#23EducaçãoEditorial

Editora convidada: Ligia Cortez

por Ligia Cortez

“Todas as artes contribuem para a maior de todas: a arte de viver.”
Bertolt Brecht

Tratar sobre o tema educação numa revista especializada em arte soa, à primeira vista, um pouco incomum, mas a proposta não poderia ser mais pertinente. Arte e educação estão mais próximas e organicamente mais relacionadas do que parece.

A atividade artística no período de formação possibilita à criança aprender a pensar sobre o mundo em que vive, sobre ela mesma, e a adquirir recursos críticos para atuar no futuro. A experiência artística traduz com palavras, sons, cores e música o que não precisa ser dito, e sim compartilhado. É a comunicação para o outro, o pensamento, a reflexão sob novos paradigmas – o que é, a meu ver, a essência da educação. Abre a possibilidade do indivíduo em formação se tornar responsável para com o outro e o lugar em que vive. A produção artística da criança passa a ser importante não só como realização pessoal, mas também como fonte de pensamento e resultados para uma sociedade. É com a experiência da arte que ela passa a ser respeitada pela sua capacidade própria de gerar e atuar. Porém, sentimos que a educação está cada vez mais distante da experiência e do pensamento crítico.

Existe um equívoco, cada vez mais valorizado na atualidade, segundo o qual educação é acúmulo de bagagem de informação. A quantidade de matérias e assuntos que um aluno recebe é o que servirá de parâmetro para avaliar uma boa ou má educação recebida. Todos os índices de avaliação, como rankings escolares, exames, vestibulares, caem em cima do resultado. Difícil estar preparado para a vida adulta sob tanta demanda de performance, de resultados, na fase de formação. As crianças passam a ser aceitas e valorizadas pelo que realizam, e não pelo que são e virão a ser.

Anthony Seldon, historiador político, um dos mais importantes pensadores contemporâneos sobre a educação na Inglaterra, propõe, entre várias outras ações, que as escolas voltem a oferecer aulas sobre Shakespeare e que os alunos também atuem nas peças assiduamente. Uma ideia ótima para qualquer indivíduo em formação. Assistir a peças e, principalmente, atuar nelas abre portas para a compreensão profunda da natureza humana. Shakespeare pode vir a ser uma grande ferramenta educativa, e a profundidade da experiência que as crianças teriam, também.

A proposta é importante, mas poderia se dar com qualquer outro exemplo artístico.

A educação deve ser pensada sob um conceito mais amplo. A responsabilidade de formar uma nova geração de indivíduos preparados para o novo século, para a ação em coletivo e em prol do crescimento da sociedade, parece menos presente do que poderíamos desejar. Um currículo que também contemple habilidades como criatividade, trabalho em equipe, empatia, resistência, perseverança, honestidade, seria o melhor dos mundos. Mas como isso se daria se não através da arte, dos conteúdos humanos, do sentido de existência, dos conteúdos simbólicos que ela proporciona?

A educação está inserida no campo da cultura. Binômio difícil de ser compreendido até pelos setores mais experientes. É impossível haver educação sem cultura e cultura sem educação. Existe uma inter-relação de organismos que conversam e se alimentam. A cultura ainda é vista como algo descartável ou de segundo plano, ainda mais quando se fala de um país em crise.

Nosso país tem dimensões continentais, com diversidade cultural riquíssima. A difusão, o fomento e o respeito pelas diferenças começam pela junção entre educação e cultura, com a riqueza de manifestações sendo, além de respeitada, também conhecida. Ainda a cultura é vista equivocadamente como algo erudito, sofisticado, de elite, ou então é ligada à diversão, frequentemente confundida com o entretenimento.

Em relação às ações públicas que têm sido feitas no Brasil, sem educação básica forte e abrangente será difícil termos um país desenvolvido no futuro, pois sabemos que a escola pública consegue alcançar metas bastante modestas de qualidade de ensino e que o cenário só tende a piorar. Se desejarmos uma melhora, no Brasil, será preciso um esforço coletivo. Muitas vezes penso como seria se tivéssemos a possibilidade de parar tudo e imaginar uma nova forma de educar. A tarefa não é fácil. Seria necessário reavaliar valores e resgatar um compromisso civil de todos nós.

Imagino o estado de espírito de animação e entusiasmo que se instaurou na Rússia quando, após a revolução civil, no começo do século, os organismos públicos responsáveis pela formação foram instados a repensar as formas de educar. Instaurou-se um departamento cultural que abrigava um setor de teatro voltado, prioritariamente, para a prática teatral com crianças. Momentos criativos como esse chegam muito perto do estímulo de origem da ação artística.

Hoje, quando pensamos em educação no Brasil, temos uma apatia, uma impotência, uma angústia. Afinal, como uma sociedade consegue colocar ações que de fato transformem? O melhor, então, talvez seja nem pensar sobre o assunto. Ir levando. E, com isso, toda uma geração de adolescentes é levada a estado de cisão. Genuinamente, todos os jovens querem agir, mudar, transformar. Há uma força de pensamento e ação que está sendo perdida.

Certamente, se pararmos para pensar sobre educação, teremos uma série de boas ideias que poderiam contribuir para uma melhora. A revista Amarello é um enorme sinal de que já contamos com ótimas iniciativas. Arte e educação sendo debatidas num espaço independente, ligado à realização artística, feito de um material tão criativo e sensível que, por si só, já é veículo de educação. A partir disso, o que mais poderíamos sonhar?

#18RomanceCulturaLiteratura

Beijo por beijo

por Vanessa Agricola

Era domingo, eu tinha tomado um pé na bunda, talvez eu fosse a pessoa mais triste do planeta naquela hora. Tentei ver uma série americana, não consegui, achei um cigarro no meio dos cardápios delivery. Ia pedir uma pizza. Melhor voltar a fumar.

É uma dor que nada adianta. Nada faz você achar que o mundo é menos que um cocô de pomba que caiu na sua cabeça. Lembrei do dia que ele chegou de madrugada, tive certeza que estava com outra. Estou cansado, ele disse.

Eu também estava. É exaustivo amar uma pessoa que não ama você de volta. E você fica tentando dar um jeito daquilo funcionar, mas não tem jeito. E não é culpa da pessoa. Ela não é a malvada e você a boazinha. Não era pra ser!, não é isso que diz o clichê?

Mas naquele domingo nada disso me ocorria. Nenhum amor meu vai dar certo. Nunca. Antes desse teve aquele outro, e aquele outro, estou fadada ao fracasso! Vou envelhecer sozinha, fumando, eu comigo aqui trancada nesse apartamento, igual uma música do Leandro e Leonardo.

Passei o resto desse ano odiando os homens. Em janeiro, conheci um coitado num bar do Itaim, ele me disse eu te amo em duas semanas, quase vomitei. Mas deixei rolar. Gostei tanto de ter de volta uma companhia pro cinema… o ser humano é egoísta. Deixei o coitado ter esperanças, fui dando corda, deixei o coitado me escrever coisas. Só parei o dia que ele escreveu um negócio muito triste, que eu estava distante, que eu não liguei da praia, que se ele tinha me feito alguma coisa, qualquer coisa… O que é que eu ia falar? Não é você, sou eu. Me perdoa.

Outro clichê da vida é o aqui se faz, aqui se paga. Um pouco depois do coitado, eu me apaixonei por um cara, ele era casado com uma chinesa. Estava numa pista de dança, me achando, quando esse sujeito me apareceu vestido de preto. Claro que ele não se apresentou dizendo, oi tudo bem, eu sou casado, mas quando eu já achava que ele era o amor da minha vida, em duas semanas, ele contou que tinha uma pessoa. Ela estava na China, ia chegar na sexta, ela morava com ele ainda e eles eram casados. Como é? Não, calma, deixa eu explicar. Ela não tem onde morar, eu não tenho como mandar ela embora, ela não tem grana, a gente nem se fala, porra!

Você acredita que eu comprei essa história? Passei quase um ano almoçando e jantando em restaurante de quinta, dormindo em motel. Quase um ano, até dar de cara com os dois numa festa, beijando na boca de língua…

Tem um filme brasileiro que eu adoro, chama Pequeno “Dicionário Amoroso”. Andrea Beltrão e Daniel Dantas são casados, daí eles se separam, o filme é sobre isso. Perder, recomeçar. Em uma cena, a personagem da Andrea Beltrão descreve o que está sentindo. “Parece que me arrancaram um braço”. É uma dor que nunca me esqueço.

Beijo por beijo, sonho por sonho, amores vão mas a verdade é que os braços voltam. Dali a pouco, atento aos seus próprios afazeres, sentado do outro lado da mesa, um outro amor nos fará companhia.

E ele não dá a mínima se estou aqui há horas sem lhe dirigir a palavra. Com fones de ouvido, cantarolando minha música sertaneja. Ele é o meu amor em paz. Meu amor que não me cobra. Não acabou ainda? Não vai jantar? É o meu amor que não faz meu coração saltar pra fora. Não liga se eu não atender o celular. Não me prega bronquinhas porque eu sou avoada. Não li a mensagem de texto, não sei se hoje é sábado ou domingo. É o meu amor que não acha que eu tenho que consertar os meus defeitos, não me pede pra eu ser diferente… É o meu amor de verdade.

Amarello: Nos conte um pouco do seu “background” e de como você se interessou por música.

Marcelo Jeneci: Me lembro bem de uma situação. Tinha cinco anos de idade e estava voltando do hospital no colo do meu pai. Eu assoviava uma música que tinha escutado uns dias antes, na ida pra lá. Me lembro muito de assoviar, e do meu pai ficar espantado, e falar da memória musical que eu tinha. Logo cedo ele percebeu essa vocação, e a partir daí começou a me incentivar a tocar um instrumento. Acho que, durante sua adolescência, ele guardou o desejo de ser músico. Existe a coisa dele realizar uma vontade própria em mim. Ele tocava violão em um boteco perto da casa dele, se não me engano, mas nada a sério. Isso tudo lá em Guaianazes, na COHAB Juscelino, no fundão da zona leste, e de lá pra cá são várias estações e vários pit-stops.

Está ligado diretamente ao seu pai?

Com certeza está, mas existe uma maneira minha de agarrar isso, ter a minha leitura e separar. Isso é meu, não dele. Tudo bem ele se alimentar disso, mas é um desdobramento. Como se ele fosse o artilheiro do time e me passasse a bola, deixasse comigo.

Como acontece seu processo de criação?

É bem desordenado e maneiro como acontece, nunca do mesmo jeito. Por exemplo, ontem estava falando com o (Luiz) Tatit, de uma música que eu havia mandado pra ele uns dias antes, e que gravei como a gente está gravando essa entrevista, voltando pra casa, dirigindo o Opala. Com os quatro vidros abertos, e o maior barulho, improvisei uma melodia, uma métrica de uma canção com começo, meio e fim. Mesmo com o barulho do carro (um Opala 1973), a inspiração veio. Sair cantando do nada é uma maneira de compor, sem nenhum instrumento. Componho bastante na farra também, com amigos queridos, pessoas que eu amo, me divertindo. Alguém pega o violão, e simplesmente compomos, sem pensar. Eu e o Arnaldo Antunes sempre marcamos de nos encontrar pra compor… E assim é com vários outros parceiros.

Você considera toda sua casa seu espaço de trabalho?

Trabalho na casa inteira. Na sala, na laje, no “chuveirão”, às vezes na cozinha. Quando a balada está acabando, sempre tem a hora da musiquinha, das madrugadas adentro, e lá no estúdio. Tenho certeza que, quanto mais relaxado, melhor você faz o que tem pra fazer.

De que maneira ela influencia seu trabalho?

Minha casa é um retrato da maneira que tento me expressar e da maneira que trabalho. Estamos na cidade de São Paulo, no alto da Lapa, e, daqui da sala, não dá pra ver nenhum prédio, não dá pra ver muitas casas. Tem árvores, plantas, palmeiras. É meio Piracaia, Piracainha, minha futura Piracaia! E isso foi uma escolha romântica. Escolher um lugarzinho que traga esse romance no escolher, no observar. Eu acho que é mais do que influência, está tudo diretamente ligado. Essas escolhas, de aproximações de belezas, de singelezas, são bem parecidas com o disco Feito pra acabar, que nasceu todo aqui.

Tudo nasceu nesse exato cantinho em que estamos. Toquei com Laura pela primeira vez aqui. O pai dela me recebeu muito bem, quando cheguei de Guaianazes, aos 19 anos. Ele foi um excelente cantor, multi-instrumentista. Tocava violão, pandeiro, cantava que nem o Chet Baker, essa linha de voz plena, raro de ouvir, sabe? Quando mudei para a Pompéia, comecei a conviver com ele, ensaiando um show em homenagem ao Baker, e ele me apresentou São Paulo toda. Aí Ariano descobriu que estava doente, passou dois anos se cuidando e faleceu no dia do aniversário dele, dia 6 de abril, um dia antes do meu. Depois de um tempo, Laura apareceu cantando em sua homenagem. Eu não sabia que ela cantava. Eu a via na casa dele, quando ia ensaiar lá, muito jovem, com calça de moletom. Ela cantou com os óculos que ele usava. Ela é muito parecida com ele fisicamente, o rosto. O timbre, inclusive, acho que também veio do desenho do nariz, do crânio, isso tudo influencia muito a voz. E ela cantou “Across the universe”. Nessa época, eu tocava com o Cidadão Instigado, e ela era muito fã do Rodrigo Amarante, que ia participar do show. Ela pediu pra mãe dela entrar em contato comigo, pra levá-la no camarim, na passagem de som, pra conhecê-lo. Foi quando eu a chamei pra passar uma tarde aqui em casa, isso foi em 2006. Nesse dia falei “poxa, em vez de seguir com músicas que já existem, vamos compor um negócio nosso!”. A primeira que compus para ela cantar foi “Amado”, e o álbum nasceu. A mãe dela, ao descobrir que ela havia passado a tarde aqui, me escreveu, dizendo que passou a adolescência nessa casa, pois era amiga das donas. Tudo tem romance, existe uma opção de olhar por esse lado real e belo! Eu dou mais foco nele. Combina com esse lugar.

Acha que existe algum trabalho seu, ou projeto, no qual você se sinta mais realizado?

Gosto muito de uma música da gravação do DVD do Arnaldo Antunes, chamada “Luzes”, do Paulo Leminski. Eu toco sanfona, o Betão toca violão, e o Arnaldo canta. Além do DVD ser lindo esteticamente, todo preto e branco, com uma luz expressionista bem forte, de baixo pra cima, gosto dele porque foi num momento um pouco antes de começar a labuta da carreira solo. Um momento em que estava ali transbordando, querendo mudar de posição, sabe? Toda vez que eu vejo e ouço essa gravação sou levado a esse momento. O momento do Big Bang. Foi a mudança de instrumentista para compositor. Como se as notas já não dessem mais conta, quando comecei a desejar “Vou gravar um disco”.

Quem você citaria como maiores fontes de inspiração?

As pessoas verdadeiras. Percepções da vida e maneiras de lidar com ela, com isso, com aquilo, algumas com mais dificuldade, outras com menos. Também tenho uns artistas que, estética e artisticamente, são meus pilares. Mas vêm depois das pessoas verdadeiras. Kevin Parker, do Tame Impala, por exemplo. Ele tem uma coisa de dominar harmonicamente o instrumento, que tem a ver com Toninho Horta. Gosto muito também do Clube da Esquina. Eles têm uma junção muito boa de melodias lúdicas com movimentos femininos e letras com aquela voz de sereia do Milton, que faz ainda mais sentido quando você está naquele trajeto doido de Minas Gerais. Musicalmente, eu olho mais pra essa órbita do que para aquelas que têm o discurso filosófico mais importante. Erasmo Carlos, Arnaldo Antunes, Wisnik. Acho bonita a maneira que Vanessa da Mata leva sua carreira; cada vez com mais perfeição ao lapidar um disco pop. Muito segura, bonito de ver. E é claro, meus amigos que tocam comigo: Régis Damaceno, João, Prado, Riff, DeLauro.

O que você gostaria de fazer que você não fez?

Tenho muita vontade de fazer uma trilha pra cinema, com um orçamento legal (risos), e gravar um disco de música pra pista, um disco totalmente Disco, com uns refrãos bons. Vivo fazendo isso, já tenho todas, só falta encarar, e encontrar um parceiro pra fazer uma batida legal.

Na canção “Alento”, você fala de encontrar aconchego em suas próprias memórias e pensamentos. É possível falar de romance sem ser “para alguém” ou “de alguém”?

Acho que sim, se falarmos mais das relações verdadeiras que temos, com tudo que não sejam os homens. Com as flores, é um bom exemplo. Falar de conexão, de elo, de beleza. Acho que incentiva a gente a olhar isso ao nosso redor. A indústria televisiva optou por focar somente as brutalidades da humanidade, e não no que estamos falando aqui, sensibilidade, profundidade, respeito, admiração. Tudo é somente focando justamente onde o ser humano deu “chabu”, e isso é chato, torna o viver mais pesaroso.

O que é um final feliz?

É ter vivido com intensidade todas as etapas da vida: infância, adolescência, fase adulta, ser pai, avô. E aí sim, vou estar satisfeito, proto para a próxima viagem, quero saber qual vai ser a próxima fase. É assim que eu vou tentar fazer!

Seu trabalho tem um tom leve e livre, você acha que é possível falar de amor e de liberdade?

Sim. Fiz uma música que se chama “Gravitacional” e que fala justamente sobre isso. Fiquei muito feliz quando Elba Ramalho, uma pessoa muito bonita, me pediu uma música nova e eu dei pra ela. Ficou linda na voz dela. (Marcelo toca a música):

A saudade tá batendo muito forte
Nem parece que eu te vi antes de ontem
Você foi e me deixou o mundo inteiro
Mas agora o meu mundo é um cinzeiro

Que gira em torno de um sistema solar
Tal qual a terra com o sol e o luar
Assim sou eu com essa mão no meu isqueiro
Com a outra no cinzeiro eu faço o mundo flutuar

Com o meu pulmão respiro o ar celestial
Com pés no chão me sinto gravitacional
Na solidão procuro a minha outra metade
Que apesar da gravidade pode ouvir o meu sinal

Pois o universo é como um homem abandonado
Estrelas cadentes são e-mails e recados
Que vão correndo para dizer a quem já foi
Que a liberdade é boa e pode ser vivida a dois
Que a liberdade é boa e pode ser vivida a dois
Que a liberdade é boa e pode ser vivida a dois

Quando se fala de amor, se fala em liberdade no final das contas. É assim que eu tento amar. Amar a outra pessoa dentro da existência dela, do espaço que ela precisa ter pra lidar com a sua missão. Apertar de um lado, afrouxar de outro, liberdade para mim é isso.

No clipe “O Melhor da Vida”, você coloca dois bailarinos, que parecem mais estar em um duelo que em uma dança. Mas sua outra canção de sucesso tem ritmo de valsa. Seria o amor esse duelo ou uma valsa? Em qual dos ritmos o amor te parece durar mais?

Duelo! Com certeza, duelo! (Risos) Valsa enjoa! Duelo é atrito, fricção, é o que está no antes do antes de qualquer coisa que existe. Daí que surgiu a primeira célula. Tentamos representar no clipe a salvação da relação! Queria que fosse uma briga, porque penso que devemos partir em busca da distância perfeita, já que se vive junto. Acho mais interessante pensar em distância do que em proximidade como frequência perfeita entre um casal ou mais pessoas. A distância perfeita é o que equilibra, ela dá o espaço e a liberdade que precisa haver dentro do cometa que você é! Ela é como um café perfeito, não é forte nem fraco – uma delícia.

O que há de diferente entre o primeiro e o segundo disco?

A minha saída plena na hora de encontrar o caminho para o segundo disco foi entender que precisaria me aproximar da minha verdade, dizer o quer estava sendo vivido. No período entre os dois discos, muitas mudanças aconteceram na minha vida. Eu era casado, me separei, fiz 30 anos, e parei de me preservar tanto, dizer mais sim e experimentar o que achava que me convinha! Mais ou menos como uma planta que precisa quebrar o seu vaso para crescer do seu próprio jeito! Eu ainda não tinha vivido esse momento. Saí de casa novo, sempre tive uma mãe amorosa, e já conheci uma namorada. Tive sempre uma proximidade maternal, e de repente tudo isso precisou se quebrar: chega! Foda-se! Deixa eu ficar aqui sozinho!

Isso me colocou em um outro lugar, para que tivesse um ponto de vista mais amplo das coisas. Essa é a maior diferença entre um disco e outro. Tudo que diz respeito às sensações, aos prazeres, à esfera sexual, às relações, às amizades – viver a vida e tentar ficar mais presente no presente. Assim surgiu o segundo disco, cujo nome veio de uma frase que eu escutei do Curumin: o melhor da vida é de graça.

Vale a pena largar tudo e casar domingo, se a vida tem muitas segundas-feiras também?

Acho que vale. Botar o volume no máximo da intensidade das coisas que a gente consegue viver. É dizer: vamos no máximo que dá pra ir no que a gente está sentindo, nesse namoro, nesse romance. Mas é justamente por causa da segunda-feira que a gente tem que entender que a vida é aqui e agora. Que todo dia tem uma coisa nova e temos que aprender a lidar com isso, negociar. É aí que está a graça de viver pra mim. E, nessa correnteza, não tentar levar muita coisa contigo. As coisas vão dando certo.

O que mudou na sua visão de amor? De mais jovem a hoje?

No começo da adolescência a gente acha que amar é contar para o outro tudo da sua vida. Existe esse exagero. Mas quando crescemos, entendemos que amar não tem nada a ver com isso e, sim, com saber a distância perfeita, com oferecer o espaço que a pessoa precisa para ser inteira e verdadeira sempre.

#18RomanceCulturaLiteratura

A ignição e o motor

por Thiago Blumenthal

Na tradição judaica, a Torá sugere o primórdio, a gênese, a fonte fundamental. A Torá vem antes da figura do deus abraâmico, e sem ela nada existiria, nem mesmo o grande protagonista de toda a Criação e testemunha das nossas mais corriqueiras intrigas e paixões. Sem a Torá, Deus não existiria – ainda que o livro mais sagrado dos judeus a Ele esteja condicionado. Desrespeitar a Torá, como objeto de culto e adoração infinitos, revela-se muitíssimo mais grave do que afirmar o ateísmo, por exemplo. A Torá a Deus precede.

Penso em uma associação muito parecida quando me debruço sobre o tema do romance, assunto privilegiado por esta edição de Amarello. Popularmente, e muito corretamente, o termo está ligado a certa concepção de amor, de amor romântico, de uma aventura sentimental guiada pelo coração. Estaríamos todos destinados a buscar romances em nossas vidas? É o romance que traz um pouco de sentido a uma existência sem muitas respostas e sem muitas motivações? Ou seria o amor, esta instituição tão celebrada dentre todos os sentimentos humanos, o grande motor para algum sentido? Penso que o romance precede o amor.

Somos matéria feita de memória e de romance, já nos dirão os grandes escritores românticos em todos os tempos. E nossa memória acaba por revelar que muitos dos amores aos quais nos apegamos partiram essencialmente de algo anterior, de uma subcamada sentimental que liga os pontos entre o coração e a mente, e que gosto de chamar de romance. Criamos uma fantasia amorosa, uma intriga com repentes bruscos, e nos envolvemos, tudo isso muito antes do amor. Leva-se um tempo para dizer “eu te amo” porque aguardamos o trânsito, os destinos e os desdobramentos dessa narrativa para então abrir o coração e nele inserir esta que é uma das frases mais universais de toda a história. Como a ignição ao motor.

Não se trata de diminuir o sentimento, de rebaixá-lo a uma subcategoria presa a lógicas próprias da ficção que criamos de nossos cotidianos e de nossos estímulos. Vivenciar, ou tentar, uma narrativa não compromete o amor que dela resulta; ao contrário, penso que o romance reverbera o amor. Uma boa história, um romance, costuma criar os amores mais apaixonados ou os mais cinematográficos.

Se tomarmos o conceito mais próximo do literário, ou aristotélico, o romance é uma obra geralmente em prosa que se destaca pelo tipo de abordagem eleita pela narração: enquanto a poesia se demarca pelo subjetivo e pelo eu, em versos que se dirigem sem intermediário a um leitor ou a um determinado objeto de sua paixão, a prosa pressupõe um narrar com maior mediação entre todos os elementos da história: eu conto algo a você, te mostro onde aquilo se passa, em que tempo, quem são as personagens que vão viver comigo (ou sem mim) aquela história, que não necessariamente será de amor. Uma história ou um romance não precisa ser de amor, embora em quase tudo já escrito ele esteja ali presente – o que se varia é a maneira como se olha para este amor. Diferentemente também do gênero dramático, em que os diálogos são reproduzidos para a posterior representação de atores em um palco, o romance não precisa se prestar à representação. Tudo nele basta.

Ao longo da história, o termo já foi moldado ao sabor das épocas e das escritas. O romance já foi uma língua, já foi até mesmo uma forma peculiar de versos épicos; hoje chamamos de romance o que James Joyce apresenta em Ulysses ou o que Machado de Assis relata nas páginas de Dom Casmurro. No entanto, se voltarmos à origem do termo, é possível estabelecer associações interessantes com seu significado mais moderno. Começa a ser usado entre os séculos XIV e XV, do francês antigo, romancier/romanz, e estava ligado à ideia de “traduzir uma narrativa para o francês”. Para nossa surpresa, tinha o valor sintático de um advérbio! Essas narrativas medievais figuravam, em geral, guerreiros e heróis em suas aventuras épicas.

Mas foi do latim romanus, para designar tudo o que vem de Roma, a partir de 1300, que todas as suas adjetivações e acepções surgiram. Traduzir o que vinha de Roma para o francês, em romancier/romanz, adquiria um papel importante na narrativa daquele período da história, em que o tom aventuresco dos antigos relatos romanos precisava se desprender um pouco de seu estrato latino e ganhar uma cara mais “moderna”, por assim dizer, francesa. Fato é que, desde sua origem, o termo tem intensa ligação com um contar de história, como processo criador de universos, de intrigas, de aventuras, de amores.

O romance tem seu ápice com Balzac, na mesma França, que é quem determina basicamente tudo o que será e continua a ser escrito até os nossos dias. Balzac foi o grande mestre do romance universal e não me parece exagerado associá-lo a uma tradição do romance também no sentido em que trato na introdução deste texto: os amores de Balzac lidam com essas intermitências da narrativa que, para existirem, precisam deste grande narrador que, ao colocar dois personagens juntos, revira o cenário, do íntimo, até o social e parisiense, para fazer surgir algo que se compreende como amor. E não seríamos nós frutos de uma influência abstrata e invisível de uma comédia humana? Somos, ainda, um retrato balzaquiano em nossas relações. Como um Lucien de Rubempré atrás de suas glórias, seus amores e suas ilusões.

#18RomanceCulturaLiteratura

Um apontamento de identidades

por Arthur Telló

“Madame Bovary sou eu”, assim respondeu Gustave Flaubert ao processo movido contra ele por obscenidade, atentado à moral e conivência com o adultério após o lançamento do seu célebre romance. Se pensarmos, no entanto, na figura do escritor como um reflexo da sociedade burguesa da qual participava, Madame Bovary era também a imagem de todo francês daquele tempo, fruto dos seus costumes, instituições e da sua educação; e são tanto quem era esse francês quanto como ele foi retratado dentro da obra as perguntas que tal frase nos enseja.

Antes de entrarmos propriamente em tais questões, mas já entrando nelas de forma oblíqua, cabe-nos fazer um recuo ao horizonte de expectativas romanescas e estéticas que figuravam na época do lançamento do livro. Naquele tempo, a experiência de leitura dos futuros leitores de Flaubert era dada pelos romances de Stendhal e de Balzac, nos quais os protagonistas, em geral vindos do meio rural, deparavam-se, cheios de sonhos e de vontades pungentes, com o grande cenário de Paris, com o clima de boemia, com os teatros e as tentações da metrópole em meio ao turbilhão da Revolução Francesa e do período napoleônico. Personagens de modo algum vulgares, destinados a enfrentar os limites impostos pela ordem social vigente num clima de euforia e de crença nas capacidades e liberdades do indivíduo, educavam as mentes e os corações dos franceses até a inversão cáustica proporcionada pelo romance flaubertiano: em vez das luzes e dos cafés de Paris, os personagens de Madame Bovary nascem, pertencem e vivem no mundo rural, provinciano – sem grandes chances de moverem-se dali.

A ação é ambientada num lugarejo de nome Yonville, cujo centro urbano mais próximo é a cidade de Ruen, uma espécie de Paris de segunda ordem nas palavras do crítico Samuel Titan Jr. Em vez dos tempos conturbados da revolução, o autor nos situa no tempo pós-revolucionário, conhecido como a Monarquia de Julho, um hiato entre dois Napoleões, época do reino de Luís Felipe, da crescente fé na revolução industrial e da consolidação do bem-estar burguês, na qual as pessoas não se dão mais o luxo de serem excêntricas, mas se movem de acordo com o interesse, o lucro, o desejo material e o esclarecimento científico baldio de alguns se contrapondo à fé dogmática de outros; e, principalmente, em vez de heróis, somos apresentados à gente inepta para as tramas românticas de então, incapazes de triunfar no mundo como ele é, quer pela falta de talento, quer pela falta de uma vontade legítima, seja pela mediocridade provinciana, seja pelos ares campestres que reproduzem. Desse modo, o autor parodia, tomando como modelo e rebaixando, toda a produção literária precedente e, indo além desses pontos, inova o que vinha sendo produzido ao procurar o emprego da palavra exata, o realce do detalhe, o alto grau de percepção visual, a compostura não sentimental sem comentários supérfluos, a verdade mesmo que sórdida, a neutralidade ao julgar o bem e o mal. O narrador desaparece em prol da matéria narrativa, dos personagens que, quase independentes de seu autor, por meio do confronto de caracteres e vontades, deverão ser responsáveis por guiarem seus destinos até o fim de suas tramas. Nas palavras de Flaubert, “um autor deve ser como Deus no Universo, presente em toda parte e visível em parte alguma”.

Tais considerações contribuem para nossa resposta, que, não obstante, deve levar em conta a impotência feminina retratada no livro, contra a qual a protagonista se revolta a ponto de desejar na gravidez que seu filho nascesse varão. Sendo, porém, o realismo como uma nódoa de sujeira numa calça branca, Emma dá à luz uma menina, que, ao final do romance, será largada ao acaso do mundo e a parentes distantes, tendo de trabalhar numa fábrica de tecelagem para suprir suas necessidades. Na França de 1827-1846 – tempo cronológico da obra –, somente os homens tinham o poder de guiarem suas vidas no bem e no mal, de terem acesso à riqueza e à propriedade. As únicas alternativas de Emma para satisfazer suas aspirações, portanto, ou se darão por meio do sucesso profissional de seu marido Charles, que poderia levar o casal a um novo degrau da estratificação social, o que não se torna possível devido à incompetência dele em todas as esferas, ou recorrendo ao seu corpo como moeda de troca, utilizando-se do fascínio que despertava nos demais. Assim, o adultério da heroína é a sua maneira de ter algum controle sobre o próprio destino, possibilitando seu empoderamento sobre os amantes, resultando no seu endividamento e consequente suicídio.

Fruto de uma educação sentimental em um convento, de natureza idealista, numa espécie de paródia quixotesca, cuja insatisfação crescente com a realidade a leva a cada vez maiores exageros, Emma Bovary revolta-se contra as convenções de sua classe. Ela é o contraponto entre os ideais românticos e a realidade asfixiante de seu meio, de modo que, ao assumir a responsabilidade por seus atos, é esmagada pelas dívidas e pela desilusão em relação ao amor pobre que seus amantes lhe votavam; seu charme lhe serviu ainda uma última vez para convencer Justin, ajudante do farmacêutico Homais, a lhe permitir a entrada no aposento onde este guardava arsênico. De todos os ângulos em que se a olha, a punição da personagem feminina, que ousou alimentar uma força maior que a de seus pares masculinos, é a morte: o recurso ao suicídio, que, no lugar do sono tranquilo da promessa de felicidade romântica, vem carregado de dores, de vômitos e de sangue, de uma tortura que dura muito tempo.

A resposta de Flaubert sobre a identidade de sua protagonista em nada nos alenta em relação a quem era o francês seu contemporâneo. Enquanto Emma revoltava-se, a vida burguesa seguia sem grandes sobressaltos. Os demais personagens da obra se esvanecem se comparados a ela. Contudo, é a mediocridade deles que triunfa: a sua falta de gosto, as suas ambições em matéria de conhecimento e crença numa tecnologia de que não entendem. Charles é um homem vulgar, ordinário, que não logrou ser médico, mas um simples oficial sanitário; o farmacêutico Homais é o pretenso homem de ciência; partidário dos ideais positivistas e crente no progresso, sua linguagem é recheada de lugares comuns de desprezo à Igreja e à burguesia (da qual faz parte), fala de tudo e de todos, escreve à imprensa, faz alarde de sua presença, mas é limitado e cego aos próprios defeitos, sonha com glórias como a Legião da Honra, a qual, por fim, consegue; Monsieur Lhereux é um mercador manipulador que, por meio de algumas alusões aos casos de Emma, convence-a a consumir e a renovar suas dívidas até desesperá-la e impeli-la ao suicídio; os dois amantes da protagonista são ambos superficiais: Rodolphe Boulanger é um típico conquistador, homem de certa nobreza e de certo saber, que, sentindo-se atraído superficialmente pela heroína, a enquadra num estereótipo de mulher ingênua e seduzível, perdendo o interesse por ela, por não ser capaz de corresponder à intensidade de seus sentimentos, ao passo que Léon Dupuis compartilha as ideias românticas da amante, juntamente ao seu desprezo à vida comum; mas, ainda que fosse educado em Paris, se mostrasse corajoso em confronto com a gente de Ruen, se amedrontaria em frente a qualquer moça de família parisiense; no início de seu caso, o casal ama-se com toda a vontade de seus corações, porém o escrevente também não é capaz de manter a reciprocidade dos ímpetos de Emma, sentindo-se a parte fraca da relação. Quem seria enfim a Madame, ou, melhor dizendo, os franceses a quem ela apontou o dedo na cara?

Fracos, manipuladores e vulgares são os homens sob o crivo da pena de Flaubert. Embora sejam eles que detenham a capacidade de movimentar-se livremente na sociedade, todos se tornam presenças e caracteres mais fracos que a protagonista, cujo destino, uma ironia do autor à sociedade da época, prefere a morte dolorosa ao convívio com eles.

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A crise dos sete anos

por Facundo Guerra

Tenho uma teoria íntima: as redes sociais transformaram profundamente a maneira como nos relacionamos, obviamente, mas essa transformação foi tão aguda que mudou a nossa relação com os espaços que costumamos ocupar. Me explicarei: sou um construtor de palcos. Espaços de convivência, pequenos aquários que servem de cenário para os dramas humanos acontecerem. Talvez esta seja a maior recompensa do meu trabalho: saber que pulsões de vida e morte são sustentadas pelo contexto que criei. Quantos bebês nasceram porque seus pais se conheceram em um dos meus lugares, e quantas vidas abreviadas tragicamente atrás de um volante depois de uma noitada. Não existe o morno: as intensidades estão todas ali.

Enfim, os clubes, ou a nova denominação deles, as “baladas” (termo abominável), nasceram sociais, espaços que aglutinavam em seu eixo pessoas com interesses em comum. Não farei uma genealogia dos clubes, basta dizer que, a partir da década de 1970 e, de maneira mais contundente, da de 1990, a música, não o espaço, passou a ser o eixo que enfeixava as pessoas: a música em si era a expressão de certa estética de existência, de uma maneira de ver o mundo e, nesse sentido, um importante vetor de cultura. Os iguais se encontravam na pista para ouvir um determinado DJ, e sair ou não acompanhado era um detalhe, sendo comum você sair sozinho e encontrar os seus na pista. Afinal, era pra isso que ela também existia: além de servir de um momento de escapismo, para afirmar determinadas maneiras de viver.

Esta maneira de afirmar sua existência exigia um segredo: ao descobrir um espaço, você o comunicava somente aos mais íntimos, àqueles que compartilhavam contigo a sua maneira de existir: quantas vezes lugares descobertos eram passados de boca a orelha, mão em concha, como segredos, seguido de um “não espalha”? Porque este lugar, pobre do dono, não era para todos: era para nós, para nós existirmos, para nós expressarmos nossa maneira muito peculiar de vivência. Forasteiros não eram bem-vindos: eles permitiam que o véu de sonho fosse rompido pelo mundo que a porta que dava pra rua ajudava a conter. A imagem clássica dos filmes de western vem à cabeça: os olhares todos dirigidos como balas contra aquele que irrompia pela porta do saloon sem ser convidado.

O segredo, quando passado adiante, criava um laço de gratidão. Fazia do doador um generoso, e criava no receptor uma nova responsabilidade, a de compartilhar dele apenas com aqueles que eram como nós. Ali se criava um pacto: esse é o lugar onde existiremos ora em diante. Isso fazia com que o lugar fosse ocupado apenas por alguns, sequestrado para a formação de identidades. Não era apenas ou tão somente um negócio, era um palco para determinadores atores sociais se apresentarem.

Mas tudo isso mudou em 2007, ou um pouco antes disso: passamos a operar as redes sociais como manifestos de existência: eu curto, logo existo. Manifestar através das redes sociais suas predileções, sejam elas as obras que te agradavam ou os lugares que você frequentava, era tão ou mais importante que frequentar ou fruir estas mesmas obras ou espaços. Curtir, termo tão anacrônico, passa a representar existir.

Daí que espaços que antes, por conta do segredo, tardavam meses para encher e se transformar em economicamente viáveis passaram a virar hits da noite para o dia. Não existia mais o segredo: um post de Instagram, um check-in de Foursquare ou Facebook, ou um tweet que compartilhasse o segredo de maneira exponencial faziam com que seus seguidores soubessem do mesmo e urgissem para compartilhar com seus seguidores o lugar que exprimia sua maneira de existir, e assim sucessivamente, em cadeia.

Fruir o espaço é uma preocupação de segunda ordem: primeiro se coleciona o registro amplificado pelas redes sociais para depois se pensar o que fazer com o lugar. Colecionar estes registros e usá-los como dardos contra os seus seguidores, algo como um “estou aqui, me inveje”, é uma obsessão no confessionário de existências em que se transformaram as redes. O que era impensável, quase apocalíptico há dez anos, o uso de coleiras eletrônicas que nos localizariam no tempo e no espaço, como vaticinou Deleuze em seu Sociedade de controle, hoje fazemos de bom grado.

Os espaços são descartáveis, reclamamos continuamente da falta do novo, da falta de um lugar para encontrar os nossos. Esta íntima relação entre o espaço e sua identidade nas redes sociais criou novos problemas para os mesmos, doces e amargos. Doces porque não é mais necessário esperar para um bom projeto se tornar economicamente viável, uma vez que ele encherá em tempo recorde. Amargos porque será rapidamente descartado, depois da massa confessar que ali esteve. Talvez seja o início de uma era de espaços temporários, fugidios, voláteis e transitórios, tão fugazes quanto suas curtidas.

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Minha vida é uma novela

por Hermés Galvão

Subestimemos de tudo um pouco da nossa quase nada pop cultura, mas jamais sejamos injustos com as nossas novelas. Esqueçamos de ontem em diante e voltemos no tempo para lembrar de como éramos felizes, e sabíamos, diante da televisão de tubo sem controle remoto. Não cometamos a injustiça de desonrar o passado de glórias do nosso mainstream áudio e visual, tão longe da ficção de hoje, tão distante da produção pós TV aberta que, urgente, devia fechar para balanço e olhar para trás – pois o amanhã é mais duvidoso do que nunca para quem não soube se reinventar. No país onde só tem valido a pena ver de novo tudo que é velho, e o nosso velho era moderno demais para a época, é bom lembrar que era uma vez uma história com roteiro original e enredo sempre magistral: qualquer tema discutido, elenco escalado, tarde da noite ou censura prévia, não havia razão, enterro de ente querido ou discussão com vizinho ou paquera de ocasião que nos fizesse perder um capítulo de novela. Seja ela qual fosse.

A vida e o mundo lá fora passavam na TV e a gente acompanhava, as modas e as manias, os romances que começavam como um beijo técnico e terminavam nas revistas semanais com histórias reais baseadas em fatos surreais – e nem havia foto de paparazzi para ilustrar o fato, o que deixava a história, pelo menos suas nuances, ainda mais colorida pela nossa imaginação. Ficção e realidade caminhavam lado a lado em tênue diferença, quase imperceptível de tão fiel ao fato – e era, aliás sempre foi, preciso dizer que “esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”. Mas era tudo tão verossímil, mesmo quando tudo que se queria no folhetim era morar em outro lugar ou imaginar um país menos irreal que o original.

Misturavam-se a literatura e a mitologia, folclore, fantasia, essa era a receita de sucesso mesmo quando o enredo era um fracasso. Fazia parte do show dar errado, e mesmo assim muito mais da metade do país não mudava o canal. A morte assistida era parte do show e acompanhar uma novela, por pior que fosse, era um pacto de sangue inquebrável. Afinal, faltaria assunto àqueles que não soubessem o paradeiro, o assassino, o suspeito, o amante. Amávamos e odiávamos por inteiro cada capítulo, éramos tão noveleiros quanto os franceses são cinéfilos. Nosso orgulho nacional tinha nível internacional; fomos vistos da China a Portugal, dublados e legendados, traduzidos, adorados. Criamos para sempre personagens que foram morar no eterno; foram-se os cenários, viraram eles lembranças que vagueiam na memória e no inconsciente: tornaram-se todos eles os heróis, vilões e mocinhos que mal tivemos nos livros e no cinema feito em casa.

Formamos nossa identidade cultural na televisão, aprendemos um pio de inglês ao cantar as canções dedicadas a eles, aos pares românticos e aos amores impossíveis. Desenvolvemos através deles a capacidade de imaginar como seria o futuro, mesmo que a curtíssimo prazo. E aquele “a seguir cenas do próximo capítulo” era a deixa para desenharmos a sós, antes de dormir, como seria o dia seguinte na vida paralela que vivíamos ali, diante da pequena tela, quando todo o real à volta perdia a importância e a cor. A imagem e as palavras, a cidade fictícia, o galã e a namoradinha, o Brasil de verdade num faz de conta seriado que partia corações quando o FIM estava próximo. E, logo após a cena final, cabia a nós juntarmos todos os pedaços, as tramas e os dramas para formar uma única história antes de arquivá-la para, então, recomeçar tudo na segunda-feira seguinte, no primeiro capítulo de uma nova história, quando esperanças davam lugar às lembranças. Novas trilhas, novos personagens, novos cenários – para ninguém dizer que a vida não passa na TV.

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Call it magic, call it true

por Helena Cunha Di Ciero

Will you let me romanticize,
The beauty in our London Skies,
You know the sunlight always shines,
Behind the clouds of London Skies.

Jamie Cullum

Uma amiga foi na cartomante pedindo a volta do seu amado: “Come o nome dele durante sete dias”, disse a senhora. A jovem apaixonada, formada, madura e bem resolvida, saiu de lá decidida: passou uma semana engolindo um papel com o nome do moço, em jejum. Levantava da cama e, numa folha, escrevia até o sobrenome do eleito. Sim, ele voltou depois de um tempo.

Tem algo de triste e de bonito nessa cena de mulher apaixonada que suplica para um amor não partir. Podia ser eu, uma prima, uma vizinha. Onde há amor, há romance e magia. Toda mulher, em algum momento da vida, se torna menos princesa, mais bruxa em defesa do território do encantamento. Qualquer loucura é justificável para a preservação do sonho. Chico Buarque canta lindamente a cena da mulher abandonada: “dei para maldizer o nosso lar, para sujar seu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço, te adorando pelo avesso… para mostrar que ainda sou tua”. Mesmo Shakespeare se curvou dizendo que, entre o céu e a terra, não existe fúria maior que a da mulher rejeitada. E a velha Medeia é a precursora desse movimento.

“Malévola” é um filme revolucionário: a fada que se vinga do homem que corta suas asas com ferro quente em troca do poder de outro reino. (Será que há imagem mais rica do que essa para falar de amor? Se esse é o sentimento que rouba nossa liberdade e entrega de bandeja ao outro? Dizem que o primeiro amor é educativo, nunca nos entregamos novamente com a mesma força e ingenuidade da primeira vez.)

Desiludida pela traição de seu amado, a personagem transforma-se numa bruxa poderosa e vingativa. E lança seu feitiço para a filha do homem que a trocou por outro reino. A bruxa, porém, observando a Bela princesa crescer, vai entrando em contato novamente com outro amor, o materno – e sua ira vai sendo suavizada.

Perfeição politicamente correta falta à Malévola para ser a protagonista de um conto de fadas, mas sobra humanidade – o que a torna apaixonante para o espectador, que perdoa e compreende suas charmosas travessuras de “bruxa má”, e, solidário, identifica-se com ela. Afinal, ridículo é quem nunca escreveu uma carta de amor.

Me pergunto se a Bela Adormecida não representa essas mulheres que passam a vida inteira aprisionadas num sonho de ideal romântico esperando que alguém generosamente as desperte. Um amor como solução de todos os problemas, como a causa de um despertar. Mas, no filme, o único amor passível de despertar a Bela Adormecida seria o materno. Esse, sim, teria a condição da eternidade. O resto são só promessas.

Sou de uma geração que cultuava a perfeição das princesas: Cinderela vitimizada, a alva pele de Branca de Neve e sua pureza. Tudo muito cindido, o bem contra o mal, bruxas contra príncipes, a Bela e a Fera. Confesso que fico esperançosa pelos novos ventos que se apresentam, quando um dos maiores livros de sucesso infantil, atualmente, tem como título: Até as princesas soltam pum. Tomara que minha filha (se eu tiver uma) não viva em busca de ser perfeita e à espera de um príncipe encantado e sem sal. Talvez essa próxima geração escape dessa ilusão do amor perfeito. Talvez.

A minha ainda sofre dessa herança do sonho de uma vida cor de rosa. A menina que sonhava em ser uma princesa desperta depois de um longo tempo de baladas em Maresias, trilhas e viagens à Bahia dormindo em pousadas nas-quais-toma-se-banho-de-havaianas. Esse despertar se dá ao conhecer um rapaz que novamente a faz acreditar que existe, sim, um final feliz, que é possível ser uma princesa. Ah, o amor…

As festas suntuosas de casamento quase enganam as jovens moças de que a vida adulta é pura celebração. Escolha o vestido que você quer minha filha, faça sua lista de presentes, dê uma linda festa, convide todos os seus amigos, vá ao melhor maquiador, encha de flores e boa música “e bibidibobidiboo”: gire as saias do seu vestido na pista de dança de olhos bem fechados – vai quase ser real. E, na volta da lua de mel, que susto! Existe um negócio chamado conta de açougue, o namorado apaixonado é meio bagunceiro, tem que arrumar a cama e nada disso parece assim tão encantador depois que a noiva vira abóbora e se torna esposa. (Abóbora mesmo, pois, na lua de mel, a gente engorda tudo que tinha emagrecido antes de casar.)

Essa tal lenda do príncipe encantado acaba com o mercado masculino, já que ocupa um ideal de impossível competição. Não dá para comparar um marido que vem com mil defeitos (assim como as mulheres) com o príncipe encantado tão sonhado e propagado há gerações nos contos de fada.

Mas ninguém contou também que o dia a dia tinha lá seus encantos, escondidos no meio da rotina, de uma dupla que opta por tentar se aventurar no mundo numa parceria, abandonando um universo que anteriormente era confortável. É preciso muita coragem para sair do reino conhecido e começar uma vida nova. E que há também algo de mágico no aconchego de voltar para a casa e ter alguém ali que te desafia e convoca a buscar amor todo dia, dentro de esconderijos internos, para suportar a tal da convivência.

O excesso de romance por vezes acinzenta a realidade. Faz com que a gente espere muito do que vem de fora e estrague o que tem, só porque não é assim tão mágico. Mas é de verdade. Anos de lágrimas podem ser economizados se essa figura encantada deixar de ser tão importante, tão definidora, e puder ser simplesmente uma pessoa, que assim como a gente está tentando acertar. E não é eterna. Não existe o para sempre. Para sempre é muito tempo. Ainda bem.

Talvez o conto de fadas do futuro termine com: felizes por enquanto. Tirando esse peso da eternidade, nos aliviamos e, de brinde, valorizamos o hoje: se não é eterno, preciso aproveitar, cuidar. E principalmente: sobrevivo sem. Embora essa última parte a gente esqueça quando apaixonado. E talvez precisemos disso para amar… Afinal, somos reféns do romance e dos clichês, todas as cartas de amor são ridículas mesmo. Sem elas, a vida perderia o pó de pirilimpimpim. Freud define o sonho como um processo vital e necessário para que suportemos estar acordados. Isto é, suportamos a realidade, pois dela nos retiramos quando sonhamos. Sem a ilusão, o mundo gira numa constante repetição, fria e acinzentada.

Assim como Dom Quixote precisa de Sancho Pança para fincar os pés no chão, a vida real precisa do romance e da ilusão. Sem esses temperos, tudo fica morno, sem sabor. De fato: não há um final feliz no fim do conto de fadas da vida, mas pode haver bons momentos durante o caminho das pedras amarelas, bem ali, somewhere over the rainbow. É só não nos esquecermos de fechar os olhos de vez em quando e sonhar.

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Em busca da pureza perdida

por Eduardo Andrade de Carvalho

Raymond Radiguet morreu aos 20 anos, de febre tifoide, com uma obra literária perfeitamente acabada. Nascido em 1903, em Saint-Maur, subúrbio de Paris, filho de um famoso cartunista, Maurice, era o mais velho de seis irmãos. Foi um aluno exemplar até, aproximadamente, os 8 anos; largou o liceu Charlemagne em Paris, onde era bolsista, aos 10, como um estudante medíocre – e continuou estudando sob a sensível orientação do seu pai. Radiguet não era bobo: em vez do monótono ambiente escolar, preferia ler os clássicos franceses deitado em um barco amarrado na margem do rio Marne, aproveitando a atmosfera calma e agradável da cercania parisiense de mesmo nome, onde morava com a família. E lia intensamente: de acordo com uma passagem provavelmente autobiográfica de Com o diabo no corpo, uns 200 livros entre os onze e doze anos.

Aos 14 anos, numa ocasião em que foi entregar os desenhos de seu pai ao jornal L’Intransigeant, conheceu o poeta André Salon e apresentou a ele seus primeiros poemas. Salon ficou impressionado e conseguiu espaço para que publicasse seus trabalhos em jornais e revistas. Apresentou-o também a Max Jacob, que o introduziria, depois, ao seu futuro amigo e amante, Jean Cocteau, que tinha o dobro da sua idade. Aos 15 anos, Radiguet já começara a frequentar os círculos de Montparnasse, “a Meca da modernidade”, com Picasso, Apollinaire, Breton, Modigliani, Coco Chanel, Stravinsky, entre outros, e, aos poucos, foi conquistando também a alta sociedade parisiense, convivendo com príncipes e princesas – em um lugar em que, diga-se, o termo “alta sociedade” parece ainda corretamente aplicado.

Sua precocidade literária é normalmente comparada com a de Rimbaud, que nasceu em 1854. Faz sentido. Aos 19 anos, Rimbaud já era um reconhecido fenômeno das letras, com a publicação de Uma estação no inferno e O barco embriagado. Apesar de uma morte erradamente anunciada, quando desapareceu aos 27 anos, Rimbaud também morreu relativamente novo, aos 37, de doença desconhecida. Mas dificilmente se conhece um caso, em toda literatura universal, tão extraordinário como o de Radiguet, que escreveu maravilhosamente ainda adolescente e morreu assustadoramente jovem.

Mas ele jamais pretendeu ser reconhecido por isso: nem pelo gênio precoce nem pela morte inesperada, características dos poètes maudits que ele simplesmente abominava. “Idade não significa nada”, escreveu, “O que me impressiona é o trabalho de Rimbaud, não a idade com que ele o escreveu. Todos os grandes poetas já tinham escrito aos 17 anos. Os maiores são aqueles que nos fazem esquecer disso”. A vida que levou durante o último ano de sua vida, porém, consumindo pesadamente álcool e ópio, contribuiu para sua identificação com eles, apesar do seu forte e lúcido desprezo pela figura do poeta solitário e sofredor. Radiguet não viveu uma vida nem solitária nem sofredora.

Seu primeiro livro, e o único que saiu enquanto ainda estava vivo, foi publicado quando o autor tinha apenas 20 anos, resultado de um trabalho que começara aos 17. Com o diabo no corpo, baseado numa relação amorosa que supostamente teve aos 14 anos, foi escandalosamente recebido em Paris, pelos críticos e pelo público – mas vendeu amplamente (45 mil exemplares, de saída) e, de quebra, recebeu o importante prêmio Nouveau Monde. Radiguet conta a história de uma relação amorosa de um jovem de 16 anos com uma mulher casada, de 19, cujo marido se encontra no front de batalha durante a Primeira Guerra Mundial. Marta, a amante, engravida do garoto, e morre durante o parto.

A capacidade de observação psicológica de Radiguet é surpreendente, mesmo sem considerarmos sua idade – que ele, enfim, nos faz esquecer. Seu estilo é claro e direto, como queria que escritores escrevessem, e flui encantadoramente, com capítulos curtos e sequências de aforismos inesquecíveis, como esta:

“Nada absorve mais do que o amor. Quando se ama, fica-se à toa, mas nem por isso se é preguiçoso. O amor sente confusamente que seu único desvio real é o trabalho. Ele também o considera como rival. E não suporta nenhum rival. Mas o amor é preguiça bem-aventurada, como a chuva branda que fecunda.

Se a juventude é tola, é por não ter sido preguiçosa. O que invalida nossos sistemas educativos é que eles se dirigem aos medíocres, por causa da quantidade. Para um espírito alerta, a preguiça não existe. Nunca aprendi tanto quanto naqueles dias compridos que, para um espectador, teriam parecido vazios, nos quais eu observava meu coração noviço como um novo-rico observa seus gestos à mesa.”

Difícil acreditar que o segredo da adolescência, e do amor, durante essa fase, tenha sido revelado com tanta elegância e precisão como ele o fez. E mais do que isso: seus dois romances são histórias de adultérios tão sofisticadas que mesmo Proust, como reparou Paulo Francis, talvez não tenha ido tão longe, nesse aspecto. E Radiguet parecia ter consciência disso, quando escreveu sobre seu segundo livro, O baile do bonde d’Orgel, publicado depois da sua morte:

“Romance de amor casto, mas tão escabroso quanto o romance menos casto. (…) Não é a pintura do mundo, ao contrário de Proust. O cenário não conta. O único esforço de imaginação utilizado aqui não está nos acontecimentos externos, mas na análise dos sentimentos”.

Se no seu primeiro livro, então, o romance entre o narrador e Marta se consumou, materializando-se o adultério que, no final, será castigado, a relação entre François de Séryeuse e Mahaut d’Orgel, personagens principais de O baile, não poderia ser mais casta – e não poderia ser mais forte. E é precisamente por ter resistido a essa força quase incontrolável que Radiguet, como um moralista do século XVII, os considera tão virtuosos e interessantes. O que, aliás, eles realmente são, como justifica o autor, a respeito da condessa, já no primeiro parágrafo, em uma introdução irresistivelmente bonita:

“Os movimentos de um coração como o da condessa d’Orgel serão antiquados? Tal mescla de dever e inação talvez pareça inacreditável em nossos dias, até mesmo numa pessoa de estirpe e nascida nas Antilhas. Não será que nossa atenção se desvia da pureza, sob o pretexto de que esta oferece menos sabor do que a desordem?

Mas as manobras inconscientes de uma alma pura são ainda mais singulares que as combinações do vício. É o que respondemos às mulheres que, algumas, acharão Mme. d’Orgel excessivamente honesta, e às outras, que a acharão fácil demais”.

François tinha 20 anos, era muito inteligente e respeitado pelos mais velhos. Não fazia nada. Vivia com sua mãe, que possuía um espírito suficientemente nobre e compreensivo, segundo Radiguet, para entender que, nessa idade, é justamente isso que um jovem deve fazer.

“Toda idade produz seus frutos, e é preciso saber colhê-los. Mas os jovens são tão impacientes por atingir os menos acessíveis, e por se tornar homens, que negligenciam os que se oferecem.

Numa palavra, François tinha exatamente sua própria idade. E, entre todas as estações, a primavera, se é a estação que nos assenta melhor, é também a mais difícil de usar.”

François, portanto, pertencia a essa espécie rara: era um sujeito que, apesar de novo, sabia aproveitar a vida em sua plenitude, reconhecendo, inconscientemente, os limites que a idade lhe impõe, e formando, assim, uma personalidade, digamos, saudável. Era um cara bacana. Diferentemente do seu melhor amigo, o diplomata Paul Robin, que procurava a todo custo ascender socialmente, construindo, assim, uma personalidade corrompida: “Paul acreditava ter sido bem-sucedido na construção de uma imagem; na realidade, ele se contentara em não combater os próprios defeitos”, escreveu Radiguet.

A atração de Paul pelo casal d’Orgel, que ele e François conheceram juntos, é obviamente limitada, centrada em mesquinhos interesses sociais. François, porém, encanta-se com Mahaut, e, como novo e íntimo amigo do casal d’Orgel, passa a frequentar a casa deles. E apaixonam-se François e Mahaut, um pelo outro, sem, no entanto, saberem que são correspondidos. Até que, preocupada com que essa atração ficasse definitivamente incontrolável, Mahaut confessa seus sentimentos para a mãe de François, pedindo que essa tentasse afastá-los um do outro. Não adianta.

Na jantar que os d’Orgel oferecem, na mesma noite, a um príncipe russo refugiado, François comparece. Mahaut não sabe se ele foi avisado ou não pela sua mãe, e fica confusa, com ciúmes de François, que conversa com uma convidada jovem e linda, mas exercita sutilmente seu autocontrole. Em uma cena delicada e complexa, Mahaut defende publicamente seu marido em uma situação inesperada – que, exceto o leitor, só o convidado russo compreende: Mahaut decide continuar com Anne, seu frívolo marido.

Em Com o diabo no corpo, Radiguet narra o complexo processo da perda da pureza de um adolescente inocente e inteligente; já em O baile do conde d’Orgel, essa pureza perdida é, na figura de Mme. d’Orgel, virtuosamente redescoberta.

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As cicatrizes do imperador

por Alberto Rocha Barros

Em 30 de outubro de 130 d.C., há mil e oitocentos anos, o corpo de um jovem entre dezoito e vinte-e-tantos anos foi encontrado morto no rio Nilo. Pouco depois verificou-se a identidade do rapaz: tratava-se de Antínoo, o favorito do Imperador romano Adriano Augusto (reinou de 117 a 138 da nossa era), que visitava o Egito com sua esposa, Sabina, e seu séquito. Ao saber da morte, Adriano ficara profundamente afetado, mergulhado num luto excêntrico: fundou uma cidade em nome do jovem no local de sua morte (Antinópolis), instituiu cultos a sua pessoa, ora como um deus (theos) encarnado ora como um heros (“herói”: um mortal deificado); organizou jogos regulares em sua homenagem em Atenas e em partes do Egito e da Turquia; por fim, fomentou e/ou financiou uma tradição estatuária celebrando suas feições – é um lugar comum dizer que, ao lado de Alexandre Magno, Augusto César, e do próprio Adriano, Antínoo é a personagem histórica mais comumente retratada da antiguidade clássica!

A figura de Antínoo, e sua relação com o Imperador Adriano, há tempos é objeto de intenso interesse, que atravessa a história ocidental e oriental: suas feições foram impressas em monumentos e em moedas que circulavam pelo Egito e Ásia Menor (moedas com seu perfil foram encontradas em mais de 30 cidades do oriente); uma quantidade significativa de textos antigos o mencionam repetidas vezes e especulam sobre sua vida, seu significado e sua morte; o artista renascentista Rafael Sanzio teria passado instruções precisas a Lorenzetto Lotti para esculpir a estátua do Jonas bíblico na Capela Chigi (em Santa Maria del Popolo, Roma), inspirada no busto conhecido como L’Antinoo Farnese (hoje, no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles); no romance mais famoso de Oscar Wilde, a beleza de Dorian Gray é comparada a de Antínoo; Fernando Pessoa compôs um poema em inglês sobre ele (Antinous, de 1918), e o jovem é personagem crucial no romance Memórias de Adriano (1951), de Marguerite Yourcenar. De atendente, pajem ou favorito de Adriano, Antínoo tornou-se objeto de culto religioso e, no mundo contemporâneo, até ícone da sensibilidade homoerótica.

Mas teria sido Antínoo amante de Adriano? Do mundo antigo, sobreviveram dois tipos de fontes de informação a esse respeito: evidência textual (escritos pagãos, cristãos e fragmentos de papiros) e evidência material (estátuas e inscrições). Essas fontes sugerem que havia sim um elo erótico entre eles, mas isso apenas levanta outras questões. Sabemos que Adriano favorecia uma estratégia de marketing que o tornava mais “grego” – talvez tenha sido um dos imperadores romanos mais helenizantes. Mas a pederastia ateniense favorecia relações com jovens (12-17 anos) aristocratas, e Antínoo não era nem tão jovem (alguns estudiosos acham que poderia ter morrido com cerca de 25 anos) nem aristocrata. Fugir dos ditames da altamente ritualizada pederastia ateniense era sinal de depravação e mau gosto. A versão romana da pederastia ateniense era mais brutal, com senhores abusando sexualmente de seus escravos e escravas – e as fontes sugerem uma relação mais complexa de companheirismo entre Antínoo e Adriano (e são raras e tardias as sugestões de que ele fosse um escravo. Ao que tudo indica, era um homem nascido livre).

É também importante ressaltar que a linguagem grega do amor (que inclui os conhecidos vocábulos eros e philia) contém em seu campo semântico não apenas referência aos laços sexuais e/ou afetivos, como nós os entendemos, como também a ideia de algo que demanda de nós profunda atenção, uma mobilização da alma. Daí uma dimensão pouco lembrada da palavra “filosofia”, usualmente traduzida, de modo vago e meio New Age, como simplesmente “amor ao saber”, mas que também implica uma prática intelectual voraz e dominadora que demanda atenção absoluta, chegando aos extremos de comandar que o filósofo sacrifique seus prazeres mundanos para se dedicar exclusivamente à ela. A retórica do erotismo greco-romano não é necessariamente sexual, podendo implicar um anseio ou desejo casto e contemplativo.

Embora tenhamos boas razões para acreditarmos que a relação entre Antínoo e Adriano fosse sexual, gostaria apenas de deixar aberta outras possibilidades. O escritor e satirista Luciano de Samósata, contemporâneo de Antínoo e Adriano, em seu Descida aos Infernos, ou O Tirano lista os atributos do soberano: “ouro, prata, roupas sofisticadas, cavalos, banquetes, pajens no esplendor da juventude, mulheres…” Trata-se de um catálogo do luxo associado ao poder. A palavra que traduzi como “pajem” é também a utilizada para “favorito” ou “rapaz”. Assim, Antínoo poderia ter sido um sinalizador de luxo extremo, um objeto de beleza rara que apenas imperadores podem possuir, desfilar e imortalizar em pedra: como os tigres e os leões tão desejados por casas reais através da história.

Mas há também uma estranha (e potencialmente macabra) reviravolta no destino de Antínoo. O historiador Cássio Dio, que escreveu 80 anos depois dos eventos que relata, nos diz que o jovem “morreu no Egito, ou porque caiu [acidentalmente] no Nilo, como escreve Adriano, ou porque foi sacrificado, que é a verdade”. Existem duas anedotas sobre o sacrifício de Antínoo. De acordo com uma, sua morte coincide com um festival no Nilo por volta do dia 30 de outubro: data na qual um jovem e belo Osíris fora assassinado e teve seu corpo jogado ao Nilo. A posterior transformação de Osíris em deus está associada à fertilidade do vale. Nesse caso, Adriano poderia estar engajando-se num engenhoso plano político-cultural: fundindo um mito egípcio com um novo evento mítico romano, para unir as duas culturas… Mas outras fontes dizem que Antínoo se sacrificou voluntariamente, por amor a Adriano, num ritual mágico que garantiria ao Imperador longa vida.

Essas múltiplas possibilidades estimulam a nossa imaginação, mostrando-nos, ao mesmo tempo, o quanto e o quão pouco conhecemos de certo na Antiguidade Clássica. Os bustos do jovem certamente são curiosos: com rara maleabilidade, Antínoo aparece no estatuário ora com feições egípcias, ora como avatar de Osíris; por vezes como Dioniso ou outros heróis gregos. Certamente, é a derradeira encarnação da tradição grega de celebrar a beleza da juventude do corpo masculino.

Adriano Augusto é um dos imperadores que mais deixou marcas em nosso mundo físico: a famosa Muralha de Adriano, no norte da Inglaterra, marcava as fronteiras do império; sua famosa Vila Tivoli (“Vila de Adriano”). É um dos pontos turísticos mais visitados em Roma; ele foi o responsável pela reconstrução do celebrado Panteão e do Castel Sant’Angelo em Roma (concebido para ser o Mausoleu de Adriano)… além de nos ter legado um sem número de estátuas de Antínoo… Seriam essas meras marcas de um complexo projeto de poder, ou cicatrizes mais profundas?

#18RomanceCulturaLiteratura

Um pouco de valentia

por Bárbara Mastrobuono

Uma noite, no início da década de 1940, um pai passava em frente à porta aberta do quarto da filha quando ouviu-a dando gargalhadas. Colocando a cabeça para dentro do quarto, viu que ela lia um livro sobre uma babá mágica que levava as crianças para viverem aventuras fantásticas. Esse pai era Walt Disney, e foi assim, por meio de sua filha Diane, que conheceu Mary Poppins.

A relação entre Walt Disney e a personagem teve muitos altos e baixos, graças a uma figura que, até pouco tempo, permaneceu às margens do conhecimento popular: P. L. Travers, sua autora. Embora no filme “Mary Poppins” sua existência seja revelada apenas por um crédito discreto, ela é figura central do recente “Walt Disney nos bastidores de Mary Poppins”, filme que conta a versão “disneyficada” da venda dos direitos do livro.

Os estúdios Disney representam o ideal de família perfeita. Seus filmes pregam uma infância romantizada, a infância que todos nós gostaríamos de ter tido, e convenhamos que é impossível não assistir a um filme deles sem que uma parte nossa secretamente deseje estar lá, vivendo aquela história e cantando aquelas músicas. Se você é um excluído, se ninguém te entende, se a sua família não é funcional e parece não te amar, não tema! Até o final do filme tudo estará resolvido. E foi exatamente isso que aconteceu na versão cinematográfica de “Mary Poppins”. Embora o livro seja uma obra delicada, com uma construção aprofundada da personagem de Mary, criado em base do misticismo de sua autora, o filme apresenta uma versão superficial e adocicada da babá. E vemos um lado negro daquilo que Disney considera a família ideal: para que o público americano entendesse a necessidade da família Banks de contratar uma babá (algo muito distante da realidade dos espectadores de classe média), os roteiristas acharam melhor apresentar os Banks como uma família “quebrada”, que precisava de um agente externo – no caso, Mary Poppins – para consertá-la. A babá só terá sido bem-sucedida quando sua presença não for mais necessária. No caso da família Banks, o problema era devido ao fato do pai banqueiro ser emocionalmente ausente e da mãe sufragista passar mais tempo lutando pelo direito dos votos das mulheres que cuidando dos filhos. No final do filme temos a cena de redenção derradeira, onde o Sr. Banks se aproxima dos filhos ao consertar a pipa deles e a mãe reassume seu papel na casa, simbolicamente amarrando a faixa de sufragista na pipa para servir de rabiola. Um final um tanto quanto assustador, apesar da música que nunca mais vai sair da sua cabeça.

O filme “Mary Poppins” foi lançado em 1964. Cinquenta anos depois o estúdio lançou um novo filme sobre o assunto: “Walt nos bastidores de Mary Poppins”, que conta como Disney passou vinte anos tentando comprar os direitos do livro, chegando ao ponto de convidar a autora para visitar os estúdios para ela ver por si mesma o desenvolvimento do roteiro e dar a aprovação final – uma concessão extremamente rara. Embora o filme capture, com um afinco por vezes até desnecessário, o mau-humor e as particularidades de Travers, ele rejeita as partes mais preciosas de sua personagem em prol de um ideal de família bastante antiquado. Travers, que abandonou a Austrália, seu país de origem, aos 24 anos, era uma poetisa que corria entre os grandes nomes da literatura irlandesa, como W. B. Yeats e Bernard Shaw. Seu maior mentor foi o poeta AE, um homem casado de sessenta anos com quem Travers cultivou uma relação emocionalmente carregada e permeada por gestos de afeto quase que românticos em que durou até a morte dele. AE introduziu-a aos ensinamentos do guru espiritual Gurdjieff e a apresentou a Madge Burnand, com quem Travers manteve uma relação de dez anos, chegando até a morar juntas. É sabido que a autora se relacionava com homens e mulheres, e inclusive estava iniciando um relacionamento turbulento com a americana Jessie Orage quando as negociações com Disney começaram. Outro fator um tanto fora do comum para a época com o qual a autora lidava durante as negociações era o encarceramento de seu filho Camillus.

Camillus fora adotado por Travers quando ela tinha quarenta anos, algo já bastante raro para o tempo, ainda mais quando consideramos que ela era uma mulher solteira (seu relacionamento com Madge já havia terminado). O menino tinha um gêmeo, Anthony, que Travers se recusou a adotar. Camillus só ficaria sabendo sobre Anthony aos 17 anos, quando um estranho curiosamente parecido com ele lhe acostou em um bar. Após descobrir a verdade sobre sua família, o menino passou a beber cada vez mais até ser preso por dirigir bêbado.

Relacionamentos bissexuais, crenças místicas, um filho que descobre aos 17 anos ter um irmão gêmeo… é uma pena que isso tenha ficado de fora da construção cinematográfica da personagem de P. L. Travers. Reduzida a um clichê de velha ranzinza, eles a pintam como uma mulher frígida e solitária, e, como espectadores, não conseguimos entender como essa mulher foi responsável por aquecer corações de crianças de todas as idades, até hoje. Eles esquecem que, se uma pessoa é capaz de produzir tanto amor nos outros, ela mesma deve estar transbordando da coisa. E P. L. Travers tinha amor; amor por seu filho, seus namorados e namoradas, e, principalmente, amor por sua vida. Pois ela nunca, em nenhum segundo, se reduziu a viver a vida de maneira diferente daquela que queria.

E, embora a Mary Poppins de P. L. Travers não cante e dance como a de Walt Disney, ela nos ensina uma lição valiosa: na vida, não adianta se esconder. É preciso enfrentar os problemas de frente. Mary, com sua mão firme e coração quente, nos mostra que não importa o quão assustadoras as coisas são, se formos fiéis a nós mesmos, abrirmos nossos olhos e seguirmos em frente, mesmo com todas as dificuldades, tudo ficará bem. É uma ternura valente que nos faz sentirmos seguros, mesmo quando a missão dela estiver terminada, mesmo quando ela já tiver partido naquele vento do Oeste e não estiver mais do nosso lado, quando formos apenas crianças solitárias presas em corpos de adultos.

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Tarsila romântica em duas mãos

Há tempos eu não acordava com a sensação que tive hoje pela manhã ao abrir os olhos. Adormeci na casa de meus pais, onde já não moro há mais de 15 anos, e ali, entre palpitações e calafrios, passei a infindável madrugada. Ao despertar de uma noite mal dormida e angustiada, em virtude da quebra da bolsa de Nova York, fui tomada por um sentimento estranho e de total alienação. De olhos bem abertos (junto ao nascer do sol nas montanhas do sul), porém como se ainda estivesse vagando pelo universo onírico – era como se não pertencesse, ali, àquele momento.

Gradualmente, com a retomada da consciência, fui me dando conta de que todo aquele estranhamento nada tinha a ver com a casa da fazenda colonial dos meus pais – aquele lustre de bronze velho, a sanca do quarto que um dia foi representativo de status ou as paredes de taipa cobertas por papel de parede francês amarelado e esgotado pelo tempo, e, ao olhar pela janela, o mato que crescia e devorava terras outrora férteis e produtivas. Ainda assim, minha alienação era de outra ordem, muito mais profunda do que a estrutura material que me acolhia. A minha sensação de deslocamento era consequência concreta do fim de uma relação que até então vinha nutrindo com o meu país. Veio então a realização de que eu e o Brasil enfrentávamos uma crise de relacionamento. Eu já não mais me sentia representada por ele, e ele, muito provavelmente não identificado em mim. O romance havia chegado ao fim…

Não tinha sido o melhor dos romances. Nasci, cresci e fui educada com uma noção clara de estar na periferia do mundo, longe do progresso, da sofisticação, do pensamento real. Era preciso atravessar o oceano, voltar à Europa para buscar lá umas raízes que aqui não vingariam, por mais fértil que seja esse solo. Paris era uma festa. Mas foi lá, enquanto eu e o Oswald mostrávamos como fazer caipirinha e tentávamos adaptar a receita da feijoada aos ingredientes franceses, que me dei conta de estar perdendo algo que só poderia mesmo existir aqui. Tinha vontade de algo além dos volumes coloridos que aprendi a pintar com o Léger. Era preciso mais cor, mais volume e um certo calor que a Europa nunca teve.

Quando voltei para o Brasil, comecei a me lembrar da infância, dos negros na fazenda, das criancinhas mulatas. Tudo tinha outro gosto. Estava seduzida, intoxicada, talvez até mesmo apaixonada. Fui para o Rio no carnaval, levei o Blaise Cendrars para conhecer as cidades históricas de Minas Gerais. Descobri que as cores de Paris, por mais inebriante que lá pudesse ser a vida, eram um tanto esmaecidas. Pau Brasil. Foi aí que eu entendi o que tanto faltava nos meus quadros, uma herança tropical que não pode ser negada. Mas também tenho minhas dúvidas se não forcei a mão, se isso tudo não era um exotismo fingido, se eu não era a caipira que negou a raça por um prisma parisiense quando tudo ainda era rude e tosco, irremediável. Estava instaurada uma crise tão aguda quanto o desbunde das cores da minha paleta.

Assim passa o meu tempo, entre dias adormecidos e noites em claro – na eterna e inebriante dúvida entre lá e cá. Meus sonhos e fantasias antropofágicas desejam o estrangeiro, para que dele eu absorva novas influências e cresça mais forte. Mas, em seguida, meus ideais tão completamente enraizados em terras do Brasil profundo me jogam de volta para cá, para além dos mares e oceanos gélidos da Europa, novamente retorno em busca da minha identidade tropical.

Nem aqui nem ali – pois não mais me encontro entre o novo e o velho. O que me chama é a possibilidade de um novo romance. União Soviética, é pra lá que eu vou.

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A morte do encontro

por Anthony Ling

A cidade é feita de encontros. Humanos se aglomeram em cidades para se relacionar, para potencializar suas redes sociais.

Nossas cidades cresceram para atender a essa vontade – necessidade? – de estarmos próximos uns aos outros.

O passado é uma herança de bons exemplos, nas antigas cidades europeias, nos nossos centros históricos anteriores às utopias. Neles, tudo parece próximo, são “caminháveis”, o espaço público é vivo e a verticalização ocorreu como uma resposta natural a uma demanda por solo urbano.

Algo aconteceu de lá pra cá.

Nossas cidades se tornaram “paliteiros”, uma infinidade de torres isoladas umas das outras. As torres pouco respondem às demandas por espaço, pois ocupam a cidade com garagens e áreas condominiais esquecidas e empoeiradas. Cada vez mais o que liga esses espaços não é mais a rua, mas o carro – uma moderna cápsula de isolamento.

O resultado não foi por acaso, mas por consequência: o urbanismo modernista, obsessivo pelo controle humano da natureza, tentou “organizar” o que é o organismo vivo de uma cidade.

A verticalização em edifícios soltos – os tais palitos – era pregada como forma de liberar a cidade para áreas verdes, tentando garantir, de forma ingênua, uma quantidade de sol e de espaço de lazer para todos.

A tentativa de controle da natureza desta vez não foi inconsequente.

O isolamento inviabilizou o contato das edificações com a calçada e umas com as outras. O comércio no térreo sumiu. Não por falta de interesse, mas pelo afastamento do pedestre. Não só as atividades ficaram mais distantes como parecem ainda mais, dado o ambiente inóspito da rua vazia. Em um ciclo destruidor, a insegurança gerada pela falta de vida levou as torres a se isolarem ainda mais, com suas cercas e seus muros.

O isolamento dos espaços edificados incentiva o isolamento no trânsito entre eles. Em uma triste ironia, a tentativa de promover sol e espaços de lazer resultou justamente no contrário, cidadãos presos nas suas salas, nos seus carros.

A acessibilidade do pedestre é muito mais importante do que as pessoas imaginam. O pedestre é a raiz de todas as formas de transporte além do carro. É preciso caminhar para chegar na parada de ônibus, na estação do metrô, para guardar a bicicleta, para entrar na loja. Cidades que inviabilizam a caminhada inviabilizam todo o resto do sistema de transporte – e, por sua vez, o encontro, mesmo que desproposital e inusitado.

Isolamento não deve ser confundido com privacidade. Privacidade é nossa relação com o ambiente privado, preferência totalmente natural de termos nosso canto, nosso espaço na selva metropolitana. Já isolamento se refere à nossa relação com o ambiente público.

O isolamento, a falta de contato com pessoas e ambientes diferentes, eliminando as surpresas positivas que a cidade constantemente nos oferece, deixa o cidadão cego ao que acontece ao seu lado. Leva a segregações tribais e, no limite, reforça os preconceitos apesar da vida cosmopolita da metrópole. Leva a críticas sobre espaço e transporte urbano das próprias pessoas que contribuem para que os problemas existam, sem sequer imaginarem que isso seja possível. Ter privacidade não requer tal isolamento.

A privacidade, no entanto, deve ser balanceada, com seu limite de abrangência no próprio cidadão, já que sua extrapolação pode comprometer a própria existência da cidade. A metrópole é, por definição, um massivo organismo social, que tem seu bônus e seu ônus. É contraditório querer o bônus – uma vasta gama de oportunidades, atividades, opções, relações, enfim, pessoas – e, ao mesmo tempo, pregar por características rurais de privacidade total: silêncio, paz e falta de contato humano. Nenhuma opção é melhor ou pior, mas o cidadão deve estar pronto para escolher qual o seu ponto de preferência, e pronto para aceitar as consequências da sua decisão, pois cidade não existe sem gente.

A vida gerada por esse planejamento inconsequente, nos tornando dependentes do uso do carro, é ainda pior. O paulistano que anda de carro gasta três horas dentro dele por dia. Em um quinto do seu tempo acordado está preso. Preso pois está sozinho atrás da direção, obrigado a executar uma única atividade para evitar assassinatos com a sua grande máquina de metal.

O que já foi um símbolo da liberdade se tornou o do isolamento, e o que era para ser planejado se tornou um caos – ou pelo menos provou que com o caos não se brinca.

A cidade nos deu uma privacidade muito além do que se esperava, pois a morte dos encontros é a morte da própria cidade.

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Paris, solidão e Proust

por Thiago Blumenthal

“Faze o que quiseres”, eis o dístico sobre a porta da Abadia de Thelema, construída por Gargântua, na célebre obra de Rabelais. Única do palácio, no entanto, tal regra apresentava um terrível contraponto: “desde que agrade ao príncipe”. A galante vida da corte francesa demandava lá seus divertimentos espetaculares, para dar conta do enfado do dia a dia, e, a partir de um circuito fechado, acabou engolindo a si mesma; o lazer, a diversão e as extravagâncias impuseram novos sacrifícios, novos deveres, novos tédios.

Estudar a história francesa a partir do signo da melancolia aponta a caminhos dos mais diversos e, na vereda literária, a uma inevitável e desejável solidão. De Ronsard aos modernos, não faltam relatos de personagens solitários, a caminhar pelas ruas de Paris. Não por acaso a Cidade Luz ter inspirado uma das figuras literárias mais problemáticas, e também estudadas, que é a do flâneur. O flâneur do século XIX, o flâneur de Baudelaire, e até mesmo o de alguns séculos antes, é em essência um ser solitário. Caminhar pelas ruas de Paris tornou-se, em especial, a partir da apreciação crítica de Walter Benjamin, um emblema da experiência urbana moderna.

Quando chegamos em Proust, que creio ser o epítome que lacra a literatura francesa em dois momentos distintos de sua evolução, a solidão sofre um importante golpe que alteraria a experiência daquele que vê-se sozinho. Proust observa que desde Louis XIV, ou seja, desde a segunda metade do século XVII, a sociedade francesa, representada pela metrópole parisiense e seus arredores, passou por profundas transformações. A ritualística palaciana e aristocrática já não mais agradava ao príncipe. Todo o barroco da majestade do soberano, a cortesia dos cavalheiros, a beleza das mademoiselles, seus cavalos e suas carruagens, o alto espírito da realeza e seus cultos e discursos, tudo transformara-se em tédio profundo, antecipando e prevendo a repetição cotidiana da metrópole e de seus funcionamentos.

Proust, seja na ficção ensaística de Contre Sainte-Beuve ou pela narração de sua Recherche, estrutura a solidão como um movimento de escape das opressões tirânicas do hábito e observa o espaço do sujeito solitário fragmentando-se em cidades-modelo projetadas para destruir um dos últimos refúgios das liberdades urbanas. As estreitas ruas medievais de Paris e seus cul-de-sacs foram arrasados em detrimento de enormes bulevares, em uma espécie de coerção a partir do cenário urbano. O flâneur, por assim dizer, não deixou de existir, mas viu seu terreno completamente minado de uma coletividade, da qual sempre pretendeu fugir. Tal qual o albatroz de Baudelaire, que preso nas tábuas do convés, debate-se em um espaço que não é o seu. Como se o calçamento de Paris, surgido em 1184, de repente fizesse surgir uma armadilha terrível. A armadilha do bulevar, com a família a passear e os militares a observarem.

A solidão, para Proust, passa pela resolução de uma equação para lá de complicada. Nascido ainda sob os ecos sociais da supressão da Comuna de Paris, com o declínio da aristocracia e a insurgência da classe média durante a Terceira República, Proust construiu sua biografia em torno deste contexto em particular. Com livre acesso aos salões da alta burguesia, o autor era um fino observador da psicologia humana em pleno fin de siècle. O mundo pedia uma nova apreciação, que respondesse a novas ânsias de um novo mundo e, mais, de um novo fazer literário, por um distanciamento que condicionava uma nova, e problemática, solidão.

Nessa distância, também temporal, que reside o grande infortúnio da solidão de Proust que, para resolvê-la, precisa voltar para si mesmo e para suas memórias e reconstruir não apenas uma gênese do universo ficcional (e real, quando a nós espelhada) mas uma gênese do romance e da literatura – gêneses essas vinculadas por dois extremos, o do desejo e o da tristeza, mas que se tocam no ponto comum da solidão.

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América

por Willian Silveira

on which
i write the circumstances,
you are the solitude
that goes against me.

Sufjan Stevens




Passar a vida em uma cidade é o melhor jeito para jamais conhecê-la a fundo. O enraizamento – algo como viciar-se no cotidiano – traz o conforto ao preço de passar um verniz fosco sobre todas as coisas.

Andy Warhol sabia disso. Nascido em Pittsburgh, em 1928, mudou-se para Nova York aos 21 anos. Uma vez lá, poderia ter seguido o caminho dos colegas de geração Lucien Carr, Allen Ginsberg e Jack Kerouac. A inquietude para tal certamente não lhe faltava. Contudo, diferentemente do trio beatnik, Warhol não viu na estrada a saída para a falta de perspectiva dos paradoxos aparentemente incontornáveis dos Estados Unidos. Atravessar o país a esmo era uma escapatória possível para os garotos bem criados, tomados por pulôveres e gravatas da Columbia University. Para um aluno do operário Carnegie Institute of Technology, filho de pais imigrantes da Eslováquia, movimentar-se aleatoriamente não seria novidade, no máximo dandismo inconsequente.

Ainda que seja delicado afirmar o que fixou Warhol em Nova York, se a convicção das possibilidades ou a necessidade de se estabelecer, o certo é que ele fez da cidade o seu lar. Ao invés de compensar o momento norte-americano com errância, procurou entender os Estados Unidos. Para isso, viajou pelo país recolhendo impressões dos costumes e fotografando os contrastes encontrados. O resultado de uma década de viagens se encontra em América: “se tiver uma oportunidade de viajar pelo país, deve tentar aproveitá-la. Em especial, deve tentar ficar por algum tempo em cada lugar e dar uma boa olhada. Ninguém na América tem uma vida comum.”

Publicado tardiamente, em 1985, apenas dois anos antes da morte de Warhol, o livro é o último e mais inusitado projeto da sua carreira. Durante os anos 60, em especial a partir da inauguração do The Factory, Warhol se fez conhecer por uma série de investidas artísticas, entre elas as latas de sopa Campbell (“Campbell’s Soup Cans”, 1962), a série multimídia “Exploding Plastic Inevitable” (1966-1967), encabeçada pelo The Velvet Underground, e o filme “Chelsea Girls” (1966), codirigido por Paul Morrissey. O apelo pop da arte erigiu um mito, que transformou Nova York em um universo próprio e se tornou seu astro.

Entretanto, a fama que revela também oculta. A imagem pública construída à custa das celebridades pintadas sob mil cores, da ironia desmedida e do apreço pelo mundo das aparências transformou-o em um personagem, literalmente. Aos 40 anos, tamanha alienação quase lhe custou a vida quando Valerie Solanas, figurante de seu filme “I, a Man” (1967), tomada pela personalidade ausente do diretor, entrou na “fábrica” e disparou um par de vezes. Falar com ele, declarou Solanas, era como falar com uma cadeira.

América recupera para a posteridade a humanidade em Warhol. Espécie de antropologia artística da sociedade americana, no livro o artista pop atravessa o país com um olhar aguçado para transformá-lo em um índice sobre a cultura dos Estados Unidos: do amor ao exibicionismo (em vitrines), passando pelo comportamento das pessoas (em people), pelo culto ao corpo (em physique pictorial e vogue) e às celebridades (em all-stars), até chegar ao futuro (em life). No centro de todas essas reflexões, assinala os contrastes dos lugares pelos quais passou, como Washington, Kentucky, Texas, Aspen, Califórnia e, obviamente, a cidade de Nova York. Todos, diz Warhol, têm uma América própria, e todos têm os fragmentos de uma América fantasiosa que acreditam existir, mas não podem ver.

Aos 56 anos, depois do trauma de ter sido declarado clinicamente morto e ressuscitado, Warhol enxerga a América – que é como entende que os Estados Unidos devem ser identificados – com maturidade, voz essa distante daquela da personalidade emotivamente blindada das décadas de 1950 e 1960. Aqui, as diferenças se fazem sentir. O homem uma vez dado à vida noturna dá espaço à sinceridade em declarações como: “Sou do tipo que ficaria feliz em não ir a lugar algum, contanto que tivesse a certeza de saber exatamente o que está acontecendo nesses lugares. Sou do tipo que adoraria ficar em casa e assistir a todas as festas a que sou convidado em uma tela no meu quarto.”

Aos olhos de Warhol, a sua pátria é um cenário gigante, um aglomerado de pessoas diversas, de diferentes estilos e pensamentos. Mas o caráter heterogêneo, o traço que transforma a diferença cultural em orgulho nacional, soma-se a peculiaridades de formação, como a necessidade de viver no eterno “hoje”, fracionando e isolando os indivíduos. A solidão – ou o individualismo, essa versão moderna do mesmo – compactua com um retrato muito presente na arte norte-americana, do realismo de Edward Hopper (1882-1967) ao expressionismo abstrato de Mark Rothko (1903-1970).

Pela primeira vez desde o popismo, Warhol abre mão de apontar ironicamente as aparências para dialogar seriamente com os sentimentos da sua terra. Na passagem pelos cantos do país, pôde perceber que a cultura que tanto o inspirara era a mesma responsável por produzir a solidão em série. Por trás do desejo de fama, sobravam homens e mulheres desfigurados, irremediavelmente órfãos da notoriedade que lhes escapará cedo ou tarde. Se você tem uma vida real, chega a admitir Warhol, pode achar que é um grande perdedor; pode achar que, se pelo menos fosse rico e famoso, ou bonito, sua vida também seria perfeita.

Em América, a reflexão é um paradoxo entre a estupefação e a culpa. O avanço do projeto tecnológico-científico simula à população a possibilidade de chegar ao futuro primeiro. Esse timing desmedido fará do amanhã uma eterna expectativa, postergando e agravando o autoengano e a frustração. Em uma das fotografias de páginas inteiras do livro vemos Jean-Michel Basquiat (1960-1988). Artista original e de potência criativa ímpar, Basquiat tornou-se o protegido de Warhol. A relação, misto de admiração mútua e substituição paterna, resultou em uma parceria artística e afetiva rara, mas que não sobreviveria à vaidade daquele mundo por muito tempo. O rompimento afastou-os por um período suficiente para que Warhol, ao saber que perdera Basquiat prematuramente sem fazer as pazes, desejasse ter sucumbido ao atentado.

Sem melancolia e igualmente destituído de sentimentalismo, América é o retrato cru de um homem encarando o mundo. É o processo profundo de um artista frente às origens das suas alegrias e tristezas – frente ao mundo que criou e pelo qual foi criado.

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Gaviões noturnos

por Ananda Rubinstein

Perto de casa, num bar/café que é a cópia perfeita do diner de “Nighthawks” do Hopper, tomo um café morno, tristonho. A cafeteira gigante com ar retrô, os homens de chapéu, as mulheres que forjam um mistério distante, de outro tempo, como se o que existe não desse conta, as revistas de época espalhadas pelo balcão e a música vinda do jukebox compõem o clima emocional do Phillies – uma ilha de nostalgia pelo que não se viveu, onde tudo é analógico e hiper-real.

Ou quase tudo. Debaixo de um chapéu de feltro pork pie, um tipo interessante bebe algo e folheia uma Manchete, na capa “a grande festa do Carnaval de 76”. Percebe o meu olhar e eleva o dele, sem esboçar sorriso; um olhar fixo e circunspecto que mexe, imediatamente, com meu ritmo cardíaco. O homem acende um cigarro eletrônico e volta a ler. Meu corpo treme em ondas erráticas.

Faz semanas que não troco mais de meia dúzia de palavras com outro ser. Falo sozinha, para não esquecer o som da minha voz e quebrar o silêncio; invento diálogos em que travo as duas partes. Penso nos ensinamentos do Dr. Sidharta, meu neo-psicanalista que flutua, e me esforço para resgatar memórias, colocando-as no papel. Mas elas são uma faca de dois gumes: preenchem o vazio ao mesmo tempo em que desenham novas fronteiras de isolamento.

Escrevo cartas curtas que serão lidas por mim mesma no futuro – se é que este presente um dia acaba. Escrevo diariamente para que a “futura eu” possa compartilhar do que sinto agora. O homem de chapéu pork pie lê a Manchete de mais de meio século atrás como se buscasse ali uma resposta. Escrevo como se fizesse o mesmo.

Querida Futura Lara,
Você teve alguns relacionamentos no último semestre, mas nada sério e todos com bots. Há um limite de intimidade possível de ser compartilhada com um robô que emite frases automáticas como “tira a sua calcinha agora” e “vou te comer todinha” (mesmo que ele o faça com maestria). Logo a bateria acaba e é você com você mesma, diante do espelho, tirando o rímel, (des)acompanhada de um robô que cessou de existir e tudo o que resta é sua ausente presença metálica, vagamente assustadora e, sobretudo, entediante. Fuja dos que te privam da solidão sem te fazer, em troca, qualquer companhia.

Com afeto,
Lara de 2049.
________________

Sinto o peso do olhar do homem de chapéu pork pie. Alguns momentos se passam (quanto mesmo?). Ele fecha a revista, se levanta, vem em minha direção; apoiado no balcão, fixa seus olhos em mim e pede ao deprimido cara do bar um café curto. O homem de chapéu pork pie fica de pé, ao meu lado, pensativo. Eu não mais escrevo; ele não mais lê. Ficamos os dois ali, existindo. Do jukebox, Tom Waits canta “Jersey Girl”. O homem de chapéu pork pie olha para mim e sorri. Ele deposita um pacotinho de sal em seu café. Eu tento impedi-lo, em vão. As linhas que delimitam meu isolamento se redefinem.

Na teia infinita profunda da web, eu tinha contato com fragmentos de arte que de alguma forma me curavam da sensação de não-pertencimento adensada pela vida a cada segundo. Minha última relação começou online com um Surreal Doll® de silicone, um robô bonitão, barbudo. Douglas® – era seu nome de fábrica –, como tantos outros bots, agia como um ser humano normal, de inteligência artificial mediana, com “opiniões” – pouco importava se eram dele ou não – sobre política e cultura pop. Ele gostava de mim, de forma meio programada, mas e daí? O que ele não tinha era um inconsciente. Eu mesma vivia num enorme deserto de alienação, com alguns oásis em forma de insights e pretensas tomadas de consciência, e passava a maior parte dos dias com saudade de algo que não sabia o que era. De alguém que ainda não conhecia.

O fato é que, antes das sessões de terapia com o Dr. Sidharta surtirem qualquer efeito e eu conseguir ter acesso a pastas ocultas de memórias, minhas horas livres eram gastas em chats de encontros virtuais, onde todos os gatos eram pardos.

André, o homem de chapéu pork pie – ou Cyberman 13®, seu nome original –, não é homem nem ciborgue. Não há nada orgânico em seu corpo. Mas ele sonha. Estou diante de um dos primeiros bots dotados de consciência artificial. Não sei por que estou te contando tanta coisa, ele me confessa, entre goles do seu terceiro café, agora açucarado e que, por alguma razão, não tem efeito sobre ele. Tomamos um vinho?, sugiro.

Falamos livremente, Cyberman e eu; e muito nem precisa ser dito. Nossa comunicação se dá em outros níveis. Passo a desconfiar de que talvez não sejamos mais os indivíduos que já fomos um dia. Ainda sólidos, com barreiras de pele e ossos que nos separam brutalmente uns dos outros, sim. Ainda impossibilitados de realmente conhecer outro ser. O que e como sente a minha mãe? Meu ex-namorado? O que Cyberman deseja lá no fundo? Já fui amada? Mas, além de sermos os corpos que nos separam, somos também redes, máquinas que habitam a mente de outras pessoas. Somos memória e estamos o tempo todo deslizando para dentro uns dos outros, nos entremeando e saindo de novo, ad infinitum e sem nenhuma explicação.

O relógio de parede aponta 1 da manhã, a hora instável, quando o nó no peito aperta. Dou por mim e estamos só nós dois no Phillies, além do deprimido atendente do bar, por quem sinto a maior compaixão do mundo. Respiro profundamente. Sou feliz neste instante. A música é interrompida e o cara do bar avisa, ainda mais deprimido, que é hora de fechar.

#21SolidãoEditorial

Editora convidada: Manuela Costalima

por Manuela Costalima

Desde pequena aprendi a gostar da solidão. Em muitos intervalos da escola, enquanto as outras crianças pulavam corda, jogavam queimada e amarelinha, eu olhava aquilo tudo em silêncio, sentada em um canto. Naquele tempo, passava horas na biblioteca do meu pai, onde desenhava, mexia nos livros dele, folheava gibis. Ali inventava histórias, percorria mundos e me punha a sonhar.

Hoje navego pela internet. Que ideia mais estranha e tentadora essa de visitar mundos longínquos num simples impulso da vontade. Ontem mesmo resolvi passear pelo Google Street View. Estava chovendo. Então, aproveitei o computador para conhecer um novo lugar. Abri o mapa numa cidade pequenina no centro da Itália, dessas com mais de mil anos, construídas no topo de um morro, cercadas por muros de pedra, com uma grande praça central e, em frente a ela, uma igreja românica. Saí caminhando como faria se estivesse de fato naquele lugar. Da praça fui para uma rua mais estreita, onde avistei, numa venda, alhos, tomates e garrafas de azeite e, pouco depois, um toldo verde que parecia a entrada de um hotel. Segui até o fim da ruela, dei no muro de pedra e virei à esquerda numa passagem que dava num casario. Avistei então uma janela aberta, de onde olhava uma mulher com cabelos castanhos presos e uma roupa vermelho-escuro abotoada até o pescoço. A mulher segurava um tecido branco, que balançava ao vento. Dei um zoom para ver melhor a cena toda. Havia lá dentro algo que parecia um varal…

Ela devia estar dobrando as roupas secas quando ouviu um barulho e foi espiar o que acontecia lá fora. No forno, um daqueles pães que só se come em casa deve estar assando, e um espaguete deve estar pendurado, secando até a hora do jantar. O chão de sua casa deve ter muitas marcas, mas ela deve lustrá-lo toda semana, e no quintal imagino vasos de acanto e um pé de manjericão que nunca morre… Quase posso sentir o cheiro do pão assando, quase posso lhe dizer bom dia e perguntar qual o caminho de volta à praça. Quase posso ouvir seu convite para entrar um pouquinho, beber um copo de água e contar histórias de onde vim. Gosto dessa conversa silenciosa.

Há algum tempo encontrei outro espaço para meu silêncio: as ruas. São poucas as coisas que me trazem mais prazer do que uma longa caminhada na cidade. Perdida no meio da multidão apressada, exposta ao barulho das buzinas, ao cheiro de urina e fezes humanas, aos motoristas enlouquecidos, prontos para atropelar alguém na próxima esquina, me sinto bem.

Nas ruas não posso reeditar o que falo, não posso escolher o que encontro, não posso afastar para longe, com meus dedos, aquilo que me desagrada. O mendigo dorme na calçada, o motorista grita comigo porque atravessei fora da faixa, o vendedor quer me convencer a todo custo de levar as rosas já murchas. Mas, no meu caminho, acabo descobrindo uma mostra de filmes árabes, as frutas bonitas na venda da esquina, um cachorro peludo e sarnento, que abana o rabo quando passo por ali.

Nas ruas posso encontrar Gildo, que mora na escadaria da Igreja, veste sempre a mesma camisa amarela puída e sorri generoso e triste com os poucos dentes que lhe restaram. Às vezes divido com ele um café, enquanto me conta do seu Pernambuco, da comida da mãe, da vida no canteiro de obras e dos filhos que deixou para trás. A realidade é menos idílica do que a minha cidade italiana ou os mundos que percorri nos gibis. Meu amigo dorme no chão, tem fome e cheiro de cachaça. Deixo de inventar histórias. Na rua com Gildo não dá mais para sonhar nem viver a solidão.

#21SolidãoAmarello Visita

Café, água e bolacha: Amyr Klink

por Tomás Biagi Carvalho

Como você começou a se interessar pelo mar?

Quando eu tinha 12, 13 anos me incomodava muito meus pais falarem oito idiomas e nunca terem ensinado picas para a gente. Meu pai era do Líbano e minha mãe, da Suécia. Quando resolvi aprender francês, acabei falando muito melhor do que meu pai, e era a língua nativa dele.

Quando comecei a estudar literatura francesa descobri uma coleção sobre relatos de viagens no mar – da Arthaud – que era o máximo. Porque se você lê sobre futebol, por exemplo, existem poucos caras que escrevem bem a respeito, se você lê sobre relatos de viagens aeronáuticas, aviação, não existe um livro, de fato, que tenha valor literário. Agora, quando você começa a ler os relatos dramáticos da exploração da Antártica, são impressionantes: o Cherry-Garrard escrevia um puta texto. Ele era vizinho do Bernard Shaw, fazia embates literários com ele. E o Scott, que foi para o Polo Sul pela cobiça de mostrar a superioridade da raça britânica – razão muito imbecil – sabia escrever de uma maneira tão dramática que ele virou a grande vítima da Antártica para o mundo durante cem anos. Já o Nansen ou o Roald Amundsen são tão secos, tão enxutos, tão concisos na forma de escrever, que exatamente por isso, pelos textos terem zero emoção, escreveram relatos arrepiantes. Eles criaram emoção pela ausência de emoção.

Foi assim que eu descobri o mar, pelos livros – e pelos relatos do Bernard Moitessier, que era um “semipirata” francês, que morava na Nouvelle-Calédonie e entrou em uma prova a vela só para ganhar um premiozinho em dinheiro, num barquinho que ele mesmo fez com um poste roubado de telégrafo, e que acabou ganhando a primeira regata de volta ao mundo. Quando ele voltou para o Atlântico depois de fazer a volta sozinho, ele nem sabia que estava vencendo. Foi quando dobrou o cabo Horn [o ponto mais meridional da América do Sul] e, em vez de subir o Atlântico, ele falou “putz, ir pra Londres… lá só tem tempo ruim e mulher feia” [risos] “só pensam em dinheiro, Blue Ensign, iate clubes luxuosos…” e resolveu continuar. Assim, ele atravessou o Índico e o Pacífico pela segunda vez sozinho e foi parar no atol de Motu Tane, na Polinésia Francesa, onde ficou até morrer, e escreveu um livro, que foi talvez uma das mais fortes influências filosóficas na França: La Longue Route (o longo caminho). Ele não fala sobre a regata, sobre aventura, sobre as tempestades, como consertou ou resolveu aquilo ou isso. Nada. Ele não fala da aventura, mas da experiência humana de estar sozinho, e bem, no mar.

Exupéry, por exemplo, dizia que aventura para ele não era enfrentar desafios, mas simplesmente chegar de um ponto a outro – como atravessar os andes com seu avião para levar os correios. o que é aventura para você?

Pois é, não gosto muito de ficção. Eu me apaixonei por Júlio Verne e, depois, me desapaixonei – porque, se é para inventar, podemos inventar melhor. A vida real é incrível, muito mais louca do que a ficção.

Para mim, a aventura é o caminho. O objetivo é secundário; eu gosto da jornada. A jornada é do cacete. Porque você vive a ansiedade. Passei por isso agora: fiz a travessia mais arriscada da minha vida entre sexta- feira e domingo.

Todo ano a gente gosta de fazer uns barquinhos malucos de caiçara. Há dois anos eu fiz uma canoa em Guaraqueçaba (PA), que tem as canoas mais bonitas do Brasil, e vim navegando com ela até o Rio. Um puta risco de morrer. Mas a viagem é mais bonita do que a soma do Pantanal com a Amazônia, por exemplo. Você sai do Paraná e entra pela Baia dos Pinheiros, que dá no Canal do Varadouro [litoral do Paraná], que está meio abandonado desde 1930.

No sábado, era fim do dia quando entramos na barra, e, para sair, a ressaca era tão grande que, se voltássemos, iríamos morrer. A maré estava baixa, e era um turbilhão de ondas de cinco, seis metros de altura; no final, eu não consegui mais achar uma mancha de água escura, e tivemos que furar as ondas de frente. Quando chegamos à crista da última onda, meus colegas, que deveriam estar um pouquinho adiantados, estavam para trás, e de lado, lá embaixo. Quando eu olhei para baixo, não entendi o que eles estavam fazendo de lado, pensei que iam morrer. O cara que estava comigo é um super navegador, o Júlio Lucchesi, e falou: “Eles vão morrer, nós vamos ter que buscá-los”. E aí que eu percebi a loucura – já tínhamos quase passado e, se eles capotassem ali, teríamos que voltar para buscar dois corpos, e provavelmente morreríamos também. Então a onda passou, e descemos, olhamos por trás dela, esperando vê-los, e nada. Eu nunca tive tanta certeza de ter visto dois caras morrerem. Na quarta onda, veio uma megaonda de novo, só que veio bem antes de arrebentar, e era tão alta que, quando chegamos ao topo dela – eu estava com um binóculo –, olhei de novo e, lá no meio do caldeirão de arrebentação, vi a bandeirinha deles. O que aconteceu? Acabou o diesel deles na última onda, e eles perderam a velocidade, viraram de lado, começaram a brigar – porque iam morrer –, e um deles puxou o leme, virou e conseguiu surfar na onda, voltando para trás de novo!

Mas você voltou para buscá-los?

Sabe quando é uma mistura de medo com raiva? Eu falei: “Merda! Eu não quero voltar para buscar dois cretinos que merecem morrer!” – eu não sabia tinha ocorrido uma pane. Eu achei que eles estavam brincando!

O motor é pequenininho. Eles tinham que ter colocado diesel antes de entrar na barra.

Tinham tomado umas caipirinhas, uns Underberg, e esqueceram. Fiquei quase meia hora esperando. Se tivesse uma AK-47, eu acabava com eles [risos]. Nossa, que raiva! Quando passa, dá aquele alívio. Como eu contei para o Luís, meu amigo: já peguei mar com onda de vinte e seis, vinte e sete metros no Oceano Índico, mas eu estava preparado para isso, estava com um barco que consegue passar dia e noite mergulhando e saindo de onda.

Nunca na minha vida eu me senti numa situação de tão alto risco como essa. Nunca, eu falei para ele. Ele falou: “Conseguimos! Foi legal!”. Não foi legal. Puta medo, puta risco à toa.

O que você acha que a gente tem para aprender com o mar?

Tudo. Ele é o elemento que domina o nosso planeta. Eu tinha muito medo do mar quando era pequeno, porque eu tomei um tombo uma vez, e bebi água, comi areia e não gostei. Mas, depois, eu fui percebendo que o tempo que você passa no mar é um período de contínuo aprendizado, em todos os sentidos. Você vive em um meio imprevisível, muito forte, onde existe muita vida, o que é muito gratificante. Eu sempre gosto de brincar que é difícil encontrar gente morando em barco, trabalhando no mar, que seja chata. O mar é um processo de eliminação dos chatos, arrogantes, prepotentes e corruptos. Você não engana ninguém quando está no mar. Mesmo quando você não está sozinho, mas está muito isolado, é um isolamento tão contundente que ninguém esconde a sua verdadeira índole, ninguém.

Uma vez, uma turma saiu com meu barco, para nos encontrarmos em Portugal. Na turma, tinha um cara bad boy, metido a machão, outro levemente gay, outro puro comunista socialista contra-não-sei-o-que, um médico maluco de pedra, que eu adorava, e o amigo desse médico maluco, que veio da Paraíba e é matador profissional. Quer dizer, quando eu soube quem eram os tripulantes, falei: “Meu Deus, não tem chance de chegarem todos vivos!”, e fiquei muito impressionado quando vi os caras se abraçando em Lisboa e comemorando uma viagem maravilhosa!

De alguma maneira, eles se entenderam. A grande habilidade de conviver é descobrir qual é o talento de cada um. O cara que é malandro não vai conseguir te enganar porque uma hora vai se revelar, mas, de repente, como malandro, ele pode ajudar. O matador cozinhava magnificamente! É muito legal a vida num ambiente que, de certa maneira, despe quem você é.

Você tem preferência entre viajar acompanhado ou sozinho?

É difícil explicar isso, mas, quando você está sozinho, você valoriza as pessoas que conhece e que não vê, das quais você se serve. Ou seja, os seus provedores. Quando você está isolado, principalmente numa viagem longa ou num lugar muito distante, onde o próximo contato vai demorar muito para acontecer, você enxerga os seus provedores, porque você é obrigado a assumir a função deles. Então é você que vai fazer a sua energia elétrica, é você que vai consertar o que quebrar, você vai cozinhar, vai cuidar do banheiro, vai deslocar o barco até um outro continente, e, ao contrário do que parece, você não sente o peso de estar só. Você sente a pressão de ter que substituir tantas pessoas que gera uma espécie de afeto oportunista [risos].

O tempo é valioso e escasso. Você não pode dormir mais do que cinquenta minutos, por exemplo. Tudo o que você quer na vida é dormir. Você não quer ter um amigo legal e forte do lado para te ajudar. Você quer poder dormir três horas. O grande medo são as coisas que podem quebrar, que podem dar errado e param de funcionar. O tempo acaba passando muito rápido, e sobra muito pouco tempo para tudo; você chega no fim do dia: “Meu Deus do céu! Ainda não fui checar o eixo, a bomba de boreste, tem alguma coisa que está entupida, se encher de água não consigo esvaziar e vou deixar pra amanhã, e amanhã não vai dar tempo, tem que fazer isso e isso…”. É muito interessante, porque existe uma pressão do isolamento, como se fosse ficar sozinho em um hotel abandonado, mas não é. Você está num ambiente que exige intervenção o tempo inteiro.

Então, ao contrário do que muitos imaginam, não existe marasmo quando se está no barco.

Eu não tinha experiência de navegar solitário quando fui para a Antártica pela primeira vez. Tinha experiência num barquinho a remo, que é diferente. Nele, eu era o motor, o que é muito conveniente, porque você pode parar e dormir trinta horas se quiser. Tinha mais tempo. Quando você está num veleiro, o veleiro não para, dia e noite. Muita gente na época falava: “Poxa vida, você vai ficar quinze meses sozinho na Antártica? O que você vai fazer para matar o tempo?”, e eu falei: “Não sei, tô levando alguns jogos, coisas para criar, vou aprender uma língua nova…” – não deu tempo de ler um livro.

Quando você está em alto mar você ainda sente que está isolado do mundo ou você acha que agora a tecnologia atrapalha isso?

O legal da Antártica hoje é que já tem como ter internet e estar conectado. Mas é um saco estar conectado. Uma das coisas que me dá prazer de ir para a Antártica é poder desconectar. E a experiência de desconexão está ficando cada vez mais rara. É um negócio muito louco. Tem gente que se sente num precipício na hora que se desconecta; eu acho isso hilário. Para quê você precisa mandar um e-mail para avisar que já cruzou a linha de convergência? Ninguém vai poder te salvar se alguma coisa acontecer.

Existe uma parte favorita do seu trabalho, de todo esse processo?

Existe uma parte muito angustiante, porém uma parte de celebração, que é quando você começa fisicamente uma viagem. Mas, para mim, o ápice é quando passa da metade de uma volta ao mundo, ou de uma travessia, por exemplo. Porque aí você já sabe que, pelo menos estatisticamente, está em condição de chegar até a outra metade. E tem uma fase que não é muito legal, que é quando você tem certeza que vai chegar e vai dar certo, mas aí começa a enfrentar o que eu detesto, que é o mundo real, burocrático: visto para países, vigília, revistas a barco, etc…

Para a Antártica, por exemplo, não dá mais para ir sozinho, porque a lei exige vigília de 24 horas. Os Estados Unidos são muito burocráticos. Na Europa tem o problema de migração, então somos revistados, a cada doze horas vem um helicóptero, uma lancha, patrulha… Essa é a parte que eu não gosto. Outra coisa que me incomodava muito era depender de patrocínio. Foi assim que surgiu a ideia de construir barcos e, consequentemente, fazer uma marina. Essa era uma das utopias que eu tinha, eu pensava: “Meu pai largou um monte de terra para a gente lá [em Paraty], não é possível que a gente não ache um jeito econômico de tirar dinheiro dessa terra sem desgastá-la”. E hoje eu tenho uma fazenda de engenho que é linda de morrer, tem uma casa bonita, mas não tem mais nada, não produz nada, e daqui a mil e quinhentos anos vai estar do mesmo jeito. A gente só tem o serviço de guarda de barcos na água. Em terra, a gente não tem nada.

Onde você se sentiu mais local e integrado com o lugar?

Nossa, que pergunta interessante. [pausa] O lugar onde eu quis ser mais integrado foi as Ilhas Feroe. Um lugar que me marcou profundamente e que eu nunca mais visitei, e gostaria de visitar alguma hora. É um arquipélago escandinavo que fica próximo à Islândia e foi ocupado pelos Vikings no ano 826, e eles estão lá desde então. É uma das comunidades mais prósperas do mundo. E também é uma das culturas mais interessantes em relação a trabalho, tradição e modernidade. Todas as ações sociais são comandadas por mulheres. Até a paquera! Quem vai atrás são as meninas, e não os caras. Um lugar onde se trabalha até uma idade muito elevada, onde ninguém tem alguém para fazer o seu trabalho – quer dizer, não existe funcionários lá, todo mundo faz tudo.

Eu tenho ascendência escandinava e sei que os suecos são muito caretas e arrogantes, os dinamarqueses são muito bêbados, e os noruegueses são meio fechados e caipiras. Mas o pessoal das Ilhas Feroe lembra muito o pessoal do Brasil; são muito expansivos. As pessoas [dessa ilha] são as mais bonitas que eu vi na minha vida. Homens e mulheres – você pega as dez loiras mais espetaculares do Brasil; qualquer caminhoneira das Ilhas Feroe dá de dez. Conheci vários professores lá, por isso que eu acabei voltando. Eu fiquei mais ou menos dois períodos de quase um mês.

O que mais me impressionou é que a razão da prosperidade deles é a metodologia de ensino, que não mudou, desde o tempo dos nórdicos. Eles não têm aula de matemática, física, química. Eles ensinam, na grade curricular dos alunos, a construção de um barco viking ou de uma casinha viking e, no processo de construção do barco e da casinha, ensinam filosofia, matemática, física, química. Tudo aplicado.

Tenho um amigo lá, que na época tinha 21 anos, e se casou com uma menina de 19. Eles ganharam uma licença de trabalho de noventa dias para construir, eles mesmos, a sua casa própria. Pegaram um terreno, fizeram a terraplanagem, a fundação e construíram a casa onde eles vão morar o resto da vida. É uma terra onde as pessoas trabalham muito, se divertem muito, vivem intensamente e têm uma ligação muito forte com o mar. Tudo para eles vem do mar. Eles não têm produto próprio. Mas é um arquipélago muito interessante, porque eles são muito prósperos, e todo mundo se ajuda.

Li que você é fã da simplicidade e eficiência do design sueco. No brasil, apesar de muito diferente, também existe uma simplicidade no design, muita das vezes não valorizada por nós. Qual você acha que é o grande legado do design brasileiro para o mundo?

Não cabe mais, nos dias de hoje, você criar uma marca bonita e sonora, sem que ela tenha um valor autêntico por trás. Nesse aspecto, o Brasil tem uma autenticidade extraordinária. Por exemplo, no jeito de se mover sobre a água. Somos o único país que tem vários tipos de barcos regionais que ainda – por milagre – estão vivos. Os remos, outro exemplo, olha que loucura [aponta para vários remos pendurados na parede]. Existem mais de mil tipos diferentes, e cada detalhe tem uma razão de ser. Por que aquela pala é totalmente redonda, por que aquela outra tem uma ponta, aquela tem dois espetos, o remo de Paraty tem uma quilha no meio… existe uma razão funcional ligada ao uso de cada um. É um exercício de design sensacional. Eu vejo com muita preocupação o mundo globalizado. Temos que buscar nossas origens nas nossas raízes.

Não existe mais nenhum segredo. Os americanos desenham os produtos – barcos incríveis –, e os chineses fabricam. Se não começarmos a entender o design como um patrimônio intelectual, como um valor econômico para o futuro, estamos absolutamente fragilizados, à mercê. Nós não temos a cultura da eficiência, e, para conquistar essa cultura da precisão, da pontualidade, vai levar várias gerações.

No Brasil, existem mais de mil tipos de remos, e mais de trezentos tipos de barcos. Nos Estados Unidos não existe trezentos. O Reino Unido tinha tipos interessantes, a Escandinávia também, e sumiram, porque hoje as soluções tecnológicas vão se pasteurizando, ninguém usa um carro de oitenta, cem anos atrás, mas os barcos, ainda usamos uns de quatrocentos, quinhentos anos atrás. O barquinho que quase me matou é de um feitio de muitos séculos atrás. Na Amazônia existem barcos lindos. Mas o que acontece hoje? Os barcos de alumínio chegaram, e, de repente, o design local sumiu. Evaporou. A gente simplesmente não empreendeu um movimento de valorização do nosso patrimônio criativo. E isso vale para muitas outras coisas. Para a música, a indústria automobilística, a comida.

Você cita Vida e morte da cidade, da Jane Jacobs, como uma grande influência pessoal. Como você tem visto as evoluções do ponto de vista de urbanismo – mais especificamente da mobilidade urbana – na cidade de são Paulo?

O Robert Moses [engenheiro norte-americano que moldou as grandes cidades no século XX e apresentou um projeto para a construção do metrô de São Paulo] e o La Guardia, quando começaram a avançar e cortar Nova York, destruíram bairros que tinham vida própria, e, na mesma época, Jane Jacobs estava questionando esse gigantismo das vias expressas e começando a mostrar a importância de criar vida autêntica nos bairros e nas comunidades. É um assunto que eu gosto muito. Eu questiono muito o modelo de urbanismo que temos hoje. A favela é um modelo caótico, mas tem uma certa coerência, porque você mistura a moradia. A maior parte dos problemas sociais que temos hoje está ligada a uma falta completa de uma política urbanística ou de uma preocupação de como as cidades devem acontecer, ou como devem crescer. Eu entendo a cidade como um organismo vivo que uma hora amadurece e não pode continuar crescendo. Estamos vivendo um momento – é polêmico falar isso, 90% dos urbanistas não concordam, mas eu acho que São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Rio, por exemplo, são cidades que têm que começar a diminuir. Tem que começar a construir qualidade, não mais tamanho; não se pode mais continuar verticalizando. Estamos vivendo em um caos; o metrô já não é mais solução, e sim um problema. O que que adianta aumentar a malha do metrô se ela passa pelos mesmos gargalos? Você não consegue entrar na Sé às 6:30 da manhã com o pé no chão. Você é levado para algum vagão que você nem sabe qual é.

Quem que você citaria como as suas maiores fontes de inspiração, além de todos esses que você já falou?

Eu gosto de me inspirar em quem depende do que faz para sobreviver. Um monte de gente louca, que não estudou. É claro que eu gosto de estudar os ícones em cada área – em urbanismo, nas artes –, mas quando você encontra caras que nem os de Camocim [cidade litorânea no Ceará], que fazem esses barcos e ficam quinze dias no mar sem luz, sem um instrumento… É o tipo de inspiração que eu gosto de procurar. Acho legal entender o conhecimento acadêmico formal, artístico consagrado e, também, acho legal me inspirar nessas pessoas extraordinariamente simples e não instruídas, que têm uma sabedoria que é muito difícil de ser reconhecida. Isso vai acabar. A tendência no mundo de hoje, se a gente vai incorporando o conforto da vida urbana e vai dependendo cada vez mais de um saber fazer não autêntico para sobreviver, esse conhecimento vai morrendo. É uma forma de indigência.

Em que projetos está trabalhando no momento?

Estou trabalhando no conceito dos flutuantes que estou construindo com minha equipe. Fomos muito felizes tecnicamente com eles, e queremos ver se, um dia, conseguimos expandir isso para fazer bairros flutuantes, ou eventualmente comunidades flutuantes. O Brasil é um dos raros países que têm regiões que têm vocação para isso. O Pantanal, por exemplo. É muito mais sustentável, é de muito menor impacto você fazer as habitações sobre a água em vez de sobre a terra. No rio Negro você tem variações de 22, 23 metros de nível de água; é uma insanidade fazer cidade sobre a terra com esgoto correndo e gastar fortunas para canalizar quando você pode fazer tudo isso num nível só, in loco, embaixo da própria casa. Nós temos a tecnologia hoje, ela está no Brasil. Temos a solução, mas não conseguimos fazer as ideias. Existem vários lugares no mundo que têm cidades flutuantes. Vancouver e Seattle têm bairros inteiros flutuantes. Era um pessoal que tinha menos recurso e, então, fez cidades sobre toras de madeira, aí criou-se uma regulamentação técnica para isso.

O que você gostaria de fazer que você ainda não fez?

Ah, tudo, né? [risos] As coisas mudaram. Ir para a Antártica hoje não é tão legal como já foi; você tem que se tornar um operador turístico internacional, tem que fazer cadastro na International Association of Antarctic Tour Operator – eu falo que eu não quero operar turismo na Antártica, eu só quero ir para lá porque eu gosto. Mas sem ser membro OEA, não se pode ir mais. Então eu vou descobrir outros lugares, outros países, sei lá. Mas também me divirto muito indo para Guaraqueçaba.

#21SolidãoCulturaLiteratura

Um tesouro esquecido

por Shogyo Gustavo Pinto

“Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!”

“Lisbon Revisited” (1923),
de Álvaro de Campos

As palavras quase gritadas nos versos que Álvaro de Campos, o heterônimo, “ditou”, em 1923, a seu escriba, Fernando Pessoa, soam com extrema atualidade hoje quando celulares apitam e os cães de Pavlov em que nos convertemos salivam rápido a atender seu tirânico Senhor.

Perdemos um tesouro, e nem temos consciência de quanto nossas vidas se empobreceram. Perdemos o prazer de estar a sós. A solidão, bênção que nossos antepassados souberam cultivar, tornou-se palavra de conotação quase pejorativa.

É sublime, evidente e inegável a maravilha da companhia dos seres amados, cuja presença ilumina nossas vidas, mas sua ausência é desafio maior ao humano coração. Os entes queridos têm o dom de nos alegrar só por se fazerem presentes.

Esquecemos, porém, de que há maravilhas opostas, e complementares, o que só pode acontecer entre os diferentes. Mesmidade gera redundância, reiteração, não complementariedade.

Os chineses ensinavam na doutrina do Yang e Yin que os opostos existem no interior do Tao, unidade que os transcende, engloba e fundamenta. Heráclito dizia que “os contrários convergem e dos divergentes nasce a mais bela harmonia”.

Os velhos mestres recomendavam que, ao descobrirmos uma maravilha, não esquecêssemos de buscar a maravilha oposta, senão restaríamos coxos como o saci que hoje nos tornamos, incapazes de reconhecer a solidão como tão admirável e desejável quanto o seu oposto.

Sempre prezaram a solidão aqueles em busca de Deus. Não deve ser impossível, mas talvez seja um pouco mais difícil ouvi-lo em meio ao alarido de muitas conversas, a digitar sem parar mensagens, ou com fones de ouvido a estrondar incessantemente músicas ensurdecedoras. Usar novas tecnologias é sem dúvida uma maravilha. Falta descobrirmos a maravilha complementar, que é a liberdade de sabermos quando não usá-las.

Aos que há muito vivem aprisionados no imperativo da companhia, talvez seja útil um roteiro de introito à estética da solidão.

Sugerimos quatro perambulações a sós em meio à natureza. A ordem em que são apresentadas escolheu principiar pelo declínio e terminar no apogeu do curso das estações que giram contínuas em sua invariável sequência. Começo e fim são apenas humanas interpretações da eterna mutação. No outono, ao caminhar entre árvores frondosas, ouvir atentamente o silêncio se romper ao som das folhas secas que encobrem a terra quando crepitam aos passos do visitante. Apreciar o tom rubro, ardente qual brasa, daquelas folhas que parecem incendiar-se quando partem dos galhos onde nasceram e viveram. Enrubescidas, aquecem através dos olhos os viandantes nessa estação em que Apolo prepara sua viagem anual à Terra dos Hiperbóreos.

No inverno, quando as temperaturas descem a extremos, caminhar no ermo a contemplar as breves nuvens que surgem e desaparecem ao ritmo da respiração. A quietude ama o frio e a vida se acalma enquanto a estrada aparente que o sol percorre, a eclíptica, inclina-se buscando o horizonte. As plantas dormitam, os animais recolhem-se a seus ninhos e tocas. A mudez dominante ressalta cada esporádico som. Vez ou outra um pássaro canta, e sua voz estilhaça o silêncio tal como o relâmpago rompe a escuridão. Se estiver nas latitudes mais distantes do Equador, ou nas alturas de montanhas majestosas, ouvir a neve calar os passos de tudo que se move, e ver como cintila cada sinal de cor que resiste e persiste em meio ao branco.

Na primavera, observar o irromper do verde que esteve ausente e retorna nas primeiras brotações. Ouvir o alvoroço das abelhas ante as floradas, e o estrondo dos raios anunciando chuva. A despedida do frio convida as vozes que estiveram caladas a entoar seu canto. O caminho do sol que se inclinara volta a se erguer, os dias prodigalizam luz e instigam os seres vivos ao movimento. Os animais que hibernavam recolhidos fazem-se andarilhos, animam-se em folguedos, enamoram-se, procriam. O mundo que submergira no cinza renasce pródigo em cores.

No verão, observar o vigor poderoso das plantas que seguem o exemplo do bambu em seu célere crescimento, e ver como prosperam agora os filhos da primavera. Quando sob o sol a transpiração salgar a pele, sentir o contraste ao entrar lentamente nas águas doces de um riacho, ou então no mar para que o sal quente do suor se encontre com o sal fresco das águas. Ao irromper da sede, contemplar a promessa na verde esfera entre as folhas da palmeira. Ouvir o som surdo do fruto ao cair sobre a areia macia, e depois o estalo claro da lamina a romper a rija casca. Por fim, descobrir o sabor leve da água dadivosa que se resguardou fresca sob o sol escaldante.

Muitas das descobertas narradas nos quatro parágrafos anteriores teriam inevitavelmente passado despercebidas a quem caminhasse entretido numa conversa, ou no prazer de receber e responder mensagens. A companhia, seja física ou eletrônica, exige uma redução da atenção a si e ao entorno para se dedicar também ao interlocutor.

A experiência estética da solidão é apenas a antessala do tesouro. O sacrário que guarda a joia maior está adiante, na dimensão metafísica da solidão. O êxtase da beleza precede a entrada no mistério do silêncio em que brilha o sentido de cada fugaz instante aqui em nosso “mundo flutuante”, como disse o poeta chinês Li Mi-an no século XVI. Essa descoberta cada um faz a sós consigo para então descobrir-se uno com tudo e com todos.

A companhia nos oferece a maravilha da alegria quando uma presença torna ensolarado o dia chuvoso, e nos ensina a amar o outro. A solidão nos oferece a maravilha da serenidade que vê este mundo com olhos de além, e nos ensina a amar a nós mesmos. Os dois amores nos ensinam o amor da Vida Infinita pelos seres finitos.

A companhia é um bem. A solidão é um bem. O melhor é usufruirmos às vezes de um, às vezes do outro. Só assim seremos inteiros, só inteiros seremos quem somos, e só em quem somos encontraremos a inexplicável felicidade.

#21SolidãoArteArtes Visuais

To be an island

por Thais Graciotti

A Islândia é desses cantos do globo que pertencem à ordem da ficção, lugares que só Julio Verne escolheria como centro do mundo. A sensação é a de estar no começo e no fim de tudo. O vento gelado, o verde do musgo, o cinza da pedra, o azul do mar e do céu, a luz constante do verão que lembra, a cada minuto, que você está na extremidade do mundo.

Durante meu período de residência em Reykjavík, li numa enciclopédia que as ilhas começam no fundo do mar, que são coisas passageiras, criadas hoje, destruídas amanhã. Fotografar ilhas a partir de uma ilha, ou mesmo de uma ilha-barco em movimento, inverte o olhar para uma perspectiva quase tautológica. Tarefa obsessiva a que me dediquei sempre que estava em trânsito pelo país, e que a foto instantânea ajudou a promover, sobretudo a experimentação com a luz. O erros decorrem da linguagem escolhida, embora por vezes o que surge seja o nada, aquilo que some no escuro ou explode em luz, em outros momentos pontos, linhas, traços, riscos. As ilhas emolduradas demarcam fronteiras entre o mar e um formalismo geográfico que vai delineando a sequência desses pedaços de terra que emergem e desaparecem ao mar.

Drummond, divagando sobre ilhas, em algum momento disse que seriam “uma fuga relativa”. Já Deleuze pensa que a partir da ilha que se opera “a recriação, não o começo, mas o recomeço. Ela é origem, mas origem segunda. A partir dela tudo recomeça. A ilha é o mínimo necessário para esse recomeço, (…)”. Eu, assim como Verne, diria que a Islândia é uma viagem ao centro da Terra.