#29ArquivoAmarello Visita

Amarello Visita: Biblioteca Brasiliana e José Mindlin

por Tomás Biagi Carvalho

Cristina, você poderia nos contar um pouco de sua trajetória, como você começou a trabalhar primeiro com a coleção Mindlin, em sua casa no Brooklin, até chegar aqui nesse prédio que estamos dentro do campus da USP São Paulo?

Olha, quando eu ainda era estudante da faculdade, fiz um concurso na USP para trabalhar no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), onde trabalhei por sete anos. Mas, naquelas alturas, eu já tinha casado, minha filha tinha nascido, e eu pedi uma licença no IEB, porque naquela época não existia berçário onde você pudesse deixar um bebê. Eles negaram minha licença, e então eu pedi demissão.

Isso foi quando?

Isso foi em 1975. Eu pedi demissão e trabalhava para uma editora, fazendo tradução e revisão de livros. Quando minha filha cresceu e entrou na escolinha, eu tinha uma amiga que era professora aqui na USP e trabalhava no Mindlin que me perguntou se eu tinha vontade de trabalhar com ela. Eu já tinha ouvindo falar nele, obviamente, mas eu não tinha ideia do que era aquela biblioteca. Então fui à casa dele um dia à tarde para passar por uma entrevista – que eu achei que não ia dar certo, porque ele me perguntou, de imediato, se eu era bibliotecária, e falei que não, que era pedagoga, e ele falou, “você sabe fazer ficha?”, e eu falei, “mais ou menos” [risos]. “Você gosta de fazer ficha?”, e eu falei, “nem um pouco”. Aí eu pensei, “bom, agora ele vai dizer ‘pode levantar e ir embora’”. Então ele disse, “o que agrada você acima de tudo?”, eu falei, “ler”. Ao que ele falou, “pronto, agora podemos começar a conversar”. Esse encontro foi em uma quinta-feira, e na segunda-feira seguinte eu já comecei a trabalhar na biblioteca. A Alice (minha amiga) ficou lá durante mais ou menos dois anos e foi embora, e eu fiquei trabalhando sozinha durante uns vinte anos. Era só eu. Depois, entrou uma moça, que foi me ajudar com as revistas – porque a gente tinha uma coleção enorme de revistas – e, depois de muitos anos, entrou uma outra pessoa, que foi trabalhar com o arquivo pessoal do Mindlin, que ficou lá na biblioteca durante uns cinco anos. Quando a biblioteca foi doada para a USP, eu fiz concurso para poder acompanhá-la, porque eu era a única pessoa que conhecia o acervo; não tinha ninguém aqui, além de mim, que conhecesse a biblioteca. O Mindlin acreditava que era muito simples. A biblioteca vinha, e eu vinha. E eu disse para ele que não era bem assim…

A Biblioteca foi incorporada pela USP antes de o prédio ser construído?

A doação envolvia a construção do prédio. Mas o processo da doação em si foi uma coisa que durou dez anos. Foi muito a longo prazo. E, depois, a construção do prédio também demorou muito. Foi a última coisa e não foi feita com verba da USP, a não ser na fase final. Foi feita com captação de recursos. O processo da doação começou na gestão do Marcovitch, que era o reitor na época, aí passou por mais quatro reitores e terminou na gestão do Rodas. No final, quando a verba acabou, o Rodas bancou a finalização da obra, e nós terminamos o prédio.

E como você acha que o novo prédio influenciou o seu trabalho?

Minha relação com os livros não mudou, mas meu convívio com os livros é completamente diferente aqui do que era na casa do Mindlin. A construção no Brooklin era completamente diferente, era uma coisa muito mais intimista, os livros ficavam muito mais perto… Eu trabalhava no meio deles. Quando o pesquisador ia à biblioteca, ele não mexia nas estantes, mas sentava no meio dos livros. O Mindlin tinha uma relação com livro que, quando alguém ia lá conhecer a biblioteca, ele tirava o livro da estante, colocava na mão da pessoa e dizia, “pegue, leia, olhe, folheie, porque livro existe para ser manuseado”. Ele tinha uma visão um pouco diferente da maioria dos colecionadores. Já aqui na USP existe um distanciamento, quer dizer, os livros estão protegidos dentro de um anel, que tem acesso muito restrito. O anel tem controle biométrico de acesso, então só o meu dedo e os dos três bibliotecários, além do especialista em pesquisa, abrem as portas. Nem os diretores têm acesso ao anel. Os livros ficam ali dentro, protegidos e guardados. Na biblioteca do Brooklin, era uma relação muito mais afetuosa, digamos assim, do que é hoje, embora eu reconheça que é necessário isso, porque agora a gente está num órgão público, não está mais numa casa de um colecionador.

Como foi o processo de digitalização do acervo?

O processo de digitalização começou a ser feito antes da mudança, ainda na casa do Mindlin. Foi comprado um robô da Kirtas, um robô automático, que a gente chamava de Maria Bonita.

Por quê?

Porque todos os servidores da biblioteca tinham nomes de cangaceiros: Corisco, Sabino, Lampião… Quando esse robô da Kirtas chegou, ele era muito fresco, tudo era delicado, sensível, e aí a gente achou que ele era muito feminino e colocamos o nome de Maria Bonita.

Isso aconteceu uns três anos antes da mudança para cá (campus da USP). Ela era uma máquina que digitalizava o livro sozinha, virava a página do livro sozinha, mas a gente usava mais esse recurso quando era um livro moderno ou um livro muito antigo, de papel de trapo, porque o papel de trapo é muito resistente, permite que a máquina o manuseie com muita facilidade. Com os livros do século XIX, a gente não fazia isso, porque papel de celulose é muito frágil, então o trabalho foi feito manualmente. Montamos um esquema de fazer uma seleção do que seria digitalizado, com alguns critérios, uma mescla de livros de História, de Literatura… Começamos basicamente com o século XIX e, depois, digitalizamos obras mais raras dos séculos XVI, XVII. Um pouco antes da mudança para a USP, esse processo de digitalização foi interrompido, porque, na época, quem havia assumido a direção da biblioteca – o Mindlin já tinha morrido – emprestou as máquinas para se fazer uma digitalização para o SIBi, aqui na USP. Então elas ficaram, durante dois ou três anos, na Poli, e foi uma fase que, para nós, foi muito difícil e muito incômoda, porque as coisas não foram feitas de uma maneira muito clara.

O empréstimo?

Pois é, a gente não conseguia reaver as máquinas. Foi um processo. Aí, quando elas voltaram para a biblioteca, vieram para o laboratório de digitalização e, depois de uns dois anos, nós compramos mais três máquinas mais modernas. Atualmente, temos sete máquinas de digitalização.

A digitalização não é uma coisa tão simples, porque o livro tem que sair da estante, passar primeiro pelo laboratório para higienização, onde ele é todo limpo a mão – porque, se o livro for colocado em um equipamento sem limpeza, ele libera muita poeira, e isso compromete a máquina. Depois disso, ele vai para a digitalização, após o que passa por um tratamento de aparar as imagens e, depois, por um tratamento de OCR, que é o programa que permite que você faça busca por palavra no texto digitalizado. Então, se você pegar uma digitalização nossa e quiser, por exemplo, procurar a palavra “casa” no texto, é só você digitar e ele vai procurar no livro inteiro a palavra “casa”.

A última fase é pegar esse arquivo e colocá-lo no site. É um processo relativamente lento. Costumamos fazer quinze livros por semana. Não é muito – aliás, é bem pouco. E tem uma questão, que eu acho que é o maior agravante, que é o fato de você só contar com estagiários para trabalhar nessas máquinas. Porque, aqui na USP, você deve saber bem disso, é difícil conseguir montar uma equipe de estagiários e, principalmente, conseguir manter esses estagiários por um longo período.

Difícil pela burocracia ou pela falta de verba?

Pela falta verba. Às vezes, quando contratávamos, conseguíamos um estagiário só de 10 horas. Isso é muito ruim, porque é muito pouco tempo, e esse estágio dura somente 6 meses, quer dizer, a cada seis meses você tem que treinar toda a mão de obra novamente.

Durante dois anos, tivemos o apoio do BNDES, porque, quando construímos o prédio, o BNDES tinha muito interesse em participar do projeto. O que eles poderiam fazer para a BBM? Doar equipamento, doar mobiliário – todos esses móveis lindos de design brasileiro a gente comprou com verba do BNDES – e, também, financiar estágios e algumas bolsas.

Para nós, foi ótimo. Nessa época, existia uma bolsa que mantinha a uma conservadora no laboratório, mas, mesmo assim, a gente ficava o tempo inteiro empenhado em ter uma vaga aberta para um concurso para ter uma conservadora da biblioteca, porque essa pessoa que estava aqui era temporária. Não conseguimos que nenhum concurso fosse aberto, mas conseguimos uma coisa muito mais interessante, que foi uma permuta entre instituições. Existia uma pessoa que era especialista em restauro de fotos e que trabalhava no SIBi. Ela queria sair do SIBi e queria vir para cá. O SIBi não estava muito interessado em ceder, mas acabamos conseguindo que essa pessoa passasse a ser funcionária da BBM e, atualmente, ela é nossa conservadora.

Qual é o percentual de livros digitalizados, em relação ao acervo da biblioteca?

Existem, mais ou menos, uns 4,5 mil livros digitalizados. A biblioteca tem 60 mil livros. Mas, obviamente, a gente não vai poder digitalizar tudo, porque existe a questão de direitos autorais. Só digitalizamos e disponibilizamos na web o que está em domínio público. A única maneira de você digitalizar uma coisa que não está em domínio público é digitalizá-la apenas para consulta interna, sem disponibilizá-la na web.

Então, apesar da existência da internet e de todo o acesso que ela nos permite, ainda faz muito sentido o leitor vir até a biblioteca, porque ele vai ter um acesso a muito mais coisas.

Pois é. Bem no início da mudança para a USP, o Mindlin tinha, na biblioteca dele, uma coleção praticamente completa das obras do Vinicius de Moraes. Aí a família do Vinicius entrou em contato conosco e perguntou se nós não queríamos digitalizar todos os livros, que eles dariam autorização para isso. Nós digitalizamos todos os livros do Vinicius, e eles ficaram durante seis meses no ar. Aí, uma hora, um membro da família resolveu que não queria mais, “não brinco mais, não quero mais”. Ele criou tamanha confusão que, enquanto a família ficava batendo boca, nós resolvemos tirar todos os livros do ar. Quando fizemos isso, recebemos uma tonelada de reclamações. A partir disso, não colocamos mais nenhum livro que tivesse problemas de direito autoral – mesmo que tivesse autorização de um herdeiro.

Como é a sua relação com os livros digitais?

Leio muito no iPad, mas todo livro que eu leio no digital eu compro a versão física também. Tenho uma biblioteca em casa, então é difícil não ter o livro físico.

Mas, depois de ter lido no iPad, em algum momento você vai até o livro físico?

Ah, vou. Muitas vezes. Se eu quero reler o livro, ou se eu lembro de alguma coisa que eu li naquele livro, eu vou procurar no livro físico. Uma citação que eu queira usar em alguma coisa, eu vou no livro físico, não tem jeito.

Você acha que existe alguma diferença de leitura entre ler no papel e ler no iPad?

Toda. O conforto de deitar na cama com o livro aberto, você vira de lado, vira de outro… A luz do iPad me incomoda. Quer dizer, quando você está lendo um livro físico, você tem que acender a luz, então você usa o abajur, e tudo bem. O cheiro do livro – o iPad não tem cheiro, o Kindle não tem cheiro. O prazer de virar a página, de ir e voltar, o tato mesmo. É tudo muito diferente.

Qual você acha que é a importância dos livros nesse mundo tão raso que estamos vivendo, de informação tão superficial?

Bom, o livro não tem fake news, né? [risos] Começa por aí. Mas eu não consigo imaginar jamais um mundo que não tenha livro. Para mim, é fundamental, em todos os aspectos. Na educação, no prazer, no lazer, em qualquer coisa o livro se encaixa. Uma vez, perguntaram para o doutor José, “se você tivesse que ficar numa ilha, o que você levaria?”, e ele falou, “livros”. Ele só queria os livros. Comida, água – ele nem pensava nisso.

E como que você vê hoje esse mundo da informação que a gente está vivendo, de informação instantânea e fake news?

Acredito que não podemos ficar à mercê desse tipo de informação, porque senão enlouquecemos. A quantidade é tamanha que você não consegue abarcar tudo que está disponível na internet. Mas é muito fácil quando você pode confiar numa fonte que vai te dar uma resposta adequada. Claro que também tem tudo que é bobagem, que é mentira, que é lorota que está por aí.

Não acho que os livros vão deixar de existir, nem que o mundo digital vá deixar de existir. Acho que as duas coisas vão coexistir. Eu vou morrer, outra geração vai vir, e essas duas coisas vão continuar coexistindo. Enquanto existirem bibliotecas por aí, gente que gosta de livro – e vai sempre ter alguém – irá atrás delas.

Você participou de alguma maneira da construção do prédio?

Total. Éramos uma equipe com dois arquitetos, o diretor da biblioteca, eu – que era curadora da biblioteca –, uma moça que fazia captação de recursos… E, desde o começo, eu participei.

Às vezes, fico pensando que, se não houvesse falado algumas coisas durante o processo todo, não sei o que teria acontecido. Por exemplo, quando o Rodrigo (Mindlin Loeb) e o Eduardo (de Almeida), os arquitetos, me deram o projeto, eles falaram, “olha e vê o que você acha que precisa mexer, se você quer alterar alguma coisa”… Fiquei olhando aquele projeto, e uma hora eu chamei o Eduardo e falei, “Eduardo, que parede é essa aqui?”, e ele falou, “essa parede é do fundo da biblioteca”. E eu falei, “e o que tem aqui do lado?”, e ele disse, “banheiros”. Eu falei, “você acha que vai poder colocar uma parede com encanamento fazendo limite com a biblioteca no mesmo lugar?”. Aí foi feita uma alteração. Realmente, foi uma alteração que foi fundamental, porque jamais poderíamos colocar uma parede limitando estantes que tivesse encanamento passando dentro.

E em relação à disposição dos livros, como eles ficam dentro dos anéis, você teve envolvimento nisso também?

Os livros ficaram exatamente como eles ficavam na casa no Mindlin. Eles vieram e foram arrumados aqui tal e qual eles ficavam na biblioteca do Brooklin.

A casa tinha sua estrutura original. Depois, um prédio de dois andares foi construído em 1965, em uma parte do jardim. Depois, em 1985, foi feito mais um prédio de dois andares ao lado desse. Algumas coisas foram anexadas à construção original da casa. Tinha uma casa que tinha sido alugada do outro lado da rua, onde ficavam as revistas. Depois, um apartamento desse lado de cá foi comprado, onde ficavam os livros que estavam chegando, os livros novos. Aí a casa também ganhou algumas salas, o laboratório de restauro da dona Guita, um quarto – que a gente chamava de “quarto do caos”, porque, quando as coisas chegavam, eram enfiadas lá dentro. Tinha livro na casa inteira, menos na cozinha e no banheiro. Na cozinha ainda tinha livro de culinária.

A única coisa que foi remanejada na mudança é que os primeiros livros da biblioteca ficaram na sala da casa. Tinha uma estante que era de livros de Literatura, outra de livros de História, outra de livros de história do livro… Então todos esses livros de brasiliana saíram da sala da casa e foram para esses dois prédios da biblioteca. Literatura entrou junto com Literatura, História entrou junto com História…

Eles foram todos numerados, com um papelzinho que ficava dentro do livro em pé, e com cores diferentes. Literatura era rosa, História era azul, Arte era verde… Então, aqui na USP, temos, no primeiro andar do anel, a biblioteca do Rubens Borba de Moraes, que é um conjunto enorme, que foi uma biblioteca que foi doada em testamento ao Mindlin. Nesse andar, também ficaram os viajantes todos, os jesuítas, manuscritos e originais literários e, depois, toda a parte de História. No segundo andar, tem Literatura, que pega mais da metade do anel, e os livros de Sociologia, de folclore… No terceiro andar, tem os periódicos, os livros de Arte e as obras de referência. E aí tem, no arquivo, que é no subsolo, os fundos de arquivo da biblioteca, onde estão os fundos do Mindlin, do Rubens Borba de Moraes, do Vicente do Rego Monteiro, do Francisco de Assis Barbosa, da Zila Mamede, do Cunha de Leiradella…

Vocês ainda fazem aquisição? Ou só recebem doações?

Aquisição é mais difícil, porque obra rara custa caro, muito caro, não temos verba para isso. Temos verba para comprar livro novo, uma verba pequena que vem do SIBi, então compramos livros para pesquisa, dicionários, essas coisas. Geralmente, as editoras pedem para usar algum livro nosso para fazer uma edição fac-similar, ou para fazer uma 2ª, 3ª, 4ª, 5ª edição… Então elas mandam para nós dois exemplares. Esses livros todos, quando chegam, não ficam no anel. No anel está exclusivamente o que veio da casa do Mindlin. Eles vão para o subsolo. No subsolo, nós temos uma reserva técnica para 90 mil livros, então temos muito espaço para a biblioteca crescer.

Houve uma vez que – foi uma coisa muito rara que aconteceu, mas aconteceu, graças a Deus – um empresário telefonou dizendo que iria acontecer um leilão aqui em São Paulo de livros de brasiliana que era da Fólio, uma livraria que faz leilão, um antiquário muito bom, e que tinha livros bem interessantes. Ele disse que tinha muito interesse em fazer uma doação para a biblioteca, [e perguntou] se eu podia ler o catálogo e selecionar coisas que fossem importantes para nós. O catálogo era realmente fantástico. Ele me mandou o catálogo no fim da tarde e falou, “o leilão é amanhã”. Então eu varei a noite lendo esse catálogo. E aí, logo de cara, eu achei um livro que foi o primeiro da minha lista – porque nós temos uma coleção das obras de um editor do Maranhão chamado Paula Brito, com todas as obras, menos um livro, e este foi o primeiro que eu achei nesse catálogo: Iracema de Itamaracá. Foi o primeiro que eu botei na minha lista. Depois, eu percebi que o catálogo também tinha uma série muito grande de livros sobre a Guerra do Paraguai. Como eu tenho banco de dados no computador da minha casa, eu pude comparar o que a gente tinha e o que não tinha. Aí eu fiz uma lista de livros da Guerra do Paraguai que completava nossa coleção e, depois, incluí obras de alguns viajantes, que eram importantes e que a gente já tinha, mas eram edições diferentes. Então eu falei, “olha, eu fiz uma lista grande, você decide o que você quer doar, e a lista está em ordem de prioridade”. Ele doou a lista inteira.

Isso é assim: acontece uma vez na vida, outra na morte. Houve um outro caso que alguém ofereceu um livro que era importante para nós, e aí eu liguei para alguns dos amigos do Mindlin, que eu conheço todos: “você não quer fazer uma doação para a biblioteca?”, “ah, eu faço”. Mas não é comum.

Quais são os livros mais raros que existem na coleção?

Difícil dizer, mas tem algumas joias. Por exemplo, temos a 1ª edição do Hans Staden, de 1570. Doutor José levou anos e anos procurando essa edição, e conseguiu comprar em Londres, se não me engano. E ainda, por sorte, o exemplar que ele encontrou tem encadernação feita na época, de 1570. Uma encadernação de couro de porco, toda em relevo. E a pessoa que possuía esse livro encadernou três romances de cavalaria alemães – porque o texto do Hans Staden é em alemão –, então tem o livro do Hans Staden, depois tem um romance sobre um viajante persa e um romance de viagem na África – esses títulos eu não me lembro, mas são todos romances de cavalaria superimportantes. Não são de Brasil, mas o Hans Staden é de Brasil, e ele é o primeiro na série.

Esse é um livro muito importante, porque ele foi muito, mas muito publicado assim que o Hans Staden o lançou. Saíram várias edições. Ele foi tão publicado que, quando saiu em Marpurg em 1557, saiu uma edição em Frankfurt no mesmo ano. O Hans Staden havia ilustrado todo o livro a mão – são xilogravuras das aldeias, dos índios comendo braço, comendo gente, as praças de aldeia, as caravelas chegando e saindo do Brasil… Mas o editor de Frankfurt não tinha as matrizes das ilustrações dele, então resolveu ilustrar o livro usando ilustrações de uma viagem ao Oriente, de um autor chamado Varthema. Então, nessa edição alemã, só tem gente de burca. Temos essas duas edições aqui.

Uma outra rara que temos é a edição da Marília de Dirceu publicada no Brasil em 1810, que só existem quatro exemplares no mundo. Ela é muito mais nova do que a 1ª edição portuguesa, que é de 1790. A 1ª brasileira é de 1810, mas é infinitamente mais rara. Tanto é que o doutor José e o doutor Rubens, que era esse que doou a biblioteca para o Mindlin, procuravam esse livro a vida inteira. E aí o Rubens dizia para o doutor José, “se um dia você encontrar, não me conta, porque senão eu vou ter um infarto”. Aí, um dia, um colecionador de Minas estava na biblioteca, foi visitar o Mindlin e perguntou – colecionadores têm uma mania que é engraçada: se eu sei que você não tem determinado livro, então eu vou perguntar exatamente desse –, ele chegou para o doutor José e perguntou assim, “você tem a primeira edição da Marília de Dirceu publicada no Brasil?”, e ele respondeu, “claro que não! Eu não tenho e ninguém tem”. “Pois eu tenho”. Aí o doutor José falou, “não, você está brincando”, e ele falou, “estou falando sério. Quando você for a Minas, vai à minha casa que eu te mostro”. Aí, claro, na mesma semana o doutor José voou para Minas para ver o livro. Esse amigo falou assim, “sua mulher é restauradora, né?”, aí o doutor José falou que sim, “então leva e fala para ela restaurar o livro”. O livro estava perfeito, mas ele tinha, na página de rosto e na primeira e segunda página, alguns furinhos de bicho, mas não comprometia o texto. “Leva para ela, pede para ela limpar, arrumar, costurar de novo” – que estava descosturado – “e, se ela arrumar isso, o livro é seu”. Aí o doutor José nem acreditou. Trouxe, entregou para a dona Guita e falou “olha, Marília!”. E a dona Guita levou seis meses restaurando esse livro. Ela desenhou uma máquina especial para a refibragem do papel e tudo, e fez o livro inteiro. O doutor José, em troca, deu de presente para ele, já que ele era mineiro, documentos dos Autos da Inconfidência. Então ficou uma troca da Marília pelos inconfidentes.

O livro mais antigo aqui da biblioteca é de 1508, chamado Itinerariū Portugallensiū, de Fracanzano Montalboddo, e tem também os livros do viajante do Carl Friedrich Philipp von Martius. Ele veio para o Brasil e publicou os livros da viagem toda dele e, também, livros sobre a flora brasileira. São 41 volumes de flora. Todos ilustrados. E aí tem 18 volumes de viagem, sendo que três descrevem a viagem e os outros sobre animais – pássaros, peixes, lagartos, cobras, tudo colorido a mão. Aí depois tem os álbuns, que pesam uns 10 kg cada um, sobre palmeiras do Brasil – partes das palmeiras, semente, caule, tronco, depois a palmeira dentro do habitat dela na floresta… E tem macacos, também. E o nosso exemplar é o exemplar que pertenceu à imperatriz Maria Luísa, com os brasões dela nas lombadas.

Para digitalizar, vai dar trabalho. A pintura dos livros dele, nos grandes formatos, era feita em série, ficava numa mesa bem grande, com vários pintores, e cada um pintava uma cor – um pintava o marronzinho da palmeira, outro a folhinha verde, outro o verde-escuro… Era uma produção em série.

E quais são os objetos de desejo da Biblioteca Brasiliana?

Cultura e Opulência do Brasil, do Antonil. A 1ª edição, que não temos. Eu acho que esse é o livro que a gente mais queria. Talvez um exemplar de A Divina Pastora, que só existe um também.

E vocês sabem onde está a 1ª edição?

Não existe. Não está nem à venda em algum lugar.

Então é um desejo inalcançável.

Não, pode ser que apareça. O Cultura e Opulência do Brasil deve ter uns quatro exemplares no mundo. Todos eles estão em instituições, então não vai sair de nenhuma instituição para ser vendido.

Na casa do Brooklin funciona o que hoje?

É uma escola de criança pequena. A casa não era gigante. Ela tinha muito espaço para os livros, mas a casa em si era normal, com três quartos. Tinha um terreno muito grande, um jardim super bonito… A escola está instalada nos prédios que foram sendo construídos ao longo dos anos para receber os livros. Hoje, a escola fica no prédio onde eu trabalhava.

#29ArquivoCulturaSociedade

Um garoto nova-iorquino

por Léo Coutinho

Um garoto nova-iorquino de dezessete anos desenvolveu um programa de computador capaz de reconhecer padrões e sintetizar a obra de compositores clássicos. Sofisticado, o sistema pode criar suas próprias peças musicais.

A novidade causou frenesi nos Estados Unidos. Na TV aberta, o programa de auditório I’ve Got a Secret recebeu o prodígio com sua invenção, que apresentou uma peça de piano composta pelo computador. Ato contínuo, o presidente americano convidou o rapaz à Casa Branca para dar-lhe os parabéns pessoalmente.

Ainda estudante do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o mesmo jovem criou uma empresa para administrar outra invenção: um novo programa de computador, agora capaz de identificar matches da turma do ensino médio com universidades, cruzando as características das instituições com as respostas de um questionário preenchido pelos candidatos interessados. Qualquer semelhança com os atuais algoritmos não é mera coincidência.

Nota necessária antes de prosseguirmos: o presidente no segundo parágrafo é Lyndon Johnson. As datas de apresentação das invenções são respectivamente 1963 e 1968. O jovem é o hoje setentão Raymond Kurzweill, filho de judeus austríacos que escaparam do nazismo pouco antes da Segunda Guerra Mundial e um dos pais do conceito de Singularidade tecnológica.

O termo original vem do campo da astrofísica e é utilizado para denominar o lado de lá do horizonte de eventos dos buracos negros, onde o tempo e o espaço como os conhecemos desaparecem. Mas, nos anos 1990, a Singularidade foi reapropriada por Vernor Vinge e Ray Kurzweill para definir o lado de lá do entendimento vigente sobre a relação entre biologia e tecnologia, homem e máquina, consciência e matéria. A quem se interessar por uma introdução ampliada ao tema, recomendo a leitura do artigo “Singularidade e Convergência”, da doutoranda em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, Renata Lemos.

O que importa aqui é que ninguém discorda de Kurzweill sobre se a Singularidade tecnológica vai acontecer. Tudo o que se discute é quando, como e em qual intensidade ela virá. Isto é, sabemos que a inteligência artificial, somada à internet das coisas e incluindo nanorobôs capazes de coexistir com o organismo humano, é só uma questão de tempo. As perguntas que restam são filosóficas: quais limites éticos e morais devem ser observados?

Líderes religiosos se destacam entre os mais aflitos. Perguntam-se até que ponto convém à Humanidade “brincar” de Deus. É um debate que deve ser respeitado e realizado. E com alguma urgência. Imagino que o primeiro ser humano que foi capaz de controlar o fogo sofreu questionamentos semelhantes. Onde chegaríamos produzindo algo que acontecia como um fenômeno, quiçá divino, depois de um raio, de chuva ou de sol? A diferença principal é o tempo para o amadurecimento do debate. Parece que, naquela época, havia tempo de sobra e deu no que deu. Cá estamos. Agora, o tempo urge, a tecnologia avança num ritmo difícil de ser acompanhado. A Lei de Moore vigora, sem falhar, desde de 1965: a cada dois anos, a capacidade de processamento dos computadores dobra. Se vier a falhar, deve ser para mais, ou seja, triplicando ou quadruplicando a cada dois anos, posto que as máquinas evoluem muito mais depressa do que os seres vivos. Misturados organicamente, qual será a velocidade do passo?

Entre as previsões do futurista Kurzweill estão os nanorobôs que vão morar dentro do nosso cérebro e, de lá, poderão se conectar com a nuvem, arquivo virtual de toda a informação já produzida pela Humanidade. Será o fim dos lapsos de memória, e a criatividade humana não terá limites. Também poderão combater doenças e regenerar órgãos danificados pelo uso, provavelmente acabando com a morte morrida ou permitindo que nosso corpo aguente correr dez maratonas seguidas – confesso que não sei o que é mais assustador.

Mistérios e segredos também estarão com os dias contados. Inclusive os dos nossos ancestrais. Kurzweill é um tipo curioso. Podemos conhecer um pouco dele no filme documentário Homem Transcendente: vive no subúrbio, numa casa clássica americana repleta de memórias, bebe vinho, usa carro, terno e gravata. Pensa muito no futuro, mas não se esquece do passado.

Muito pelo contrário, quer lembrar mais. Guarda tudo o que pode sobre sua família, notadamente seu pai, para um dia poder digitalizar toda a informação e, de alguma maneira, ressuscitá-lo. Mais: já implicou muito com a presença dos extensos cemitérios dentro das cidades nos Estados Unidos, mas hoje olha para cada um deles como preciosos bancos de dados. Ele imagina que poderemos resgatar o DNA presente nos cabelos e outros tecidos dos mortos e, consequentemente, parte da memória neles contida.

Kurzweill diria: cuide bem do seu arquivo e serás imortal. Estamos preparados?

#29ArquivoCulturaLiteratura

O futuro dos museus está dentro de nossas casas

por Guilherme Abud

Existe uma história a se contar toda vez que acontece um encontro. Há rastros desse encontro. Memória. Arquivo. Fetiche. Notícias humanas.

Em O Museu da Inocência, o escritor turco Orhan Pamuk, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2006, narra uma história de amor impossível entre dois primos que acaba se transformando em uma adoração fetichista dos objetos relacionados a essa paixão. Na história, o protagonista coleciona obsessivamente coisas que foram tocadas por sua amada. Em paralelo, o escritor colecionou esses objetos, advindos de mercados de pulgas e casas de amigos. Objetos estes que estão abrigados no “Museu da Inocência”, em Istambul, em um espaço dedicado à memória dos personagens do livro.

Escondido perto da Avenida Istiklal, pulmão da moderna Istambul na costa europeia, um prédio vermelho abriga um museu curioso. No museu, não há paredes brancas, obras de arte famosas, tampouco objetos raros. Há uma coleção de objetos ordinários, comuns, rastros físicos de uma cena de amor – como, por exemplo, uma parede dedicada a abrigar mais de três mil cigarros dispostos em ordem com uma etiqueta de identificação. São pistas da angústia de um amor mal resolvido. O valor não está na natureza de cada objeto em si, mas sim em sua capacidade de despertar e trazer à tona todos os sentimentos e sensações ali colocados.

A criação do “Museu da Inocência” nos propõe uma reflexão profunda sobre o potencial dos museus em contar histórias nessa escala, de seres humanos individuais. Construções monumentais, que acabam distanciando o público, dariam lugar a cenários da vida real com objetos ordinários que lhe dão cor de vida – assim como nossas casas, a exteriorização do nosso universo particular, o lugar onde colecionamos aquilo que escolhemos, que colocamos a nossa energia e usamos de abrigo e proteção. Seriam nossos próprios lares os futuros museus?

Em seus estudos de Análise da Imagem, Walter Benjamin estabeleceu uma relação em que a imagem, como obra de arte, depende de sua aura, do seu valor de culto, da sua autenticidade e unicidade para existir. Relacionando esse conceito com o valor afetivo que colocamos em objetos tão próximos e presentes no nosso dia a dia, podemos considerar que tais objetos são dotados de aura e valor de culto. Uma releitura contemporânea do “ready-made” de Marcel Duchamp.

Se os museus são territórios de experiência e reflexão onde podemos repensar histórias e memórias, espaços que nos conectam com mundo, é urgente usar esses espaços para se aprofundar em universos particulares.

Os grandes museus sempre trataram de observar as civilizações, os Estados, a sociedade e os conglomerados, mas nunca o indivíduo em particular. Observamos as passagens históricas sem nos ater aos seus personagens, estudamos as guerras sem nos aprofundarmos a respeito da vida dos soldados que ali estiveram. O que sabemos sobre suas famílias, seus amores, seus desejos e medos?

Entrar no profundo do ser humano é compartilhar sentimentos e emoções em comum. É nos aproximarmos. Dar lugar ao íntimo em vez de abrigar a impessoalidade do coletivo é extremamente necessário para compreender o mundo de maneira mais humana. Assim, podemos mergulhar naquilo que há de mais singelo: nossas histórias pessoais, nossas memórias, coleções de uma vida dotadas de significado. Se há vida, há arte.

#26Delírio TropicalEditorial

O Vira-lata complexo

por Jorge Caldeira

Mulher Africana (1641), de Albert Eckhout

A palavra que designa atualmente o país é de origem ocidental. A versão mais antiga que se conhece de “Brasil” aparece num mapa de 1367.  Eram os tempos em que os vikings tinham bases em várias áreas celtas (Irlanda, por exemplo) e dali se aventuravam para o Ocidente pelo mar incógnito. Por isso, não é de se estranhar que o vocábulo “O’Brazil”, que em celta significa “Ilha Afortunada”, aparecesse no mapa para nomear uma das várias ilhas que existiriam a oeste do continente europeu, em pleno Atlântico. Eram tempos nos quais a vida dos deuses e dos homens se misturavam, de modo que os mapas também registravam ilhas como Atlântida.

A separação entre deuses e homens nos mundos material e espiritual, que conhecemos hoje como apanágio da civilização ocidental, começou a ser construída em Portugal. Para possibilitar a navegação oceânica regular foi preciso separar a astronomia da astrologia, a química da alquimia, a física da metafísica – o relato de viagens da narrativa fantástica, a religião da ciência.

Como o objetivo era navegar, o conhecimento livresco era revisto a partir do resultado de cada viagem. Dessa forma, o “Tratado da Esfera”, obra do século 14, de João de Sacrobosco, foi sendo atualizado  a cada navegação. Começou como guia das projeções astrológicas da esfera terrestre sobre a terra plana e acabou como a representação de globo terrestre. Não à toa, Adam Smith considerava a criação da navegação oceânica “a maior descoberta da humanidade”.

A projeção da palavra celta sobre um território incerto seguiu o mesmo processo – tendo como contraponto a própria Bíblia. Os europeus que vieram a bater no Brasil viviam um momento delicado. Haviam saído  de um continente onde a fome e as pestes eram constantes, a morte, um fantasma permanente — e os sonhos da mitologia bíblica do paraíso, a maior esperança para um futuro numa outra vida.

Para gente tão amarga, a chegada a um lugar onde a luz era exuberante o verde das matas permanente, a comida farta e o clima ameno lembrava uma descrição: a do paraíso no livro bíblico do Gênesis. Ali se falava que Deus, ao criar Adão, o tinha colocado num horto “da banda do Oriente”; que ali, por toda parte, havia plantas agradáveis à vista e boas para comida; que neste horto havia um lago, do qual saíam quatro grandes rios; que ali havia ouro e pedras preciosas em abundância.

A visão da natureza tropical, somada à de índios que pareciam viver no mais perfeito estado de inocência, coincidia perfeitamente com as muitas discussões escolásticas medievais, nas quais padres e ocultistas debatiam os trechos da Bíblia, procurando situar o lugar do paraíso na Terra. O próprio Cristóvão Colombo, grande leitor desses textos, foi um dos que acreditou piamente ter chegado ao Paraíso: 

“Creio que, se passando pela linha equinocial, e ali chegando, lá está o Paraíso Terrestre”.

Como ele, muitos dos primeiros aventureiros que andaram pela América correram atrás desse lugar mítico. Dois eram os maiores objetos de buscas: a árvore da vida, que daria todo o conhecimento e vida eterna a quem colhesse seus frutos, e uma cidade inteiramente feita de palácios cravejados com pedras preciosas. Na primeira vertente, mais espiritual, andou o espanhol Juan Ponce de Léon; na segunda, mais terrena, Francisco de Orellana.

Descrita numa série de textos medievais, a árvore deveria estar plantada bem no meio do Jardim das Delícias. Os anjos, tendo à frente os querubins, a defenderiam do acesso dos mortais. Para se chegar até ela, era preciso guiar-se pelo clima: nem frio nem quente, ameno o ano inteiro. E, se os homens não conseguissem vê-la, não importava. Ao menos poderiam tomar a água da fonte que nascia a seu pé e que garantiria a eterna juventude. Ponce de Léon procurou essa árvore onde hoje está a Flórida, mas morreu antes de encontrá-la.

A segunda versão do Paraíso terrestre falava de um lugar mágico logo atrás de uma região de terras fertilíssimas e árvores sempre cheias de frutos, rios de ouro, palácios de ouro e prata cimentados por pedras preciosas: jaspe, safiras, esmeraldas, jacintos, topázios… Nos muros desses palácios, resplandecentes como o sol, havia doze portas, cada uma de uma gema. Torres de cristal, com laços de ouro puríssimo, completariam a visão. E, para se chegar até lá, caminhava-se por ruas também revestidas de ouro.

Tal cidade deveria estar num lago chamado Eldorado, no centro do continente do Paraíso. Francisco de Orellana não conseguiu encontrar o lago quando desceu o Amazonas, mas o relato de sua viagem deu a muitos a certeza de que estaria no interior do Brasil — e dele nasceriam o Prata e o Amazonas. Até o século 17 foram feitos centenas de mapas nos quais este lago e a cidade de Eldorado aparecem na região hoje chamada Pantanal, que fica exatamente no centro do continente e em torno da qual partem rios da bacia do Prata e Amazonas.

A passagem do registro mítico para o realista foi complexa — e durante esse tempo a cultura portuguesa foi perdendo sua característica única de pioneira do processo de separação. O primeiro livro intitulado “História do Brasil”, publicado em 1627 pelo Frei Vicente do Salvador, começa descrevendo um confronto entre uma designação metafísica, “Terra de Santa Cruz”, e outra, “Brasil” — esta já não mais empregada no sentido mítico celta, mas em sua materialidade comercial corrente na terra, da seguinte forma:

“O capitão Pedro Álvares Cabral pôs nome à descoberta de Terra de Santa Cruz e por esse nome foi conhecida por muitos. Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder o muito que tinha sobre os desta terra, trabalhou para que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau de mesmo nome de cor abrasada, e vermelha, com o qual se tingem panos, do qual há muitos nesta terra, com o que importava mais um pau que tingem panos que o daquele pau que deu tinta e virtude a todos os sacramentos.”

O processo de pensamento já era o inverso daquele que permitiu as navegações: em vez de afirmar a física e separá-la da metafísica, afirmava a verdade do livro divino contra a realidade humana da qual fazia a história — e contava como pecado ou derivação para além do mundo religioso a vida e a obra real dos que por aquela terra passavam.

Paradoxalmente, o modo original português de privilegiar a observação real, mesmo quando isso significava contrariar crenças metafísicas, foi inaugurada como representação de “Brasil” pouco mais de uma década depois do livro de Frei Vicente do Salvador — por um holandês, o pintor Albert Eckhout, que desembarcou no Brasil em setembro de 1637, na comitiva do príncipe Maurício de Nassau.

Eckhout era apenas um dos vários pintores, inicialmente de menor importância. Começou como auxiliar dos naturalistas Piso e Marcgraf, desenhando em pequenos cadernos os animais e espécimes vegetais que os dois descreviam. Mas aproveitou os intervalos para ir registrando também as pessoas, dos índios aos nobres. Sua habilidade acabou sendo reconhecida e ele ganhou do príncipe encomendas de maior escala.

Embora não haja total certeza a respeito, existe boa possibilidade de que ele tenha recebido de Nassau a incumbência de pintar telas monumentais para a decoração de um salão no palácio que o príncipe construía em Recife, por volta de 1643.

As pinturas foram terminadas na Europa e organizadas como uma tetrarquia: quatro casais de pessoas em quatro estágios de civilização, indo dos povos mais brutos aos mestiços mais civilizados. Assim, fez mais que os primeiros grandes retratos de pessoas vivendo no Brasil: criou uma chave de interpretação para ilustrar uma civilização — que nasceria do casamento entre pessoas de origem étnica diversa.

Um dos casais é formado pelo par intitulado “Homem Brasileiro” e “Mulher Brasileira”. Este é um dos mais antigos registros que se conhece do gentílico “brasileiro”, cuidadosamente evitado pelos portugueses para impedir a disseminação de uma consciência própria na colônia. Ele mostra um casal de índios de aldeamento, talvez miscigenado. Está um ponto abaixo do casal mais ocidentalizado, composto pelas telas “Mulato” e “Mameluca” — filhos do cruzamento de raças que seria próprio do Brasil.

Estavam formados assim os dois grandes paradigmas analíticos a partir dos quais até hoje se constroem as interpretações da vida no território. De um lado, um intérprete que, mesmo na terra, se identifica com o europeu exilado em território estranho e fala como alguém que tenta impor essa civilização a bárbaros. Do outro, alguém que interpreta os fenômenos locais a partir de sua especificidade, empregando a diferença em relação ao caso geral europeu para entender aquilo que há de próprio nela.

A primeira forma marcará o pensamento de uma elite que se define por contraste da massa que seria incivilizada, cujo protótipo arquetípico é a imagem do ocidental como “caranguejo que arranha o litoral”, criada pelo Frei Vicente do Salvador. No período colonial, o discurso característico era aquele da autoridade metropolitana em sua luta para se impor ao barbarismo dos coloniais. No Império, aquele do homem próximo à coroa civilizadora e distante do súdito não europeu, interesseiro e mercantil. Na República, aquele do detentor de conhecimento técnico que se distingue do cidadão ignorante.

A segunda forma de entendimento marcará entrada nos textos de intelectuais apenas muito mais tarde, pela altura da independência. Seu arquétipo é a frase de José Bonifácio de Andrada e Silva, que define a missão nacional brasileira da seguinte forma, em 1823:

“É tempo também que vamos acabando gradualmente com todos os vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes. É da maior importância ir acabando com tanta heterogeneidade física e civil. Cuidemos, desde já, em combinar sabiamente tantos elementos discordes, em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto.”

Esta atitude interpretativa de “Brasil”, em vez de separar o autor do narrado em planos que não se tocam, exige colocar num mesmo plano o sujeito que analisa e o objeto que está sendo analisado — que já teria algo próprio de ambos numa unidade nova que seria a nação. Essa nação não seria mais parte do mundo ocidental metafísico, mas variante real na qual se constrói um todo capaz de lhe dar substância. Do ponto de vista intelectual, traz um grande desafio. Ao contrário do caranguejo, que é simples, fechado em si, o vira-lata é complexo, pois a unidade no termo vem do múltiplo autor/objeto.

Jorge Caldeira é o editor convidado da edição Delírio Tropical

#26Delírio TropicalCulturaSociedade

Pindorama, índios e o brasileiro

por Shogyo Gustavo Pinto

Névoas densas envolvem o que às vezes supomos claro. Dois equívocos e um enigma intitulam o presente artigo. O primeiro equívoco é imaginar que o termo tupi-guarani “Pindorama” seja o nome que precedeu o terceiro escolhido pelos portugueses para a terra cuja descoberta os lusitanos reivindicam apesar das evidências de que navegadores de outras nacionalidades estiveram aqui antes de Cabral.

O equívoco consiste na suposição de que todos os habitantes desnudos que os portugueses aqui encontraram em 1500 falavam tupi-guarani. Chestimir Loukotka, em Línguas indígenas do Brasil (Revista do Arquivo Municipal, v. 54, 1939, São Paulo), reconhece 237 línguas nas terras descobertas por Cabral, enquanto Aryon Dall’Igna Rodrigues, em Línguas brasileiras (Loyola, São Paulo, 1986), estima que fossem mais de trezentas, das quais 170 ainda estão vivas. Considerando as distâncias que separavam as tribos do Oiapoque ao Chui, as guerras frequentes e as animosidades ancestrais, é fácil concluir que, afora os falantes de tupi-guarani, centenas de outras etnias provavelmente ignoravam o termo Pindorama e chamavam a sua terra por nomes em suas próprias línguas.

O segundo equívoco é um desdobramento do primeiro e consiste em se referir aos índios supondo uma unidade étnica e/ou cultural. Estima-se em mais de duas centenas as etnias que aqui viviam em 1500. Quando se fala em cultura indígena, é preciso primeiro perguntar a qual delas se está referindo e, em seguida, é preciso indagar como se demonstra a unidade que o singular na expressão supõe, pois evidente é a diversidade que havia então e ainda hoje remanesce.

Sobre os dois equívocos impera uma suposição igualmente equivocada quando se atribui aos índios em 1500 a posse do território que hoje chamamos de Brasil. Em suas cartas, Américo Vespúcio menciona a inexistência do sentimento de posse da terra entre os aborígenes. Além disso, as tribos deslocavam-se em virtude do esgotamento do solo, devido à coivara, e também em decorrência das guerras.

Outro equívoco espantoso é a fantasia edênica que vicejou no imaginário Europeu desde os relatos dos primeiros viajantes e que persiste ainda hoje, apesar dos fatos evidenciarem a falácia da projeção. Antes da chegada de Cabral, em torno de um milhão de ferozes Tupinambá espalharam terror desde a foz do Amazonas até a Lagoa dos Patos, matando e expulsando para o interior os índios das tribos que antes viviam na costa. Consolidada a sua supremacia, deram início a guerras entre eles próprios. “A prática da antropofagia ou canibalismo entre os Tupinambá estava associada diretamente com a intensificação da guerra intestina e fratricida”. (Os índios e o Brasil, Mércio Pereira Gomes, ed. Contexto, São Paulo, 2012).

Quando Américo Vespúcio indagou a razão de estarem constantemente em guerra, descobriu que os índios não sabiam explicar e respondiam dizendo “os índios das outras tribos devem ter feito alguma coisa ruim para os nossos pais”. Cabral não imaginava a sorte que teve ao aportar em Porto Seguro, onde viviam Tupiniquins pacíficos e amistosos. Iludido pelo relato de Caminha, Vespúcio, em 1501, deixou alguns tripulantes em Cabo Frio enquanto navegava mapeando a região sul. Ao voltar encontrou somente as ossadas churrasqueadas. Portugueses, franceses e holandeses sempre se valeram dos ódios intertribais para estabelecer alianças que assegurassem apoio para se fixarem aqui.

Quem pacificou o convívio entre as diferentes tribos (um esforço de séculos) foram os portugueses, com decisiva contribuição dos padres. No século XVIII, os Mundurucus, caçadores de cabeças que, após a degola, as miniaturizavam retirando o crânio e fervendo a pele, aterrorizavam as tribos do baixo Amazonas, e muitos índios fugiam para Belém buscando proteção. Ali, portugueses salvaram índios ameaçados por índios. O termo então usado pelos Mundurucus para designar outros índios era a mesma palavra que designava “caça”. Só a persistente catequese dos padres durante gerações conseguiu convencer os Mundurucus a abandonar o hábito de caçar cabeças. O convívio entre as diferentes tribos nessas plagas abaixo do Equador não diferia muito das guerras e morticínios que incendiavam a Europa, a África e a Ásia. O idílico paraíso tropical povoado por “bons selvagens” só existia na cabeça de alguns intelectuais europeus cuja quimera idealizada persiste crível para alguns intelectuais contemporâneos que rápido “esqueceram” a capa da revista Veja que estampou a ferocidade na face de um estuprador. Para salvar a idealização, o “politicamente correto” apagou da memória nacional a barbárie do crime cobrindo-o com um manto pétreo de silêncio. O estuprador era índio e a vítima, uma professora brasileira.

De seres humanos são constituídos todos os povos. Em lugar de idealizar ou demonizar (erros equivalentes), melhor lembrar um velho ensinamento budista: “Na natureza não há o melhor nem o pior. Os ramos primaveris crescem, uns longos outros curtos”. Em todas as culturas e comunidades humanas há pessoas admiráveis e criminosos perigosos. Entre os indígenas não é diferente.

Vamos agora ao enigma que acompanha os dois equívocos no título do presente artigo. Brasileiros. O que significa isso? Santo Agostinho dizia que, se não lhe perguntassem o que era o tempo, ele sabia. Quando perguntavam, ele já não sabia. Algo semelhante acontece com o brasileiro. Se não nos perguntam, julgamos saber o que é. Quando nos indagam como é o brasileiro, descobrimos que estamos diante de um território nebuloso. No presente artigo vamos nos ater ao enigma apenas no que diz respeito ao segundo equívoco, isto é, índios e o brasileiro.

Todo brasileiro traz em si um pouco de índio. Em caso de dúvida basta ler a narrativa a seguir. “Ao entrar numa biboca em Ipanema, ele ouviu ‘Oi’. Pensou, será uma arapuca? Quem o chamava fedia como gambá, mas ele riu ao ver que era o xará que andava capenga. Pediram abacaxi, caju e pipoca. Conversaram só lengalenga, mas não ficaram de nhenhenhém”. Todos os substantivos, adjetivos e a interjeição “oi” são termos tupi-guarani, do que talvez nem suspeitassem a estonteante garota que passava e o poeta embevecido que lhe cantarolou um samba que ainda hoje encanta onde o cantem mundo afora. Quem entendeu a breve narrativa, seja brasileiro filho de alemão, italiano, japonês, espanhol, português, polonês ou zulu, também tem um pouco de índio, pois “a linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem”. (Sobre o Humanismo, Martin Heidegger, Tempo Brasileiro, 1967). Palavras não apenas designam coisas, elas constituem o mundo atribuindo-lhe sentido.

Observemos a toponímia brasileira e veremos que os índios batizaram nossos rios, vales e montanhas, nossas praias, frutas, peixes, árvores, pássaros. O poeta que no exílio cantou a saudade de sua terra escolheu o sabiá para cantar a sua dor. Há mais de índio no brasileiro do que ele o sabe. As jovens que nas nossas praias prodigalizam aos olhos embevecidos a majestade de sua anatomia são herdeiras esquecidas de quem as precedeu.

“Ali andavam entre eles, três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas abaixo; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as olharmos muito bem não tínhamos nenhuma vergonha”. (Carta de Pero Vaz de Caminha, O Brasil de Américo Vespúcio, Ricardo Fontana, UNB, 1994, pág. 202.)

O erotismo que marca a cultura brasileira não veio de além-mar; ao contrário, cativou quem de lá veio. Por que dois grumetes de madrugada fugiram da caravela cabralina para se esconder na mata e ficar no Brasil? O ferro em brasa da paixão até hoje converte neófitos gringos à suave e doce malemolência das redes onde a sobrevivência da raça mestiçada é assegurada entre risos e cochichos, seja dia ou seja noite. Os índios do lado de baixo do Equador desconheciam o “pecado”, essa criação das religiões abraâmicas. Desde os portugueses temerosos da Inquisição, quem não vem do Oriente sempre traz na bagagem da alma os seus pecados. Quando escolhem ficar, é porque aqui se descobrem liberados. Assim foi desde 1500, assim será enquanto ainda viver em nós o índio que também somos.

“São pouco ciumentos mas sumamente libidinosos, mais as mulheres que os homens: julgamos que devemos aqui calar, por pudor, os artifícios delas para satisfazer sua libido insaciável.” (Américo Vespúcio, in Novo mundo, Eduardo Bueno, Ed. Planeta, São Paulo, 2003, pag.74.)

Nós, brasileiros, ainda não sabemos quem somos. Quando o enigma for resolvido, no prato cozido em fogo baixo rescenderá um sabor que vem de ocas ancestrais nas quais ainda hoje crepita o lume em torno do qual famílias se reúnem. A fumaça atravessa a palha que recobre a morada e sobe ao céu, livre de chaminés. Isolados, arredios, ou mesmo nas reservas indígenas, ainda há muitos que não falam português, não sabem o que é Brasil, nem imaginam que ajudaram a formar os brasileiros.

#8AmorArteArtes Visuais

Portfólio: Gabriela Machado

por Frederico Coelho

Há alguns anos Gabriela Machado encontrou um novo espaço criativo em sua vida. Ao lado da pintura — ofício que vive intensamente na beleza bucólica de seu ateliê — ela elegeu a música como outro cerne de sua relação com a arte. Mas não é qualquer música. É o samba, e mais especificamente o samba que emana da batida do pandeiro, que, assim como as tintas nas telas em branco, espalha sua vida rumo ao mar do prazer estético. É nas rodas de samba, na sua prática comunitária, democrática, sem hierarquias e organizada apenas pelo intuito da alegria sonora, que Gabriela passa seus dias quando não está pintando ou vivendo o lado cotidiano de sua vida

Lembremos que o samba e as artes visuais sempre foram parceiros felizes no Brasil. De Heitor dos Prazeres e Di Cavalcanti a Hélio Oiticica e Carlos Vergara, esse diálogo criativo resultou em belos momentos. No caso de Gabriela, o samba impregnou seu olhar para o mundo, batizou suas telas com nomes de cabrochas, lhe mostrou as gingas e as filosofias de vida que só os sambistas atingem em formato sublime e, ao mesmo tempo, popular. A beleza de Cartola ou Guilherme de Brito, a crueza de Nelson Cavaquinho ou a assertividade de Candeia entraram em sua vida e vazaram, em todos os sentidos, nas suas tintas.

A relação estreita entre música e pintura se torna óbvia quando evocamos uma palavra em comum para ambas: ritmo. O ritmo da música e o ritmo da pintura são elementos fundamentais em qualquer composição. Ambos nos remetem a jogos temporais e espaciais em que a dinâmica ou a cor regem contrastes entre cheios e vazios, entre lento e veloz, entre claro e escuro, entre dobras e recuos. Músicas e pinturas são arranjos cuidadosos de ocupação de espaços — sejam sonoros, sejam pictóricos.

Uma das primeiras apropriações que podemos fazer da pintura abstrata de Gabriela diz respeito ao seu ritmo de cores e à sutil observação do caminho que elas seguem, esparramadas em telas de tamanhos variados. Em seus amplos fundos brancos, as cores ditam o ritmo do olhar como partituras dessa música silenciosa e, contraditoriamente, explosiva.

Essa explosão sincopada e essa abundância de cor em um espaço limpo e equilibrado são movimentos que fornecem a base para sua Força Bruta. E aqui esqueçamos todos os sentidos negativos ligados à derivação de uma brutalidade. No trabalho de Gabriela, Bruta é a matéria cor em sua plena potência física e poética. Bruta é a força que nos move quase inconscientemente para um mundo onírico, de puro prazer das formas, em detrimento do circuito opressor diário do real ou do documento. Como na roda de samba, entramos na pintura de Gabriela sem saber a que horas vamos sair, pois são espaços cujos regimes são os do prazer. É esse o Bruto que toma os sentidos e nos arremessa para uma zona em que cada um de nós pode se desarmar dos lugares comuns e inventar novas narrativas sobre a vida e as cores.

Espalhada, orgânica, em movimento, a ocupação do espaço em suas telas pode, quem sabe, parecer gratuita na sua sinuosidade sensual. Não atravessemos o samba. Essa ocupação é, ao contrário, fruto de uma relação íntima e delicada de Gabriela com o seu ofício. Suas pinturas nos apresentam os meandros do embate diário do pintor com cores, pigmentos, óleos, resinas e texturas. Na composição aberta, espontânea, em progresso, suas cores não competem, se abraçam. Aos poucos as formas dão as mãos e se reinventam no lento caminho da mistura.

Em um trabalho paciente, a pintora aplica camadas de cor em suas telas e as deixa repousar em pleno processo de entrosamento. Assim, as grandes manchas de cor ganham intensidades diferentes a cada operação. Aquilo que parece ser traços velozes é, na verdade, caminhos da cor maturados com a calma de um fim de tarde.

No atual contexto da pintura brasileira, Gabriela Machado traz em seu trabalho uma afirmação da abstração em contraponto a realismos e perspectivas fotográficas do mundo. Sua abstração, porém, não se fecha em diálogos internos da forma ou silêncios monocromáticos. Suas telas de pura cor em movimento oferecem o frescor de uma narrativa encapsulada, prestes a eclodir em frente aos nossos olhos. Há nos trabalhos e na obra de Gabriela Machado uma alegria incontida de braços dados a uma fruição contemplativa. Alegria e contemplação que nos remetem ao prazer da pintura, ao vitalismo da arte. Talvez resida aí essa força bruta que nos leva a suspender alguns momentos da vida prática para mergulhar em uma exposição de arte. Ou em uma roda de samba.

Frederico Coelho é professor de Literatura na PUC-Rio, escreve ensaios, artigos e textos sobre música, literatura, artes visuais e história cultural brasileira, entre eles o livro Pintura Brasileira Séc. XXI (Cobogó, 2011).

#8AmorArteFotografiaFotografia

E Então Sou o Mundo

#5TranseArteFotografia

Silêncio Azul

#7O que é para sempre?CulturaSociedade

Tatuagem: algumas origens

por Henrique Fogaça

The Special Signs, da polonesa Katarzyna Mirczak

Alguns registros ancestrais falam sobre a existência de um povo muito antigo no norte europeu que tinha o costume de fazer desenhos definitivos no corpo e que, devido a esse hábito, foi denominado Pictus.

Os Pictus não se tatuavam por vaidade. Acreditavam que aquelas inscrições lhes davam poder e força, e que os desenhos, além de representarem a interconexão de todas as coisas sobre a terra, ficavam impressos na alma para que pudessem ser identificados por seus antepassados após a morte.

A tatuagem sempre existiu como forma de expressão da personalidade ou como marca de pertencimento a um grupo. Os primitivos se tatuavam para marcar os fatos da vida biológica: nascimento, puberdade, reprodução e morte.

Depois, para relatar os acontecimentos sociais: virar guerreiro, sacerdote ou rei, casar-se, celebrar a vida, identificar os prisioneiros, pedir proteção ao imponderável, garantir a vida do espírito durante e depois da existência física.


***
Esta matéria é ilustrada com o estudo The Special Signs (os símbolos especiais), da polonesa Katarzyna Mirczak — trabalho composto por pedaços de pele humana tatuados encontrados pelo Departamento de Medicina Legal da Universidade Jagiellonian em Cracóvia, na Polônia.

Mirczak afirma que é muito difícil resistir ao vazio que se sente ao perceber o quão aparente é a realidade. Quando se sai da zona de conforto, é difícil regressar e fingir que nada aconteceu.

Katarzyna Mirczak recorreu a ambas, arqueologia e fotografia, para criar o estudo. Camada por camada, o projeto despe nossa percepção, colocando-nos frente a um objeto fechado, preservado, muitas vezes de maneira rudimentar, mas sempre com um impacto cínico e inegável. Propositalmente, Mirczak deu uma estética adocicada ao trabalho, cujas cores cativam e seduzem o espectador até que este perceba do que se trata realmente. Jogando com o contraste entre o que é visto e o que é compreendido, a artista levanta questões emocionais, provoca uma sensação de impotência e, depois, abandona o espectador — para que lide, sozinho, com as emoções.

As peças não são acompanhadas de explicações ou descrições. Não há o histórico da coleção, tampouco meios de decifrar o inevitável significado das tatuagens. Mirczak introduz um novo espaço e nos deixa lá.

Henrique Fogaça, chefe e proprietário do Sal Gastronomia, vocalista da banda de hardcore Oitão, pai de Olivia e João.

#8AmorArteFotografia

Flamboya Parasomnia

por Viviane Sassen

#6VerdeArteArtes Visuais

Deserto — Modelo

por Lucas Arruda

#27PerspectivasCulturaSociedade

Quem seremos nós?

por Claudia Feitosa Santana

Aos sete anos de idade, lembro de ter tido uma briga muito séria com a freira que me dava aula de religião. Eu havia questionado como ela podia me dizer que Deus existia sem me apresentar provas. Dizia ela que era um dogma e que eu tinha que acreditar, mas isso não era suficiente para mim. Vejo que minha inquietude veio de muito pequena. Como uma eterna estudante, me achava apaixonada pelo conhecimento. Hoje sei que sou apaixonada pela liberdade. Porque é o conhecimento que nos dá a liberdade. Eu me considero agnóstica, cada vez mais, e com certeza minha busca, como pesquisadora e professora, é entender como funcionamos.

A neurociência hoje nos comprova, em pleno século XXI, uma série de conhecimentos que a filosofia já sabia, ou já dizia centenas de anos antes a respeito de como funcionamos. Platão já sabia que nossa percepção não acessava a realidade. Aristóteles já sabia que nossa memória era falível, como impressões na cera, maleáveis. Ambos estavam corretos: não percebemos o mundo como ele é, e nossa memória é formatável e reformatável. Nosso cérebro é plástico e, de alguma maneira, se adapta às coisas, se transforma de acordo com o que fazemos, alterando também o mundo.

Um exemplo de como nosso comportamento vem se transformando é a tecnologia. Tecnologia é uma palavra que pode ser aplicada tanto a uma ferramenta (a roda, por exemplo) como aos óculos de realidade virtual. A escrita é uma tecnologia. Quando ela foi inventada nos vingamos da morte, pois, diferentemente da comunicação oral, passada de geração a geração linearmente, a escrita nos deu a possibilidade de deixar nosso registro no mundo. Toda a nossa produção — nosso conhecimento, nossa cultura — passou a não ser necessariamente transmitida de geração a geração, e, embora possa ser esquecida por muitas gerações, também pode ser reencontrada centenas ou milhares de anos depois.

Quando a escrita surgiu, muitas pessoas se revoltaram dizendo que aquilo não era bom, que íamos deixar a fala, que a oralidade iria se perder — mas não a perdemos. Na verdade, a escrita é como uma variação da fala e envolve circuito neural similar. Usamos a memória em ambas, e nosso cérebro hoje é muito pouco diferente dos cérebros anteriores à escrita. Não acontecem grandes modificações cerebrais quando ocorrem essas mudanças e, biologicamente, nossa essência muda muito pouco — nossos impulsos e desejos sexuais são iguais há 200 mil anos. Quando surgiu, por exemplo, a agenda do celular, as pessoas também começaram a falar que seria péssimo, que atrapalharia nossa memória, que não saberíamos mais os números das pessoas, mas, na verdade, ao gravarmos os números, simplesmente não precisamos usar nossa memória para isso, podendo usá-la para outras coisas.

Assim, a tecnologia não veio para atrapalhar, embora tenhamos uma dificuldade muito grande de aceitar essas mudanças quando elas surgem. Precisamos passar por todos esses processos, agora, com a internet, assim como passamos com a escrita, com o cinema, com a TV, com o celular. Num futuro muito próximo, passaremos com as realidades virtuais e aumentadas. O que influencia nosso comportamento é o ambiente. Quando existe uma adaptação a esse ambiente, agimos de acordo com ele. Precisamos adaptar, saber incorporar beneficamente e, por isso, não é uma bobagem discutir se a realidade virtual irá enfraquecer nosso cérebro ou não, e é a filosofia — de novo — que nos diz isso.

Existe um problema ético muito grande com todas essas invenções, porque elas trazem benefícios enormes, mas também podem causar problemas. Tanto a realidade virtual como a realidade aumentada nos trazem a possibilidade de tratamentos clínicos que são de grande valor e que podem melhorar a vida de muita gente. Transtorno do stress pós-traumático e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) são dois tipos de transtornos que podem ser tratados com seu auxílio, diminuindo o sofrimento do paciente. Outro exemplo são os óculos de realidade aumentada que vêm sendo desenvolvidos para auxiliar no tratamento de autismo, a fim de permitir que os pacientes treinem sua sociabilidade. Com a realidade aumentada, é possível se preparar para a situação real. Assim, de alguma forma, o cérebro do paciente pode até mudar.

As realidades aumentadas também podem ser usadas para treinamento de habilidades emocionais, o que, na verdade, todos nós precisamos, dado que nosso cérebro se encontra quase igual ao que era há milhares de anos, quando nos relacionávamos em grupos de 50, 70, no máximo 150 pessoas. Hoje, em ambientes urbanos, nos relacionamos com centenas de pessoas, fora os relacionamentos virtuais.

Junto com todas essas benesses, no entanto, podem existir problemas — que, na verdade, são sempre os mesmos, só mudam de plataforma. Quando vamos a uma festa, podemos invariavelmente encontrar uma pessoa de quem não gostamos e, se não nos controlarmos, podemos ter uma atitude impulsiva ou agressiva. Nas redes sociais — Facebook, Twitter, entre outras — também precisamos ter esse controle. A empatia é mais fácil quando estamos cara a cara, diante da pessoa, e então nos controlamos. Quando estamos separados por uma tela de celular ou de computador, isso fica mais complicado.

Quando o telefone foi inventado, também existiu uma fase de adaptação muito grande por causa da perda de contato visual. Grande parte do nosso feedback é visual, e quando falamos ao telefone, perdemos parte disso, mesmo ainda tendo a voz. Em uma plataforma onde só existe a escrita, perde-se muito mais. É mais difícil sermos mediados pela escrita. É só observar como as pessoas se agridem no ambiente virtual. É uma questão psicológica e fisiológica, e é por isso que hoje se fala muito de treinamento empático, comunicação não violenta, treinamento de habilidades socioemocionais. O cuidado que devemos ter reside na consciência de que não temos o feedback do olhar nem da escuta e, portanto, precisamos nos adaptar, controlar nossos impulsos agressivos, pois esse tipo de comunicação veio para ficar.

Creio que, com o excesso de informação vindo da internet, o maior desafio do nosso tempo é educar nossos filhos. É difícil chegar a um meio-termo: não podemos deixar que eles fiquem no mundo virtual por muito tempo, mas também não podemos proibir que tenham contato com esse mundo. E aí existe um outro problema. A tecnologia é muito mais sedutora, e as crianças podem aprender muito mais com ela do que nas escolas, que estão muito distantes disso tudo. Os métodos educacionais que existem hoje ainda são iguais aos do século XIX. As escolas precisam se adaptar a essa nova realidade e, inclusive, rever todo o sistema educacional, porque ele simplesmente não funciona mais.

Com a internet, pelo menos no jornalismo, deveríamos ser muito menos manipulados ao receber informações do que éramos pela TV, quando existiam poucos canais e éramos controlados muito mais facilmente. Isso é muito mais difícil com a internet, pois o acesso à informação é infinitamente maior, mas ao mesmo tempo é preciso conhecimento para saber como buscar e filtrar esse mundo de informações. No final, sempre caímos na educação.

A nossa cultura evolui no sentido positivo, e muito mais rapidamente que a nossa evolução biológica. Já melhoramos bastante — eu, por exemplo, não gostaria de ter nascido na Idade Média —, mas precisamos tomar cuidado para continuar fazendo essas adaptações com qualidade e consciência. Precisamos, cada vez mais, nos preocupar com o todo, porque a nossa espécie é perigosa: já destruímos muita vida no planeta. Talvez agora seja o momento de perceber — e a internet pode ajudar muito — que precisamos nos preocupar com quem está do nosso lado, e com a sociedade como um todo. É uma busca por tentar entender e respeitar o outro, mesmo que você não compreenda ou não compartilhe do seu pensamento. É, enfim, uma busca pela ética. A internet é muito nova, as redes sociais são muito novas. Talvez estejamos só passando por um movimento de “novidade”, onde muitas coisas aparecem e tomam forma, e precisamos nos adaptar a elas.

#27PerspectivasCulturaSociedade

Ao longo dos séculos

por Léo Coutinho

Ao longo dos séculos, a fábula da formiga e da cigarra foi revista, atualizada e traduzida ao gosto da moral vigente ou da preferência dos autores. Esopo, La Fontaine, Bocage, Monteiro Lobato. Em prosa e verso, muitos contestaram o caráter da cigarra, depois o da formiga, o valor do trabalho de uma e de outra. Mas nem nas versões mais recentes enxergou-se a perspectiva real da obsolescência do suor dessas formigas. Ou pelo menos da ampla maioria delas.

Alguém poderá dizer que na Revolução Industrial, primeira ou segunda, o tema foi debatido. Houve uma migração do campo para indústria e serviços que é relativamente recente e vem se acentuando com a explosão urbana. Só que nem ao longe o que se passou pode ser comparado com o que temos no horizonte. Além de emprego, renda, tecnologia, bem-estar social, somam-se ao debate questões de sustentabilidade, comunicações e conhecimento, democracia, natalidade e nutrição.

Porém, façamos como a formiguinha. Apesar de longo, o caminho precisa ser percorrido sem pressa.

Ainda existe o trabalho do frentista de posto de gasolina. No mundo desenvolvido, tanto o frentista quanto o espaço do posto de gasolina acabaram faz tempo. Mas, no terceiro mundo, automóveis com alta tecnologia aplicada estacionam e são atendidos por uma ou mais pessoas. Isso simultaneamente ao uso do carro elétrico. E ao avião, que pode ser abastecido por outro em pleno voo — com combustível líquido. Ou ao ônibus elétrico que recarrega a energia a cada parada para embarque e desembarque. Aliás, já existe o carro autônomo, que, quando chegar ao mercado, deve ser elétrico e prescindir da gasolina, do frentista e do motorista.

Os primeiros carros autônomos deverão ser os ônibus com suas linhas regulares e pistas exclusivas. Isto é, não haverá motoristas. E só agora as grandes cidades no Brasil começam a discutir o que fazer com os cobradores. Em São Paulo, eles atendem apenas 6% dos passageiros. Nos Estados Unidos, um caminhão autônomo entregou cerveja a quase 200 quilômetros de distância. Logo veremos uberistas e taxistas unidos contra o carro autônomo. É inexorável.

Se você está aflito com o tamanho da plateia para ver a sessão da tarde no formigueiro, acalme-se, porque a sala sequer começou encher.

Estima-se que, nos países desenvolvidos, onde não há frentistas nem cobradores de ônibus, 30% da força de trabalho empregada já está obsoleta. Gente que, na falta de carimbos e papéis para grampear e arquivar, troca alguns e-mails para combinar o horário de fazer um telefonema, ao qual chamam de call, e que, se tiver êxito, vai culminar em algumas reuniões presenciais, sobre as quais serão produzidos relatórios minuciosos que ninguém vai ler.

Essa gente, quando promovida, passa a frequentar conferências, palestras e outros eventos onde se apresentam gurus de todo tipo. Dizem que tem a ver com motivação. É compreensível. Fundamentais para a economia, eles garantem o trabalho da menina vestida de preto que fica com um rádio cuidando para que todos os convidados sentem-se nas cadeiras disponíveis. No terceiro mundo, a essa turma juntam-se os porteiros, muitos caixas de banco, seguranças e até ascensoristas de elevador. Portaria remota é cada vez mais comum, o seu destino, e só não faz isso porque não lhe custa nada apertar um botão.

Ainda no terceiro mundo, há os empregados domésticos, cozinheiras, arrumadeiras e babás. Quem os usa diz que seu tempo é valioso e, por isso, precisa da “assessoria”. Sofisma. Obviamente, o tempo do empregado é que tem pouco valor. Mas o custo é alto. Porque, se a babá está criando o filho da patroa, quem está cuidando do filho da babá?

No campo, os grandes temas tradicionais definham. Trabalho e posse da terra passaram a ser secundários. A produção depende fundamentalmente de tecnologia.

Quem acha que o trabalho intelectual se salva deveria olhar a tecnologia cognitiva. Há estudos em que pareceres jurídicos feitos por robôs superam em muito a qualidade dos advogados mais bem pagos.

Assim, não é exagero concluir que, no mundo todo, pelo menos metade das pessoas empregadas, se fossem demitidas, não fariam a menor falta ao processo produtivo. E ainda temos os aposentados, as crianças, os jovens e uma massa enorme já desempregada. Haja rede e cadeira de balanço nos formigueiros.

Os maiores formigueiros do mundo, como China e Estados Unidos, onde ainda há o chamado pleno emprego, parecem nortear a humanidade. A receita para haver emprego e renda é produzir e consumir mais. O problema é que os recursos naturais disponíveis na Terra são insuficientes para sete bilhões de pessoas viverem como o bilhão e meio de chineses e americanos.

Não bastasse a natureza das formigas, que não sabem viver sem trabalhar, há um aspecto ainda mais primitivo, que também é das cigarras: ambas não podem viver sem comer. Que fazer?

Uma ideia começa a reunir gente boa pelos quatro cantos. Não é propriamente nova, mas cresce aliada às circunstâncias e experiências contemporâneas. Melhor ainda, une gente que historicamente discorda sobre quase tudo.

Socialistas e capitalistas, conservadores e progressistas, esquerdistas, direitistas, centristas, isentões e, sobretudo, cigarras e formigas convergem sobre a saída pela renda básica universal.

No Brasil, o militante número um é o vereador paulistano Eduardo Suplicy, que passou décadas no Senado Federal repetindo a cartilha, conquistou avanços e reconhecimento internacional. Recentemente, ele esteve nos Estados Unidos para a Brazil Conference, organizada pela Harvard e pelo MIT, e topou com um aliado improvável: Olavo de Carvalho, oráculo da chamada “nova direita”.

A ideia é que as nações garantam a cada um dos seus cidadãos uma renda básica. Do Jorge Paulo Lemann ao mais pobre dos brasileiros, todos receberiam o numerário. E gastariam como bem entendessem.

Mas, quanto isso custaria? Não dá para precisar, porque depende do modelo. Porém, uma coisa é certa: nada pode custar mais caro do que a pobreza.

E de onde sai o dinheiro? Bom, primeiro o Estado economiza com os males causados pela pobreza, que começam com a saúde, nutrição (o filho da babá), passam pela educação (evasão escolar, impossibilidade de aprender com fome e outras preocupações), fiscalização dos programas seletivos de transferência de renda (ver Eu, Daniel Blake), a Previdência como um todo (algo mais atual?) e o aumento da marginalidade.

Alcança a própria democracia, com a melhora da representatividade pela diminuição do clientelismo, que arrefece a corrupção, aumenta a noção cidadã, gera coesão social com limites para a desigualdade e faz justiça valorizando financeiramente trabalhos fundamentais que não são remunerados, como o da dona de casa, do parente cuidador de idosos, do serviço voluntário.

Mais: programas parciais de transferência de renda, como o Bolsa Família, provam que, botando dinheiro em circulação, a economia cresce e, com ela, a arrecadação de impostos.

É legítimo ganhar sem trabalhar? Sim, e são muitos os casos. Aposentados ganham. Trabalhadores rurais, mesmo sem terem contribuído com a Previdência, recebem auxílio na velhice. Pescadores contam com o Seguro Defeso. Uma fazenda arrendada, um imóvel alugado, ações e outras aplicações financeiras, geram renda sem a contrapartida do trabalho. E nenhum dos casos é motivo de vergonha.

A felicidade enquanto ativo também deve ser considerada. Tristeza tem um custo social altíssimo. A renda básica permitiria às pessoas exercerem sua vocação, trabalharem e contribuírem com o que podem fazer melhor, sem se desesperarem por qualquer salário. O aumento da qualidade dos serviços está diretamente ligado ao aumento da qualidade dos produtos e, consequentemente, à diminuição da necessidade de tantos recursos naturais para alimentação, vestuário, moradia, transporte.

Isso também diminuiu o risco da inflação de preços. O consumo consciente é próprio de quem precisa de menos. Duvida? Vá ao supermercado com fome e faça o teste.

Competição sempre haverá, inclusive financeira. Só que seria mais saudável, ou minimamente mais ampla ante a possibilidade de não desperdiçar talentos. Mordomos ingleses têm paixão pelo seu ofício. Estudam, preparam-se, se dedicam à excelência. Bilionários pagam caro e com prazer pelo seu trabalho.

Quantos bons médicos a sociedade perde todos os anos para a dificuldade que cinco anos de dedicação exclusiva à universidade exige? Com a renda básica, eles se multiplicariam. Assim como os artistas e os esportistas. E — por que não dizer? — os bebês, cada vez mais raros no Ocidente.

Bom, já vou longe e creio que está explicado. A equação da formiga e da cigarra foi invertida. O esforço de grande parte das formigas só encontra razão de ser na necessidade de fazer girar a roda da economia e, mais distante, mas não menos importante, na memória afetiva de alguns serviços. Quer dizer, tem muita formiga fazendo papel de cigarra e não se dá conta. A renda básica universal pode botar as coisas em seus lugares e merece ser debatida.

#27PerspectivasAmarello Visita

Amarello Visita: Petit H

por Tomás Biagi Carvalho

Pascale Mussard é diretora criativa da Petit h desde 2009. Descendente da família Hermès, foi diretora artística da casa junto com seu primo Pierre-Alexis Dumas por muitos anos até iniciar a Petit h, um projeto em que reutiliza e transforma os materiais descartados pela casa-mãe em peças de design e obras de arte.

Conte um pouco a respeito de seu background criativo e de como seu trabalho com upcycling começou.

Atribuo o conceito da Petit h à minha educação. Meu pai era arquiteto. Minha mãe era uma mulher extremamente criativa, uma viajante extraordinária, uma contadora de histórias formidável, sempre pronta a andar pelo mundo de mochila nas costas, descobrindo materiais, em uma época em que poucos viajavam. Os meus avós também me influenciaram. Sempre tive à minha volta pessoas muito criativas, inspiradoras na sua forma de vida. Quanto ao upcycling, penso que ele surgiu de dois fatores. O primeiro foi que eu nasci logo depois da Segunda Guerra, num momento extraordinariamente feliz, após um longo período de carência, em que não era possível encontrar produtos nem materiais no mercado, e tudo o que estava disponível tinha uma importância enorme. Nasci num momento em que o sentimento predominante era de que tudo devia ser guardado e reutilizado, dada a escassez. O segundo foi minha educação protestante rigorosa, na qual não se jogava nada fora, achava-se beleza em tudo e tudo se guardava. Desenvolvi isso naturalmente, já que na minha casa era assim. Eu me lembro que, quando minha bisavó recebia cartas, ela rasgava os envelopes cuidadosamente, com precisão, depois os virava do avesso e guardava para usar como papel de rascunho. Ela guardava tudo! Mais tarde, a vida me levou para trabalhar em diversos lugares do mundo, e eu sempre trouxe e fui guardando objetos, não sei se pensando em dar-lhes algum uso ou apenas como lembrança. Sou muito ligada à ideia de explicar demonstrando, e tive a sorte de começar na empresa em um momento crucial, nos anos 70, quando o jeito de trabalhar, tanto para os artesãos como para a empresa, era muito diferente. O tempo passou rápido, e eu não podia imaginar, no início, que iria utilizar todos esses objetos 40 anos depois. Com o acúmulo de 35 anos de experiência na Hermès, pensei que seria interessante realizar este projeto que trago comigo desde sempre. Foi assim que surgiu a Petit h.

De onde parte seu processo de criação?

Para começar, é preciso que eu diga a verdade: eu desenvolvi o projeto e o executei, durante um ano, totalmente em segredo. Na época, pedi ajuda a um criador que não trabalhava na Hermès, Gilles Jonemann, e com ele fui visitar todos os ateliês da Hermès, desde a cristaleria Saint-Louis, a Nontron para a porcelana e o esmalte, Lyon para a seda, a Le Mans para a crina de cavalo e, obviamente, os ateliês que trabalham o couro. Eu e Gilles percorremos, em seu carro, todos os lugares que conhecíamos e fomos selecionando e juntando materiais. Durante um ano nos encontramos, quase sempre nos finais de semana, e criamos cem objetos que iriam representar a Petit h. Com o projeto em mãos, eu tinha a ideia de apresentá-lo à família, aos criadores, ao departamento jurídico e à direção da empresa. O processo de criação tinha sido inverso ao que se pratica, e eu não queria alterá-lo. Num processo normal, para fazer uma coleção, o criador parte de um tema, de uma ideia, de uma cor, e só então vai atrás dos materiais para criar seus objetos, inventá-los. No caso da Petit h, era o contrário: primeiro eu juntei os materiais e depois criei a partir deles. É algo realmente diferente pensar num objeto e escolher o seu material ou ter o material e pensar num objeto. Era algo muito novo para a Hermès, e eu não queria abrir mão desse processo porque tinha intuitivamente o sonho de reunir num mesmo lugar todos os setores da empresa. Sempre achei que isso os estimularia. E agora, depois de alguns anos, vejo que eu tinha razão. Colocando alguém que trabalha com ourivesaria do lado de alguém que trabalha com seda, com couro, com cristal, eles poderiam desenvolver, juntos, projetos comuns. Eu pensava que a transversalidade e a reunião de mãos muito habilidosas e experientes com a ideia de misturar os materiais, de inventar novos materiais pela transformação, poderia criar um projeto inovador para a empresa. Porque eu penso que uma empresa como a nossa deve se questionar a cada momento. Penso também que só a educação e a experiência nos impedem de cometer erros no futuro. Eu acreditava que seria muito importante para a Hermès que toda essa variedade de expertise fosse tão conhecida quanto aquilo que já se conhece, como o couro e algumas bolsas, a seda e alguns lenços, honrando, assim, a diversidade de criadores da empresa. E uma última coisa: há uma equipe específica da Hermès da qual quase nunca se fala, e que são pessoas essenciais: os “caçadores de tesouros”, aqueles que vão atrás dos materiais mais incríveis. Você faz parte disso como brasileiro curador. Há, sem dúvida, no Brasil, materiais interessantes como a madeira ou o capim-dourado — material com o qual sonho trabalhar desde a primeira vez que fui para lá. Eu gostaria de fazer algo de um outro jeito e ainda não consegui. Mas tenho o capim-dourado no ateliê, e talvez um dia nós o trancemos com crina, com couro. Entende? Isso é conduzir a Hermès para o futuro.

Conheço sua busca por novos talentos, artistas e artesãos jovens para desenvolver projetos específicos dentro da Petit h. Essa busca é uma oportunidade para você de ver o mundo por uma perspectiva diferente? O que eles te trazem?

A busca por novos talentos sempre foi uma coisa que me interessou. Eu gosto de ver o que os jovens fazem nas escolas. Num primeiro momento, eu ia às entregas de prêmios de final de ano das escolas de moda e design. Depois, comecei a ser convidada a fazer parte do júri dessas escolas, e sempre fiquei impressionada de ver talentos extraordinários, principalmente pela criação totalmente livre. Na escola, nós temos toda a liberdade. Depois, quando entramos numa empresa, ficamos um pouco mais formatados. Eu realmente gosto dessa ideia de surpreender, e com muita frequência fico surpresa com o nosso trabalho. Desde 1987 que, todo ano, temos um tema na empresa que nos guia. Este ano, o tema é “objetos para a vida”. Em outros anos, tivemos temas como metamorfose, natureza, (…). Esse tema nos serve para olhar para a Hermès de um outro ângulo, mantendo a Hermès do jeito que é, mas sob um olhar diferente. Por exemplo, o ano da África nos trouxe novas cores, novos materiais; o ano do Extremo Oriente e Japão nos trouxe um certo rigor. Penso que, com a Petit h, o que esses “jovens menos jovens” me trazem é a escuta, é observar a maneira como eles reagem. É interessantíssimo, porque há alguns criadores que ficam desconcertados com o processo proposto, eles não entendem muito bem, pois o processo toma um tempo maior, exige mais. Por outro lado, há certos artistas que convido porque sei que vai ser fantástico, que eles vão trabalhar o couro, o cristal, de um jeito diferente. Normalmente eu apresento um material que tenho certeza que se identifica com o artista, e quase sempre eles acabam escolhendo outros materiais. Já nem me preocupo mais com essa questão, porque todos os artistas acabam trabalhando bem com qualquer material. Então acaba existindo uma troca onde damos ao artista a possibilidade de trabalhar materiais distintos e também criamos peças bonitas. Essa troca é muito importante para mim. Aprendi com o tempo que as coisas se desenvolvem quando há bastante verdade e generosidade. No ateliê, os artesãos estão em diálogo direto com os criadores, algo atípico para uma empresa como a nossa. O que eu tentei implementar é que ambos estejam no mesmo nível de escuta: que o criador compreenda o artesão, que o artesão compreenda o artista, que a forma como a empresa trabalha, desde a preocupação com o detalhe à perfeição das peças, tão importante para os nossos artesãos, seja compreendida e respeitada pelo criador que entra para a Petit h. Tudo isso leva muito tempo. O processo é longo e é diferente para as duplas criadas e os materiais usados. Todo esse processo me trouxe uma alegria imensa. Quando eu comecei, em 2009, tinha cinco criadores e um artesão e meio. Agora temos vinte [artesãos] e mais de cem criadores! Em 2009, não sabia para onde iria. Eu esperava estar aqui falando com você! (risos)

Como foi, para uma empresa como a Hermès, o nascimento da Petit h e sua nova perspectiva de negócio?

É claro que no início foi difícil para uma empresa como a nossa. Afinal, é difícil imaginar um projeto que fala de encontrar beleza naquilo que a empresa não quer mais e entende como imperfeito. Mas eu espero que, com tudo o que já foi feito, eu tenha tranquilizado a empresa. A ideia nunca foi fazer uma coleção com menos excelência e perfeição. No entanto — e é o que eu tento explicar — um pedaço de couro que não foi utilizado para um objetivo, por exemplo, uma bolsa, pode ser utilizado em alguma outra coisa. Eu sempre tive a convicção de que, além dos artesãos que já trabalham conosco, a empresa iria também ficar tranquila, apesar dessa ser uma discussão interminável. Eu conheço bem o couro, mas não tão bem quanto os artesãos. São eles que me dizem: “não tem como utilizar esse couro porque para uma bolsa ele é muito mole”. Aí surgia um projeto de um artista que precisava de um couro liso, mas muito maleável, e eu me lembrava do couro descartado. Para ser sincera, apesar de todos os obstáculos, a Hermès acabou por me deixar construir a Petit h. Julgo que eles ficaram curiosos. Eu penso cada vez mais que é algo que é compreendido. Para mim, de todo modo, era realmente uma necessidade, uma obrigação, uma responsabilidade. Eu achava que eu devia fazer esse projeto porque sentia que era necessário olharmos para todos esses materiais abandonados e esquecidos e criarmos algo com eles. Com o crescimento da Hermès, o processo se acelerou e, como em todos os lugares do mundo, as coleções se engajaram. Ao fazermos objetos para a vida, com materiais de qualidade e durabilidade para uma ou mais vidas, devemos considerar os materiais como um todo, pois esse é o nosso código genético. Também temos um segundo ponto, do qual falamos com muita frequência na Petit h, que é imensamente importante para mim: como podemos imaginar a empresa no futuro? Que materiais usaremos? E se amanhã não tivermos mais couro, ou não pudermos utilizá-lo porque precisa de muita água? E se não tivermos mais seda? Por um momento, isso aconteceu na Hermès; a seda chinesa se tornou uma seda de menor qualidade. Agora cem por cento da nossa seda é produzida no Brasil. Nunca se sabe. E se as pessoas que cultivam as amoreiras e a seda desaparecerem, que materiais utilizaremos? Então o tema da reutilização é paralelo a um outro tema que para mim é muito importante: a inovação, a reflexão sobre os materiais. E se não conseguirmos matéria-prima natural? Além disso, também é muito importante para mim o trabalho manual, que deve ser preservado. Aliás, em 2009, para responder à sua pergunta, a empresa queria que eu tentasse [o projeto Petit h], mas eles não estavam nada seguros disso — éramos três pessoas apenas. Mas agora se vê bem, em 2017, que cada vez mais os jovens (eu adoro as novas gerações, mesmo as mais novas que os meus próprios filhos) estão voltando à ideia de fazer as coisas por si mesmos. O trabalho manual está reaparecendo. Eu penso que o homem é feito para isso, para saber fazer suas próprias coisas. Apesar da nossa empresa ser sempre associada a uma ideia de luxo, acredito que nós somos uma manufatura. Melhor, nós somos uma bienfacture [palavra suíça que significa realizar trabalhos de boa qualidade]. Somos artesãos, e eu me orgulho disso. E é preciso imaginar um artesão contemporâneo, um artesão do futuro. Quando eu comecei na Hermès, há quarenta anos, o couro era cortado à mão, depois tivemos os vazadores de couro, e hoje usamos máquinas chamadas Teseo. Com a Petit h, eu tentei cortar o couro com jato de água, com laser… No início me diziam que seria impossível, e foi trabalhando com outros materiais que eu tive a ideia de utilizá-los para o couro. Um laboratório é um campo infinito de reflexão, e eu acho que, de novo, para uma empresa como a nossa, me alegra muito transmitir essa paixão e tentar não interromper essa história magnífica. Ela foi transmitida familiarmente pela minha família e pelos nossos clientes: é incrível ter clientes que trazem objetos para consertar, objetos que pertenceram a seus avós, a seus bisavós! Nós retomamos um processo de criação, de fabricação, às vezes quarenta, cinquenta, sessenta, cem anos depois, e é isso que faz a nossa empresa. Então, respondendo à questão, eu acho que é interessante que nos questionemos sobre os materiais, sobre os materiais abandonados, sobre upcycling. Eu sempre ouvi dizer que nós fazíamos objetos que se tornam nobres com o tempo, que o tempo se encarrega das coisas. Na verdade, a Petit h me permite testar novos formatos. Porque as pessoas vivem de um jeito diferente e, até pouco tempo atrás, não sabíamos consertar nossos objetos e os jogávamos fora para comprar outros. Era cíclico. É isso que me interessa.

Qual você acha que será o futuro do capitalismo?

Oh là là! (risos) Ontem eu estava num trem lendo um jornal distribuído gratuitamente, e nele tinha um artigo falando sobre um estudo que a CIA fez no mundo inteiro sobre as próximas duas décadas. Esse estudo foi feito e foi colocado na mesa do Trump. Tem uns vinte pontos, mas nesse jornal apareciam somente dez, que falavam de desenvolvimento sustentável, da ascensão do populismo, dos jovens, do capitalismo. Claro que precisamos considerar que o estudo foi desenvolvido pela CIA para os Estados Unidos, mas não deixa de ser atual e um reflexo da sociedade. Ao lê-lo, achei um pouco duro demais, pessimista. Penso que os jovens que eu encontro, a geração que está surgindo, está muito à frente. São muito maduros em alguns temas, menos noutros, mas, por conviver com eles, tenho boas esperanças. Talvez as mudanças não se façam na geração dos meus filhos, mas acredito que ocorrerão na seguinte. Acho que a natureza do mundo faz com que as coisas sejam extremas em alguns momentos. Talvez este ciclo que estamos vivendo tenha ido longe demais, com todas estas crises pelas quais estamos passando neste momento. Mas elas são como a natureza.

Você quer saber por que eu tenho esperança? Porque eu acho que o pequeno exemplo da Petit h, o fato de jornalistas virem me ver, de eu receber diversos prêmios, mesmo sendo apenas uma pequena tentativa de falar em alto e bom som sobre o que faz a beleza do mundo, é um exemplo, e me faz acreditar num futuro mais calmo. Talvez eu não esteja aqui para vê-lo, mas eu acredito. Existem iniciativas como a minha pelo mundo afora. Meu filho Maxime faz parte de um projeto com a AFP [Agence France-Presse, agência de notícias francesa] para que todas as manhãs os assinantes acordem com boas notícias, apenas boas notícias, só isso. Mas as boas notícias são as iniciativas, as coisas que podem fazer a diferença, não que a rainha da Inglaterra teve mais uma neta — enfim, essa é uma boa notícia também, mas… No lugar de ter boas notícias, você acorda de manhã e fica sabendo de tudo o que acontece no mundo. Não significa que temos que fingir que isso tudo não existe, porque você deve conhecer a realidade… Mas, por exemplo, atualmente só se fala do sujeito que cortou a família em 45 pedaços. Mesmo assim há uma melhora, há iniciativas que vão fazer com que pensemos de outro jeito. Esse é o meu lado positivo (risos). Eu acredito.

Como você acredita que seu trabalho pode vir a influenciar o mundo e as futuras gerações?

Ah, não é para tanto. Seria demais para mim. Espero simplesmente que o meu trabalho influencie meus filhos. É uma experiência com a qual gostaria de demonstrar que não é possível ter algo valioso na vida sem trabalhar, que é preciso ter bom senso e vontade. Espero também influenciar a empresa — eu vejo que já está acontecendo, a empresa já está trabalhando de um jeito diferente. Depois, para o mundo, se o meu trabalho for copiado, eu ficaria contente, pois isso significaria que é uma boa ideia. Meu objetivo é também transmitir paixão pelo meu trabalho. Com frequência eu falo para as pessoas que eu encontro: “espero que você tenha na sua vida a sorte que eu tive, de gostar do seu trabalho tanto quanto eu gosto do meu”. E, no entanto, eu não sei fazer nada, não sei costurar, não sei desenhar, não escrevo bem, nada disso, mas eu tenho a sorte de proporcionar encontros. Eu gostaria muito de fazer com que as pessoas se sintam felizes e orgulhosas do trabalho delas. Mas influenciar o mundo…

Qual você acha ser o papel das artes neste momento de tanta ambiguidade em que vivemos?

Para mim, não é apenas neste momento. Acho que a arte é realmente essencial, porque nos traz reflexões. Veja bem, se tem uma coisa pela qual sou grata à família em que eu nasci, é que eu tive à minha volta pessoas que me pegaram na mão e que me deixaram fazer minha própria educação artística. Mas também tive sorte, nasci num bairro em que pude frequentar escola pública, e perto da minha casa tinha a escola da Opéra de Paris, o Conservatório de Música e o Conservatório Dramático. Então eu e minhas amigas mais próximas íamos à escola de manhã e, à tarde, íamos à Opéra para dançar e ter aula de música. De noite, havia concertos, ópera, teatro, cinema. É óbvio que isso fez com que eu me interessasse pela arte. Mas, além disso, os artistas são aqueles que nos fazem reagir, gostemos ou não do que fazem. Eu, quando as coisas não estão bem, vou ver uma exposição. Agora, por exemplo, eu estou com muita vontade de ver uma exposição em Londres, na Royal Academy, chamada Revolution, sobre a criação artística na Rússia entre 1922 e 1930, a história de todos esses russos que inventaram uma nova arte. Olhando o catálogo e me colocando naquela época, fiquei pensando que essas pessoas não foram reconhecidas imediatamente, mas elas, através da arte, falaram, reagiram, inventaram. A arte é realmente abrir portas, e pode fazer despertar coisas incríveis. A arte é essencial.

O que mais te satisfaz no seu trabalho?

Quando eu comecei a Petit h, eu comecei com um artesão. E esse artesão trabalhava na Hermès há uns dez, quinze anos. Era alguém que estava sempre lá. Fazíamos e adorávamos nossos objetos. E um dia, uma manhã, eu cheguei no ateliê e perguntei: “O que foi que aconteceu? Você mudou. Cortou o cabelo? Emagreceu, engordou?”. Ele tinha mudado realmente. Eu disse: “Encontrou uma namorada?”. E ele me disse: “Não, sou casado há bastante tempo”. “Então você vai ser pai”. Tinha realmente alguma coisa que havia mudado. E aí ele me disse uma coisa que me emocionou imensamente: “Eu estou realmente muito feliz. Eu me levanto todas as manhãs empolgado para chegar no ateliê”. O que mais me satisfaz é o retorno dos artesãos, mesmo daqueles que não trabalham na Petit h e que, depois de um tempo, me dizem: “eu adoraria trabalhar na Petit h”. Também tem a satisfação de que objetos, por exemplo, de Nathalie Dewez ou de Julio Villani, estejam nas nossas vitrines. É a satisfação de que as coisas estão avançando, estão sendo entendidas. É uma alegria indescritível. Além disso, cada objeto, para mim, é como uma coisa viva, porque são pessoas. Eu adoro quando recebo um recado de uma cliente que diz “eu estou usando!”. É esse o prazer. Eu me lembro da primeira vez que colocamos os objetos da Petit h à venda, na loja da Rue du Faubourg Saint-Honoré. Eu disse para as minhas irmãs: “Vou dar dinheiro para vocês virem comprar, porque eu quero continuar esse projeto. Venham, comprem!”. E não foi preciso. Foi uma grande satisfação, talvez tenha sido a melhor: a de ter podido ter um sonho e de realizá-lo.

Quais são seus planos para o futuro?

Para o futuro, eu espero que a Petit h cresça, mas que continue pequena. De verdade. E que depois eu a deixe nas mãos de alguém que vá continuar a aumentá-la da sua maneira. E, pessoalmente, eu gostaria muito de aprender a trabalhar com cerâmica, que eu adoro. Meu próximo projeto é aprender o português do Brasil. E me dedicar um pouquinho mais ao que eu faço em uma escola chamada Out of the box, em Bruxelas, que ajuda crianças com problemas escolares, mas que são brilhantes, e que não têm um contexto social que as ajuda a se desenvolverem. Eu também sou presidente da Villa Noailles, em Hyères, e lá eu espero ampliar os projetos. Já existe o Festival da Moda, o Festival do Design. Quero conectar, ajudar a descobrir fotógrafos, criadores, designers, e continuar nesse cruzamento entre criação e arte. Eu nunca entendi bem essa fronteira entre artesão, artista, criador, designer. Acho que nós colocamos as pessoas em caixinhas, e pode haver um artista que venha a ser um ótimo designer, um designer que pode desenhar ou pintar muito bem. Quero estar sempre no encontro desses vários mundos. E continuar a viajar, porque é algo que adoro.

Quais são suas referências? Quem, ou o que, te inspira?

Ah, tem realmente muitas coisas que me inspiram. Pode ser alguém que eu encontro na rua, uma vitrine, um quadro, o Julio Villani. O que eu gosto, em especial, é quando pessoas que me conhecem bem me dizem “vá ver isso, vá ver aquilo”. É uma coisa que me diverte, porque raramente me decepciono. Muitas coisas me interessam. Trabalhar em jardins, por exemplo, não é algo que eu conheça muito bem, mas acho interessante, porque é um mundo todo ali: colocar as sementes na terra, ver crescer, cortar, viver com a natureza, o seu ciclo. Eu acho esse trabalho de uma humildade incrível. Mas, ao mesmo tempo, me interesso por coisas tão sutis como criar um perfume difícil, ou com a escrita. E ter a sorte de encontrar pessoas que têm a arte da alegria, da felicidade. E, claro, tem os artistas, os artistas me inspiram enormemente. Acabei de voltar da Coreia, e lá eu vi pessoas que trabalham o papel de um jeito extraordinário. Vi recentemente uma exposição de Larsson [Carl Larsson, pintor sueco] que me deixou maravilhada. Eu sempre adorei Calder [Alexander Calder, escultor americano]. Gosto das coisas leves e móveis, sou apaixonada pelas cores. Muitas, muitas coisas me inspiram. Estou feliz, porque durante toda a minha vida eu pensei que eu gostaria muito de ser como a minha avó, que me inspirou muito — ela morreu aos cem anos cheia de desejos. Eu penso que a pior coisa que poderia me acontecer é não ter mais desejo, ser blasée, acreditar já ter visto tudo, ouvido tudo. Um filme, uma música. No último sábado, fui ver um pianista que eu nunca tinha ouvido de verdade, chamado Sokolov [Grigory Sokolov, pianista russo], e durante a primeira parte eu estava entediada, fiquei me perguntando “mas por que este homem é tão famoso?”. Porque é claro que ele tocava extraordinariamente bem, afinal é um dos melhores pianistas do mundo. Era normal que tocasse bem, mas não me emocionava. E então eu ouvi a segunda parte e fiquei boquiaberta, era realmente magnífico. Depois as pessoas pediram bis, ele voltou e tocou — a essa altura ninguém mais se mexia, duas, três, quatro, seis vezes ele voltou, uma hora e meia de bis. Foi extraordinário, e desde então eu estou meio aérea. Fiquei pensando que os artistas, para responder à pergunta, são pessoas extremamente generosas, que ultrapassam esta dimensão. E estes contatos me fascinam.

#27PerspectivasArteMúsica

Tramundo

Construir outras paisagens,
outros cenários imaginários,
não somente para encontrar lugares
mas sobretudo para localizar-se.

Ricardo Basbaum

Tramundo teve início no Natal de 2014. Era para ser apenas uma canção. Meu presente para Jorge. Naquele ano, nós decidimos criar presentes imateriais, guardados apenas pela memória, pelo afeto. A canção, que mais tarde viria a se chamar Desterro, falava sobre a incapacidade de lidar com a saudade da terra natal — a querência — e sobre Nanã, a orixá da lama, da vida e da morte. A música acabou não ficando pronta a tempo. Entretanto, trabalhar com esses temas despertou em mim um desejo imenso de pesquisa e aprofundamento. E o que, a princípio, era uma lembrança, se tornou um longo projeto cujas proporções só agora pude assimilar.

No começo, pensei em criar uma cidade fictícia do interior, localizada no Sul do Brasil e povoada, em sua maioria, por negros de descendência iorubá. Uma terra onde eu pudesse desenvolver narrativas que envolvessem tanto a cultura de matriz africana quanto os arquétipos e fábulas relacionados ao inverno e ao frio. Jorge era do Sul e vivia me contando da importância da comunidade negra em sua terra, Porto Alegre. Entretanto, senti um pouco de desconforto em lidar apenas com o imaginário gaúcho. Por suas especificidades e pelo meu distanciamento, tanto geográfico quanto cultural, decidi que deveria buscar uma nova abordagem. Dessa ideia inicial, trouxe comigo a questão negra e uma vontade um tanto vaga de trabalhar com cenários ermos e frios. Estes últimos me aproximaram dos filmes de Bergman e de seus diretores de fotografia. Desloquei o Rio Grande do Sul para a ilha de Fårö. Suas paisagens foram certamente a principal referência para o tratamento das fotos da Chapada Diamantina que utilizei nas colagens que fiz posteriormente.

Na tentativa de estabelecer um arcabouço para Tramundo, desenvolvi uma cartografia íntima. Na literatura, fui para Manoel de Barros e dele para Hilda Hilst. Dois poetas que, em maior ou menor grau, sempre estiveram presentes em minhas leituras. Foram eles que me permitiram elaborar, nas letras das canções, um atrito constante entre o ordinário e o sublime. Essa dicotomia, esse embate, permeou todo o projeto. Por conta de Barros, cheguei a Guimarães Rosa. Foi um achado. Nunca havia lido seus livros e foi bem difícil entrar em sua escrita. Comecei com Tutameia e me apaixonei por Miguilim e Grande sertão: veredas. Rosa dialogava muito intimamente com as minhas origens: minha família é natural de Itaperuna, interior do Rio de Janeiro, fronteira com Minas Gerais. Além disso, me fazia recordar constantemente de minha avó, Elza, de quem guardo muitas e boas lembranças (mais tarde, escrevi duas canções a seu respeito: Sete-Estrelo e Nazaré das Almas).

Rosa se configurou como uma das maiores referências de Tramundo, se mostrando o guia mais constante e generoso que eu poderia encontrar em meu trajeto. A partir dele, tive a ideia de que a cidadezinha fictícia que havia imaginado inicialmente se tornaria uma síntese de diversos sertões, de um Brasil não litorâneo e, predominantemente, cafuzo.

Iniciei a leitura de autores que pudessem contribuir com minha narrativa negra e caipira, caso de Aires da Mata Machado Filho, Alceu Maynard Araújo, Cléo Martins, José Ramos Tinhorão, Luís da Câmara Cascudo, Reginaldo Prandi, entre outros. Nesse momento, aprofundei mais ainda os meus vínculos com as religiões de matriz africana, voltando a frequentar terreiros e me relacionando mais intimamente com o candomblé. Dessa pesquisa surgiram as letras de Quibungo, Brejo dos Caboclinhos, Tapera do Besouro Menino, Chapada das Cantadeiras, Sumidouro, Estrada do Cabresto, Galo Tucado e Morro do Cafundão.

O Sul, que parecia ter ficado distante de meu imaginário, ressurgiu quando decidi ler Jorge Luis Borges. Inspirado em seus contos e nos pampas argentinos, escrevi Nuestra Señora de La Cochilla. Também foi da literatura hispânica que tirei a ideia do título do projeto: Tramundo, uma corruptela para Trasmundo, seção de poemas de Canciones, de Federico García Lorca.

A ideia de desenvolver uma narrativa alegórica, que já vinha se fazendo presente desde as primeiras escritas, se tornou irrefutável com a leitura de Esopo e Chamisso. Tendo animais, plantas e fenômenos da natureza como personagens principais, escrevi Rocinha dos Gotejos, Choça das Cigarras e Espinheiro Sabiá.

Ao criar uma geografia própria, também optei por um tempo ficcional, amalgamando os anos 1930, 1940 e 1950. Isso fica claro em duas canções: Boca do Mofo e General Euzébio Corriola. Esta última fala sobre a prisão e a tortura de um intelectual mineiro durante o Estado Novo (1937–1945). A temática surgiu por conta do livro Primo Levi, a escrita do trauma, de Lucíola Freitas de Macêdo. Foram os campos de concentração da Segunda Guerra que me conduziram aos presídios de Vargas e à Era de Ouro do Rádio.

Paralelo a leitura e escrita, fui em busca de uma identidade sonora para o disco. Cheguei a ouvir um pouco de música caipira, mas não consegui me identificar completamente, exceto por Pena Branca e Xavantinho, duas figuras monumentais que, desde a minha infância, me causavam encantamento. Meu sertão só começou a ganhar forma quando me debrucei sobre os discos de Elomar, Naná Vasconcelos e, mais adiante, Joni Mitchell e Nick Drake.

Ainda na dúvida se me apropriaria ou não da estética do frio, optei por ouvir Sibelius. Foi durante uma de suas sinfonias que o YouTube se encarregou de me apresentar ao compositor novaiorquino Morton Feldman. Sua música se converteu na mais constante trilha sonora de minha pesquisa: enquanto, na literatura, era arrebatado por Rosa e seu Grande sertão: veredas; na música, ficava aturdido com as peças de piano de Feldman e sua parceria com Joan La Barbara. A procura por uma instrumentação econômica, mas rica em timbres, me levou ao guitarrista Derek Bayley. Tanto ele quanto Feldman foram essenciais para que eu apurasse minha escuta e desse corpo à Tramundo. Foi neste momento que percebi mais claramente que o disco deveria ser um entrecruzamento do cancioneiro popular com a música folclórica, a música erudita e a de improviso.

Em janeiro de 2016, havia finalmente terminado de escrever as 17 letras. Elas foram, então, enviadas para diversos compositores, entre eles alguns amigos e colegas. Assim, surgiram as parcerias com Antonio Loureiro, Bruno Cosentino, Diogo Sili, Fabio Negroni, Filipe Massumi, Joana Queiroz, Luiza Brina, Mario Ferraro, Ná Ozzetti, Pedro Carneiro, Renato Frazão, Thiago Amud e Zé Manoel. Enquanto estes desenvolviam as canções, comecei a dialogar com artistas que viriam a constituir o núcleo duro do projeto, formado por Claudia Castelo Branco, Fred Ferreira, Lívia Nestrovski, Marcos Campello, Mario Ferraro e Zé Manoel.

A partir daí, tratei de desenvolver o material gráfico de Tramundo. Ainda em sua primeira fase, discuti algumas vezes com Jorge a respeito de como me apropriar de paisagens que só tive contato em minha infância. A ideia inicial era fazer uma espécie de deriva pelos sertões do país e registrar essa jornada. Entretanto, a falta de recursos e o meu pânico em viajar com um equipamento fotográfico tão caro me fez desistir dessa ideia. Obrigado a desenvolver um plano B, dei conta que todo o meu trabalho partia de apropriações e de uma sobreposição de narrativas. Jorge havia recém-chegado de uma residência na Chapada Diamantina e, pouco tempo depois, o local foi tomado por uma série de incêndios, se transformando em assunto constante nos telejornais. Fui à procura de registros de turistas que, tendo visitado a região, publicavam suas fotos em sites pessoais ou de turismo. Após seleção e tratamento, iniciei as colagens. Nesse processo, me inspirei em Lewis Baltz e, principalmente, Bergman e Richard Long. Por essa época, reencontrei Daniela e Ricardo, dois amigos que não via há algum tempo. Ricardo estava com um trabalho na Caixa Cultural. Fiquei muito interessado e decidi ler alguns de seus textos. Foi o que me levou a aprofundar a ideia de cartografia, paisagens e mapas. Um outro amigo, Luis, ao vir em minha casa e observar a parede repleta de colagens e anotações, me apresentou ao Atlas Mnemosyne de Warburg. A semelhança com o que eu vinha fazendo me motivou a olhar com mais atenção para dois projetos gráficos que havia desenvolvido anteriormente e que foram recusados: o primeiro, uma série de colagens de negros (em fotos de Augusto Stahl e Alberto Henschel) sobrepostos a mapas; o segundo, um díptico composto por figuras geométricas criadas a partir de cálculos renais e cujo resultado remetia às pinturas de Rubem Valentim. Os dois trabalhos dialogavam bastante com as colagens da Chapada Diamantina e foram incorporados a Tramundo.

Ao agrupar o material gráfico, percebi que o projeto ganhara uma nova dimensão, ou melhor, uma nova narrativa, tão importante quanto a musical. Entendi que, juntamente com o disco, se fazia necessário a publicação de um livro onde fossem incluídos todos esses trabalhos, como uma espécie de arquivo ou atlas que revelaria um outro percurso para Tramundo.

No final de janeiro de 2016, eu e Jorge nos separamos. Faltava uma semana para o Carnaval. As letras já estavam prontas e comecei a enviá-las aos compositores.

#27PerspectivasEditorial

Editor convidado: Alexandre Villares

por Alexandre Villares

Uma revolução tecnológica e cultural está em curso nas últimas três ou quatro décadas. Você já ouviu falar em Software Livre, Open Source e termos como Copyleft? Quem transita pela chamada economia criativa talvez tenha ouvido falar de Creative Commons, uma ONG que produziu um conjunto de licenças inspiradas no movimento do Software Livre, que utilizam a infraestrutura do direito autoral tradicional visando fomentar a difusão cultural e o compartilhamento do conhecimento.

Todo mundo provavelmente já usou material publicado sob licenças Creative Commons e possivelmente não percebeu. A Wikipédia, o acervo digitalizado da revista Acrópole, ou o material de aula dos cursos do MIT tornado público numa iniciativa conhecida como OpenCourseWare são alguns exemplos.

Muitas pessoas já ouviram falar em Linux, ou no Linus Torvalds. Mas e Richard Stallman, do projeto GNU e da licença GNU Public Licence — GPL, sob a qual o kernel (núcleo) Linux é distribuído? A esmagadora maioria dos computadores que fazem a infraestrutura computacional das grandes empresas e da Internet (nuvem é um nome bobo para o computador dos outros) roda GNU/Linux.

Licenças de software são um assunto técnico pesado, e não sou advogado, mas aguentem firmes! Vamos começar com a definição de Software Livre, as quatro liberdades fundamentais, contando a partir da liberdade 0 (zero), como os programadores gostam.

A liberdade de executar o programa, para qualquer propósito (liberdade 0);
A liberdade de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo às suas necessidades (liberdade 1) —
para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito;
A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar ao próximo (liberdade 2);
A liberdade de distribuir cópias de suas versões modificadas a outros (liberdade 3) —
desta forma, você pode dar a toda comunidade a chance de se beneficiar de suas mudanças. Para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito.
(definição de Software Livre da Free Software Foundation)

Tanto esta definição como a definição de Código Aberto, criada por outra vertente de pensamento chamada Open Source Initiative , citam o código-fonte. O que vem a ser isso? O código-fonte é a versão legível por humanos de um programa, que pode ser convertida, compilada ou interpretada, para a execução pelo computador.

As licenças de software livre e aberto, não proprietário, são permissões para execução, modificação e livre compartilhamento de programas. Se dividem em duas principais categorias, com copyleft ou “permissivas”¹ , mas sempre pressupõem o acesso ao código-fonte.

Programas são instruções escritas em uma linguagem de programação para que um computador execute. Todos partem de instruções simples que podem ser combinadas para implementar ações mais complexas e algoritmos.

Um algoritmo nada mais é do que uma lista passo a passo de instruções que, caso executadas, resolvem algum problema em um número finito de passos. Na escola, aprendemos algoritmos para somar, subtrair, multiplicar e dividir números com lápis e papel.

É recorrente para mim um sentimento que remete à famosa palestra As duas culturas² do cientista e escritor inglês C.P. Snow (1905–1980), exasperado com o cisma entre as ciências e as humanidades. Uma nova divisão entre programadores e não programadores seria mais um indício da perda de uma cultura comum?

Rushkoff, no seu provocativo Program or be programmed (programe ou seja programado), promove a ideia de que uma nova “alfabetização em programação” é essencial. Muitos defendem o ensino de programação cedo nas escolas. O currículo nacional britânico de 2014 introduz ciência da computação.

Artistas, designers e arquitetos que se tornaram programadores não são tão incomuns. Alguns se tornam programadores no sentido tradicional, trabalham com programação full-time, outros apenas acrescentaram a programação às suas habilidades e a incorporaram ao seu métier. Yorik van Havre, por exemplo, é um arquiteto-programador que mora em São Paulo e esteve recentemente envolvido no projeto do WikiLab, a ser construído com técnicas de fabricação digital num terreno cedido pela UFABC, e é, ao mesmo tempo, um dos principais desenvolvedores do FreeCAD, software livre para projeto (incluindo arquitetura).

Poderia citar aqui uma dúzia de arquitetos amigos e conhecidos que programam. Talvez minha amostra seja um pouco enviesada, uma vez que promovo, com a artista-programadora responsável pela capa desta edição, um encontro mensal sobre arte e programação intitulado Noite de Processing, cujo nome é homenagem a uma ferramenta de programação, desenvolvida em código aberto/livre.

Assim como outros associados e frequentadores do Garoa Hacker Clube, o local que abriga nossos encontros, temos interesse em “fuçar” e transitar pelos mais diversos assuntos tecnológicos, de fabricação de cerveja a criptografia de chave pública³.

Alguns desses assuntos são mais sérios que outros: criptografia se tornou rapidamente uma das ferramentas fundamentais para preservar a privacidade e segurança das pessoas, ao meu ver essenciais para o funcionamento de uma sociedade aberta (em oposição a um regime totalitário).

A privacidade está sendo erodida por governos e grandes mercadores de dados pessoais (como Google, Facebook ou os bureaus de análise de crédito). Uma complexa questão que se interliga com discussões sobre segurança da informação. Ferramentas baseadas em uma infraestrutura criptográfica permitem formas distribuídas de controle e colaboração. É um assunto vasto.

Ao mesmo tempo, formas de autoria e de acesso à propriedade intelectual estão sendo questionadas na arte, na indústria, na sociedade civil organizada, na pesquisa científica. Monica Rizzolli comenta que “um novo paradigma de arte está sendo gerado, nos fóruns, comunidades e plataformas on-line”.

Na campo da arquitetura, colaboração é possivelmente o aspecto mais central da Modelagem da Informação da Construção (BIM, na sigla em inglês), concordaria comigo, acredito, o arquiteto, especialista em BIM, João Gaspar4.

Arrisco afirmar que os artistas-programadores, designers, jornalistas, neurocientistas e linguistas que também sabem programar (assim como muitas outras pessoas que programam mas não são programadoras profissionais, no sentido tradicional) estão em uma posição privilegiada para integrar formas contemporâneas de conhecimento.

Estender, ampliar e modificar ferramentas digitais existentes (inclusive tirando proveito dos glitches); valer-se de grandes massas de dados, de análises estatísticas e métodos de inteligência artificial; lidar com complexidade; criar modelos e simulações5. Tudo isso é possível num contexto de colaboração, usando bibliotecas de código livremente compartilhadas. Colaboração é a perspectiva que temos.


1 – A GPL que mencionei é provavelmente a mais importante licença com copyleft, a obrigação de distribuir qualquer modificação, ou software que incorpore o código, com permissões iguais. É a licença sob a qual é distribuído o sistema operacional GNU/Linux, por exemplo. As licenças permissivas “estilo BSD”, MIT ou Apache (um dos mais populares softwares para servidores web), não têm essa obrigação, o que permite inclusive que versões modificadas sejam distribuídas como software proprietário. É o que a Apple faz ao empacotar com modificações e acréscimos o sistema operacional Darwin, o transformando no MacOS e no iOS.

2 – “A good many times I have been present at gatherings of people who, by the standards of the traditional culture, are thought highly educated and who have with considerable gusto been expressing their incredulity at the illiteracy of scientists. Once or twice I have been provoked and have asked the company how many of them could describe the Second Law of Thermodynamics. The response was cold: it was also negative. Yet I was asking something which is the scientific equivalent of: Have you read a work of Shakespeare’s?

I now believe that if I had asked an even simpler question — such as, What do you mean by mass, or acceleration, which is the scientific equivalent of saying, Can you read? — not more than one in ten of the highly educated would have felt that I was speaking the same language. So the great edifice of modern physics goes up, and the majority of the cleverest people in the western world have about as much insight into it as their neolithic ancestors would have had.

Snow, C. P. The Two Cultures 14–15 (Cambridge Univ. Press, 1998)

3 – Criptografia de chave pública, simplificadamente, é a tecnologia relativamente recente, do séc. XX, que permite criar canais de comunicação seguros entre os participantes, sem um prévio contato seguro entre eles (como o seu navegador e o site do seu banco). Permite também as chamadas assinaturas digitais (como as usadas em uma nota fiscal eletrônica, por exemplo).

4 – GASPAR, João. BIM – IFC sem mistério.

5 – DOWNEY, Allen. Think Complexity: Complexity Science and Computational Modeling.

#27PerspectivasArteArtes Visuais

Artistas-programadores e a automatização da arte

por Patrícia Oakim

Desde o início da computação nos anos 1950 e 1960, diversos artistas vêm realizando experimentos com computadores. Foi nessa época que surgiram as primeiras obras de arte computacional pelas mãos de pioneiros como Frieder Nake, Michael Noll e o brasileiro Waldemar Cordeiro.

Recentemente, a arte computacional vem tomando novas formas nas obras de artistas como Casey Reas, Golan Levin, Aaron Koblin e dos brasileiros Jarbas Jácome e Fabrizio Poltronieri, dentre outros. Esses artistas usam o software como material artístico e as linguagens de programação são seu instrumento de trabalho. Enquanto um pintor cria com tela, pincel e tinta, por exemplo, esses artistas produzem arte com software.

A computação e, consequentemente, o software se expandiram, desde seu surgimento, de maneira a permear diversos aspectos das nossas vidas. Até aqueles que não estão incluídos no mundo digital (por diferentes motivos) são influenciados pelo software, mesmo que de maneira indireta, pois ele está presente no funcionamento da sociedade — no governo, na logística da circulação de produtos, nos mercados de ações, no entretenimento, na comunicação e em tantos outros setores. Vivemos no que Lev Manovich chama de Sociedade do Software. Todavia, nossa interação com o software se dá, na maior parte do tempo, nos smartphones e nos computadores por meio de interfaces que escondem o código-fonte. Assim, nos tornamos apertadores de botões dos diversos dispositivos que alguns poucos sabem como programar.

Contudo, diversos pesquisadores têm procurado, desde o início da computação, criar interfaces, ferramentas e linguagens para tornar a programação mais simples e levá-la para além dos limites da engenharia, facilitando o uso e o aprendizado para pessoas de idades e formações diversas, inclusive artistas. Algumas dessas iniciativas são o Max, o Pure Data, o Processing e o Arduino. Na década de 1980, surgiu o Max, muito usado para composição musical e, principalmente, para performances ao vivo. Na década de 1990, foi lançado o Pure Data, uma versão open source do Max. Em 2001, surgiu a linguagem Processing, destinada às artes visuais. Em 2005, foi lançado o Arduino, um microcontrolador projetado para a programação de interação física entre o ambiente e o computador e muito utilizado em instalações artísticas.

Apesar de o software ser inerente a toda arte produzida ou reproduzida digitalmente, ele é comumente esquecido como um material artístico e um fator na estética da obra. Segundo Cramer e Gabriel, isso acontece devido à progressão do uso dos computadores, que passaram de máquinas acessíveis apenas aos programadores a interfaces gráficas onde se camufla o código que está realmente operando o computador.

Há, no entanto, artistas que trabalham diretamente com linguagens de programação, utilizando o código-fonte como material artístico. E as linguagens que surgiram com o objetivo de facilitar a programação nas artes são muito usadas por esses artistas e por estudantes de arte e tecnologia. Esse tipo de artista que não utiliza somente ferramentas prontas, mas que trabalha diretamente no algoritmo da arte computacional, pode ser chamado de artista-programador. Pensar que um artista é capaz de ser também programador pode, por vezes, causar um estranhamento ou soar como um conceito inusitado. Por que a necessidade de denominá-lo artista-programador e não somente artista, colocando ênfase na técnica utilizada? Uma chave para essa questão pode estar nos conceitos de técnica e tecnologia.

A palavra técnica tem sua raiz na palavra grega téchne, que significa técnica, arte ou ofício. Os gregos não faziam distinção entre arte e técnica. Um escultor ou um sapateiro tinham uma téchne. Já a palavra tecnologia surgiu na combinação dos conceitos de téchne e lógos, que significa racionalidade. Pode ser compreendida, então, como a sistematização de um ofício ou de uma técnica. Esse conceito tem relação com a Revolução Industrial e a produção capitalista, quando técnicas começaram a ser aplicadas com o objetivo de gerar resultados em larga escala.

Sabemos, portanto, com base no conceito de téchne, que nem sempre arte e técnica foram tratadas como conceitos apartados. A separação entre elas está muito atrelada ao surgimento da visão romântica do artista no final do século 18. No romantismo, a arte passou a se referir à subjetividade e à vida interior, enquanto que a técnica passou a ser percebida como mecânica e objetiva. Com uma visão de mundo centrada no indivíduo, nas emoções subjetivas, no sonho e na fantasia, o conceito romântico da arte se opunha à racionalidade e à objetividade. Essa dicotomia tem reflexos até hoje. Não é raro o pensamento de que um engenheiro não tem habilidade para a arte ou de que um artista não sabe matemática. De acordo com Cramer, a separação entre o que é técnico e o que é a inteligência humana subjetiva, ou entre o “gênio” e o “engenheiro”, abriu caminho para as controvérsias que ainda persistem sobre a arte e até que ponto ela pode ser formalizada e automatizada. Daí o estranhamento que pode ocorrer em relação ao conceito de artista-programador, esse artista que domina tanto a estética quanto a técnica computacional.

Um exemplo interessante do século 16 para pensar sobre como a criação de arte e o domínio de técnicas que atualmente pertenceriam ao campo das Ciências Exatas podem estar conectados são os perspectógrafos de Albrecht Dürer, máquinas para facilitar a percepção da perspectiva. Dürer começou a estudar pintura artística aos quinze anos e interessado pelos fundamentos teóricos da arte, dedicou-se também a pesquisar ótica e matemática. Após dominar esses conhecimentos, criou os perspectógrafos com o objetivo de facilitar o aprendizado da perspectiva por artesãos e artistas na Alemanha.

Outro artista que pode nos ajudar a compreender esse universo é o poeta brasileiro Erthos Albino de Souza. Erthos era engenheiro da Petrobrás quando os computadores chegaram ao Brasil e logo se especializou em operar as novas máquinas. Parte do movimento da poesia concreta, na década de 1970, editor da revista Código, Erthos foi um poeta experimentador e para isso utilizava o seu instrumento de trabalho: o computador.

Harold Cohen foi outro artista-programador que trabalhou com computação desde a década de 1970. Cohen criou no início da sua carreira o programa AARON, que utiliza princípios de inteligência artificial para pintar. Cohen programou o AARON para desenhar diferentes formas, desde abstrações até formas figurativas, como elementos naturais e humanos. Foi a parceria entre AARON e Cohen, por quatro décadas, que deu origem à obra do artista.

A arte feita em software levanta questões importantes sobre a automatização da criação artística. Esse tipo de produção traz à tona a tensão gerada por essa relação criativa entre homem e máquina. Uma parte do processo o artista domina, mas outra parte a máquina realiza “independentemente”. A automatização do processo artístico acaba despertando questionamentos sobre a validade da obra de arte e também sobre a sua autoria.

Em 2015, o Google lançou o Deep Dream, um software que utiliza redes neurais para gerar imagens a partir de outras imagens e que acabou provocando uma discussão sobre automatização computacional e arte. Alguns artistas utilizaram a nova técnica na sua produção, como é o caso de Alexander Mordvintsev, que expôs seu trabalho na exposição Deep Dream: the art of neural networks, que aconteceu em 2016 em São Francisco. Na medida em que a computação avança na direção da automatização, com machine learning e inteligência artificial, essa discussão tende a ficar mais acirrada. Se o computador produz a arte, quem a criou? Pode o computador se tornar o artista? Pode a criatividade ser automatizada? Ficamos por agora somente com as perguntas. E produzindo arte.

Foto: Frank Ronan
#27PerspectivasCulturaLiteratura

O inventor do futuro

“Por mais distância que corras,
por mais dias que passem,
do teu coração não conseguirás
escapar.”


Tabu, Miguel Gomes

Estamos no futuro. A Los Angeles de 2019 nasceu do livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968), mas tornou-se popular a partir da adaptação de Ridley Scott para o cinema, em 1982. Blade Runner se cristalizou no imaginário do público ao dar contornos para um medo abafado durante o século XX. E se a aposta cega em tecnologia não nos guiar para um futuro melhor? E se perdermos o controle, como sugeriu Mary Shelley em Frankenstein, e nos tornarmos reféns das próprias criações? E se, quem sabe, o progresso irrestrito nos impuser uma realidade da qual seja impossível retornar?

A ficção científica é a arte de perguntar “e se” e nos entregar respostas improváveis. Neste campo, Philip K. Dick foi a mente mais pródiga por trás das especulações do que a realidade poderia ser. Dick nasceu em Chicago, em 1928. Aos quatro anos, os pais se separaram e ele foi morar com a mãe, em Berkeley. Estimulado pelo ambiente intelectual, o menino passava tardes inteiras ao som de música clássica, trilha perfeita para acompanhar os enredos de Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft. Tímido e pouco sociável, nas raras vezes em que era visto fora de casa se poderia apostar que estava a caminho do trabalho, em uma loja de discos, ou da Faculdade de Filosofia. Suportaria a vaidade acadêmica por um semestre, fato que lhe renderia a imagem de figura peculiar. Digamos que os EUA dos anos 40, com toda a paranoia comunista, não era o país mais adequado para quem se distanciasse do sonho americano. Criado em um lar não tradicional, Dick ficou conhecido como o jovem excêntrico que largou os estudos para vender discos e passar as noites escrevendo. Havia boatos de que escrevia ficção científica.

Depois de anos como escritor lado B, sobrevivendo às custas da esposa, Androides se tornou o principal título de uma fase fértil e vigorosa. Ainda que não tenha lhe rendido fama, a publicação lhe propiciou alguma dignidade. O livro arquiteta uma distopia muito bem transposta em Blade Runner. Na trama, Los Angeles deixara de ser a cidade ensolarada para se transformar em um lugar soturno, em que a chuva e a noite são as únicas certezas. Os carros ocupam o céu e letreiros de neon gigantes guiam habitantes desnorteados por ruas sujas e apertadas. Todos os idiomas são aceitos na Babel pós-bíblica e pré-apocalíptica. Neste urbanismo opressor, conheceremos Rick Deckard, um policial que volta à ativa para ganhar dinheiro a fim de trocar a sua ovelha elétrica por um animal de estimação de verdade. Para isso, precisa eliminar os androides que fugiram do novo planeta habitado pelos humanos.

A literatura de Dick chama atenção porque suas elucubrações não são meros rompantes de engenhosidade. Por trás de temas que abordam governos autoritários, o monopólio das corporações, universos paralelos e alterações de consciência, reside o interesse pela sociedade e a preocupação genuína pela natureza humana. Escrever sobre mundos semirreais foi a maneira de denunciar que operamos em uma realidade pré-programada, que vivemos em um mundo falso. Teoria menos acessível, porém similar à ideia platônica das sombras. O que era luz, no mito da caverna, assume para Dick a configuração de uma realidade paralela, a qual somente acessamos a partir de um ação que rompa o automatismo diário. Se Walter Benjamin denunciava a perda da experiência nas sociedades de massa, Philip irá além. A convicção do caráter invasivo da tecnologia lhe permitiu hipóteses nas quais o progresso não apenas artificializaria a experiência como também turvaria as características que nos identificam como seres humanos — inteligência, sentimentos e empatia.

Dick costumava repetir uma fábula que lhe fora contada na infância. A história trata de um casal de camponeses que recebe de um gênio três desejos. A aparição inusitada desorienta o casal, tornando o primeiro pedido um desastre. Como reparo, utilizam o segundo desejo, que corrige o primeiro mas causa novo problema. E assim sucessivamente. Dick contava a passagem com empolgação, pois no centro dela encontra-se a sua visão sobre o progresso. Assim como o casal, também parecemos despreparados.

Ex-Machina. de Alex Garland (2014)

Adentrada a carcaça futurista, Blade Runner apresenta uma reflexão antecipada por Dick 50 anos antes de filmes como Ela (2014) e Ex Machina (2015). Os debates sobre o que é ser humano e os limites entre homem e máquina circundam o protagonista, um sujeito perdido que tem de aniquilar robôs tão ou mais humanos do que ele. Avançamos convictos, sem considerar o paradoxo de que os homens são desnecessários em um mundo pós-humano. Diferentemente dos heróis de outrora, Deckard precisa salvar a humanidade dela mesma. O que se destaca na missão é a capacidade do policial de duvidar dos próprios méritos. Afinal, a paixão do protagonista de Ela por um robô é falha dele ou defeito da máquina?

Philip K. Dick nos revela um futuro no qual não se fala em avanço. Avançar é o destino dos que sabem para onde vão, e esse não parece o nosso caso. Progredir é pensar uma tecnologia que antes de nos prometer um mundo melhor, um lugar perfeito e correto, nos permita acesso a uma realidade não automatizada. E será nesse instante, nesse futuro, que nos depararemos com os nossos medos e limitações pela primeira vez — e os aceitaremos.

Ela, de Spike Jonze (2013)

Sempre me vi como um artista trágico, mas esse é um lugar-comum para quem procura coisas numa cidade que não nega variados níveis de violência. No entanto, conforme avanço nas minhas pesquisas urbanas, me pego desenhando florzinhas.



Essa atividade aparentemente pacata se dá por estudar a cidade do ponto de vista de um naturalista, explorando a paisagem e plantas, que, todos sabem, não têm voz nem olhos, mas se comunicam de forma lenta e sutil com quem tem a disposição de desacelerar-se das rotinas cotidianas.

Engana-se quem imagina uma busca pela harmonia e pelo murmúrio apaziguador. As plantas urbanas, em geral, costumam gritar alto.

Faz dois anos que estou à frente do projeto Cerrado Infinito, um trabalho de arte que consiste em descolonizar a paisagem vegetal da cidade por meio da construção de uma trilha de terra, onde planto, nas suas margens, espécies dos Campos de Piratininga, a paisagem de cerrado onde São Paulo se desenvolveu.

As plantas sobrevivem esparsas pela cidade, encontradas em condições de alta vulnerabilidade, e são coletadas e agrupadas para recriar essa paisagem esquecida. O processo é semanal, contínuo e aberto, feito com a colaboração de uma comunidade de pessoas que se formou ao redor, disposta a ajudar a plantar, semear e pensar por que substituímos 95% da nossa vegetação por espécies estrangeiras.

A descolonização sugerida vai além da dimensão material. Ao criar o local, desenvolvemos relações de intimidade com essas plantas, ressignificando e tomando conhecimento do chão onde vivemos e do processo de desenvolvimento que escolhemos ter.

É uma mudança de percepção que ocorre lentamente e que se torna explícita ao promover piqueniques aleatórios chamados de Descolonization!, onde fazemos associações artísticas, compartilhamos memórias, histórias e culturas mortas, pensando junto a importância do cerrado.

O Cerrado Infinito se torna, então, um processo de subversão do urbanismo que devolve ao território o estado de terreno baldio de onde as plantas vieram, zelando pela sua inutilidade, para que nada mais seja construído ali. Na cidade que não para de acelerar, comandada pela especulação imobiliária, o assunto tem um papel central se quisermos repensar o país.

Exagero? Poderíamos começar pelo básico: sem cerrado não teremos água, mas, como o nome do projeto diz, são assuntos infinitos que não cabem aqui e que são melhor entendidos visitando as plantas, ajudando na terra, tomando sol e batendo papo. Ou simplesmente desenhando flores.

#27PerspectivasCulturaSociedade

O canto do cisne

por André Tassinari

No dia 9 de novembro de 2016, algo impensável até pouco tempo antes aconteceu. Donald Trump foi eleito o 45º presidente dos Estados Unidos. Este 9/11 foi considerado por muitos a maior tragédia americana desde o 11/9, quinze anos antes. Choque. Como uma nação tão “desenvolvida” pôde ter escolhido como seu líder alguém com valores tão ultrapassados? Com uma campanha marcada por extremos de xenofobia, nacionalismo, racismo e misoginia? Para muita gente, a eleição de Trump simboliza que o mundo está andando para trás. Que há uma guinada conservadora vindo com força total. Ou que chegamos ao fundo do poço. Será mesmo? Será que o fenômeno Trump não pode ser visto como o canto do cisne de uma minoria da população americana que não quer se adaptar à realidade do século XXI?

A expressão “o canto do cisne” é uma metáfora que se refere geralmente à última tentativa de fazer algo grandioso por parte de uma pessoa antes de sua morte. Dizia uma antiga lenda que o cisne branco passava a vida emitindo barulhos sem graça e só quando percebia a morte chegando cantava algo digno de nota. Não terá sido a eleição de Trump uma última chance de fazer barulho — antes de morrer — de uma minoria xenófoba, nacionalista, racista e misógina?

Mas, espera um pouco, como assim minoria? Ele não foi eleito pela maioria da população americana? Bem, Trump teve 63 milhões de votos. Hillary teve 66 milhões, o mesmo que Obama em 2012. Mas Trump ganhou nos estados decisivos para o colégio eleitoral americano, por isso foi eleito. Só esse dado já mostra que ele não foi escolhido pela maioria. Mas dá para ir além. Os Estados Unidos têm uma população de 320 milhões de pessoas. Portanto, Trump recebeu apoio de 20% dos americanos. Vinte por cento!

Ou seja, apenas um em cada cinco americanos demonstrou apoio a Trump com seu voto, mas eles tinham muito mais motivação para ir às urnas do que os 90 milhões de eleitores que decidiram ficar em casa. E o que os motivou tanto? Medo. Insegurança. Desespero. Preconceito. Os eleitores de Trump se iludiram com a ideia do “Make America great again”. Xô, muçulmanos! Vade retro, mexicanos! Lugar de preto é na cadeia, não na presidência, e de mulher é na cozinha, não na Casa Branca.

Ó, Senhor, dai de volta a América para os americanos! Infelizmente, para os trumpistas, a humanidade só anda para frente, apesar dos solavancos pelo caminho.

Não, as mulheres não vão voltar para a cozinha. As mulheres não só estão presentes em massa em todas as universidades, mas agora estão exigindo ser tratadas com o respeito devido — homens que adotam o “grab them by the pussy” não passarão. Em 2016, uma mulher teve um total de votos para presidente maior do que qualquer candidato branco na história, só perdendo para Obama em 2008. Outra é presidente do FMI. São mulheres as CEOs de ícones empresariais como HP, IBM, Yahoo. O abuso contra mulheres no meio empresarial é cada vez menos aceito. A empresa-sensação Uber tem colhido sérios danos à sua imagem pelo modo como trata as mulheres nos seus quadros. Exemplos de abuso no Vale do Silício têm levado a uma contínua reflexão e a ações para minimizar esse tipo de violência. Roger Ailes, fundador da Fox News — a TV americana em grande parte responsável por difundir o pensamento retrógrado por trás da eleição de Trump — foi afastado da empresa após um escândalo de assédio sexual com uma apresentadora. Grandes estrelas da TV estão percebendo que não têm licença para abusar só porque são famosos — Bill Cosby está prestes a ser julgado e provavelmente condenado à prisão.

Outra coisa que faz o cisne cantar: o mundo dos negócios não está colaborando para que as coisas importantes da “América” estejam nas mãos de americanos (de bem). Das três maiores empresas americanas, Google e Microsoft são conduzidas por executivos imigrantes da Índia. E a maior delas, a Apple, tem um CEO assumidamente gay. Oh, Lord! Pior do que isso só mesmo outro ícone do capitalismo americano, a Pepsi, que é comandada por uma mulher indiana…

Falando em ícones, dois dos mais famosos prédios de Nova York, Chrysler Building e The Plaza, estão em mãos estrangeiras. O primeiro é de um fundo de Abu Dhabi. O segundo, que foi comprado por Donald Trump em 1988, já foi repassado por ele para investidores árabes e agora é propriedade de um grupo indiano. Shame on you, Trump, por não ter achado um comprador local! E o que dizer de marcas que são a quintessência do American way of life, como Budweiser, Burger King e Heinz? Estão todas nas mãos atrevidas de um grupo comandado por (argh) brasileiros… O mundo está mesmo de cabeça para baixo. Alguém nos acorde desse pesadelo de ter um negro que nem americano é como presidente? In Trump we Trust.

Mas, afinal, quem é que confia(va) no Trump para ser o leader of the free world? Nem os próprios líderes do partido republicano queriam sua candidatura — e esses mesmos políticos com um mínimo de bom-senso já estão fazendo fortes críticas a Trump nesse início de mandato. As principais cidades americanas, como Nova York, Chicago e San Francisco, estão desafiando as ações de Trump contra os imigrantes e reforçando seu papel de cidades-santuário onde os infiéis estão a salvo das garras da Inquisição Federal.

Quem botou fé e assinou embaixo dos planos sectários de Donald Trump foram as pessoas brancas, mais velhas, menos educadas, das cidades pequenas e áreas rurais dos EUA. E elas precisavam aproveitar essa chance. Era agora ou nunca. Já em 2020, com ou sem muro, a proporção de latinos entre os eleitores crescerá, os mais velhos morrerão, um novo contingente de jovens votará pela primeira vez. Trump dificilmente seria eleito com a população americana de 2020, e dificilmente será reeleito — se chegar até lá. O canto do cisne tem prazo de validade. Então é bom tuitar, digo, cantar bem alto, quanto mais ofensivo melhor.

Ao comentar os inúmeros absurdos ditos por Trump durante a campanha, o republicano de carteirinha Clint Eastwood minimizou seu conteúdo, dizendo algo como “quando eu cresci, falar essas coisas não era considerado racista”. Claro, Clint. Quando você cresceu, existiam escolas, banheiros e ônibus SEPARADOS para brancos e negros. O casamento entre pessoas de “raças” diferentes era PROIBIDO por lei. Se você não evoluiu, Clint, azar o seu. Isso não se chama ditadura do politicamente correto, como você pensa; isso se chama progresso. Olhando the big picture, como dizem por aí, nós estamos evoluindo como raça — a raça humana.