“Lembro-me como se fosse ontem que há cerca de três anos eu estava na Polônia, com temperaturas de cerca de menos 15 graus, sentado numa escrivaninha com folhas em branco, algumas tintas, uns poucos pincéis, e uma profunda crise sobre o ato e o significado de pintar. Além de uma mulher que me amou profundamente, tive a sorte de ter como companheiros os versos de Wallace Stevens, que me confortavam dizendo, numa livre tradução: “Jogue fora as luzes, as definições. Diga o que você vê na escuridão”. Mas não é fácil dizer o que se vê, muito menos na escuridão! No entanto, parecia que ele tinha escrito isso para mim, para aquele instante, reverberando até o presente momento quando do início da leitura de As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga (Shitao). A princípio, essas anotações filosóficas sobre o ato de pintar me reportaram a reminiscências da infância, quando, curioso pelos discos de meu pai, ficava muito intrigado ao ouvir Gil cantando “se oriente rapaz”. Talvez agora eu entenda um pouco melhor o que ele quer dizer com isso! Talvez muito de minha trajetória agora esteja fazendo sentido, em especial essa espécie de caosmogonia com essa matéria escura que plasma muito dos meus anseios, angústias, belezas e insurreições do espírito. Afinal, há cerca de quinze anos exploro o nanquim como principal matriz para minhas pinturas e não havia encontrado nada parecido no quadro do pensamento estético ocidental que pudesse me amparar tão vivaz, pictórica e espiritualmente como agora. Ainda não saí das primeiras páginas, ainda abismado, lendo e relendo cada palavra como se fosse um abracadabra. Até quando, não sei, mas por ora sinto-me tão forte e obstinado como uma formiga!”

(texto extraído de uma postagem de Luís Augusto no Instagram)

Bruno Cosentino – Estou vendo o cenário onde você grava as músicas que posta…

Luís Augusto – Aqui é o “terraço”. Não é nem cenário… De vez em quando eu coloco aqui um quadro para fingir que tem um cenário, mas você vê que o negócio é muito mambembe, gambiarras…

Bruno Cosentino – Mas é assim que funciona o mundo: na gambiarra. E, Luís, está tudo bem contigo?

Luís Augusto – Está tudo bem, está tudo muito bem. Tudo muito ótimo.

Bruno Cosentino – Poxa! E por que está tudo muito ótimo?

Luís Augusto – Está tudo ótimo no sentido de quando a gente encontra o nosso ritmo nos nossos afazeres e coordena as coisas e as coisas vão dando certo. Talvez seja uma visão otimista e talvez eu seja otimista mesmo. Então é isso. Trabalhando muito, focado, e vamos levando. Tá muito bom, sobretudo porque estamos com saúde.

Bruno Cosentino – E o que está dando certo?

Luís Augusto – Você sabe que eu trabalho em muitas frentes e cada uma, apesar de serem diferentes, é complementar. Às vezes escrevendo alguma coisa ou pintando alguma coisa que suscita outra. Então vou fazendo essas teias, e acho que estou num período muito bom, muito fértil, depois de um período difícil, para todo mundo, pandemia… Foi uma outra configuração com que a gente teve que se conformar, e agora estamos principiando essa abertura e acho que estou enfrentando isso de maneira bem positiva.

Bruno Cosentino – Quando você diz “abertura”, essa abertura significa o quê, principalmente? Encontrar as pessoas?

Luís Augusto – Também. Eu digo porque, agora, estou como dirigente em uma escola pública aqui em São Pedro [da Aldeia]. Fiquei dois anos sem ver os adolescentes. De repente, estou ali, no front, com sei lá quantas crianças, sei lá quantas demandas. E para mim isso também foi muito positivo. Voltar a se relacionar e estar vivo, sabe? E adolescente traz isso, né? Eles são muito vivos. Eles estão numa fase muito legal da vida, e isso transborda para a gente, e isso te dá um gás. Você chega exausto, mas te dá um gás.

Bruno Cosentino – Ficou muito claro para mim que o lance de encontrar as pessoas é o motor da nossa energia vital. A troca erótica é fundamental, a gente já sabia disso, mas durante esta pandemia fomos cobaias involuntárias desse experimento social que provou isso para mim. Quando saí na rua depois de muito tempo, só de ver as pessoas, pessoas que eu nem conhecia, só isso já me injetava um ânimo, um tesão na vida. Por isso que eu te perguntei… de ver pessoas.

Luís Augusto – É! E, por exemplo, eu tive a oportunidade de ir ao Rio [de Janeiro], ver Juçara Marçal, Kiko Dinucci, experiência de ouvir música alta… Eu saí de lá transformado, sabe? Voltei para São Pedro — uau! E eu nem lembrava de…

Bruno Cosentino – Quando você fala que está dando tudo certo, pelo que imaginei, é que você tá conseguindo fazer as conexões entre a pintura, a música, me parece que estar dando certo tem a ver com essa concentração e que estimulada por uma reconfiguração dos nossos hábitos, de poder estar novamente no meio da gente, enfim, é um pouco isso, né?

Luís Augusto – Com certeza. O fato de você experimentar o mundo traz essa experiência para o ato da sua criação artística. Seja ela econômica, social, espiritual, você está em trânsito com essas coisas todas, em devir com essas coisas todas, e, quando você para para se concentrar e produzir alguma coisa, certamente passa por essas experiências. Muitas vezes são trampolins para outras experiências. Aí, já dentro do plano estético da obra, seja em um quadro, o que você pode ver, onde é que esteve para conseguir fazer essa imagem? A partir de onde ele foi e onde conseguiu chegar com isso?

Bruno Cosentino – Você tira muitas coisas da vida objetiva para suas canções e pinturas, como “objetos achados” no mundo, ou é um processo de fantasia alimentado mais internamente?

Luís Augusto – É difícil falar sobre isso porque nós somos conexões com todas as coisas que nos atravessam. Dizer o que é o dentro e o que é o fora neste caos talvez seja até muito pretensioso. Já é difícil a gente falar “eu” — eu o quê, brother? (risos). Mas, sim, essas coisas despertam. De repente, você toca aquele acorde e fala: “Isto parece com fé!” (cantarola) e vai… A intuição também grita! Não sei (risos).

Bruno Cosentino – Luís, você, pouco tempo atrás, fez uma postagem no Instagram em que falava que estava lendo um livro. Qual era o livro? De um oriental?

Luís Augusto – Sim, o Shitao [As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga]. Eu ainda estou lendo.

Bruno Cosentino – Quero perguntar duas coisas para você sobre essa postagem. Nela, você dizia que a leitura do livro estava te ajudando a sair de uma crise criativa, e aí eu queria que você falasse que crise foi essa e o que tinha no livro que te fez tomar o impulso para sair dessa?

Luís Augusto – Sim. Você sabe que, anyway, eu sou um outsider em arte. Eu não tenho praticamente nada registrado ainda, especialmente em música, no máximo uma parceria com o [Negro] Leo, que a Ava [Rocha] gravou, que é a canção Hermética. E um registro de uma apresentação na Audio Rebel. Mas em breve nós vamos lançar um EP — lá para meados do ano, está em fase de finalização e mixagem. Mas eu tive uma vivência que me permitiu encontrar muitas pessoas ao longo da vida. E os encontros estão imersos no processo de desenvolvimento da nossa vida, o que a gente vai seguir, o que a gente vai fazer, e eu sempre fui muito ligado à arte; em alguns momentos eu me dediquei de maneira mais intensa, ou não, à produção. O ano de 2008 eu considero que foi um ano muito marcante, porque foi muito produtivo. Eu estava sob muitos estímulos também, especialmente intelectuais. Eu ainda fazia faculdade de filosofia, era estagiário no setor de antropologia.

Bruno Cosentino – Quantos anos você tinha nessa época?

Luís Augusto – 2008, devia ter uns 24 anos. E eu consegui uma bolsa no Parque Lage também. Pude estudar lá. Foi o período, certamente, em que pude produzir mais. Naquele ano, eu tinha ouvido de um professor, o saudoso João Magalhães, que para você se considerar um artista plástico, um pintor, precisava ter pelo menos umas 500 obras. E eu me coloquei a meta de fazer pelo menos 500 naquele ano. Claro, diferentes tamanhos. Mas me propus. E consegui, sabe? Eu então estava muito certo disso. Mas a gente estabelece certas certezas às quais não pode se apegar, né? Ao mesmo tempo, eu estava vivendo há quase oito anos no Rio de Janeiro, e eu sou um cara do interior, de São Pedro da Aldeia. E não parei durante esses oito anos. É como se eu tivesse saído da minha cidade uma pessoa e fui indo e não sabia mais quem eu era. Eu só estava indo. E tudo aquilo me minou. Eu lembro até do início de um livro do Paul Nizan, que foi um companheiro do Sartre na École Normale, o Aden, Arábia, em que ele começa falando assim: “Tudo ameaça um jovem de destruição, o amor, o afastamento da família”. E naquele período eu tive que voltar, por n questões. E eu pensei, sinceramente, que essas coisas iriam ficar por terra. Sei lá, filosofia, arte, eu realmente me propus a uma outra coisa que não isso. Mas o tempo foi me mostrando que não. Você fala “só uma pinturazinha hoje” (risos)… E eu adaptei muita coisa. E durante esse período eu tive que me adaptar porque eu estava no interior. Então passei a produzir imagens para a internet. Sendo que você vai sozinho durante muito tempo. É como se você fosse andando num deserto e sem poder beber água ou mesmo vivendo uma grande apneia.

Bruno Cosentino – Você ter se sentido sozinho vem do fato de que não estava mais na cidade grande, tendo contato com muita gente, é isso?

Luís Augusto – Também. Eu não sou um faquir, um anacoreta, eu sou um artista. E, poxa, você tem que pagar conta, você tem que comprar um bom pincel, um bom nanquim, um bom papel, cordas para o violão. E essas coisas foram se acumulando e você não tem muito como fugir… Claro que eu já me perguntei: “Por que você não faz NFTs?” Mas, pô, não é assim que o mundo funciona, né?

Bruno Cosentino – O que é NFT?

Luís Augusto – NFT é esse negócio de certificação digital, incluso obras de arte. Eu não estou excluindo a possibilidade, diga-se de passagem. Estamos aí abertos à oportunidade. Estou me estendendo, talvez…

Bruno Cosentino – Se estenda, Luís. Assim que vai ser bom.

Luís Augusto – Tá bom… Você está num deserto, você produz, algumas pessoas — poucos amigos seus — veem, confirmam, dão likes, OK, mas você não tem acesso ao circuito, ao mercado de arte, sabe? Mas ao mesmo tempo fui desenvolvendo uma série de técnicas para esse tipo de produção de imagem para a internet. Voltei ano passado ao Parque Lage, graças a uma bolsa ofertada pela Anna Costa e Silva, no curso “Práticas artísticas de vida”, que me ajudou muito também não só a pensar a imagem, mas tem me ajudado a pensar, digamos, performaticamente essa imagem. Tenho produzido audiovisuais, cheguei até a te mandar, não foi? Conheci uma mulher maravilhosa e nós viajamos juntos alguns anos atrás e aproveitei para visitar os museus, ver alguns dos grandes mestres, que foi um grande incentivo. Eu estava um pouco descrente. Por mais que você produza, você fica descrente. Mas, quando você vê outras obras, você começa a encontrar os diálogos do seu trabalho com isso aí. E há muito tempo eu me dedico, por mais que eu não tenha me formado em filosofia, eu me dedico aos estudos de estética, na medida do meu possível, e eu sempre tive certa desconfiança com a teologia da arte ocidental. O Deleuze fala sobre isso, sobre se sentir estrangeiro em sua própria língua, sabe? Então eu me sinto, às vezes, um estrangeiro; pensar, por exemplo, num negro brasileiro especialista em nanquim… uma ponte afro-asiática! E aí entra o Shitao. Ele é um pintor do século XVII, se não me engano, eu por acaso o encontrei, talvez porque me interesso, sempre que possível, em buscar novos ares e o Oriente, o nanquim — começa por aí, minha obra é quase toda a partir do nanquim —, e, em certa medida, as manifestações estéticas são espelhos dos cultivos espirituais de suas civilizações. E eu acho que o Shitao veio me iluminar um pouco nisso. Ele é um cara muito interessante, foi um monge de uma família de nobres, mas a família foi assassinada durante uma guerra civil ou um conflito de interesses, e ele foi colocado e criado desde a infância em um mosteiro zen. Ele se desenvolve no budismo, depois se converte ao taoismo, e ao mesmo tempo é um profundo conhecedor do confucionismo, ou seja, as três principais matrizes chinesas. Então, ele faz um tratado filosófico sobre a criação artística, que é um tratado de pintura, mas no sentido filosófico, sendo uma síntese desses três berços da matriz espiritual chinesa. E isso tem me feito olhar para a tradição, do pouco que eu vejo dessa cultura, com ainda mais respeito e humildade. Ele faz uma síntese dessa milenar tradição estética em torno do conceito de um único traço de pincel, através do qual você consegue criar ou recriar a multiplicidade do mundo. Essa é a minha interpretação. Ele destoa dos tradicionais tratados estéticos por não se ater tão somente aos aspectos técnicos, mas sobretudo aos espirituais — o que dá o sopro, insufla a criação. É muito interessante. E isso tem sido tão bom, ver um outro horizonte que não a história do niilismo, sabe? (risos)

Bruno Cosentino – Eu entendo você perfeitamente. Luís, você claramente é um artista que não pode separar o que você faz artisticamente de um desejo de espiritualidade — é o que eu entendo, e tudo que você fala me confirma isso. Queria que você falasse se é isso mesmo. Qual é a importância da espiritualidade e a conexão com a sua arte? Existe alguma filiação? Foi bonito isso que você falou, de você ser um negro brasileiro que trabalha com nanquim, que faz essa ponte inusitada com o extremo Oriente, mas, ao mesmo tempo, quando você canta e nas suas canções, tem muito blues, e aí você está evidentemente no lugar do Atlântico negro.

Luís Augusto – Minha formação foi protestante. Eu nasci e fui criado, por parte de minha mãe, em uma igreja batista, em São Pedro da Aldeia. Fui batizado, inclusive. Quando adolescente, em um momento de muita crise, eu falei: “Deus existe! Jesus está aí e eu vou me batizar”, sabe? E me batizei. Aí, tempos depois eu pensei: “Cara, não mudou muita coisa, não” (risos). A dúvida continuava, sabe? E nesse período — eu devia ter 12 ou 13 anos — decidi que eu ia fazer filosofia, porque achei que poderia ter alguma resposta em relação a isso.

Bruno Cosentino – A verdade vos libertará — pela via do conhecimento, da teologia negativa…

Luís Augusto – Tipo isso, exatamente. E eu não sei… na verdade, talvez eu esteja até mais perdido… mas a questão da espiritualidade ou pelo menos a maneira como a gente lê a fé, a crença… Como falar isso? Eu não sei qual pensador fala que Deus está em todas as coisas ou há um sopro de Deus em todas as coisas, algo do gênero. E me é muito peculiar quando eu me dedico a ler algo, seja um poema, seja um texto sufi, seja um santo cristão; independentemente da crença ou da forma como isso se manifesta, a partir do momento em que você é capaz de partilhar aquilo com o mínimo de simpatia, é possível você alcançar aquilo… Talvez tenha essa ideia de vasos comunicantes. Esses vasos se comunicam. A gente, quando fala de espiritualidade, parece que tá esquecendo o corpo, especialmente quando a gente pensa nessas coisas materializadas, seja uma canção ou uma apresentação… “Ah, o Luís se manifesta com o corpo daquela maneira”, sei lá. Digo isso porque tenho fé na vida. E, a cada momento que a gente tem consciência disso — quando não é levado por uma certa mecânica, a qual nos aliena da percepção da vida pulsando, da liberdade que nos é ofertada a todo momento, da possibilidade de compartilharmos mais afeto —, tudo isso eu acho que é envolto nessa espiritualidade, porque espiritualidade é uma prática, não é uma crença. Ela pode até vir junto da crença, mas é antes de tudo uma prática. Por isso você encontra ateus bons. Por isso você encontra evangélicos filhos da puta. Não que todo evangélico seja filho da puta ou que todo ateu seja bom (risos).

Bruno Cosentino – E como essa espiritualidade se manifesta esteticamente nas suas canções e pinturas?

Luís Augusto – Por exemplo, eu lembro que pude fazer um estágio voluntário no Jardim Botânico, com a Fátima Gil, uma mulher incrível. Ela me recebeu com entusiasmo e carinho, e a gente passeava pelo jardim conversando sobre um autor chamado Rupert Sheldrake, um biólogo e filósofo que defende uma tese sobre ressonâncias mórficas, que seriam, digamos assim, o aparato pelo qual há a chamada morfogênese, o nascimento das formas. Então, alguma coisa só nasce a partir do momento em que há um campo que nutre aquela forma. Se você pensar platonicamente, há uma ideia e você necessita de um campo no qual ela se materializa naquela forma — não é apenas no campo biológico. No caso do nascimento de uma planta, o desenvolvimento, a modificação a partir do momento em que há um elemento aleatório, que, uma vez que surge, faz com que haja a possibilidade de se reproduzir, se replicar e dar origem a um outro modo do ser. No caso da pintura, muitas vezes elas são informes, não têm forma, mas sugerem possibilidades. E eu acredito estar justamente como um médium desse ambiente, desse meio ambiente.

Bruno Cosentino – Quando você fala do traço do pintor, de um único traço em que você reconhece numa unidade a diversidade, ou quando você fala de encontrar as formas que geram outras formas, isso me soa como a busca por um rito que reinstaure, a cada repetição — e você falou da importância da prática, de fazer 500 pinturas —, a unidade mítica da origem, a partir da qual são geradas as diferenças. A espiritualidade da qual falamos, que eu acho que tem a ver com essa unidade na diversidade e passa pela natureza e por suas formas exuberantes, cores, etc., mas também pela igual exuberância das pessoas, de cores, formas, personalidades, sentimentos, complexidades e tudo mais. E esta é a minha segunda pergunta em relação àquela postagem. Você diz que estava ali pintando, lendo o livro do Shitao, na Polônia, acompanhado de uma mulher que te amava. Qual a importância de se sentir amado por uma mulher?

Luís Augusto – Na verdade, a viagem foi três anos atrás e o encontro com Shitao foi neste ano, mas a recepção de sua obra, que ainda estou lendo (risos), me reportou aos sentimentos de incerteza que me assombravam durante a estadia na Europa e as perspectivas que esse autor tem nutrido em mim. Deixa só eu responder uma coisa que você falou do retorno a essa unidade. Não está somente no retorno a esse uno, mas no sentido mesmo da repetição como prática da diferença, até porque eu desconfio que haja uma espécie de evolução criativa. Talvez haja rastros de diferença desse uno. Enfim, quanto à presença do amor, é fundamental, no sentido de que eu sempre fui uma pessoa muito só, apesar dos muitos amigos. E ter esses momentos é de muita alegria e regozijo. Você me perguntou da importância do amor da mulher, mas eu digo que não é só no sentido sexual, mas da relação com o feminino. Se não me engano, é Lucrécio que fala que o deus da guerra… Você espera só um minutinho? [Vai buscar algo] Perdão, é porque essa referência é genial, tem a ver com essa questão — “Faze, entretanto, que por mares e por terras, tranquilos se aplaquem os feros trabalhos militares; só tu podes obter para os mortais a branda paz, visto que é Marte, o senhor das armas, quem ordena esses feros trabalhos de guerra, e é ele quem muitas vezes se reclina em teu seio, vencido pela eterna ferida do amor, e erguendo os olhos para ti, inclinando para trás a nuca roliça, fica deitado como que suspenso de teus lábios, e apascenta de amor seus olhos ávidos. E tu, ó deusa, enquanto ele repousa, o enlaças com teu corpo sagrado, soltas dos lábios tuas doces palavras e pedes para os romanos, ó cheia de glória, a plácida paz.” Isso é Lucrécio [Da natureza das coisas], muito bom. O feminino é uma outra perspectiva dentro de um mundo absolutamente estruturado no viés patriarcal, e essa percepção só é possível quando você consegue enxergar essas potências, esse aprendizado que o feminino traz. E a isso eu sou muito grato, pelo amor que eu cultivei e do qual eu colhi.

Bruno Cosentino – Eu me identifico muito com tudo que você fala, Luís, além de gostar das suas pinturas e canções e da sua performance. Afora isso, me sinto identificado com o seu jeito de pensar e estar no mundo. Você já falou aqui um pouco da ponte Brasil-África-Oriente que você é. Pensando nesse cosmopolitismo que você encarna, muitas de suas canções são em inglês. Você também sabe pronunciar como um francês falaria. Qual é a sua relação com as línguas estrangeiras? Você ouviu esses caras cantando inglês, você aprendeu, estudou?

Luís Augusto – Inglês eu estou estudando até hoje. Quando era adolescente, adorava o rock, e me intrigava não poder saber as letras. Eu tive o inglês da escola, mas é uma outra coisa. Por n motivos — tanto sociais, quanto… — eu não consegui. E eu sempre tentei correr muito atrás. O francês era mais fácil. Eu não sei falar, mas eu consigo ler, principalmente literatura filosófica, em que os termos são mais enxutos. No romance, eu não me atrevo. Victor Hugo, não! E falo espanhol, não bem, e leio espanhol e pratico atualmente. Eu descobri um site muito bom chamado Conversation Exchange, em que você troca línguas: a pessoa sabe uma língua e quer aprender a sua. E eu estou numa dessas. Então, tenho treinado. E o meu inglês foi isso… Eu sempre tive uma admiração pela língua, até por conta do imperialismo do qual fomos assaltados — desculpe, mas sou fruto disso. E uma coisa engraçada era que, pelo fato de eu não saber, quando comecei a ter uma base um pouco melhor, comecei a construir as canções, porque na minha cabeça eu às vezes tinha certas melodias que cabiam melhor em inglês, e começou a ser uma prática, de estudar e desenvolver algo que eu conseguisse realizar. E eu tenho, na verdade, hoje, me dedicado um pouco mais até às canções em português. Eu falei: “Poxa, daqui a pouco vão me chamar de vendido”. O cara nem começou e já se vendeu, sabe? (risos) Mas é porque eu acho que são dois modos de composição muito diferentes. Eu adoro línguas e eu tento encontrar a minha música naquela língua.

Bruno Cosentino – Quem você ouviu muito, seja brasileiro ou estrangeiro, que você fala: “Porra, isso está em mim”?

Luís Augusto – Certamente, Jimi Hendrix; Gilberto Gil, com toda a certeza; Negro Leo, não só pela música, mas pelo que vivemos juntos, de amizade; uma cantora que me marcou muito, que eu ouvi pouco, mas ouvi muito um disco dela, que me fez pensar: “Caracas! Isso também é cantar!”, Yoko Ono, aquele disco Fly, muito, muito maneiro; e Noel Rosa.

Bruno Cosentino – Você falou que, apesar de ter ouvido pouco Yoko Ono, ela te marcou bastante. Eu quero saber o seguinte… Eu tenho uma relação com a arte de experimentação formal sempre muito decisiva; no entanto, não é aquilo que eu vou ouvir diversas vezes na minha vida. Pelo contrário. Existe até uma lógica inversa. Aquilo que eu vou ouvir muito, com o que vou ter uma relação vertical, será a arte muito bem acabada formalmente, mas que não pese a mão na inovação ou experimentação ou que não seja de vanguarda, para usar esse termo mais antigo. Para você, isso faz sentido?

Luís Augusto – Pois é, especialmente com música, talvez. Depende muito do meu humor. Especialmente de humor para criar. São raras as vezes em que eu paro para ouvir música apenas. Mas eu geralmente produzo em função da música. Às vezes, música clássica, coisa que eu ouço muito, para leituras, ou então para pintar. É praticamente certo que eu esteja ouvindo algo quando eu pinto. Eu sempre ouço música. É uma relação muito viva.

Bruno Cosentino – Eu percebo que no seu processo criativo estão bem presentes duas forças: o improviso e a construção. Como se dá a tensão entre essas duas forças?

Luís Augusto – Elas são complementares. Mas é uma questão de energia também. Qual é o grau de energia com que você está? Às vezes, eu termino de cantar uma canção e fico ainda uns cinco minutos pulando, aconteceu alguma coisa ali… A questão é fazer esse negócio acontecer. Claro que, em uma canção, você precisa de um tempo para experimentar palavras, você tem aquele jogo de “isso vai encaixar, não, volta, vamos lá”. Mas você tá ainda nesse exercício do transe. Eu não descarto a questão do transe, do ritual; no meu caso é vir aqui, sentar nesta cadeira, estendo um braço está meu violão, estendo o outro está meu pincel, e qual é a energia daquele dia também? É nela que eu vou fluir. E tem coisas no processo que eu me censuro: “Não é por aí que eu quero ir”. Às vezes você coloca uma palavra e pensa: “Vou ser mal interpretado, não é isso”. Você vai percebendo e vai dando a forma até o momento em que você diz: “É isso, não tem mais como. Lavo minhas mãos!”

Bruno Cosentino – E esse disco que você gravou na [Audio] Rebel, fala dele.

Luís Augusto – Esse é um disco que junta algumas das minhas composições desses últimos 10 anos, praticamente. Tem a produção do Bernardo [Oliveira], do [Negro] Leo e dos músicos que me acompanham, do [Eduardo] Manso, do [Renato] Godoi, do [Felipe] Zeni; os caras fazem tudo. E tem também o Vovô Bebê e o Felipe Ridolfi. O nome do projeto é Amefrican Grunges. É um disco de rock. Foi gravado na Audio Rebel semanas antes da pandemia. Nós tínhamos uma perspectiva, e o disco está agora ganhando forma dentro dessa temporalidade. Foi um dos momentos mais radicais da minha vida. Foi quase como entrar num Boeing e decolar. Os caras são muito bons e foi uma experiência incrível, além de ter sido a primeira vez que eu fui pro estúdio. O engraçado é que tínhamos feito dois ensaios, sexta e sábado, e sentamos a pua na segunda, terça e quarta para gravar. Eu gritei horrores no sábado e fiquei sem voz. Então, foi uma loucura! Chegou domingo, e de dois em dois minutos eu aplicava própolis na garganta. Acho que o resultado vai ficar bem legal. Tem uma sonoridade bem única e os meninos são incríveis. Em meados do ano deve estar saindo pelo selo do Quintavant [QTV].

Bruno Cosentino – Eu queria voltar em um lance. Eu lembro que, quando você fez a capa do meu disco, você foi lá em casa, a gente conversou bastante, e você me disse que estava fazendo um corre de mostrar as suas pinturas para algumas galerias. E, no início do nosso papo aqui, você falou que é um outsider e que a questão do mercado de artes é complicada. Sabemos que o mercado nada tem a ver com o fazer artístico e tampouco é sua função principal avalizar ou legitimar a qualidade da produção — ainda mais no mercado de artes, em que a especulação mercantilista come solta. Eu quero saber de você o que deu daquela sua investida nas galerias? E outra coisa: quanto estar fora do mercado de arte te afeta?

Luís Augusto – Uma questão: o que eu tenho de divulgação do meu trabalho deve-se principalmente à música. Foram capas de discos que eu fiz, entendeu? Praticamente isso. Capas para você, para o Chinese Cookie Poets, para o Negro Leo e para o Vovô Bebê. Participei no máximo de uma coletiva no Parque Lage, de serigrafia, em 2008, e participei dessa do ano passado, do Parque Lage, dos alunos.

Bruno Cosentino – Você também fez o cenário do Chinese Cookie Poets [banda formada por Marcos Campello, Felipe Zenícola e Renato Godoy].

Luís Augusto – Fiz o cenário e fiz um cenário também pro Leo, lá no Odeon… ficou bem bonito! Minhas aparições no campo foram essas. E, de fato, tentei. Eu tinha uma pessoa que conhecia o campo e me conduziu a ir falar com algumas galerias. E não deu em nada. Não sei como é, mas não foi. Ou seja, nem quando eu tinha as costas quentes… Então, participar você quer participar, no sentido de que você quer escoar as coisas. Você quer que vejam, que discutam. Você acha que tem alguma coisa para dizer, para além de ficar fazendo post no Instagram para os seus amigos. Legal, os seus amigos gostam de você, parabéns! Mas a gente tá falando de encontrar outras pessoas. Quero poder encontrar um público, ouvir o que as pessoas têm a dizer sobre aquilo. E você precisa divulgar. Não é só uma questão de vaidade, no sentido de: “Aí, vou fazer um nome e vender obras a 100 milhões de reais!” Não se trata disso. Tanto é que eu continuo a produzir, apesar disso. Eu não sei qual o critério.

Bruno Cosentino – Você não sabe o critério?

Luís Augusto – Eu realmente não sei, mas, que tem, tem. Não é claro.

Bruno Cosentino – Eu concordo com o que você disse. O desejo de escoar o que a gente faz para um público numeroso ou que pelo menos vá para além dos amigos também obedece para mim a uma função religiosa da arte. O Tolstói tem uma definição de arte que eu acho bonita. Ele diz que a arte é como se fosse uma língua, mas, diferente das palavras, que usamos para comunicar ideias, a arte comunica sentimentos e sensações. E ele diz que, por isso, quanto maior o contágio — isto é, a quanto mais gente chegar —, mais êxito terá a obra. A tensão acontece porque esse desejo, muito genuíno, de partilhar o que se faz é um desejo que passa pelo contexto comercial de economia de mercado, cujos preceitos são outros — inclusive, e cada vez mais, por uma questão sociológica forte, dos contatos, do networking, dos feats, etc.

Luís Augusto – Claro que uma das coisas que me prejudica muito é o fato de estar no interior. Porque uma das dinâmicas é você ir às galerias, vernissages, você aparecer e se apresentar. Tem essa coisa do presencial, que com a pandemia deu uma desterritorializada. Agora as pessoas estão revendo esses espaços tanto físicos quanto virtuais. Então se deve também a isso, à distância, eu não posso negar. Eu estou em São Pedro da Aldeia, na região dos lagos.

Bruno CosentinoLa cena soy yo [risos].

Luís Augusto – Eu não posso dizer que eu conheço todo o mundo, mas não é tão grande.

Bruno Cosentino – Luís, obrigado, adorei falar contigo.

Luís Augusto – Eu que agradeço.

Na segunda metade do século XIX, a Itália passava por uma séria crise econômica. A alta taxa de desemprego e a falta de perspectivas faziam com que a população ponderasse deixar a Europa. Do outro lado do Atlântico, a abolição da escravatura deu início a uma campanha em solo italiano pela busca de mão-de-obra para a lavoura brasileira, fazendo com que muitos italianos optassem pela vida no Brasil. Foi o caso do toscano Giovanni Graziano Rossi, registrado ao chegar como João Rossi, e seu pai, que faleceu em seguida, vitimado pela febre amarela. Do Velho Mundo, Rossi trouxe consigo o conhecimento da arte da cestaria, e dedicou-se a esse ofício a partir de 1895, quando conseguiu da prefeitura de Petrópolis permissão para vender cestos, chapéus de palha, tamancos e vassouras.

Anos mais tarde, em 1918, a profissão de mascate daria lugar à fundação de uma pequena fábrica de vassouras, escovas, pincéis e tamancos. Mas seria apenas em 1933, pela visão industrial e atuação do filho Sylvio Rossi, que a marca Rossi se fortaleceria. Nascia a Fábrica Vassouras Rossi, localizada na Vila Nogueira, no Rio de Janeiro. A modernização da atividade chegou somente nos anos 90, quando a empresa deixou de trabalhar apenas com fibras naturais e entrou na era tecnológica: Rossi importou — da sua Itália, claro — máquinas e tecnologia, passando a usar materiais como polipropileno e PET para atender à reivindicação de clientes e consumidores.

A Rossi segue hoje na quarta geração da família, dando continuidade ao legado de Giovanni.

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Dulcinéia catadora: uma outra perspectiva daquilo que se nomeia lixo

por Paula Borghi

Aquilo que é visto socialmente como lixo, para muitos é subsídio de sobrevivência ou criação artística. Impulsionados pela grande crise argentina de 2001, quando a pobreza e o desemprego atingiram patamares nunca vistos naquele país, o escritor Washington Cucurto e os artistas visuais Javier Barilaro e Fernanda Laguna criaram em 2003 o projeto Eloísa Cartonera. Em meio a um cenário no qual inúmeros argentinos saíram às ruas para recolher papelão e outros materiais descartados, Eloísa Cartonera iniciou uma editora de livros com capas feitas de papelão coletado, vendidos a preços populares.

Eloísa Cartonera tem como política a aquisição do papelão diretamente de cartoneros/as — em português catadores/as — por um preço superior ao que seria pago pelo posto de coleta, a fim de transformá-lo em livros de poesia, contos, drama, literatura infantil, novelas e peças de teatro. As capas são pintadas à mão, uma a uma, tornando cada livro único. Os/as cartoneros/as, além de serem responsáveis pela matéria-prima do trabalho, são incentivados/as a pintar as capas e a criar seus próprios livros.

Em um país com uma economia dilacerada, Eloísa Cartonera insurgiu da destruição enquanto potência ativa para a vida. Uma potência que se alastrou mundo afora, chegando hoje a cerca de 300 Cartoneras situadas sobretudo na América Latina. Cabe mencionar que muitos desses coletivos editoriais funcionam de forma intermitente, sendo que aproximadamente dois terços do total se encontram em plena atividade.

No Brasil, o primeiro projeto de uma editora Cartonera foi iniciado em 2007 com o nome de Dulcinéia Catadora, após dois meses de trabalho colaborativo entre a artista e escritora Lúcia Rosa, o catador Peterson Emboava, que atualmente trabalha como fotógrafo, come integrantes do Eloísa Cartonera, durante a 27ª Bienal de São Paulo. Diferentemente dos demais coletivos, que seguem a se nomear por um nome próprio, geralmente feminino, acompanhado de “Cartonera”, Dulcinéia Catadora adota a tradução do espanhol para a língua portuguesa, a fim de trazer maior identificação com os membros do grupo.

Desde 2010, Dulcinéia Catadora tem como base de trabalho a Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis do Glicério (CooperGlicério), localizada embaixo do viaduto Paulo VI, na região da Sé, centro de São Paulo. O projeto se destaca entre as Cartoneras por realizar todo o processo editorial dentro de uma cooperativa e ter catadoras como a maioria de seus integrantes. Outro diferencial é a publicação de livros de artistas. Entre os autores publicados estão escritores como Plínio Marcos, Alice Ruiz e Manoel de Barros e artistas como Fabio Morais, Lúcia M. Loeb, Paulo Bruscky, Elida Tessler, Roger Colom e Thiago Honório, além das próprias integrantes do coletivo.

Grande parte do conteúdo dos livros publicados por Dulcinéia Catadora, como em muitas outras editoras Cartoneras, tem seus direitos cedidos por seus autores, que ganham 10% dos livros feitos,; de forma que isso também corrobora para que seu valor comercial siga muito abaixo do mercado. É certo afirmar que os livros de artistas são vendidos a preços irrisórios, ainda mais quando comparados aos valores comercializados pelas galerias de arte. “Isto é, o livro leva uma capa de papelão, muitas vezes apresentando conteúdo contestatório. Há a finalidade de ser acessível, pois queremos alcançar a maior quantidade possível de pessoas. O livro não foi feito para entrar no circuito da arte, para pertencer a colecionadores. Não é essa a intenção”, comenta Lúcia Rosa.

Sem passar por nenhuma mediação, os livros são vendidos em feiras de impressos ou diretamente, por membros da Dulcinéia Catadora. O valor das vendas é essencial para a complementação de renda dos/as catadores/as. Atualmente, o projeto tem participação ativa de Andreia Emboava, Maria Dias da Costa, Eminéia dos Santos, Maria Silva e Ágata Emboava, que trabalham diariamente na reciclagem, e Lúcia Rosa. De 2007 até hoje, foram publicados 142 títulos, com tiragem média, de 50 a 100 unidades. Por alto, o projeto já vendeu mais de 15 mil livros, a maioria deles a 15 reais.

Além de publicar livros, Dulcinéia Catadora trabalha com outras linguagens artísticas, como, por exemplo, performance, instalação e instalação urbana. Já realizou projetos no SESC Pompeia e na Casa das Rosas, em São Paulo, bem como participou de coletivas no Museu de Arte do Rio (MAR); Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia (MuBE), em São Paulo; Casa do Povo, também na capital paulista; Museu Murillo La Greca, em Recife; e Museu de Arte Contemporânea de Niterói, entre outros. Em 2018, Dulcinéia Catadora participou do projeto Cartonera Publishing, e seus livros, encontrados em inúmeras bibliotecas dos Estados Unidos e de outros países, passaram a integrar o acervo das bibliotecas de Londres e Cambridge, na Inglaterra. É importante ressaltar que não apenas os trabalhos do coletivo circulam por esses espaços, mas também seus membros.

Concomitantemente à produção editorial e artística, temos uma atuação das Cartoneras na área de educação e formação de novos coletivos. Da mesma forma que o coletivo paulista surgiu após um trabalho colaborativo com Eloísa Cartonera, muitos grupos — como Catapoesia (MG), Severina Catadora e Mariposa Cartonera (PE) e Kuvaninga (Maputo, Moçambique) — foram criados após oficinas ministradas por Dulcinéia Catadora. Assim como sugere Walter Benjamin no ensaio O autor como produtor (1934), a lógica Cartonera faz com que catadores/as se tornem produtores/as de novos/as autores/as catadores/as e autores/as de sua própria obra literária e de arte.

Notam-se, então, alguns “desvios” desencadeados por aquele papelão que em um primeiro momento é lido de forma equivocada e simplista como lixo: 1) papelão descartado entra para o circuito da literatura e das artes visuais; 2) os/as catadores/as atuam como artistas, escritores/as, editores/as e oficineiros/as; 3) os livros são vendidos por valores acessíveis; 4) o projeto gera renda para uma das classes mais vulneráveis de trabalhadores autônomos; 5) os/as catadores/as circulam por ambientes previamente negados à sua condição social; 6) é construído um ciclo de emancipação da produção, em que o/a autor/a é produtor/a de novos/as autores/as.

Por fim, “para além de forjar trilhas alternativas que veiculam a produção literária contemporânea, absorvendo escritores não inseridos no mercado editorial”, como menciona Lúcia Rosa, é lindo ver como as Cartoneras conseguem transformar a destruição em arte e potência de vida.

O diário de notas da exposição Turvações Estratigráficas, ocorrida no Museu de Arte do Rio, em 2013, apresenta uma série de esboços, garatujas, ensaios e apontamentos. As remoções forçadas, as casas marcadas no Morro da Providência – com as iniciais da Secretaria Municipal de Habitação (SMH) – resistiam e colidiam com o material arqueológico que brotava da região portuária durante as obras do Porto Maravilha. O fervor presente da futura chegada das Olimpíadas e da Copa do Mundo, a especulação imobiliária e a revulsão da “Cidade Maravilhosa” eram algumas das complexidades que a exposição movimentou. Em um dos trechos do diário de notas se lê: 

“O exercício era supostamente simples: desmembrar as palavras, trair a língua, fazer delirar a linguagem. Numa deliberada não constatação etimológica, concordamos que topar e topografia têm a mesma raiz grega, topos.

O exercício seguinte: fechar os olhos, tatear a terra, escutar o lugar. A quina de algo maciço, objeto da primeira topada, emergia de um terreno arenoso, irregular, revolto.

O guia, uma espécie de Stalker, nos conduzia em meio aos escombros enquanto narrava a prosperidade por vir. Os shoppings, os hotéis, as lojas de luxo, os arranha-céus com seus vidros espelhados, em suma, as ruínas e a detonação de qualquer faculdade mimética: ruína-hotel cinco estrelas vista mar, ruína-shopping elevador panorâmico, ruína-CEPACs.

O dedo em carne viva, latejante e entranhado por terra, obrigou, de uma só vez, a pausa, a abertura dos olhos e a verificação do objeto da topada. Um pequeno baú de madeira, semiaberto e parcialmente enterrado. Com o auxílio de outro objeto, que só depois percebemos ser uma dormente das antigas estruturas que existiam na região portuária, desenterramos a caixa.

Um lenço, algumas moedas, um calendário, uma calça de algodão cru, um jornal envolto em um saco plástico, uma escova de dentes, um relógio de bolso, uma boneca de pano, um azulejo, uma caneca sem o cabo e uma pequena bolsa de couro que trazia, em seu interior, uma carta parcialmente indecifrável. A carta começava assim: ‘No interior desta caixa não se conserva o testemunho do tempo, não se conservam nem mesmo fragmentos da História. Abrir as caixas lançadas no espaço, abrir as materialidades encerradas em seu interior. Não se conserva, dinamita. Também sob os seus pés, no momento em que lê essas palavras, a inclemência dos tempos’.

A sirene tocou pela terceira e última vez. A terra tremeu.”

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Na cabana com quarto, sala, cozinha, cabana cujo aluguel consome dois terços da minha renda mensal, às margens do lago Rixdorfer, das ovelhas e das pombas, dos traficantes africanos sem acesso ao mercado de trabalho e das águias de pedra, eu deito as folhas do jornal na mesa, leio sobre plebiscito em que 56,4% dos eleitores de Berlim decidiram expropriar conglomerados com mais de 3 mil apartamentos e casas. “Esta é a nossa cidade, é a nossa casa”, reclamam locatários e organizadores da iniciativa pela “ressocialização” da moradia em Berlim.

Eu fecho o jornal. Olho a pilha de livros na mesa. No topo está Walden, e, na abertura do texto, o indiciamento de Henry D. Thoreau à sua época, quando o “pobre homem civilizado” devia trabalhar metade da vida para comprar casa que pudesse chamar, legalmente, de sua. O homem selvagem vive em choupana modesta, mas pelo menos é sua choupana, sua propriedade — sem contrato de aluguel, fiador, reajustes conforme inflação. Progresso? As casas melhoraram, mas não os habitantes das casas, ainda aprisionados em “opiniões sobre si mesmos” e em práticas sociais irrefletidas. Thoreau se cansou da sociedade, de suas convenções, e foi viver no bosque.

Por dois anos, dois meses e dois dias, Thoreau viveu mais precisamente em Walden, perto de águas verdes e azuis, esquilos e corujas, pinheiros e mirtilos, numa cabana que ele edificou, por menos de 29 dólares (sem correção monetária), telhas, reboco, “com um sótão e um armário, uma janela grande de cada lado, dois alçapões, uma porta e uma lareira de tijolos no lado oposto”, e três cadeiras: “uma para solidão, duas para amizade, três para sociedade”. Thoreau não se isolou na natureza (ele construiu a cabana perto da família, no terreno de Ralph Waldo Emerson): ir ao bosque, in the woods, significava dar passo atrás, ou adiante, a uma “civilização exterior”. Significava observar, emancipar-se de condições dadas, pensar, viver desperto, alerta. Construir a casa significava obedecer “às leis do seu próprio ser” — e, se preciso, desobedecer a leis que prescrevem votar, mentir, bajular, sabujar vizinhos para vender sapatos, apólice de seguro, casas arquitetadas por gerentes de banco e outros gerenciadores da vida alheia.

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Na pilha de livros, está ainda As origens do totalitarismo, obra na qual vivi por anos, meses, dias, e Hannah Arendt alertou sobre o “perigo de que uma civilização global, universalmente inter-relacionada, possa produzir dentro de si bárbaros ao forçar milhões de pessoas a condições que, apesar de todas as aparências, são condições de selvagens”. O perigo era que essa civilização se expandisse tanto a ponto de não restar nenhum canto “incivilizado” aonde fugir, onde se refugiar. Essa civilização de nacionalismos, imperialismos, totalitarismos ejetou humanos de suas fronteiras, colocou-os em rotas de fuga, campos de trânsito, guetos, dizimou-os não pela intenção maligna deste ou daquele governante, mas pela essência mesma de políticas geradoras de “seres humanos nus” — sem casa, sem proteção governamental, sem direito a asilo.

Com as sociedades de apátridas, “associais”, displaced, o projeto civilizatório passou do “mal-estar” ao não-estar. Assim, em face aos abismos abertos em 1939, 1941, 1945, ao deslocamento e desaparecimento de milhões, Arendt pediu novas leis e novos princípios, e buscou novos exemplos para reestabelecer a decência humana. Um desses exemplos era o pária. Membros da minoria europeia “por excelência”, párias como Heinrich Heine e Franz Kafka tinham começado “emancipação por conta própria”, sem ideologias, dogmas, programas revolucionários predefinidos — sua revolta era fundada em “seus próprios corações e mentes”.

Os párias pressentiram forças mortificantes de suas épocas, enxergaram as “correntes subterrâneas” (Kafka) e sentiram o “cheiro do futuro” (Heine). Profetas negativos de “tempos sombrios”, acusaram, artisticamente, a censura, os livros queimados (prelúdio a pessoas queimadas), a aliança entre racismo e burocracia em violência jurídica operada por “ninguém”, guerra, deportação e outras “selvagerias” politicamente organizadas. E pensaram, e falaram sobre a ansiedade apátrida. “Quem não tem pátria”, Kafka escreveu a Milena Jesenská, “tem de pensar o tempo inteiro em buscá-la ou construí-la”, pensar sobre estabelecer residência em Praga, Berlim, Tel Aviv, onde for, desde que se possa viver como escritor ou garçom numa polis onde pessoas não sejam pisoteadas como baratas.


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Na cabana em Walden, perguntando-se sobre as “leis essenciais da existência humana”, Thoreau afirmou, entre elas, “alimento” e “abrigo”. Então, se comer e ter um teto para descansar são — ou deveriam ser — condições humanas básicas, como podemos apoiar sociedade cuja maioria não possui título de propriedade, onde se ingere açúcar demais ou calorias de menos, afixa-se placa de “Proibido Entrar” em florestas frutadas, arregimentam-se vidas para invadir e morrer no México, açoitam-se costas cansadas pelo trabalho forçado em plantações de algodão e promovem-se guerra e escravidão com impostos públicos?

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Ano passado, eu fui a bosques e pedras polidas da Croácia participar de seminário intitulado A condição desumana, em que falei sobre a capacidade do pária de captar “correntes subterrâneas”, usar o nariz para “cheirar desumanidade” — e não apenas “dispensar catarro”, como Joseph Roth disse de escritor exilado em Paris nos anos 1930. Na apresentação, eu me lembrei das sessões por Skype com Fred Dewey, no início da pandemia, quando líamos A marcha Radetzky e deliberávamos sobre como resistir ao “espírito do tempo” e, se possível, acusá-lo. Quando eu falava em Hegel e “complexidade”, Fred protestava: “Não é simples? Quem quer beber água intoxicada, quem quer despejar bombas ou ter bombas despejadas sobre si?” Quem quer dormir em estacionamento, endividado, barraca sob a ponte, comunidade costeira ameaçada pelo nível de oceanos, quem quer morar em casa prestes a desabar?

Não é simples? “Simplifique, simplifique”, Thoreau propôs. Com isso, ele — não um ermitão apolítico, talvez um pária voluntário — iniciou sua jornada “extra-vagante”, pôs-se a vagar por casa e vida liberadas de pressões sociais. Era como se o livro da experiência em Walden, o diário da casa, dissesse aos visitantes: não seja uma função profissional, vá ao bosque e escute a linguagem pré-metafórica do vento, neve, sol (“estrela da manhã”), das formigas. Escute o lamento silencioso de escravos, de índios mortos. Discipline o olhar, perceba “a extensão infinita das nossas relações”. Pegue emprestado um machado, construa sua cabana, ocupe prédio abandonado, funda comunidade onde se transacionam beecoins. Desobedeça a Estados escravistas e militaristas, retire apoio a práticas que você considera injustas. Pense no corpo, na coruja, no oceano, na cidade, na cidade no outro lado do oceano, pense em você e no conceito de humanidade como casas que precisam ser edificadas, protegidas, governadas e, de tempo em tempo, despertadas por rebeldes.

Publicada em outubro de 2021, a obra Banzeiro òkòtó, da jornalista gaúcha Eliane Brum, nos conduz a uma profunda reformulação das concepções de corpo, natureza e futuro. Já na escolha do título, Eliane nos convida, ou melhor, nos impõe através da linguagem a nos afastarmos do óbvio.

Segundo os povos do Xingu, banzeiro é o trecho mais perigoso e desafiador de um rio. Banzeiro seria um ponto de onde nem sempre é possível voltar — o ponto de não retorno. Encarar o banzeiro é se lançar na incerteza. Já òkòtó é uma palavra de origem ioruba, que representa um caracol que se move em espiral — o sem fim.

A narrativa apresentada pela autora é repleta de depoimentos, relatos próprios e vivências extremamente palpáveis, físicas. Utilizando as palavras da própria Eliane, “a Amazônia literaliza tudo”. A partir das conexões sensoriais com a Amazônia, a jornalista nos permite assistir à reconstrução de sua própria existência. Curiosamente, essa reconstrução não se deu a partir do campo teórico-acadêmico; é através de seu próprio corpo que nasce o entendimento de que este e a natureza ao seu redor são indissociáveis.

Essa indissociação entre a humanidade e a natureza está na base da construção de saberes ancestrais não ocidentais, como os dos povos indígenas e africanos. Esses saberes datam de muito antes da invasão deste território hoje chamado Brasil. São culturas que nascem com e da terra.

Em diálogo com a perspectiva dos povos amazônicos que costuram toda a obra, trago o exemplo da filosofia dos povos Bantu, que compõem o sangue que corre nas veias de grande parte da população deste país.

Henrique Cunha Júnior, pesquisador e professor titular da Universidade Federal do Ceará, descreve em seu artigo NTU a maneira como os povos Bantu compreendem as correlações entre humanidade, comunidade e natureza. Ele diz:

NTU é o princípio da existência de tudo. Na raiz filosófica africana denominada Bantu, o termo NTU designa a parte essencial de tudo que existe e tudo que nos é dado a conhecer a existência.

A população, a comunidade, é expressa pela palavra Bantu. A comunidade é histórica, é uma reunião de palavras, como suas existências. No Ubuntu, temos a existência definida pela existência de outras existências. Eu, nós existimos porque você e os outros existem; há um sentido colaborativo da existência humana coletiva. A organização das línguas Bantu reflete a organização de uma filosofia do ser humano, da coletividade humana e da relação desses seres com a natureza e o universo.

Para compreender a complexidade da floresta é preciso praticar NTU. É preciso se sentar para aprender com os mais velhos, e não me refiro apenas aos anciãos: me refiro a comunidades inteiras que, geração após geração, mantêm viva a sabedoria milenar de escapar do banzeiro e construir o futuro.

O corpo

Temos empregado o termo “desconstrução” para definir o movimento de ruptura com paradigmas político-sociais engessados e ultrapassados para a busca de uma evolução. Como uma cobra que troca de pele ou uma lagarta transmutando em borboleta, temos também o poder da mudança através da destruição do antigo corpo.

A partir de sua experiência com os povos indígenas, quilombolas e comunidades ribeirinhas da região Amazônica, sobretudo de Altamira, no estado do Pará, Eliane se desconstrói, mas não apenas dos valores e convicções adquiridos durante toda uma vida cercada dos privilégios que o contexto urbano proporciona em uma estrutura cartesiana e eurocêntrica. Ela se permite deixar desmoronar o corpo de mulher branca, sulista e de classe média para se tornar floresta. Eliane narra esse esfarelar do corpo citando os sintomas físicos que experimentou:

Desde que me mudei para a Amazônia, em agosto de 2017, o banzeiro se mudou do rio para dentro de mim. Não tenho fígado, rins, estômago, como as outras pessoas. Tenho banzeiro. Meu coração, dominado pelo redemoinho, bate em círculos concêntricos, às vezes tão rápido que não me deixa dormir à noite. E desafina, com frequência sai do tom, se torna uma sinfonia dissonante, o médico diz que é arritmia, mas o médico não sabe de corpos que se misturam.

A Amazônia não é um lugar para onde vamos carregando nosso corpo, esse somatório de bactérias, células e subjetividades que somos. Não é assim. A Amazônia salta para dentro da gente como num bote de sucuri, estrangula a espinha dorsal do nosso pensamento e nos mistura à medula do planeta.

O leitor, ao se entremear às páginas do livro, também é tomado por essa sintomática urgência de novo corpo. Procura tocar os pés no chão, tatear a pele, sentir o ar adentrando as narinas. É como se já não coubéssemos em nossa estatura. Precisamos buscar a terra para fincar nossas raízes para que então possamos, em coletivo, crescer e gerar frutos. Esse é o tipo de leitura que nos faz perceber que a individualidade urbana é estéril.

Amazônia mulher

Não é possível citar tantas vezes a palavra “virgem” e seguir adiante como se estivesse tratando do preço do pão. “Virgem” não é uma palavra qualquer, porque carne. Na Amazônia como na vida das mulheres está intimamente ligada à destruição. Não apenas à destruição de uma barreira como o hímen, mas pela destruição que se dá pelo controle, pelo domínio dos corpos. A escolha da palavra “virgem” para se referir à floresta e a outros ecossistemas ainda não totalmente dominados por homens, como representação do fascínio por um corpo “natural” e “selvagem” e “intocado”, ilumina as relações de poder que levam a Amazônia para cada vez mais perto do ponto de não retorno.

O trecho acima, que abre o capítulo “Amazônia mulher”, ilustra o uso magistral que Eliane faz da linguagem e das analogias para trazer à narrativa a imagem de uma Amazônia feminina, um corpo-floresta com traços de pureza “intocada”.

Corpos femininos em uma sociedade patriarcal capitalista são tidos como objetos de servidão, além de oportunidades de exploração para manutenção das relações de opressão, seja da estrutura machista sobre as mulheres, seja da opressão humano-empresarial-capitalista sobre a natureza.

Ao invadir o território amazônico, os colonizadores impuseram sobre a mata e todas as vidas que a integram sua violência disfarçada de projeto civilizatório. A violação dos corpos de mulheres indígenas e a destruição paulatina da floresta caminham juntas no decorrer dos séculos, nos lembrando mais uma vez da indissociação entre humanidade e natureza.

Pensar a Amazônia como o corpo de mulher está para além do olhar limitado e predatório do modelo patriarcal. Para entender a Amazônia, seus mistérios e, sobretudo, seu poder, é necessário olhá-la com olhos de fêmea, é preciso aprender a decifrar o segredo fértil das águas dos rios. A Amazônia é ventre parideiro de mundos possíveis.

Do banzeiro para o futuro – A potência na desestrutura

Banzeiro òkòtó é uma obra necessária para os nossos tempos, trazendo denúncias fundamentais para o avanço do debate sobre a questão ambiental no Brasil. O trabalho de Elaine é também uma ferramenta de resistência, um amplificador das vozes dos povos amazônicos que há tanto têm gritado por socorro. Ele traduz para nosso idioma a linguagem da mata, que se reivindica enquanto corpo vivo e sagrado.

Vivemos um momento crítico, quando inúmeros retrocessos ambientais protagonizados pelo atual governo federal ameaçam as perspectivas de vida de nossos descendentes. Nosso Legislativo apresenta “pacotes de destruição” em prol de um “futuro” que visa apenas ao lucro com a expansão do agronegócio, custando a vida de milhares de indígenas que lutam pelo direito a suas terras, custando a vida de milhares de animais, ou, como prefere a autora, de não humanes que queimam na mata. Não haverá retorno do banzeiro sem que façamos demolir as estruturas, a começar por nós mesmos. Que deixemos cair por terra o corpo que naturaliza o fim.

Os povos do Xingu sempre souberam escutar o rio, respeitando o momento em que ele se deixa atravessar ou que manda recuar. Que aprendamos com eles a potência que há em retornar ao passado quantas vezes for necessário para que se garanta o amanhã.


Estátua do oficial militar Robert E. Lee é removida de seu pedestal em Richmond, Virgínia (EUA)

Em uma das cenas iniciais do clássico O homem de mármore (1977), filme do polonês Andrzej Wajda, a jovem cineasta Agnieszka invade uma área restrita do Museu de Varsóvia. Lá, foram ocultadas pelo governo comunista estátuas de heróis passados do regime. Ela filma as formas robustas e colossais de um daqueles homens de mármore esquecidos num porão. Era a estátua de Mateusz Birkut, um operário enaltecido em prosa e verso pelo comunismo polonês nos anos 50 por suas qualidades de trabalho, até que, subitamente, seu nome desapareceu da arena pública — consequência de alguma inobservância à linha dura do Partido. Agnieszka pretende, com um documentário, recuperar a memória desse ex-herói proletário caído discretamente em desgraça. Sua filmagem da estátua abandonada serve para contrapor a grandeza de sua glória à dimensão de sua queda.

Estátuas abatidas: o tema evoca imagens recentes, que ganharam o mundo no ano I da pandemia. Na sequência do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, em maio de 2020, eclodiu uma onda de contestações a monumentos em homenagem a figuras ligadas ao passado escravagista e colonial, que foram ou vandalizados por manifestantes ou retirados por autoridades, em regiões tão distantes quanto as Américas, a Europa, a África do Sul e a Ásia. Movimento semelhante ocorrera pouco antes na América Latina, durante o estallido social que sacudiu o Chile em 2019. Gravações impressionantes mostravam multidões enlaçando e derrubando, em festa, estátuas de Pedro de Valdivia, conquistador espanhol do século XVI que foi um dos algozes dos povos mapuche, ainda hoje marginalizados na moderna sociedade chilena.

Templo de Bel, na Jordânia

E, no entanto, os Valdivias e os Confederados americanos decapitados e arrastados pelo chão em triunfo por manifestantes diferem em tudo daquele homem de mármore adormecido que Agnieszka filma às escondidas num porão de museu na película de Wajda. No caso do herói proletário Mateusz Birkut, não se tratava de uma mudança política e cultural, mas do apagamento da memória de um indivíduo por um Estado totalitário também responsável pela sua construção como ídolo das massas, tendo em vista apenas seus próprios fins políticos. Por isso, ao longo do filme, Agnieszka luta constantemente contra as resistências da burocracia comunista para recuperar os registros orais e visuais, dispersos ou ciosamente ocultados, da ascensão e do declínio de Birkut, refazendo uma memória incômoda aos donos do poder na Polônia dos anos 1970.

Não é esse silencioso descarte o destino reservado no mais das vezes às estátuas dos ídolos de ontem durante as grandes mutações coletivas. Essas dão lugar frequentemente a destruições públicas e altissonantes. No contexto religioso, são famosos os iconoclasmos bizantino do século VIII e protestante no século XVI. Bem entendido, a demolição dos ícones não se limita ao cristianismo e é conhecida também no hinduísmo e no islamismo: acessos recentes e dramáticos de fúria iconoclástica atingiram os Budas de Bamiyan (no Afeganistão, em 2001, pelos talibãs) e as ruínas sírias de Palmira (em 2015, por ordem do Estado Islâmico). As grandes convulsões políticas também são cenário favorável a atos públicos de destruição. Foi assim com os reis e santos golpeados pelos partidários da Revolução Francesa no século XVIII, com as estátuas de Saddam Hussein depois da invasão americana de 2003 ou ainda com as efígies de Lênin desintegradas a marretadas pelos ucranianos nos protestos da Euromaidan, em 2014.

A conclusão é clara: tão importante quanto a transformação política ou cultural empreendida é marcar os corações e as mentes com imagens dos velhos símbolos do passado doravante reduzidos a pó. Daí que essas demolições assumem um caráter de rito coletivo catártico, quando não — e especialmente em nossas sociedades — espetacular. Trata-se de reforçar exatamente aquilo que os dirigentes comunistas no filme de Wajda queriam apagar: a memória. É como se não bastasse a estátua desaparecer. Sua conversão em ruína, à vista de todos, anuncia um novo tempo, e, por isso, esse gesto deve ser lembrado. A estátua alvejada é simbólica e memorável mesmo quando deixa de existir.

Podemos nos perguntar, então, de que grandes mudanças os catárticos iconoclasmos de 2019 e de 2020, midiatizados ao extremo em milhões de câmeras de celular e nas plataformas digitais de todo o mundo, seriam representativos.

Trata-se de transformações que são profundas e, provavelmente, sem retorno. O modelo que opõe univocamente o Ocidente e o resto se mostra obsoleto frente a uma realidade mais e mais porosa. Não é que as hierarquias entre as democracias liberais afluentes e regimes distintos (de democracias disfuncionais a autocracias), com níveis de desenvolvimento econômico e humano menos brilhantes, tenham desaparecido. A situação nova é mais sutil: com o fim dos impérios coloniais europeus dos séculos XIX e XX, aqueles que eram o resto do mundo — árabes, indianos, africanos, latinos — estão mais e mais presentes no próprio Ocidente, nos centros das antigas metrópoles, em suas grandes instituições, em suas capitais.

Nessa nova configuração, mais saliente nas metrópoles cosmopolitas habitadas pelas classes superdiplomadas, não surpreende que as estátuas de figuras ligadas ao passado colonial sejam alvo de protestos de toda ordem, inclusive de vandalismo. Os cidadãos citadinos dessas grandes democracias pós-coloniais devem sentir diferentemente do que o fizeram as gerações anteriores, mais homogêneas etnicamente, as homenagens a Cecil Rhodes ou a Leopoldo II. Afinal, foram eles os opressores das comunidades outrora colonizadas das quais vieram populações que estão concretamente ao redor do cidadão citadino contemporâneo, como seu colega de faculdade indiano, seu vizinho senegalês ou argelino, quem sabe mesmo aquele ou aquela com quem se casou e teve filhos. A agressão pública dessas estátuas, em momentos de crise, seria uma forma de assinalar que algo mudou duravelmente na comunidade regional ou nacional.

Não seria diferente em países das Américas. Seu estatuto de antigas colônias, sua construção como nações a partir de uma situação de submissão política, social e racial, e em seguida sua conversão em nações democráticas (imperfeitamente?) includentes de minorias outrora inferiorizadas — todos esses fatores trazem à questão das estátuas inflexões ainda mais dramáticas, por se tratar de um combate a traços constitutivos de sua própria formação histórica. Seria por isso, quem sabe, que esses movimentos de 2019 e 2020 tenham aparecido tão cedo no Chile e nos Estados Unidos?

A questão que se coloca é saber se a derrubada é a única resposta que democracias às voltas com minorias étnicas outrora marginalizadas podem dar à existência de estátuas associadas ao passado colonial. Certamente, não é possível nem desejável seu apagamento em surdina, como o que ocorre em O homem de mármore — a memória da opressão passada é precisamente o que se quer preservar, como arma para sua superação. Não seria conveniente conservar fisicamente essas estátuas, permitindo-se, ao mesmo tempo, jogar com seu sentido?

Isso equivaleria a convertê-las de monumento em monumento histórico. Desse modo, elas perderiam seu caráter de homenagem coletiva ao suposto grande homem do passado, construtor da glória nacional às custas dos antepassados daqueles que hoje devem ser integrados à nação, em igualdade com as populações etnicamente dominantes. Poderiam ser sujeitas a intervenções de caráter artístico ou pedagógico com o objetivo de informar, de educar, de examinar, de deslocar o sentido do monumento da celebração à contextualização e à crítica.

Sabemos que a preocupação patrimonial é ampla o suficiente para abarcar, como herança comum da humanidade, não só palácios, parques e igrejas, mas também prédios e estátuas feitos com sangue e com lágrimas. A Casa do Terror, em Budapeste; o campo de Auschwitz, na Polônia; ou o sítio arqueológico do Cais do Valongo, onde desembarcavam africanos escravizados no Rio de Janeiro, são exemplares importantes dessa modalidade dolorosa do patrimônio, podendo servir a rememorar não só os oprimidos, mas também os opressores e os mecanismos da opressão.

Os Budas de Bamiyan, no Afeganistão
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Favela: onde a potência humana é criminalizada pelo Estado

por Joelma Sousa

Já faz algum tempo que ouço e leio muitas coisas como: “a favela é um espaço da cidade”. De fato, as favelas são um espaço da cidade, e o objetivo deste texto é propor uma reflexão sobre como nossos espaços e territórios favelados apresentam suas funcionalidades nas cidades e metrópoles do nosso Brasil.

As favelas desde sua origem — territórios periféricos — são lugares e fonte de luta e resistência, nos quais somos nós por nós mesmos. Sempre em busca de uma melhor qualidade de vida, tentamos de alguma maneira sanar nossos problemas: falta de água e saneamento básico, ajudar o vizinho que passa fome e aquele que precisa construir um barraco. Como moradora de favela desde o nascimento e ativista pelos direitos urbanos no conjunto de favelas da Maré, posso dizer com propriedade que criar soluções para os problemas estruturais é a nossa maior qualidade. 

Em meio à luta pelo nosso lugar e à batalha pelo pão diário, tenho cada vez mais repensado as nossas potencialidades. É nesse momento que deparo com algum fundamento de base e diretrizes legais — leis e direitos — que nos colocam num lugar próximo à criminalidade. Segundo os dados do Censo 2010 do IBGE, 6% da população brasileira reside em espaços chamados aglomerados subnormais — favelas e ocupações —, o que significa algo em torno de 11 milhões de pessoas. Vale destacar que alguns bairros pobres não são classificados como favelas ou subnormais porque seus moradores possuem documentação da propriedade.

As favelas cariocas são habitadas por 2 milhões de moradores. Dados do IBGE apontam que o Rio de Janeiro é proporcionalmente o líder nacional em habitantes de favelas. Registros históricos indicam que as primeiras favelas do Rio surgiram em 1897, durante a Guerra dos Canudos. Cabe destacar que a lei do Ventre Livre (1871) – responsável por libertar os filhos de mulheres escravas – foi um dos principais fatos históricos a contribuir para as ocupações espontâneas na cidade do Rio de Janeiro, resultando no surgimento de uma expressiva quantidade de cortiços na região central. Assim como outros trabalhadores, era ali que os filhos da lei do ventre livre buscavam oportunidade de trabalho e moradias, numa área de importante trânsito desde a construção da estação ferroviária Central do Brasil, em 1858.

Em 1893, por ordem do prefeito Candido Barata Ribeiro, o cortiço Cabeça de Porco foi demolido, com os moradores sendo despejados em meio à demolição, sem terem para onde ir. Parte dos residentes do Cabeça de Porco foi para a travessa da Felicidade, onde surgiu uma das primeiras favelas do Rio de Janeiro, o “Morro da Favela”. Tendo em vista esse processo, precisamos nos questionar: o que significa uma cidade? Segundo Milton Santos (1979), as cidades são pensadas e construídas seguindo um modelo econômico e o desenvolvimento do mercado, ambos pontos de partida de uma distribuição de renda cada vez mais injusta e desigual. Nesse sentido, podemos dizer que o processo de modernização das cidades, sendo este seguido pela modernização da sociedade, deixa a carga mais pesada para os mais pobres, os quais normalmente ocupam subempregos ou convivem com o desemprego. Contudo, somos nós, moradores de favelas e periferias, que sustentamos a cidade, pois na prática pagamos mais caro pelos impostos, já que não temos acesso efetivo às políticas públicas para as quais esse dinheiro seria destinado.

Ao nos transformarmos em especialistas em sobrevivência, luta e resistência, criamos estratégias para ter acesso aos direitos básicos, os quais só nos foram garantidos com a Constituinte de 1988. Ironicamente, a mesma Constituinte que teve como base a ideia de direito à propriedade privada nos colocou à margem ao não legar às favelas o direito à propriedade, deixando-nos conceitualmente como aglomerados subnormais.

Diante das desigualdades acima expostas, podemos refletir sobre a nossa participação na composição da cidade e problematizar que participação é essa e como ela é dada. Historicamente, a população negra do Brasil não participou de maneira igualitária do acesso ao emprego, à escolarização e à compra de propriedade privada. Algumas leis que impactaram de forma negativa a população negra, com consequências até os dias atuais, foram: a Lei de Boi (1837), que proibia a população negra de frequentar escolas públicas; a Lei de Terras (1850), que, ao privilegiar latifúndios, potencialmente nos impediu de ser donos de propriedade privada. A isso, soma-se um mercado de trabalho discriminatório, que historicamente deu preferência a pessoas que não fossem de cor. 

Não bastasse isso, a criminalização social também se estende às nossas estratégias de sobrevivência, pois para termos o direito à vida fomos obrigados a nos valer de trabalhos que automaticamente nos prejudicavam aos olhos da sociedade. É aqui que se inicia a imagem da nossa relação com ocupações marginais, uma vez que tivemos a necessidade de trabalhar como vendedores ambulantes, comerciantes de drogas ilegais, trabalhadoras domésticas, entre outros. Com exceção da atividade doméstica, reconhecida legalmente depois de muitos anos através da garantia de seus direitos, sempre precisamos transitar em postos de trabalho rebaixados. A história da nossa criminalização pelo Estado é a nossa história.

É preciso que reflitamos sobre o motivo de a sociedade branca incriminar as nossas potências. Somos constantemente culpados pelo nosso não sucesso — mérito esse que é estipulado e mensurado pelo padrão branco e europeu. Somos vistos como potências em lugares de subalternação, aqueles que estão prontos a servir, fazendo parte do dia a dia como balconistas, diaristas, manicures, motoristas de ônibus e empreendedores de pequenos comércios. Claro que todo trabalho é digno, mas aqui trago reflexões sobre como nossas potências são vistas. Se um pensador como Vélez Rodríguez pode afirmar que “as universidades devem ficar reservadas para a elite intelectual”, isso revela quão problemático é o espaço destinado a nós na sociedade.

“É preciso que reflitamos sobre o motivo de a sociedade branca incriminar as nossas potências. Somos constantemente culpados pelo nosso não sucesso — mérito esse que é estipulado e mensurado pelo padrão branco e europeu.”

As favelas são espaços marginalizados e estereotipados, vistos como espaços ilegais, violentos, precários e inseguros. Será que isso cabe ao que chamamos direito à cidade? Pois toda a nossa ilegalidade está diretamente ligada à não efetivação da legalidade, ou seja, a ausência de efetivação dos nossos direitos inicia um ciclo que nos posiciona sempre à margem, em uma constante marginalização dos nossos corpos e territórios. Cabe aqui refletir sobre o que Clovis Moura já trazia na Sociologia do negro brasileiro em relação à divisão racial do trabalho e o que Milton Santos apresentava em O espaço dividido. Trata-se de uma questão econômica e de poderes aquisitivos. Quem são aqueles que sustentam as bases da cidade, mesmo em condições de não cidadãos portadores de direitos? A cidade dessa maneira é um mero instrumento mercadológico, inserida em um conceito de fábrica (centros) no qual o solo tem valor intrínseco às políticas urbanas, tornando caros os bairros mais bem localizados e transformando os não tão bem localizados em subúrbios, sem importância.

Nós de fato somos potências, e como potências temos nos mantido vivos, mas precisamos avançar e lutar para superar as questões raciais, pois até momento o que se tem feito é mitigar, e mitigar não significa resolver as deficiências estruturais. O problema não está no fato de brancos serem descritos como “jovens que comercializavam a venda de entorpecentes”, mas no contraste com “traficantes são mortos em favela do Rio”, fazendo da questão racial um ponto central na legitimação das nossas mortes e na contínua não efetivação das políticas públicas para a nossa população diante da violência do Estado.

Defender nossos direitos e lutar por eles é também descriminalizar nossas estratégias de sobrevivência, mesmo que em alguns casos sejam ilegais. Segundo Silva Lima, em Quatrocentos contra um: uma história do Comando Vermelho, a marginalização social e econômica é base de fundamento para seletividade penal e criminalização dos espaços e territórios de favela. A luta pelo reconhecimento das potências continua, pela favela como cidade sem marginalização e principalmente pelo direito à vida. Pois o sistema racista combinou de nos controlar socialmente e nos matar, mas nós pactuamos em sobreviver, sendo “nós por nós”, criando tentáculos em vários espaços da cidade.

As favelas são espaços marginalizados e estereotipados, vistos como espaços ilegais, violentos, precários e inseguros. Será que isso cabe ao que chamamos direito à cidade? Pois toda a nossa ilegalidade está diretamente ligada à não efetivação da legalidade.”

Na busca de algo que eu pudesse enxergar sobrepondo-se às imagens, passei anos vagando neste pântano — o pântano da compreensão, da representação, da abstração.

Eu estava olhando para as coisas procurando por suas evidências. Continuei tentando entendê-las fisicamente, existentes, mas estavam todas cobertas com esta substância escura, molhada, pastosa — esta forma insolúvel: imagens, apre-sentando nada além de si mesmas.

Passei os últimos sete anos entrando intuitivamente em museus, zoológicos, centros de estudo. Continuei tentando entender semelhança, mimese, símbolo, representação. Eu sabia que esses conceitos se aplicavam a todos os objetos para os quais eu olhava, e minha intenção era aprender a distinguir a diferença entre mimese, significado, imagem e matéria. Paradoxalmente, eu buscava fazê-lo por intermédio da fotografia.

Depois de olhar por tanto tempo para as coisas tentando entender suas imagens, um dia me dei conta: o problema da imagem reside, de fato, no problema da realidade. A compreensão definitiva disso aconteceu não no interior de museus, mas pela experiência de entrar em antigas cavernas pré-históricas e fotografar suas paredes, ou as réplicas de suas paredes, no museus-cavernas, criados como mímeses de uma arquitetura arqueológica.

Observar a complexa estratificação do tempo e do significado sobre os desenhos e sobre as próprias formas daquelas cavernas me fez compreender melhor algo relacionado à visão: não podemos significar a realidade. E estamos tentando isso desde sempre.

Esculturas, desenhos, mapas, fotografias, esquemas, objetos, escritos, vestígios, fósseis, animais representando animais, rochas, rochas falsas, retratos de pessoas, pessoas posando para
retratos: um infinito de coisas explicando, representando, traduzindo, parecendo… outras coisas.

Tantos objetos distintos, e todas as superfícies igualmente espessas. Todas igualmente vazias e incrustadas com a mesma miríade de significados. Estou falando de imagens.

Após anos observando inúmeras coisas e após entrar naquelas cavernas sem nunca entender plenamente nada disso, percebi que o próprio ato de ver é vazio e abstrato. Imagem (formando-se no fundo do olho) é linguagem. Ver… não é evidente.

É somente a partir de uma experiência linguística de tradução (da visão abstrata para a compreensão representativa) que as imagens surgem como camadas cristalinas (eu quero dizer: transparentes) de significado, emergindo como água das profundezas desse escuro e espesso, o lamacento abstrato: o abstrato da compreensão.

#40DemoliçãoCulturaSociedade

Afrofuturalidades entre a realidade e a ficção: a Semana de Arte Moderna Negra de 1922

por Zaika dos Santos

A guerra das narrativas, o contexto histórico e os debates na pós-modernidade, o epistemicídio, o silêncio, a invisibilidade e o apagamento. P. Palavras que andam sempre em conjunto quando o assunto é a descolonização.

Estamos no tempo presente, e meu recorte propõe, através da máquina do tempo que aqui é a escrita, levar o leitor e a leitora às linhas transtemporais do passado, nas confluências de Afromodernismo Brasileiro, Arte Negra Contemporânea, Arte Negra Pós-Moderna, Afropresentismo e Afrofuturismo.

Estudo de Quatro Cabeças, de Artur Timóteo (Acervo: Museu Afro Brasil)

Por meio desta máquina vou tecer um recorte específico: a Semana de Arte Moderna Negra. Afinal, a palavra como registro é história, e a história é a visibilidade tangível entre a ficção e a realidade — ou seja, Afrofuturalidades, “juntas ou separadas, coexistindo e tendo como relação principal a produção de linhas temporais e multiversos. Em duas dimensões: na realidade e na ficção, e na construção de futuros reais ou ficcionais”. Na realidade desta confabulação, pergunto: o que seria do discurso de modernidade sem a presença de registros históricos sobre africanos e afrodescendentes em arte, ciência e tecnologia, na construção de um discurso de universalidade? O que hoje significa a apropriação que invisibiliza, deturpa e cria um universalismo abstrato sobre a modernidade?

Não concorda com meu pensamento? Bom, estou aqui para te provocar a pensar, então para isso relaciono alguns registros históricos da África: a matemática; o fractal africano; Sona; o Osso de Ishango; Odu Ifá – o criptograma de 0 e 1; Kitembu, o tempo; o cosmograma bacongo e a calunga; Nabta Playa, o primeiro sítio arqueoastronômico; jogos de mancala; a Pedra de Roseta; os adincras… De onde vêm essas memórias há muito mais.

Toda a tecnologia, a ciência, a arte e os demais conceitos das modernidades oriundos da pioneira cultura africana atravessaram o Atlântico junto a homens e mulheres forçadamente escravizados num processo histórico desumano, pessoas cuja sobrevivência esteve condicionada a preservar laços com o sincretismo, com a oralidade e com a sabedoria ancestral de sua história — história esta apropriada culturalmente, cientificamente e tecnicamente. Até o objeto mais pós-moderno que uso neste momento para digitar, conhecido como computador, remonta à África, afinal a tecnologia de mineração do ouro é conhecimento africano, e sem ouro um computador ou dispositivo móvel nem sequer liga. Muitas inquietações, não é?

Vamos apertar um botão de nossa máquina do tempo e chegar a 13 de fevereiro de 1922, em um Brasil que se consolidou nas lutas abolicionistas, um país em que populações originárias, africanas e afrodescendentes confluíram seus direitos de autonomia, sociedade, autoria, liberdade, cultura, tradição, política, economia e ancestralidade como justiça social oriunda da escravidão forçada. Nesse cenário, os povos afrodescendentes decidiram se reunir para visibilizar a modernidade na arte negra, afinal estão com o tempo focado para tal, tendo em vista a realidade de justiça social que vivem nessa confabulação em 1922. O ponto de partida para a Semana de Arte Moderna Negra no Brasil, de 1922, foi o ano de 1910 (viajamos novamente), com a renovação artística negra baseada em três conceitos: a literatura antiescravista; a ciência geodésica, por meio dos estudos e desenhos gravitacionais das regiões brasileiras; e a pintura, por intermédio das cenas em movimento.

Na literatura, a referência principal é a escritora Maria Firmina dos Reis, que em sua obra antirracista humanizava a história de africanos e afrodescendentes em situação de escravidão. Como mulher negra, Maria Firmina também se tornou uma referência histórica. A seu lado na literatura, Lima Barreto, com sua presença efetiva na Academia Brasileira de Letras, popularizou a crítica social literária do antiescravismo.

Nas artes visuais, destaque para o pintor e decorador Artur Timóteo, que propôs o movimento como uma relação da afrocentralidade figurativa, em um fluxo contínuo de temporalidade imagética.

Já na ciência, o protagonismo negro se deu por intermédio da primeira base geodésica do País, desenhada pelo grande Teodoro Sampaio, geógrafo, engenheiro, escritor e historiador brasileiro que trabalhou no Museu Nacional.

Inspirada por essas influências renovadoras que não apagavam o passado, pautavam o antiescravismo, recuperavam as memórias ancestrais, promoviam justiças sociais e se direcionavam ao futuro, em 1921, após conquistar medalha de ouro na disputa de cantoras do Instituto Nacional de Música, a cantora Zaira de Oliveira ganhou uma viagem à Europa para acompanhar os artistas afro-europeus que estavam recuperando e devolvendo para a África os bronzes do Benim, as máscaras de Tchokwe e os inquices indevidamente alojados em museus europeus. No mesmo período, pôde acompanhar a devolução de importantes referências históricas da América Latina, especificamente de povos originários. De lá, Zaira foi para os Estados Unidos encontrar seus amigos vanguardistas do Renascimento do Harlem, entre eles a escultora Augusta Savage, que a convidou a criar uma ficção sônica sobre suas obras. Após conversar em um jantar com W.E.B. Du Bois e Marcus Garvey sobre o Pan-Africanismo, decidiu ir à África conhecer o rei da Etiópia, Haile Selassie, que conduzia com êxito o único país africano não colonizado.

Zaira de Oliveira

Motivada por tanta consciência mítica afrocêntrica, Zaira voltou para o Brasil em 1922 e, com o esposo Donga, responsável pela gravação do primeiro samba brasileiro, decidiu ocupar o Theatro Municipal de São Paulo e realizar a Semana de Arte Moderna Negra, em uma perspectiva afro-brasileira da ancestralidade, das africanidades, do antiescravismo e do antieugenismo, reverberando a arte, a ciência e a tecnologia africanas e afrodescendentes.

Reuniram-se no Theatro Municipal as comunidades quilombolas brasileiras, os clubes negros, as congadas, os jongos, os terreiros de candomblé, a Mãe Menininha do Gantois, o psiquiatra Juliano Moreira, os artistas visuais Teodoro Sampaio, Arthur Timóteo, Benedito José Tobias, Heitor dos Prazeres e João Timóteo da Costa, entre outros grandes nomes, em uma cosmovisão afro-brasileira.

Foi a semana que revolucionou a arte brasileira e confluiu desmembramentos culturais, artísticos, tecnológicos e científicos em vários ciclos, e essas experiências foram passando por gerações. Aqui calibro a máquina do tempo transtemporal para 1945, quando Enedina Alves — que na infância assistiu a toda a programação da Semana — se formou em engenharia. Também aponto a máquina transtempo para a produção artística de Rubens Valentim, como experiência dessa convergência estética que viveu na infância em 1922, e também para os clubes negros dos anos 1960.

Já nivelo esta máquina temporal para te levar ao Museu de Arte Negra de Abdias do Nascimento e ainda elucido sua potencialidade na confluência da revolução cultural, científica e tecnológica, assim como o “Quilombismo”. Achego a máquina transtempo para 1970, os bailes Black Power, o Cinema Negro. Da mesma forma para  “Amerifricanidades” e o pretoguês da mineira Lélia Gonzalez, que também foi uma das fundadoras do Olodum; para as ““teorias críticas” da filósofa Sueli Carneiro; para o “Tempo Espiralar” de Leda Maria Martins; para as geografias afrocentradas de Milton Santos; para a física aplicada das cientistas Sônia Guimarães e Zélia Ludwig.

E aconchego esta máquina do tempo transtemporal no Quilombo do Ciberespaço, que faz sua vocalização no agora como um tempo confabulado no contratempo da reexistência histórica na manutenção de nossas ancestralidades como a proporção da pós-modernidade negra na confluência do agora e do amanhã.

Toda a história africana e afrodescendente de arte, ciência e tecnologia são é real, assim como as  personalidades negras citadas aqui também o são. Viajamos por vários lugares, não é? Esse é o transtemporal das Afrofuturalidades, a Sankofa do “volte e pegue”, nas linhas do tempo do pensamento. O Afrofuturismo Brasileiro se insere nessa história, sendo “arte, ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente. Especificamente, o que foi negado historicamente, a participação e a presença de africanos e afrodescendentes na construção do conhecimento ‘universal’. Os desdobramentos conceituais são fundamentais às relações com a temporalidade (passado, presente e futuro, ou a transtemporalidade), bem como a busca pela afrocentralidade e sua forte relação com o ciberespaço (as transições da globalização, o processo crítico a esta, ao mesmo tempo que a facilidade ao acesso de informações sobre o continente africano e suas narrativas históricas em conexão com suas relações na diáspora, dependendo de uma pesquisa em bancos de dados de sistemas de aprendizado).”

Fiz um documentário com ficção/realidade na sua mente. Entendeu por que precisamos das Afrofuturalidades, do Afrofuturismo, do Afropresentismo e do Africano Futurismo na educação do quilombo pós-moderno que está dentro e fora do ciberespaço?

Membros da Sociedade União Familiar
Para Ismar Tirelli Neto

Mundo é uma daquelas palavras enganadoras. Acreditamos estar de acordo quando dizemos “mundo” ou “fim do mundo”, mas no mais das vezes o que fazemos é entrar em um terreno de equivocações que podem ser fatais. Apenas a história moderna da filosofia ocidental oferece uma miríade de sentidos para o conceito. Kant, por exemplo, concebia o mundo como a natureza teleologicamente organizada, isto é, orientada para fins da razão humana. Para Hegel, trata-se do processo da transfiguração da natureza pela história, a que ele chama de Espírito. Marx, leitor e crítico, afirmava a indissociabilidade entre consciência e matéria no mundo histórico, produzido, por sua vez, pelo trabalho humano a partir da natureza. E há ainda Heidegger, para quem mundo é o campo de sentido compreendido pela existência humana. Como se pode ver, em nenhuma dessas concepções mundo e planeta são sinônimos.

Seria redundante retomar cada um desses autores para saber o que disseram a respeito de animais, plantas e outros; como se pode inferir a partir do seu entendimento de mundo, este é eminentemente humano — isto é, embora as concepções divirjam entre si, situam-se no mesmo terreno. Quando falamos, portanto, em fim do mundo nessa ou nessas cosmologias, estamos falando do fim do mundo humano. Nesse sentido, a catástrofe ambiental estaria sempre relacionada à possibilidade da manutenção da espécie. Mas ainda não é tão simples. Poucas vezes a humanidade é ou foi considerada a totalidade dos entes designados como Homo sapiens. Variações de raça, gênero, classe, a separação entre selvagens e civilizados e outras cindiram a espécie, determinando quem é mais ou menos humano. Essas diferenças fazem e fizeram muita diferença. Se no conceito moderno de mundo cabe exclusivamente a humanidade, o conjunto humanidade é menor que o de espécie.

Ailton Krenak usa a expressão “a humanidade que pensamos ser” para dar conta de certa noção de existência e modo de vida muito arraigados em nosso imaginário. O antropoceno seria a marca dessa humanidade que se crê fixa, que crê a Terra como pronta de uma vez por todas e o mundo como sendo para o Homem ou dele. É só de dentro da estória solipsista do mundo enquanto clube humano que podemos pensar que a catástrofe é um ato da espécie que ela sozinha pode mitigar.

Para Krenak, mundo, ou melhor, mundos são o resultado de um sistema de relações resolutamente metamorfo. A separação entre humanidade e natureza não faz sentido; ou seja, a separação entre mundo e natureza tampouco o faz. E tudo não só é passível de se tornar outra coisa mas também está sempre se tornando outra coisa. Essa é a memória ancestral dos povos:

As diferentes narrativas indígenas sobre a origem da vida e nossa transformação aqui na Terra são memórias de quando éramos, por exemplo, peixes. Porque tem gente que era peixe, tem gente que era árvore antes de se imaginar humano. Todos nós já fomos alguma outra coisa antes de sermos pessoas. […] Os ameríndios e todos os povos que têm memória ancestral carregam lembranças de antes de serem configurados como humanos. Quando os povos originários se referem a um povo como “uma nação que fica de pé”, estão fazendo uma analogia com árvores e florestas. Pensando as florestas como entidades, vastos organismos inteligentes. Nesses momentos, os genes que compartilhamos com as árvores falam conosco e podemos sentir a grandeza das florestas do planeta (trecho de A vida não é útil, 2020).

Essas estórias têm o poder, nos dirá o autor em Antes, o mundo não existia (1992) , de “criar o mundo de novo, limpar o mundo”. Se é assim, é porque elas são capazes de ativar o parentesco que há não mais entre a humanidade que pensamos ser e “os outros” separados por abismos, mas sim entre povos que não cessam de diferir e se encontrar. Vistos daqui, os conceitos filosóficos de mundo do primeiro parágrafo formam um conjunto mais homogêneo do que se poderia suspeitar. E — não nos enganemos — eles são etnoespecíficos: mencionei apenas autores alemães.

Do que se fala quando se fala em fim do mundo, portanto? Essa não é uma pergunta original, mas segue basal. Trata-se da explosão do planeta até que vire poeira? Do fim absoluto das condições materiais que tornam possível a vida humana, a extinção do Homo sapiens? Da transformação dessas condições materiais, de modo que talvez um novo paradigma de vida surja? Da extinção de certos povos humanos? De povos extra-humanos? Do fim das condições que tornam possível o modo de vida da humanidade que pensamos ser? Não é uma questão nada simples; no entanto, processos que concorrem para cada uma das possibilidades acima estão atualmente em curso. Talvez precisemos de mais questões para nos orientarmos, como, por exemplo: o que importa para nós (e quem forma o conjunto “nós”)? O que importa para outros povos, humanos e extra-humanos? Como sabê-lo?

Recorramos a um mito fundador de uma das versões do mundo habitado pela humanidade que pensamos ser, aquele constante do capítulo 3 do Gênesis, quando Adão e Eva comem do fruto da árvore da sabedoria, conhecem bem e mal e se tornam mortais. Deus então amaldiçoa a serpente, subordina a mulher ao homem e conclui, no versículo 19: “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado”. Sabemos como esse mito nutriu, no Ocidente, concepções de mundo positivamente ligadas ao trabalho. Mas Antonio Bispo dos Santos vê nessa mesma passagem um ato de terror cometido por Deus: a terra é amaldiçoada ao mesmo tempo que Adão e todos os descendentes, não importa o que fizerem. Nunca mais podendo comer o que a terra dá naturalmente, essa humanidade é eternamente separada da terra e danada ao trabalho. Daí surge a cosmofobia, “doença psíquica”. O embate criado entre homem e terra é, para Bispo, o disparador do desastre ambiental: com pavor do cosmos maldito, o homem se fecha em um mundo-cidadela onde a assim chamada natureza deve permanecer de fora. O trabalho, entendido como uma operação exercida sobre ela por um alienígena, é domínio, domesticação, objetificação.

Se encontramos hoje a expressão “guerra de mundos” sendo usada para se referir à catástrofe, devemos entendê-la como uma guerra pelo sentido do mundo, dos mundos. E que não se pense que esse é um problema abstrato, pois trata-se de como e com quem mundificar — herdar, recriar, se desfazer. De tomar partido de alguns modos de mundificação e ser contra outros. Isso envolve viver e morrer, literalmente viver e morrer como vemos hoje diante da sexta grande extinção, do ataque a povos indígenas e de tantas misérias que atingem grupamentos humanos e extra-humanos assimetricamente.

Alguns mundos estão definitivamente mais ameaçados que outros; a desflorestação, os processos acelerados de extinção e a diminuição de populações nos dizem a mesma coisa. Toda a relação cosmofóbica da humanidade que pensamos ser com a natureza, o planeta e seus outros habitantes dá testemunho de que a manutenção da concepção moderna de mundo será fatal para a maioria dos habitantes do planeta. Esse é o enorme problema de nossa época. De nossas e de muitas, muitas mais outras vidas.

O título deste artigo vem de Moon rock, canção de Dory Previn de 1973. A artista explicou que, em meio à exaltação dos astronautas, ela não conseguia parar de pensar sobre como a Lua se sentia, com pedras sendo levadas dela. Na letra, Previn começa lembrando o mito de que a pedra teria sido a primeira arma, mas especula que também pode ter sido o primeiro presente, criando uma ambiguidade que diz respeito a duas distintas concepções de mundo: “uma inimiga ou amiga/ O modo como o mundo começa/ é o modo pelo qual ele termina”. Isto é, o modo pelo qual concebemos um mundo, como o cultivamos, com quem e em quais condições, com quais afetos, é um dos fatores que vai determinar como tal mundo acaba, mesmo que seja pelas mãos de outrem. No momento do fim, é-se povo, comunidade ou, por exemplo, horda zumbi? Não podemos esquecer também das necessárias habilidades de rexistência. Nosso mundo é fundado sob o signo do dom ou da usurpação? Previn passa então à cena da chegada à Lua, “uma anfitriã muito graciosa de um convidado mal-agradecido” — o astronauta agradeceu os amigos em Houston, a família, os patrocinadores, a humanidade, menos a Lua. Ela então se pergunta, e eu a cito, finalizando:

Será que houve algum antigo astronauta
que pousou nesta Terra?
Será que ele agradeceu este belo planeta azul
Será que ele a fez saber o seu valor?
E será que algum antigo embrião
viu o que o astronauta fez?
Porque a maneira como você trata a senhora idosa
é a lição, a lição,
a lição que você ensina à criança
E será que aquele antigo astronauta
pouco antes da decolagem
roubou um souvenir como arma?
Ou será que ele recebeu, recebeu,
aceitou-o como um presente?

“Toda a relação cosmofóbica da humanidade que pensamos ser com a natureza, o planeta e seus outros habitantes dá testemunho de que a manutenção da concepção moderna de mundo será fatal para a maioria dos habitantes do planeta. Esse é o enorme problema de nossa época. De nossas e de muitas, muitas mais outras vidas.”

Eu pude conhecer Nlaisa diversas vezes. Primeiro, conheci a Nlaisa educadora popular. Depois, ouvi falar da Nlaisa ativista. Posteriormente, passei a ver uma mulher de olhar marcante e doce, com quem cruzava caminhos pela Maré. Até que pude ouvir Nlaisa. Ouvir com os ouvidos e com os olhos também. Com o respeito e o carinho de quem tem muito a aprender com ela. Os padrões de gênero, associados às questões de raça e classe acabam por reforçar desigualdades e processos de exclusão. Pensar gênero a partir de vozes que rompem com os padrões hegemônicos é urgente. É caminhar no sentido da reflexão, da revolução e da igualdade. Com a palavra, Nlaisa Luciano:

Pâmela Carvalho – Nos conte sua história, caminhos que percorreu, desejos e formas de ver o mundo.

Nlaisa – Eu me tornei a pessoa que, na infância, era interrogada. E lembro de todas as interrogações que me cercavam. Lembro das minhas inquietações de não me sentir inteiramente. Lembro de todos os medos que senti. Estou no processo de travessia com o meu corpo, minha mente e meu espírito. Sou também negra, mulher e travesti, numa reinvenção para além do binário. Eu me amo hoje. E me amar foi um processo doloroso. Desabrochar foi difícil e ainda é. Desabrochar é um processo, e que bom que é! Cada traço do meu corpo é um contorno de memórias que disputam a vida quando a mim só querem a morte. Sou fronteira entre a margem e o centro. Sou muitas versões ao longo da minha trajetória-história e quero ser mais versões de mim. Me transformo apreciando a beleza que trago e, assim, me interpreto também. Meu corpo é um lugar de experiência. Me preencho pela necessidade do registro-escrita como forma de resistência. E, pensando nessa mulhernagem — já que de homenagem o mundo está cheio — escrevo um relato também. Estou construindo em meu corpo um lugar para remontar às experiências no útero que foram vividas mas não são lembradas. Lá, algo eu estava sendo, mesmo que não soubesse o que eu era. As paredes do útero protegem o crescimento ao mesmo tempo que limitam os movimentos. Dói formar seu próprio corpo, dói querer ir para fora. Como pensar a formação? No meu movimento não há restrição. Eu estou e sou meu próprio útero. Útero como espaço de escutar, sentir, olhar e pensar o que é corpo. Chamei a mim pelo nome Nlaisa, recorrendo, em sua construção, aos estudos, à memória afetiva, à inversão das normas da língua, à exclusividade de ser a única. E, carregando esse “N” mudo que também fala, tal como em Nzinga, Nkosi… Pulsando ancestralidade, chamego e dengo.

Qual é sua relação com o seu território? E como ele contribui em sua construção enquanto ser político e social?

Meu território é meu corpo que se entendeu nas entranhas da favela e gerou uma vida nos becos. Enxergo, no passado, a falta de informações que poderiam se manter no hoje através das vozes e arquivos documentais que registrassem a trajetória genealógica da minha vida. As travessas onde morei foram percursos, e as relações estabelecidas em vida trouxeram convivências cotidianas. Construir possibilidades coletivas e estratégias individuais de permanência não é fácil. Conforto e desconforto são confrontados por perguntas e respostas a partir de informações e desinformações expressas entre meu ser político e a política de ser favelada. A favela é parte do que sou. Quem eu sou parte também da favela como identidade, memória e resistência.

O que é gênero para você?

Não quero, em nenhum momento, determinar ou difundir uma ideia de que sou capaz de falar sobre gênero em sua totalidade e com propriedade. Por isso, deixarei evidente minha perspectiva a partir de acessos, estudos e vivências. Gênero é uma palavra ligada a origem. Podemos dizer que gênero é uma forma de dar sentido às diferenças percebidas socialmente e nessas diferenças, historicamente, se estabeleceram relações de poder que se perpetuam culturalmente nas sociedades. Percebemos, então, a existência de uma norma incidindo em nossos corpos, em nossa mente e na forma como enxergamos o mundo, e há pessoas que estão de acordo com essa norma. Para pensarmos o conceito de gênero, precisamos nos incomodar, nos despir e exercitar reflexões sobre como se instauram os aspectos socioculturais que legitimam, condicionam e invadem nossa maneira de significar as coisas. De significar o que é ser homem e mulher, por exemplo. De significar o que é cisgeneridade e transgeneridade. De significar o que é binário e não binário. De significar como a estrutura nos faz repetir e reproduzir as lógicas que foram construídas e impostas mas que podem ser modificadas, porque não há uma fixidez quando identificamos a pluralidade e diversidade de existências possíveis neste mundo.

Você acha que os papéis de gênero contribuem para a forma como a sociedade está estruturada? 

É perverso ver, frequentemente, chá revelação. É violento presenciar um ritual em que pessoas se encontram para “revelar” uma vida que será definida a partir do momento em que a genital será um marcador de uma pessoa que nem nasceu mas já foi anunciada e será selecionada, encaixada e atribuída a um mundo rosa ou azul. Mundo de possibilidades limitantes, pensamentos projetados, ideais arquitetados manipulando uma vida que nem tem consciência de que está sendo desenvolvida. A associação de cores girando em torno dessa vida reforça a existência de que papéis sociais de gêneros já são e estão diluídos na sociedade, e, em muitos momentos, desobedecer dói. Nesse exemplo, percebemos como a estrutura da branquitude binária, cisgênera e heteronormativa vai exercer um poder perverso e violento sobre todas as pessoas que serão categorizadas como anormais caso não se adequarem ou se encaixarem nesses padrões preestabelecidos, sendo vistas como pessoas que se desviam do “único caminho possível”, punidas com exclusão, criminalização, rejeição, violação e morte.

É possível pensar uma perspectiva de abolição ou demolição do gênero? 

Acredito que sim, mas antes precisamos nos incomodar também. Há muitas situações confortáveis. Há muitas situações que nos acomodam. Há muitas situações em que não queremos abrir mão de certo poder, de certo privilégio. Se gênero é uma construção, ela pode ser abolida e está sendo demolida, inclusive por muitas pessoas que estão confrontando diariamente o próprio gênero. Se há um desconforto e uma urgência de falar, pensar e refletir o que é gênero, precisamos, cada vez mais, agir! Construir estratégias coletivas de possibilidades outras. Há dificuldade em dizer que gravidez, útero e menstruação não são questões exclusivamente de mulheres, por exemplo, porque isso mexe numa delicada conjuntura cis-heteronormativa. É cansativo, doloroso e incomoda debater e experienciar narrativas que não estão em conformidade com a lógica que está estruturada. Viver, na pele, em muitos momentos, é se ver vulnerável. A linguagem, por exemplo, é um mecanismo que sustenta poderes, estigmas, categorias e rótulos. Devemos exercitar, diariamente, propostas que rompam com a norma e inaugurem movimentos e mecanismos que protejam e façam permanecer as novas existências.

Você acha que gênero, raça e classe se misturam quando falamos de sociedade e sistemas de opressão e privilégio?

Não há como ignorar ou desconsiderar que todos esses temas se atravessam e são interseccionais. Não acredito que existam possibilidades de debater gênero dissociadamente de raça e de classe, por exemplo. O cistema é tão bem amarrado e estruturado que é mais fácil cairmos em armadilhas do que achar brechas para modificá-lo. Por isso, é de extrema importância nossa consciência de que esses debates e essas lutas estão misturados e não isolados.

Quais caminhos você vê como possibilidades de avanço nas questões de gênero na sociedade brasileira?

Convido as pessoas leitoras a pensar sobre os desvios que podemos construir a partir de uma lógica que altera os caminhos já impostos. Há pessoas que entendem, a partir da sua vivência, lógicas depositadas sobre si, responsabilizadas ou culpabilizadas de efeitos que lhes afetam diretamente, quando estes são, em realidade, efeitos de mecanismos de poder e elementos de saberes que incidem direta e indiretamente sobre nossos corpos. E assim, entre camadas e camadas do que nos foi depositado, somos constituídes enquanto pessoas sujeitas — no sentido de se sujeitar. Se podemos pensar que o determinante do ser é a ação, o que constrói os sistemas são as relações concretas. Num regime de organização social capitalista em que a desigualdade é cada vez maior, desenvolver coletivamente as lutas é se envolver na prática com as ações de lutas. Precisamos, quando já informades, sermos fôrmas para que outras pessoas se informem e se formem numa formação da práxis. Não é só teoria. É teoria e prática. Não há possibilidades de discursos isolados só em tempos em que a exigência de posicionamento é pulsante. A nossa obrigação é também praticar o que falamos, ser capazes de agir e, agenciando, construir possibilidades estratégicas de mudanças efetivas. É interessante pensar conceitos e debatê-los em redes sociais, mas as pessoas na sua rua sabem o que é gênero? Sabem o que é classe social? Elas já se entenderam pretas, por exemplo? Quando e como você se entendeu nos seus processos? Sua identidade de hoje é tão óbvia para sua vizinhança? Estamos construindo novas lógicas transgressoras, mas não podemos esquecer que toda transgressão causada num regime já instaurado se torna conservadora em alguma medida. Não à toa, preferimos seguir reproduzindo opressões quando já alcançamos certa “liberdade da própria voz”. A tradição é quebrada e se torna uma nova tradição. Cuidado! Desenvolvam a formação. Não é só defender o que somos, mas também rejeitar o que querem impor aos nossos corpos. É identificar, nas normas, nossos desejos de repeti-las e desobedecê-las.

#40DemoliçãoCulturaFilosofia

A demolição da existência moral: a criação de si como obra de arte

por Luiz Fuganti

Neste excerto, redigido com base na palestra “A criação de si como obra de arte”, proferida na Universidade Federal de Uberlândia em setembro de 2013, esboçarei um caminho no sentido de apreender a função da obra de arte como algo que não é mera expressão de uma invenção humana, diferente de sua invenção científica, moral ou religiosa. Quero partir da ideia de que a arte funciona como a vida. Ela é vida, desde que a vida seja intensa. E uma vida intensa é diferente de uma vida que apenas desenvolve, ou desdobra, qualidades ou propriedades inatas e formadoras do caráter humano.

A vida intensa implica uma atitude. Implica uma atividade, num sentido raro. E por “sentido raro” quero dizer que só podemos ser ativo na medida em que efetuamos algum tipo de realidade a partir das forças que nos constituem e que nos atravessam. Forças que, em seu modo de efetuação, são contempladas por um plus de força, por um excedente de força, por uma produção de força pela própria força — pela produção da própria potência que atravessa essa força.

Como diria Spinoza: quanto mais eu penso, mais eu posso pensar. Quanto mais eu posso pensar, mais eu penso. Quanto mais eu penso, mais eu posso pensar. É um círculo virtuoso, e não um círculo vicioso. Um círculo virtuoso da potência. Da mesma forma em relação ao corpo: quanto mais eu sou uma potência de mover, mais eu movo. Quanto mais eu movo, mais potência de mover eu tenho. Eu conquisto mais potência de mover.

Para esta vida ativa, que coincide com a arte, é necessária uma afirmação. Não uma afirmação linguística (dizer “sim”), tampouco uma afirmação psicológica ou moral, pois a moral pressupõe, também, uma negação — a moral nega que este mundo seja perfeito, nega que a natureza e a realidade sejam autossuficientes. Assim, há um “não” na existência moral. Esse “não” já é a mediação feita por um acontecido que toma o lugar da potência de acontecer.

Ora, como esse ser fixado no acontecido, no passado — como diz Nietzsche: com o seu olhar de caranguejo, com essa visão retrospectiva e ressentida —, como esse ser voltaria a confiar no acontecimento? Esse ser que só vive o já vivido, ou o ainda por vir, vive no passado ou no futuro, mas nunca o devir. Ele é um ser sem devir, por isso se torna um ser do devir reativo. Ele ainda segue na mudança, no tempo, mas, quanto mais o tempo passa, mais fraco, mais doente, mais impotente, mais miserável, mais decadente se torna. É essa condição humana que leva Heidegger a acreditar que o homem é um ser para a morte.

É necessária, portanto, uma afirmação no sentido ético. A ética, sim, seria uma força seletiva, cujo horizonte afirmativo faria com que as modificações de nós mesmos retornassem sobre nós em forma de mais potência, de mais energia, de mais força.

Então, essa afirmação não tem nada a ver com essas instâncias do homem a que me referi antes, mas é o próprio modo de viver que se constitui como afirmação. Viver de um modo tal, que esse modo se torne afirmação da diferença que nos constitui e que exprima nossa singularidade. A singularidade é um modo necessário do acontecimento de nós mesmos para que sejamos ativos e criadores. A singularidade é, na verdade, uma razão de potência de nossa existência. Se existir implica criar existência, e se nossa essência é potência de criar realidade e de fazer emergir o novo, é preciso encontrar essa razão de potência — sem a qual não há criação de si na existência.

A singularidade é, na verdade, uma razão de potência de nossa existência. Se existir implica criar existência, e se nossa essência é potência de criar realidade e de fazer emergir o novo, é preciso encontrar essa razão de potência — sem a qual não há criação de si na existência.”

A singularidade afirmativa da ética não vê o bem e o mal enquanto princípio ou origem de alguma coisa. O bem e o mal são efeitos de nosso bom ou mau jeito de existir. Bem e mal são projeções e ilusões de transcendência. Existem o bom e o mau jeito de se relacionar com a existência. Existem o bom e o mau uso que faço daquilo que me acontece. Essa é a escolha ética, que não tem nada a ver com a escolha (isto é, negação) moral.

Ao contrário do que a moral prega, a realidade é perfeita. E o que é a realidade que se apresenta para nós na existência? É aquela que somos capazes de apreender: cheia de sofrimento, cheia de dores, cheia de miséria, cheia de mal, de morte. Mas a visão reduzida que temos dela, em virtude do modo rebaixado de viver, faz com que façamos um péssimo uso da dor e do sofrimento, utilizando-os como testemunhas de que a vida é um erro, ou que a existência é imperfeita.

O homem moral é esse ser incapaz de dizer sim. Não adianta dizer que niilista é aquele que nega Deus ou que é o ateu porque não acredita no outro mundo. Ele próprio está afirmando outro mundo, porque acha que este é insuficiente. Quem é o niilista de fato? É aquele que nega a suficiência da realidade ou da natureza e acredita em outro plano de realidade. A realidade só tem um plano, apesar de esse plano ser múltiplo e ter dimensões infinitas. Tudo que existe é imanente a um único e mesmo plano de realidade. A invenção de outro mundo transcendente é só um sintoma para dividir este mundo em dois: o do bem e o do mal, ou do verdadeiro e do falso.

O mais importante não é dividir a realidade em existência aparente e ideal transcendente. O que importa é dizer sim (eticamente) a todo acaso, inclusive ao pior deles. É necessário estar preparado e forte. Há que se fortalecer, há que se produzir a si mesmo. Isso é próprio da obra de arte.

A obra de arte, do ponto de vista ativo, essa arte intensa que se iguala à vida intensa — e não à vida extensa, reativa, fraca —, não só produz as condições de existência e se produz através delas, como também produz a própria existência. Ela estiliza a existência. E, uma vez que a obra de arte estiliza a existência, é necessariamente política. E aqui temos uma política à altura do acontecimento que é viver: a política da vida ativa, a política da intensidade. A arte como força, além de estética, plástica e ética, é uma força política e de combate.

A obra de arte cria, portanto, uma zona de vitalização. Ela não é feita para divertir e sim para intensificar. Ela não é feita para distender, ou relaxar, e sim para tensionar. Ela não é feita para afrouxar, ela é feita para esticar o arco e tensioná-lo. É para isso que essa arte é feita: para fazer a diferença e criar eternidade na existência. E nós somos feitos desse mesmo estofo.

“O mais importante não é dividir a realidade em existência aparente e ideal transcendente. O que importa é dizer sim (eticamente) a todo acaso, inclusive ao pior deles. É necessário estar preparado e forte. Há que se fortalecer, há que se produzir a si mesmo. Isso é próprio da obra de arte.”

Assista à palestra “Criação de si como obra de arte”, proferida por Luiz Fuganti na Universidade Federal de Uberlândia, neste link.

Ele foi ousado, demasiadamente ousado. E a ousadia, cedo ou tarde, cobra seu preço. O homem que desejou demolir os impedimentos ao desenvolvimento da potência humana não teve uma vida fácil. O contexto era o início do século XX. Certas figuras proeminentes na Europa estavam mergulhando nos estudos da psique humana. O viés era da ciência moderna. A psique e sua potência vital estavam prestes a ser analisadas pela razão e testadas por métodos e aparelhos.
Potencial filho pródigo do movimento psicanalítico, Wilhelm Reich rapidamente se torna o filho contestador: foi repelido pelo Partido Comunista por ser psicanalista, e repelido pelo círculo psicanalítico por apoiar ideias de revolução social. Mas ele quis desestabilizar ainda mais. Esticou a corda, contestando o modelo teórico psicanalítico.

Por que os pacientes que passavam pelo processo terapêutico, tornando-se conscientes de suas dinâmicas neuróticas, permaneciam com sintomas?

Suas pesquisas culminaram no desenvolvimento da noção de potência orgástica. Enquanto não fosse recuperada a capacidade de vivenciar um orgasmo pleno, capaz de descarregar completamente a carga de excitação sexual, a neurose permaneceria tendo uma fonte de alimentação.

Mas ele ainda não estava satisfeito. Para reposicionar a importância do ato sexual na saúde psíquica, Reich precisou resgatar algo que havia sido perdido naquele contexto: o vitalismo.

A força vital, como o elemento que conecta corpo e psique, reaparece na cena teórica e mesmo em seu laboratório com um novo nome: orgone.

Com psique e soma reunidas, seu processo de leitura do ser humano em adoecimento passa a incluir a couraça corporal como um fenômeno de bloqueio do fluxo de energia no corpo físico, associado ao conflito psíquico que sustenta a neurose. O adoecimento e a saúde voltam a ser, simultaneamente, físicos e psíquicos.

Agora, sim, chegou a hora da demolição! Tendo um modelo integrativo de corpo e psique, e definindo a couraça como a expressão corporal de conflitos psíquicos, a prática terapêutica tem o dever de quebrar essas couraças, de forma ativa, até incisiva. Para que o ser humano resgate a saúde plena, é necessário o rompimento dos bloqueios ao fluxo da vida, com o tratamento dos afetos associados aos conflitos, para que então a potência orgástica se manifeste, conduzindo o ser humano a seu lugar de direito no mundo, em plenitude de prazer, de vida, de saúde.

Seu caráter revolucionário repercute. Se você achou que ele ficou satisfeito em criar um sistema terapêutico, enganou-se. Ele ousou mais: empurrou as fronteiras para uma proposta de revolução social, que chamou revolução sexual.

A proposta de Reich implicava no reposicionamento radical da importância do ato sexual humano como elemento que define saúde ou doença, caráter que somente havia sido proposto por medicinas das antigas civilizações da China e da Índia.

O passo seguinte foi elaborado pela noção de praga emocional, a disseminação de afetos patológicos, transmitidos como vírus, entre sujeitos encouraçados, que passam a constituir o próprio tecido social. A sociedade encouraçada.

E que tal se pudéssemos quebrar as couraças não somente na clínica individual, mas também na sociedade como um todo? Bem… Para isso teríamos de fazer o coletivo resgatar sua potência orgástica. Um projeto com tons dionisíacos que influencia em sua época certos projetos educativos, como a escola Summerhill.

Tal projeto exige a demolição da moral sexual da época, algo que ele compreende como expressão do próprio encouraçamento. Em sua obra A irrupção da moral sexual repressiva, Reich elabora a gênese e a história da moral, sugerindo que sociedades desencouraçadas, ou menos encouraçadas, já habitaram este planeta, apontando a viabilidade de seu projeto.

Antes de contar o fim da história, eu gostaria de propor um mergulho em outra dimensão da expressão da energia sexual: a criatividade artística. Afinal, o deus do êxtase também regia algumas formas de arte, como a música e o teatro. Para antigas religiões que tinham na energia sexual a expressão do divino, como o taoismo ou o tantrismo, a criação de um novo ser ou de uma obra de arte tem na energia sexual a sua fonte, apenas diferenciada por sua densidade.

Como professor e terapeuta, acompanhei a trajetória de desencouraçamento de diversos artistas, e faço aqui uma sugestão para que observem esta proposição: quanto mais desencouraçado o artista, mais pleno de sua potência orgástica, menos haverá em suas obras expressões inconscientes de suas próprias neuroses, e mais seu público será tocado por uma potência que incita a vida.

De volta a Reich. Um homem como ele não poderia ser deixado à solta. Fio muito desafiador. Sua proposta de demolição foi muito ousada. Ele foi perseguido, e até mesmo preso. Sua obra permaneceu desqualificada por muitos anos, sendo resgatada a partir dos movimentos contraculturais do fim dos anos 1960. Teve destino semelhante ao próprio Dioniso, conforme Eurípides retrata n’As bacantes: “Ao se aproximar da cidade, os cidadãos se sentem ameaçados pelo caos que ele pode promover. Ele precisa ser preso”.

A humanidade não anda em linha reta. As revoluções deixam suas sementes, para que as futuras gerações as plantem. Como disse Chico Buarque em sua canção Tanto mar, referindo-se a revoluções bem-sucedidas e outras censuradas:

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
esqueceram uma semente
nalgum canto de jardim

#40DemoliçãoArteArtes Visuais

De ontem para hoje já era amanhã

por Pedro França

O virtual que me interessa é aquele que funde tempos: o passado é a presença virtual da ancestralidade, da memória, dos traumas, enquanto o futuro é a presença virtual da possibilidade. O sonho, o delírio, a imaginação, a relação com os mortos, tudo isso é virtualidade — onde se encontram passados e futuros remotos. Minhas pinturas, vídeos, trabalhos digitais, projetos urbanísticos, todos têm a ver com isso. Andar para a frente e para trás, simultaneamente, é um modo de driblar as armadilhas do aceleracionismo, por um lado, e do reacionarismo, por outro.

Meu dia a dia consiste em circular por um conjunto de afazeres, como pintar, escrever, editar, projetar. Tento adensar a relação com essas práticas para que elas me conduzam ao seu jeito próprio de falar.

Nesta exposição, mostrei três projetos urbanísticos para locais específicos: no local do Monumento às Bandeiras, proponho reviver a várzea que foi drenada na região do Ibirapuera, para que o monstro de granito seja aos poucos engolido, corroído, atolado. Nos arredores de Canudos, o projeto é de um cinema abaixo da terra, que digere e apresenta imagens sempre atualizadas de fogo em espaço público mineradas da internet. E no estádio do Maracanã proponho a criação de uma fogueira anual no interior da sua carcaça. Queria que esses trabalhos conseguissem criar uma frestinha de outro mundo: um relance imaginativo do futuro, uma ressonância fantasmagórica do passado.

Havia também um grupo de pinturas. Elas são uma tentativa de dar forma a um mal-estar. Que não é só meu, nem é só mal. Mas que baita mal-estar! São pinturas de grupo, habitadas por figuras condoídas, arrebatadas, indignadas, alegres, desgostosas, expostas, enojadas, excitadas, confinadas, amassadas, companheiras, carinhosas, dispostas, eufóricas e reflexivas; em transe, vivas e mortas, realistas, imaginativas, pragmáticas, delirantes, assombradas, bestificadas, eloquentes, solidárias. Há erotismo, mas não sempre; há alegria, há morte, mas não sempre; há cuidado, carinho, solidão; há de tudo. Uma dor difusa, mas também esperança e prazer.

Arte é coisa que se faz junto e sozinho, ao mesmo tempo. A mostra incluiu parcerias com artistas que amo, porque me sujam: com C.L.U.B.E, fiz os bancos, para que as pessoas sentassem; com Darks Miranda foram montados os vídeos do Maracanã e do Ibirapuera; com Raphaela Melsohn, esculturas de cerâmica pintadas, parte de uma colaboração contínua; e com Rudá Babau fiz um audioguia, disponível aqui: memoriademuitos.com

Fotos de Ana Pigosso

Desde sempre conheço o trabalho de Elza Soares. Digo “desde sempre” porque me recordo de, pequena, ouvir uma voz rouca na sala de casa e depois vir a saber que era dela. Lembro de, por volta do ano 2000, ficar impactada com a interpretação de Elza em seu vestido tubinho preto, em um DVD de Jorge Aragão, interpretando a canção Malandro. Me recordo também de sentir medo e tristeza ao, ainda adolescente, ouvir Elza cantar Meu guri, de Chico Buarque. A voz rouca e forte cortava o ar da sala da casa na rua Silva Vale, no Rio de Janeiro, cantando:

Chega estampado, manchete, retrato
com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí

E, sempre que possível, nesse trecho da música eu fechava os olhos e pedia dentro de minha cabeça: “Tomara que papai ou mamãe tire essa música. Eu não quero ouvir. Eu não quero sentir essa dor”. Ainda muito jovem, a verdade da voz de Elza me invadia. Mexia comigo num lugar que eu ainda nem acessava conscientemente. Eu ainda não tinha a reflexão política que tenho hoje, mas dentro de mim e dentro da minha família toda pretinha eu tinha pavor de que meus irmãos ou um filho meu tivessem o mesmo destino do “guri de Elza”. Entendo que a arte tem papel político e de reflexão. De mexer com as nossas entranhas mesmo. E Elza fazia — e faz — isso com maestria.

Em 2018 eu pude tocar em Elza. Num mundo pré-pandemia, onde o toque físico era cotidiano, Elza pegou em minha mão. Em dois momentos distintos. Um deles no Festival Mulheres do Mundo, realizado pela Redes de Desenvolvimento da Maré na praça Mauá (Rio de Janeiro), e outro no MAR de Música, programação musical do Museu de Arte do Rio. Nas duas ocasiões eu era a apresentadora do show de Elza. Eu ia chamar seu nome. Frio na barriga, noites sem dormir, textos escritos e reescritos… Como anunciar a voz que entrava em minha alma na infância? Como chamar a Mulher do Fim do Mundo? E o fiz com todo o meu coração, respeito e admiração. Ao fim da apresentação, na entrada para o palco, Elza pegou na minha mão e disse: “Muito obrigada pelas suas palavras”. E pude olhar nos seus olhos e ver Elza Soares. Mas também vi Elza Gomes da Conceição. Em sua humanidade e imensidão.

Elza Gomes da Conceição nasceu mulher negra, num Rio de Janeiro racista e desigual. Elza é — mesmo não estando mais em vida em seu corpo físico — uma mulher de demolições. Seu local de nascimento nos leva a uma fissura no espaço-tempo. A multiartista nasceu em uma favela que não existe mais. Hoje conhecida como Vila Vintém, no bairro Padre Miguel, Rio de Janeiro, a favela Moça Bonita foi palco de estreia de Elza no mundo. Posteriormente, Elza e seus dez irmãos foram morar num cortiço no bairro Água Santa. O cortiço, também numa favela, foi alvo de políticas higienistas, como vários outros no Rio de Janeiro.

Tanto a favela quanto o cortiço são formas de habitação ocupadas majoritariamente por pessoas negras e pobres. São soluções de moradia surgidas na ótica da necessidade de sobrevivência ante um Estado que pouco avança em políticas públicas para habitação, racismo e desigualdade social. Os locais onde a multiartista nasceu e foi criada são essenciais para pensarmos a ótica de demolição que permeou sua trajetória, bem como a de várias mulheres negras.

Os territórios são espaço de construção política e subjetiva, articulando aspectos históricos, sociais e culturais. Os territórios também revelam perspectivas políticas ao longo de nossa formação como sociedade. O Estado brasileiro sempre desenvolveu uma relação ambígua em relação aos territórios de favela — por vezes paternalista e assistencialista, por vezes genocida e destruidora. As primeiras ações do Estado em favelas partiam do pressuposto de que esses espaços eram problemas sociais que precisavam ser resolvidos. A favela deveria ser retirada da paisagem carioca. As favelas foram vistas e apresentadas à sociedade como um impeditivo do progresso. Exemplo disso foi a destruição do Morro do Castelo, justamente no contexto do centenário da independência do Brasil, sob a alegação de que era necessário modernizar a cidade. A narrativa pública construída colocava a favela — e seus moradores — como sinônimo do atraso. Em 1947, o jornal Tribuna Popular escreveu sobre a Vila Vintém, que estava surgindo:

“A Vila do Vintém é a mais nova das favelas do Rio de Janeiro. Está nascendo agora. São centenas e centenas de trabalhadores escorraçados da cidade pela crise de moradia. Gente cujo salário insuficiente não lhe permite, sequer, morar numa “cabeça de porco”. Naqueles terrenos que a princípio diziam ser da prefeitura e, agora, já afirmam ter outro dono, a viúva Pinheiro Machado, a favela cresce espantosamente com o trabalho diário dos moradores. Não custa nada: é só chegar, armar quatro esteios de bambu, cobrir com folhas de zinco e pronto, está construída a nova moradia. (Jornal Tribuna Popular, 1947, p. 4).”

As “centenas de trabalhadores escorraçados” são povo de Elza. As moradias narradas em um tom carregado de preconceito são similares ao lar onde Elza nasceu. O universo apresentado pelos jornalistas, políticos e figuras públicas na época constrói o Planeta Fome, de onde Elza saiu diretamente para os programas de calouros e palcos do mundo todo.

A contribuição de Elza neste plano extrapolou o campo da música. Ela se tornou uma das principais referências quando falamos na luta por igualdade racial e de gênero. De “A carne mais barata do mercado é a carne negra” (canção A carne, gravada por Elza em 2002) a “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim!” (canção Maria de Vila Matilde, gravada pela deusa-artista em 2015), Elza inspirou lutas por todo o Brasil. Fruto disso são os diversos coletivos e instituições de movimentos sociais autodenominados “Elza Soares”.

Atualmente moram mais de 15 mil pessoas na Vila Vintém. O local é reduto de movimentos de resistência cultural, especialmente em relação ao samba. Na região estão localizadas duas grandes agremiações do carnaval carioca: a Unidos de Padre Miguel e a Mocidade Independente de Padre Miguel (Mocidade que, em 2020, homenageou Elza com o enredo Elza Deusa Soares). Elza foi louvada em vida no mesmo chão onde deu seus primeiros passos. Vinda de uma realidade de desigualdades históricas, demoliu preconceitos, cercas e muros. E construiu caminhos para que quem vem possa passar.

Brasil, enfrente o mal que te consome
Que os filhos do planeta Fome não percam a esperança em seu cantar
Ó nega!
Sou eu que te falo em nome daquela
Da batida mais quente
O som da favela
É resistência em nosso chão
Se acaso você chegar com a mensagem do bem
O mundo vai despertar, Deusa da Vila Vintém
Eis a estrela
Teu povo esperou tanto pra revê-la.

(Samba Enredo 2020 da Mocidade Independente de Padre Miguel)

#40DemoliçãoCulturaSociedade

Sobre demolição e a antifragilidade da vida

Em uma sociedade cada vez mais complexa e operada pelo caos, fala-se muito de conceitos como equilíbrio e resiliência — duas palavras muito compatíveis com a visão de mundo que construímos em sociedade: uma visão mecânica, simplista e temporalmente limitada. A realidade da vida não é mecânica; ela é multifacetada, dinâmica, imprevisível e antifrágil.

Antifragilidade é um conceito o qual temos dificuldade de alcançar, tanto que foi necessário criar um neologismo para descrevê-lo.

Para Nicholas Taleb, a vida é essencialmente antifrágil, e o conceito de antifragilidade não remete àquilo que resiste, ou que é resiliente — termo emprestado da física para explicar a capacidade que um material tem de mudar de forma e retornar à forma original —, mas àquilo que se fortalece com a adversidade.

Em uma visão antifrágil, aquilo que desafia o sistema pode fazer o sistema evoluir — da mesma forma como um nadador melhora suas habilidades ao enfrentar um rio com correnteza —, e uma espécie adapta-se às condições do ambiente tornando-se algo completamente novo ao longo do tempo, como explica a teoria da evolução.

As coisas construídas pelo ser humano também evoluem, mas isso ocorre por intermédio da fagulha de vida projetada pela consciência e inteligência humana. Um carro, isoladamente, não é antifrágil: ele não se fortalece, nem melhora sua estrutura, quando exposto a um terreno acidentado; ao contrário, ele se desgasta e aos poucos vai perdendo funcionalidade. No entanto, os carros com um todo melhoram a cada nova geração, procurando incluir todas as inovações possíveis para responder aos desafios e necessidades enfrentados para cumprir sua função.

É importante perceber que a vida, sendo um sistema aberto e multidimensional, existe como vida dentro de vida em dimensões cada vez maiores e mais complexas, da bactéria à Gaia como um planeta vivo. Nosso corpo, por exemplo, vive em simbiose com milhares de espécies de bactérias — só no intestino carregamos o equivalente a 10 vezes mais bactérias do que células no corpo.

Quando somos infectados por um micro-organismo patogênico e tomamos um antibiótico, eliminamos tanto a doença quanto a proteção e função simbiótica de muitas dessas bactérias, diminuindo nossa imunidade e causando, no decorrer do tempo, um processo de evolução e resistência desses seres àquela substância — um problema muito sério de saúde pública chamado resistência microbiana. A destruição generalizada desses micro-organismos causada por um antibiótico de amplo espectro salva vidas individuais, mas pode ter consequências arrasadoras a longo prazo para a espécie.

A complexidade da vida envolve relações muito delicadas, intrínsecas, conduzidas por uma força que se ocupa da continuidade de seu próprio desdobramento, sem nenhum apego ou preocupação com uma espécie específica ou um ser individual.

Pertencentes a uma classe que chamamos insetos sociais, as formigas de correição movem-se como um único ser, formado por milhares de formigas. E, como corpo coletivo, o formigueiro sacrifica formigas para atravessar um curso de água e constrói as paredes de um lar temporário com os próprios corpos individuais. Para esse corpo coletivo, os indivíduos não podem existir sem o formigueiro, e assim se perdem indivíduos para que o formigueiro permaneça.

A relação que temos com a natureza é posta, não é opcional; cabe a nós reconhecer a inseparabilidade das coisas. Somos resultado de milhões de anos de evolução da vida que se desdobrou na teia que somos em coexistência. Nesse sentido, tudo é interdependente e tudo dança a mesma melodia, tão silenciosa quanto misteriosa.

Há uma frase de Johann Wolfgang von Goethe que diz algo como:A vida criou a morte para criar ainda mais vida”.

O movimento contínuo de renovação vai muito além do ser humano: ele está no núcleo da vida, em cada célula de nossos corpos. É ele que torna possível a vida complexa, renovando o micro para que o macro continue a prosperar. Um exemplo disso é a apoptose, processo de morte celular programada, que ocorre em benefício do sistema vivo. A palavra apoptose provém do grego “vir abaixo”, sinônimo de demolição. Quando uma célula sofre um dano irreparável ou corre o risco de uma mutação que a desviaria de suas funções esperadas no sistema, ela entra em um processo de autodestruição controlada que permite que o corpo se recicle e mantenha um funcionamento harmônico. Células também morrem por processos não programados, por uma via que chamamos necrose, em que a morte celular prejudica o sistema e coloca em risco seu equilíbrio.

No âmbito da vida, a destruição de algo pode ser tanto aquilo que sustenta e possibilita a existência quanto aquilo que determina seu fim, dando início a outros ciclos de transformação e continuidade. A vida é um sistema aberto, e todo sistema aberto precisa não só de construção. Neste fluxo, o bastão da força vital é passado de um ser para outro ser, de dimensão para dimensão, e circula impulsionado pela roda da morte e do nascimento, como um pulsar do existir.

Quando uma forma de vida complexa se desfaz, a morte de um indivíduo impulsiona uma explosão de vida em inúmeros outros, que pegam o bastão e levam adiante a energia e a transformação, continuando o ciclo.

Desde o início de uma vida humana, no processo de embriogênese, é a destruição que esculpe nossos corpos. As mãos, por exemplo, são formadas a partir de um bloco único de células esculpidas por uma força, ou melhor, informação — aquilo que dá forma, que direciona a apoptose das células em pontos específicos, abrindo os espaços entre os dedos.

A informação não possui energia, não ocupa espaço, não está sujeita às leis da matéria; também não pode ser destruída, nem ao menos faz sentido dizer que foi criada. Apesar disso, ela flui através de tudo, moldando o mundo material e a si mesma, assim como as sequências de DNA constroem as células, que fazem evoluir as informações do próprio DNA ao longo do tempo.

Talvez, da perspectiva da vida, haja apenas transformação.
Não se perdem degraus ao subirmos uma escada; os degraus são a própria possibilidade de sustentação da subida.
O que seria de nós sem as experiências que nos desafiam, que nos tiram de nossa ilusão de controle?
Eu diria que, no todo, a morte impulsiona a vida,
e o caos gira a roda da evolução,
e a informação flui por entre os seres, evoluindo e moldando as várias camadas da existência,
e a demolição é tão preciosa quanto a construção.
Porque o novo nasce do antigo,
e a vida é um contínuo nascer-morrer-evoluir.

Quando respiro, sinto o brilho granulado do vazio
como uma faca
embainhada na garganta,
o ar levanta as vértebras de um sopro tangendo
cordas farelentas
no vaso de água dos cabelos.
Se corto a carne mole dos pulmões
vejo vernizes oleosos refletidos na frieza
da minha faca e o vagido arenoso da língua se dissipa
numa espuma carvoenta,
é a fresca plumagem do sangue,
unhas descendo pelos dedos, dentes saindo da gengiva,
cabelo germinando como erva e o corpo
sinuoso
de uma sombra
desce às entranhas
da pupila
espalhando sua têmpera nodosa
sob o caule da
cabeça.
A glande úmida, de veios engrossando,
expele
um vapor cálido leitoso, é a força relutante
da palavra sob o ato de estupor molhado da garganta,
carnação demencial que escorre das maçãs
como um líquido
febril mistura-se à polpa açucarada na penumbra.
Vejo dedos deslizando entre coágulos de luz
que pairam na cortina,
escamas borrifadas num sonoro
ar de mármore.
A casa oscila dentro da vidraça como uma fogueira.
Tenho um corpo endurecido,
amálgama dos sinos espancados.
Lembro um pássaro morto,
o negrume das penas estufadas encharca
a respiração.
Tenho um corpo azedo e
o golfo macilento das pupilas,
infestado de formigas,
parece sucumbir à pele gordurosa
das entranhas
num torpor avinagrado.
O bico se desagrega, a carne roda,
troncos, fios de junco, talos eriçados,

À luz granitada do silêncio
levo as vértebras do cálamo e
afio a têmpera azulada que sibila
na tintura da garganta e o acorde
invertebrado da respiração escorre
na medula
dos meus olhos,
invisivelmente redigido como um
ímã
em meio à textura milagrosa dos
escombros.

Nesta carta editorial, escolhi compartilhar a transcrição de uma conversa gravada no meu ateliê com a curadora Paula Borghi, porque sabia quanto ela poderia colaborar com a edição desta revista e o seu tema: demolição. Demolir, que é verbo defectivo: não é conjugado em todos os tempos e pessoas verbais. No presente do indicativo, não é conjugado na primeira pessoa do singular (eu). No imperativo afirmativo, é conjugado apenas no tu e no vós.

Em nosso idioma, demolir não é possível de ser ação individual, aspecto esse que eu gostaria que fosse interpretado à luz de sua potência. Potência ativa, não reativa.

Sofia Borges – Tem essa coisa da cultura como espaço virtual a priori. Quando falo cultura, quero dizer a ciência, a economia, a filosofia, a religião, arte, política, linguagem: tudo que existe virtualmente são enormes braços da cultura. A ciência não está acima da cultura. A ciência é um aspecto da cultura. Você acreditar na ciência é cultura, não é o contrário. Entendo a cultura como uma enorme bacia transparente que abriga todas as coisas que significam; tudo está dentro, e nada — nada mesmo — escapa disso. Significado é cultura. Sinto que a constatação mais importante que me ocorreu nos últimos anos é que a cultura é, afinal, uma manifestação da natureza. O estado de cultura, a vontade de significado, isso é gerado por um processo que é a natureza, porque tudo é natureza. Não tem como não ser natureza. Não é que a gente inventou a cultura. É da natureza da vida expandir-se em significado até virar cultura, como também é da natureza inventar a si próprio e dar sentido. Os corvos fazem rituais funerais. Um corvo morre e eles fazem uma dança, uma específica. Vou só citar esse, mas existem tantos exemplos…

Paula Borghi – Esse pensamento quebra com a dualidade colonial que foi posta pra gente: natureza versus cultura. Não existe essa separação, e Philippe Descola destaca esse aspecto em Outras naturezas, outras culturas; Eduardo Viveiros de Castro comenta de forma semelhante a partir da ideia de animismo. Por exemplo, o pessoal da Aldeia Maracanã está tirando o asfalto sobre a terra, de uma terra que é viva e que está se regenerando. Como você mesma falou: “A terra tá pulsando, tá viva”. A Terra é vida!

Sofia – Exatamente! A Terra é todos os elementos, como um corpo que é todas as células, todas as bactérias, todos os líquidos… tudo isso é o corpo. Só que são bilhões de manifestações que operam a partir de um lugar próprio, que têm inteligência, centro, propósito e consciência.

Paula – E assim chegamos à questão da invisibilidade. Melhor, como você bem coloca, da imaterialidade da matéria.

Sofia – Isso, da imaterialidade da matéria, que agora está chegando a um ápice em que estamos conseguindo viver essa virtualidade da matéria, que é também a cultura, que é o significado sem a matéria, que são esses metaversos, esses lugares onde a coisa é tão real quanto a nossa realidade, só que ela não está agregada a uma coisa em si, que existe fisicamente, né? Um território dentro de um videogame é tão irreal quanto um território de dois países. É tão inventado quanto, é tão ilógico quanto. As regras de qualquer jogo estão dentro do videogame, mas fora do videogame estão, igualmente, inventadas. Só que antes a gente estava acostumado a ter, talvez o patriarcal — o que a gente está chamando de patriarcal —, como uma fase em que as coisas são em relação a uma posse da matéria. Quando eu pesquisava nas cavernas pré-históricas, tive a oportunidade de conversar com arqueólogos quando discutiam sobre todas as teorias a respeito dos motivos que levaram aos desenhos da caverna de Chauvet, sobre quem eram… Isso data de 35 mil anos atrás, e tem desenhos sobrepostos aos primeiros, feitos 10 mil anos atrás. Os desenhos de 35 mil anos para mim derretem a teoria da arte enquanto evolução progressiva da arte e do conhecimento. Foi escutando sobre isso e outras coisas que aprendi que houve um momento no mundo em que os humanos pararam de desenhar nas cavernas, em todas as partes do mundo. E isso é alinhado com o fim do homem fundamentalmente nômade, que passa pela terra mas não se sente apropriado dela. Isso, essa posse, coincide com o surgimento da agricultura. Então, voltando ao patriarcal, que era o meu ponto, eu suspeito, tem início com a agricultura. Paramos de ter uma relação plena ou feminina com a natureza, de entender e esperar pelos seus ciclos, paramos de ser nômades. A compreensão da vida como ciclo para de ser feminino (fases da lua, estações do ano) e passa a ser em torno do sol como esse provedor ininterrupto? Passamos a assumir, como agente humano, que a terra é minha e o que vem dela também. Somente porque passei a semear esse espaço; esse fruto é meu porque eu semeei. Eu sou o provedor e tudo gira ao meu redor. Sêmen vem dessa prepotência, a adoração fálica. A guerra também. A primeira commodity é a terra, quando ela vira propriedade. Depois os animais, e as mulheres também viram commodities. As crianças também precisam ser asseguradas de que pertencem a esse ou àquele clã, que são daquele homem, porque servirão para trabalhar na terra. Daí surgem as religiões monoteístas, em torno de um Deus unificado e masculino, trazido por alguns messias também únicos e homens, que asseguram que receberam essa nova lógica absolutista por força divina.

Paula – É sempre a propriedade privada…

Sofia – Propriedade privada; do divino, inclusive. E você passa a associar as mulheres a essa propriedade privada. Cria uma religião que corrobora essa dominação, que justifica a guerra como forma de defender o território físico, ideológico, religioso. Vivemos isso até o exacerbamento, a ponto de pararmos neste estado de imaterialidade. Vivemos a virtualidade desde o início dos tempos. Toda realidade é virtual. Esta xícara na minha frente é tão virtual quanto a cultura, quanto a divisão de posses, quanto qualquer matéria investida de sentido. A gente falar que uma xícara é uma xícara. O que faz a xícara ser uma xícara, além da minha crença, do meu empenho em fazê-la operar ser xícara? Por que eu não cavo com uma xícara? Qual é a diferença de uma xícara aqui e de uma xícara no videogame? As duas têm a mesma função, as duas são colocadas na cozinha, e a privada é no banheiro, apesar de serem feitas de cerâmica. Elas estão separadas por esse ordenamento, que é virtual. O virtual valida a loucura que a gente está vivendo: as grandes doenças do mundo são a crença de que o dinheiro existe e que o lixo existe. O conceito de lixo pra mim é a coisa que mais me angustia, com certeza porque é uma vontade de destruição que não entra na lógica do capital. Não existe tal coisa como lixo, isso foi inventado e é perverso. É morte ao invés de potência, de transmutação. É fim ao invés de movimento. Outra coisa que me choca: se você não tem dinheiro, você não compra comida. Se você não compra comida, você morre. E não é contra a lei alguém morrer de fome. O Estado não se responsabiliza por alguém que não tem dinheiro; ele está autorizado a morrer.

Paula – Isso é muito forte.

Sofia – E o dinheiro não existe, então é muito bizarro o que está acontecendo. Sabia que as moedas nacionais, elas sequer continuam atreladas a um valor real? As instituições, os Estados, hoje em dia apenas imprimem dinheiro. Não é como se aprende na escola, que o ouro fica guardado em determinado lugar e significa a quantidade de riqueza que se tem. Com a moeda é diferente. Os Estados Unidos imprimem bilhões de dólares se quiserem, e o mercado financeiro fica operando isso. Essa lógica escraviza todos os seres, todas as cadeias de relações. O ouro, extraído durante centenas de anos, não gerou transformação por ser riqueza, mas ficou circulando como uma nuvem de morte, de poder dissociado à potência. A disfunção ou dissociação que vivemos hoje não é novidade. É só um pouco mais virtual, e um pouco mais perversa.

Paula – Mas, sob essa lógica, vale lembrar que a linguagem e a cultura também são invenções nossas. A comunicação é uma invenção. Podemos ainda dizer que as artes visuais são a invenção da metáfora, porque correspondem a uma espécie de poesia visual.

Sofia – E é nesse espaço que eu entendo que nós nos salvamos, no final — nesse lugar onde a linguagem tem uma potência de vida, onde a arte tenta fazer isso, tenta gerar significado que é potência de significado. Tenho certeza: isso em si já é político, isso em si já é uma resistência política.

Paula – Depende do que você faz. Às vezes é só produção de capital.

Sofia – Mas eu quero dizer: você se preocupar com a função simbólica da cor ou de uma palavra enquanto potência poética é um gesto de crença na arte e é algo profundamente humano. Algo associado à resiliência de se permanecer poroso, de se permanecer afetado pela vida. E se manter assim, sensível, é uma resistência política. Mesmo se eu estiver fazendo um poema sobre pequenas flores que nascem no alto da montanha… isso é resistência… Você não acha?

Paula – Não sei, depende. Acho que é complicado. Não sei se toda arte é política. Escutei que fazer arte é um gesto político a minha vida inteira e acreditei. Tanto que fui estudar arte. Mas depois, uma vez no meio, tenho minhas dúvidas. Dependendo do que você faz, pode ser… ou pode ser só uma forma de produção de capital.

Sofia – Não, tudo bem. Se você for uma vendedora de quadros, ou pinta unicamente com a ideia de vender quadro, tudo bem. Mas eu quero dizer: você se preocupar com os aspectos das cores ou da poesia, isso é um gesto de crença na arte; crença em algo que é de uma sensibilidade profundamente humana. E se manter sensível é uma resistência política, mesmo se eu estiver fazendo um poema sobre pequenas flores que nascem no alto da montanha na Suíça. Você não acha? Em qual momento a arte não é política?

Paula – Vários.

Sofia – Mas dá um exemplo.

Paula – Pensa no lixo, então, de que estávamos falando antes de começarmos a gravar a conversa. O lixo é algo que te atordoa, que te move, que te deixa incomodada, que te afeta. Não?

Sofia – Sim, só lembrando que o lixo é uma demolição da vida. Tudo é potência.

Paula – Sim. Então, olha as diferenças subjetivas que essa perspectiva traz. Quando você fala comigo e diz que isso não é lixo, podemos indagar como que a gente pensa as coisas. Por exemplo, após comer um negócio na esquina, o prato de plástico deixa de ser prato e se torna automaticamente lixo. Mas o prato de plástico não é lixo. A ideia de que depois de usado o prato se torna lixo é morte, não é?

Sofia – É morte.

Paula – Quando eu converso com as integrantes da Dulcineia Catadora, elas dizem: “Não, isso não é lixo. Nós não somos catadoras de lixo. Somos catadoras de material descartado”.

Sofia – Lógico! Lógico!

Paula – Isso faz toda a diferença, porque é como você age no mundo, como você se comporta. Um detalhe que faz toda a diferença. Em analogia à arte, nem sempre fazer arte significa fazer política, depende muito de como esse fazer se relaciona com o mundo.

Sofia – Mas isso porque a gente vive numa sociedade que execra, que mata, que é colonialista, que é machista, que é doente.

Paula – É interessante apresentar essas diferenças, essa oposição. Você vai falar da destruição, mas você pode falar pelo viés da construção, da potência.

Sofia – Porque a vida é só potência.

Paula – Potência que pode ser usada tanto de forma reativa, como ativa. Então tem que ter muita atenção.

Sofia – E o que seria a potência ativa?

Paula – A potência ativa é aquilo que cria mundos. Que traz, a partir da imaginação, possibilidades de criar mundos. Não mundos “vou para Marte”…

Sofia – É lógico.

Paula – Mundos aqui, mundos por vir. Mas esses mundos não são dados pra gente. Porque, se a gente for seguir o que é dado, nunca vamos conseguir criar mundos. Temos o que é dado pelo capital, pelo dinheiro, por essa herança…

Sofia – Ele é descartado, descartável, e depende de você para consumi-lo…

Paula – Exato! Querem que vejamos a natureza como um bem de consumo. Isso é a primeira fase da morte. Falar que uma árvore é um bem de consumo é um pensamento extrativista. É urgente criarmos possibilidades de criar mundos.

Sofia – Paula, eu intuo que todo ser é selvagem. E pressinto que tudo é o avesso da morte. Então vamos criar mais mundos, está bem?!

Sofia Borges (Ribeirão Preto, 1984) vive em São Paulo e, no momento, realiza residência artística em Jerusalém. É uma artista conceitual, que se utiliza do meio fotográfico há mais de uma década para estudar noções filosóficas sobre a relação entre matéria e significado. Ao se valer da colagem, da performance, do fogo e das camadas de pigmentos, Borges cria imagens que parecem irreais, muitas vezes interpretadas erroneamente como projetadas ou manipuladas por software. A estética radicalmente estranha de suas “fotografias tradicionais” vem do fato de construir cenários fotográficos complexos, que nascem ora de algo existente, ora de algo que é construído e depois fotografado.

Em uma prática espiralada de busca pela origem e densidade da imagem, Sofia Borges explora um exercício de observação e adição de camadas de sentido — conteúdo e material — sobre o que é a superfície do visto e o que somente se faz possível desvelar por trás dessa superfície. Sua prática é antitética à mídia fotográfica, que se propõe a registrar o visível, quase em uma atividade ontológica prática, abordando a concepção do entendimento sobre o todo. Nessa perspectiva, Borges nos dá a dúvida do inverso: imagens materiais, documentando o lado invisível da percepção.

Na capa desta Amarello, Sofia apresenta obra inédita, criada especialmente para concluir os três atos que propôs como sua participação na exposição Imagens que não se conformam, realizada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em parceria com o Museu de Arte do Rio. Ao trabalhar com a coleção do Brasil Império, a artista realizou, nesse terceiro ato, uma performance dentro da instalação que criou para a exposição. A instalação (segundo ato de sua proposição) era composta por fotografias de Borges, cortinas de veludo dourado, a pintura de uma indígena Tapuia sem autoria conhecida e, à frente da pintura, a “mão moldada em bronze do Imperador Menino”, uma das insígnias da monarquia brasileira durante a coroação do imperador D. Pedro II. Nesse terceiro ato, a artista se fotografa entregando ou devolvendo a mão do imperador à Tapuia, investindo nesse gesto uma vontade infinita de reparação, bem como de futuro.