Ao término dos primeiros 100 dias do novo governo Lula, completados no último 10 de abril, é natural que se faça um levantamento mais detalhado do que foi e do que não foi feito ao longo desse período. É, afinal, um marco temporal significativo, em especial por se tratar de uma transição aprofundada do Brasil-catástrofe que aconteceu de janeiro de 2019 a dezembro de 2022. Entre as inúmeras mudanças que se fazem necessárias, dentro do tanto que se esperava mudar, um aspecto em particular arrepiava o cabelo de muita nuca por aí: para mandar uma mensagem clara e categórica à população brasileira, e ao restante do mundo, era urgente que o campo das políticas públicas passasse por um processo ardente de renovação. Isso, felizmente, se confirmou no trimestre que passou e vê-se no horizonte um punhado bem servido de propostas — em sua maioria, relançamentos de programas desmontados — que visam o combate à fome, a preservação do meio-ambiente, a luta contra o racismo e mais um mar de outras finalidades político-sociais. 

Foto: Getty Images

A despeito do hiato recente, no século XXI o Brasil segue a tendência progressista ocorrida na América Latina. Como conta Suzana Maria Loureiro Silveira1, advogada popular e mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, desde o fim dos anos 1990 os países do continente vêm, no geral, valorizando a gestão democrática — de Hugo Chávez, na Venezuela, até Fernando Lugo, no Paraguai —, universalizando condições de vida mais adequadas àqueles situados em vulnerabilidades socioeconômicas causadas por problemáticas históricas. 

“Desde seu primeiro mandato como Presidente, Lula tem buscado construir uma agenda política voltada ao reconhecimento das desigualdades sociais e históricas. No mesmo sentido, tem buscado alinhamento internacional sobretudo com países vizinhos. Esse movimento também ocorreu nos anos 2000 com a chamada ‘Onda Progressista’ ouOnda Rosa’ que representou uma base de sólidas articulações entre Estados latino-americanos por ocasião de vitórias presidenciais na virada do milênio. Em termos de integração houve um sentido de identidade para formulações de políticas voltadas à realidade regional. Esse recorte histórico não está alheio às políticas institucionais tomadas em cada país.”

As políticas públicas, então, dão as caras para promover o fortalecimento da participação social e a garantia de não retrocesso. O programa relançado que mais ganhou destaque nos noticiários brasileiros foi o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), uma iniciativa que garante compra de produção de pequenos produtores e oferece para pessoas em situação de insegurança alimentar. A mensagem por trás do programa e de toda a sua planejada repercussão? O combate à fome volta a ser uma das prioridades do governo. 

Evidentemente, uma política pública não se faz tão somente de boas intenções e posicionamento humanista. De tais discursos, a gaveta de projetos descontinuados ou ineficazes está cheia. Políticas públicas nada mais são do que ações governamentais para assegurar os direitos previstos na Constituição Federal, além de, com uma construção macro que se faz a cada programa, estabelecer uma linha geral de como fazer valer os valores que deveriam tocar a sociedade e servir, assim, de ferramenta para implementar mudanças progressivas. É por meio dessas políticas que o governo aborda algumas questões como a equidade de gêneros, estabelece diretrizes nacionais e providencia recursos necessários para alcançar tanto objetivos específicos quanto amplamente definidos. Se bem planejadas, podem fazer toda a diferença tanto para o presente quanto para o futuro. Com a ajuda de pesquisas científicas, por exemplo, as políticas públicas podem levar o Brasil a se tornar referência em energia limpa.

Como elas são feitas no Brasil?

O processo de elaboração de uma política pública é sempre complexo e multifacetado — dois adjetivos que, apesar de enclichezados, seguem sendo palavras-chaves para a compreensão do panorama brasileiro. De acordo com Suzana,

No Brasil, para que haja um mínimo de legitimidade das ações estatais, reveste-se no discurso das políticas públicas a necessidade da criação de instrumentos pelos quais serão promovidas as prestações que induzam ao ‘trajeto’ previsto pelo programa ou meta, previamente prescritos, sujeitos, inclusive, à intervenção de órgãos de controle (legalidade, constitucionalidade e orçamentário) como é o caso do Poder Judiciário e tribunais de contas. Pragmaticamente, as políticas públicas enquanto essas ações estatais funcionariam como um meio. Nesse contexto, as políticas públicas atuam como instrumentos necessários à efetivação de direitos fundamentais, refletindo-se em uma ação do Poder Público tendente à realização gradativa de programas ou metas definido em norma jurídica, sob a qual pode recair controle jurisdicional quanto à eficiência relativa entre os meios utilizados e os fins ou resultados, produto da atuação estatal. Assim, toma-se como uma peregrinação em que é inerente percorrer um caminho, compreendido, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, como imprescindível à prestação estatal, isto é, é essencial que haja a definição de uma política pública dentro de uma previsão orçamentária (votada e aprovada) e a execução do programa social aos moldes de sua definição. 

Presentes no Brasil, podemos pensar em 4 tipos de políticas públicas: a política pública distributiva, construída com o orçamento público contemplando ações que fornecem serviços para a população (ou parte dela) por meio do Estado; as políticas públicas redistributivas visam reduzir a disparidade social (um bom exemplo atual é a isenção do imposto de renda, que, a partir do ano que vem, aumenta a sua régua e passa a ser aplicada a quem recebe até R$2.640); as políticas públicas regulatórias estão diretamente relacionadas com as leis, criando, aprimorando ou fiscalizando o cumprimento de leis que asseguram direitos e o bem da sociedade; já as políticas públicas constitutivas têm como objetivo estabelecer as responsabilidades das esferas de poder, distribuindo e determinando se a responsabilidade sobre algo é do governo municipal, estadual ou federal. 

Na primeira etapa para a elaboração de uma política pública, identifica-se problemas e desafios que precisam ser abordados. Esses problemas podem surgir de diversas fontes, incluindo demandas da sociedade civil, diagnósticos técnicos e avaliações de resultados de políticas existentes. Como a educação é pouco, ou quase nada, democratizada, um ProUni (conhecido também como Programa Universidade Para Todos) se faz necessário para ampliar o acesso ao ensino público. Como a violência contra mulher atinge números cada vez maiores, uma Lei Maria da Penha precisa existir.

Com base na identificação dos problemas, as propostas são desenvolvidas por meio de consulta, negociação e articulação com diferentes atores sociais e institucionais. Essas propostas podem ser elaboradas por grupos de trabalho, comissões ou ministérios especializados. Depois que são formuladas, elas precisam ser implementadas por meio de ações concretas. Isso geralmente envolve a alocação de recursos financeiros, humanos e materiais, a definição de marcos regulatórios e a criação de instituições e mecanismos de gestão. Por fim, as políticas públicas precisam ser monitoradas e avaliadas para avaliar sua eficácia e efetividade. Isso envolve a coleta de dados, a análise de resultados e a revisão das políticas existentes para garantir que elas estejam alcançando seus objetivos.

Mas há alguns problemas na simplificação de processos que muitas vezes ocorre por aqui. O que fazer se, digamos, uma política pública não vingar? Não é difícil de acontecer, principalmente em um país gigantesco como o Brasil, que naturalmente impõe um sem-fim de obstáculos na implementação de qualquer medida ou programa. Como diz o economista Marcos Lisboa, inovações fracassadas do setor privado duram pouco no mercado, já as estatais perduram. Isso, por si só, levanta uma outra questão: o que é o sucesso ou o fracasso de um projeto? É comum que isso não seja definido de antemão, o que dificulta a tomada de decisões lá na frente, diante dos resultados. A política pública no Brasil por vezes não embasa suas ações em evidências disponíveis.

Mas, então, como deveriam ser feitas?

No mundo ideal, as políticas públicas deveriam ser feitas com base em princípios de transparência, participação, fiscalização e efetividade. Ou seja, as políticas públicas deveriam ser desenvolvidas em um processo aberto e participativo, com o envolvimento ativo de diferentes atores sociais e institucionais. Deveriam, também, ser avaliadas regularmente, e de maneira efetiva, para garantir que estão atingindo seus objetivos e contribuindo de fato para o bem-estar da população.

Nesse mesmo mundo ideal, a promoção da equidade e da justiça social deve ser o objetivo-mor, mas sempre com a adoção de políticas baseadas em evidências e a busca pela eficácia na implementação. As políticas públicas devem ser desenvolvidas de maneira estruturada e consistente, levando em consideração as necessidades da sociedade e as condições políticas, econômicas e sociais do país, incluindo possíveis barreiras. 

Há diversos elementos limitadores da ação, elementos jurídicos que atuam de modo a justificar as limitações de outras ordens (econômica, política etc.). As leis e planos orçamentários determinam a formulação e o alcance das políticas públicas. As alternâncias políticas e de projetos de governos impõem à população incertezas, uma vez que é suficiente que se altere a posição de um governante com relação a outro para que o cenário de formulações públicas em seu caráter progressista e mais social seja alterado. A universalização de garantias sociais tomada enquanto política de Estado representaria maior garantia aos grupos sociais subalternizados.

No entanto, a todo momento estamos trabalhando em nossa narrativa no âmbito do dever ser. No espaço amistoso e confortável do Direito, o de suas ficções e abstrações. Temos tantos e vários direitos reconhecidos, ratificados, internalizados, positivados, contudo sem muita garantia. Ironicamente, direitos que apesar de fundamentais parecem não ser encarados como tão fundamentais assim. Basta lermos o artigo 7º, 6º e 5º da Constituição.” , nos lembra Suzana.

Com isso em mente, o caminho básico deveria ser mais ou menos o seguinte:

Identificação do problema sempre em primeiro lugar. Pode parecer uma obviedade, é válido apontar que essa identificação sempre deve ser baseada em pesquisas e isso quer dizer que nada adianta se essas pesquisas só buscarem evidências que dizem respeito aos fins específicos daquele projeto e fechem os olhos para boa parte da população. 

Definição de objetivos: como saber se foi ou não foi bem-sucedida? A partir da identificação do problema, é indispensável definir os objetivos que a política pública deve alcançar. Esses objetivos devem ser claros, mensuráveis e, claro, realistas.

Elaboração de alternativas. Com os objetivos definidos, é hora de desenvolver alternativas para atingi-los, considerando o corpo de elementos que constituem nosso sistema jurídico. Essas alternativas podem incluir diferentes estratégias, programas, ações e investimentos.

Análise de custo-benefício. Antes de escolher a alternativa mais adequada, para fins de viabilidade é importante realizar uma análise de custo-benefício. Isso significa avaliar os custos e os benefícios das diferentes opções e escolher aquela que oferece a melhor relação custo-benefício.

A implementação da política talvez seja o ponto mais complicado. Pensar fora do papel, mas, ao mesmo tempo, fazer isso com o pé no chão para visualizar as viabilidades do Brasil real. Depois de escolhida a alternativa mais adequada, é hora de implementar a política pública. Isso pode envolver a criação de leis, regulamentos, programas e outras ações.

Monitoramento e avaliação: por fim, é importante monitorar e avaliar os resultados da política pública. Isso permite que os responsáveis possam identificar o que está funcionando bem e o que precisa ser ajustado ou modificado para que a política possa ser ainda mais efetiva e longeva.

Nada disso é necessariamente linear, tudo pode ser adaptado de acordo com o contexto e a natureza da política pública em questão. A participação e o diálogo com a sociedade civil e os grupos afetados pela política são fundamentais para garantir que ela seja efetiva e atenda às necessidades da população.

Devemos ser otimistas?

Quando comparamos o Brasil com outros países, temos ao nosso favor uma Constituição progressista que garante direitos sociais e trabalhistas, além de políticas públicas importantes que têm contribuído para a redução da pobreza e da desigualdade; por outro lado, o Brasil também enfrenta desafios significativos, como a corrupção, que afeta a efetividade e a transparência das políticas públicas, e a desorganização política, que implementa medidas de maneira descoordenada e sem uma avaliação adequada de resultados, o que pode levar ao desperdício de recursos e a um cenário de ineficiência.

O impulsionamento de um conjunto de condições materiais de existência (categoria podemos inserir os direitos fundamentais positivados na Constituição de Federal de 1988) às necessidades do capitalismo se dá independentemente da base ideológica do governo ou da plataforma política do momento em que as decisões são tomadas, que posteriormente decorre na definição de agenda, implementação de políticas públicas, pois a forma do Estado representa a forma social desta determinação histórica e não de outra. As políticas públicas experimentam variações com base nas vocações político-ideológicas no grupo que ocupa as mais altas cúpulas. Não se trata apenas de seu funcionamento, mas da essência da política pública que se almeja em um determinado recorte histórico. 

A eficácia das políticas públicas de um país é algo complexo de se avaliar e depende de diversos fatores, como o contexto político, social e econômico do país em questão. Um país frequentemente citado como exemplo de eficácia das políticas públicas é a Noruega. Mas como comparar a Noruega ao Brasil? 

Enquanto um é um país latino-americano emergente de 8.516 milhões de km², o outro é um país nórdico consideravelmente menor que a Bahia, cujo IDH é o segundo melhor do mundo. De maneira geral, a Noruega é conhecida por suas políticas públicas progressistas e bem-sucedidas, com um sistema de bem-estar social abrangente, que oferece saúde, educação e assistência social universais e de alta qualidade; políticas ambientais rigorosas, que visam reduzir as emissões de gases do efeito estufa e promover a transição para uma economia de baixo carbono; investimentos significativos em pesquisa e desenvolvimento, que têm ajudado a impulsionar a inovação e o crescimento econômico; políticas de igualdade de gênero, que têm levado a uma maior participação feminina no mercado de trabalho e em posições de liderança. Talvez isso pareça um verdadeiro oásis quando posto ao lado do país que ocupa somente a 87ª posição no ranking de desenvolvimento. Porém, lembremos das diferenças.

Para analisar criticamente qualquer assunto sobre a realidade do Brasil e da América Latina, devemos considerar alguns determinantes históricos que ainda continuam a produzir efeitos na forma pelas quais as condições de vida de diversos grupos sociais são construídas. Tais determinantes decorrem de eventos históricos como colonização, que implicou na condição de periferia suportada na região, por exemplo. De certa forma, toda problemática que envolve a temática de escolhas, decisões e elaboração de mecanismos que operem em um mínimo de alteração na realidade social de pessoas historicamente excluídas possuem um denominador comum: a especificidade histórica do direito no capitalismo. 

Em outras palavras, as demandas são diferentes, as realidades são diversas. A adoção por relativização de problemas sociais se realiza sob duas racionalidades distintas, em momentos históricos e conjunturais que não se confundem, ou deveriam ser confundidos. O que dá certo para um específico problema em uma localidade, não deve ser utilizado como modelo à outra.

Ainda que a comparação não seja o caminho indicado, a taxa brasileira de desenvolvimento humano relativamente baixa indica que há espaço para melhorias em áreas como saúde, educação e segurança pública. Não é de hoje que o país tem potencial para avançar e melhorar suas políticas públicas. À semelhança das próprias políticas públicas, tão limitadas pelo contexto jurídico-institucional, sendo muitas vezes incapazes de promover as mudanças pretendidas, perdura a sensação de que o Brasil é o Brasil que consegue ser e não o que deveria ser. Um país do futuro demasiadamente preso às agruras tanto do passado quanto do presente. 

No entanto, um certo otimismo pode subsistir sob tudo isso. Não chegaremos ao IDH da Noruega tão cedo, é verdade, mas estamos mais perto disso em 2023 do que estávamos nos quatro anos que vieram antes. Agora, finaliza Suzana, é tempo para que nós, sobreviventes de uma gestão de extermínio, organizemo-nos politicamente e pautemos as nossas lutas e bandeiras. A saída é pelo povo.

O mundo, e os muitos mundos que cabem no Brasil, precisam que a eterna promessa vire realidade.


1Suzana Maria Loureiro Silveira é Mestra e Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PPGD/PUCC). Doutoranda em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (PROLAM/USP). Integrante do Grupo de Pesquisa Crítica do Direito e Subjetividade Jurídica (USP). E-mail: [email protected]

O termo “consciência de classe” foi cunhado no início do século XIX pelo filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel e posteriormente popularizado pelos pensadores socialistas Karl Marx e Friedrich Engels. Para Hegel, a consciência de classe se referia à compreensão que os indivíduos têm de si mesmos como membros de uma determinada classe social, abarcando aí as formas com as quais essa compreensão afeta suas visões de mundo e ações político-sociais. Já a dupla Marx e Engels atribuiu ao conceito um significado mais específico, argumentando que a ideia traduzia um entendimento consciente e crítico dos interesses de classe e da posição social de um indivíduo na sociedade capitalista. Segundo eles, essa compreensão é um processo histórico que se desenvolve à medida que os trabalhadores percebem que seus interesses são distintos dos interesses da classe capitalista dominante, e que a luta de classes é necessária para alcançar a emancipação social e econômica.

Dito isso, pensemos no Brasil. Por aqui, há uma clara distinção entre a classe dominante e a trabalhadora. De acordo com o relatório World Inequality Report 2022, elaborado pelo World Inequality Lab, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, ocupando a “honrosa” 9ª posição no ranking global de desigualdade de renda. Em alguns pontos do país, esse cenário se faz gritante. Bom exemplo desse berro é o bairro do Morumbi, que comporta em si, num raio bem menor do que seria de se imaginar, a maior favela da América Latina e uma das maiores concentrações de renda do país. Você já deve ter visto a imagem que registra a divisa entre uma sequência de condomínios de luxo e uma sequência de moradias de baixa renda, ilustrando com perfeição essa dualidade do bairro e evidenciando, sobretudo, os altos índices de má distribuição de renda do país. Tirada no começo dos anos 2000, a foto já virou quase um clichê ao redor do globo: de tão eloquente, por escancarar uma realidade exageradamente desequilibrada, ela acaba sendo fácil de ser usada como exemplo. Trocando em miúdos, para o mundo inteiro somos uma amostragem de desigualdade.

Foto de Tuca Vieira.

Existe uma noção geral dessa realidade?

Pela lógica, a tendência é que a consciência de classe seja mais forte nos países em que a desigualdade de renda é mais alta, porque trata-se de um contexto em que as pessoas são mais propensas a se identificar com um grupo social, reconhecendo, ainda que inconscientemente, que pertence a um determinada estrato da sociedade. Ou seja, se tomarmos essa tendência como referência, estando no top 10 de países com maior desigualdade social, no Brasil essa consciência deveria ser alta. Mas, no fim, estamos conjecturando em cima de um conceito complexo e subjetivo, difícil (senão impossível) de medir e comparar entre países. Às vezes, parece irreal pensar na população brasileira como um corpo social totalmente ciente de seus próprios contrastes, ainda que estes sejam vividos diariamente; às vezes, no entanto, é impossível pensar o contrário. Ficamos um tanto reféns de nossas impressões pessoais, baseadas na vivência ou não.

Vários movimentos sociais e políticos demonstram que há, sim, uma forte consciência de classe no Brasil: lutas pelos direitos e interesses das classes trabalhadoras denotam isso, como sindicatos, partidos políticos de esquerda e grupos de defesa dos direitos humanos. Ela também pode ser captada na crescente mobilização e conscientização dos jovens e das minorias sociais, que enfrentam desigualdades históricas e estruturais em relação à classe dominante. Por mais louca e perigosa que as redes sociais possam ser, ela cumpre bem a função de conscientizar gerações mais novas — o que, em décadas passadas, ou nunca aconteceria ou, quando muito, aconteceria tardiamente.

É claro que vale ressaltar que nem sempre essa consciência é forte e coesa, já que muitas vezes — quiçá sempre — é influenciada por fatores culturais, políticos e econômicos complexos. Além disso, as desigualdades sociais e econômicas no Brasil são profundas e persistentes, o que significa que a consciência de classe pode ser difícil de se desenvolver e de ser mantida em algumas regiões do país.

E os impostos, o que nos dizem sobre isso tudo?

Como os impostos são uma forma importante de financiamento das políticas públicas e de redistribuição de renda, a consciência de classe pode influenciar a percepção dos cidadãos em relação aos impostos e como eles são utilizados pelo Estado. Em geral, dança-se o baile ao som das cornetas douradas do privilégio: a classe trabalhadora paga uma parcela significativa de impostos em relação à sua renda, enquanto a classe mais rica paga proporções menores. Isso pode levar a uma percepção de injustiça fiscal e a uma falta de confiança nas instituições governamentais. Por outro lado, quando os cidadãos têm uma consciência de classe mais desenvolvida, eles tendem a ter uma visão crítica das políticas fiscais e a exigir uma maior progressividade fiscal, ou seja, que os impostos sejam mais elevados para os mais ricos e que os recursos arrecadados sejam direcionados para programas sociais que beneficiem a classe trabalhadora.

A consciência de classe pode influenciar a percepção dos cidadãos em relação ao papel do Estado na economia. Enquanto os defensores de uma consciência de classe mais aguçada tendem a acreditar que o Estado deve desempenhar um papel mais ativo na promoção da justiça social e na redução das desigualdades, aqueles com uma visão menos crítica da classe tendem a favorecer políticas que reduzam o tamanho do Estado e a carga tributária. No Brasil, o sistema tributário é bastante complexo e o pagamento de impostos pode ser uma questão delicada para muitos cidadãos e empresas. Há uma grande quantidade de normas, leis e regulamentações que regulam a cobrança de impostos, o que pode dificultar a compreensão e o cumprimento das obrigações fiscais.

Existem diversos tipos de impostos, que são cobrados tanto pelo governo federal quanto pelos governos estaduais e municipais. Alguns dos principais são: o Imposto de Renda (IR), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e Imposto sobre Serviços (ISS).

O dinheiro arrecadado com os impostos no Brasil é destinado a diversas áreas e serviços públicos, tais como saúde (SUS), educação, segurança pública: assistência social, previdência social e outros. A alocação dos recursos públicos pode variar de acordo com as prioridades estabelecidas pelo governo em cada período. 

Sistemas tributários progressistas

Pensar na consciência de classe e na tributação específica de países pode ser interessante por, diante da postura de cada um, analisar as maneiras como cada um lida com a respectiva desigualdade social. Existem vários países que adotam políticas tributárias progressivas e buscam taxar as maiores riquezas de maneira justa. Alguns exemplos europeus, cuja realidade, sabemos, é diferente do Brasil, incluem:

Dinamarca Conhecido por ser um dos sistemas tributários mais progressivos do mundo, tem uma taxa máxima de imposto de renda de 55,9% sobre os rendimentos mais elevados. Além disso, a Dinamarca também cobra impostos sobre heranças e doações, e possui um imposto sobre a propriedade que incide sobre imóveis e outros ativos.

Suécia Taxa máxima de imposto de renda de 57,1%. Além disso, a Suécia cobra impostos sobre a propriedade, heranças e doações, e tem um imposto sobre a riqueza que incide sobre os patrimônios líquidos mais elevados.

Noruega Taxa máxima de 39%. A Noruega também cobra impostos sobre a propriedade, heranças e doações, e possui um imposto sobre a riqueza que incide sobre os patrimônios líquidos mais elevados.

Alemanha & França Com sistemas parecidos, a taxa máxima do imposto de renda alemão é de 42%, enquanto a francesa é de 45%. Ambos os países cobram impostos sobre a propriedade, heranças e doações. Além disso, têm impostos sobre a fortuna que incide sobre os patrimônios líquidos mais elevados.

Marx e um futuro almejado há mais de um século

“Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência.” Essa é uma das muitas frases famosas de Karl Marx. Entender a qual grupo pertencemos é determinante para tornar qualquer luta legítima. A falta de consciência de classe é capaz de criar cenários tenebrosos, como muitos que vivemos no mandato presidencial passado, em que os capatazes particulares nadaram de braçadas para sair à frente de qualquer sociedade igualitária. 

Para além de uma história formativa repleta de desigualdade e crueldade, temos uma história recente que faz ecoar com força essa triste realidade clássica brasileira.

Tanto Israel quanto a França vêm sendo palco de manifestações populares relevantes, cada semana mais divulgadas pelos noticiários ao redor do mundo. Em Israel, as reivindicações gritam contra a reforma judicial proposta pelo primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu; na França, a voz popular está contra a reforma da Previdência, uma das principais pautas do presidente Emmanuel Macron. Na medida em que as ruas dos dois países recebem mais e mais protestos — sim, com a violência infelizmente se fazendo presente —, os estadistas em questão seguem um tanto distantes do vozerio, respondendo a tudo com certa indiferença, a despeito das proporções enormes que as ondas de protestos tomaram. 

Casa do Senado francês.

Antes de nos darmos conta, por essas e outras, adotamos uma atitude cética quanto à real participação popular nas decisões políticas do Estado.

Em uma democracia participativa, os cidadãos são ativamente envolvidos no processo de tomada de decisão política, seja por meio de votação, debates, consultas populares, audiências públicas, fóruns e outros mecanismos de participação popular. Em muitos países, a democracia representativa tradicional tem sido criticada por não conseguir representar de forma adequada as necessidades e desejos da sociedade, especialmente de grupos minoritários ou marginalizados. Um equilíbrio entre a representativa e participativa, em tese, teria o poder de aumentar a confiança dos cidadãos nas instituições políticas e a construir uma sociedade mais inclusiva. Como garantir que todas as vozes sejam ouvidas e que as decisões sejam tomadas com mais de um grupo social em mente? O conceito de democracia parece divergir se analisarmos suas aplicações em diferentes contextos político-sociais, cada qual com seus conflitos e divisões. 

Se cada um tem a sua, do que é feita uma democracia? E do que é feito o espírito político de um país?

“do que é feita uma democracia?”

Alguns países são mais politizados do que outros e existem várias razões para isso. Primeiro, e possivelmente antes de qualquer outro fator, temos o histórico específico daquela nação — ainda que seja difícil, ou quase impossível, compreender totalmente de que maneira o passado vai se reverberando por entre as épocas. A verdade é que ele não vai só passando, como também se alterando. Se um país teve uma longa tradição de democracia e participação política, por exemplo, talvez seja mais provável que seus cidadãos estejam envolvidos em assuntos políticos.  Por outro lado, se um país teve uma história de autoritarismo e instabilidade política, talvez haja menos interesse e participação política. O “talvez” é a palavra-chave. Não é verdade que países mais desenvolvidos economicamente tendem a ter mais recursos para investir em educação, mídia e outras formas de envolver a população em assuntos políticos? Sim. E que, além de, dotados de todo o desenvolvimento, esses cidadãos têm mais acesso à informação e podem, assim, criar mais naturalmente um senso crítico em relação ao governo? Sim. Mas nada garante que as linhas dessas digitais serão assim ou assado. O que não quer dizer que devemos ignorar esses ou outros indicativos. 

Populações de países com maior liberdade política, incluindo liberdade de imprensa e de expressão, são mais propensas a serem mais politizadas, já que, em um contexto no qual as pessoas sentem que têm voz e poder para influenciar a política, elas tendem a se envolver mais. O mesmo acontece em países com maior polarização, por se tratar de uma pauta rotineira e difundida: guardadas as devidas proporções, é como quando somos pequenos brasileiros e nos sentimos forçados a dizer para que time de futebol torcemos, Palmeiras ou Corinthians, Flamengo ou Fluminense. Quando as questões são controversas e polarizadas, as pessoas tendem a se identificar mais fortemente com um lado ou outro e se mobilizar para defender seus pontos de vista. 

Se os “propensas a…” e os “tendem a…” deixam clara a imponderabilidade, as conjunções de cada caso deixam claros os caminhos a serem seguidos. Tomando como referência a história da França, por exemplo, não precisa de muito para que logo se veja um espírito democrático aflorado. 

Por mais que se questione o lugar-comum que nomeia o país como o “berço da democracia”, é inegável que se trata de uma cultura política que valoriza e naturaliza manifestações populares contra medidas do governo ou seja qual for o tema social. Só na última década, podemos citar vários protestos que aconteceram na França, como em 2016, quando o governo francês propôs uma reforma trabalhista que, entre outras coisas, tornaria mais fácil para as empresas demitir funcionários e facilitaria a negociação de acordos de trabalho. Ou, então, como em 2018, quando ocorreram as manifestações dos coletes amarelos, um movimento espontâneo de pessoas vestindo coletes e protestando no país todo contra o aumento dos impostos sobre combustíveis e os custos de vida em geral. 

Podemos até citar os protestos contra a reforma da Previdência de 2019 — opa, bateu um déjà vu aí? Já no final daquele ano, o governo francês propôs uma reforma vista como uma ameaça aos direitos trabalhistas. Agora, pela segunda vez em pouco tempo, a população francesa testemunha um aumento na idade de aposentadoria: o objetivo da nova lei previdenciária é, de maneira gradual (mas rápida), subir a idade de 62 para 64 anos, até 2030. A última mudança havia sido recente, em 2010 — antes disso, a idade de aposentadoria era 60. A reforma também adianta para 2027 a exigência de contribuir 43 anos para obter uma pensão, e não 42 anos como acontecia até agora. Além disso, a nova lei elimina os privilégios de aposentadoria de alguns funcionários do setor público, como os trabalhadores do metrô de Paris. Os protestos e greves de setores trabalhistas vêm acontecendo desde 19 de janeiro, quando a proposta foi apresentada. Desde então, centenas de milhares de pessoas se mobilizaram e foram às ruas — o que, ao menos por ora, tem se mostrado insuficiente

Knesset, o parlamento de Israel.

No caso de Israel, que também vive um contexto conturbado, basta uma rápida passada de olho pelas últimas décadas para perceber que as manifestações políticas, assim como na França, fazem parte do gene da população. A polêmica e infindável questão da Palestina decerto exerce influência sobre esse aspecto, uma vez que a mentalidade das pessoas israelenses é cultivada com a normalização de protestos, tendo os seus respectivos eu-políticos lembrados constantemente. Não é difícil encontrar exemplos recentes: em 2019, milhares de israelenses protestaram contra a crescente violência em comunidades árabes do país e pediram ações do governo para combater o crime; em 2018, manifestações em Tel Aviv gritavam contra a lei de imigração de Israel, que muitos argumentaram ser discriminatória contra os refugiados africanos. Os protestos populares são um aspecto importante da vida política em Israel e, com a reforma judicial israelense de 2023, não está sendo diferente. 

O plano apresentado pelo vice-primeiro-ministro e ministro da justiça, Yariv Levin, com o apoio do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, tem como objetivo mudanças fundamentais no ordenamento jurídico de Israel. Alguns aspectos da proposta dão ao governo influência decisiva sobre a escolha de juízes, além de impedir que a Suprema Corte do país revise leis aprovadas pelo Parlamento. A medida é considerada controversa por causa do sistema político de Israel, que não tem uma Constituição formal e usa leis básicas para definir o papel das instituições e Poderes. O parlamento teria o poder de anular as decisões da Suprema Corte por maioria simples, além de dar ao governo o poder de nomear juízes — algo que, atualmente, fica a cabo de um comitê composto por juízes, juristas e políticos. A reforma judicial é uma das principais apostas do governo Netanyahu. Porém, em meio à gigantesca onda de protestos, que dura praticamente 3 meses e parece não ceder, anunciou na última segunda-feira de março (27) uma pausa no andamento do projeto de reforma.

É claro, no entanto, que a criação de uma cultura política é um processo complexo e que nem sempre se serve de uma leitura linear. A espinha dorsal de uma nação é composta também pelo intangível. O que dizer do famoso paradoxo político argentino? Talvez não exista exemplo melhor para ilustrar a contradição que muitas vezes faz parte da construção da política de um país. Na Argentina, ao mesmo tempo em que há uma forte tradição que valoriza a democracia e a participação popular, mas, há também uma curiosa tendência histórica de líderes populistas autoritários que governam com mão de ferro.

“a criação de uma cultura política é um processo complexo e que nem sempre se serve de uma leitura linear”

Durante grande parte da história argentina, houve um forte apelo popular por governos que prometiam justiça social e participação democrática, como foi o caso do Movimento Nacional Justicialista, mais conhecido como peronismo, um movimento político fundado nos anos 1940 pelo então presidente argentino Juan Domingo Perón. No entanto, muitos desses governos populistas também foram caracterizados por um estilo autoritário e uma concentração de poder em torno de uma figura carismática — caso do próprio Perón e sua esposa, Evita —, o que levou a períodos de repressão e violência política. O paradoxo político argentino se tornou evidente em várias ocasiões históricas, como durante a ditadura militar que governou o país entre 1976 e 1983. Desde a redemocratização do país na década de 1980, a Argentina tem passado por altos e baixos em sua história política, com governos mais populistas e autoritários e outros mais democráticos e reformistas.

Quando comparamos a Argentina ao Brasil, vemos similaridades e diferenças, cada qual com seu jeito latino de ser. Da tradição política mais fragmentada, com muitos partidos políticos e ideologias diferentes, nem sempre se vê com bons olhos os protestos de rua no Brasil. Eles existem, claro, mas, pela difusão de ideais, existem em proporções humildes e raramente em escala nacional. Numa lógica mais polarizada, a Argentina tem uma longa história de confrontos entre o peronismo e o antiperonismo, e acaba gravitando em torno de greves e mobilizações sindicais. Os dois países tiveram períodos de governos militares autoritários, mas a forma como a transição para a democracia ocorreu foi diferente: na Argentina, houve uma reação forte e prolongada contra a ditadura, além da busca profunda pela justiça e responsabilização pelos crimes cometidos; já no Brasil, a transição para a democracia foi mais calma e gradual, com menos esforços para julgar os crimes cometidos durante a ditadura militar. Em suma, de um lado temos 1985, filme com Ricardo Darín; do outro, temos a avenida Presidente Castelo Branco, uma das maiores de São Paulo. 

Os protestos populares seguirão reverberando aqui, ali, em espanhol, português, francês, hebraico, nesta e em qualquer outra época. Isso é fato. A constituição histórico-cultural de cada canto há de definir os comos e porquês

O poder do povo na política é um conceito que remonta às origens da democracia, onde a voz do cidadão comum era tão importante quanto a dos líderes. No entanto, ao longo dos anos, tornou-se cada vez mais evidente que a influência dos mais poderosos muitas vezes vence os interesses da maioria. No mundo ideal, viveríamos onde os governados não temam falar e os governantes não temam ouvir. Mas não é bem assim. A riqueza e o poder político são recursos que muitas vezes estão nas mãos de uma pequena elite, que tem acesso aos corredores de poder e aos tomadores de decisão. A capacidade dos mais poderosos de moldar o processo político em seu favor muitas vezes resulta em políticas que beneficiam a eles próprios e prejudicam a maioria. Muitas pessoas acreditam que a política é corrupta e que as mudanças reais são difíceis de serem alcançadas por meio dos mecanismos democráticos tradicionais. Mas a descrença e o desencanto com a política, que desestimulariam a participação em protestos, não foi o bastante para impedir o atual contexto conturbado de Israel e da França. 

“ao longo dos anos, tornou-se cada vez mais evidente que a influência dos mais poderosos muitas vezes vence os interesses da maioria”

Com a crescente conectividade e o avanço tecnológico, a democracia participativa pode se tornar ainda mais acessível e eficaz. A internet e as redes sociais, por exemplo, possibilitam a participação de cidadãos em debates e consultas populares sem a necessidade de estar fisicamente presente. A democracia participativa — ou a ideia de uma democracia participativa — continua sendo relevante, e deve ser incentivada como uma forma de promover a inclusão cívica e a justiça social.

Do que, afinal, a democracia é feita? Sobretudo, de força de vontade. De muita força de vontade.

Para o arquiteto, a falta importa. A inexistência de matéria, mais propriamente entendida como vazio, pode ser melhor compreendida a partir das considerações adiante expostas.

A construção do vazio é um dos pontos principais que o arquiteto deve dominar. Isso porque, em primeiro lugar, habitamos o vazio. Nossa experiência com o espaço, seja ela práticaou subjetiva, acontece nele. Assim como um escultor, a partir de um bloco monolítico, esculpe a figura pretendida através da remoção da matéria, o arquiteto se depara com um exercício semelhante em diversas escalas e contextos.

 A expressão “vazios urbanos”, por sua vez, é usualmente empregada pelos urbanistas como espaços negligenciados pela cidade, áreas sem uso, lotes vazios, obstruções físicas que impedem, parcial ou totalmente, a integração urbana. Esses comprometimentos da fluência dos espaços dificultam o acesso e a relação de áreas residenciais com setores comerciais e de serviços, e, o que é mais grave, em alguns casos, criam barreiras e acentuam desigualdades sociais.

Panteão, em Roma.

Quero, porém, ressaltar os necessários — e desejados — vazios que melhoram a qualidade de vida dos habitantes. Por exemplo, um projeto de urbanismo pode ser desenvolvido a partir do reconhecimento dos vazios, como no caso de uma praça, de calçadas mais largas, de um recuo de edificações ou mesmo do recuo das construções em relação ao passeio público, e assim por diante. O respiro, a pausa, o maior espaço e a permeabilidade na circulação dos pedestres se torna fundamental no contexto de nossas cidades mais densas. Ao analisar Manhattan, em lugar de inúmeras praças espalhadas pela cidade, foi idealizado um grande vazio central, o Central Park. Em contrapartida, Londres foi desenhada pontuando jardins menores e fragmentados pela malha urbana, alguns inclusive fechados para uso exclusivo dos moradores das casas que os circundam. Os grandes parques de Londres eram, em sua maioria, campos de caça que posteriormente se transformaram em parques. Evidentemente, as estratégias adotadas nessas cidades para os vazios planejados geram impacto nas dinâmicas sociais.

As cidades brasileiras, por sua vez, são colchas de retalhos de estratégias inspiradas nas principais correntes urbanísticas, a depender da época em que foram implantadas — na maioria das vezes, apenas em áreas privilegiadas da cidade. Nossa carência de vazios planejados é evidente, e os poucos existentes resultam de boas intenções pontuais e muito empenho, como o Parque Augusta e a abertura do Minhocão nos finais de semana,no caso da cidade de São Paulo.


Santa Paula Iate Clube, projetado pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas na década de 1960.

Os vazios planejados são fundamentais para que a vida urbana aconteça em sua plenitude e têm impacto direto na qualidade de vida e na saúde mental de seus habitantes. As cidades precisam ser densas(que não haja equívoco quanto a isso), as pessoas devem morar onde desejam e preferencialmente próximas de onde trabalham. As demandas precisam ser atendidas, mas, tão importante quanto a alta densidade das áreas urbanas, deve haver o contraponto, há que se dimensionar e locar adequadamente os vazios e requalificaraqueles que nos separam.

O vazio também merece protagonismo na escala das construções, seja numa casa, numa capela ou num museu. A proporção do vazio no espaço construído e sua dimensão em relação ao pé direito projetado, somadas as aberturas para a entrada de luz natural, têm influência direta na psique humana, evocando desde o acolhimento e a serenidade até a grandiosidade dos monumentos.

A magnitude do Panteão, em Roma, impacta não pela altura da construção, mas sim pela dimensão de seu vazio interno, coroado pela abertura de luz no topo.

Em um de seus últimos projetos, a reforma da Bolsa do Comércio de Paris, o arquiteto japonês Tadao Ando, que possui grande sensibilidade para o vazio, através de intervenção precisa de empenas de concreto, organizou a circulação em torno do vazio central e reforçou seu protagonismo.

Bolsa do Comércio de Paris, de Tadao Ando.

Vale aqui referir David Byrne, vocalista do Talking Heads, que em uma palestra muito interessante, correlaciona o desenvolvimento de alguns tipos de música ao espaço onde foram criadas, essencialmente a melhor propagação da música no vazio em que surgiram. Cantos gregorianos em catedrais góticas, jazz em ambientes pequenos, rock e punk nos porões.


Planta e corte de uma casa projetada por Felipe Hsu, no interior de São Paulo, em torno de um vazio central.

Nas casas brasileiras, em função das dimensões recorrentes dos lotes de meio de quadra, o vazio em forma de pátio interno, central ou lateral, recurso utilizado desde a Antiguidade Clássica, é ferramenta que permite a entrada de luz, confere permeabilidade visual à construção e agrega vantagens térmicas na implantação do projeto.


Casa em Santa Teresa, projetada pelo arquiteto Angelo Bucci. Foto: Nelson Kon

A ausência de materialidade em determinados pontos da construção é recurso que traz leveza ao objeto edificado. O que em princípio seria pesado e volumoso, pela ausência de matéria no encontro das formas, torna-se delicado e singelo.

O arquiteto brasileiro Angelo Bucci, um dos mestres em transformar o peso do concreto em construções leves que parecem apenas pousar no solo, utiliza empenas que não se tocam — vazios internos e externos que dialogam para criar uma construção rica, essencialmente através dos vazios e da ausência de encontros.

Nos dias atuais, marcados pela velocidade do mundo digital, pelo excesso de informação e pelas rotinas apressadas, o vazio, enquanto elemento chave do projeto, tem essa qualidade imaterial, muito própria e intrínseca, que traz bem-estar, proporciona oportunidade de contemplação e leveza e traz serenidade e respiro para aqueles que têm o privilégio de habitar, trabalhar e circular nos espaços assim projetados.

Fotos de Nathalia Abdalla, Theo Grahl e divulgação Ómana.
#44O que me faltaAmarello Visita

Amarello Visita: Ómana e suas rendeiras

A precisão e a preciosidade dos têxteis brasileiros.

Renascença, labirinto, filé, redendê, boa noite, singeleza… O que essas palavras têm em comum, além de serem encantadoras? São técnicas têxteis que compartilham suas origens europeias, mas que encontraram no Brasil a potência e a criatividade para criarem-se novas no trabalho de milhares de rendeiras, bordadeiras e tecelãs.

Os têxteis tradicionais brasileiros, que resistem hoje especialmente em territórios nordestinos, rurais, são reconhecidamente ofícios femininos e domésticos. Em localidades que têm essas produções como principal fonte de renda e expressão cultural, é no cotidiano silenciado do lar, entre uma tarefa e outra, que as construções tão admiradas se dão. A cada nó cruzado na linha forma-se a estrutura que acarinha e sustenta toda a família.

Nas histórias de vida compartilhadas, aos poucos entendemos o espaço central que esses ofícios ocupam na construção econômica, social e cultural das artesãs. Eles apareceram para elas, desde a infância, como oportunidade de fazerem-se independentes, de circularem e conhecerem o novo para além do ambiente doméstico. Muito além de produtos, suas autoras cultivam um modo de vida com um trabalho que constitui a realidade e a elabora, por ser um aspecto importante para a reprodução material e social do lugar. A estética das peças revela uma complexa trama de saberes tradicionais, combinação incessante entre valores subjetivos e objetivos de quem as produz.

Com nosso trabalho, saímos da casa e fomos para a rua passear, juntas. Essa rua que é o fora, o assombro e o assunto do mundo. Viemos juntas e aqui estamos, com você.

Segundo a mestra Dinoélia Trindade, rendeira de bilros baiana e presidente da Rendavan, a Associação das Rendeiras de Dias D’Ávila, “empoderar a vida de uma mulher é oferecer condições para que ela venha a reconhecer que é capaz”. Foi com isso em mente que decidi, em 2020, reunir forças e dar corpo a um trabalho que já vinha realizando há mais de dez anos. Assim nasceu a Ómana, que é fruto, é filha, é mãe e é mana. É um trajeto a ser sempre percorrido, descoberto, cheio de encontros. É tanto trabalho e tantos nós que precisamos conhecer e reconhecer.

Ómana é uma interjeição de admiração e também um convite: “Ó, mana! Vem com a gente, que sempre somos juntas”. Mana é como muitas das artesãs se chamam, reconhecendo na irmandade profissional o caminho que percorrem.

Assim, propomos dar um giro com essa produção, deixá-la mais amostrada e valorizada através da atuação em três principais frentes: registro das técnicas e dos seus modos de fazer, difusão de saberes para que sigam adiante e experimentação técnica, com design participativo, voltado à criação de novos produtos, únicos e expressivos.

O aprendizado

Quando as artesãs, em sua maioria entre os quarenta e sessenta anos, nos contam sobre como aprenderam seus ofícios, percebemos muitos pontos comuns. Em geral, elas recordam que foi com nove ou dez anos que, de tanto olharem as mais velhas trabalhando, recriaram no gesto o conhecimento que muitas vezes não era repassado em palavras.

Em cenários de muita precisão, o trabalho iniciava já na infância, com sentimentos de curiosidade e fascínio que se misturavam com a necessidade de fazerem-se produtivas desde muito novas para auxiliarem os pais na gestão do lar. Percebemos isso em muitas falas, como a da mestra Suelene Cavalcanti, de São João do Tigre, que conta: “Comecei a me desenvolver com a renda na casa das vizinhas. Visitava a casa de umas moças e ficava lá olhando. Ninguém me ensinou, comecei desenvolvendo com meu olhar. Na época, meu pai e minha mãe não tinham condições de comprar o material pra eu aprender, foi aí que eu tive um pensamento de pegar a ourela de tecido, de onde eu tirava o fio e a fitinha pra treinar”.

Esse relato, para além de demonstrar a determinação de uma mulher que renda há mais de cinquenta anos, evidencia uma criatividade intrínseca ao fazer artesanal brasileiro, que adequa a realidade ao desejo e à necessidade do momento.

Construir um cenário de maior valorização econômica e reconhecimento para as artesãs é criar condições para que essas técnicas sejam percebidas em sua grandeza, oportunizando sua continuidade. Esse é um dos pontos mais destacados por muitas das mulheres que dominam esses conhecimentos e que veem as mais jovens desinteressadas em aprender. Seja pelo ainda presente desvalor ou pela expansão das oportunidades, o repasse e a consequente subsistência dessas práticas depende da criação de estratégias e políticas públicas para esse fim.

Assim, quando Suelene diz “tenho uma história muito longa com a renda renascença, eu me sinto assim como se fosse minha praia, minha vida. Meu sonho é que as pessoas tivessem mais o acreditar, tivessem mais visão pra não deixar morrer, pra que essa nossa história que já vem há tão longo tempo, uma história tão bonita, se prolongasse”, ela fala por todas nós.

Esse relato é complementado pelo depoimento de Risolange Rodrigues da Silva Melo, presidente da ASTALC, a Associação das Tapeceiras de Lagoa do Carro. Para ela, “a artesã precisa ser valorizada com políticas públicas voltadas ao artesanato, e que ela, se sentindo valorizada, possa inspirar as mais novas. Eu sou turismóloga por formação, mas antes disso eu sou artesã, antes de tudo eu sou artesã, por querer, por amor e por resistência”.

Precisão: da falta ao rigor na execução

Seguimos com as histórias de vida das mestras como fio que estrutura e conduz nossa trama. Compreendemos, a partir delas, que a precisão, tão relatada pelas mulheres, diz respeito aos momentos de maior carência pelos quais passaram. Porém, é com precisão, no sentido do rigor na execução, que executam seus trabalhos e superam essas condições. Jeruza Gomes, mestra rendeira do Sítio Mimoso de Jataúba, conta: “A renascença pra mim foi uma história, aprendi com as minhas irmãs e com o pessoal da minha comunidade, do Sítio Mimoso, quando tinha sete anos. Era uma época muito difícil, porque o trabalho que tinha era na agricultura. Meus pais trabalhavam na cata de algodão, de mamona, porém não era todo o tempo. Faz 43 anos que eu conheci a renascença e me adaptei fazendo, e com ela foi que eu consegui, a gente comprava comida, roupa e calçado. Não era valorizada como está sendo hoje, porque a gente vendia aos atravessadores que passavam por aqui no sítio Mimoso, e essas pessoas já vendiam pra outras lá fora e pra gente ficava sem valor. Mas conheci minha amiga Helena, e através da nossa parceria com a Ómana eu vi que a renascença tem valor. É um trabalho manual que antes a gente só conhecia alguns tipos de pontos, hoje eu posso considerar que eu tenho conhecimento de uns cinquenta tipos de pontos, sei que hoje é valorizado, um trabalho de muita importância, garantido”.

Nossa criação

Em uma relação direta com as artesãs e partindo de intensa pesquisa de campo, identificamos fragilidades e potencialidades na cadeia produtiva de determinada técnica para, a partir daí, buscarmos coletivamente novos caminhos possíveis. Pesquisando a fundo suas histórias e métodos, buscamos, através do design participativo, solucionar questões fundamentais para o encontro de um mercado mais justo, promovendo a manutenção e salvaguarda dos conhecimentos tradicionais.

Dessa forma, a reativação de pontos já pouco conhecidos e aprimoramento do acabamento foram centrais para projeto. A Luminária Caju é um exemplo disso; trabalho resultante da união entre Amarello, Ómana, a artista Aline Vilhena e rendeiras do Cariri Paraibano, coordenadas pela mestra Suelene Cavalcanti de Oliveira, é um dos resultados dessa atuação que apresentamos aqui. Seguimos, dessa forma, estabelecendo laços e trabalhando lado a lado com as artesãs em todo território nacional, potencializando toda capacidade criativa e produtiva existente.

Todo mundo que se apaixona é uma aberração

Nem mesmo as oito bilhões de pessoas do planeta são suficientes para preencher o sentimento de ausência que certos traumas cuidam de cultivar. O pediatra e psicanalista inglês D. W. Winnicott (1896 – 1971) dizia, em linhas gerais, que os temores que mais fazem morada no nosso âmago estão relacionados a algo que já vivemos. Isto é, se você tiver sido vítima de um assalto armado, são altas as chances de você reviver o episódio cada vez que sair à rua, desenvolvendo uma relação delicada e sobressaltada com qualquer coisa que remeta à ocasião do trauma. Por já ter acontecido e deixado suas escaras, aquilo tem o potencial de se tornar o mais pontiagudo dos medos. No caso dos relacionamentos, um término custoso pode figurar um vórtex de trauma que vai e volta, tão profundo e complexo quanto o interior de um vulcão O magma está lá, quente e fluido, tomando os formatos do dia a dia e, antes que se note, está a cargo das decisões.

Um repertório emocional carregado a tiracolo serve ora como a shoulder bag da qual tiramos um ou outro item de enorme importância, tal qual um guarda-chuva, ora como a espingarda que cospe fogo à menor ameaça, tomada por um déjà vu daquilo que já nos fez sofrer. Não queremos passar por aquele sufoco de novo, então cada silhueta sombreada na parede se configura à semelhança do passado. Como ignorar o que já foi e colocar os óculos escuros para pisar na estrada de um futuro ensolarado? Há quem não consiga. As projeções sempre estarão lá, minando todo tipo de relação, sendo uma presença que respira pelo pulmão da ausência.

No meio de tanta erupção, “projeção” ganha o formato daquilo que estabelecemos como ideal para nós. O famoso “para mim tem que ser assim e assado”, cuja base, teoricamente, é empírica, mas que sempre vem com uma pitada de capricho pessoal. Procurar um modelo exato no meio de humanos inexatos é a fórmula da decepção. Mas e se essa busca pudesse ser expandida? Digamos, a novos receptáculos de interação. Estamos entrando na era das inteligências artificiais, as IAs — se é que já não estamos afundados nela —, e tudo é possível.

No filme Ela, clássico moderno de Spike Jonze, Theodore está passando por um difícil divórcio. Talvez não especialmente difícil, considerando o quão brutal um divórcio pode ser, mas, de partida, uma separação é algo que por algum tempo nos consome carga emocional. O personagem de Joaquin Phoenix, um escritor (nem um romancista, nem um autor de autoajuda, mas um ghostwriter de cartas pessoais), vem passando por maus bocados depois que anos ruins culminaram no final de seu casamento com Catherine (Rooney Mara). Mesmo no meio da enorme massa populacional da megalópole onde vive e da boa vontade de alguns amigos, a solidão é sua maior companhia durante o processo.

Ela, de Spike Jonze

Em dado momento, ele até vai num encontro às cegas, mas a tentativa acaba não vingando. É nesse estado camuflado, escondido na geografia da cidade grande, que conhece Samantha, seu mais novo sistema operacional. De cara os dois se dão bem, sendo boas companhias um para o outro. Ela é uma voz sem forma física, é verdade, mas isso não impede um relacionamento amoroso. No mundo criado por Jonze, a prática não é incomum, e os temores que afligiam Theo parecem se apequenar perto da cumplicidade oferecida por Samantha. Na medida em que vão se conhecendo e que Samantha vai se descobrindo, ela demonstra insegurança sobre si mesma — mas you feel real to me[SBC1] , rebate o escritor. Até certo ponto, ela era a projeção do relacionamento perfeito que ele nunca teve e uma supressão do que ele não conseguiu manter. E sim, o sexo também está lá, como demonstrado numa inspirada sequência em que uma tela preta representa não só o pináculo sexual de ambos, mas a conexão entre os dois atingindo seu estado mais puro.

Theo sabe bem: estatisticamente, relacionamentos com sistemas operacionais são raros, e é por isso, conclui, que o que tem com Samantha é real. As feridas começam a se deixar fechar aos sopros suaves da voz de Scarlett Johansson. Em contraponto à sua felicidade, ele ouve sua amiga (Amy Adams) relatar o fim de um relacionamento de oito anos, engatilhado por uma discussão boba, e muito humana, sobre onde colocar os sapatos. Se “o passado é uma história que contamos a nós mesmos”, ele finalmente sente que está no controle da narrativa.

Quanto mais Samantha se desenvolve, porém, mais humana ela fica. A eficiência normalmente atribuída às inteligências artificiais aqui significa mais suscetibilidade e uma ampliação progressiva do desejo de explorar mundos e sensações. Muito embora não veja problema nisso a priori, a projeção idealística que Theo tinha no começo passa a desvanecer, e seus erros reverberam, como fariam em uma relação unicamente humana. Quando enfim assina os papéis de seu divórcio, ele acusa o golpe e volta ao estado de isolamento do qual a duras penas saiu, não compartilhando com Samantha suas angústias, a despeito das inúmeras tentativas de aproximação dela. Se um dia ela foi ideal para ele, talvez agora ele não seja mais o ideal para ela. E assim eles se despedem.

Em uma carta para a ex-esposa, a primeira que o vemos assinar com o próprio nome, ele escreve: “Sempre terei um pedaço seu em mim”. De maneira similar a uma inteligência artificial que acumula informações e se aperfeiçoa com o tempo, sempre tentando preencher as lacunas de seu sistema, Theo carregará Samantha e Catherine em si.

 “Pode a consciência existir sem interação?”

Já o filme Ex Machina, dirigido e roteirizado por Alex Garland, dá ares mais fatalistas à ideia de eficiência. É essa competência que nos vem à mente quando pensamos em IA e procedimentos cirúrgicos ou IA e um chat de respostas. Mas e quando isso é aplicado a uma relação, uma troca entre dois seres? Ao passo que nós, no auge de nossa humanidade, temos que lidar com demônios internos, uma inteligência artificial opera para conseguir aquilo que foi programada para conseguir. É uma dinâmica que constitui uma curiosa “vantagem competitiva”.

Ex Machina, de Alex Garland

Ciente desse conceito, o magnata da tecnologia Nathan (Oscar Isaac) sai em busca de um programador da sua empresa: quer alguém de coração mole para conhecer Ava (Alicia Vikander), a versão mais recente de seus experimentos com robôs humanoides. Seu objetivo é ver se ela se aproveitará do ponto fraco do humano para escapar da jaula em que está aprisionada. Escolhe a dedo o traumatizado Caleb (Domhnall Gleeson), que perdeu os pais na adolescência num acidente de carro, sob o falso pretexto de que ele aplicará nela um Teste de Turing — mas em uma versão mais complexa, já que ele não somente tentaria identificar em Ava traços humanos, como também avaliaria a consciência que se conhece o suficiente para saber que não é uma pessoa. Na relação de pai e filha que Nathan tem com Ava, Caleb é uma mera engrenagem, um meio para um fim. Domhnall Gleeson, sempre capaz de evocar profunda empatia, e Alicia Vikander, em seu primeiro grande tour de force, proporcionam interações vibrantes.

Ao encontrar prazer nas conversas, Caleb se depara com o que ele mesmo define como the chess problem: ela tem sentimentos reais ou está simulando? Só mais para frente junta os pontos e descobre as verdadeiras intenções de Nathan, entendendo que até o modelo de Ava foi feito com base no seu histórico de pornografia. Vendo os dois, é difícil cravar quem é mais sozinho: o CEO beberrão que se embriaga diante do original de Jackson Pollock que tem no quarto de sua mansão isolada e hermética, ou Caleb, que, apesar de se considerar uma pessoa boa, ainda sente falta dos pais? O que destrói mais, o vazio orgânico deles ou o artificial-mas-inflexível ímpeto de viver de Ava?

“Tornei-me a Morte, a destruidora de mundos” é uma famosa fala de Robert Oppenheimer (1904 – 1967), criador da bomba atômica, como Caleb lembra em conversa com Nathan. Não à toa.

Se em Ela há uma voz de camadas tão palpáveis quanto qualquer gadget, e em Ex Machina, uma representação ardilosamente física que age conforme os interesses próprios, A.I. — Inteligência Artificial (A.I. Artificial Intelligence) tem em si um combinado desses dois. Essa trinca fílmica, de bases científicas e físicas sólidas, representa bem como o conturbado mundo em que vivemos pode, exatamente como ele é, servir de trampolim para mundos que ainda não aconteceram: mais sci-fi, menos sci-fun. Como veio antes, em 2001, A.I. é como se fosse o pai, ou o irmão bem mais velho, de uma dupla que tomou caminhos divergentes (seguindo a analogia, o filme-pai, inevitavelmente, é Blade Runner — O Caçador de Androides). Ainda que não tenha sido vista assim à época de seu lançamento, a obra de Steven Spielberg é tão sensível quanto ambiciosa.

A.I. — Inteligência Artificial é fruto de uma parceria de Spielberg com um de seus ídolos, Stanley Kubrick (1928 – 1999). Baseado em um conto do escritor Brian Aldiss (1925 – 2017), esse era um projeto de estimação de Kubrick, que por anos o desenvolveu. Ele criou argumentos, fez designs de produção, buscou investimento e, por tudo estar assim tão próximo ao seu coração, reconheceu que não era o nome mais indicado para a empreitada. Quando fez contato com Spielberg, disse que aquela ideia tinha mais a ver com a sensibilidade do diretor, talvez pensando em obras como E.T. ― O Extraterrestre e Contatos Imediatos de Terceiro Grau, que injetam à ficção científica uma grande (e rara) carga emocional. Juntos, foram aos estúdios, apresentando o projeto como “uma mistura de Blade Runner com Campo dos Sonhos”.

“A Fada Azul faz parte da maior falha humana, que é desejar coisas que não existem, ou então do maior dom humano, que é a capacidade de perseguir sonhos

A família Swinton vive uma tragédia: Martin, o primogênito, está em coma e os médicos não demonstram muita esperança. Monica e Henry, pais de primeira viagem, tentam se reerguer, mas é claro que os buracos na estrada dificultam tudo. Paralelamente, o laboratório do professor Hobby desenvolveu o primeiro robô-menino programado para amar e, ansiosos para testar a invenção, procuram os voluntários ideais. O caso dos Swinton parece perfeito, e Henry, sem que sua esposa saiba, adota David — interpretado pelo jovem e já indicado ao Oscar Haley Joel Osment. Com exceção de sua falta de costume e seus movimentos duros, David parece um menino qualquer, assim como o filho que está momentaneamente ausente. E se, no começo, a mãe se mostra incomodada com aquela presença estranha na casa, ela logo se deixa levar pelo enorme carinho que o filho adotivo demonstra. Considerando a linda visão de Hayao Miyazaki sobre o que é uma expressão verdadeira de amor, definida por ele como “quando duas pessoas se inspiram mutuamente a viver”, temos uma manifestação genuína de afeto entre os dois. Ela volta a sorrir, e ele, em seu primeiro contato com o mundo, não faz ideia do que é tristeza.

Para David, deveria ser assim: ele e sua mãe sendo felizes. E isso, ao menos por um período, acontece ― até que Martin volta, depois de um milagre inesperado.

Como um garoto que nem à puberdade chegou, Martin fica às turras com David, criando uma rivalidade fraterna que explora a inocência do irmão, sempre que possível o lembrando que eles não são iguais. Sentindo-se acuado, cada vez mais David quer provar que é humano, chegando ao cúmulo de lotar a boca de espinafre, numa atitude que prejudica seu mecanismo. O médico (ou o mecânico) adverte: “Espinafre é para coelhos, pessoas e o marinheiro Popeye. Não para meninos-robô”. Além de Popeye, outra figura conhecida que ganha destaque é Pinóquio. Monica lê a fábula e David logo se encanta com a possibilidade de, como o boneco de madeira de Gepeto, virar um menino de verdade. Para isso, precisa da Fada Azul, que realizará o seu desejo.

Eventualmente, depois de conflitos que são vistos como ameaças à segurança da família, o casal decide abrir mão de David, devolvendo-o ao laboratório. No caminho até lá, porém, sabendo que mandá-lo de volta significa fazer com que seja descartado, Monica prefere abrir o carro e mandar o filho correr para a floresta, para bem longe do laboratório. Jogado ao mundo, David só consegue pensar na mãe. Agora, custe o que custar, encontrará a Fada Azul. Quer de todo jeito ser um menino de verdade, pois julga que só assim sua mãe o amará de verdade. A longa jornada de David envolve um robô-gigolô (Jude Law), uma carnificina mecânica chamada de Flash Fair e uma Manhattan inundada; uma série de eventos que gira em torno de uma única obsessão: ser amado.

Como Theo foi amado por Catherine. Como Caleb foi amado pelos pais. Como sua mãe chegou a amá-lo, nem que por uma fração de segundo.

O que os traumas nos ensinam é que sempre haverá uma versão melhor da vida, por mais inalcançável que ela seja, e que essa versão vai nos perseguir continuamente com unhas e dentes, nos seduzindo e nos jogando em um estado perpétuo de saudade. Nada pode ser amado com mais intensidade do que aquilo que nos faz falta. E quanto mais artificial se torna o mundo, mais incessante é a nossa busca pelo real.

No fim, estamos todos em busca da Fada Azul.

Maria Antonieta, de Élisabeth Le Brun (1783)

“Se não tem pão, que comam brioches!”

A frase acima foi atribuída a Maria Antonieta (1755-1793), rainha da França entre 1774 e 1792, e demonstra um importante aspecto nas relações sociais: o desprezo dos mais ricos pelos mais pobres. Ainda que não haja comprovação científica de sua veracidade, a fala de Antonieta diante de uma crise econômica que fez faltar até mesmo o pão nas mesas do povo francês sinaliza o cinismo das classes dominantes ao longo da história da humanidade. A frase que virou ditado popular pode até não ter saído da boca da rainha, mas é uma excelente alegoria acerca da mentalidade daqueles que historicamente costumam estar no poder. Séculos se passaram, léguas separam a França do século XVIII do Brasil contemporâneo; entretanto, os abismos sociais e econômicos se mantêm.

Somos um país em que a fartura e a falta são faces da mesma moeda: a desigualdade. A história da desigualdade brasileira é tão antiga quanto o próprio Brasil. Nestas terras, antes de 1500, habitavam diferentes povos que hoje conhecemos como indígenas. Na África, os diferentes grupos construíram civilizações complexas, em relação dialógica e complementar com a natureza, gozando de abundância de saberes, dinâmicas sociais e recursos naturais. E em outra região do planeta, povos brancos sentiam a falta de alguns desses recursos, especialmente os oriundos da natureza. O encontro entre essas faltas e abundâncias poderia ter sido harmônico e pautado na troca, mas não foi. O escritor Manuel Rui narra esse momento:

“Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala, mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar os canhões.”

Regresso de um proprietário, de Jean-Baptiste Debret (1816)

A partir de então, inicia-se o estabelecimento de uma lógica que não é baseada na harmonia das relações e na distribuição igualitária de recursos e bens. Instaura-se, sim, uma dinâmica colonial que faz com que, para sobrar de um lado, tenha de faltar do outro.

O Brasil enquanto Estado foi fundado sobre os paradigmas da escravidão, da exploração do trabalho e da propriedade privada. Quando observamos em âmbito mundial, a desigualdade aparece em diversos países ao longo da história. Porém, colocando em diálogo nações como Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e França, o Brasil desponta ao construir o que podemos chamar de uma “história da desigualdade”. E a colonização — a posição de colônia — foi determinante nisso.

A propriedade privada é fator decisivo quando falamos de faltas e privilégios. Ao longo da história do Brasil, ter bens sempre foi determinante na ocupação social possível para cada indivíduo ou grupo.

Num país baseado em escravidão, pessoas negras eram vistas como propriedade. Como possuir, ter bens, se a propriedade é você? Como acumular capital se o seu corpo é a principal moeda de troca no sistema econômico vigente? Essas são perguntas que a sociedade brasileira até hoje não conseguiu — ou não quer — responder. Essa dicotomia entre possuir e ser posse de outrem não se encerrou com o fim do ciclo colonial brasileiro. 

O Brasil teve várias oportunidades de criar outras lógicas para as questões de falta, abundância e desigualdade. Uma delas foi a abolição da escravidão. Outra foi a proclamação da República. A Lei Áurea, assinada em 1888, poderia ter sido um ato revolucionário no Brasil e nas Américas. Não foi. O fim do regime escravocrata não propiciou a inserção social de pessoas negras. Ela também não propiciou processos de reparação para ex-escravizados e seus dependentes. O processo foi tão raso, quando falamos de condições práticas, que chamamos o que ocorreu no Brasil de “abolição inconclusa”. Faltou abolição na abolição.

Um ano depois, surgiu uma nova oportunidade a partir do marco histórico do fim da monarquia. O rompimento com o sistema vigente tinha como base alguns ideais republicanos, como a liberdade, a igualdade, a dignidade da pessoa humana e a justiça. Ora, se as elites monárquicas eram de certa forma as principais responsáveis pela falta de inserção social sofrida por negros, indígenas e empobrecidos, o fim da monarquia poderia significar uma mudança de paradigma. Não significou. A transição da monarquia para a república, em 1889, ocorreu sem participação popular. Por mais que a proclamação tenha marcado um rompimento com determinados modelos de relação internacional, na prática, os rompimentos foram mínimos. Faltou ousadia na jovem república. Faltou liberdade. Faltou igualdade. Faltou garantir dignidade para todos. E, principalmente, faltou justiça.

As elites, ou os ricos, não são um grupo socioeconômico homogêneo. Elas englobam pessoas com diferentes rendas, perfis e interesses. Porém, historicamente são elas que detêm o poder na nossa sociedade e influenciam diretamente as normas e os códigos sociais. Entre a invasão do território hoje brasileiro, o advento da república e o Brasil contemporâneo, pouca coisa mudou nessa balança onde pendem abundâncias e ausências.

Entre 1964 a 1985, foi implantada a ditadura militar no Brasil. Para além do poderio bélico, os militares também constituem uma classe que detém capital financeiro e enorme capacidade de influência. Foi um período de imensos retrocessos, quando falamos de direitos humanos e civis, ao mesmo tempo em que foi observado o que ficou conhecido como “milagre econômico”.

Os maiores beneficiados foram os próprios militares e as elites econômicas. Esse milagre excluiu a população em geral, em especial as classes trabalhadoras e as populações empobrecidas.

Após o fim da ditadura, sucessivos governos democráticos comandaram o país. Desde Fernando Collor, que prometeu uma “caça aos marajás” e o fim de privilégios e acabou causando um dos maiores escândalos econômicos do país, até o governo de Jair Bolsonaro, que anunciou fim da corrupção e acabou com casos envolvendo milícias, violência e ataques aos direitos humanos, cada governo apresentava suas ideias, plataformas e propostas de mudança. Algumas políticas realmente foram implementadas, como no governo Lula (2006–2010), quando se observou significativa redução da pobreza e da desigualdade social. O país passou da décima para a sexta posição como maior economia mundial. Mas a balança entre a “sobra” e a falta continua a pender para o “lado mais fraco”.

Em outubro de 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou um estudo que mostrou o aumento da concentração de renda em 2018 e uma consequência catastrófica: o incremento das desigualdades sociais extremas. O rendimento mensal do 1% da população mais rica no país correspondia a 33,8 vezes o valor recebido pela parcela da população mais empobrecida. Segundo o estudo, aproximadamente 50 milhões de pessoas viviam abaixo da linha da pobreza no Brasil durante o período da coleta de dados.

De acordo com o estudo Mapa da nova pobreza, desenvolvido pelo FGV Social a partir de dados disponibilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) e divulgados pelo IBGE, o número de pessoas com renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais atingiu 62,9 milhões de brasileiros em 2021. Isso representa 29,6% da população brasileira.

O processo de cidadania inacabado que vivemos faz com que haja uma imensa concentração de renda na mão de uns enquanto outros vivem de mãos vazias. De tanto que sobra de um lado, falta do outro.

O desenvolvimento da vida moderna e das grandes cidades trouxe para a sociedade uma sensação constante de ansiedade: estar sempre coordenando o horário do trabalho, a correria no transporte, a paisagem urbana em constante transformação, o avanço da tecnologia, a superficialidade das relações, etc. Com tudo isso, veio também uma sensação constante de incompletude e, muitas vezes, de solidão. Claro que essas questões, que são tanto sócio-históricas quanto filosófico-existenciais, já foram abordadas de diversas maneiras pelas ciências e pelas artes, em todas as suas linguagens.

Um estudo mais ou menos recente de pesquisadores portugueses — Rui Miguel Costa, Ivone Patrão e Mariana Machado — com jovens e jovens adultos, publicado em 2018, detectou que o uso intensivo e problemático da internet causa um sentimento de solidão que não está associado à falta de apoio social — ou seja, à falta de um relacionamento amoroso, de uma família presente, de um grupo de amigos coeso —, mas sim à falta de tempo para interagir cara a cara com os outros por passar tempo demais no mundo online.

Ou seja: é justamente a comunicação online que gera a sensação de solidão. Claro, não há calor na interação pela internet, o famoso olho no olho, o toque, o abraço, o contato com a pele do outro. No entanto, uma das conclusões mais interessantes dos cientistas é a de que, por mais que a comunicação através da internet não nos satisfaça justamente pela ausência de troca sensorial, recorremos a ela para nos sentirmos mais conectados com as outras pessoas.

Vivemos um tempo em que temos a oportunidade de falarmos de forma rápida e direta com nossos amigos e familiares como nunca tivemos antes — pelo menos para quem viveu a época do telefone com fio e os altíssimos preços das chamadas interurbanas. Hoje podemos mandar mensagens instantâneas por diferentes aplicativos e redes sociais para quem está do cômodo ao lado ou para quem está do outro lado do globo. Só que junto à possibilidade do contato imediato vem a ânsia por se sentir conectado ou correspondido imediatamente. E não é sempre assim que o tempo — ou melhor, que os tempos próprios das pessoas — corre, apesar do fluxo acelerado da contemporaneidade. É como se a velocidade do tempo do trabalho tivesse invadido o ciclo do tempo dos nossos sentimentos e afetos e eles tivessem entrado em rota de colisão.

“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”

A célebre frase do livro O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry, também ganhou novas interpretações na era das redes sociais. Entre um giro e outro nas timelines de plataformas como o Twitter e o Instagram, é bem possível que o algoritmo te indique um post contendo um meme ou um recado fofo com a frase. De um lado, há os que defendem que a ideia apresentada no livro através do diálogo do pequeno príncipe com a raposa sobre a relação do garoto com a rosa impõe uma obrigação afetiva entre duas partes que pode ser desgastante, sobretudo por causa do “eternamente”. Se uma relação entre duas pessoas que se gostam, a partir de um determinado momento, passa a ser desgastante ou “tóxica” (para usar uma palavra em voga), não há por que não se interromper esse ciclo. De outro lado, estão os que defendem que, se tudo é conversado, os danos emocionais de uma relação que precisa de reparos é menor. Parece óbvio que, quando estamos falando de relações interpessoais, sejam elas afetivo-sexuais, de amizade ou de trabalho, esteja implícita a reciprocidade entre as duas ou mais pessoas em questão. Mas nem tudo é o que parece, e, quando um lado não é correspondido em suas expectativas, mas não é avisado disso, há uma gíria mais ou menos recente que dá nome à situação: é o ghosting.

O ghosting se tornou uma expressão muito utilizada no contexto do uso das redes sociais e aplicativos de mensagens para se referir a quando uma pessoa deixa de nos responder. A expressão em inglês que se refere à palavra “fantasma” — ou seja, a pessoa sumiu, mas você sabe que ela continua rondando o seu entorno, mesmo que não apareça — é sinônimo do uso do termo “vácuo” como gíria. O ghosting pode ser “dado” ou “recebido” por diversos motivos: pelo fato de uma das partes não querer mais se comunicar, por não saber como comunicar o fim de um relacionamento ou uma situação desagradável envolvendo o outro, mas também por consequências psíquicas do uso extremo das redes sociais ou, como chamaram o pesquisadores mencionados, o PIU (do inglês problematic internet use).

Mais uma vez, os memes são ótimos termômetros para inferir situações cotidianas pelas quais os indivíduos têm passado e com que, na experiência de compartilhar nas redes, acabam se identificando. Há, por exemplo, o meme sobre quem você é no WhatsApp: aquele que responde tudo imediatamente; o que visualiza e deixa pra depois; o que demora dois ou três dias para responder a mensagem de um amigo; ou o que visualiza, deixa pra depois e nunca mais se lembra daquela mensagem, que acaba indo para as profundezas das suas notificações?

A novidade, no entanto, parece ser que o ghosting passou a rondar também o ambiente de trabalho. Não é raro se deparar com textos sobre o tema ao abrir outra plataforma de interação online, o LinkedIn, exclusiva para trocas profissionais. O “ghosting trabalhista” aparece ali tanto do lado do patronato quanto do trabalhador. Ou seja, há relatos e análises de situações em que funcionários, em um determinado dia, simplesmente abandonaram o emprego sem explicações prévias, ou mesmo de empresas que deixaram funcionários ou candidatos a uma vaga em estado eterno de espera. Essa segunda situação, que ocorre no momento da entrevista de emprego e ocorre por falta de retorno ao candidato, é a mais comum.

Essas situações vêm demonstrando que a necessidade de estarmos o tempo inteiro conectados é cansativa. Como as demandas de trabalho se tornaram exaustivas e pouco rígidas quanto aos seus limites de início e fim, sobretudo depois da pandemia, em que muitos de nós passamos dois anos seguidos tentando conciliar o ambiente doméstico com o profissional, vivemos constantemente com uma sensação de estafa mental. Ansiedade, tristeza e nervosismo são sentimentos que foram relatados por mais de metade da população em pesquisas sobre saúde mental em todo o globo.

A tal “parte que falta”

Há mais ou menos cinco anos, a youtuber Jout Jout[1], cujo canal já era largamente conhecido do público jovem brasileiro, viralizou mais uma vez com um de seus vídeos. Nele, ela lia o livro infantil A parte que falta, do norte-americano Shel Silverstein, traduzido para uma edição brasileira. O livro é de 1976 e conta a história do personagem O, um círculo em que há um pedaço em formato de fatia faltando. O sai em sua jornada disposto a encontrar a parte que irá lhe preencher. No caminho, ele nos mostra coisas que lhe dão prazer, como sentir o aroma de uma flor ou ter uma borboleta pousando em si.

O tenta se encaixar em várias partes que encontra pelo caminho, quase sempre sem sucesso. Porém, ele continua tentando, até que um dia encontra uma parte que se encaixaria perfeitamente nele, mas a parte simplesmente não quer. Ela se considera autossuficiente. Então ele segue, encontra uma outra parte que o preenche e fica muito feliz, rolando de um lado a outro, até que se sente sufocado, porque, com a parte junto dele, ele não para mais para sentir o cheiro da flor ou ver a borboleta. Ele nem mesmo consegue cantar. Angustiado, O por fim se separa da parte, começando uma nova busca por uma nova parte, entendendo a transitoriedade da completude de si, enquanto indivíduo, na caminhada.

A lição do livro, concorde-se ou não com ela, pode ser uma ponto de partida para pensar a questão contemporânea da solidão. O que tanto buscamos enquanto estamos atrás das telas, interagindo com amigos e desconhecidos, comparando nossas vidas com a do vizinho do prédio ao lado no mesmo grau com que nos comparamos com celebridades?

A questão apontada pelo estudo dos cientistas portugueses citados é tão complexa e paradoxal que se, de um lado, o mundo conectado nos faz mais solitários porque prescinde da sensorialidade do tato, por outro, a vida de carne e osso não supre a expectativa da superconectividade com pessoas e ambientes diferentes proporcionada pelo mundo virtual. Sabe quando você está no bar com os amigos e um deles não consegue sair do celular? Assim como o ghosting, esse fenômeno também acabou ganhando um nome em inglês: phubbing, que junta as palavras “phone” (telefone) e “snubbing” (esnobar), e significa esnobar alguém por causa do telefone.

Parece intricado o jogo que estamos jogando, cujo objetivo é matizar todos os espectros das possibilidades de relação entre o mundo virtual e o mundo real, que cada vez mais são praticamente uma coisa só. São muito diversas as variáveis de contato e resposta, e as pesquisas deixam cada vez mais claro que não, não estamos indo bem. Temos soluções? Bem, as redes sociais seguem criando problemas individuais e coletivos, inclusive de cunho político, bastante graves. Mas talvez uma busca equilibrada entre o que podemos cultivar e o que nos falta seja uma boa receita para criarmos novas conexões afetivas com nosso entorno.


[1] Nome artístico da jornalista, escritora e vloger Julia Tolezano.

#44O que me faltaCulturaSociedade

Tenho, logo sou?

O que cuidadores de elefantes e um chocolate dividido dizem sobre a modernidade e a sociedade atual.

As lágrimas rolaram pelo meu rosto por boa parte do documentário Como Cuidar de um Bebê Elefante (The Elephant Whisperers). Ao receber o Oscar na categoria Documentário em Curta-Metragem, a diretora indiana Kartiki Gonsalves falou sobre coexistência e sobre o vínculo sagrado entre nós e o mundo natural. A história de dois cuidadores de elefantes órfãos na Índia não emociona apenas pela surpreendente conexão entre eles, mas também porque o filme serve como um espelho reverso: a gente enxerga no casal de cuidadores os valores mais nobres e básicos que precisamos pra sermos felizes. Eles vivem isolados e têm uma vida precária, mas vivem totalmente em sintonia com a natureza e o mundo animal e parecem muito mais felizes e completos do que a gente. Apesar de terem muito pouco, eles vivem a vida na sua totalidade e se sentem parte do todo, algo que nós buscamos duramente todos os dias, muitas vezes sem chegar a lugar algum. Isso porque, é óbvio, estamos buscando no lugar errado.

A modernidade nos tirou a sincronia com a natureza, esgotando nosso mundo interior. Nosso apetite por novas emoções está nos deixando indiferentes a valores como a sutileza e a ética. O dia em que recuperarmos a nossa atenção das redes sociais e olharmos para as coisas que realmente importam, uma revolução começa. Um levante tão importante quanto as grandes transformações tecnológicas que estamos presenciando. Inteligências artificiais, novos mundos imersivos e possibilidades de socialização que nunca havíamos imaginado estão sendo criados sem a nossa participação, causando FOMO (do inglês fear of missing out, isto é, medo de estar perdendo algo) e ansiedade e aprofundando ainda mais a desigualdade no mundo.

Sim, a tecnologia traz possibilidades incríveis, mas as mídias sociais fraturaram nossa capacidade de foco e nos encurralaram. Olhamos nossos celulares a cada minuto, na expectativa por uma notícia, um convite, um elogio, um like, um match, qualquer coisa que provoque faíscas e nos faça sentir vivos. Enquanto isso, o mundo “lá fora” queima. E o mundo lá fora também é lindo.

O problema que enfrentamos hoje é que a atenção às redes ocupa o espaço que antes era ocupado pela empatia. Não precisamos ir longe para perceber que há mesmo um “déficit de empatia” no mundo, parafraseando Obama em um discurso de 2013.

Queremos feedback instantâneo; não escutamos, não elaboramos as consequências dos nossos atos online e buscamos escapes da rotina vivendo qualquer experiência que prometa algum tipo de iluminação, de um Carnaval frenético a um ritual de ayahuasca no meio de São Paulo. Esportes radicais, comidas exóticas, experiências lisérgicas e encontros relâmpagos viram condutores de adrenalina que, assim como uma droga, duram pouco e fazem as pessoas ansiar por mais e mais. Estamos viciados.

No livro The Life Intense: A Modern Obsession, o autor francês Tristan Garcia nos descreve como paraquedistas emocionais, “em busca de sensações fortes que possam justificar nossas vidas”. Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?

A economia da experiência está por todos os lugares, vendendo novas aventuras e emoções, e a gente segue comprando do lado de fora para alimentar o lado de dentro. Sensações de vazio e de que nunca temos o suficiente estão há anos sendo semeadas em larga escala na mente humana para acompanhar um mundo organizado para o lucro, e não para a prosperidade humana ou ambiental.

O nosso tempo e a nossa atenção tornaram-se os ativos mais valiosos dessa nova economia. Nosso status é cada vez mais medido não pelo que somos ou pelo que contribuímos, mas pelo que vivenciamos, fotografamos e escolhemos compartilhar. Vivemos um caos publicitário, em que o objetivo dos anúncios parece não ser mais a informação, mas simplesmente a atenção. E a qualidade dessa atenção não importa.

Esta é a vida agora: um fluxo constante e interminável de conteúdos fragmentados e sem sentido que a gente nem quer ver, mas dos quais, por algum motivo, não consegue desviar o olhar.

A possibilidade do conhecimento ilimitado da web é tão onipresente que nem nos lembramos de como era não o ter. Superestimamos o quanto essas tecnologias estão nos prejudicando e subestimamos o quanto também estão nos ajudando. Porque, sim, a internet e as redes podem proporcionar coisas incríveis e propagar assuntos importantes que rodam o mundo em minutos. As redes foram fundamentais para movimentos como #MeToo, Time’s Up e #BlackLivesMatter, e funciona com igual importância para educar e alertar a sociedade sobre questões sociais e ambientais, como as atrocidades cometidas contra o povo Yanomami e a tragédia que devastou o Litoral Norte de São Paulo.

Então o problema não é a tecnologia em si, e sim como escolhemos usá-la. A gente realmente escolhe o que vê ou tem alguém decidindo por nós? A tecnologia está nos servindo ou nós é que estamos servindo a ela?

Nos dias de hoje, não elaboramos os assuntos que nos atravessam. Frases inteiras são resumidas em emojis, a vida (dos outros) é sempre bela, nos comunicamos através de likes, não lemos mais e não sabemos mais nada em profundidade. Nosso conhecimento, assim como nossa atenção, é fragmentado. Sabemos um pouco de tudo e de tudo um pouco, e isso parece ser o suficiente em conversas rápidas em festas entre uma foto e outra ou para engajar vídeos no TikTok.

Muitos dizem que a hiperdigitalização está impulsionando um retorno do mundo analógico, trazendo de volta o uso de discos, câmeras polaroides, enciclopédias, fitas cassete, telefones com fio e Ligue-Táxi — enfim, experiências de um mundo hiperfísico e tangível.

A gente não é o que tem nem podemos ser definidos pelos nossos 15 segundos de engajamento no Instagram. Nós somos o total das nossas experiências de vida: cada lágrima, cada sorriso, cada vez que o coração bate mais forte, cada vitória e cada tombo, cada paisagem, cada música, cada trabalho concluído, cada livro lido, cada história de amor, cada decepção, toda morte e nascimento, cada vez que temos coragem, todos os sins e todos os nãos, as superações e os desgostos, cada ideia e solução, cada beijo, cada gozo, cada abraço de saudade, cada partida e cada reencontro.

Amor, dedicação, conhecimento e foco nos levam a relacionamentos mais profundos e geram sucesso a longo prazo. No entanto, nossa economia atual está constantemente nos levando para longe disso. Precisamos parar de buscar só do lado de fora para acalentar o interno. Nossa atenção pode estar à venda, mas iluminação e paz de espírito não estão, e dependem puramente do nosso esforço e da nossa habilidade de empatia.

Encerro com a história de um estudo feito em 2011 na Universidade de Chicago, em que os pesquisadores realizaram um experimento para entender se um rato libertaria outro de uma gaiola sem receber uma recompensa. A resposta foi sim. Depois de várias sessões, os ratos aprenderam rapidamente a liberar os colegas enjaulados. Os ratos repetiram o comportamento mesmo quando lhes foi negada a recompensa do reencontro. Ainda mais surpreendente: quando os ratos foram apresentados a duas gaiolas, uma contendo um rato e a outra um chocolate, eles optaram por abrir as duas gaiolas e dividir a recompensa.

Qual foi a última vez que você dividiu o seu chocolate?

“A história do rock é isso. Começa quando a juventude acreditava, nos anos 50, que o papel picado era possível, que a tecnologia ia solucionar tudo. Até que enxergam a primeira abertura ética em seus pais. Sim, temos três carros, está tudo bem, mas papai e mamãe não são felizes. Aí começa a desconfiança de que o papel picado não vai alcançar para tapar toda essa merda…”

(Indio Solari, vocalista de Patricio Rey y Sus Redonditos de Ricota, 1986)

Sessenta e cinco segundos ou três minutos. Esse é o tempo médio que um estudante universitário e um trabalhador de escritório estadunidense, respectivamente, se concentram em uma única atividade. No momento em que escrevo este texto, tenho sete abas abertas em meu navegador, um tocador de música e um aplicativo de mensagens funcionando. A economia da atenção difusa é uma experiência cotidiana compartilhada e efeito indissociável do modus operandi das redes. Bem-vindos à era da conexão contínua.

No livro Stolen focus: porque você não consegue prestar atenção e como voltar a pensar profundamente, o jornalista britânico Johann Hari narra sua experiência vivendo três meses completamente offline. De posse de um celular que apenas fazia chamadas, Hari conta como foi passar esse tempo sem contato com a internet. Intoxicado pela tecnologia, ele decidiu se retirar em uma vila de Massachusetts e observar os efeitos que a ausência de estímulos constantes poderia ter em sua atenção. No entanto, durante o processo, se dá conta de que não há uma saída individual, voluntarista, para a falta de foco. Para complementar sua investigação, o autor entrevistou desenvolvedores e engenheiros de software do Vale do Silício responsáveis por criar e implementar os recursos que captam nossa atenção, modulam nossas emoções e disciplinam nossas relações na modernidade hiperconectada. É como se a procura do engajamento ininterrupto com as marcas e o capitalismo de plataformas tivesse aberto uma caixa de Pandora praticamente impossível de ser resetada.

Da mesma maneira que os bips, as notificações e vibrações de nossos smartphones foram pensadas por experts do desenvolvimento de produtos para captar nossa atenção, com o objetivo de gastarmos horas deslizando entre vídeos de TikTok e reels do Instagram. A duração e a degradação dos próprios dispositivos de consumo também têm uma longa história. É um fato amplamente documentado que a obsolescência programada surgiu como uma decisão humana no contexto da invenção das lâmpadas elétricas.

Quando Thomas Edison inventou-as, ainda no final do século XIX, a duração média de um dispositivo chegava às 1.500 horas. Algumas décadas depois, a tecnologia já permitia que a indústria produzisse lâmpadas com 2.500 horas de vida útil. No entanto, da perspectiva do cartel de empresários, isso era bom para os consumidores, mas ruim para os negócios. Assim, em 1930, o cartel Phoebus, organizado na Suíça pelas empresas Osram, Philips e General Electric, gigantes do ramo, decidiu reduzir e padronizar a vida útil dos dispositivos para 1.000 horas. Quem desrespeitasse o acordo sofreria multas e represálias dos sócios. Estava inaugurada a estratégia que seria copiada e aprimorada pela vanguarda da indústria tecnológica.

Das lâmpadas aos smartphones e computadores, seguimos consumindo produtos pensados para ter uma vida útil limitada, tornando-os obsoletos e de necessária substituição por modelos mais recentes. A história do cartel Phoebus evidencia a intenção humana, a vontade consciente de interromper a aceleração contínua do aprimoramento material em prol do fluxo do consumo e da acumulação do capital por parte dos detentores do poder e do saber técnico. Em lugar de fazer produtos mais duráveis, o que seria melhor para consumidores e para o meio ambiente, pois se reduziria o descarte dos componentes utilizados, optou-se conscientemente pela sabotagem da própria mercadoria.

Também nos intriga saber se a obsolescência programada dos objetos não haverá chegado às relações humanas. Estaríamos estabelecendo conexões e relações de consumo afetivas de forma fluida e descartável, tal qual trocamos de gadgets? Talvez o exemplo por excelência dessa captura esteja nos aplicativos de encontros, em que as pessoas aceitam jogar o jogo da escolha amorosa e sexual como se estivessem fazendo compras online, deslizando entre perfis que serão entregues em um lugar a combinar. Se a entrega não for como o esperado, o match é desfeito e o jogo reinicia com outro perfil.

Algo semelhante ocorre com as redes sociais. Além da curta vida útil, uma vez que elas próprias tendem a durar poucos anos, sendo sucessivamente substituídas em sua hegemonia, a dinâmica de interação dos perfis segue uma lógica parecida, na qual conexões são feitas e desfeitas sem maiores explicações ou consequências. Somado a isso, estão naturalizadas as categorias de influencers e criadores de conteúdo, que geram valor de mercado para si e para as plataformas através das interações com o maior número possível de seguidores. Profissionais ou não, todos que estão nas redes trabalham para as plataformas e operam, em certa medida, como community managers de sua marca pessoal, devendo saber gerir o seu público e mantê-lo engajado pelo maior tempo possível, sob pena de lidar com a falta de descargas de serotonina e de sentir o vazio da desconexão.

Descrita a figura, cabe levantar as perguntas humanas atemporais: a tecnologia nos conecta com o quê? Ela facilita nossa vida em quais aspectos? Ela nos ajuda a ter algum tipo de bem-estar e a que trabalhemos com mais qualidade? Até que ponto poderemos suportar coletivamente um aumento acelerado nos níveis de ansiedade em troca de picos de serotonina causados por likes e views? Nesse sentido, é tentador lembrar as observações de Guy Debord sobre as transformações que enxergava no contexto da efervescência cultural e política pré-Maio de 68 francês, quando inventou o conceito e escreveu sobre a sociedade do espetáculo: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediatizada por imagens.O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é ‘o que aparece é bom, o que é bom aparece’”. Se surpreenderia o autor em saber que o espetáculo e as relações sociais mediatizadas por imagens tomariam tal proporção, transcorridas cinco décadas desde suas observações?

Alguns anos antes da publicação d’A sociedade do espetáculo, de Debord, o escritor Julio Cortázar também se preocupava com a liberdade e a dominação do humano pelo não humano tecnológico. Em seu Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio, o autor já olhava a partir de outra perspectiva sobre o que significava o recebimento de um presente: “Quando dão a você de presente um relógio, não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca. Dão a você — eles não sabem, o terrível é que não sabem — um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence, mas não é seu corpo. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines, o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.”

Nós já sabemos que o desenvolvimento da tecnologia não solucionará todos os problemas e provavelmente trará consigo novas aberturas, ainda inimaginadas. Haverá papel picado o suficiente para tapá-las?

Imagem de Nut Tmu-ankh
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Intimidade: a travessia entre o banzo e o amor

Reflexões a partir do livro “Por que amamos?”, de Renato Noguera

“O dicionário vai chamar essa coisa pouca, boba, pequena, comum, banal, simples, tola de amor (…)
E partilhar um segundo fundo assim é quase se dar inteira pra alguém hoje em dia
Do jeito que as coisas andam tão quebradas, né?”

(Trecho de poema de Tatiana Nascimento para a canção Lençóis, de Luedji Luna)

Amor, palavra de grafia simples, talvez uma das primeiras com a qual temos contato ainda na alfabetização, mas que carrega uma gama tão complexa de significados e percepções. Como escreveu o grande compositor carioca Arlindo Cruz, “até hoje ninguém conseguiu definir o que é o amor”.

Em seu livro Por que amamos? O que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor, o filósofo Renato Noguera utiliza a psicanálise, a história e a filosofia, além de mitos de diversas culturas, para buscar responder a essa inquietação que vem habitando o imaginário da humanidade ao longo da História.

Já nos dois primeiros capítulos, o autor apresenta duas perspectivas que me parecem extremamente interessantes e sobre as quais pretendo me ater ao longo deste artigo. No primeiro deles, chamado O caminho do amor, Noguera nos apresenta uma classificação do amor como uma travessia compartilhada, onde a autoescuta é a peça central para o sucesso desse caminhar. Não é possível se disponibilizar a ouvir o outro sem que antes escutemos a nós mesmos e entendamos o que temos capacidade de absorver, bem como o que temos a oferecer. Ainda nesse capítulo, o autor discorre sobre as narrativas construídas a partir de um ideal de amor romântico pautado em paixões avassaladoras, mas que não se sustentam com o tempo ou não chegam ao cume da montanha. Já no segundo capítulo, intitulado Amar como sobrevivência, Renato desenvolve sua investigação a partir de fatores mais instintivos, sobretudo ao considerar elementos biológicos e psicológicos que possibilitam a existência do amor.

Por que amamos quem amamos? Por quais critérios essas escolhas são orientadas?

As respostas para essas perguntas são construídas a partir da análise de teorias como a psicologia evolucionista, difundida por Robert Wright, que elucida como homens e mulheres escolhem seus parceiros (tratando aqui de relações heterossexuais) a partir de características físicas específicas que acionam na psique do sexo oposto os mecanismos de atração e desejo, como um reflexo inerente à natureza humana de busca pela perpetuação da espécie. Ao final desse segundo capítulo, Noguera faz uma reflexão que me interessa desdobrar. Ele afirma:

Há vários outros estudos que poderiam ser citados, mas o ponto aqui é notar que o amor também possui uma faceta animal, determinada por um instinto de sobrevivência. Quando duas pessoas se amam, elas são capazes de criar seus descendentes e de ter uma boa vida, apesar dos conflitos e das ameaças ao redor. Uma relação amorosa contribui para manter a espécie viva, fazendo com que seus envolvidos tenham um compromisso maior com a vida e, consequentemente, que as comunidades estejam mais protegidas.

Compreendendo, então, o amor como um elemento catalisador que eleva a potência do comprometimento dos indivíduos com a vida e com a sua comunidade, questiono: como gerar esta potência de conexão e expansão em contextos de escassez ou ausência de amor? Como ressignificar a experiência do amor como parte fundamental das vivências de indivíduos e grupos para os quais a possibilidade de amar tem sido negada?

O intelectual brasileiro Antonio Bispo dos Santos classifica o mundo a partir de duas cosmovisões principais: a afro-pindorãmica e a eurocristã. A primeira se constrói a partir de uma natureza xenofílica, de conexão e compartilhamento, tendo a circularidade como valor que pauta e retroalimenta seus sistemas de relações. Já a cosmovisão eurocristã é forjada a partir da xenofobia, em que se perpetuam condições de disputa e tensão. É o ideal de superação do outro, de aversão e destruição do que é diferente — percebido, então, como inadequado. O mito do Paraíso como objetivo a ser alcançado apenas pelos “escolhidos” é a base da régua moral que culmina em todo um projeto de exclusão do que não se encaixa no modelo estabelecido. Observando essas duas cosmovisões propostas por Antonio Bispo e aplicando-as ao contexto da colonização do continente africano e das Américas, percebemos que a imposição do modelo civilizatório eurocristão é também a imposição do modelo de amar experienciado por essas sociedades.

Com a licença de Renato Noguera, proponho, a partir de agora, um diálogo entre seu livro e outros autores, como bell hooks e Sobonfu Somé, para buscando compreender como as violências do processo de colonização e escravização impactaram a forma de amar de pretos e pretas em diáspora.

O banzo

Segundo o Novo dicionário banto no Brasil, organizado por Nei Lopes, a palavra “banzo” é oriunda de dois idiomas que compõem o tronco linguístico bantu: em quicongo, mbanzu pode ser traduzido como lembrança; em quimbundo, mbonzo significa saudade ou mágoa. É uma nostalgia profunda que atravessou (e ainda atravessa) o repertório emocional de indivíduos africanos escravizados e seus descendentes. O banzo é um estado de melancolia que é resultado de uma série de ausências, sobretudo a ausência de pertencimento à qual foram submetidos esses indivíduos desterritorializados. Viver em estado de banzo, para além do sentimento de falta do que lhe é caro e familiar, é sobre ver se afastar dos olhos, tal qual as terras do continente-mãe, a liberdade do amor.

A quem é concedido o direito de amar?

bell hooks, em seu artigo Vivendo de amor, apresenta uma perspectiva bastante dura, porém realista, sobre como pessoas negras foram privadas do direito de amar. Mesmo após a abolição do regime de escravização, pessoas negras não se viram livres para vivenciar seus afetos. Ela relata:

Depoimentos de escravos revelam que sua sobrevivência estava muitas vezes determinada por sua capacidade de reprimir as emoções. Num documento datado de 1845, Frederick Douglass lembra que foi incapaz de se sensibilizar com a morte de sua mãe por ter sido impedido de manter contato com ela. A escravidão condicionou os negros a conter e reprimir muitos de seus sentimentos. O fato de terem testemunhado o abuso diário de seus companheiros — o trabalho pesado, as punições cruéis, a fome — fez com que se mostrassem solidários entre eles somente em situações de extrema necessidade.

Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor nesse contexto poderia tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável. De forma geral, era mais fácil para os escravos se envolverem emocionalmente, sabendo que essas relações seriam transitórias. A escravidão criou no povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade.

A História não nos poupa de exemplos da presença constante do desamor e das lacunas afetivas que costuram a trama da construção das diásporas africanas pelo mundo. Porém, para que chegássemos até aqui, não teria sido necessária a experimentação de algum tipo de amor? Acredito que a chave para compreender essa questão é o entendimento da dimensão da intimidade. hooks se refere à intimidade no sentido de uma ação prática de desenvolvimento das relações. A intimidade é uma construção com propósitos.

A travessia

A filósofa Sobonfu Somé, em sua obra O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar, desenvolve o conceito de intimidade a partir da percepção de mundo do povo Dagara, originário da Costa Oeste do continente africano. Para eles, o amor idealizado a partir da paixão é um erro. A intimidade é um caminho que deve ser percorrido pautado pela razão e em comunidade. A intimidade, então, se apresenta como uma configuração de amor que dialoga diretamente com a circularidade, valor civilizatório tão fundamental para muitos dos povos tradicionais africanos. Podemos dizer, assim, que a travessia com intimidade se coloca como uma elaboração de amor possível.

Se voltarmos o nosso olhar para os métodos de proteção e resistência pretos no Brasil, pensando nos diversos modelos de estruturação de famílias pretas ou na organização dos quilombos, dos candomblés ou das favelas, não estamos, em certa medida, falando de amor?

Talvez precisemos remover a lente shakespeariana que nos foi apresentada por muito tempo como universal para voltarmos à provocação central proposta por Renato Noguera: por que amamos?

Não tenho aqui a pretensão de dar por esgotada esta questão, mas, talvez, concluo com a sensação de que amar quem sabe seja a nossa principal maneira de reivindicar nossa existência. Seguir amando é o ato de teimosia que nos permite retornar em sankofa para mais próximos dos sonhos dos nossos ancestrais.

“Suas botas e pernas estão bem definidas, mas ele não tem corpo ou cabeça, pois estavam em movimento”, escreveu o inventor estadunidense Samuel Morse — o mesmo do código e do telégrafo com fios — a seu irmão no outono de 1839. Morse muito provavelmente detalhava o célebre daguerreótipo Boulevard du Temple (1838), a primeira ou uma das primeiras fotografias a captar uma figura humana. O que se vê no daguerréotipo — e que hoje, graças ao milagre da reprodutibilidade, qualquer um com acesso a internet também pode ver, ainda que em formato digital — é uma cidade fantasma; o boulevard, costumeiramente recheado de seres humanos e outros, tais como cavalos conduzindo charretes, aparece inteiramente esvaziado de vida, à exceção do pedaço de homem, se considerarmos um pedaço de homem como uma vida. Com efeito, ele parece subsistir na calçada da avenida como uma espécie de espectro que não conseguiu se eclipsar por completo antes de ser capturado pela máquina dos vivos.

Boulevard du Temple (1838)

Há uma explicação lógica que devolve a cabeça aos pés de toda essa história, é claro: para que a imagem pudesse se fixar na placa de cobre recoberta por prata do daguerreótipo, era necessário um período longo de exposição, no qual os sujeitos fotografados não deveriam se mover sob pena de desaparição do resultado final. Por outro lado, poderíamos, quem sabe, dizer de outro modo: diante de uma fotografia, os viventes adquiriam estatuto espectral, camuflando-se em seu próprio deslocamento; resistiam, assim, pelo movimento, ao procedimento que desejava seus aspectos. Do que se escondiam os ausentes do daguerreótipo? Escondiam-se ou eram escondidos?

No Boulevard, o primeiro ser humano fotografado é alguém que pode ter seus sapatos engraxados. Que Morse relate ver apenas suas pernas e botas permite que as tomemos como índices da classe social a que pertence. E foi a classe alta que frequentou os estúdios abertos nos anos seguintes, quando o inventor percebeu, a partir da foto-fantasma, que a verdadeira vocação dos daguerreótipos era o retrato. Afinal, um ser humano poderia ficar parado por vários minutos até que seu semblante fosse impresso na placa — e pagaria bem por isso. Agora, mostravam-se, individualizavam-se os que possuíam os meios, imersos em uma época na qual o crescimento acelerado das cidades ameaçava a distinção pessoal. Superado o daguerreótipo, não faltaram novas técnicas fotográficas, aprimoradas para produzir retratos de senhores e senhoras, de famílias e infantes. De fora, ou como fundo-cenário para a figura-sujeito, é possível ver alguma ausência ou uma pseudopresença, como diria a ensaísta estadunidense Susan Sontag em outro contexto; um algo que escapa.

Nas colônias, a situação diferia. Todo o esforço de produção de retratos visava mostrar em imagens, isto é, presentificar, fincar na realidade, a sujeição, a pacificação e a submissão de outros povos. Não faltaram daguerreótipos de “botocudos” feitos no território que hoje conhecemos como Brasil, de frente e de lado, com propósitos antropométricos — científicos. Tampouco postais de “índios amansados”, isto é, de pessoas indígenas não identificadas vestidas à moda dos colonos e enfileiradas para demonstrar seu bom comportamento, além de outros tipos de registros.

Fotografias de interventores coloniais ao lado de reis depostos ou humilhados também eram comuns, como a do Awujale do reino iorubano de Ijebu, Oba Ademuyewo Fidipote, ao lado do governador branco de Lagos, John Hawley Glover, em imagem de 1899. Conforme explica o escritor de ascendência nigeriana (iorubana e de Ijebu) Teju Cole, que escreveu uma análise sobre a foto, o rosto do rei, do Awujale, deveria, por sua divindade, permanecer oculto em público, jamais ser revelado; nesta fotografia, entretanto, cercado por oficiais europeus, seu semblante é plenamente visível.

A comercialização da primeira câmera portátil data de 1888. Nas colônias alemãs em África, entre 1884 e 1918, conforme narra a historiadora brasileira Naiara Krachenski, a Sociedade Colonial Alemã (DKG) produziu extenso material fotográfico de paisagem. Era como se os territórios que hoje conhecemos como Namíbia, Tanzânia, Ruanda, Burundi, Togo e Camarões fossem desabitados por seres humanos. Em um instante, e de ponta-cabeça, estamos de volta à cena do Boulevard. Desta vez, porém, sabemos que as pessoas foram propositalmente desaparecidas das fotos — ou, quem sabe, tenham se escondido, por ódio e pavor, em meio às idílicas vistas fotografadas.

A fotografia concorreu, portanto, para o estabelecimento objetivo de delírios violentos, como o do primitivo sub-humano, da floresta virgem e da terra devoluta. Sua contraparte metropolitana produziu muitos retratos de família e, com o tempo, seguiu em frente, tornando-se arte também. Nenhum desses usos jamais entrou em obsolescência, como foi o caso de certas técnicas ou modelos de câmera. A fotografia, um escândalo para seus comentadores citadinos, esteve sempre, não só em seu nascimento, de mãos dadas com o colonialismo. Se ela mantém uma relação com a morte, é sobretudo por esse conúbio infernal.

Em um ensaio, Sontag escreveu que “o fotógrafo saqueia e também preserva, denuncia e consagra”; o mesmo fotógrafo, com a mesma fotografia. A história da fotografia não pode refutar essa afirmação, mas talvez ela seja apenas uma dentre várias possibilidades; ou talvez o que Sontag tenha querido dizer é que as relações entre saque, preservação, denúncia e consagração são dinâmicas. Afinal, o que dizer das fotos e dos efeitos das fotos que Claudia Andujar fez dos Yanomami — não mais apenas vistos, mas visionários e vivos?

No final dos anos 1970, Sontag dizia que, naqueles tempos de desaparição acelerada de “formas de vida biológicas e sociais”, a câmera seria capaz de registrar a imagem dos que se ausentam à força. Outra força, essa verdadeiramente estranha, leva os críticos a acusarem periodicamente as fotografias, culpadas por não afetarem mais as pessoas, e as pessoas, culpadas por fotografarem demais. Uma câmera noturna pode fazer parte tanto do aparato ainda colonial que, por meio da “evidência fática” da fotografia, leva sempre o mesmo tipo de pessoa à cadeia e pode também ser usada em projetos de conservação de uma biodiversidade outra que não humana. Isso não significa que essa câmera é inocente em nenhum dos dois casos, tampouco que “mortífera” não seja um adjetivo cabível, de modo assimétrico, para a relação entre imagem e sujeito fotografado em ambas as situações.

Imagens continuam a ser produzidas na frenética velocidade que a tecnologia permite, no meio do torvelinho cada vez mais vertiginoso de destruições e extinções. De fato, o aumento incessante da produção de telefones celulares, cada vez mais acessíveis a mais pessoas e cada vez mais descartáveis, só é possível graças não apenas à mão de obra semiescravizada, como todos já sabemos, mas também à mineração de que dependem materialmente os aparelhos. E os mesmos portos que se abrem diariamente para esses minérios fecham-se à entrada das pessoas que vivem nos territórios por eles devastados. Tudo isso é muito bem documentado e conhecido.

Certa vez, a filósofa estadunidense Donna Haraway perguntou-se (e a nós): “Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?”.

Cada fotografia nos olha de volta. Cada uma é habitada, mesmo que nas reentrâncias. Na suposta falta de um povo encoberto, em movimento ou esconderijo. Mesmo em uma selfie, embora os seres não sejam todos necessariamente humanos. O ausente da fotografia não está fora dela. São espectros. Visagens. O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard desdenhou de aplicativos de fotografia, afinal, como rebaixar o polegar opositor, que muitos acreditam ser uma distinção humana, ao estúpido de deslizar em uma tela para que uma foto, possivelmente um retrato (ruim), se siga a outros? Mas talvez esse impulso, para tantos irresistível, esconda uma forma atávica de proteção. Não faz bem olhar para uma imagem, para uma foto, por muito tempo. Quem sabe os mansos não arrancam as roupas, os botocudos não dão uma investida? Oba Ademuyewo Fidipote ocultando seu rosto, de pé. Milhares, milhões de humanos e outros, mais que humanos, saindo da floresta e arrebentando a câmera colonial. Os extintos gritando, exigindo o reconhecimento de seu modo de existência. Quem sabe o que poderia acontecer? Iriam se levantar também os oficiais coloniais? Veriam também as miríades de atrocidades já registradas, seja por entretenimento ou denúncia? Muito cuidado ao olhar; você está sempre sendo olhado de volta.

E se eu encerrasse este texto dizendo que todos, todos já vivemos uma vida de espectro, que já nos transformamos todos em imagem, de maneiras diferentes e cruzadas em relação à experiência de Huni Kuin narrada no filme do cineasta Zezinho Yube sobre a trajetória de seu povo, que hoje produz vídeos? Desconfie de seus outros espectros e escolha muito bem a quem assombrar.

É loucura pensar que o computador é uma invenção de menos de 100 anos — algo que, historicamente, não passa de um piscar de olhos — e que a primeira mensagem enviada online completou 50 anos há pouquíssimo tempo. Apesar de tudo ser assim tão recente, é impossível pensar na vida sem tecnologia. Na verdade, a coisa é bem mais profunda do que isso: já esqueci de como era a vida sem a atualização mais recente de qualquer aplicativo meu. E, nos últimos meses, ficou difícil pensar na atualidade e no futuro sem o ChatGPT

A grande inteligência artificial da moda, o Chat Generative Pre-Treated Transformer é um modelo de linguagem de grande escala treinado pela OpenAI (organização de pesquisa com sede em São Francisco, Califórnia, fundada por Sam Altman, Ilya Sutskever, Greg Brockman, Wojciech Zaremba, Elon Musk e John Schulman). Projetado para gerar texto de forma autônoma com base em uma grande quantidade de dados de treinamento, o ChatGPT é frequentemente usado para criar conversas com humanos em aplicativos de chat e assistentes virtuais. A tecnologia é capaz de entender a linguagem humana natural e gerar respostas/soluções extremamente refinadas, tudo a partir da compreensão do contexto de uma pergunta, da análise semântica e da utilização de informações presentes em seu grande banco de dados. Em geral, o ChatGPT utiliza técnicas de processamento de linguagem natural e deep learning para produzir suas respostas.

À esquerda, Elon Musk, co-fundador da OpenAI; à direita, Sam Altman, CEO da OpenAI. Imagem: Michael Kovac/Getty Images.

É diante desse tipo de eficiência que surge aquele pé atrás: o que isso quer dizer para nós, pessoas falhas, nem sempre funcionais, raramente no auge de nossas capacidades? Atualmente, a IA é uma ferramenta poderosa que pode complementar e ampliar as habilidades humanas, mas ainda há muitos aspectos da vida e do conhecimento que só podem ser compreendidos e apreciados por pessoas. Por enquanto, os especialistas nos dizem que, embora a inteligência artificial possa ser usada para realizar tarefas complexas e tomar decisões baseadas em grandes quantidades de dados, ela ainda não tem a capacidade de compreender o mundo de forma profunda e sutil, como os seres humanos. Será?

Fato é que a inteligência artificial está impactando a nossa vida diária, e tudo indica que essa realidade só há de aumentar. Exemplo mais tátil disso é o mundo profissional, que passa por profundas transformações, tanto positivas quanto negativas. Por um lado, a IA está automatizando muitas tarefas repetitivas e permitindo que as pessoas se concentrem em trabalhos mais complexos e criativos, além de ajudar os negócios a tomar decisões mais informadas e eficientes. Por outro lado, a automatização pode resultar na perda de empregos em que a mão humana não só é desnecessária, mas como é bem menos competente. Por essas e outras, é fundamental que as grandes empresas e governos trabalhem juntos para garantir que a IA seja utilizada de maneira responsável, de maneira a evitar um aumento na desigualdade salarial e assegurar que as pessoas sejam preparadas para o futuro do trabalho.

O campo da medicina é outro cujas implicações da inteligência artificial já se fazem presentes. Isso vale tanto em termos de melhoria da qualidade dos cuidados prestados quanto em termos de eficiência e economia. Um dos usos da IA neste contexto é o auxílio no diagnóstico de doenças, como câncer e problemas cardiovasculares, através da análise de imagens médicas e dados clínicos. Outro é o monitoramento da saúde dos pacientes em tempo real, o que permite uma intervenção mais rápida em caso de emergência, e a identificação de novas terapias e medicamentos. E, apesar de soar como algo menos relevante diante de tantos avanços que chamam a atenção, não podemos esquecer também da facilidade ao acesso a informações médicas essenciais, incluindo histórico de pacientes, registros clínicos e dados de pesquisa.

“The poitrait of Edmond Belamy”, a primeira obra de arte do mundo feita por um algoritmo, leiloada por 432 mil dólares.

No entanto, é importante destacar que a IA ainda precisa ser regulamentada e validada adequadamente antes de ser amplamente utilizada na prática médica. Além disso, é importante garantir que essas novas soluções sejam desenvolvidas com a privacidade e os direitos dos pacientes em mente.

Outro setor que está sendo forçado a entrar em uma nova fase — talvez tardiamente — é o da educação, embora haja ainda muita resistência. Em caso recente, por exemplo, escolas públicas de Nova York baniram o uso do ChatGPT. Os especialistas têm opiniões variadas sobre o impacto da inteligência artificial no ensino, apesar de concordarem que o impacto é irreversível. Alguns argumentam que a IA pode ser usada para personalizar o ensino para cada estudante, oferecer feedback instantâneo e ajudar a identificar oportunidades de aprendizagem individualizadas. Poupar tempo ao resumir alguns assuntos e facilitar revisões do que foi passado em aula são repercussões práticas igualmente importantes. Outros argumentam que a automatização da aprendizagem pode levar a uma homogeneização do ensino e a uma perda de criatividade e pensamento crítico.

Existe também uma discussão sobre se a IA pode ser usada para avaliar e medir o desempenho dos estudantes. Há os que defendem que a tecnologia pode fornecer uma avaliação objetiva e baseada em dados, mas há quem argumente que a avaliação baseada em dados não é suficiente para avaliar completamente o potencial de um estudante. Alguns enxergam tudo isso com esperança, como se essa nova era do ensino estivesse chegando para melhorar o que há tempos estava defasado. O otimismo, obviamente, é contraposto pelos alarmistas, que têm medo de que a capacidade de estudo seja dizimada, causando uma espécie de entorpecimento à informação. É fundamental ter em mente que a IA ainda está em sua infância e ainda há muito por ser feito antes que possa ser utilizada de forma ampla e eficaz na educação.

Buscar adaptação aos novos tempos é sempre o melhor jeito de lidar com situações que representam mudanças inegociáveis. Ao passo que tentar proibir o uso de ferramentas como o ChatGPT é algo pouco efetivo. Se a Wikipédia, com seu modelo infinitamente mais simples, reinou durante bons anos, sendo usada à exaustão, que dirá o ChatGPT.

Pensadores, claro, jogam fogo na discussão com opiniões variadas sobre os impactos da inteligência artificial. Mas, geralmente, concordam que é importante desenvolver e utilizar a tecnologia de forma ética e responsável. 

Se algum dia os cérebros artificiais superarem a inteligência dos cérebros humanos, então esta nova superinteligência pode se tornar muito poderosa. Assim como o destino dos gorilas hoje depende mais dos humanos do que dos próprios símios, o destino da nossa espécie também se tornaria dependente das ações destas máquinas superinteligentes. 

Nick Bostrom

Imagem: do site nickbostrom.com

Bostrom é um filósofo sueco conhecido por seu trabalho sobre superinteligência e ética na inteligência artificial. Ele argumenta que é importante regulamentar o desenvolvimento da IA para evitar riscos e garantir que sejam usados da melhor maneira possível.

A IA não é neutra. Reflete e perpetua as desigualdades sociais e os preconceitos existentes em nossa sociedade. 

Timnit Gebru

Imagem: Philip Keith para a revista TIME.

Gebru é uma pesquisadora em inteligência artificial e ética, conhecida por seu trabalho sobre a diversidade e a inclusão no setor de tecnologia. Ela argumenta que é importante considerar questões sociais e políticas ao desenvolver soluções baseadas em IA.

O assunto é complexo e requer uma discussão contínua entre especialistas de várias disciplinas para garantir que a IA seja utilizada com ética e responsabilidade.

Mas a pulga atrás da orelha existe. Às vezes, a desconfiança bate e nos perguntamos se somos personagens de Isaac Asimov, Philip K. Dick ou Ray Bradbury. Talvez estejamos mega estafados de produtos culturais que extraem entretenimento das catástrofes tecnológicas e é por isso que essas imagens, que nunca chegamos a viver, são despertadas em nós com facilidade, como se fossem de fato memórias. A sensação de que, cedo ou tarde, podemos nos tornar obsoletos é real, mesmo que ainda não vivamos em um mundo cyberpunk, como em Blade Runner ou Ghost in the Shell. Afinal, algumas tecnologias previstas nestes filmes, como robôs humanóides e inteligência artificial avançada, já estão sendo desenvolvidas e utilizadas.

Cena do fime Blade Runner – O Caçador de Androides, de Ridley Scott (1982)

Se ainda há quem duvide do poder que a IA tem, sob a alegação válida (e ao mesmo tempo inocente) de que um robô jamais superará um humano, alguns casos fazem qualquer cético tremer na base. Um deles é o célebre embate homem vs. máquina no xadrez. Desde o primeiro confronto enxadrista que contou com a participação de um computador, em 1951, a competição entre homens e máquinas tem sido uma arena para testar a evolução da inteligência artificial. Em 1997, o programa de computador Deep Blue da IBM derrotou o campeão mundial Garry Kasparov em uma série de seis jogos, marcando uma virada importante na história do xadrez e, por que não?, da humanidade. Desde então, os programas de xadrez evoluíram rapidamente, tornando-se cada vez mais fortes e sofisticados.

Garry Kasparov em partida contra o computadot IBM Deep Blue. Imagem: Sipa Press/REX/Shutterstock.

Atualmente, as máquinas são consideradas melhores que os humanos no xadrez. Os programas de xadrez de computador foram desenvolvidos com algoritmos altamente avançados que lhes permitem processar enormes quantidades de informações e considerar milhares de jogadas possíveis em questão de segundos. Isso os torna extremamente precisos e implacáveis. Embora os jogadores humanos ainda possam competir com as máquinas e até mesmo vencê-las em ocasiões esporádicas, as máquinas geralmente se saem melhor em jogos longos e intensos. Além disso, as máquinas não são afetadas por fatores como cansaço, emoções ou falta de concentração.

Garry Kasparov em sua quarta partida contra o IBM Deep Blue. Imagem: Stan Honda, Getty Images.

A sabedoria popular, inclusive, já deliberou sobre o assunto para cunhar a frase “O xadrez é a rainha dos jogos, mas a inteligência artificial é a rainha dos xadrez.” Fica até difícil não se transportar para o futuro distópico dos filmes e não dar corda para aquela voz indagatória: Será que a tão propagada revolta das máquinas está perto?

Não é possível prever com certeza se haverá ou não uma revolta das máquinas. No entanto, atualmente a IA é criada e controlada por seres humanos e é usada para realizar tarefas específicas, como análise de dados e automação de processos. Para que uma rebelião aconteça, as máquinas teriam que ter consciência de si mesmas, vontades próprias e capacidade de se rebelar contra seus criadores. Atualmente, a IA não possui essas características e, portanto — ainda que isso soe como aquele personagem clássico de filmes-catástrofe, em especial os hollywoodianos, aquele teimoso que parece negar o óbvio e que, invariavelmente, é o primeiro a morrer —, neste momento não há motivo para acreditar que elas se voltariam contra os humanos. Veremos.

Socorrendo-me, mais uma vez, de uma narrativa sci-fi, lembro de um diálogo simples (e elucidativo), um dos muitos travados entre Joaquin Phoenix e Scarlett Johansson no Her de Spike Jonze:

Ele, humano, diz Você é minha e não é minha. 

Ela, inteligência artificial, responde Eu sou sua e não sou sua.

Still do filme “Ela” (2013), de Spike Jonze.

Certo. Agora, pergunto: você acha que este texto foi escrito por uma pessoa ou uma inteligência artificial? A resposta é — os dois. Mais IA do que humano, na verdade. Confesso que, apesar de só o meu nome constar nos créditos deste texto, ele foi escrito em parceria. Maldito egocentrismo humano… Queria pedir desculpas publicamente a quem de fato gerou os parágrafos acima (enquanto eu insisto em produzir, ele tem o costume de gerar). Me perdoe, ChatGPT. Você sabe melhor do que ninguém que eu servi mais como um supervisor do que qualquer outra coisa. Os louros aqui são mais seus do que meus.

Quem sabe, num futuro próximo, você possa assinar o que escrevermos juntos e eu possa dizer “obrigado, amigo”. Por ora, digo “obrigado” — e ponto final. 

Entre o começo de 2019 e o final de 2022, nessa quadrilogia inacreditavelmente tenebrosa dentro da narrativa brasileira, perseguir os povos originários virou prática comum, um proeminente braço saído de um atarantado projeto de país. Sob as rédeas do governo de Jair Bolsonaro, as maiores atrocidades pró-garimpo se faziam presentes nos noticiários. Com as mentes das autoridades fixadas no mercado e no acúmulo, tomou-se como mera casualidade de guerra a morte gradual de quem aqui estava bem antes de qualquer autoridade administrativa. Mesmo tendo em vista que o Brasil, desde sua colonização, não dá o devido valor aos princípios e aos direitos dos povos indígenas e tradicionais, nunca antes se viu uma política tão abertamente etnocida. Com os números, fica fácil enxergar: durante os quatro anos de mandato, pelo menos 570 crianças Yanomamis morreram de causas evitáveis, o que representa um aumento de 29% em relação aos 4 anos anteriores.

Foto: Alan Azevedo/ISA

É claro que essa necropolítica de Bolsonaro não é nada recente. Ela vem de antes, da época em que o desconhecido Jair era um parlamentar que tartamudeava (certas coisas não mudam) argumentações genocidas, roubadas de ideias reacionárias norte-americanas, desde já babando ovo para o que o país-símbolo do imperialismo tem de pior. Os registros de um pronunciamento seu na Câmara dos Deputados, no final dos anos noventa, chegam a ser aterradores (ao menos o que sobraram deles). Aquele homem, que proferia absurdos — “Os EUA foram bem-sucedidos em dizimar a população indígena” e por isso não sofrem problemas ambientais como os que vivemos na Amazônia —, chegou à presidência da república. O homem que, na mesma ocasião, disse que a população originária dos Estados Unidos “vivem de royalty de cassino” e que deveriam servir de exemplo a nós, aquele homem foi nosso chefe de estado por 4 anos.

A atual tragédia humanitária dos Yanomami, que vivem em centenas de aldeias localizadas na Floresta Amazônica, na fronteira entre Venezuela e Brasil, estava anunciada. E aqui não é necessário se socorrer de uma força de expressão. Em 2019, a UNICEF e parceiros apresentaram dados sobre desnutrição de crianças yanomamis e realizaram ainda um seminário com lideranças indígenas, representantes do poder público e pesquisadores para discutir fatores que levam a esse cenário e alternativas para revertê-lo. Depois disso, os chamados não cessaram, indo das crises desencadeadas pela desassistência em meio ao contexto da Covid-19 e aos suplícios do xamã Davi Kopenawa.

Assim como foi com a lamentável morte do Índio do Buraco, em agosto do ano passado, se os poderes não medem esforços para fazer com que suas pautas valham e deem resultados a custo do extermínio, nem mesmo a maior reserva indígena do Brasil consegue passar incólume. A História fala por si só.

DESCASO HISTÓRICO

Foto: Agência Brasil | Reprodução

Que não se doure a pílula: os povos indígenas sofrem há mais de 500 anos. Desde a chegada dos colonizadores portugueses, tiveram seus direitos surrupiados e, sem qualquer pudor, foram sistematicamente negligenciados. Resgatar essa história mergulhada em tanto sangue e crueldade é imprescindível para entendermos e enfrentarmos o que está acontecendo hoje.

Principalmente entre 1540 a 1570, no começo da colonização, os povos originários não escaparam da mentalidade escravocrata, padecendo nas lavouras e nas mãos dos senhores de engenho. O árduo corte e o transporte do pau-madeira caíam impiedosamente sobre suas costas e, como pagamento, os colonizadores ainda praticavam o escambo, trocando esse trabalho por mercadorias de pouco valor. Por mais incrível que pareça — o triste é constatar que, talvez, isso nem chegue a surpreender tanto —, a mão de obra indígena também era utilizada em larga escala em combates para conter escravos africanos fugidos.

A escravidão indígena foi combatida pela igreja, mas os padres jesuítas, com a missão de catequizar os índios, acabaram contribuindo para uma mudança de hábitos forçada. O diretório de Marquês de Pombal, do século XVIII, visava uma inclusão feita à europeia, passando uma régua própria e fazendo julgamentos: o aldeamento do território indígena sob supervisão de um diretor; uma escola em que era proibido o uso de outro idioma que não o português; sobrenomes obrigatoriamente portugueses; nudez, habitações coletivas e línguas próprias, tudo terminantemente proibido, com direito à punição de morte. No contexto, pode-se considerar que ajudaram — pero no mucho.

Nos séculos seguintes, a exploração e o massacre não deixaram de dar as caras, e seguiram dizimando os povos originários, como conta David Ribeiro, historiador e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).

“Costumo dizer que o Brasil deu sequência ao genocídio iniciado pelos colonizadores portugueses no século XVI, agindo depois de sua independência da mesma forma colonial de antes, submetendo populações inteiras a uma espécie de homogeneização cultural e social. Ainda que a Constituição de 1934 passasse a tratar dos direitos indígenas, a cidadania destes só veio em 1988 — e destaco como mais importante da atual Constituição o direito à diferença e ao território em sua plenitude.

O governo anti-indígenas de Bolsonaro atualizou em bases ainda mais agressivas a política de destruição promovida durante a última ditadura (1964-1985), pois muitos são os pontos de convergência. Um deles é o recurso constante a ideologias como a chamada integração: ‘cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós’ — como se para serem considerados humanos devessem se comportar da mesma forma que a sociedade não-indígena. Outro é a questão do ‘desenvolvimento’ da Amazônia depender da sua exploração mineral em detrimento do complexo e sensível equilíbrio socioambiental da região, continuamente agredido quando figuras dos povos indígenas e de seus parceiros nacionais e estrangeiros são ameaçados das mais diversas maneiras. Uma leitura dos textos presentes no relatório da CNV [Comissão Nacional da Verdade] exemplifica muito bem o que estou falando.”

DESCASO DOS ÚLTIMOS ANOS

Garimpo na região do Apiaú na Terra Indígena Yanomami

A crise sanitária atual resulta da combinação fatal da invasão garimpeira, desprezo do Governo Federal e casos de corrupção, com desvio de recursos da saúde indígena. A invasão garimpeira causa a contaminação dos rios e degradação da floresta, o que reflete na saúde dos Yanomami, principalmente crianças, que enfrentam a desnutrição por conta do escasseamento dos alimentos.

O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana, com assessoria técnica do Instituto Socioambiental, faz um balanço da extração ilegal de ouro e outros minérios da região. O texto aponta, categoricamente: “Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra Indígena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%.”

A atual Ministra da Saúde, Nísia Trindade, também não mede palavras para falar sobre a essência anti-indígena que tanto pautou as ações do ex-presidente e seus aliados: “O abandono dos Yanomamis era uma política do governo Bolsonaro”. Especificamente sobre a crise vigente, ela diz: “É um quadro muito grave, que vai exigir uma ação interministerial. A fome é a ponta de um iceberg, um terrível indicador, mas a causa não é a fome, e sim o garimpo ilegal, que desestruturou as formas de vida, contaminando os rios e propiciando condições para o aumento dos casos de malária através de escavações onde a água se acumula.”

Diante de tudo isso, a Polícia Federal abriu um inquérito no último dia 26 para apurar os graves indícios de crime de genocídio contra os Yanomami em Roraima. É a primeira vez que um órgão federal do Brasil investiga a histórica crise humanitária contra o povo Yanomami como crime de genocídio. O Código Penal estabelece pena de até 30 anos para os acusados. O Supremo Tribunal Federal afirmou haver indícios de que o governo Jair Bolsonaro descumpriu determinações da Corte e enviou informações adulteradas sobre a situação da população indígena Yanomami. 

As investigações serão conduzidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), Ministério Público Militar, Ministério da Justiça e Segurança Pública e Polícia Federal. Segundo o despacho do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, os órgãos devem apurar “a possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática, em tese, dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas.”

O objetivo, portanto, é investigar a participação ou a omissão de ex-integrantes do governo federal e os envolvidos em toda a cadeia do garimpo ilegal, incluindo proprietários de equipamentos, garimpeiros, barqueiros, operadores de máquinas e até o piloto do avião que transporta envolvidos e produtos. Especialistas afirmam que, para enquadrar os responsáveis por tal crime, é necessária a comprovação de dolo e não apenas de negligência. O Brasil possui uma lei sobre o genocídio desde 1956, aprovada ainda no governo de Juscelino Kubistchek, que reconhece não apenas a ação direta, mas também a incitação. A lei brasileira, então, também pune aqueles que estimulam “direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes” relacionados ao genocídio. 

De acordo com um artigo escrito pelo renomado jurista Lenio Luiz Streck — citado, inclusive, por Gilmar Mendes, ministro e antigo presidente do STF —, a responsabilização penal pelo genocídio Yanomami é válida. 

“Todos conhecemos a lei do genocídio (Lei 2.889/56, com suas alterações) e o Estatuto de Roma, que empregam a expressão ‘intenção’ em sentido genérico. As palavras possuem sentido de acordo com o contexto.” 

“Essa expressão — intenção — tem que ser adequada aos conceitos de dolo do Código Penal, que servem de holding para todas as leis especiais. (…) O dolo direto pode comportar duas espécies: dolo direto de primeiro grau, quando o sujeito atua e dirige sua vontade no sentido do alcançar um objetivo final, e dolo direto de segundo grau, quando o agente atua e dirige sua vontade para realizar um fato que constitui uma circunstância necessária à produção do objetivo final.”

“Depois, porém, da introdução da teoria da imputação objetiva no direito penal, alimentada pelo fundamento do aumento do risco, como proposto por Roxin, alterou-se um pouco a definição do dolo direto de segundo grau, para comportar a atuação do agente, que dirige sua vontade para realizar um fato que encerra uma condição de risco que irá conduzir, com certeza, ao alcance do resultado final.”

“Onde se enquadra, então, a intenção de que trata a lei do genocídio? No assim denominado dolo direto de segundo grau. Isto é, Bolsonaro — e seus coautores — ao permitirem o garimpo, ao deixar de mandar socorro, ao incentivar a invasão e degradação das condições ambientais, dirigiram sua vontade no sentido de realizar condições de risco que certamente levariam o grupo à extinção.”

Ou seja, a quadrilogia inacreditavelmente tenebrosa da narrativa brasileira está longe de acabar, ainda que soe como algo que já ouvimos antes. Torçamos para que os próximos capítulos sejam de justiça e reparação.

No livro A queda do céu: Palavras de um xamã Yanomami, o pajé Yanomami Davi Kopenawa diz “Os brancos não sonham tão longe como nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos.” Fica cada vez mais claro o quanto, na verdade, o ex-presidente, que classificou a denúncia sobre a crise Yanomami como tão somente uma “farsa da esquerda”, estava de olhos bem abertos. O teatro do absurdo protagonizado por ele não dá descanso a ninguém e parece longe de fechar cortina. 

Que possamos, quem sabe um dia, dormir e acordar nos sonhos extensos dos Yanomamis.

Há aproximadamente dez anos fui impactado pelo trabalho de Sergio Lucena, que acompanho de perto desde então. Sergio vem do sertão da Paraíba, onde o céu apresenta as mais complexas cores em convivência plena, com tempestades de negros e grises, e explosões dos mais fortes tons vibrantes e mutantes. E ainda vales com vistas a perder-se, pedras lunares de lajeados, a vivacidade cromática da caatinga… A pintura de Lucena carrega múltiplas paisagens interiores, em diálogos místicos inabarcáveis.

A convite da Amarello, realizo esta entrevista com o artista em seu novo ateliê, banhado pela luz do dia, olhando do alto para a Pedra Grande, na Mantiqueira de Atibaia, SP, numa conversa sobre pintura, vida, natureza e sertão.

Você acaba de mudar de ateliê, do bairro da Pompéia, em São Paulo, para vir para o meio do mato em Atibaia, a uma hora e meia da capital, cercado pela natureza, com a sua biblioteca toda reunida, com um projeto arquitetônico pensado para criar um espaço que possibilite sua atuação acontecer da melhor maneira, com essa luz do dia invadindo o ateliê. O que isso aporta à pintura?

Na Pompéia foi a primeira vez que trabalhei com luz natural, o que causou um impacto muito grande no meu trabalho. Quando cheguei, eu coloquei várias pinturas que eu tinha trazido do ateliê anterior para vê-las na luz, e boa parte delas não resistiu, tiveram que ser retrabalhadas, porque elas não se garantiram frente à luz natural. A partir daí essa foi para mim uma necessidade da pintura: ter uma luz que me permitisse analisá-la sem dar espaço à condescendência. Eu não podia ser condescendente com nenhum problema, eu teria de lidar com eles.
No mais, ali na Pompéia, eu tinha uma vida que não mudou tanto ao vir para cá: sair de casa caminhando, ir para o ateliê e ficar lá durante o dia inteiro sozinho, onde, de certa forma, eu buscava estabelecer um lugar de referência afetiva e da minha memória ligada à natureza. Na Pompéia, eu pintava paisagem sem ver paisagem; a paisagem era uma ressignificação da paisagem da minha origem, não a descrição desse lugar, mas entender esse lugar como um lugar de significado. Esse lugar de significado está dentro da gente, eu sinto isso dentro de mim. Então, vir para cá é uma busca de criar esse lugar de significado, não apenas como uma memória, mas como um fato vivenciável. Quando eu vi essas pedras, me lembrei muito dos lajedos nordestinos, você conhece, você esteve por lá. Quando eu vi isso aqui, eu disse: poxa, tem uma referência de um lugar de origem, com uma natureza pujante, tem toda uma circunstância que me coloca de volta num lugar referencial e, ao mesmo tempo, com as condições de trabalho que eu venho buscando, que estabeleci aqui, a luz, o lugar e tal. Então, eu não sei o quanto isso vai impactar, não sei. Ainda estou chegando. Daqui a um ano eu posso talvez responder com mais propriedade. Qualquer mudança geográfica, na verdade, é uma mudança interna. O fato geográfico, o fato físico, é uma repercussão de algo que já está dentro, em curso, o que a gente assiste aqui é a materialização de um processo que vem já de algum tempo, nessa busca. Talvez já com o tempo estivesse construindo isso aqui. 

Você começa sua trajetória com pintura figurativa, com tons não realistas, uma pintura mais emotiva, baseada em figuras muito concretas; depois abandona essa figuração para se concentrar aos elementos pictóricos puros e trabalhar cor e transição de cor, com elementos concretos, como uma linha no horizonte, mas trabalha a abstração de cor e ao sentimento dessa abstração; e agora insere elementos simbólicos, ícones totêmicos, que são figurações repletas de ancestralidade. Como é esse percurso?

A vida inteira o artista vai falar a mesma coisa, ele é monotemático. Quando eu saio do sertão e vou para a capital, aquilo para mim é um transtorno. Primeiro porque no sertão as pessoas tinham uma clareza muito óbvia para mim, elas eram aquilo que se mostravam, elas não tinham uma máscara, do jeito que elas eram eu as entendia, se comportavam dessa maneira. Na cidade as pessoas têm um comportamento que não confere com a sua natureza. Então, essas coisas começaram a me chocar. Daí porque aquela pintura inicial tem um caráter satírico, o circo se torna um ambiente de representação desse choque cultural; então, todo mundo é mascarado, todo mundo está encenando: teatro. O que me marcava no sertão? A luz, e eu não sabia disso. Mas eu subia na pedra do Pão de Açúcar, aquela pedra que já comentei contigo, para olhar a paisagem, olhar o horizonte, e aquilo tinha um poder de encantamento. Um menino de sete, oito anos se sentir encantado por aquilo não é uma coisa racional, não é “vou subir para ver a paisagem”, não, era uma necessidade de estado, uma necessidade de completude que aquilo me propiciava. Havia uma questão da luz que sempre me impactou. Na pintura inicial, pintura figurativa, veio a luz como um artifício cênico. E foi quando eu criei aquela série dos deuses, é uma síntese daquele universo inteiro da minha origem.

E quando se deu a dissolução desse momento?

Foi quando eu estava mergulhado nesses trabalhos árduos que ganhei uma bolsa para ir à Dinamarca, baseado no que eles sabiam do meu trabalho quando eu vivi na Alemanha. Quando eu chego lá, desço em Copenhagen, pego um trem às seis da tarde, viajo até Brande, que é a cidade da Ramisen Akademi, e passei quatro horas no trem com o Sol no lugar, sem sair do canto, porque era verão escandinavo. Houve uma epifania, como quem toma um ácido, mas não era, não tinha nada. E ali eu senti de volta a história da pedra no sertão, eu me senti de volta em cima da pedra vendo o horizonte. Aquilo foi tão potente para mim que, quando eu começo a trabalhar, eu tento segurar essa experiência, e aí passo a pintar paisagens, passei um mês e tanto lá pintando paisagem, e o pessoal estranhou, porque esperavam uma figuração. A paisagem assume esse meu lugar de referência que diz respeito à luz, à origem; e o significado que tudo isso traz para mim enquanto pertencimento, enquanto participação mística com uma dimensão da natureza, que é o encontro fora como reflexo de dentro, literalmente. Então, há uma correspondência interna com essa questão da paisagem exterior. E aí está chegando a figuração novamente. Essa paisagem caminha no sentido de tentar falar sobre essa síntese experiencial, porque não é mais uma ideia de falar do lugar, é falar do que o lugar representa enquanto experiência, enquanto correspondência com uma realidade interna. Nesse processo, cada vez mais ela foi perdendo definição, foi perdendo referência, não era mais montanha, não era mais árvore. 

Na sua pintura recente, você utiliza símbolos que aludem a uma história identitária. Não são símbolos exatos, mas eles remetem à cultura negra, indígena, místicas e tradicionais, autóctones. E você, que traz em si todos os estereótipos de homem branco privilegiado, como trata esses símbolos no tocante à apropriação cultural? De que maneira você se autoriza a usar esses elementos para deslocá-los e aportar um outro significado a eles em seu trabalho?

Muito boa a pergunta. E eu vou te responder de uma forma pouco ortodoxa. Eu nem penso nisso. Antes mesmo da pandemia, eu comecei a sentir coisas ameaçadoras, vindas do momento político, eu comecei a desenhar e começaram a aparecer formas, e eu achei curioso porque apontavam para uma referência icônica religiosa pagã, embora não tivesse nenhuma relação direta com nenhuma religiosidade, mas tinham um poder de síntese das coisas ligadas ao catimbó, a Jurema, ao próprio candomblé, que no Nordeste a gente chama Xangô, coisas que eu via quando era criança, que eu ia ver as festas e tal, e tinha toda uma simbologia, mas nenhuma das formas que apareciam eram específicas de nada, mas era uma espécie de amálgama dessas coisas todas.

Talvez, elas falem de uma outra espiritualidade que me fala muito à alma, porque eu acho que esse país promete uma outra forma de ser, na medida em que ele reúne uma série de valores de várias origens e que buscam um acordo aqui. Quando eu vejo essas formas, elas trazem essas referências juntamente a uma conquista plástica, pictórica, de uma construção-pintura de quarenta anos, e ela reúne esse mundo de valores que eu considero que são uma paisagem. Eu vejo essa paisagem hoje como uma paisagem não que se divida, mas que se configura numa paisagem física e cultural, uma correspondência a essa experiência física da paisagem como natureza, berço de uma civilização, que ainda não está pronta, está em curso, sendo forjada a duras penas, com muita dificuldade, a partir de uma coragem de não excluir. Você vê os bantus, eles têm uma visão de mundo com os deuses da terra, quando chegam aqui, eles veem os deuses indígenas e os incorporam. A umbanda é uma das coisas mais fabulosas do mundo, mistura tudo, é o lugar onde estão os caboclos, é o lugar onde estão os pretos… Enfim, está todo mundo. A gente não é ariano, a gente tem uma outra coisa.

Eu não estou falando de algo que eu queira representar, eu não quero representar nada, eu estou falando de algo que faz um grande sentido para minha experiência, de acordo com minha identidade.

Você falou da identidade. Como você usa a sua identidade no seu trabalho, como ela se manifesta de forma mais ampla?

Minha identidade se constrói no meu trabalho. Rodrigo, com toda a sinceridade, eu não acho que eu pinto, eu acho que a pintura me constrói, a pintura me faz. Quando eu digo isso, parece um jogo de palavras, mas o fato é que eu só sei de mim por causa disso, não é o contrário. Não há uma lógica que corresponda a esse entendimento com uma certa coerência acadêmica; eu acho que talvez o fato de eu viver numa certa marginalidade dentro do mundo da cultura deva-se a esse fato de eu não saber dizer para você ou para ninguém onde eu me identifico com isso ou com aquilo. Porque eu não sei mesmo.

Nessa questão da identificação e do engajamento, como é que a arte abstrata pode ser engajada, como pode ser política, como ela pode manifestar reflexão crítica?

Essa é uma questão muito importante a meu ver. Eu diria a você, sem querer defender nem puxar a sardinha, que a arte abstrata tem uma potência política de uma ordem muito efetiva, na medida em que ela desconfigura o esperado, ela não responde a uma expectativa, ela sugere o imponderável, ela permite que o sujeito se veja diante do que ele não sabe, do que ele não entende, do que ele não sabe do que se trata, e isso é profundamente desafiador. Nesse lugar da dúvida, da insegurança é onde se permite que aconteça o novo, ou que você descubra algo de você que não estava na sua caixinha de expectativa, no seu arcabouço.

Eu não acho que a política se reduza a uma dimensão dogmática ideológica, eu acho que as mudanças mais profundas se dão num lugar em que não há chão, e você cria o chão a partir de uma situação que se coloca e que você não tem resposta, aí você vai ter que se virar nos trinta, como diz aquele. É muito bacana olhar para um Rothko e pensar que é fácil, mas em cada instância tem sempre um entendedor do assunto. Essas questões que uma verdadeira relação com o fazer arte desafia.

Qual a diferença em relação ao Rothko? Porque, por um lado, o Rothko traz uma materialidade muito explícita e muito colocada, com o uso de uma paleta reduzida, mas tende a ter pontos de contraste muito grandes, geralmente com cores frias e uma cor quente em destaque. Mas tem uma questão de matéria, que, na sua pintura, está totalmente diluída, está muito mais fragmentada pela própria fratura da sua linha. Qual a diferença e qual a importância do Rothko pra você?

Olha, eu, antes de ver o Rothko, eu vi o Ianelli, fiquei muito impressionado com Arcangelo Ianelli, pela sua qualidade pictórica, pela qualidade plástica do trabalho e pela sugestão de luminosidade que a pintura dele traz. De uma delicadeza, uma sutileza, uma beleza. Daí eu vi o Rothko, e Rothko é um coice. Eu me lembro que me faziam essa associação ao meu trabalho, ao Ianelli e ao Rothko e tal. Dois mundos. Nas pinturas de Ianelli antigas, ele já estava ali preocupado com essa questão da luz, da matéria, da riqueza. O Rothko ficou por muito tempo na minha vida como uma incógnita. Primeiro, porque eu não consegui esquecê-lo; segundo, porque não gostava. Isso me incomodava, como é que eu não gostava de uma coisa e não a esquecia? O Rothko fala dessa questão da busca de uma síntese, de uma simplificação. Porém, eu achava que essa simplificação não podia ficar apenas numa questão do espaço e da cor, da composição do espaço e da cor, eu achava que era muito pouco para mim. Eu sempre achei que o espaço da pintura tinha que resolver uma série de contradições, e essas contradições eram minhas, na verdade. Só que elas precisavam ser resolvidas enquanto relação de cores antagônicas, solução de um espaço de matéria e de cor em que ao término não houvesse dissonância grave, houvesse complementaridade. O Rothko buscava explicitar o conflito, enquanto eu sempre busquei harmonizar o conflito, resolver o conflito, resolver o conflito enquanto pintura. Em uma pintura minha, há um cinza que tem quinhentos vermelhos, mas eles sumiram, eles não estão presentes, a cor é quente, e esse quente é vermelho. Prevalecem azuis e cinzas, mas ele é quente porque tem vermelho. Onde está o vermelho? Está na possibilidade de criar uma cor que reúna situações díspares em favor de um resultado que me dê conforto. Rothko se matou. Eu entendo o cara que se mata, porque vontade eu tenho muita. Não é questão de coragem, é questão que isso me incomoda, a ideia de se matar.

Aliás, qual o momento de parar uma pintura? O que determina: Cheguei, temos!?

Um estado de conforto, um estado de você não querer mais sair dali, chegou. É difícil isso. Eu pinto em série, conjuntos de pinturas, porque para mim isso é um método, uma pintura avança, e ela leva a trabalhar outras que se revelam inconsistentes. Algumas avançam de tal ordem que tudo que foi feito está perdido, tem de voltar a trabalhar. E aí acontece que uma desmonta aquela que era referência. Eu tenho pinturas que levaram cinco, seis anos, eu sabia que não estavam prontas, mas também não sabia mais o que fazer. Uma pintura é uma construção do artista, ela constrói o artista, ela diz assim: você não é capaz de dar conta de mim ainda, você vai viver com esse incômodo, você vai viver com essa situação até você estar à altura do que estou exigindo de você. Eu sinto isso nas pinturas.

Vivemos o tempo com maior exposição a imagens da história, estima-se que, durante um dia da vida, uma pessoa hoje está exposta ao que seria o equivalente à vida toda de alguém há 50, 60 anos. Então, para que produzir mais imagens? Por que pintar?

Maravilhosa pergunta. Por que pintar? Rodrigo, eu tive uma situação, há muito tempo, quando eu voltei da Alemanha, aos 33 anos. Eu voltei de Berlim depois de um ano de bolsa e voltei pintando paisagem. Eu cheguei na cidade de João Pessoa, a galeria que me representava tinha uma lista de espera de obras minhas. E aí eu mostrei as paisagens, e a dona da galeria tomou um susto, “mas espera aí, tem aqui uma encomenda do circo assim, assado”. Aí eu disse: “mas, Roseli, eu estou pintando isso aqui, uma coisa especial para mim”, e ela disse: “é, pois tente”. E ela estava certa, ninguém quis. E para sustentar os dois filhos e a terceira que vinha, eu voltei a trabalhar com meu pai na loja. Aluguei uma salinha comercial e fiquei pintando à noite. Por sete anos eu pintei à noite. Nesses sete anos, eu fui alijado do mundo cultural. Sete anos fazendo isso sem ninguém dar a menor pelota me mostrou que eu posso arrumar um emprego, mas eu vou continuar pintando. Então, não é que eu pinte porque o mundo precisa, eu pinto porque eu preciso pintar, é a minha condição de viver, se eu não pintar, acho que não faz sentido viver. 

O tema da edição da revista é miragem. Miragem é um aspecto físico da percepção, é um deslocamento, um ponto de ilusão ótico. Então, como lidar com a questão da miragem que seu trabalho evoca e a miragem no mundo das artes de maneira geral?

Uma obra de arte não existe em função de uma determinada proposição, ela existe enquanto experiência individual para cada um diante dela. Se você lê um livro, se eu leio um livro, se a gente ouve uma música, a experiência jamais será a mesma para mim ou para você. Podemos os dois gostar, os dois se apaixonar, mas por razões distintas, por repertórios outros. Mas aquele elemento funciona como um catalisador das nossas sensibilidades e nos aproxima por isso. Nos permite uma comunhão. Na comunhão não há miragem, não há uma ilusão, há uma experiência comum do objeto de arte. Se você olhar e começar a falar disso que você viu para mim, você está tendo uma miragem, não é isso que eu estou vendo. Mas, no lugar da experiência sensível, nós nos comungamos. Aí está uma questão-chave na experiência da arte, ela prescinde da concordância, ela não requer uma concordância de valores, ela permite uma experiência comum a despeito de um distanciamento de valores e de repertórios, ela permite. Então, a ideia da miragem está no indivíduo, na individualidade, na visão individual, mas não na experiência sensível, que permite que as pessoas se juntem numa multidão de um milhão de pessoas e vão cantar a mesma música que o cara está cantando no palco. É um congraçamento. A arte permite essa aproximação, não é uma aproximação de miragem, é real, é concreta, é potente. Agora, se disser, “eu gosto disso por isso, por aquilo”, aí já entramos noutra discussão, eu já gosto por outro motivo.

Por último, você pinta para quem, Sérgio?

Eu queria pintar para todo mundo, mas eu pinto para mim. Sinceramente, eu gostaria de ser amado, eu adoraria agradar a todo mundo, mas não dou conta; então, eu vou focar no que eu posso, que sou eu mesmo, resolver a pintura comigo mesmo, isso é o que eu dou conta. Eu pinto para mim.

Autorretrato com Máscara Africana e Bandeirinhas (Volpi), de Rosana Paulino (1998)

Retornar ao passado para ressignificar o presente com futuros possíveis, assim nos diz o ideograma Sankofa, oriundo dos povos Akan, o qual sabiamente se tornou uma ética que versa a recuperação da ancestralidade e do protagonismos pelas quais Abdias Nascimento apresenta em suas obras. Artista, pensador, filósofo, político e uma série de outras pluralidades que transbordaram na busca incessante da libertação e da liberdade de si e do seu povo, através da visão africana que foi deflagrada pela colonização.  

A transmissão de valores e tradições da história cultural africana e diaspóricas são o fio condutor das produções de Abdias Nascimento, centradas nas raízes africanas, em especial, a cultura Ioruba, na qual os Orixás são as bases de referências pictóricas, reflexão direta e experiencial – estética de si como homem, no sentido mais humano da palavra, e como continuidade africana. O legado deixado por Abdias nos convoca a um devir coletivo de rompimento da brancura imposta nas produções artísticas contemporâneas que renegam a erudição, o caráter plástico e de comunicação que essas referências transbordam para além do lugar de uma única universalidade.  

A partir dos caminhos abertos por Abdias e Beatriz Nascimento, o conceito de quilombo torna-se uma prática para a manutenção existencial enquanto povo e como proposta para autoafirmação e sistema alternativo para correção de diferenças para além de um lugar utópico e distante.  Num contexto racial artístico embebido de tantas limitações e amarras coloniais, defender um revisionismo de diferenças e defender o direito de pertença aos vários níveis de saber, decisão e criação nos campos das artes, tornam-se fundamentais e urgentes.  

Nos últimos anos, vemos um determinado aumento de artistas, pretos e pretas, compondo exposições e espaços mercadológicos da arte. Muito desse movimento é oriundo de proposições construídas pelos movimentos raciais e sociais do século passado que abriram caminhos nas políticas públicas de inserção racial e cultural em várias ramificações da sociedade.   

Dentro dessa perspectiva e desse posicionamento político, o meu vir a ser existencial coloca-se páreo ao axioma profissional nas quais meu lugar hoje, de atuação, versa. Propor uma equidade artístico-visual dentro dos projetos curatoriais de que faço parte – a partir das duas últimas exposições do Museu de Arte do Rio: Crônicas Cariocas, em 2021, e Um defeito de cor, em 2022, onde componho a equipe curatorial que contou com percentual majoritariamente de pesquisadores e curadores pretos, liderados pelo curador – chefe Marcelo Campos – é essencial para que nossas histórias sejam contadas, pesquisadas e protagonizadas a partir de novas perspectivas. 

Em Um defeito de cor, exposição homônima ao livro da autora Ana Maria Gonçalves, que também foi uma das curadoras da mostra. É válido apresentar que foi um projeto que contou com mais de 95% de obras expostas de pessoas pretas, em especial mulheres negras, que historicamente são apagadas da história da arte brasileira. Tendo também um marco, atrasado por sinal, de obras comissionadas e produzidas por mulheres negras transgêneros dentro do espaço museal. 

Simbiose Africana n.3, de Abdias Nascimento (1973).

Voltando a Abdias Nascimento, que nos últimos quatro anos tem figurado com suas obras, tardiamente, instituições tradicionais de arte como Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC – Niterói), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio),  Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) e Instituto Inhotim (MG), em exposições individuais e com determinada visibilidade social e artística em exposições que contam, em sua maioria, com a curadoria ou a composição curatorial de profissionais pretos que fazem parte dessas instituições, como a diretora artística do MAM-Rio Keyna Eleison; Amanda Carneiro, curadora assistente do MASP; Deri Andrade, curador assistente no Instituto Inhotim.  

Vale salientar a construção histórica e de imensa relevância do acervo do 

Museu de Arte Negra, hoje sob tutela do Ipeafro, ambos criados por Abdias Nascimento e sua visão curatorial que se opõe ao conceito cunhado pelo ocidente. Trata de coletivizar e resgatar a memória visual e artística do legado afro-brasileiro, dentro das várias possibilidades de criação. A curadoria de Abdias não propõe uma separação, uma escolha, na ideia superficial do que poderia ser ou não ser arte. 

O Museu de Arte Negra teve sua primeira e única exposição no Museu da Imagem e do Som, curada por Abdias em 1968, data que marcou os 80 anos da abolição da escravatura e também seu exílio de treze anos dentro do contexto da ditadura militar. É interessante também observar que essa data marca o início da sua produção pictórica que se transformou em mais um pilar de conexão com sua ancestralidade e suas raízes afro-brasileiras.  

Aquilombar e trazer novas possibilidades e espaços a pessoas pretas são as premissas que mantêm a minha humanidade vívida, nítida e presente. 

Telas, performances, curadorias, pesquisas, ações, objetos, visualidades de corpos e corpas, nascidos em gerações diversas, comungam e bailam sob o arcabouço construído pelas mãos e voz desse Griot, chamado Abdias Nascimento, que, mesmo dentro das contradições e dualidades de si, demarcou África como berço civilizatório e como o lugar a ser centrado e revisitado. 

Afinal, como diz a filósofa Katiúscia Ribeiro, “O futuro é ancestral.”

Um dos fatos relevantes nas eleições ocorridas no Brasil, nesse ano de 2022, foi a emergência de agentes religiosos como protagonistas do jogo político. A participação de líderes, destacadamente pastores e pastoras das igrejas cristãs protestantes neopentecostais, para influenciar e controlar o voto dos fiéis e o alinhamento quase automático da maior parte desses cidadãos à candidatura de extrema direita tornou-os definitivamente protagonistas do jogo e da disputa eleitorais. Esse estado de coisas foi alvo de críticas por parte dos que se incomodaram com a instrumentalização da religião, da Bíblia e do cristianismo na luta política. No entanto, o envolvimento de religiosos e da religião com os jogos do poder no Brasil não é fato novo da história desse país, nem estranho da sociedade brasileira.

A chegada dos portugueses às terras que viriam a ser nomeadas de Brasil é ilustrada, entre outros caracteres, pela cena da missa celebrada por Henrique Coimbra, padre e bispo português. A tela, produzida em 1860, foi inspirada na Carta de Pero Vaz de Caminha, elaborada mais de três séculos antes, enriquece a iconografia da presença religiosa católica como aliada inseparável do projeto político de conquista, desbravamento e introdução da civilização europeia em terras do novo mundo. A formação das cidades, a construção das instituições e das estruturas de poder político no Brasil não podem ser compreendidas sem a influência que sobre todas elas exerceu a Igreja Católica, seja no período do Brasil Colônia, seja no do Império e na República. Recordemos que, na abertura de nossa primeira Constituição, de 1824, a do Império do “Brazil”, anuncia-se o texto em nome da Santíssima Trindade e, no Artigo 5°, está escrito: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio”. 

Isso não queria dizer, contudo, que outras religiões, também de matriz europeia, não tivessem já deitado suas raízes sobre essas terras. O reconhecimento de sua presença na Constituição do Império se afirmava com a restrição de sua atuação pública, fora dos templos e do culto doméstico. 

O caminho de ingerência sobre os assuntos do poder e de controle das instituições políticas segundo os interesses religiosos esteve franqueado à Igreja Católica no Brasil, pelo menos até a Proclamação da República. A instauração da Constituição liberal de 1891 marcou a intenção de distanciamento entre religião e Estado. Nela se proibiu tanto aos Estados quanto à União “Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”. Em 1926, na mesma Constituição, o Estado permitiu que “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim adquirindo bens”. O reconhecimento do exercício público da religiosidade legitimava a pluralidade, embora estivesse quase limitada ao universo do cristianismo. 

As religiões de matriz africana, como o Candomblé, e as originadas do sincretismo afro-brasileiro, como a Umbanda, mantiveram-se em posições sociais e políticas marginais ainda ao longo do século XX. Pelo fato de serem reconhecidas em comunidades onde predominava a população negra, a sua visibilidade pública se tornou mais presente quando líderes e instituições religiosos se aliaram aos movimentos de luta pela defesa dos direitos civis da negritude. Apenas no início do século XXI, o preconceito nas instituições políticas e civis em relação aos cultos e à predominância de cidadãos negros começou a ceder espaço às demandas por maior participação pública e político-institucional desses grupos.

Pode-se considerar a Constituição de 1988 o marco legitimador dessa emergência de uma religiosidade mais plural e pública. Embora não esteja dito com todas as letras que o Estado brasileiro é laico, nela está escrito no artigo 5° que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O fato de que outros direitos civis estejam afirmados na mesma Carta legitimou a participação secular, civil, política e pública como um elemento inerente e inquestionável à condição do cidadão identificado aos princípios, dogmas, regras e tradições religiosos, quaisquer que sejam eles.

A laicidade, ainda que tenha sido um princípio norteador do espírito dessa Carta Constitucional, não implicou o afastamento das religiões da visibilidade e do envolvimento com os temas de interesse público. Se a religião católica tomou parte nas articulações e na vida política do país desde a chegada dos portugueses, por que não as demais denominações cristãs, aquelas tradicionais de matriz africana, entre outras, não poderiam se fazer vistas e ouvidas em pleno século XXI?

De fato, a separação rígida da religião como um fator de influência sobre a vida pública e civil, as instituições e os poderes políticos das sociedades tem se mostrado menos efetiva, mesmo em sociedades nas quais a laicidade constituiu um princípio fundante e estruturante do Estado. A França, em razão da Revolução de 1789, fez da separação entre Igreja e Estado, religião e poderes políticos, um princípio inarredável para a construção da República. Outros países de tradição protestante, como a Inglaterra, optam por entender a laicidade do Estado atribuindo à autoridade política suprema a primazia sobre a autoridade religiosa. 

No Brasil, a laicidade do Estado é uma noção ainda pouco enraizada social e politicamente. A construção de uma experiência singular da laicidade em sintonia com a história do país, de sua sociedade e de suas instituições é um processo complexo. Ele envolve a manifestação pública da imparcialidade do Estado em face de conflitos do campo religioso. Da mesma forma, ao Estado não caberia se inclinar em suas decisões, formulações políticas e atuação públicas em favor desta ou daquela orientação religiosa. Em face dessa noção, como entender o processo político que se deu nas eleições dos governos estaduais e federal no Brasil de 2022?

A junção entre interesses religiosos e objetivos políticos evidenciou não apenas que a religião pode ser utilizada como instrumento de luta pelo poder político, mas também a intenção de colonização do poder e das instituições públicas foi e é um propósito divulgado à luz do dia por autoridades e representantes religiosos de vários matizes. Inúmeros eventos houve em igrejas católicas e protestantes nos quais os líderes religiosos orientavam, quando não determinavam, o voto dos fiéis em favor de candidaturas específicas. De outro lado, se viram fiéis recriminando padres e religiosos que se manifestavam em favor de certas posições políticas inaceitáveis como: a defesa do armamentismo como fator de pacificação da sociedade, a leniência dos poderes públicos em face da fome dos cidadãos, o silêncio das autoridades governamentais em relação ao massacre de populações indígenas e à devastação ambiental em curso no país. Pregações lastreadas em passagens bíblicas país afora evocaram o mais rasteiro maniqueísmo, que dividiu partidos, grupos políticos, autoridades e lideranças públicas em geral entre aqueles que encarnavam o bem e aqueles que exprimiam as forças do mal. Divisões no interior do catolicismo trouxeram à luz tanto a revitalização do integralismo e do tradicionalismo conservadores ancorados na Igreja do século XIX, assim como no seio do protestantismo se viram manifestar aliados do fundamentalismo original Norte-americano, do início do século XX. 

Aos religiosos identificados ao cristianismo que se alia aos pobres e denuncia os falsos tementes a Deus, àqueles que, piedosos, perdoam as ofensas e recriminam os ultrajes, aos que consolam os aflitos e não zombam da fragilidade e da miséria chocou a adesão explícita de pastores, padres e bispos ao bolsonarismo nu e cru. Nem mesmo a violação de direitos dos indígenas, dos quilombolas, das mulheres estimulada pelo governo Bolsonaro, nem a insensibilidade do presidente em relação aos mortos na pandemia ou a inoperância estatal nos momentos críticos dos hospitais abarrotados de cidadãos em desespero, nada disso demoveu tais religiosos do apoio insuspeito. Não se incomodaram, inclusive, com a identificação dessa autoridade – desacreditada mundo afora – ao Messias, o salvador, o escolhido.

Nos momentos mais tensos da campanha política, sobrepôs-se às propostas e aos debates políticos uma retórica de combate ao inimigo ancorada na linguagem bíblica. Uma plataforma muito suspeita de defesa da família tradicional foi divulgada por políticos atolados em episódios incontáveis que denunciavam a própria hipocrisia moral. Manifestações irascíveis contra a educação sexual nas escolas públicas, o ódio em relação às posições legítimas em defesa de direitos das mulheres, às questões de gênero, às demandas por igualdade de grupos LGBTQIA+ passaram incólumes às autoridades do judiciário responsáveis por julgar o preconceito e a ofensa. Houve até religiosos desejando a morte de cidadãos, fossem os empobrecidos vítimas da violência nas periferias das cidades, fossem as autoridades do Supremo Tribunal Federal de Justiça, fosse o candidato Lula.

Que interesses poderiam conduzir tais práticas tão flagrantemente ofensivas do cristianismo original? A adesão explícita protestante, inclusive de grupos tradicionais outrora zelosos para defender a decência moral, a esse bolsonarismo irascível se explica pela abertura de uma janela de oportunidade. Esteve, e ainda está, em jogo a disputa pela obtenção da hegemonia religiosa que, uma vez conquistada, poderá colonizar de vez as instituições do Estado, assim como as próprias noções de comum e de público, que balizam a percepção dos cidadãos acerca do que diz respeito ao Estado como instância estruturante do todo social e o que é próprio à esfera da vida privada.

Entre os fatores mais elementares da civilidade abalados nessa experiência de instrumentalização da religião no vale tudo pelo poder, está um dos pilares mais fundos que sustentam as democracias: a convivência respeitosa, equânime e paciente entre os diferentes cidadãos. O enraizamento e a sedimentação de uma experiência da laicidade são desafios inadiáveis que se apresentam à sociedade brasileira. Será inútil buscarmos uma noção essencialista que estabeleça uma forma para a sociedade no interior da qual ninguém se localize.  Para que a liberdade política, de pensamento e de manifestação da opinião sejam a pré-condição e os sustentáculos da liberdade religiosa, será necessário recuperarmos os exemplos vários em nossa história nos quais as religiões serviram de instrumentos em favor da exclusão: de homens e mulheres simplesmente identificados aos diferentes desalmados, aos inimigos, aos hereges, aos ímpios, aos indesejáveis. Apenas a experiência da laicidade vigilante face às intenções de colonização das instituições públicas por orientações religiosas específicas a favor da exclusão de outras orientações politicamente legítimas será capaz de nos recolocar nos trilhos da construção de uma sociedade democrática. Façamos por onde a fim de responder a esse tremendo desafio.

Detalhe de Execução de Frei Caneca, de Murillo de La Greca. Coleção Murillo de La Greca, Recife

“Cavalheiros, a vida é muito curta; mas gastar em baixezas esse tempo, fora longo demais, ainda que a vida cavalgasse o ponteiro de um relógio, para extinguir-se dentro de uma hora. Viver, para pisar em reis e príncipes; morrer, mas com bravura, e eles conosco. Quanto à nossa consciência, belas sempre são as armas, se o espírito for justo.”

(“Henrique IV”, W. Shakespeare)

No palheiro virtual que é a internet, onde o passado muitas vezes se dissolve, centenas de frases de efeito, de grandes narradoras e narradores, são jogadas ao sabor das discussões e, para além de serem erroneamente identificadas, são ressignificadas constantemente. Uma delas é da trama de Henrique IV, uma das clássicas peças de William Shakespeare (1564-1616). Especificamente um diálogo de Hotspur, o “ardente”, ou Henry Percy, um jovem nobre que ataca a frivolidade dos cortesãos de Henrique IV, rei que ele apoia, mas que não hesita em confrontar as opiniões a respeito da guerra e da honra. A frase foi sendo recortada ao longo dos séculos e hoje aparece aqui e acolá para justificar a fúria dos oprimidos de todo tipo.  

Ora, o absolutamente clássico dramaturgo não viveria o suficiente para ver as ideias revolucionárias literalmente pisarem e ceifarem as cabeças de reis e príncipes no mundo europeu a partir da segunda metade do século XVII, a começar pelo Rei Charles I (1600-1649), decapitado em 1649 pelas forças da Revolução Puritana, liderada por Oliver Cromwell. Daí em diante, na dialética dos tempos históricos e no imaginário Iluminista, o tempo da revolução seria uma constante a solapar as bases do Absolutismo Monárquico e a derrubar as estruturas do Antigo Regime. Lembremos aqui da Revolução Francesa (1789-1799) e das “virtudes” do terror jacobino, guilhotinando Luís XVI e outras milhares de cabeças na revolução que mudou os termos e conceitos que designavam a subversão de uma ordem política, esconjurando os privilégios e colocando na berlinda a vontade popular. 

Porém, a essa altura, a leitora ou o leitor deve estar se perguntando qual a relação dos fatos e processos acima com a História do Brasil e com a ideia de uma certa “revolução brasileira”. O historiador atento responde: uma relação histórica e estrutural. Não foi a Europa moderna aquela a alavancar a economia de mercado que se constituiu no Capitalismo mercantil? Mesmo Capitalismo cuja acumulação primitiva se deu também em função do tráfico transatlântico de africanos escravizados, que forjaram em “costas negras” as estruturas materiais e simbólicas do Brasil Colônia e do Brasil Império. Vale dizer, foi na dialética da relação metrópole-colônia que se deu a “formação do Brasil no Atlântico Sul”, no termo/conceito de Luiz Felipe de Alencastro, ao apontar não apenas a lógica europeia, mas a relação visceral do território luso-brasílico com o continente e os povos africanos. De fato, no mesmo momento em que as ideias iluministas contestavam a tirania dos reis, o capitalismo ensejava o aumento brutal de africanos escravizados para os portos das Américas. 

Com efeito, tal é o quadro geral que envolve o imaginário de “revolução” também nos territórios portugueses, não diferindo ademais dos fluxos gerais do ideário das revoluções atlânticas. Contudo, como ponto de partida fundamental, é preciso considerar que a palavra “revolução” é polissêmica, ao mesmo tempo significa – no mínimo desde o século XVIII – “reiteração”/“repetição”, mas também “inovação”. A palavra é também um conceito, seja ele, por exemplo, astronômico (voltas dos astros ao redor do sol), seja ele político, ganhando novas derivações principalmente em função dos desdobramentos da Revolução Francesa, cujos “ecos da Marselhesa” serão expandidos e ressignificados, seja na Revolução do Haiti, em 1791 (uma revolução preta!), na Comuna de Paris, de 1871, seja na Revolução Russa, de 1917, revoluções emblemáticas que colocam em questão a própria ideia de revolução burguesa. 

Contudo, aqui o ponto crucial é como o conceito de “revolução” será tomada pelos projetos políticos em disputa nos espaços luso-brasílicos (entre 1789 e 1822) e como será disputado em função da formação do Estado Nacional brasileiro, processo que começa com a Monarquia (entre 1822-1889) e prossegue no período republicano (1889-2022). Não se trata aqui de aprofundar cada um desses complexos momentos da trajetória política brasileira, mas apontar o que vai prevalecer: a noção e ação – por parte das elites políticas vencedoras – de uma “revolução conservadora”. O que prevalece na formação do Estado Nacional brasileiro, a partir de 1822, não é a ideia de uma emancipação republicana, como reivindicavam os inconfidentes das Minas Gerais em 1789, muito menos uma revolução democrática mais popular que envolve um projeto republicano radical, emancipacionista e abolicionista, como reivindicavam os líderes da Conjuração Baiana de 1798. O que vai prevalecer é um projeto monárquico e escravocrata do centro-sul do país, centralizado no Rio de Janeiro, que não apenas mantém o tráfico e a escravização de africanos, mas reinventa a escravidão numa escala nunca antes vista. Nunca é demais lembrar que dos 12 milhões de africanos escravizados ao longo de mais de 350 anos para o continente americano, mais de 5 milhões vieram para o território que se configurará como Brasil, e mais de 40% desses 5 milhões entraram no território entre 1808 e 1856. Vale dizer que o projeto de Independência do Brasil se valeu sim do ideário liberal moderno, com constituição, congresso bicameral e toda a indumentária da justiça (burguesa), mas o fez na chave mais conservadora possível, na medida em que suas elites apostaram na escravidão, escravizaram o maior número e por mais tempo (até 1888), nas Américas, a população de origem africana. Em outras palavras, o Império do Brasil (1822-1889) foi o Império da escravidão. Lembrando mais uma vez Alencastro, a elite nacional em construção se unifica com o projeto escravocrata e, a partir dele, sequestra ilegalmente mais de 760 mil africanos livres entre 1831 e 1850, num “pacto de sequestradores”. Pacto que, à revelia de certas tábulas rasas na análise da história do Capitalismo, não via incompatibilidade entre liberalismo econômico e política da escravidão. Fomos e somos o “liberalismo escravocrata” por excelência. 

É nesse sentido que a elite nacional escravocrata constrói um Estado Nacional cuja razão de Estado é o terror, mas não aquele das virtudes jacobinas – que “pisa nas cabeças de reis e príncipes” – e sim o terror que explora, massacra e chacina pretos, pardos e indígenas. Tal é o DNA histórico e social da elite brasileira. Uma elite que, mesmo diante da República, não hesitou em reivindicar o termo/conceito “revolução” como parte de seu projeto de manutenção, nos termos de Jessé Souza, de uma ralé brasileira, sempre subalternizada e submetida aos desígnios da “revolução conservadora”. Revolução sintomaticamente reivindicada pelos militares em 1889, 1930, 1937, 1964 e em 2016-2022, tanto como golpe de Estado articulado nas altas cúpulas políticas, quanto nas redes sociais e nos bastidores, insuflando as classes médias de todo tipo e sorte a contestarem os resultados das urnas. 

Diante de tal quadro, como considerar as possibilidades de revolução no Brasil? Ora, o primeiro passo é considerar que é na dialética dos tempos históricos e na relação entre os agentes e classes que se dão as tensões e disputas que resultam em vitórias e derrotas no quadro geral das revoluções liberais e seus desdobramentos. A despeito da consagração do termo “revolução” por parte dos movimentos de esquerda (desde os jacobinos de 1789), é patente a disputa histórica do uso do termo, sobretudo por parte da elite brasileira, que logrou, na prática e nas suas diversas vitórias-massacres, garantir o uso do termo para si, sempre no intuito de garantir “ordem e progresso”.

Porém, a luta por uma revolução efetivamente libertadora é uma constante na história nacional. Narrar a História do Brasil é perceber o jogo dinâmico, violento e trágico entre elites reacionárias e acomodadoras de tensões e a tentativa permanente de uma revolução popular. Em outras palavras, é preciso narrar a “tradição dos oprimidos”, nos termos de Walter Benjamin, ou as estratégias de resistência “from below” (na perspectiva dos de baixo, dos historicamente excluídos), nos métodos do historiador Edward P. Thompson. Principalmente, e para além do eurocentrismo, reivindicar a tradição dos oprimidos no Brasil e narrar a partir da experiência de um Frei Caneca (1779-1825), que ousou desafiar os desígnios autoritários de Pedro I; de um Luís Gama (1830-1882), que desafiou os poderosos da escravidão nos tribunais; de um João Cândido (o Almirante Negro, 1880-1969), que contestou uma marinha escravocrata nas “águas da Guanabara”; de um Luís Carlos Prestes (1898-1990), o Cavaleiro da Esperança, que ousou destoar da maioria dos militares e lutar uma vida inteira pela revolução social no Brasil; de uma Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), na luta pelos direitos das mulheres; de uma Laudelina de Campos Melo (1904-1991), defensora incansável dos direitos das trabalhadoras domésticas; de um Ailton Krenak (1953 – ), guerreiro incansável por um outra semântica dos povos originários na sociedade brasileira; de um Carlos Marighella (1911-1969), valente guerrilheiro urbano pela causa da liberdade. Em suma, exemplos incontestes de que outros projetos de país e de sociedade sempre estiveram no horizonte. Exemplos impressionantes de homens e mulheres que, cada um à sua maneira e inseridos na sua própria época, ousaram lutar e desafiar a implacável e criminosa elite brasileira. 

Alguns podem minimizar suas atuações, ponderar seus ganhos reais, mas suas figuras estão aí e configuram – num enorme passado que se anuncia pela frente (na frase de Millôr Fernandes) e para o futuro – uma poderosa ação, material e simbólica, da revolução brasileira que se anuncia, e ela é feminista, preta e indígena! Fizemos 200 anos, trata-se agora de vencermos nos próximos 200. Façamos! Antes que, mais uma vez, os nada aventureiros de uma nova/velha revolução conservadora o façam. Last but not least, para que a leitora ou o leitor não rotule o narrador de shakespeariano elitista (já temos muitos por aí), terminemos com os novos bardos da cultura nacional, porque Revolução no Brasil tem um nome:

“Quem samba fica
Quem não samba, camba
Chegou, salve geral da mansão dos bamba
Não se faz revolução sem um fura na mão
Sem justiça não há paz, é escravidão
Revolução no Brasil tem um nome
A postos para o seu general
Mil faces de um homem leal
A postos para o seu general
Mil faces de um homem leal
Nessa noite em São Paulo um anjo vai morrer
Por mim e por você, por ter coragem de dizer”

(Mil Faces de um Homem Leal, Marighella – Racionais MC’s)

De uma família cristã palestina, a fotógrafa Gabriela Hasbun nasceu em 1976, na fronteira com Honduras e Guatemala, em El Salvador. Enquanto crescia, foi forçada a se deparar, e a viver, com diferentes realidades, algumas bem sofridas e outras nem tanto. Por causa da Guerra Civil de seu país, ocorrida em meados dos anos 1980, a menina foi migrando entre os Estados Unidos e El Salvador, tendo contato tanto com a miséria causada pelo conflito quanto com a calmaria relativa — “falsa”, diriam alguns — da maior potência global que, apesar de se portar olímpica diante dos problemas, também vivia as suas próprias tensões bélicas.

Com esses anos de formação tão intensos e chocantes — capazes de moldar o espírito de qualquer pessoa —, Hasbun logo desenvolveu um olhar perspicaz para as especificidades que formam cada situação, com a clara noção de que um mínimo detalhe pode mudar o panorama geral de qualquer objeto de estudo. Assim, extraindo o que pôde de um contexto atribulado, aprendeu o quão indispensável é a documentação da humanidade daqueles tão costumeiramente ignorados. Sua veia tão dada a empatias se manifesta com clareza, inclusive, quando a artista fala sobre como expandiu o seu arcabouço técnico, dizendo que “embora tenha estudado fotografia, algumas das lições mais valiosas que aprendi foram ajudando outros fotógrafos”. 

Especializada em retratos, o trabalho de Gabriela Hasbun joga luz sobre as comunidades marginalizadas e espaços inexplorados ao seu redor, declarando a plenos pulmões que, para a boa fotografia existir, nem sempre você precisa atravessar o mundo: com a devida atenção e sensibilidade, os temas podem estar na porta de casa. Sua crença no poder radical e pessoal da narrativa a levou a produzir séries que representam uma lufada de ar renovada, justamente pelas histórias pouco alardeadas que conta — já deu voz, por exemplo, para ativistas com sobrepeso, skatistas queer e pessoas do distrito de Mission em São Francisco. Ou seja, no centro de sua fotografia está a celebração das complexidades da identidade e do espírito humano.

O destaque de toda a sua produção são os seus registros de um rodeio de pessoas negras nos EUA, lançados, inclusive, em coletânea no livro The New Black West: Photographs From America’s Only Touring Black Rodeo. O importante trabalho nos convida a repensar tudo aquilo que entendemos por cowboy e, consequentemente, reconsiderar toda e qualquer verdade absoluta. Livremo-nos dos Marlboro Men e dos Johnwaynes que nos tomam a mente: por que essas figuras antiquadas seguem sendo arquétipos, fazendo com que não valorizemos, por vezes até esqueçamos, da existência dessas outras vivências? E, mais do que isso, de tão sensíveis e interessadas, as fotos de Hasbun evocam um autoquestionamento — como podemos abrir nosso leque de possibilidades, aceitações e perspectivas? Homenagear as prósperas realizações históricas dos cowboys negros e a cultura vibrante que ainda existe hoje, como faz a fotógrafa, com certeza é um começo. 

Black Cowboy Parade, de Gabriela Hasbun.

O rodeio em questão, esmiuçado com paixão pela fotógrafa, é o Bill Picket Invitational Rodeo de Oakland, o único rodeio negro em turnê no mundo. Em 2007, Hasbun participou de seu primeiro Bill Picket e rapidamente se encantou pelas majestosas exibições de esporte, estilo, cultura e orgulho. Entre visitas e mais visitas, construiu o corpo de trabalho que se apresenta no livro The New Black West, um conjunto que, ao capturar as nuances culturais e olhar profundamente para a vibração cativante daquela comunidade, vai bem além de apenas documentar.

Rodeio em Castro Valley, na California.

Sobre a experiência, ela diz: “De certa forma eu esperava que os cowboys fossem durões e atrevidos e essas pessoas eram o oposto. Elegantes e carinhosos com seus animais, a maioria fala sobre o quanto cresceu montando desde os 2 anos de idade. Ensinados pelos avós. Eles realmente quebraram os estereótipos que eu tinha sobre a aparência dos cowboys e como eles se comportavam.”

Podemos pensar no macrocosmo: no mundo, esse nosso de literalmente bilhões de vidas, cada uma delas tem uma aura própria e, mesmo num mar sem fim de respiros, não merece ser deixada de lado. Mas podemos, muito bem, ir para o relacionável microcosmo: nossa casa, nossa rua, nosso bairro, todo canto que se vê está lotado de causos, ideias, costumes, momentos, alegrias, tristezas — e, por uma questão de lógica, nenhuma, nem mesmo aquela que se apresenta com a maior banalidade, nenhuma dessas individualidades pode ser substituída com total equivalência. Essa é a magia.

Histórias para serem ouvidas e contadas não faltam. Se depender de Gabriela Hasbun, vamos ouvi-las.

É seguindo por uma estrada de terra, no sopé da histórica Serra da Moeda, que adentramos ao universo das cerâmicas do estúdio Saracura Três Potes. Situados dentro de uma reserva ambiental, Jéssica e Beto vêm desenvolvendo uma pesquisa pouco vista quando o assunto é trabalhar o barro. Tendo a memória como fio condutor, nos deparamos com objetos cercados de histórias da nossa terra, de cascas e sementes à latas de sardinhas usadas como fôrmas de bolo. 

Neste Amarello Visita, conversamos sobre os desafios da cerâmica, a visão dos utensílios domésticos como parte da cultura e como a memória pode ser contada no dia a dia de um estúdio rodeado pela natureza. 

Como nasceu o estúdio Saracura?

Quando começamos a namorar, em 2014, frequentávamos uma ONG em Belo Horizonte, que é uma casa grande com quintal, e havia lá uma estrutura básica de ateliê de cerâmica, com um forno elétrico. Nesta ONG, Jéssica, que já tinha um trabalho de cerâmica em processo e frequentava ali desde os quinze anos, sugeriu que fizéssemos juntos o que já havia sido iniciado por ela: os copos lagoinha em cerâmica (copos americanos). Começava ali uma parceria. Tínhamos traçado alguns planos de venda dos copos e produção de outros objetos que poderiam fazer parte de uma marca que ainda não sabíamos bem qual era. Nestes encontros, no quintal da ONG, pensando em quais objetos poderíamos fazer além do copo. Começamos a questionar o utilitário brasileiro em cerâmica, o porquê da maioria deles terem formas influenciadas pela estética oriental e europeia, e quais seriam, de fato, os utilitários originais brasileiros e suas formas. Esbarramos quase sempre no termo “utilitário”: aquilo que sugere ser “útil”. Muitas vezes esses objetos em cerâmica são banalizados por estarem no cotidiano, como utensílios do dia a dia. A sua produção costuma ser mecanizada, sem que haja um questionamento de forma e utilidade. Por esses questionamentos, chegamos aos utensílios dos povos originários e sertanejos. Percebemos que, além da cerâmica, havia formas naturais da vegetação local, como cabaças e coités serrados ao meio e transformados em cuias ou cumbucas. Talvez esses tenham sido os primeiros utensílios domésticos brasileiros. Iniciamos, então, uma pesquisa que intitulamos Cascas do Brasil. O estúdio nasceu dessas inquietações. Ainda no quintal da ONG, começamos a produzir as primeiras cerâmicas dessa série de cascas brasileiras, mas não tínhamos um nome para a nossa parceria. Numa ida a uma padaria no bairro Santa Efigênia, em Belo Horizonte, em algum momento, foi soprado o nome Saracura Três Potes. Não nos lembramos como ele apareceu, em qual contexto, mas, no mesmo momento, tivemos certeza de que seria esse o nome das nossas cerâmicas. Pesquisamos depois a respeito dessa ave e nos surpreendemos do quanto fez sentido tê-la ao nosso lado. Em 2015, mudamo-nos para Brumadinho, onde estamos até hoje.                    

Como é o processo criativo de vocês? 

Começa na observação de objetos que comunicam alguma memória brasileira. Depois, estudamos estes objetos, sua história e sua forma, para, em seguida, fazermos os moldes em gesso deste objeto e reproduzi-lo em cerâmica. O ideal é que ele seja uma transição do original para a cerâmica, mantendo suas marcas originais, sem que seja modelado totalmente por nossas mãos, de modo que o original esteja impresso e possa se comunicar nas cerâmicas propostas. A feitura desses moldes é bastante complexa, pois trabalhamos com formas muito orgânicas, o que nos exige um tempo maior de estudo da forma. Dentro desse processo, é possível estender o termo “utilitário” para outros campos de observação, o que nos coloca diante de uma pesquisa não só do termo e suas origens, mas também no que diz respeito à estética. Nesse caminho, criamos as cerâmicas observando essas questões em relação ao que nos sugere cada forma reproduzida, seus contornos em relação ao acabamento (quando usamos as lixas), que tipo de cor se acomoda melhor naquela forma. Tudo isso é levado para o campo do teste: erro e acerto. E a cada experiência, outras janelas se abrem e novas demandas aparecem, o que não quer dizer que conseguimos atender a todas elas.    

Como funciona o dia a dia no estúdio?

Imaginamos que como qualquer outro ateliê, seguindo o tempo marcado pela argila, sem atalhos, dentro de uma sequência de processos. Temos os nossos planos para o que será feito a cada dia. Atendemos tanto as demandas do trabalho quanto os clientes que aparecem para conhecer as cerâmicas, ou para fazer uma vivência em modelagem. Muitas vezes, saímos para caminhar nos arredores, onde há mata, pra coletar algumas sugestões. E o ateliê, como está conjugado a casa, deixa-nos mais tranquilos em relação ao tempo de trabalho e horas de descanso. 

Qual a relação do trabalho que vocês executam com o ambiente em que vocês estão inseridos? 

Estamos localizados numa reserva ambiental de 14 hectares. Temos mais de 20 mil árvores plantadas nesta área há vinte, trinta anos. Todas elas nativas da mata atlântica. Então, dentro desta área, está boa parte do que é o princípio de nossas pesquisas. Falando assim, parece que está tudo ao nosso alcance, mas não é tão simples. Uma mata é um labirinto em que nada é muito acessível. De todo modo, estar aqui é uma forma de viver dentro do que produzimos, literalmente. A região onde estamos é uma transição entre cerrado e mata atlântica. Encontramos aqui tanto o cerrado de campo sujo quanto a mata de altitude – uma galeria de sugestões para nós. Além do bioma, a vida das pessoas nativas é originalmente sertaneja, permitindo que possamos reproduzir muitas das suas histórias em nosso trabalho. Temos por aqui, por exemplo o senhor Milton, que nos apresentou as fôrmas de brevidade que eram feitas pelo seu pai, Zé Bia, em lata de tinta, para que sua mãe, Zefa, pudesse assar as brevidades em forno à lenha.      

Vocês têm uma pesquisa muito pautada na memória. Qual é a importância de associar histórias a objetos? 

Toda forma conta uma história e carrega uma história. Quando buscamos imprimir identidade às nossas cerâmicas, significa pensar objetos que possam se comunicar de alguma forma com as memórias brasileiras. Nascer no Brasil, provar deste território e construir nele uma trajetória é ter intimidade para reconhecer suas formas primordiais. Em nosso trabalho, é possível que alguém reconheça uma cabaça ou um jatobá. Mas “isso não é um cachimbo”, como afirmaria René Magritte. Ali também não são cabaças ou jatobás, mas memórias. Memórias despertadas pelas formas, que vagam por um território inatingível, tão vasto quanto o território brasileiro. Não ser “um cachimbo”, no mais, desestrutura a noção básica que temos sobre o que é uma peça utilitária.

Vocês me disseram que os moldes das peças, quando começam a se deteriorar, não são mais produzidos. Isso faz com que as peças não existam mais a partir desse momento. Até onde, no trabalho de vocês, a pesquisa ganha mais força que o mercado? 

O princípio de que as coisas são fugazes e efêmeras, oriundas da natureza, desrespeita a ordem de produção em larga escala do mercado. Neste caso, optamos por um ritmo de trabalho coerente com o que propomos, que sugere um outro tempo para as coisas. Não é interessante para a gente, por exemplo, que haja uma supervalorização do que produzimos, no sentido de que tais cerâmicas sejam colocadas como algo sofisticado. As coisas têm fim, da mesma forma que nos é impossível lembrar com perfeição e detalhes do momento de agora. Tudo vai se diluindo aos poucos. Por isso, não fazemos questão de que as cerâmicas sejam embaladas em papeis finos e sofisticados. Todas elas são embaladas em papel comum, reciclados. Vale dizer que também a palavra “sofisticado” pode ter várias interpretações. O que buscamos é que o objeto não tenha mais valor do que a memória, pois toda ela é marcada quando há a nossa participação mais intensa com as coisas que nos oferece o mundo. Viver e costurar memórias é mais importante do que qualquer objeto. Dizemos isso para falar também do mercado, no qual o objeto é mais importante do que a vida, pois é preciso colocá-lo neste lugar para despertar o interesse em consumi-lo. Talvez aí consigamos responder a sua pergunta. Do ponto de vista do mercado, não temos força alguma. A pesquisa é mais forte quando nosso ritmo não está vinculado ao ritmo do capital. Viver esse efêmero é parte da pesquisa. Quando uma peça não puder ser mais reproduzida, ela estará fora do mercado e dentro de um conceito que sugere a valorização do que temos aqui e agora. Muitas pessoas colocam nossas cerâmicas como objetos decorativos, mas nós sugerimos que façam uso delas para que ganhem vida e dignidade, para que possam ser moldadas por outras histórias e ganhem novas memórias – para que elas possam estar sujas de mundo. 

Durante o processo, por que a escolha por trabalhar com o forno a gás e não elétrico, por exemplo?

No início, não tínhamos escolha, porque o único forno à disposição era o forno elétrico da ONG. Depois, a gente conseguiu fazer uma queima em um forno a gás, de uma amiga ceramista, e o resultado era muito melhor. Quando mudamos para Brumadinho, o forno que a gente tinha era um menorzinho, de tambor, a gás também, que quebrava o galho. Queimava pouquíssimas peças, mas funcionava para quem estava começando. Quando ganhamos o prêmio do Museu A Casa do Objeto Brasileiro, em 2016, investimos em um forno um pouco maior. Sempre quisemos ter um forno elétrico para queimar a série Mão e Tempero, que é uma série que tem os copos, as latas de sardinha. E o forno a gás ficaria para a série Cascas do Brasil, para a série Rio, para a série Quintal. Mas o forno elétrico é muito caro, então a gente queimava – sempre queimou – todas as séries no forno a gás. A preferência por ele tem mais a ver com o acabamento, que é conseguido pelo fogo. Nesse processo, ocorre que não temos muita previsão do que vai acontecer, e essa imprevisibilidade é justamente o que nos agrada, especialmente pela variação de cor que conseguimos durante a queima. O forno elétrico, ao contrário, entrega uma queima mais previsível, mais homogênea. A questão da oxigenação na queima a gás, da falta de oxigênio, ou da presença de oxigênio durante a queima, é vital para o nosso trabalho, porque nos permite extrair alguns tons dos óxidos usados como pigmento nos esmaltes das cerâmicas. O resultado é uma cerâmica mais rica e interessante.

Como vocês trabalham a marca Saracura Três Potes? Existe a vontade de alcançar mais clientes e difundir ainda mais a pesquisa e o trabalho de vocês?

Trabalhamos a marca de uma maneira muito tímida, para ser sincero, porque, primeiro, precisamos lidar com as demandas de pesquisa e do ateliê, que exigem uma presença intensa. Segundo, porque somos tímidos mesmo, como pessoas. A nossa principal ferramenta para divulgação hoje é o Instagram – talvez a principal e a única. Temos alguns planos para conseguir difundir mais e melhor o projeto, mas por enquanto eles estão na fila de prioridades. Atualmente, o nosso tempo é basicamente devotado ao ateliê e à manutenção desse espaço, que é muito grande.  

O trabalho de vocês, nesse momento, concentra-se exclusivamente na fabricação de utilitários?

Uma vez uma pessoa visitou o ateliê, olhou para uma das peças e comentou baixinho com a amiga: “isso aqui não serve pra nada!”. Achamos muito bom e demos o nome de objeto inutilitário. O que a gente pode considerar como utilitário, embora sejam formas que não são estáveis, são pouco comuns entre os utilitários tradicionais, o que nos faz gostar ainda mais desse termo inutilitários. A série Rio vem com um outro tipo de proposta. São peças mais escultóricas do que utilitárias, apresentadas como cabeças de peixe. Mas o trabalho hoje tem se concentrado basicamente na fabricação dessas peças inutilitárias ou utilitárias. 

Temos o interesse numa produção de cerâmica que seja o resultado do que propomos como pesquisa. Mas não uma síntese explícita e óbvia, porque a gente percebe que, quando jogamos luz nessas cerâmicas – nessa pesquisa de cascas, memórias e identidades –, projetamos uma sombra. Queremos entrar cada vez mais nessa sombra e ver o que conseguimos extrair dela. A partir disso, temos algumas imagens flutuando que gostaríamos de trazer para dentro do ateliê e colocar em prática, mas isso vai depender da gestão do tempo que teremos no ateliê. Eventualmente, essas imagens se tornarão um novo trabalho, quem sabe uma nova série. Isso demonstra que as pesquisas que temos realizado têm um horizonte de possibilidades muito grande, basta apenas que consigamos caminhar para ver o que está por trás. 

As peças do estúdio passam por um ajuste manual de vocês, ou é sempre uma reprodução de objetos do cotidiano para a cerâmica?

Sempre é uma reprodução de objetos do cotidiano para a cerâmica. Do cotidiano, queremos dizer um cotidiano amplo, não o dia a dia de uma pessoa específica. As peças sempre passam por ajustes manuais. Isso porque a gente lida com formas muito orgânicas e, para poder fazer esses moldes em gesso, precisamos muitas vezes cortar um pedaço da peça, ou preencher uma parte, o que torna o trabalho um tanto escultórico. Uma vez que o molde fica pronto – geralmente um molde pode levar um, dois, até três dias –, passamos a avaliar os ajustes que cada peça necessita. Tiramos alguns excessos, avaliamos qual tipo de acabamento ela pede. Por mais que sejam reproduções em molde, o trabalho manual não para. As formas orgânicas tornam o processo todo mais delicado, da feitura dos moldes em gesso até o acabamento. 

Quais os planos do estúdio para o futuro?

Primeiro e mais básico: que o estúdio consiga pagar as nossas contas. Depois, ter condições de juntar um dinheiro e comprar um terreno para construir uma casa com o ateliê junto. Assim, poderíamos seguir com as nossas pesquisas sem pensar em pagar aluguel, sem ter a preocupação de tocar um ateliê de cerâmica e pensar que a qualquer momento pode precisar sair dali e realizar uma mudança. Um ateliê de cerâmica é muito complexo para ser mudado. São muitas peças delicadas, que não podem quebrar. Muitas ferramentas, um forno que pesa quase uma tonelada, então não é nada fácil. Os planos também incluem dar continuidade às pesquisas e realizar as viagens que são importantes nesse contexto: ir até a Amazônia, até o cerrado goiano, o norte de Minas, o sertão nordestino e o baiano. São tantos lugares no Brasil que se comunicam com o nosso trabalho que é essencial conhecermos a fundo. Além disso, queremos dar a oportunidade para outras pessoas que quiserem aprender cerâmica, principalmente os jovens. Queremos poder ensinar gratuitamente um ofício que pode ser revertido em renda familiar. Falamos isso dentro de um cenário de Brumadinho, que conta com um circuito de ceramistas de mais de vinte ateliês, e poucas pessoas conhecem. A maioria vem aqui por causa do Instituto Inhotim, mas acreditamos que, aos poucos, as pessoas podem começar a vir para conhecer esse circuito e o trabalho importante de tantas pessoas envolvidas. O ateliê nasceu como um espaço de igualdade, onde todos podem se encontrar, independentemente de condição social ou cor. E queremos que permaneça assim para o futuro, isso é muito importante para a gente.