documentar o apagar paulatino de sua família, Fukase fez ressoar um coro angelical e trágico que sibila em alto e bom som que a fotografia não é apenas sobre o que vemos, mas sobre o que não vemos, sobre as ausências que tanto insistem em preencher nossas vidas com lástima.
Kazoku é um testemunho visual de como o tempo corrói laços, esvazia ambientes e submerge cada um de nós em uma sequência inevitável de perdas. Cada retrato parece estar impregnado da ideia de que o ato de fotografar é, em si, um lamento. Foi assim que criou uma poética da desintegração. As fotografias de Kazoku não são meras imagens, são vestígios. O sorriso congelado de sua mãe, o olhar distante de seus irmãos, as crianças que não mais crescerão — tudo isso existe dentro dos limites da moldura, mas é o que está fora dela, o que foi apagado ou nunca poderá ser recuperado, que nos envolve.
Fukase, em seu trágico e irônico coma, se tornou uma espécie de emblema de sua obra: paralisado entre o presente de seu corpo e o futuro de sua alma, entre o fechar e o abrir de olhos, entre a vida e a morte. E, como nas páginas de um álbum de família antigo, que começa a desbotar e a desintegrar com o passar do tempo, Kazoku e o trabalho de Fukase como um todo permanecem como uma prova de que, embora possamos tentar capturar o presente com a câmera, é o eco do que foi perdido, daquilo que escapa pela borda da fotografia, que realmente define nossas vidas.
Imagens de Family/Kazoku (2019), de Masahisa Fukase, publicado por MACK
O Podcast da Revista Amarello conversa sobre as ideias que movimentam a cultura.
No primeiro episódio do seu Podcast, a Revista Amarello convida os professores e pesquisadores de música Rafael de Queiroz e Spirito Santo para conversarem a respeito da gênese da MPB. Com mediação da jornalista e antropóloga Pérola Mathias, o encontro aborda o cerne de um dos principais pilares da cultura nacional: seria a Música Popular Brasileira uma fase, um estilo ou um período? Em que medida o conceito de “popular” privilegia certa referências estéticas em detrimento de outras?
No seu livro No Tempo do Escândalo, Rodrigo de Lemos analisa os anos de transição que precederam a Primeira Guerra Mundial, revelando um mundo à beira de uma transformação radical, onde o confronto entre o individualismo crescente e as tradições religiosas e comunitárias desencadeou uma ruptura profunda nas estruturas sociais. O livro, mais que um estudo histórico, é uma reflexão filosófica e cultural sobre o período entre 1870 e 1914, uma era que Lemos denomina como o “tempo do escândalo”. O que define o período são as tensões entre moralidade e decadência, a desconstrução das certezas religiosas, e a busca por novas formas de identidade que marcaram o início da modernidade. O olhar para trás do autor, então, tem como objetivo perscrutar o território ainda incerto do presente e do futuro.
No cenário analisado, o escândalo em si não era apenas um evento sensacionalista, mas o símbolo de uma época em que as normas sociais e morais foram desafiadas por novas sensibilidades (qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência). O final do século XIX e começo do XX foi um momento de “tropeço”, quando a cultura ocidental, outrora alicerçada em valores coletivos e religiosos, começa a desmoronar sob o peso do individualismo e do secularismo. O escândalo, portanto, é tanto uma força disruptiva quanto um catalisador de mudança, trazendo à tona uma crise que atravessa as artes, a política, a religião e a psique coletiva.
Um dos eixos centrais da análise de Lemos é a transformação dos mitos literários, especialmente as figuras de Narciso e Salomé. Essas figuras, tradicionalmente ligadas à moralidade e à ordem social, são reinterpretadas no final do século XIX como símbolos da transgressão e da autonomia individual. Narciso, que nas lendas gregas e romanas era punido por sua vaidade, nas mãos de autores como Oscar Wilde e Jean Cocteau, torna-se um herói trágico, uma figura que celebra o narcisismo e a introspecção como formas de resistência contra as normas opressoras da sociedade. Em O Sangue de um Poeta, por exemplo, primeiro filme de Cocteau, Narciso mergulha em seu próprio reflexo como uma busca por autenticidade em um mundo cada vez mais fragmentado.
Da mesma forma, Salomé, cujo mito tem suas raízes no Novo Testamento, é conhecida por ter pedido a cabeça de São João Batista ao rei Herodes, após dançar para ele. Na narrativa bíblica, Salomé é uma figura manipulada por sua mãe, Herodíade, que busca vingança contra João Batista. Contudo, no final do século XIX, essa figura passou por uma ressignificação profunda nas mãos de autores como Huysmans e, olha ele de novo, Oscar Wilde. Ao invés de ser meramente um peão em um jogo de poder masculino, Salomé se transforma em um ícone de desejo e destruição, representando uma força feminina capaz de subverter as normas patriarcais.
Na peça Salomé, de Wilde, ela é retratada como uma figura enigmática e fatal, cuja sexualidade exerce um poder incontestável, despertando medo e fascínio em Herodes e outros homens ao seu redor. Sua dança dos sete véus, símbolo de sedução e mistério, torna-se uma metáfora da luta pelo controle sobre o corpo feminino e a inquietação que a liberdade sexual feminina provoca na masculinidade tradicional. Lemos interpreta essa Salomé transformada como uma antecipação das tensões feministas que emergiram no século XX, destacando como o autor irlandês usa essa personagem para explorar as complexidades do desejo feminino e o desconforto que ele gera em uma sociedade dominada por homens.
O foco nos mitos é uma escolha para mostrar como essas figuras literárias serviram de espelho para a crise cultural e moral da Europa. Ao serem ressignificados, os mitos ganham novas camadas de significado, permitindo que autores e artistas da Belle Époque confrontassem questões como o lugar do indivíduo na sociedade, o papel da sexualidade na formação da identidade e a erosão das estruturas religiosas. O mito de Narciso, por sua vez, revela a ascensão do eu moderno, uma subjetividade que se volta para dentro e se desconecta das exigências da comunidade. Essa introspecção, ao mesmo tempo, é vista como libertadora e destrutiva, já que a obsessão consigo mesmo pode levar à alienação e à fragmentação.
A arte, como de costume, foi o campo onde essas tensões encontraram sua expressão mais vívida. O final do século XIX testemunhou uma explosão de inovação artística, com movimentos como o esteticismo e o simbolismo rejeitando o realismo e abraçando o imaginário, o sonho e o escândalo. Artistas buscavam explorar os limites da moralidade e da estética, criando obras que provocavam e chocavam suas audiências. A beleza, antes vista como reflexo da ordem divina, tornou-se, para esses artistas, um campo de batalha onde se lutava por novas formas de liberdade individual. Essa nova estética era, em si mesma, um escândalo, pois rejeitava as convenções burguesas de bom gosto e moralidade, celebrando em vez disso o excessivo, o estranho e o perverso.
Esse movimento na arte foi acompanhado por uma transformação igualmente radical na filosofia e na psicologia. Sigmund Freud, um dos personagens-chave discutidos por Lemos, desempenhou um papel fundamental na desmistificação da moralidade tradicional. A psicanálise, ao explorar as profundezas do desejo e da sexualidade, desafiou as noções de normalidade que sustentavam a ordem social vitoriana. O interesse de Freud por mitos como o de Narciso reflete sua preocupação com a relação entre o eu e o inconsciente, e Lemos traça paralelos entre a emergência da psicanálise e o surgimento de uma nova concepção de indivíduo: não mais um ser moral e racional, mas um ser em conflito consigo mesmo, dividido entre pulsões inconscientes e o desejo de conformidade social.
O “tempo do escândalo” é também uma era de fraturas e ambiguidades religiosas. A secularização da Europa, iniciada no Iluminismo, atingiu um novo patamar no final do século XIX, quando figuras como Nietzsche declararam a morte de Deus e questionaram o lugar da religião na vida moderna. A santidade, antes vista como a mais alta expressão da moralidade, foi reinterpretada à luz da psicopatologia. Santo Antônio, por exemplo, é tratado em No Tempo do Escândalo como uma figura em crise, cujo fervor religioso é lido por autores como Flaubert e Huysmans não como sinal de santidade, mas como sintoma de uma mente doente. Isto é, a dessacralização da religião é um dos aspectos mais marcantes dessa era, quando a fé é gradualmente substituída pela ciência e pelo racionalismo, mas sem oferecer respostas definitivas para as angústias existenciais que surgem no vácuo deixado pela religião.
Lemos documenta essas transformações e propõe uma reflexão mais ampla sobre o que elas significam para a nossa era contemporânea. Ele sugere que vivemos em um momento semelhante àquele, onde o individualismo e a fragmentação social são temas centrais. As redes sociais, com sua promessa de conexão global, muitas vezes reforçam o isolamento e o narcisismo, enquanto as antigas certezas sobre moralidade e comunidade continuam a ser desafiadas por novas formas de subjetividade. O “escândalo” hoje, assim como no final do século XIX, serve como um reflexo das tensões que permeiam nossa sociedade. A era digital, com suas bolhas de pensamento e sua propensão ao espetáculo, ecoa os mesmos desafios enfrentados pelos artistas e intelectuais da Belle Époque, que também viam a arte e o escândalo como instrumentos de transformação.
O estudo de Lemos é, portanto, um chamado à reflexão sobre as raízes de nossa própria crise contemporânea. Ao explorar as ressonâncias entre o “tempo do escândalo” e os dilemas do presente, o autor vira nosso olhar para o passado não como algo distante e resolvido, mas como um espelho de nossas próprias incertezas. O escândalo, tanto ontem como hoje, é uma janela para os limites do que consideramos aceitável, e é nesse confronto com o inaceitável que a cultura encontra sua verdadeira força transformadora.
Confira nossa conversa com o autor:
A ressignificação de mitos clássicos e o desencantamento religioso são temas centrais do livro. Por que essas reinterpretações demoraram para acontecer nesse nível e o que elas revelam sobre as ansiedades e aspirações da sociedade do final do século XIX?
Rodrigo de Lemos: No caso dos mitos de que trata o meu livro, Narciso, Salomé e Santo Antônio, creio que, em suas encarnações europeias desde a Antiguidade até o século XX, eles mostram uma mutação ideológica muito relevante: o advento da ideia e do valor do indivíduo autônomo, que se permite conceber a si mesmo como independente da sua comunidade de origem, e por vezes mesmo superior a suas concepções, suas expectativas, suas hierarquias e também a seus preconceitos. Daí resulta uma oposição entre os pólos individual e coletivo, cujo acirramento, no fim do século XIX, constitui o que eu chamei de Tempo do Escândalo, quando essa contradição entre indivíduo e coletividade aflorou de forma especialmente sensível nos terrenos da arte e do pensamento.
Você aborda a relação entre a secularização e o desencantamento do mundo. De que forma esse processo afeta a busca por significado em uma era dominada pela tecnologia?
RL: A relação me parece ser de mão dupla, ou mesmo contraditória: por um lado, poderíamos pensar que a tecnologia digital favoreceria o triunfo do indivíduo autônomo e da razão secular. De fato, isso parece ser um tanto assim, pois as novas formas de comunicação permitem a cada um de nós um acesso vertiginoso a discursos e a imagens oriundos de contextos culturais muito distintos, em escala planetária. Ocorre que, exatamente por causa do acesso vertiginoso, essa mesma tecnologia digital me parece também possibilitar o surgimento de comunidades de opinião, em meio digital, centradas na busca por valores tradicionais, “naturais” e “orgânicos”, os mesmos que foram fortemente contestados no período que analiso no livro. Esses retornos não são novos, e também ocorreram em outros momentos, como reação ao avanço dos valores individualizantes. Foi o caso das versões reacionárias do romantismo no início do século XIX, e também, mais tarde, das reações fascistas ao início do século XX, por exemplo.
Mitos como Narciso e Salomé servem, de um modo, como espelhos para as tensões modernas. Qual é a relação entre esses mitos e as identidades contemporâneas que se formam em um mundo cada vez mais individualista?
RL: Primeiro, é importante ressaltar que, no meu livro, o sentido do termo “individualismo”, que busquei na obra do antropólogo Louis Dumont, não contém uma carga pejorativa. Não equivale a egoísmo ou alienação, mas a uma configuração ideológica das sociedades modernas, em que o indivíduo é concebido como fim e como fundamento de uma sociedade, e não como o meio pelo qual uma comunidade existe e se reproduz, permanecendo parte dependente dela. Narciso e Salomé são vistos, em textos muito tradicionais (nas Metamorfoses, de Ovídio, ou na Bíblia), como seres fundamentalmente faltosos quanto à moral coletiva, ora pelo seu orgulho, ora pela sua lascívia, ora pela sua crueldade, e assim por diante. Acontece que, talvez precisamente por causa dessa valoração negativa convencional, artistas e intelectuais do Tempo do Escândalo, como Freud, Oscar Wilde, Flaubert ou Strauss, puseram esses mitos em evidência nas suas obras, seja para criar conceitos centrais às suas teorias (como o narcisismo na teoria do psiquismo em Freud), seja para representar aspirações estéticas e espirituais que se quereriam muito mais nobres — porque mais raras, mais refinadas, mais “individuais” — do que aquelas que as coletividades mais tradicionais atribuíam a esses mesmos mitos, símbolos do pecado e do desvio moral. É o que acontece na poesia de um Mallarmé ou de um Valéry.
No livro, você menciona a ascensão do individualismo em contraposição a valores comunitários. Quais são as implicações éticas dessa mudança para a sociedade atual e para o futuro?
RL: Como eu disse, creio que, por meio da tecnologia, renovou-se o desejo de comunidade e de tradição, que hoje atravessa famílias políticas e ideológicas. Talvez esse novo desejo de dependência comunitária seja tão mais forte quanto mais isolados os sujeitos em dado momento histórico se sentem, e também quanto menos expectativas de futuro e imaginação política e social eles têm, em função desse mesmo sentimento de isolamento e de desolação. Em alguns desses grupos virtuais de opinião, o retorno a uma tradição, a uma origem e a uma comunidade (com suas dimensões de ilusão e de fantasia) aparece como um projeto sedutor para fazer frente à angústia do momento presente, como se o que restasse, depois do desparecimento do futuro, fosse a evasão em uma espécie de utopia do passado. Tendo a crer que estamos agora apenas começando a sentir as consequências políticas e psíquicas dessa situação.
Quais aspectos do “tempo do escândalo” mais claramente anunciam as crises morais e políticas do século XXI?
RL: Penso que elas se refletem em duas dimensões principalmente: nas da religião e da sexualidade. Ambas são muito próximas, não só porque a religião impõe uma forma de regulação coletiva da sexualidade, mas também porque, como explico no livro, a partir dos escritos de outros pesquisadores, a reivindicação de liberdade de consciência religiosa na Europa, sobretudo a partir da Reforma, precede, e até certo ponto anuncia, a reivindicação de livre disposição do indivíduo sobre sua própria sexualidade, já no Iluminismo e mais ainda no Tempo do Escândalo. O ressurgimento de uma vontade de autoridade comunitária por meio da tecnologia digital, que eu já mencionei, pode representar uma ameaça a essas duas reivindicações de autonomia do indivíduo, tanto no “corpo” quanto no “espírito”.
Tendo a ambivalência em relação à modernidade em mente, você a vê como algo intrínseco do ser humano ao lidar com mudanças culturais significativas?
RL: Não me parece que seja intrínseco, no sentido de que é “natural” às pessoas resistir a essas mudanças, muito menos que é o “destino” do homem arraigar-se em comunidades ditas tradicionais, como a família convencional, os papéis de gênero do passado, o pertencimento étnico-racial ou ainda a religião herdada. Tendo a ver essa ambivalência quanto aos valores modernos como um fenômeno histórico, relacionado a mudanças nas condições concretas de vida, mudanças essas que nada têm de necessário. Falamos das tecnologias digitais e de como elas favoreceram o renascimento, em uma parte da população, de sentimentos e de aspirações que se querem tradicionais. Sem essas mesmas tecnologias, me pergunto se essas aspirações teriam saído do subsolo em que haviam permanecido desde o Pós-Guerra.
A arte contemporânea ainda tem o poder de provocar escândalo? Se sim, como isso se manifesta nas expressões artísticas atuais?
RL: Há uns quinze anos, eu provavelmente teria dito que não. Porém, hoje, em um mundo fragmentado em torno desses grupos virtuais de opinião mais e mais autorreferenciais, parece que houve também uma renovação no potencial de escândalo da arte. Basta lembrar os casos do Queermuseu, de Porto Alegre, ou da performance La Bête, de Wagner Schwartz. Ambas datam do fim dos anos 2010, precisamente quando, no Brasil, consolida-se uma opinião populista reacionária sobre família, sexualidade, política e religião. Por outro lado, é interessante notar que também algumas correntes da opinião progressista recorrem à linguagem do choque e do escândalo moral quando confrontadas com as provocações do populismo reacionário, mais, é verdade, nos campos da política ou da comunicação digital do que no da arte contemporânea. Estaríamos, então, em um processo de retroalimentação dos escândalos, em que um grupo busca atenção pública, e ganhos políticos, por meio da escandalização do grupo opositor? O nosso seria então o Tempo dos Escândalos…
Quais autores ou pensadores contemporâneos você considera que continuam o legado das questões morais e filosóficas levantadas no “tempo do escândalo”?
RL: Parece-me que estamos assistindo a uma difusão e a uma democratização da lógica do Escândalo, em todos os espectros intelectual e político. Nesse caso, eu diria que cabe a alguém que pretende pensar o presente (ao “pensador contemporâneo”) operar fora dessa lógica e privilegiar uma certa fineza de espírito, a atenção às nuances, a precisão na linguagem e a razoabilidade, por mais que essas coisas não tragam aprovação automática por uma comunidade de opinião digital.
“Os números crescentes, a grande variedade e o imenso potencial de estímulos altamente compensatórios são atordoantes. O smartphone é a agulha hipodérmica dos tempos modernos, fornecendo incessantemente dopamina digital para uma geração plugada. Se você ainda não descobriu sua droga preferida, ela logo estará em um site perto de você.” — Dra. Anna Lembke
Neurotransmissor que atua no sistema nervoso central, a dopamina se tornou o centro das atenções na celeuma atual sobre os vícios da sociedade moderna.O conceito de que nosso desejo por um rápido “pico de dopamina” é a razão pela qual não resistimos e nos permitimos consumir um sem-fim de ultraprocessados ou passar horas nas redes sociais tem gerado um certo pânico — e há quem diga que ele é desproporcional. Devia mesmo a dopamina estar sob os holofotes dessa discussão?
O que não se nega é: antes, não há muito tempo, vivíamos um balanço maior entre o estímulo e o não-estímulo, entre o prazer e a espera pelo prazer. A transição de um mundo que temia pela escassez para um de abundância esmagadora de fato nos expõe com facilidade a comportamentos compulsivos.
No best-seller Nação Dopamina, lançado nos EUA em 2021 e que chegou ao Brasil no ano seguinte, a psiquiatra Anna Lembke, de Stanford, explora como o excesso de estímulos prazerosos nos afeta, especialmente em um mundo de gratificação instantânea. Em uma narrativa que mescla suas experiências pessoais e relatos de pacientes, o livro reflete sobre o delicado equilíbrio entre prazer e vício. Esses pacientes, que ganham vida nas páginas, acabam sendo personagens com quem os leitores, ao menos em algum nível, se identificam. É o caso de Jacob, que construiu uma máquina de masturbação para lidar com seu vício em sexo, ou de Delilah, uma adolescente que só conseguia começar o dia após fumar maconha.
“Talvez você sinta repulsa pela máquina de masturbação de Jacob. Talvez você a considere uma espécie de perversão extrema, além da experiência cotidiana, com pouca ou nenhuma relevância para você e a sua vida. Mas se fizermos isso, você e eu, perderemos a oportunidade de apreciar algo crucial sobre a maneira como vivemos agora. De certa maneira, estamos todos envolvidos em nossas próprias máquinas masturbatórias.”
— Dra. Anna Lembke
Essas histórias, embora pareçam extremas e distantes da nossa realidade, ilustram de forma clara um fenômeno que afeta muitos de nós: a dificuldade em lidar com o desconforto, qualquer que seja, sem buscar alívio imediato.
“A deficiência de serotonina está frequentemente ligada à ansiedade e depressão, enquanto a falta de dopamina pode afetar nossa motivação.”
Compreender o papel da dopamina em nossos cérebros é fundamental para entender o vício e não confundi-la com a serotonina, outro neurotransmissor, igualmente importante. Enquanto a serotonina tem um impacto direto na regulação do humor, promovendo uma sensação de bem-estar e influenciando o sono, apetite, desejo sexual e memória, a dopamina nos impulsiona a buscar aquilo que acreditamos nos trazer prazer, alimentando expectativa e motivação. A deficiência de serotonina está frequentemente ligada à ansiedade e depressão, enquanto a falta de dopamina pode afetar nossa motivação. Quando alcançamos o que desejamos, os níveis de dopamina caem, nos lançando em um ciclo de busca contínua.
Esse mecanismo de recompensa, que, não custa lembrar, foi crucial para a sobrevivência e evolução da espécie humana, hoje pode se tornar prejudicial, à medida que vivemos cercados de estímulos digitais e de consumo fácil. Sendo tudo tão acessível, muitas vezes a um toque do celular, a toda hora vamos lançar mão disso ou daquilo.
Contudo, especialistas em dopamina afirmam que muitas dessas preocupações são exageradas. Desmistificar os maiores equívocos sobre esse neurotransmissor é livrá-lo do estigma de vilão — e esse é um passo essencial para entender como lidar com a avalanche de estímulos que enfrentamos diariamente.
A dopamina, por si só, não é uma força boa ou má. As primeiras pesquisas, realizadas com roedores e, mais tarde, com humanos, sugeriram que o sistema de dopamina se ativava ao receber recompensas. Isso levou à crença de que a dopamina estava diretamente ligada a qualquer experiência de bem-estar, como comida, sexo e interações sociais. No entanto, estudos mais recentes, realizados especialmente a partir dos anos 1990, revelaram que a dopamina está mais relacionada à antecipação de recompensas do que ao prazer propriamente dito.
“A constante busca por gratificação altera o funcionamento cerebral, prejudicando nossa capacidade de planejar, resolver problemas e lidar com frustrações.”
No cerne dessa questão está o fenômeno da homeostase cerebral, que nos lembra do bom e velho “para cada alto, há um baixo”. Isso explica por que uma pequena dose de prazer pode, com o tempo, exigir estímulos cada vez mais intensos para gerar a mesma satisfação. No mundo digital, onde o acesso é praticamente ilimitado e imediato, o risco de dependência se torna ainda maior. Além de impactar os circuitos de recompensa, a constante busca por gratificação altera o funcionamento cerebral, prejudicando nossa capacidade de planejar, resolver problemas e lidar com frustrações. Como resultado, vivemos mais no cérebro límbico (focado nas emoções) do que no córtex pré-frontal (responsável pelo raciocínio).
E se, para quebrar esse ciclo de excessos, tentássemos algo simples, como a abstinência temporária? Desconectar-se dos prazeres excessivos por um período pode reiniciar o cérebro e restaurar o equilíbrio. Estamos realmente presos ou é possível sair desse ciclo com um mínimo de força de vontade?
Na teoria, parece fácil; mas, como diz o ditado, na prática a teoria é outra. Desconectar-se, infelizmente, é um luxo que poucos têm hoje em dia. Uma reflexão trivial desmonta o sonho de distanciamento dos dispositivos e do bombardeio digital: como trabalhar sem estar conectado? Até mesmo trabalhos manuais frequentemente exigem uma presença digital, nem que seja para facilitar o contato entre contratante e contratado. Existem meios de limitar esse acesso, mas o afastamento nunca será completo. Questões político-sociais, tão enraizadas na realidade que molda nossos passos, dificilmente serão descartadas de um dia para o outro — e ainda assim querem jogar tudo nas costas da dopamina?
Não podemos ignorar que atividades altamente estimulantes podem, sim, sequestrar nosso sistema de dopamina, tornando recompensas menores menos satisfatórias. Esse ponto de vista é sustentado por algumas evidências, já que o uso prolongado de drogas que liberam grandes quantidades de dopamina — como cocaína e anfetaminas — pode levar o cérebro a reduzir a sensibilidade dos receptores desse neurotransmissor, resultando em tolerância.
“O desconforto é necessário. Isso pode parecer exagero, mas, em uma era de abundância, aprender a suportar pequenas dores e frustrações é o que nos torna mais resilientes e preparados para enfrentar os desafios da vida.”
Embora atividades como videogames e pornografia possam se tornar comportamentos compulsivos, pesquisadores como a Dra. Anna Lembke levantam a hipótese de que essas práticas poderiam, em tese, causar efeitos semelhantes aos da tolerância observada em substâncias viciantes, mesmo que ainda faltem evidências concretas para tal afirmação.
A verdade é que o vício é um fenômeno multifacetado e a dopamina não deve ser vista apenas como uma inimiga. Ela é, de fato, uma amiga em nosso aprendizado e motivação. A verdadeira questão não é como evitar a dopamina, mas como utilizá-la de forma equilibrada e saudável em nossas vidas.
Mas Lembke lembra: o desconforto é necessário. Isso pode parecer exagero, mas, em uma era de abundância, aprender a suportar pequenas dores e frustrações é o que nos torna mais resilientes e preparados para enfrentar os desafios da vida. Em vez de buscar uma constante felicidade, devemos aceitar que a vida é feita de altos e baixos, e que encontrar paz nesse movimento é o verdadeiro caminho para uma vida equilibrada.
“Talvez, como Sócrates, você tenha notado uma melhora de humor depois de um período doente, ou sentido uma euforia de corredor, depois de se exercitar, ou tido inexplicável prazer num filme de terror. Assim como a dor é o preço que pagamos pelo prazer, o prazer também é nossa recompensa pela dor.”
— Dra. Anna Lembke
Nação Dopamina nos ajuda a refletir não apenas sobre como lidamos com a tecnologia e o consumo, mas sobre como podemos redescobrir o valor das pequenas vitórias e do prazer conquistado com esforço.
Dopamina, temos um problema? Talvez não. Os excessos da modernidade não são oriundos tão somente da dopamina. De maneira nada consoladora, está mais para: atualidade, temos um problemão.
Renée Green é uma artista visual, escritora, cineasta e professora norte-americana, cuja prática multidisciplinar abrange escultura, arquitetura, fotografia, vídeo e experiências sonoras, frequentemente culminando em instalações complexas e envolventes. Seu trabalho é profundamente ancorado em pesquisas de antropologia cultural e história social, explorando temas como a figura de Sarah Baartman — mulher sul-africana conhecida como “Vênus Hotentote”, exibida como atração de circo no século XIX —, a história da escravidão, o modernismo arquitetônico e a cultura hip hop.
Green investiga a relação entre arte e história, utilizando colaborações e arquivos como ferramentas de reflexão e criação. Um bom exemplo disso é seu trabalho lançado em 2014, Other Planes of There: Selected Writings, uma coletânea de textos escritos entre 1981 e 2010, que parte da prática arquivística como ferramenta artística. Além de numerosas exposições individuais e coletivas em museus de renome ao redor do mundo, Green é também uma escritora prolífica, com contribuições regulares em publicações influentes como a October, de Massachusetts, nos Estados Unidos, e Texte zur Kunst, da Alemanha.
A exposição Aproxime-se: Perceptos, realizada no espaço cultural auroras, em São Paulo, é a epítome de tudo que a define como artista e ativista — uma síntese assombrosa, tanto pela excelência com que é realizada quanto pelas questões profundas e inquietantes que expõe.
“Trazer a exposição de uma artista internacional como Renée Green para o auroras”, reflete Ricardo Kugelmas, fundador do espaço, “tem um impacto significativo, tanto para o público quanto para o debate sobre questões ligadas à diáspora africana e fluxos culturais dela decorrentes. Renée Green, com sua trajetória de mais de três décadas, tem uma abordagem profundamente reflexiva e crítica sobre a circulação de pessoas, culturas e narrativas. Sua obra oferece um espaço para pensar essas complexas intersecções de maneira que não é panfletária, mas altamente poética e visualmente rica. Essa exposição não só expande as conversas sobre diversidade racial na arte contemporânea, mas também desafia o público a considerar como essas questões estão presentes nas dinâmicas sociais e culturais brasileiras.”
Estreia de Green no Brasil, a exposição tem as temáticas de colonialismo, diáspora e migração muito presentes, exploradas através de múltiplos meios artísticos, como instalações, vídeos, pinturas e esculturas. Um dos destaques de Aproxime-se: Perceptos, aliás, é a obra Commemorative Toile (Brasil), em que a artista estampa poltronas modernistas com imagens que retratam cenas de resistência escravagista, incluindo episódios da Revolução Haitiana.
Essas poltronas, mais que simples objetos decorativos, funcionam como veículos de memória, refletindo a complexidade da história colonial. Ver algo assim estampado em uma peça de mobiliário é perturbador, pois naturaliza violências históricas e, de certa forma, as eleva ao nível canônico, quase religioso. Ter essas imagens duras em objetos que usamos no cotidiano é um lembrete aterrorizante de como essas brutalidades podem se infiltrar nas nossas vidas, tornando-se parte do tecido da realidade.
“A poética na obra de Renée Green”, corrobora Ricardo, esmiuçando a produção da artista, “está profundamente ligada ao conceito de ‘relações’, que serve como fio condutor em sua produção multimídia. Renée entrelaça sua história pessoal e seus interesses com correntes culturais e intelectuais mais amplas, criando uma interconexão rica entre poesia, literatura, filosofia, história, música e arquitetura. Sua abordagem ressalta como, ao longo dos tempos, símbolos são criados e circulam, moldando e sendo moldados pelas experiências humanas.”
E pensar nessas questões a partir de diferentes mídias, para muito além do mobiliário, torna tudo ainda mais complexo. “Esse interesse pelas diferentes linguagens e etimologias reflete um entendimento profundo das dinâmicas de poder e resistência que permeiam as narrativas da diáspora africana. Green utiliza essa poética não apenas como uma estética, mas como um meio de explorar a intersecção de identidades, culturas e histórias. Uma das partes mais interessantes do trabalho de Renée é o fato dela intencionalmente provocar a auto reflexão e uma livre interpretação pelo público, vide o título da mostra: ‘Aproxime-se: Perceptos.’”
A carreira de Green, marcada pela abordagem interdisciplinar, também lança mão da poesia. Os “Space Poems” da exposição, cartazes fixados de maneira aparentemente desconexa, convidam as pessoas a criar novas narrativas conforme são lidos e relidos com inúmeras possibilidades de sequências. Renée, que também é professora no MIT, apresenta uma visão que desafia fronteiras entre tempo e espaço, sugerindo até uma alteração na ordem do tempo, questionando e reinterpretando narrativas históricas de migração e exílio. Ao longo da exposição, como apontou Ricardo Kugelmas, essas obras não impõem significados específicos, mas incentivam o público a explorar suas percepções pessoais, ecoando o conceito filosófico de perceptos, como teorizado por Gilles Deleuze.
O conceito, desenvolvido junto com Félix Guattari, está relacionado à filosofia da arte e à maneira como a percepção é tratada nas obras artísticas, especialmente na literatura e nas artes visuais. Segundo Deleuze, o percepto não é apenas a percepção direta de algo, mas sim uma realidade sensível capturada pela arte e que existe além de uma simples percepção individual ou subjetiva. Diferente do conceito de percepção, que está ligada a um sujeito que percebe, o percepto está ligado à própria obra de arte que gera um bloco de sensações autônomo.Ou seja, o artista tem a capacidade de capturar e criar perceptos, que se tornam independentes do observador, sobrevivendo ao tempo, como blocos de afetos e sensações. Nesse sentido, o percepto é uma espécie de condensação de experiência sensível que a arte materializa, permitindo que os espectadores entrem em contato com um conjunto de sensações que existem por si mesmas, sem precisar ser reduzidas a uma interpretação pessoal.
Assim, o percepto está intrinsecamente relacionado à ideia de que a arte não representa o mundo, mas cria novos modos de sentir e experimentar a realidade — e isso, claro, respira com força em um espaço como o auroras.
“No início deste ano, Green passou duas semanas hospedada no auroras com o objetivo de refletir sobre o que apresentar em sua primeira exposição no Brasil. A arquitetura modernista do espaço a remeteu à exposição que fez na Schindler House (Los Angeles) em 2015, o que a levou a incluir trabalhos diretamente relacionados ao arquiteto austríaco Rudolf Schindler (1887-1953), pioneiro da arquitetura modernista que imigrou para os EUA por causa da guerra. Green traça essas relações entre os dois espaços e seus deslocamentos, explorando não apenas a estética, mas também a filosofia que atravessa sua arquitetura, favorecendo um diálogo orgânico entre ambos. Mas acredito que sua relação pessoal com o Brasil através do irmão Derrick Green, vocalista da banda Sepultura desde 1998, seja a mais importante influência na seleção de trabalhos.”
A própria presença da exposição em terras brasileiras suscita um sem-fim de interpretações. A relação de Renée com o país é única e bastante enraizada. Come Closer, um curta-metragem feito em 2008, aborda suas conexões com o mundo lusófono e sua experiência de vida em Portugal. Quando se adentra o auroras, os visitantes são imediatamente envolvidos por esse trabalho, que estabelece o tom da exposição, servindo como uma meditação sobre a distância e a conexão, e tecendo uma rede afetiva entre cidades como Lisboa, São Francisco e locais do Brasil. Com uma narração em português, a obra destaca a complexidade das relações entrelaçadas entre os povos e a história, refletindo a relação contínua de Green com o mundo lusófono.A artista examina os vestígios do colonialismo, promovendo diálogos entre o passado e o presente, oferecendo uma rica exploração de temas que envolvem a arquitetura e a diáspora.E essa relação com o mundo lusófono segue. No hall de entrada, Relações: Megahertz, Megastar, Brother, Brasil (2009) apresenta banners suspensos que traçam os fluxos da diáspora africana e suas influências na música e cultura popular brasileira. Este conjunto é acompanhado por um elemento escultórico, que apresenta um vídeo em um iPod, onde Green tenta “se aproximar” de seu irmão. A obra não só explora distâncias físicas, mas também as conexões emocionais e culturais que transcendem fronteiras.
No coração da mostra está o filme Begin Again, Begin Again (2015), que reflete sobre a vida e a morte ao longo de um intervalo de 128 anos, evocando o trabalho do arquiteto R.M. Schindler, como apontou Ricardo. A narrativa, marcada por afirmações numeradas, é interrompida por uma consciência que divaga sobre a estranheza da sobrevivência. No jardim do auroras, uma voz oculta sussurra sobre jardins desaparecidos, criando um ambiente contemplativo que ressoa com os temas de perda, memória e a busca por conexão. Tudo parece se complementar com uma harmonia que sussurra realidades intrincadas com suavidade e clareza.
“Apesar de incluir trabalhos das últimas três décadas, a exposição foi inteiramente pensada pela artista levando em consideração as especificidades da casa, e oferece ao público a oportunidade singular de navegar pela obra da artista de forma contextualizada. Você vai ver obras que falam de modernismo em uma casa modernista, ouvir uma obra sonora sobre o desaparecimento de jardins em um jardim tropical e ler um space poem que envolve os escritos de Borges dentro de uma biblioteca. Em última instância, o trabalho de Renée é sobre questões humanas, e ver essa exposição dentro de uma casa oferece uma perspectiva distinta, mais meditativa.”
Com esta exposição, além de apresentar sua obra a um público novo, Renée Green também estabelece um diálogo profundo com o contexto brasileiro, explorando questões de identidade, memória e as complexidades da diáspora. E, sendo o hóspede de um corpo de um trabalho assim, o auroras se torna um espaço de reflexão e descoberta, onde a visão da artista provoca uma reconsideração do passado e suas repercussões no presente e no futuro.
“Desde a sua fundação em 2016, o espaço trouxe diversas artistas internacionais que jamais haviam mostrado no Brasil, como Cecily Brown, Amy Sillman, Tom Burr, Sarah Crowner e Terry Winters”, conta Ricardo pensando justamente no que já foi e no que está por vir. “Para os próximos dois anos, estamos planejando a primeira mostra no Brasil da alemã Charline von Heyl e dos estadunidenses Jacqueline Humphries e Richard Aldrich, além de uma exposição do músico Arto Lindsay”, conclui, antecipando o que está por vir.
Aproxime-se: Perceptos Sábado, das 11h às 18h, até 30 Novembro — Avenida São Valério, 426, Morumbi. Gratuito
Família. Uma palavra que evoca imagens prontas — um homem, uma mulher, filhos e filhas. Mas o reducionismo desse conceito foi, e ainda é, danoso a muitas pessoas. Será que essa é a única forma de família que podemos imaginar? Há muito mais complexidade e possibilidades no desenvolvimento dos vínculos afetivos — identidades diversas, intimidades que fogem aos padrões, amizades tão fortes que formam laços familiares não-sanguíneos.
Queremos a expansão da expansão, a assimilação e o acolhimento de conceitos que abraçam e entendem mais. Família é plural, e o momento de fazer essa pluralidade valer é agora.
Temos o rosto velado, somos como uma personagem aos olhos dos outros. De quem poderemos saber profundamente, senão sobre nós próprios?
Lázaro, na Bíblia, é uma figura a cuja história temos pouco acesso, mas sabemos que é amigo de Jesus. Ele também que foi ressuscitado por Cristo, por lhe fazer muita falta. O que é curioso é que ele tenha ressuscitado antes de Jesus, Deus na terra, conforme a Bíblia. E que Cristo não tenha sido o único a reviver. A minha interpretação é que, ao ressuscitar Lázaro, essa metáfora pode simbolizar que também o ser humano tem direito à oportunidade de ter uma outra vida.
Intitularmos de amigos mais pessoas do que podemos contar nos dedos das nossas mãos é realmente estranho. Nossas confidentes, nossos conselheiros, o espelhamento de nós nos outros, elegê-los implica que haja a coincidência da troca entre duas pessoas, sejam elas muito parecidas ou extremamente distintas. Encontra-se na reciprocidade o conhecimento do outro. É também por isso que Lázaro ressuscita, talvez. Falamos de nutrir um amor.
Este é um estado de graça, mesmo que não seja definitivo, que podemos ter ou não ter em várias fases na vida. Na sua essência, é como os anjos, sem rosto e de corpo informe, como as entrelinhas das palavras inauditas, de valor incompreensível e igualmente indizível. Isto é o que me move como humano, o último lugar. Não é um troféu. Não tem verbo nem forma. Uma arte que não precisa de discurso.
É raso quando imagens dependem de palavras.
É fútil não entendermos no gesto dos outros o seu sentir.
Como furar uma ligação por uma falha de comunicação. Para evitar isso é necessária a disponibilidade de duas partes.
Em que se resolve e como, este texto?
Na palavra “escuta”.
Escutar para existir amor; escutar os outros e sermos amigos; a família enquanto pessoa que nos escuta.
A família é esse lugar confortável, de cores quentes, com uma aragem de voz quente; uma imagem de um padre que se senta num banco junto a uma lareira comunitária e sente que toda a cidade fria é aquecida ali, comovendo-se. Talvez tenha escutado a voz de Deus.
***
Na primeira vinda a São Paulo, encontrei uma mulher curiosa, a meu ver. Interessam-me pessoas que fogem de um padrão por não corresponderem a uma “categorização”. Ela também já viveu várias vidas. Estudou arquitetura e acabou sendo artista. É uma pessoa invulgar.
A Manuela, conhecida como Manu Costa Lima no contexto do seu trabalho artístico, tem algo que muita gente não encontrou ou nunca sentiu: fé. A diferença é que ela incorpora isso no seu trabalho. Posso falar de fé, mesmo ela sendo uma coisa pessoal, para poder escrever sobre o que a Manu transporta nesse acreditar.
A fé é uma escuta, também. O trabalho que a artista realiza, o ato de fazer, não se vê, como a fé, pois ela é uma intermediária que dá à luz as imagens. Fazendo, contudo, escolhas, sim. Num processo de omitir e revelar, encontro o que há de mais honesto no seu trabalho. E o painel Lázaro torna visível o que desconhecemos. Foi preciso ver para acreditar. As palavras que deixa da Bíblia são a segunda oportunidade de vida e leitura, numa imagem que, a priori, é modernista, mas com essas informações deixa de ser. Esses sacrários, as colagens lacradas, os selos de espírito, encontramo-nos com eles (onde?) senão na intimidade de escutarmos o seu silêncio.
Manu Costa Lima não é uma artista “utilitária”, pois isso sequer existe. Ela faz objetos sem querer ser a protagonista nessas esculturas, querendo manter a sua fé viva, como algo prioritário. Obrigado, Manu, pela partilha dos seus ícones, sem representatividade. O observador, se lhes tiver acesso, que faça a sua leitura. Mesmo que seja como se estivesse a ler a Bíblia pela primeira vez, numa segunda vida.
Folhinhas de calendários sempre me encantaram. Tanto como objeto, por sua pequena escala, que cabe na palma da mão, seu grampo metálico que reúne todas aquelas folhas de papel-jornal e seu caráter corriqueiro e popular, mas também por sua carga simbólica, pela maneira que nos permite realizar fisicamente a passagem do tempo no ato de destacar do todo, dia a dia, mais uma página.
Parti desse objeto porque desejava fazer um trabalho que falasse do tempo, mas, ao me deparar com seu conteúdo — eram folhinhas do Sagrado Coração de Jesus —, acabei enveredando por outro caminho. Feitas pela Ordem Franciscana, as folhinhas traziam, em cada página equivalente ao dia do ano, uma citação bíblica, uma frase de um santo, um escritor ou uma personalidade que marcou a história. Além disso, elas informavam a fase lunar, o início de cada estação e as hortaliças para se plantar ou colher, traziam anedotas, indicações de leitura, orações.
Esse apanhado de informações corriqueiras ao lado de coisas sagradas resume muito do que tenho produzido recentemente. Religiosa que sou, me sensibiliza muito a manifestação divina no ordinário. Busco, com muitos de meus trabalhos, apenas revelar ou enfatizar essa presença invisível.
As Folhinhas remetem aos ícones bizantinos. Com planos de cor recubro frases ou informações que me chamam a atenção. O dourado envolve o restante, como a luz divina nos ícones. Deixo, por vezes, apenas uma ou poucas palavras que dão pista do que está ali velado. A composição entre algumas dessas peças cria uma espécie de poema visual, em que forma e cor são pretextos para que, silenciosamente, adentremos essa dimensão sagrada no cotidiano.
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