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#26Delírio TropicalModa

A Estética da Gambiarra

por Melina Dalboni

“A arte existe porque a vida não basta”
Ferreira Gullar

Não confunda gambiarra com jeitinho brasileiro. Longe disso. A gambiarra pode ser vista como uma metáfora que representa um dos talentos mais pulsantes da nossa cultura: a elástica capacidade de inventividade. Embora seja popularmente usada como adjetivo para definir improvisações e soluções, nem sempre ideais ou às vezes até precárias, a palavra ganha nova conotação para traduzir um processo criativo de extrema originalidade que percorre de maneira profunda diversas manifestações culturais no Brasil.

O termo ganhou novo significado este ano ao ser usado para definir a limitação de recursos e o (por que não?) surpreendente sucesso da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2016, que misturou linhas de Niemeyer a Gisele Bündchen, apresentou escolas de samba com fantasias monocromáticas e desfilou bicicletinhas com penduricalhos comprados no mercado popular.

Um jornal britânico declarou que os brasileiros fizeram a festa com um décimo do orçamento de Londres, nas Olimpíadas anteriores, e que mesmo assim foram capazes de produzir uma das mais bonitas e impactantes cerimônias da história dos Jogos. Se faltou verba, sobrou inventividade para sobrepor a criação à escassez de recursos tradicionais. Alternativas e soluções pensadas para impressionar o mundo tendo como fornecedores lojistas do Saara, a região do Centro do Rio conhecida pelos preços e produtos populares, que renderam ao espetáculo a seguinte definição, publicada pelo New York Times: “deslumbrante e sem ostentação”.

Com a sensibilidade de quem escreveu o livro Cidade partida (1994), que traduziu o diálogo e a tensão entre morro e asfalto no Rio de Janeiro, o jornalista Zuenir Ventura, após ver jornais de todo o mundo positivamente surpresos com a festa que aqui foi produzida, ressignificou a palavra ao criar a expressão “estética da gambiarra”. Numa crônica publicada em agosto de 2016, escreveu: “Fernando Meirelles, Daniela Thomas, Andrucha Waddington e Deborah Colker, à frente de um time de ouro, apresentaram no Maracanã a sua ‘estética da gambiarra’, que, a exemplo do Cinema Novo, impactou o mundo”.

“Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Cinema independente para todos os criadores, por necessidade, por fome existencial. Em 1965, Glauber Rocha pegou um avião de Los Angeles a Milão para participar do congresso Terzo Mondo e Comunità Mondiale, em Gênova, e escreveu, durante o voo, o manifesto-tese “Estétyka da Fome”.

O crítico Ismail Xavier descreve a tese do diretor como: “Um estilo que procura redefinir a relação do cineasta com a carência de recursos, invertendo posições diante das exigências materiais e as convenções de linguagem próprias ao modelo industrial dominante. A carência deixa de ser obstáculo e passa a ser assumida como fator constituinte da obra, elemento que informa a sua estrutura e do qual se extrai a força da expressão, num estratagema capaz de evitar a simples constatação passiva (‘somos subdesenvolvidos’) ou o mascaramento promovido pela imitação do modelo imposto”.

A motivação a partir do que parece elemento limitador encontra impulso e força criativa no próprio obstáculo, tornando-o maleável e não apenas transponível, mas, principalmente, inspirador do processo criativo e de conceituação, transformando tudo (escassez, questões técnicas, limitações materiais e de recursos) em linguagem, conteúdo, significado, questionando a realidade árida a partir da sua ressignificação.

O fato é que a criação no Brasil muitas vezes não apenas ganha contornos originais porque não tem os recursos tradicionais ou ideais para realizar uma obra como ascende e se motiva exatamente por esta questão: a escassez que impulsiona a sobrevivência artística e determina sua originalidade. Cria-se porque a vida não é suficiente, ainda (ou exatamente por que) não se têm as medidas ideais de recursos financeiros e materiais para a criação artística.

A gambiarra é, aqui, não o tema ou objeto do qual tratamos. Ela se instala no ponto de partida do processo criativo. Sua estética é de tal modo intrínseca em nossa cultura que a limitação de recursos ideais deixa de ser mola propulsora (ou castradora), porque em alguns casos inexiste, para ser uma ideologia em que materiais menos óbvios ou nobres são ressignificados a partir do filtro da criação. Inúmeros designers e artistas brasileiros poderiam representar esta proposta ética e estética. Os cineastas brasileiros e os produtores de teatro não esperam a estrutura de Hollywood para botar suas obras de pé.

Na moda, a estilista Isabela Capeto, que trabalha com tecidos e mão de obra 100% nacionais, procura em mercados populares, como o Saara, materiais e objetos para bordar em seus vestidos, numa metáfora dos ateliês de alta-costura, que usam acabamentos, tecidos e bordados exclusivos. Transforma flores de plástico compradas em lojas de decoração popular em bordado de um delicado vestido de tule. Usa ráfia para criar franjas e formas novas para vestidos. Reaproveita tecidos e aviamentos recriando seu repertório pré-existente.

A inclinação para o uso de materiais mais rotineiros ou descartados dialoga com esta premissa, quando já não mais importa se a estrutura econômica ou técnica impõe limites. Nas artes plásticas, nomes como Nelson Leirner e Vik Muniz, numa arqueologia que desvenda e revela camadas de significados das coisas, mostram que o processo criativo individual – e absolutamente diverso um do outro – passa pela ressignificação de objetos cotidianos.

“O espanto e o fascínio pelas coisas levaram-no (Leirner), desde muito tempo, a colecioná-las. Leirner coleciona tudo, especialmente (…) as coisas mais simples”, descreve Agnaldo Farias no livro A arte do avesso. Adesivos e figurinhas infan tis deslocados do universo infanto-juvenil ganham ideologia sócio-política na série Assim É Se lhe Parece (2010), que povoa mapas mundi.

Vik Muniz, ao deslocar sucatas, restos de lixões e até mesmo alimentos para o centro de seus retratos, acrescenta camadas sensoriais e políticas à obra, como mostrou o documentário “Lixo extraordinário” (2010), com catadores do aterro sanitário de Gramacho.

Na televisão, o diretor Luiz Fernando Carvalho também pode ser incluído neste grupo de criadores que preferem o desconforto de novos materiais ou mesmo matéria-prima residual, como se pôde assistir na novela “Meu pedacinho de chão” (2014), com uma cidade cenográfica inteira construída com vinte toneladas de latões de tinta numa instalação criada pelo artista plástico Raimundo Rodriguez.

A estética da gambiarra não ganhou tese ainda, apenas a crônica de Zuenir e mais um punhado de reportagens sobre a abertura dos Jogos Olímpicos. Não serviu de bandeira para movimentos culturais, mas dialoga com o antropofagismo oswaldiano do final dos anos de 1920 e costura diversas manifestações.

Cabe lembrar ainda que gambiarra é uma extensão com lâmpadas, muito usada em festas populares para envolver e iluminar pequenas praças. Ela compõe de maneira epidérmica o repertório cenográfico da cultura popular e a arte que prescinde de público. Um objeto que traz luz e ilumina, por assim dizer, a nossa capacidade de dar novos significados às coisas e transformar em arte original do Brasil.

MELINA DALBONI é jornalista, trabalhou no jornal O Globo, e hoje integra o time de colaboradores do diretor de TV e cinema Luiz Fernando Carvalho.

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Dois e Dois são Dois: Shundi e Fanucci

César Shundi, arquiteto responsável pelo Shundi e Iwamisu Arquitetos Associados, professor no Senac e FAUUSP, se encontrou numa manhã de segunda-feira com Francisco Fanucci, um dos fundadores do Brasil Arquitetura, para conversar sobre o Estúdio Vertical, projeto que faz parte da Escola da Cidade, escola de arquitetura e urbanismo sediada no centro de São Paulo – de cujo corpo docente ambos fazem parte.

César Shundi: É importante falarmos da Escola da Cidade para um público que não seja somente os interessados em arquitetura. Ela é uma associação formada por arquitetos, como uma alternativa ao ensino de arquitetura e urbanismo, e tem uma história muito ligada aos seus próprios fundadores. A escola desenvolve uma série de atividades incomuns no meio acadêmico, até porque é uma instituição que não tem um antemodelo por trás. Seguimos a ideia de que os profissionais também podem trabalhar como professores e discutir essa disciplina que é tão importante para a nossa cidade. São os próprios arquitetos que fazem a sua gestão. Temos, por exemplo, programas como a escola itinerante – viagens feitas a cada semestre para lugares dentro e fora do Brasil, totalmente incluídos na grade curricular. Seminários internacionais já são práticas correntes no calendário da escola. O período é integral, e a carga horária é pesada, em termos de horas dedicadas à prática e ao ensino. Dentro desse currículo, além das disciplinas de arquitetura e urbanismo, existe uma disciplina que estamos coordenando nesse momento, o Estúdio Vertical: um fazer coletivo realizado por grupos de alunos de diferentes anos. Nesse semestre, temos quase duzentos alunos, cerca de vinte professores; é um trabalho amplo e que consome 30% da carga horária de um aluno ao longo do curso todo. Quando assumimos essa disciplina, sabendo, inclusive, do seu papel estruturador, decidimos abri-la para discussões mais amplas, inclusive sem direcionamentos claros – ao contrário, queríamos que o trabalho fosse guiado pelo interesse dos alunos, numa ideia de abertura, em que cada grupo pudesse explorar, a partir de um tema dado, diferentes possiblidades de aproximação e fazer com que o trabalho dos professores e dos alunos pudesse ser um processo de investigação mais aberto do que o tradicional.

Francisco Fanucci: O Estúdio Vertical surgiu no começo da escola, que surgiu de uma experiência em Mogi das Cruzes, na Universidade Braz Cubas, que estava muito decadente na época, 1990-91, e foi oferecida para o Ciro Pirondi, um ex-aluno da escola, para que ele a levantasse, pois havia pouca demanda e havia muito espaço ocioso. Quando o Ciro aceitou o convite, teve carta branca para reorganizar tudo, e chamou pessoas – eu, por exemplo – que nunca tinham tido experiência didática, acadêmica, anteriormente; pessoas muito ligadas à prática. Tudo começou muito bem; entramos em desenvolvimento de projeto, e as coisas começaram a progredir. Quando a questão econômica estava resolvida, a mantenedora começou a cortar nossas asas, e aí houve uma crise danada. Todo mundo que estava lá começou a sair – “por que não fazemos uma escola para nós?”. Foi muito difícil, mas muito difícil. Quer dizer, qualquer coisa fora de uma certa curva programada que existe hoje no Brasil para a formação de escolas de ensino superior é muito difícil. Por isso essa profusão de escolas. Hoje, existe vaga para todo mundo, mas os níveis são muito baixos, muito baixos mesmo. Temos muita oportunidade de fazer palestras por aí – você também, né, Shundi? – e o nível é assustador. Acho que isso é um processo que surgiu das reivindicações do movimento estudantil de 1968; eu me lembro, era “abaixo o 477”, um decreto que normatizava toda a questão do ensino, “abaixo o convênio MEC/USAID”, e uma outra palavra de ordem fortíssima era “mais vagas na universidade”. Quer dizer, “mais vagas na universidade” virou um mote, mas, de repente, criar uma universidade hoje virou a coisa mais lucrativa. Foi só para esse lado sem que, na base, se fizesse alguma ação que desse a condição para que isso pudesse acontecer. O quadro hoje é terrível. A experiência da Escola da Cidade é uma tentativa muito pequena, muito solitária e muito desamparada do ponto de vista institucional, precária até do ponto de vista estrutural, mas que tem um ingrediente que é o que a sustenta, de alguma maneira: esse desejo, de todos que estão lá, de fazer uma experiência um pouco mais aprofundada, um pouco mais livre. Uma das grandes teses que se discute exaustivamente hoje é a ideia da autonomia intelectual, especialmente a escola superior como um aprendizado que parte muito mais do aluno fazer, do estudante construir a sua própria maneira de pensar, mas isso fica muito só na retórica pedagógica. Conhecemos muito poucas experiências que tentam possibilitar esse tipo de condição para os estudantes. Acho que existem muitas coisas que não se aprendem na escola, e, com o Estúdio Vertical, os alunos aprendem a se organizar em grupos de cinco, e cada dois grupos têm um orientador que acompanha o trabalho do começo ao fim do semestre. Não chamamos de professor, mas de orientador. As conversas com as equipes são sempre com dois orientadores. É uma mecânica simples, mas garante algumas coisas que são fundamentais nesse processo. Os dois orientadores trazem as equipes que estão orientando; depois, o atendimento é individual a cada equipe. Isso na primeira etapa do trabalho. Na segunda etapa, troca-se o segundo orientador e, na terceira, troca-se novamente. Então os alunos acabam fazendo um trabalho coletivo, que é orientado por diferentes pessoas, com diferentes visões, e não economizamos polêmica, com os colegas e com o orientador. Colocamos sempre os alunos como protagonistas desse processo. O que se discute no EV é aquilo que os alunos trazem para a mesa; se não trazem nada, não há discussão e, consequentemente, não há trabalho. Damos as maiores condições possíveis para a emancipação intelectual do aluno, para discutir as questões da maneira como ele propõe – isso implica, é claro, os professores terem também essa disponibilidade, uma generosidade e um desapego daquilo que acham que sabem, mas que passa pela compreensão de muitos outros lugares. Não se trata da relação professor-aluno, de que o professor tem uma forma de conhecimento que vai passar para os alunos. O que acontece é um compartilhamento no desenvolvimento do trabalho entre todos, mas sempre guiado por aquilo que os alunos trazem.

CS: Em um exercício tradicional de arquitetura, seja de projeto ou de urbanismo, sempre se parte da premissa de estabelecer procedimentos claros, um determinado recorte de uma área ou de um programa para o aluno trabalhar. No nosso caso, decidimos abrir mão de tudo isso e colocar temas amplos, como tempo livre, no nosso primeiro EV, numa ideia de discutir o espaço na cidade dedicado ao lazer, ao ócio, e não ao trabalho – tudo o que apresente muita carência na nossa cidade. O segundo tema era simplesmente denominado “passagens”, uma ideia do percurso que temos e que pode ser trabalhado no campo da arquitetura e do urbanismo. São temas de cunho conceitual, e o que é interessante nessa abertura de tema é justamente permitir que os alunos estabeleçam contatos com outras disciplinas – por exemplo, as artes plásticas, a fotografia, enfim, atuações que no fundo estão relacionadas ao universo da arquitetura e do urbanismo e sobre as quais existe muito interesse por parte dos alunos. É só pensar na quantidade de arquitetos que hoje atuam em outras áreas do conhecimento, mas que, de alguma maneira, estão falando, sim, de arquitetura, de espaço, de cidade. E acho que, de alguma maneira, colocar um tema aberto como esse é afirmar que a profissão do arquiteto vai ser mais importante, vai conquistar mais espaço, à medida que também estabelecer contato com questões mais amplas, abertas, não ficando só restrita ao universo do projeto. Isso é uma questão importante para nós, porque, do ponto de vista da formação de um arquiteto, o que importa é a noção de processo, a medida que se dá quando inúmeros alunos, de diferentes anos, com diferentes bases, podem se juntar e discutir uma questão, para fornecer insumos para debater abertamente de um modo mais interessante. É claro que um aluno do primeiro ano não tem a mesma base teórica de um que está no quarto ou no quinto, mas, com temas tão abertos, essa diferença diminui, porque um aluno mais novo pode, sim, alterar o rumo de um determinado trabalho, assim como esse aluno pode aprender com a experiência de quem já está mais avançado no curso. Por isso a figura do orientador, e não do professor. Ele se vê também um pouco desarmado. Com temas tão abertos, ele é obrigado a repensar a própria postura. As perguntas e as respostas não são, evidentemente, diretas e objetivas. Não estão baseadas num espectro estreito, já definido e redutor do que é o campo da arquitetura; por isso, ele é obrigado a se confrontar com questões que não tinha enfrentado antes, passa a ser mais um componente da equipe e menos o cara que dita as regras de como tem que ser. Sabemos que as equipes e os orientadores são muito desiguais e que, nessa experimentação, existe uma margem que obviamente permite que muita coisa dê errado, então estamos trabalhando com o intuito de que a cada semestre isso possa ser melhorado, e de que a própria produção da turma como um todo sirva como motor para que a sua média seja elevada.

FF: Isso – é uma constatação também – que você chama de substituir a ideia de projeto de arquitetura por um processo, eu digo de outra maneira: é ampliar o campo do significado da palavra projeto de arquitetura. Tem um exemplo, que, aliás, você usa bastante, quando diz que fechar a Av. Paulista aos domingos não é um projeto de arquitetura stricto sensu. Não foi desenhado, não tem aquilo de pesquisa, não tem coisa nenhuma; no entanto, é uma ação arquitetônica de uma importância absurda na relação das pessoas com a cidade. No fundo, é um projeto de arquitetura, sim, um projeto de arquitetura para a cidade, que não se parece em nada com a ideia do que seja o projeto de arquitetura clássico. Isso é um exemplo, mas existem inúmeros outros em que as pessoas, de uma maneira ou de outra, estão fazendo projetos para a cidade. Eu acho que é esse tipo de projeto que estamos incentivando lá na escola. Gosto muito da ideia de que tudo é um projeto – todas as ações desse campo, que diz respeito ao lugar que as pessoas vivem, ao espaço da vida humana. Acho que tudo, no fundo, é uma reflexão permanente entre os homens sobre como é que, pela nossa ação, o mundo vai ser a nossa casa. Se você muda uma varanda da sua casa, muitas pessoas que passam por ali, na rua, são afetadas de alguma maneira, de alguma maneira o arranjo do espaço cotidiano das pessoas altera-se, sem pensar naquelas que usam a varanda. Então, mesmo no espaço privado, que é uma coisa que a gente quer trabalhar, acho que tudo interfere, tudo nos diz sobre a cidade. Não dá para emparedar, como fizeram no MASP, onde fecharam um espaço que era aberto, com os cavaletes de vidro, que, durante muito tempo, foram substituídos por um monte de parede. Quando um espaço se propõe a oferecer uma condição de convivência muito mais ampla, a impressão que dá é que há forças atuando em todas as direções do pensamento, transformadas em ações, que, às vezes, por alguns momentos, se sobrepõem e desconstroem um caminho.

CS: A um arquiteto que vá atuar nessa cidade não basta resolver um determinado problema, que é um pedido do cliente. Ao contrário, é até uma resposta naturalmente voltada a esses desejos de uma determinada encomenda, mas que isso também tenha uma contribuição para a construção da cidade, de sua melhoria, de sua história – uma ideia de transformação que não desconsidere nada disso que é fundamental. Os alunos, de certa maneira, já têm no seu DNA uma intenção clara de que os projetos têm que ter, por trás, uma formulação que se refira a todos, não só a resolver um problema no lote. E o que você falou, na verdade, a resposta clássica de um projeto é, sim, por meio de desenhos, maquetes, ilustrações, e o que está sendo discutido é que isso também é parte, mas, com isso, os nossos alunos se esforçam por meio de outras ações, algumas até de caráter mais acadêmico, no sentido da pesquisa propriamente dita, científica, outras experimentações do ponto de vista plástico, ou até mesmo projetos, desde que tenham essa vinculação com o problema da cidade. Acho que essa é nossa questão principal. Isso vai ao encontro, também, de a uma geração que me parece – é cedo para dizer – que não fica sentada esperando a próxima encomenda; ao contrário, tem uma vontade enorme de se apropriar do espaço urbano. É possível ver isso pela cidade, questões que dez anos atrás não eram pensadas e que hoje aparecem com muita força no sentido da apropriação do espaço público. Desde o Lago da Batata, a questão do Minhocão, o Parque Augusta… São questões que surgem no sentido de que as pessoas estão se mobilizando para ocupar o espaço da cidade com mais força. A Paulista é um exemplo, já, como uma resposta do poder público a todo esse movimento. Com isso, surge uma cultura de rua que está ligada à apropriação do espaço urbano, que vai contra um processo que a cidade enfrentou, nos últimos anos, de privatização completa, com condomínios que se cercam, são verdadeiros muros para a cidade, e não contribuem para a construção do espaço urbano, da rua. Tudo isso é uma resposta muito rápida a essas questões. É importante aproveitar o impulso dessa moçada, e obviamente pensar qual o rebatimento que isso tem nos outros projetos. Talvez essa seja a nossa função nesse momento.

FF: Esse conhecimento estabelecido, o conhecimento técnico, histórico de desenho, de compreensão dos mecanismos da cidade, todo o conhecimento acumulado pela experiência humana, consolidado, é indispensável. Só que não é bastante. Acho que o que a gente está trabalhando juntamente com isso é entender o espaço do EV como um espaço de conjugação, de desdobramento de todo esse tipo de conhecimento que as outras disciplinas da escola dão para os alunos. Ali é uma espécie de laboratório de ensaio, onde todos esses conteúdos, essas competências, que vêm dessa forma de conhecimento, estão ali e serão usados, só que será acrescentada também a disposição dos alunos e dos professores de entrar num território de risco, de dúvida, de questionamento, e aprender a trabalhar com isso, sem esperar respostas por parte de uma instituição. Porque não há essas respostas. Tanto que a própria avaliação que fazemos dos trabalhos é uma avaliação que… Evidentemente, quem avalia quase tudo é o orientador da equipe, mas ele não chega à metade; a outra metade é composta pelos outros orientadores e pelos próprios alunos. E os alunos avaliam duas coisas, que para nós são preciosas: a primeira, a autoavaliação, e a segunda, uma coavaliação, que é uma avaliação do processo como um todo. E isso permite uma espécie de construção de uma autocrítica. Quando a avaliação é só da parte do professor, a nota que o professor dá, por mais que seja objetiva, abrangente, no fundo, no fundo, o que está sendo avaliado é a performance do aluno como aprendiz, na visão de quem está de fora. E as coisas que se aprende com o erro? Às vezes, você aprende pra caramba tendo chegado a um resultado muito ruim no trabalho. Com isso, você faz o aluno pensar muito mais do que simplesmente receber uma nota. Ele também dá nota. Ele dá nota inclusive para nós. Quando ele dá nota para o processo todo, não é A, B, não é isso; é um comentário. Existe muita coisa previsível, mas às vezes a gente se surpreende bastante. Às vezes existem comentários que nos fazem mudar de direção. Acho que é uma maneira por meio da qual tentamos experimentar um espaço de autonomia do aprendizado, tanto para os alunos quanto para os professores.

CS: Eu me lembro que, quando a gente estava começando, alguns colegas que eram nossos confidentes falavam assim: “será que vai dar certo?”. E a gente também se perguntava, “será que vai dar certo?”, e, na verdade, quando mudamos o enfoque e encaramos isso como um laboratório, foi ótimo, porque nos deu liberdade para errar, e errar feio. A ideia de erro e acerto é interessante, porque, à medida que você não busca um resultado específico, abre as portas para coisas novas, que vão ser parte do processo de uma construção mais ampla, que não se encerra só no EV.

FF: O que nos estimula também são alguns resultados. Alguns trabalhos muito interessantes. Tem um trabalho de conclusão de curso que uniu, de certa maneira, os dois temas de que Shundi falou. O tema do primeiro semestre e o tema do segundo semestre. O primeiro, “tempo livre”, em Campo Limpo; depois, “passagens”. Da análise do contato que os estudantes tiveram com o bairro, o projeto final foi uma cenografia para um grupo de dança que se apresentava na quadra de uma escola. Trabalho maravilhoso aquele. Eles desenharam, executaram e gravaram a coreografia que foi feita para o cenário que propuseram. No ano seguinte, o tema foi “passagens”. Uma das meninas se aproximou do grupo de dança, aí voltaram para o Campo Limpo, começaram a trabalhar numa daquelas escadarias imensas do bairro, que existem quando as ruas acabam, propuseram, junto com os alunos, uma coreografia e desenharam um corrimão para essa escada. É um corrimão que cria situações para você, um corrimão que ajuda as pessoas, mas com o qual também se pode dançar. Uma maravilha. Executaram um trecho – não tinha dinheiro para todo o corrimão –, gravaram isso tudo, e foi a proposta do TC dessa menina. E outros vizinhos de outras escadarias têm nos procurado para fazer coisas… [risos]

CS: E o que é bonito é isso. O trabalho do urbanismo pressupõe, normalmente, numa visão clássica, uma ideia que vem de cima para baixo, do maior para o menor. Nesse caso, o desenho é de um guarda-corpo, uma coisa muito singela, mas que traz tantas discussões e abre tanto a questão que inverte um pouco a lógica das coisas. É bonito pensar também do ponto de vista contrário. Como de um pequeno ponto pode se discutir tantas outras coisas.

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É novembro, faz frio em São Paulo. Dezessete graus em novembro. O Donald Trump foi eleito, em que mundo estamos? Esse ano fez tanto frio, compramos casacos do North Face para as crianças e não foi dinheiro jogado fora. Eu dei um cachecol de presente de aniversário para a Tercina… e já é Natal.

Queria escrever uma crônica sobre todo ano a gente falar isto: mas esse ano voou. Ao mesmo tempo que a gente já nem se lembra do começo do ano: onde é que eu estava em janeiro, o que foi que eu fiz? É curioso, parece que faz muito tempo janeiro de dois mil e dezesseis. Mas foi ontem.

Vejo este homem, do outro lado da piscina, sentado. Ele me lembra uma música da Baby Consuelo, esse homem do outro lado da piscina sentado, com as pernas cruzadas, as mãos em cada joelho, parece que está meditando. Enquanto eu estou aqui, com meu biquíni preto, a parte de baixo vem até a cintura, a parte de cima é tipo uma regata, deixando a mostra dois dedos de barriga. Não é estilo. Eu estou gorda.

A primeira vez que o vi, dragão tatuado no braço, eu já estava aqui sentada na outra ponta da piscina, me achando gorda, pensando nas consequências da extrema extremíssima direita, e de uma possível abdominoplastia. Despertei dos meus devaneios com a água se movimentando na raia ao lado. O homem fazia uma cambalhota no fim da raia, as pernas davam o impulso…

— Não é o fulano?

Quem fez a pergunta foi o meu marido. Ele tomava o sol frio em uma cadeira afastada, mas não muito, da borda na piscina. Dali ele avistou o homem nadando, e achou que o homem era a cara do fulano, um ator tão conhecido da Globo.

— Nossa, é mesmo, muito parecido.

— Pede uma selfie!

Meu marido não tem o menor ciúme. Mas, no que ele retorna para o seu sol frio, naquela tarde de meio da semana no clube, tão agradável, o clube vazio, eu retorno para o homem tatuado meditando. Faz tanto tempo que eu não medito. O tamanho da minha barriga está ridículo. Eu ter me inscrito na academia em agosto, e ter largado a academia em agosto mesmo.

Aí eu comprei esse biquíni para fazer natação. Antes de ver aquele homem fazer uma cambalhota no fim da raia e dar um impulso, e as suas pernas, juro, eu já estava ali sentada na beira da piscina, segurando uma touca e um óculos de natação, invocando a coragem de começar a nadar naquele dia frio.

Sabendo, pelo acúmulo de anos que voam, e de vida, e de óbitos, e de óbvios que a gente aprende que são óbvios com o passar do tempo, que se eu nadar de novembro até janeiro, eu emagreço. Que se eu parar de comer pastéis de nata todas as quartas-feiras no Centro de São Paulo, eu emagreço. Se eu não levar a vida como se o verão estivesse longe deste dia frio.

Mas foi só aquele homem quem nadou. E sentou agora, farto, e cruzou as pernas, e fechou os olhos, e me parece, daqui, meditando. Alguns dias depois do Donald Trump ser eleito.

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Favelas: celeiros de empreendedorismo

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Casinhas feitas na pequena favela que se instalou no local, com madeira usada para fazer os pallets vendidos ao CEASA. Raramente se vê um carro parando para comprar uma casinha ali, mas os donos e os funcionários daquele empreendimento (moradores da favela) não se preocupam: a maior parte das vendas é feita pelo Facebook.

Esse caso, que tive a oportunidade de conhecer por conta própria, é apenas um dentre os milhões de exemplos de empreendedorismo nas favelas brasileiras, uma realidade por muito tempo escondida pelos preconceitos que a opinião letrada costuma nutrir sobre as classes sociais mais baixas.

Ou ajudamos os pobres, ou eles ficarão para sempre na miséria. As multidões que habitam as favelas são um problema social aguardando uma solução, e cabe a nós, privilegiados, oferecê-la aos coitadinhos. Essa é uma visão ainda muito comum; assim como é comum a mescla de boas intenções (querer ajudar o próximo) e condescendência (setores inteiros da população são incapazes) que expressa.

Na verdade, as favelas do Brasil (e do mundo) não são um problema social, mas, sim, uma solução, e uma solução bastante eficiente. São o resultado de um processo intenso de migração do campo para a cidade que, em uma geração, conseguiu mudar o patamar social da maioria dos que fizeram o movimento. E o empreendedorismo foi e é parte crucial desse processo.

O primeiro grande estudo realizado sobre as favelas do Brasil é o Data Favela, feito pelo Instituto Mercado Popular e publicado pela primeira vez em 2013, com uma segunda edição em 2015. Os dados da primeira edição estão sintetizados e interpretados no livro Um país chamado favela, de Celso Athayde e Renato Meirelles. Um estudo global sobre o fenômeno das favelas em diversos países pode ser encontrado no livro Cidade de chegada, de Doug Saunders.

A foto de uma favela é uma foto de pobreza; são pessoas com menos acesso a bens e serviços do que a média dos que moram fora da favela. Mas o filme, a história que se desenrola ali, é de ascensão social. Em vinte anos, a pirâmide social das favelas se inverteu: se antes eram maioria as classe D e E, hoje (dados de 2015) as favelas têm 61% de seus moradores na classe C e ainda 7% nas A e B. O observador atento já deve ter reparado como, ao longo das duas últimas décadas, a favela de barracos de madeira perdeu espaço para as casas de alvenaria, inicialmente sem reboco e, posteriormente, até com pintura exterior. A ascensão se verifica também no consumo: TVs de tela plana, motos e smartphones são itens comuns, ainda que muitas vezes emprestados para vizinhos.

Essa população tem a aspiração do empreendedorismo no sangue, com 40% dos moradores pretendendo abrir um negócio nos próximos dois anos. Cerca de 10% têm já um negócio próprio; se por vocação ou por necessidade, pouco importa. Numa economia em que nem sempre é fácil encontrar emprego, criar valor diretamente para clientes é uma solução preferencial.

Vemos nas favelas brasileiras muitas das características que marcam o Brasil: criatividade, capacidade de improviso, uso extenso de gambiarras e outras soluções informais e de baixo custo, e dedicação incansável para obter sucesso (não como fim em si mesmo). Nesse contexto, operam com uma grande diferença: o Estado não está presente de maneira eficaz, seja para prover os serviços básicos que esperaríamos dele, seja para regular, taxar e proibir o empreendedorismo com impostos e regulamentações.

Ao contrário da visão tradicional, a economia dentro das favelas brasileiras é muito rica, e os negócios são de todos os tipos: botecos e restaurantes (inclusive com festivais gastronômicos), salões de beleza, lojas de varejo, transportes (motos e vans), mercados, casas de shows, gráficas, oficinas etc. Em quase todos os casos, reina a informalidade. Laços de confiança permitem que o sistema continue a operar e a crescer.

O desejo humano de melhorar de vida jamais arrefece. Se o Estado não aparece para cuidar de algo essencial como saneamento básico em uma área urbana, a população não fica parada esperando uma solução chegar. Encanamentos informais — pelos quais se paga taxa —, venda de galões d’água e instalação de fossas sépticas — e limpeza periódica delas — são também negócios em muitas comunidades. No transporte é a mesma coisa: mototáxis e vans informais levam moradores e fazem entregas por morros íngremes. Em alguns casos, como o da Rocinha, a ausência de ruas formais fazia com que os Correios não entregassem correspondência na comunidade — a solução foi dada por empreendedores locais que, mapeando as vielas e cobrando uma taxa, passaram a fazer o serviço do qual o Estado abdicou. A garra do empreendedorismo supera a ineficiência do monopólio estatal.

O urbanismo não planejado, por fim, é outra lição que a favela tem para ensinar ao restante do Brasil. Com as edificações sempre muito próximas, cada casa ocupando novos espaços, subindo uma na outra, como numa selva baixa, valoriza-se o convívio e a troca. É muito comum morar na mesma vizinhança que a família, e a visita à casa de amigos bem como o empréstimo de bens (e até de cartão de crédito) são mais comuns lá do que no Brasil das habitações formais. Para o senso de ordem cartesiano e asséptico de alguns, o aparente caos urbanístico de uma favela pode parecer feio. Este crescimento orgânico e adaptável, contudo, é muito mais propício ao empreendedorismo do que conjuntos habitacionais frios e sem lugar para comércio e serviços.  

As favelas são máquinas bastante eficientes de ascensão social. Enfrentam, no entanto, muitos desafios para se integrar e continuar a se desenvolver. Saneamento básico, lei e ordem providas por um Estado de Direito — infelizmente, o Estado brasileiro fica muito aquém desse ideal quando se trata das favelas, ainda que seja preferível a suas alternativas: crime organizado e milícias —, simplificação regulatória e tributária para não matar a economia popular, regularização fundiária de muitas das propriedades que já existem de fato. As soluções, sejam quais forem, ainda que demandem (e certamente demandarão) investimento de fora, partirão de dentro, desde que haja a liberdade necessária para o crescimento continuar.

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Breve história da corrupção dentro do Estado brasileiro

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“Há alguma coisa de podre lá em cima…”
Tobias Barreto (1839-1889)

“No Brasil, o prestígio pessoal costumava prender-se antes à capacidade de acesso aos altos cargos públicos originada principalmente no grau de relação com os senhores da situação”
Sérgio Buarque de Holanda

Em data recente, o ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, Sr. João Vaccari Neto, introduziu no vocabulário da mídia um novo termo: “pixuleco”. Este designa “propina”, “dinheiro sujo” ou “dinheiro roubado” e foi usado para definir as quantias que foram distribuídas pelo sistema de corrupção que atingiu a Petrobrás. Com essa ou outras designações, a questão da corrupção no seio do Estado brasileiro e seus tentáculos, na forma de redes clientelistas ou nepotistas, atravessam nossa história. 

Vale lembrar que a preocupação com o assunto não é nova. Uma longa linhagem de intelectuais, empresários e juristas já se debruçou sobre o tema: de Tobias Barreto a Raimundo Faoro, de Manoel Bonfim a Sérgio Buarque de Holanda. Suas respostas? Com diferentes abordagens, todos investem num mesmo diagnóstico: parte substantiva dos problemas brasileiros reside nas enormes distâncias entre Estado e Sociedade. E, nesse vácuo, se multiplicam as oportunidades de corrupção. O próprio aparelho de Estado se contaminou com tal divisão. Depois de mais de um século de República Federativa do Brasil, as relações entre o poder central e as unidades da Federação resultaram em puro casuísmo. Por seu lado, estados procuram extrair do poder central concessões financeiras desmedidas, fazendo uso de sua liberdade de gestão para aprofundar uma gigantesca dívida fiscal. O governo federal retribui, editando medidas provisórias e remendos tributários e tratando o Orçamento como mera peça de ficção.

Em 1877, num notável discurso dito “em mangas de camisa”, Tobias Barreto comparava os brasileiros, povo e autoridades, a viajantes que se reuniam à noite numa “casa de rancho”, mas que, ao amanhecer, cada qual tomava seu caminho, sem probabilidade de se reencontrar. Em 1905, era a vez de Manoel Bonfim atribuir tal divórcio ao “parasitismo” estabelecido desde o início da colonização. No seu entender, o Estado só tinha um objetivo: garantir o máximo de tributos e extorsões. Quem não tinha outra função ativa, para além de explorar terras e escravos, tratava de “colocar-se”. E Bonfim arrematava, de forma cética: “Não há na sociedade da metrópole uma classe, um órgão, que não participe dessa vida parasitária a que se entregou a nação. Ela apresenta o todo perfeito de um organismo social preso a outro, sugando-o”. De um lado, o Estado vampiro e seus seguidores. E do outro, uma massa esgotada de explorados. Entre eles, mediando tudo, uma rede de “amigos do rei”. Em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre ecoou as mesmas preocupações, lembrando que, em função do familismo político, o rei reinava na América, sem governar. E pior: faminto, o parasitismo econômico procurava estender, do reino às colônias, seus tentáculos absorventes. O grande pensador cunhou a expressão “privatismo senhorial”, para designar o sistema de poder pessoal face à debilidade das instituições estatais.

Oliveira Vianna, por sua vez, chamou atenção para outro caráter da colonização. Caráter que, em resposta às demandas do Estado e dos grupos que dele se beneficiavam, empurraria uma segunda camada, constituída por plebeus, lavradores, “homens honrados, mas de poucas posses”, para o interior. Segundo ele, essa gente ia se fixando obscura e silenciosamente, com seus gados e miúdos, nos campos e matos do hinterland. Era remediada, a princípio. Depois, se tornava abastada. E, engrossando patrimônios e fortunas, acabava por criar zonas de poder local e pessoal; zonas eficazes no comando da política e das terras, zonas capazes de ocupar o espaço de um Estado ausente e quase visto como antagonista e inimigo. Não teria esse o mesmo sentido do “colocar-se”, de que falava Bonfim? Ambas as atitudes traduzem a hostilidade em relação ao poder central e o esvaziamento das possíveis organizações políticas. 

Embora Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr, entre 1936 e 1942, tenham se debruçado sobre a questão, apontando as fórmulas pelas quais o Estado ou quem o representa mantém seu domínio sobre as pessoas, o clássico sobre as relações entre Estado e Sociedade só veio mais tarde. Devemos essa reflexão à pena de Raymundo Faoro. Em Os Donos do Poder, publicado pela primeira vez em 1958, o autor gaúcho demonstrou como o país foi governado, desde sempre, por burocratas, fato que, segundo ele, agudizou os problemas estruturais. A instalação portuguesa e sua opção por criar um aparelho de Estado antes mesmo que uma sociedade tomasse forma tornou-nos uma “sociedade imperfeita”. Roberto da Matta foi mais longe ao sublinhar que somos uma sociedade bicéfala: uma parte de nós se enxerga como parte do Estado nacional, com instituições e regras escritas. Outra se vê como sociedade mestiça, desenvolvida marginalmente ou até mesmo contra o Estado – a atual situação de anomia das favelas/comunidades cariocas sendo, em meu entender, um retrato nítido do que previu o antropólogo.

Poderíamos, então, falar em mais de quinhentos anos de vácuo onde se multiplicam as oportunidades de corrupção? Sim. E tudo indica que as poucas e precárias relações entre a Sociedade e o Estado passavam e continuam a passar por uma musculosa rede de clientelismo. Clientelismo ou nepotismo que permitiu a uns adaptar-se e a outros tentar arduamente sobreviver. Nepotismo apoiado em desencontros, localismos e parasitismos. Exclusividade do Estado brasileiro? Não! Durante o Antigo Regime, as redes clientelares faziam parte da estrutura de poder das monarquias europeias, o funcionalismo público na estrutura do Estado significando, então, um “veículo de promoção social” — tema estudado pelo Conselheiro Arno Wehling. À época, reis e senhores tinham que cumprir uma agenda de obrigações paternalistas em relação aos seus súditos, que deveriam corresponder pelo amor e fidelidade pessoal ao serviço da Coroa. Serviço — sublinhe-se — feito de clientelismo e de serviços trocados entre amigos. Como consagrou o político Antonio Carlos Magalhães, já era “dando que se recebia”.

Inúmeros estudos demonstram que o localismo dos interesses, a hostilidade à administração central, a desafeição ao governo e a falta de patriotismo levaram a um cipoal de leis que procurou, desde sempre, encobrir a incompetência de nossos governantes e o proveito de seus protegidos. E que as poucas e precárias relações com o Estado sempre passaram por uma musculosa rede de nepotismo que operava a administração doméstica. Laços pessoais, laços capazes de prosperar no interior do aparelho de Estado se multiplicaram ao longo da história. E foram muitos e muito diversificados.

Comecemos pelos senhores de engenho, no período colonial. Considerados fidalgos, obedecidos e respeitados por muitos, estavam no ápice da hierarquia social, do controle da terra e dos que a trabalhavam — os escravos. No ambiente rural, onde a autoridade pública era fraca, ou mesmo inexistente, a grande propriedade se constituía em centro de poder e riqueza. Seu objetivo não era a racionalidade empresarial, mas a acumulação de escravos e terras, fatores de honraria e poder.

O historiador americano Stuart Schwartz, ao estudar a formação e as práticas das elites coloniais, foi pioneiro em mostrar que as ligações pessoais, os contatos de negócios e os laços familiares entre senhores de engenho e funcionários do governo foram, desde o início da implantação de latifúndios, contra o bom funcionamento da máquina administrativa. Sabe-se que os interesses desses grupos não encontravam apoio para se expressar dentro do sistema político imperial português. Suas petições e pedidos de auxílio esbarravam na inércia administrativa e política, sobrando-lhes atuar no sentido de conseguir, pela corrupção, influenciar a imposição ou não de determinadas leis. Os que tinham, pois, magistrados na família podiam suborná-los ou fraudar certas normas contando com o silêncio e o segredo que envolviam suas ações.

Na Colônia, sabia-se que o Tribunal da Relação era uma instituição corrupta. Mas, numa aparente contradição, os colonizados pulavam em sua defesa sempre que a Coroa agia contra os juízes que pareciam mais venais. Lógico: negócios e débitos de alguns magistrados os tornavam bastante vulneráveis às pressões financeiras. Segundo Schwartz, o “abrasileiramento da burocracia” por meio dos enlaces familiares entre os desembargadores e as elites comprova a mescla entre o exercício da alta magistratura e os interesses privados, não obstante os conflitos de praxe. Os casamentos endogâmicos dentro de um pequeno grupo de famílias permitiam que estas ocupassem postos camerários em rodízio, aumentando sensivelmente sua ação.

Por outro lado, ao longo do século XVII, senhores de engenho no Nordeste haviam ocupado os postos de comando nas Câmaras, e suas ações arbitrárias caíam sob as costas de arrendatários, meeiros e lavradores, interferindo na qualidade do julgamento e das ações que corriam no foro da Relação. Eis por que, quando não se curvava diante dos pedidos de um senhor de engenho mais irritadiço, um ouvidor provavelmente ouviria ser chamado de “galego sujo”, “cabroin” e “judeu”, insultos ilegais, porém correntes. 

A justiça que submetia tais senhores de engenho entre outros moradores da América portuguesa era “rapace”. A voracidade de meirinhos, escrivães e juízes prevaricadores era insaciável. A manipulação das alianças familiares para resolver os problemas domésticos era constante, uma vez que os juízes eram caudatários de ordens dadas por potentados locais ou enviadas diretamente da Corte. O autor de Diálogos das grandezas do Brasil, Ambrósio Fernandes Brandão, escrevendo no início do século XVII, observava que uma parte dos acertos já era resolvida internamente, e que litigantes costumavam “meter amigos e parentes de permeio” para consertá-los. Os desembargadores, quando parte do círculo de relações patrimonialistas, eram alvo constante de cartas onde se invocavam favores trocados, sem cerimônias.

As relações do senhor de engenho com o Estado beneficiavam-se da notória venalidade dos seus funcionários. A atitude destes em relação ao Brasil era imediatista. Removidos da Corte normalmente por causa de dificuldades financeiras, dirigiam-se à colônia americana para resolver tal problema no tempo mais exíguo possível. Acreditava-se que no ultramar se enriqueceria tão rapidamente que nem haveria necessidade de levar família; seria pouca a demora nas terras incultas e povoadas de bugres antropófagos. Assim, nada os prendia à América, a não ser o fato de aí estarem para completar determinado número de anos em serviço, ao cabo dos quais retornariam a Portugal, prestigiados e ricos.

O importante era manter-lhes “as mãos bem ocupadas”, como denunciava, em 1728, o padre e escritor Nuno Marques Pereira. Era, pois, sabido que funcionários públicos em todos os escalões preocupavam-se antes de tudo não com a coisa pública nem com o bem comum, mas com os interesses privados, com seu próprio bem. O que na prática significava amealhar recursos ou fortuna à custa do interesse coletivo. Os senhores de engenho alimentavam esta malfadada engrenagem, pois se encontravam sempre carentes de favores, necessitados de crédito ou de julgamentos propícios a causas perdidas. Expressões como “tanger paus” e “azeitar rodas com moedas” para “saltar barrancos que não eram pequenos” eram usadas na Bahia do final dos Setecentos para designar o jogo de reciprocidade entre as autoridades e os senhores de engenho, então em crise. A distribuição de “caixões de açúcar” entre funcionários do Estado era corrente — como demonstrei em Ritos da Vida privada no Brasil. Tais caixões eram usados como um “escudinho contra as inquietações que podem vir de justiças e inspetorias”, afirmava um deles, Luiz Paulino de Oliveira Pinto, em 1818.

Com o brutal declínio das exportações de açúcar frente à produção antilhana, sobrava aos descendentes dos poderosos e decadentes senhores de engenho buscar em ministros e funcionários públicos o apoio que lhes dava, outrora, a rede clientelista de que precisavam. Nesses cargos se encontraram, a partir do século XIX, as segundas e terceiras gerações da açucarocracia. A crise do preço do produto expulsou para a cidade “ioiôs” e “sinhozinhos” que se tornaram médicos, advogados e políticos, “afrancesados, urbanizados e policiados”, como mostrou Freyre. Político de renome, Joaquim Nabuco definiu este arrimo com frase exemplar: o Estado brasileiro era, afinal, “o grande asilo das fortunas desbaratadas”. Faltou prever: ali se fariam novas!

Outro universo em que o nepotismo era regra: o do abastecimento da sociedade colonial. Coube às Câmaras criar uma estrutura de controle e exercer uma política sobre a qualidade, o preço e a aferição de pesos e medidas e o fornecimento de produtos. O comércio de produtos essenciais à alimentação — sal, pescado e carne bovina — era a principal preocupação. As Câmaras também eram responsáveis pela abertura de lojas e vendas, além do cadastramento de comerciantes que quisessem atuar nos núcleos urbanos. Da oferta desses bens em quantidade e a preços razoáveis, dependia a “quietude dos povos”. 

Inicialmente afastados dos cargos municipais, os comerciantes setecentistas perceberam a importância destes e procuraram, na medida do possível, assumir o controle das funções camerárias. A ascensão dos homens de negócio aos cargos administrativos era essencial para que conseguissem vantagens e proteção, em contraste com os interesses mais gerais da população. Disso estava ciente o rei de Portugal, ao afirmar “que todos estes procedimentos destas Câmaras são em grande prejuízo do meu Real Serviço, porque, como querem levantar estes contratos em utilidades particulares, podem ser a causa de motins que sejam dificultosos de sossegar”.

Desses conflitos nasceu a necessidade de a Coroa efetivar um controle maior sobre os órgãos municipais, tendo sido o cargo de juiz de fora criado para este fim. Mas tais cuidados não bastaram. Contratos para a exploração do tráfico de escravos, da exploração do pau-brasil ou de pedras preciosas multiplicaram o casamento entre Estado e comércio. Não foram poucos os comerciantes de grosso trato — que tinham negócios envolvendo grandes somas de capital e operavam em vários lugares — que enriqueceram com os negócios coloniais e transitavam na Corte, conseguindo favores e cargos para seus agentes comerciais e parentes. São vários os exemplos da incorporação de ávidos comerciantes aos negócios do Reino, resultando em vantagens para os dois lados, notadamente quando se tratava de arrematação de contratos para compra e venda de escravos ou para cobrança de impostos nas capitanias. Ou ainda, como no caso da Companhia Geral do Comércio para o Estado do Brasil, contratos que associavam companhias estatais aos homens de negócio para importação e venda de sal, vinho, farinha, azeite e corte de pau-brasil ou até impostos sobre a passagem de rios caudalosos ou do capim ingerido por animais.

Os comerciantes estabeleciam uma série de vínculos estratégicos com o Estado, propiciando a expansão dos interesses metropolitanos na Colônia, sobretudo quando se tratava do controle do abastecimento e de endividamento de uma população crescente ou a cobrança de impostos sobre a atividade mercantil. E eles procuraram se organizar para defender seus interesses. No século XVII, foi criada a Mesa do Bem Comum dos Homens de Negócios, representando cinco corporações para atuar na defesa dos interesses e no auxílio mútuo dos mercadores.

Mais tarde, em 1808, quando da vinda da família real portuguesa ao Brasil, os “homens de grosso tratado ou de grossa ventura”, atuaram no sentido de “dar para receber”. Para ficar num exemplo: Elias Antonio Lopes, traficante de escravos, ofereceu sua residência, uma quinta na Boa Vista, ao Regente D. João VI: foi imediatamente agraciado comendador da Ordem Militar de Cristo e nomeado tabelião e escrivão da Vila de Parati. E em 1810, sagrado cavaleiro da Casa Real e agraciado alcaide-mor e senhor perpétuo do da Vila de São José del-Rei. Depois foi nomeado corretor e provedor da Casa de Seguros da Corte. Por fim, responsável pela arrecadação de impostos em várias localidades. 

Como bem demonstrou Jurandir Malerba, coube à diligente elite econômica fluminense socorrer os cofres públicos nas urgências, com a instalação e manutenção da máquina administrativa e da corte parasitária e faminta de distinção, que chegou com o Regente português, D. João. Muitos relatos atestam a presteza e boa vontade com que os locais receberam estrangeiros emprestando espontaneamente dinheiro e moradia. Não o fizeram por bondade, mas impelidos por uma mentalidade arcaica, própria do Antigo Regime. Os “grandes” que socorreram o rei buscavam e receberam distinção, honra, prestígio social em forma de nobilitações, títulos, privilégios, isenções, liberdades e franquias, mas igualmente favores com retorno material, como postos na administração e na arrematação de impostos. Elias Lopes não foi o único…

A categoria dos funcionários públicos coloniais é outra que colaborou para as relações siamesas entre Estado e Sociedade. Testemunhos de época sublinham seus aspectos negativos. Eles são descritos como ávidos por dinheiro e preocupando-se mais com seus interesses particulares do que com os do Estado. O Conde da Cunha, por exemplo, vice-rei no Rio de Janeiro, entre 1763 e 1767, pediu para retirar-se do cargo, pois não conseguia fazer frente à cumplicidade entre desembargadores e negociantes de grosso trato da cidade que eram notórios sonegadores de impostos. Com fina ironia, padre Vieira já se queixava, bem antes das demoras das decisões oficiais: “Não há palavra mais equívoca nem advérbio de mais duvidosa significação que o ‘logo’ em matéria de despachos… Há ‘logo’ de dois anos, de quatro, de dez e de toda a vida…”. 

A literatura dos séculos XVII e XVIII, em Portugal e no Brasil, deixa entrever um painel pessimista de despotismo e de enriquecimento ilícito. O texto anônimo intitulado Arte de Furtar demonstra que o ofício público tinha um número extenso de títulos arrogantes, prepotentes e concentrados em seus interesses pessoais. Seu autor dedica um capítulo aos “maiores ladrões que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões”. Ou “dos que furtam com unhas disfarçadas”, “com unhas irremediáveis” ou “unhas apressadas”, “com unhas bentas ou unhas militares”, entre outros.

Tal mentalidade estava surpreendentemente disseminada entre os reinóis que se tinham estabelecido no Brasil. Em carta do Rio de Janeiro, de 27 de junho de 1814, Luis Paulino de França Garcez, senhor do Engenho de Aramaré, na Bahia, escrevia a seu sogro, José Cardoso Pinto de Madureira, em Penafiel, Portugal:

“Nessa terra, quem leva 80 mil cruzados vai fazer uma boa figura, e isso, em tendo emprego de ‘ministrice’ ou outro qualquer [emprego] de dependência ou negócios, pode ir lá brilhar [na Corte]. Vossa Senhoria e quase toda a gente daí [de Portugal] não fazem ideia do que é isto cá, para quem não é homem de não poder fazer ‘chupancinhas’.[…] Lá, [em Portugal] dá-se por coisa grande o valor de doze moedas. Aqui, por um insignificante favor se dá a um ministro 3 a 4 mil cruzados. A ‘chupancinha’ aqui é de tarifa!”

E o senhor de engenho concluía, desalentado: “Pobres povos que há tanto anos são esfolados e que, a não ser a riqueza natural de seu país, já não existiriam”.

E mais tarde, em carta de janeiro de 1826, ao “Amigo Menezes”, o patrono da Independência, José Bonifácio não se iludia com as realidades pós-emancipação, denunciando abertamente o “país enxovalhado a tal ponto! E por bandalhos do governo”! Ao criticar as nomeações excessivas e imerecidas de viscondes e barões, ele referia-se à Regência como a “Grã-Pata” acusada “de por tantos ovos”, na forma de “barões de marmelada” e “basbaques”!

Durante o século XIX, os funcionários públicos continuam a se apropriar do Estado. Quando havia recuo nesta posição, eles eram afastados. Veja-se o exemplo estudado por Antonio Candido, em seu Um funcionário da monarquia – ensaio sobre o Segundo Escalão. Sobre o biografado, Antonio Nicolau Tolentino, filho de lavradores que chegou a presidente da província do Rio de Janeiro em 1857, o autor diz: “ser funcionário público dependia de muita coisa. Dos favores, dos protetores, do parentesco e até da habilitação. Quando não havia família, nem padrinhos, nem dinheiro, nem diplomas – o que fazer? […] qual era a proporção do esforço pessoal e do mérito inicialmente desajudado, assim como da competência lentamente adquirida, numa sociedade de prebenda e mercê, onde no fundo trabalhar era feio, o funcionário parecia não trabalhar e frequentemente não trabalhava”. 

Na Alfândega, cercada de má fama, onde, aliás, teve início sua carreira, abusos, corrupção e irregularidades diversas proliferavam. Dirigentes do órgão eram responsáveis por redes de contrabando, que Tolentino tentou ingenuamente desbaratar. Os jornais de época apoiavam, invocando as “patifarias” que aí rolavam, na forma de desvio de cargas e roubos de carregamentos. Os notórios culpados nunca eram punidos. A ação saneadora que tentou Tolentino foi retribuída com uma demissão inesperada. Ele deveria ter seguido o dito do grande Talleyrand: “Surtout pas trop de zéle”. 

Depois de uma passagem pelo Banco do Brasil, mereceu uma indicação: a de governar a mais importante província do Império, o Rio de Janeiro. Mais uma vez, Tolentino assumiu com a ideia de reparar uma rotina defeituosa. Não quis se limitar a administrar, mas a promover reformas: no controle do ensino, na má conduta do clero, no absenteísmo do funcionalismo público. Mais: propôs uma “reforma do serviço público”, amparada em formação adequada e concursos de seleção. A ideia foi como um tiro no pé, pois o próprio sistema eleitoral dependia de um jogo de favores alimentado por empregos públicos, concessões, empreitadas, apadrinhamentos, etc. 

Num regulamento de 3 janeiro de 1858, ao coibir os afastamentos remunerados e as nomeações “por favor”, decretou o fim de sua carreira. Fragilizado e sem apoio dos deputados ou do imperador, D. Pedro II, Tolentino pediu demissão. Os jornais ecoaram o escândalo do funcionário modelo que tentou mudar o sistema. Mas tudo voltou a ser como antes no quartel de Abrantes. O burocrata não aderiu às malícias e conveniências do jogo político e os políticos, por sua vez, consideraram perigosa a sua tentativa de levar a reforma do serviço público adiante.

Já a polícia era alvo de manchetes da imprensa, nos finais do século XIX, início do XX. Violência, arbitrariedades, ações ilegais como roubos, furtos e espancamentos a te estupros eram características marcantes da ação policial nos grandes centros. É entre o advento da Abolição e da República que a Força Pública entra em cena como instrumento de contenção e controle de toda a vida social, vigiando e reprimindo desvios da ordem republicana e representando a faceta do Estado que mais lidava com o povo. A ideologia do trabalho industrial em voga, naquele momento, exigia um controle constante e um combate às figuras do “vadio” do ébrio e do mendigo, desclassificados sociais que colocavam em cheque a ética do trabalho. Além da nova praga: o anarquismo. A polícia representava a instituição através da qual se dava o contato mais frequente do Estado com as camadas mais baixas da população. Se o Estado e a sociedade sempre estiveram divorciados, no caso a relação entre eles assentava-se sobre a violência, a arbitrariedade e o autoritarismo do primeiro em relação ao segundo. A onda higienista que assolava as ideias de elite contava com o apoio dos aparelhos policiais.

A polícia contava ainda com “secretas”, agentes disfarçados a paisana, sempre em busca de vadios, jogadores, cafetões, passadores de moeda falsa ou “contos do vigário”. Mas o convívio com o submundo acabava por contaminar os policiais. Denúncias de embriaguez, insubordinação, desobediência, sedições, agressões e deserções eram comuns. Protegidos pela farda e o distintivo, os agentes da ordem envolviam-se com “casas de meretrizes”, “jogo do bicho”, enfim, tudo o que era considerado “vício moral”. Relatórios de Chefes de Polícia do início do século XX demonstram que o estelionato era uma forma de aumentar parcos salários. Aliás, estes eram dos mais baixos pagos ao funcionalismo público, superior apenas ao pago aos trabalhadores sem qualificação. Entre 1911 e 1912, por exemplo, um soldado ganhava menos do que um jardineiro ou um pedreiro.

Se, por um lado, ganhava-se pouco, procurava-se tirar o máximo proveito da posição de “autoridade policial”. Pelo temor que inspirava, o cargo tirava do distintivo o complemento necessário à sobrevivência. Jornais de época trazem denúncias de extorsões (o “mata-bicho”), de negociações de liberdade e soltura ou fuga de presos. Extorquindo cidadãos através da exploração de seus temores e cometendo crimes de variados tipos, os soldados refletiam a ineficácia ou, ainda, o desinteresse do Estado em organizar suas instituições, fosse pela incapacidade dos governantes, fosse simplesmente pelo fato de que a polícia representava o organismo que tinha como função proteger as elites das perigosas classes subalternas. As sessões livres dos jornais trazem centenas de denúncias contra maus policiais. Arguto observador da sociedade carioca, João do Rio tinha razão ao afirmar que o crime estava na própria organização da polícia.

Como se vê, em nossa história, as relações entre Estado e Sociedade sempre foram fortemente marcadas pelos laços pessoais; laços capazes de prosperar no interior de um Estado unitário, mas anônimo – um anonimato que facilita e, facilitou ao longo dos séculos, “pixulecos”, “ministrices” e “chupancinhas”. Por toda parte, o Estado procurou criar condições de controle de bens, de homens, de sua capacidade produtiva ou cultural, enquanto os cidadãos se motivavam contra os interesses imediatos do Estado – a partir de relações pessoais baseadas na família, em grupos de parentesco com interesses comuns, em núcleos profissionais ou políticos. O descompasso entre a massa da população e do Estado sempre foi o mesmo, onde quer que alcançasse o longo braço de El-Rei, as garras dos funcionários públicos e dos políticos, os dentes da polícia. Mais do que nunca, infelizmente, essa tradição está visível. 

E com essa tradição, o Brasil tem jeito? Neste texto, que nasceu sob o signo das fontes históricas e não de complexas arquiteturas teóricas, ouso responder com modéstia: depende de uma formidável mudança nas práticas e mentalidades que enforjam o Estado Brasileiro. O Brasil não é o único país onde tais práticas subsistem, mas cabe, sobretudo, à Sociedade conhecer melhor esta história e fazer a sua parte. 

Bibliografia:

Andrada e Silva, José Bonifácio, Carta a Antonio de Meneses Vasconcelos de Drummond criticando as nomeações excessivas e imerecidas de viscondes e barões, BNRJ, Sessão Manuscritos, Cartas Andradinas, n. 1307711.- 1826, loc.original 49,3,2, n.9. 

Anônimo, A arte de furtar, Lisboa, Editorial Estampa, 1978.

Araújo, Emanuel, Teatro dos Vícios, transgressão e transigência na sociedade urbana colonial, Rio de Janeiro, José Olympio, 1993. 

Barreto, Tobias, A questão do poder moderador e outros ensaios brasileiros, Coleção Dimensões do Brasil, Petrópolis, Vozes, 1977.

Brandão, Ambrósio Fernandes, Diálogos das Grandezas do Brasil”, (coleção Memória Literária), São Paulo, Melhoramentos,1977

Candido, Antonio, Um funcionário da Monarquia – Ensaio sobre o segundo escalão, Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2002.

Bonfim, Manoel, A América Latina – males de origem – Rio de Janeiro, Topbooks, 1993.

Del Priore, Mary, Org. Revisão do Paraíso – Os brasileiros e o Estado em 500 anos de História, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2000. 

Del Priore, Mary, “Ritos da Vida privada” in História da Vida Privada – cotidiano e vida privada na América Portuguesa, Dir. Fernando A. Novais, Org. Laura de Mello e Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 1988. 

Ferreira, Oliveiras. S. Conferencia de encerramento de um seminário em sua homenagem e publicada em O Estado de São Paulo, a 11/04/99 Caderno A. P.11,

França, Antonio Pinto de e Cardoso, Antonio Monteiro, Cartas Luso-Brasileiras, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2008.

Freyre, Gilberto, Casa Grande & Senzala – Formação da família brasileira sob o regime patriarcal, 20.a. edição, Rio de Janeiro, José Olympio, INL-MEC, 1980. 

Hespanha, Antonio Manuel, Às vésperas do Leviatã – Instituições e poder político em Portugal, século XVIII, Lisboa, M. Botelho, 1986.

Hespanha, Antonio Manuel, Poder e Instituições do Antigo Regime, Guia de Estudos, Lisboa, Cosmos, 1992. 

Holanda, Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

Malerba, Jurandir, A Corte no Exílio – civilização e poder às vésperas da Independência, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

Matta, Roberto da, A casa e a rua – espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1985.

Mello, Evaldo Cabral de (org.). Essencial Joaquim Nabuco. São Paulo, Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.

Nabuco, Joaquim, O abolicionismo, Brasília, Editora UNB, 2003.

Prado Jr., Caio, Holanda, São Paulo, Companhia das Letras 2011.

Santos, Marco Antonio Cabral dos, “Polícia: homens da lei na capital do café”, in Mary del Priore, Org. Revisão do Paraíso – Os brasileiros e o Estado em 500 anos de História, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2000, pp.277-300.

Schwartz, Stuart b. Burocracia e sociedade no Brasil colonial – O Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores,1609-1751, São Paulo, Companhia das Letras, 2011.

Wehling, Arno e Maria José, Formação do Brasil Colonial, Nova Fronteira, 2001.

Wehling, Arno e Maria José, “O funcionário colonial entre a sociedade e o rei”, in Mary del Priore, Org. Revisão do Paraíso – Os brasileiros e o Estado em 500 anos de História, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2000, pp.139-160.

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Tupinambá, filha do chefe Taparica, criada e educada segundo essa condição em seu povo.

Cada uma das palavras da frase acima ganha sentido próprio quando analisada por padrões antropológicos — uma necessidade imperiosa para falar de quem não conhece a escrita.

“Tupinambá” indica o pertencimento a um grande grupo dos povos Tupi-Guarani, com seus traços gerais de organização. 

“Filha”, nessa cultura comum, quer dizer algo bem diferente daquilo que significa no Ocidente. Para os Tupi-Guarani há somente um genitor, o pai; a mãe é considerada apenas um veículo de geração da vida.

Sendo assim, “família” também tem outro significado. Apenas um exemplo revela o tamanho da diferença: filhos de uma irmã do pai não são sequer considerados parentes — e com eles uma filha mulher desse pai pode casar; já os filhos de um irmão dele são considerados irmãos dessa filha mulher — e o casamento, incestuoso. No modo ocidental de conceber família, seriam ambos primos.

“Chefe” também significa coisa própria: um cargo eletivo. Exceto no caso de guerra, ninguém lhe deve obediência. Sua grande função é unir pessoas conversando, seja dentro do grupo na aldeia, seja com os grupos ao redor.

“Criada” indica crescer numa casa com suas regras. Na hora de casar, o homem dos grupos Tupi-Guarani vai morar no local de residência da mulher. Assim, as pessoas fixas da casa são as mulheres. Na casa da menina Guaibimpará vivem, de forma permanente, sua avó materna, sua mãe, suas irmãs e suas eventuais sobrinhas — toda a linhagem feminina de parentes. Os homens do grupo são afins sem relação de sangue obrigatória entre si.

“Educada”, para uma mulher Tupi-Guarani, significa aprender, entre outras coisas, a viver com um marido vindo de fora, que possa enriquecer a vida do grupo de mulheres permanentes e homens passageiros. E “casamento” significa um ato de união consensual e temporária, que pode ser desfeito a qualquer momento.

A “condição” de filha de chefe impõe um aprendizado diplomático extra: ela, preferencialmente, é oferecida aos homens que, a julgamento do pai, permitam formar alianças para fortalecer o grupo. Em seu caso, o marido aceito é Diogo Álvares Correia, náufrago acolhido por volta da segunda década do século XVI.

O marido enriquece o grupo a partir de negócios com europeus. A troca mais comum é de produtos de ferro (os nativos desconheciam a metalurgia, e assim tais objetos tinham muito valor) por pau-brasil (abundante na terra, inexistente na Europa e por isso com alto valor para navegantes).

A escala dos negócios logo se torna maior que a capacidade de uma única aldeia suprir a demanda. O método de ampliação é o usual para os Tupi-Guarani: fazer aliança com aldeias próximas — sagrada por um casamento no qual uma filha do chefe aliado, como exceção da regra, é mandada para ser segunda mulher do fornecedor de bens. A poligamia não só é aceita como bem-vista nesse caso. Cabe à filha do chefe que faz novas alianças organizar diplomaticamente o convívio das novas mulheres de seu marido.

Os negócios progridem até o ponto em que Diogo Álvares Correia pode levar suas mulheres para conhecer a França, no navio comandado por Jacques Cartier (futuro descobridor do Canadá). Em Rouen, no dia 30 de julho de 1528, a mulher do comandante, Catherine des Granches, que é nobre, torna-se madrinha de batismo da visitante, registrada na certidão como Catarina do Brasil. Na volta da viagem ela adota uma nova denominação: Catarina Paraguaçu, esposa do marido apelidado Caramuru.

Catarina não conhece apenas uma nova cultura na Europa — tão distante de seu povo de origem como o Brasil dos europeus. Aprende a manejar os conceitos de família e negócios dos ocidentais.

Casa com Caramuru segundo o rito católico. Ganha os atributos culturais que os europeus davam ao ato: única mulher oficial, herdeira. Mas não esquece o sentido do casamento entre seus parentes: as alianças e negócios com eles continuam — o que sugere um marido agora com concubinas — e mostram sua força num momento delicado.

Em 1536 aparece na terra o português Francisco Pereira Coutinho, com uma carta do rei de Portugal que dizia ser ele o senhor de tudo que por ali houvesse. Reza a lenda que Taparica teria comandado a expulsão dele da terra. Mas tal lenda, que inocenta o casal no episódio, pode ter sido criada mais tarde.

Em 1548 o próprio rei D. João III mostra ter entendido quem mandava por ali — e se alia: pede a Caramuru apoio para instalar o governo-geral em sua área de domínio. O governador Tomé de Sousa vem instruído para fazer o possível pelo casal capaz de garantir o plano — e logo nobilita os filhos homens, tornando-os importantes pela lógica ocidental.

Mas o casal age também com outra lógica. Presta atenção nos casamentos das filhas mulheres, aquelas que trazem homens de fora e promovem a ampliação da casa, segundo o conceito Tupi. Todas se unem a maridos indicados pelo governador, o chefe representante de uma nova aliança.

Caramuru morre em 1557. Catarina herda dinheiro e poderes. Mulher rica e respeitada, sua capacidade de controlar a sociedade ao redor com a diplomacia aprendida de seu povo passa pelos negócios de seus genros e chega até a Igreja, que ajuda com o emprego de seu patrimônio no financiamento de obras sociais.

Morre em 1583 como figura central da já afluente sociedade baiana. Mas o grande empreendimento dessa mulher Tupinambá para chegar até esse lugar proeminente é atribuído por historiadores a méritos apenas ocidentais. Até que os modos de ser Tupinambá fossem estudados, apagou-se da história o papel essencial das mulheres nativas na construção de uma sociedade nova.

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Minha primeira vez foi com House Of Cards e, mais recentemente, The Crown. Igual a tanta gente, gamei nas séries de TV do universo político, que trouxeram versões em variadas cidades pelo mundo. Entre as já citadas, situadas em Washington e Londres, peguei Marseille e Felizes Para Sempre?, em Brasília.

Pelo enredo, as histórias são antes sobre a humanidade do que sobre a política. Em outra série, Billions, ambientada no mercado financeiro contemporâneo, o personagem principal é essencialmente um Frank Underwood. E do mesmo jeito que rola no plano político, salvo pelo abandono do uso do final feliz, ninguém há de dizer que o ambiente social mudou desde a Antiguidade. Somos os mesmos desde Ben Hur.

Daí que o melhor de cada série é explorar a cultura local. As cidades são as pessoas, e o comportamento, aliado à vasta exploração dos cartões-postais, falam muito sobre elas. Nos quatro endereços, de bondades a atrocidades, tudo é permitido. O que muda é o modo de fazer.

Começando pela última, The Crown acontece principalmente em Londres, entre castelos, palácios, carruagens, catedrais, tudo sob o peso da Coroa. E naturalmente o elenco obedece à pressão dos séculos. Cada personagem tem consciência que sua condição de vida está submetida à História. E se por um lapso alguém se esquece, o interlocutor argumenta usando o entorno. Com sua conservação, nem a figura mais progressista ousa bulir.

Chegando ao continente, em Marseille, o efêmero é o senhor da razão. Como se todos estivessem ali a passeio, sem compromisso com o antes e o depois, decisões são tomadas com o mesmo espírito de quem não se lembra exatamente o que fez ontem, nem se importa com as consequências para o amanhã, num frenesi generalizado. Tocam a vida como turistas que se adaptam ao humor meteorológico ou a sorte na roleta.

No novo mundo, as cidades-palco têm algo forte em comum: funcionam em torno da corte federal. Washington e Brasília são capitais nacionais, mas ao contrário de Londres, Buenos Aires ou Tóquio, não são os destinos mais conhecidos dentro ou fora dos países, nem são os centros das demais atividades propulsoras, cultural, industrial, comercial e financeira. Com efeito, o sentimento da corte prevalece sobre o da sociedade.

Washington, segundo House of Cards, ainda que frívola, é solene. Vive em sintonia com seus monumentos, casarões históricos, ritos, protocolos e infinitos cemitérios de heróis. O palco principal das grandes decisões é o chamado Salão Oval, que esteticamente lembra a sala de chá de uma senhorinha viúva, com lareira, sofazinhos, almofadas com frufrus e bibelôs. É surpreendente que Kennedy e Clinton tenham aprontado tanto quando dizem por ali. Oremos para que o Donald Trump também seja contagiado e se comporte.

Já Brasília é o delírio tropical em concreto armado. Seja por seu traçado sem esquinas, imaginado para ninguém parar e menos ainda criar raízes. Felizes Para Sempre? é a única das quatro séries em que protagonismo é do lobista e da cortesã, não do governante.

Suprassumo da volúpia arquitetônica e centro do poder, o Palácio do Planalto é de uma sensualidade tamanha que se, por acaso, vazar um vídeo em Super-8 de uma festinha de embalo em pleno terceiro andar, onde fica o gabinete presidencial, com Dragões da Independência fazendo cócegas em freiras carmelitas sob o olhar aguçado do general Castello Branco num sarongue, bebendo ponche num coturno, ninguém poderá se surpreender.  

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O espetáculo é um trabalho escultórico/instalativo que tem como ponto de partida objetos que se oferecem ao olhar do espectador.

A palavra “espetáculo” é um termo genérico que se aplica à parte visível de alguma representação e a outras atividades que envolvem a participação do público, mesmo que essa seja apenas associada ao ato de ver/assistir.

Os objetos e as esculturas são entendidos em relação ao corpo e apontam para cima e para uma espécie de questionamento de noções de orientação, posicionamento e organização que dirigem a maneira como nos relacionamos com o espaço. O trabalho foi todo elaborado e pensado a partir de croquis. Eu nunca havia feito algo tão grande em termos de dimensão e também de visibilidade, mas era muito claro para mim que participar de uma Bienal implicaria em ser visto; aos olhares, opiniões e posições… Foi pensando nessas coisas que quis fazer algo que se referisse ao olhar, aos percursos do ponto de vista tanto em seu sentido formal/estético como também no das escolhas de cada um, quero dizer, a gente escolhe o que olha…

Desde o início do projeto eu pensava na existência de um lugar para receber essas peças. Pensava isso tendo em vista o prédio da Bienal. Eu achava que, se deixasse as peças soltas no espaço, elas se perderiam e o olhar do espectador também. Foi assim que pensei a plataforma e a parede do fundo. O principal material utilizado é a madeira, por conta de suas características de cor, dureza e possibilidades de manuseio. Os tipos de madeira utilizados foram: cumaru, perobinha, itaúba e jatobá (todas certificadas).

Foi um trabalho desenvolvido a três mãos, eu e mais dois assistentes fizemos tudo dentro de um sistema assim: eu desenhava as peças (uma de cada vez), depois passava para o Gustavo, que olhava e dizia se a peça pararia em pé. Caso estivesse muito instável, a gente modificava um pouco. Na sequência, escolhíamos a madeira e fazíamos os cortes, depois passava pela lixa e, no final, eu fazia o acabamento que variava entre tinta, verniz, e óleo de linhaça.

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Aeroporto de Guarulhos, voo às dez da noite para Sidney, na Austrália. Carla chega às 19h e faz check-in. Compra uma pizza e uma Coca-Cola na Pizza Hut antes de embarcar. Poltrona apertada. Começa o voo animada para assistir a um filme que ainda está no cinema. Comida de avião. Toma um vinho, dorme um pouco. Acorda, tenta ver um documentário que sempre quis ver, acha chato e desiste depois dos primeiros 20 minutos. Parte para uma sequência de capítulos de séries antigas e vários filmes de super-heróis. Vinte e quatro horas depois, Sidney. Táxi, hotel com check-in ainda bloqueado pelo horário. Carla sai pelas ruas do bairro em busca de algum restaurante para matar a fome e o tempo. Acaba no McDonald’s. 

Vencer o poder sedutor do conforto e do conhecido é difícil. Você pode viajar fisicamente para o outro lado do mundo e não sair do lugar. Talvez estejamos nos esquecendo disso quando nos separamos da tecnologia e a culpamos por nos prender em territórios conhecidos. Está na pauta do dia: algoritmos perversos estão nos privando de relações com a diversidade de ideias e pensamentos. Como vencê-los? Em tempos de crise, de golpe, de vigilância, de textões no Facebook, o tema ganha importância ímpar. Eli Pariser, autor americano do livro O filtro invisível,  já em 2011 nos alertava que a internet deveria ser uma ferramenta que nos conecta ao mundo, mas que, ao contrário disso, tem nos limitado somente a nossos iguais. Algoritmos nos alimentam apenas com o que queremos e não com o que precisamos. Nossas curtidas informam nossos desejos, mesmo contra nossas vontades (idealizadas). 

Até onde sabemos, tecnologias disponíveis na Terra ao longo da história foram criadas por seres humanos. Parece óbvio, mas é preciso dizê-lo: as tecnologias não são recursos alienígenas querendo nos controlar. Portanto, a discussão de seus usos e efeitos deve ser feita em torno de humanos, que vivem em sociedade, que produzem e reproduzem cultura. Hoje vivemos e somos parte do sistema capitalista. É esse sistema que organiza e rege nossas vidas. Produção, compra e venda de bens de consumo são pressupostos de nossas relações. O que nos cerca são produtos desenhados para nos fazer gastar dinheiro e, assim, fazer a roda girar. Com os algoritmos que filtram o mundo até que ele chegue em nossas telas de computador e celular não é diferente. Quanto mais “curtimos”, mais geramos audiência e mais valiosos tornamos nossos cliques. Dessa maneira, filtros são pensados para nos agradar e nos aproximar daquilo que queremos. 

Questionar a validade e a pertinência desses algoritmos é olhar para nós mesmos com uma desconcertante pergunta: será que eles não revelam um de nossos segredos mais íntimos, nosso lado mais privado, o da mediocridade, da preguiça, do vício no prazer e no conforto? Convivem em cada um de nós idealizações em choque com a nossa realidade. Somos seres sociais, que se desenvolvem enquanto sujeitos a partir das relações que estabelecem uns com os outros. Como teorizou Lev Vygotsky, pensador russo influente no universo da educação e da psicologia, “a natureza psíquica do homem vem a ser o conjunto de relações sociais transladadas ao interior e convertidas em funções da personalidade e em formas de sua estrutura”. Sabemos que o mundo é grande e que nele vivem 7 bilhões de oportunidades para nossa própria elaboração. Mas até que ponto nos movimentamos em busca do desfrute dessa grandiosidade?

Somos filhos da modernidade. De um tempo histórico marcado pelo ideal de liberdade. Em teoria, somos responsáveis pela condução de nossas vidas. Para isso, usamos nossas crenças e valores como mapas. No entanto, em contato com o diverso e o desconhecido, as linhas retas desaparecem em meio a rotas que nos confortam por já estarem pré-traçadas. Lidar com o diferente exige esforço. Repensar, debater, fazer novos desenhos: nada disso é fácil. Conversas de bar com aqueles que compartilham conosco os mesmos mapas é o equivalente a uma navegação em águas tranquilas. Assim como ver posts em nosso feed de notícias convidativos para nossos likes. Quando o Google esconde o que não nos interessa, quando o Facebook nos oferece um botão para “deixar de seguir”, eles estão apenas facilitando algo que é mais difícil de fazer ao vivo, mas não impossível: fugir do outro, do realmente outro! 

Crises são momentos de incertezas. Especialmente nesses momentos nos abraçamos ao que nos parece sólido e confiável. Reforçamos nossas crenças e nos fechamos para tudo que pode nos tirar de nosso oásis de segurança. Os opostos ficam mais claros, os unfollows mais frequentes. Se os veículos de massa já foram os grandes culpados pela diminuição do mundo, hoje os veículos digitais, com que nos relacionamos mais participativamente, compartilham a culpa por nos provocarem overdoses de conforto. E nós, que papel temos nesse processo? Mudamos de canal? Paramos com as faxinas de redes sociais? Ouvimos nossos amigos na mesa de bar? Terminamos de ler uma matéria com a qual não concordamos? 

Vivemos no Brasil imersos no mito da diversidade, acreditamos que amamos o diferente. Temos a mestiçagem como um dos traços mais marcantes de nossa cultura. Gilberto Freyre e sua tese de “democracia racial” foi um dos condutores da formulação de nossa atual autoimagem, nos levando à crença de que somos todos irmãos em terras tupiniquins. Porém, arcabouços tão profundos de pensamento parecem agora estar sob revisão. Nos últimos anos, a começar por 2013, emergiu a poeira que estava escondida debaixo do tapete: em um país com um dos piores índices de desigualdade social do mundo, essa pretensa irmandade não teria como ser verdadeira. O racismo, o machismo e o abismo entre pobres e ricos provocam, sim, separações enormes entre os 200 milhões que aqui vivem. A internet e seus meios descentralizados de distribuição de informações, de um lado, tem servido para que aqueles que não tinham voz agora tenham, para que possam narrar suas histórias e dores. Mas, por outro lado, na mesma internet, cada vez mais existem mecanismos para que contatos desagradáveis com a realidade continuem a ser evitados. Talvez essa seja mais uma demonstração de que o problema está em nós e que não seremos resgatados pelas tecnologias de salvação. 

Oswald de Andrade um dia proclamou: “só me interessa o que é do outro”. Em seu manifesto antropofágico, nos desafiou a comermos o outro para nos transformarmos a partir de quem devoramos. A criatividade, o poder de invenção e de evolução, que fazem da vida humana efervescente, dependem do esforço em busca da alteridade. Para isso, temos que trazer para a prática nossas idealizações de quem podemos ser: pessoas abertas e interessadas no diferente. Saber que suas curtidas alimentam algoritmos que vão jogar contra você nesse processo já é um primeiro passo. O segundo é parar de fazer cliques irresponsáveis. Diversificar pessoas, fontes, lugares, assuntos, livros e filmes, entendendo que o mundo físico e o virtual não se separam quando os assuntos são bolhas e polarizações. Para isso temos que criar espaço para desagrados, para uma vida em sociedade cada vez mais “chata” que não nos aceitará preguiçosos, presos em ilhas, quando existem tantas oportunidades para que possamos realmente explorar o que o mundo todo tem a nos oferecer. 

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Corpos são feitos para encaixar e depois morrer

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É frequente ouvirmos que todo homem tem um lado feminino e toda mulher tem um lado masculino. Afinal, temos todos uma origem comum. Mas que origem é essa? Os homens imaginam histórias na tentativa de explicar o mistério.

Um – No começo, o homem era macho e fêmea. A história do primeiro ser humano como um duplo faz parte do imaginário de diversas culturas. No Ocidente, nos chegou a partir de duas fontes principais: o mito do andrógino, que remonta à Grécia antiga, berço da nossa civilização, e o mito hebraico-cristão de Adão e Eva. No Banquete, de Platão, é contado que, a princípio, havia três espécies na Terra: o homem, a mulher e o andrógino. Este era uma espécie corajosa e forte de corpo, tinha duas cabeças, quatro braços, quatro pernas e dois órgãos de geração. Pretendeu fazer guerra aos deuses e, como castigo pela insolência, Zeus ordenou separá-lo em dois, “do mesmo modo que com um fio de cabelo se dividem os ovos para temperá-los com sal”. Há também vários indícios no Gênesis de que Adão, criado à imagem de Deus, reunia em estado psíquico elementos masculinos e femininos, segundo o princípio da harmonia universal do uno, que é composto de dois. Também era, portanto, um andrógino. A essa altura, possuía uma sexualidade em estado primário, acasalando-se com os animais (não por outro motivo os havia nomeado, pois o desejo por algo implica nomeá-lo). Também por isso surge a necessidade de diferenciação. Assim, no Jardim do Éden, não tendo Deus encontrado parceira a par de Adão, cria finalmente a mulher a partir de sua costela: “E disse o homem, esta desta vez osso de meus ossos e carne de minha carne; a esta chamarei mulher.”

Dois – Pois, entre o homem e a mulher, o desejo. Agora partes separadas, não cessavam de buscar a metade perdida. Quando se encontravam, lançavam-se aos braços um do outro até morrer de fome. Compadecido com a extinção da raça, Zeus transpôs os órgãos genitais para a frente, pois até então os andróginos concebiam e geravam sozinhos. Dessa forma, o homem e a mulher passaram a reproduzir. Adão e Eva ainda estavam no Paraíso. A serpente deu voltas em Eva e a fez comer o fruto da árvore do conhecimento. Disse: “Morrer não morrereis, pois sabe Deus que no dia em que dele comerdes se abrirão vossos olhos e serão como deuses”. A árvore era uma delícia para os olhos da mulher, e ela acabou por ceder à tentação. Também deu de comer ao homem. Abriram-se, então, os olhos dos dois e descobriram-se nus. A perda da inocência.

O retorno ao um – O homem e a mulher irradiam dos órgãos sexuais um magnetismo que, mais forte do que a razão, traz à superfície das convenções sociais a dimensão do interdito que está na origem da queda — foi por desobedecer aos deuses que os andróginos foram separados em dois, foi porque Adão e Eva comeram da árvore do conhecimento antes que comessem da árvore da vida e vivessem para o eterno-sempre, que acabaram expulsos do Paraíso. O homem desejou a imortalidade dos deuses e, como castigo, foi condenado à solidão. Nascemos e morremos sozinhos, e, entre nós, um abismo insondável. Mas o sentimento de finitude não nos é suportável; por isso, desejamos a fusão com o outro numa tentativa desesperada e inútil de retorno ao um originário. A nudez — a abertura dos corpos através de seus canais — perturba a ordem, instaura um estado de violência, descontrole e perda de si. Daí a metáfora do orgasmo como “la petite mort”, pois, para Georges Bataille, o desejo de fusão só pode encontrar sentido na morte: haveria um momento durante a reprodução em que o espermatozoide e o óvulo, enquanto seres no estado elementar de finitude, se uniriam para a formação de um novo ser a partir da extinção dos seres separados. Esse novo ser traria inscrito em si a marca da fusão mortal.

*

Até os dez primeiros dias de gestação, não há distinção entre o órgão genital masculino e feminino. A depender dos genes determinados no momento da concepção, o pênis e a vagina se desenvolvem pela presença ou ausência de andrógenos; a glande e o clitóris possuem estrutura equivalente. Fora da barriga da mãe, caídos nas horas, meninos e meninas deslumbrados continuarão a busca sem nexo do eterno um.

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Uma série de sonhos

por Thiago Blumenthal

Tenho tido uma série muito interessante de sonhos nos últimos cinco meses. De maneira recorrente, chego a uma mansão, após dirigir por quilômetros a fio por uma estrada que não consigo mais descrever (não sei dirigir na vida real), o que sempre se revela uma tarefa cansativa, onde encontro um determinado grupo de pessoas. Sempre as mesmas pessoas; sei seus nomes, reconheço suas feições, que se reproduzem com pequenas variações – o cabelo, o figurino, o humor. Gosto de todos, ou de quase todos.

Não são muitos os meus colegas. Em torno de vinte pessoas, entre jovens na idade colegial ou no começo da faculdade, e seus pais. A lembrança que tenho de uma jovem chamada Carol é muito vívida, mesmo em um estado de vigília muito tempo depois de o sonho ter terminado. No momento em que escrevo este relato, no entanto, não saberia apresentar Carol. Empobreceria sua figura e mentiria, inventaria outra Carol, que não é a da minha série de sonhos. Mas Carol é a pessoa com quem mais converso em meus sonhos; sobre Deus, sobre nossas existências, e sobre sexo. Não há nenhum episódio de sexo, algo que pode ter a ver com certa ambivalência que passei a adquirir ao longo dos sonhos nesta casa; há tensão sexual, mas nunca a sua concretização. Um vulcão que poderia estar em erupção, mas não. Está apenas corroendo-se por dentro, até ser transformado em pura lava sexual. Eu e Carol conversamos sobre isso. Quase sempre.

A mãe de Carol nega a existência de Deus, e é ela quem parece organizar esses encontros todos. Ela me lembra um pouco Jackie Kennedy. Há algo um pouco satânico em seus modos, sua postura, na maneira com que guia os nossos encontros. Como uma Minnie Castevet mais nova, com o discreto charme de uma burguesia corroída pelo tédio do dinheiro. A mãe de Carol se chama Marta. Sou bom com nomes, dificilmente esqueço algum. Mas por que essas pessoas têm nomes neste sonho? E de onde vem esse niilismo quase satanista de toda essa gente? Há um quadro de dois japoneses homens em uma das salas, de mãos dadas, em uma representação clássica do misticismo pós-Crowley, que me lembro de ter visto na sede da Igreja de Satã, em Los Angeles.

Gosto de todas essas pessoas, mas me assusta, como hoje me assustou em especial, a recorrência dos sonhos. Sonhos recorrentes estão previstos em todas as cartilhas de psicanálise que conheço, mas há certos níveis, e creio que minha série tem um lado obscuro e inexplicável. Não há psicologia ou teologia que os explique. Não sei até quando os terei, não sei até quando continuarei vendo essas pessoas. Ou se em algum momento esbarrarei com Carol, com Marta, com Max, no metrô de São Paulo, e então trocaremos um olhar de reconhecimento, pavor e descolamento social.

Na literatura, a imagem do duplo é vasta. Desde os exemplos mais rasos, como o doutor Jekyll e o senhor Hyde, passando por William Wilson, de Edgar Allan Poe, às bolinhas saltitantes do senhor Blumfeld, o solteirão de meia-idade de Kafka, isto para não citar o próprio inseto alvejado pela família da metamorfose kafkiana. Se é ou não uma necessidade, ou uma estratégia de escape para encontrarmo-nos com um outro, a literatura, e todas as suas variações, soube explorar esse mistério profundo de nossa psicologia. Os duplos de Fernando Pessoa, Fernando Pessoa como Fernando Pessoa, ele mesmo um dos muitos heterônimos, o desgarre da personalidade via memória, encontrando-se em um outro que não é mais o mesmo, mas também é um mesmo do passado avariado pelas sutilezas escorregadias da memória. Proust, seu narrador que é uma tentativa de redescobrir-se no passado. Poder conquistar os territórios e os mapas do passado neste duplo e, assim, conquistar-se a si mesmo e seus amores.

A figura do leitor sempre é uma chave. Melhor dizendo, para encontrarmos o nosso duplo, precisamos de um interlocutor externo que nos perceba como um outro, como esse ser duplicado. Sem a chancela de um outro, não nos desdobramos. Isso tudo parece óbvio para a psicanálise, para a literatura, mas, para a nossa vida real, esta que é passada em atravessar ruas, esperar semáforos, marcar encontros, tudo isso passa despercebido para o nosso olhar. Tudo é uma longa sequência de nadas e de aniquilamentos diários de nossas memórias. É preciso estar atento.

Quem sou eu nesses sonhos? Seria um duplo de mim mesmo, Thiago Blumenthal, ou seria um personagem criado por mim e desdobrado em imagens oníricas que eu mesmo estou criando inconscientemente, como um acúmulo organizado demais de imagens do passado, de pessoas que já de fato conheci? Ou nunca as conheci mesmo, e elas são recriações ficcionais e fantasmagóricas de outras pessoas da minha vida, minha amiga da rua Polônia, meus amigos que já morreram, a parte de mim que tantas vezes já morreu e reviveu em um ciclo de sofrimento que amiúde se reflete em um piscar de olhos? Será que aquele é o Thiago que teria morrido se eu tivesse tido a coragem de engolir aquele cianeto em Nova York? O mesmo com o qual se matou Adolf Hitler em seu bunker? O mesmo com o qual se matou um antigo amigo de meu pai, o senhor Lowenstein? Sou eu depois da vida, depois da morte. São delírios de um subconsciente que já se descontrolou através dos tempos. São apenas o reflexo das experiências cotidianas, de seus desejos, de suas paisagens, de todos os rostos e de todos os beijos.

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#29 Arquivo Cultura

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Rosto de bruxa

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Coleção Água — Amarello Loja

Design

Axel Vervoordt e o poder da imperfeição

Design

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Desejos para um futuro

#35 Presente Artigo

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Em queda livre

#36 O Masculino Cultura

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Terra do nunca

#4 Colonialismo Arte

Um espacinho para o humor

#25 Espaço Cultura

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Do jeito que é

#19 Unidade Arte
#22DuploArteArtes Visuais

Visto de longe

Durante uma residência artística em Altos de Chavón, uma escola de artes localizada em um falso vilarejo mediterrâneo na República Dominicana, conduzimos um experimento de visão remota, ou seja, de telepatia.

A visão remota é o processo de ver ou sentir uma localização distante com a mente. O termo foi criado nos anos setenta por pesquisadores no Stanford Research Institute, que conduziram muitos experimentos supostamente bem-sucedidos. Embora alegações de visões telepáticas bem-sucedidas possam ser traçadas aos tempos antigos, os estudos científicos acerca do assunto só começaram a existir em séculos mais recentes. Durante a Guerra Fria, diversas universidades, governos e corporações competiam para avançar na pesquisa e encontrar alternativas para os métodos de espionagem tradicional. Um dos muitos projetos apoiados por corporações e pelo governo foi o Projeto Stargate, do Pentágono americano, que refinou e aplicou durante vinte anos as técnicas de visão remota desenvolvidas em Stanford.

Céticos afirmam que muitos dos experimentos são falhos, ou que os resultados são estatisticamente insignificantes. Como a ideia de visão remota contradiz os modelos científicos correntes e se mostra difícil de quantificar, eles acreditam que tal pesquisa não passa de perda de tempo e dinheiro.

Nós mantivemos vinte sessões de visão remota (uma das sessões teve de ser descartada por conta de um erro de cronometragem). Cada sessão durou cinco minutos. Um de nós (o farol) estava em uma localização tentando “enviar” mentalmente sugestões visuais para a outra pessoa (o espectador), que estava fora do seu campo de visão, em um quarto pré-selecionado. O farol era o único que sabia da localização exata e, para fins de verificação, tirou uma foto dela enquanto o espectador tentava visualizar e reproduzir alguma impressão relevante no papel. A gente se revezou no papel de farol e espectador (sempre no mesmo quarto pré-selecionado), e o círculo com a flecha indica o local, a linha de visão do farol e a direção em que a foto foi tirada.

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Dilema

# Terra: Especial 10 anos Arte

Seria o mundo sustentável a última das utopias?

Cultura

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#22 Duplo Cultura

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Dois e dois são dois: Luiz Tatit e Bruno Cosentino

#26 Delírio Tropical Arte

Criança ou quando a água do tobogã acaba

Cultura

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Shakespeare e porcos após 1984, e o que esperar do futuro

#10 Futuro Cultura

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In progress: Ricardo Alcaide

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#22DuploCulturaLiteratura

Sobre ping-pong, Poussin, geleiras, etc.

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Talvez com uma exceção, não existe nenhuma atividade mais agradável que duas pessoas possam fazer juntas do que conversar. E conversar inutilmente. Assim como jogar ping-pong, contemplar um Poussin ou passar alguns dias andando pela península Kenai, no Alasca, os maiores prazeres da vida são – e também provavelmente com a mesma exceção – inúteis.

A conversa obrigatória entre duas pessoas, a comunicação útil, necessária, que a vida urbana exige, pode muitas vezes não ser desagradável – mas é outro tipo de conversa. Prática, objetiva, ela geralmente precisa resolver um problema, chegar a uma solução: do balcão de uma lanchonete em que pedimos um misto-quente a um debate acadêmico sobre Mallarmé, são comunicações em busca de um acordo. E, portanto, elas não podem ser suficientemente soltas para variar sem compromisso entre assuntos como a técnica de saque mais eficiente em ping-pong, as cores em Poussin ou as opções de cabine para dormir entre glaciares em Kenai. A conversa mais agradável não está em busca de um acordo.

E, por isso – porque não está presa em um tema e não tem um objetivo –, o único compromisso dessa conversa informal é com ela mesma: quer dizer, com o prazer que ela pode oferecer aos seus interlocutores. Aristóteles incluiu seus comentários sobre as qualidades da conversação na Ética a Nicômaco, no livro dedicado às virtudes morais, e compara três disposições de espírito possíveis numa conversa: o do bufão, que quer fazer piada a todo custo e em todos os momentos, e acaba ridículo e cansativo; o espírito equilibrado da pessoa inteligente, sensível, que fala e ouve nas horas adequadas, que é a postura recomendada; e, por último, reserva poucas linhas para o bárbaro, duro, excessivamente sério: “que é inútil a qualquer tipo de convívio social porque ele não contribuiu em nada e se ofende com tudo, enquanto o relaxamento e a diversão parecem ser parte necessária da nossa vida”.

É isso que Giovanni della Casa também adverte em seu tratado sobre costumes, Galateo, de 1558 (publicado no Brasil pela Martins Fontes): que, “se os pecados graves prejudicam mais, os leves aborrecem mais, ou aborrecem ao menos com maior frequência”. E conclui que “as pessoas odeiam tanto ou mais os homens desagradáveis ou aborrecidos do que os maldosos”. Em seus conselhos de modos a evitar numa conversa, aliás, aparentemente alguns defeitos das pessoas com quem della Casa convivia eram os mesmos com os quais esbarramos hoje, descontada a tecnologia: “igualmente fazem mal aqueles que, de tempos em tempos, tiram uma carta do bolso e a leem”. Porque a conversa ideal pode (deve, na verdade) ser leve, solta, quase distraída – mas totalmente distraída ela não existe.

Porque “é necessário observar tudo o que se passa no coração e no espírito das pessoas com quem se conversa”, como sugeriu Antoine Gombaud, em 1667, em seu Discurso sobre a conversação (também publicado pela Martins Fontes na antologia A arte de conversar – Morellet e outros, organizada por Alcir Pécora). Gombaud recomenda que a conversa se inspire na forma como elas devem acontecer nos céus: “pura, livre, honesta, e no mais das vezes jovial”. Isso inclui evitar, continua, tudo que seja sombrio e triste, mas também “o riso excessivo não lhe assenta bem” – a piada mecânica e o desespero por agradar são tão condenáveis quanto o tédio e a aspereza. E não se deve esquecer nunca de preferir “a simplicidade do que a perfeição das coisas”. Porque não existe a conversa perfeita – e é o esforço em persegui-la, em discursos calculados e pedantes, que forma tipos como o do Conselheiro Acácio.

Às vezes – até normalmente, na verdade –, é mais fácil aprender com os defeitos do que com as virtudes das coisas que observamos. É mais fácil reconhecer o que evitar do que exatamente o que ou como alguma coisa deve ser feita. Provavelmente por isso Johnathan Swift, quando escreveu Hints Towards an Essay on Conversation, em 1713, não listou as qualidades que a conversa ideal exige, mas os erros que comprometem esse prazer “tão útil e inocente”: como, além da distração e do pedantismo, os defeitos de falar demais, se dar muita importância, excluir mulheres, interromper os outros e o da eloquência (“grandes oradores raramente são agradáveis numa conversa privada”).

“Eu preferiria que meu filho aprendesse a falar nas tavernas do que nas escolas de eloquência”, escreveu Montaigne, que tinha horror a formalismos, jargões, pompas e todos os vícios que afastam ou disfarçam o que se fala do que se está sendo dito realmente: “fora dessa comédia, eles (acadêmicos pedantes) nada fazem que não seja comum e vulgar”. Na abertura do seu ensaio sobre o assunto, Da arte de conversar, de 1587, Montaigne diz que, “sendo pouco ensinado pelos bons exemplos, sirvo-me dos maus, cuja aula é habitual”. Mas, com seus Ensaios, talvez ele tenha inaugurado um estilo literário muito parecido com a conversa perfeita, e oferecido, em outra passagem, uma pista do tipo de conversa que acontece nos céus: “O mundo não é mais do que uma escola de busca. Ganha não quem transpassar mas sim quem fizer as corridas mais belas”.

E a corrida mais bela inclui, imagino, uma partida de ping-pong, um quadro de Poussin e uma passagem pelo Alasca – acompanhados, de preferência, pelas duas coisas mais agradáveis que duas pessoas possam fazer em dupla.

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Vozes que tocam os pés

# Terra: Especial 10 anos Cultura

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Um olhar Pankararu sobre a missão Mário de Andrade

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Notas para um terrorista moral

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O que é bonito

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Sem título

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Hackeie o Dois

por Rogério Zé

Identificamos. Depois, classificamos pessoas, coisas, situações e circunstâncias. Para facilitar, a cada treco, encontramos seu oposto. O objeto fica, assim, definido tanto pelo que é quanto por tudo o que não é – a “outra coisa”.
Pensamos em módulo Dois.

Não sei em qual momento da evolução decidimos organizar as ideias, valores e opiniões desse jeito. Não sei se biologicamente somos construídos para agir assim – seria nosso cérebro programado dessa forma? Não sei se algum ancestral nosso recebeu uma ordem expressa: “é assim que se pensa”, e passamos a repeti-la como um exército enfileirado gerações adentro. Tampouco desconfio se este é um estratagema de algum mal-intencionado e entendido em comunicação que, com esse ardil, manipula-nos para estreitar nossa visão.

O fato é que algum instinto nos leva a pensar em baias. Há a nossa e a “de fora”. Outro ou outros, isso não importa. Todo o mais é diferente.

*******

Minha família “não se mete em confusão”. Estudei em colégio tradicional católico. Como diversão, escolhi jogar bola e ouvir rock. Entrei em faculdade de Comunicação e, de lá, para o mercado. As preferências políticas eram sólidas. A visão de mundo, idem. E alguma facilidade para falar e escrever rebocaram minhas opiniões, dando a elas o acabamento que me servia. As grandes certezas me faziam dormir tranquilo enquanto o outro lado armava algo para dominar o mundo.

Mas aí o mundo resolveu mudar. Tecnologia, informação, conhecimento, comportamento… Tudo entrou em transe, nome mais apropriado que “transição” (já que a segunda supõe que conheçamos o destino das mudanças, o que não é exatamente verdade). Todas as jaulas se abriram, e os animais deram as mãos a tratadores, vendedores de pipoca, visitantes e quem mais encontraram no caminho, criando novas raças, arranjos, funções e métodos. Darwin ficaria encantado. E também intrigado, pois tudo e todos convivem: o azul, o vermelho e quem só acredita nessas cores; as outras cores; as cores novas; pessoas binárias para determinados assuntos e, ao mesmo tempo, multinárias para outros.

Eu me vi, ironicamente, em uma dicotomia: continuo naquele mundo do “é assim mesmo”, Fla-Flu, par ou ímpar, ou mergulho no abismo vazio entre os Dois extremos para ver se, lá, alguma forma de vida desconhecida me devora? O Dois ficou apertado para mim. Visto a sunga e dou um jump. Para minha surpresa, sobrevivo no oceano incerto. O mundo é, mesmo, líquido.

Abri um pouco mais meus sentidos, em busca de algum sentido. Vi que estreita mesmo era a minha experiência de vida. Sempre houve pessoas, comunidades, culturas mais alinhadas a outros pensares. O binário podia até ser hegemônico, mas (eureka!) nunca único. Entre leituras e ouvidos atentos (apenas para ficar em um exemplo), tomei contato com o taoísmo, tradição milenar chinesa. Em seu livro sagrado Tao Te Ching, Lao Tsé ensina: “O Tao [o caminho] gera o um. O um gera o dois. O dois gera o três, que gera dez mil coisas”.

Cheguei a considerar coisas como “a esquerda e a direita, de fato, acabaram”. Mas elas continuavam e continuam presentes, junto a outras interpretações. Mais que isso, está nascendo uma nova democracia e uma nova política, que inclui em um mesmo ambiente as formas antigas – até mesmo as mais nefastas.

Lindo, mas nada simples.

Enquanto o conhecimento, a crítica e a conexão começaram a criar outras formas de vida, está cada vez mais aceita a ideia de complexidade. Que, em um conflito, não restam apenas vencedores e vencidos. Há cada vez menos segredos e menos silêncios. Considerações são e serão feitas sob todas as óticas. E qualquer decisão que ignore os vários lados da moeda nasce com a certeza de que será revista.

Talvez seja por isso que há uma clara reação do mundo arcaico. Reacionários não conseguem compreender um planeta que foge cada vez mais rápido, e para lugares a cada minuto mais distantes, de sua ótica. É muito descontrole para uma visãozinha de mundo só. Taca-lhe pau em ideias como o casamento homoafetivo, aborto, combate ao racismo etc.

Eu, que tenho uma dificuldade danada com esse novo mundo, resolvi exercitar. Talvez para tornar o transe mais doce, junto com minha sócia, Marcia, criamos o Oppina, uma plataforma de informação que reúne opiniões diversas – complementares, divergentes, opostas – a respeito de temas urgentes e polêmicos. Assuntos relevantes serão tratados por especialistas e líderes em suas áreas, valorizando pontos de vistas diferentes e o ambiente de respeito às diferenças. Nosso projeto propõe o exercício da escuta, do respeito e da tolerância.

E por que estamos fazendo o Oppina acontecer?

Porque a necessidade de costurar acordos para viabilizar a vida passa pela aceitação da complexidade. Porque, para não estagnarmos, precisaremos hackear o espaço entre os polos opostos, fazendo emergir ideias existentes e, também, criar novas. E, neste ambiente, contribuir para o entendimento de que em opiniões diferentes há, também, conhecimento a ser contatado, conhecido e respeitado. Concordar ou não com o que se diz é apenas circunstancial. Basta que estejamos disponíveis a escutar ao invés de, agarrados às nossas crenças, reagirmos a pontapés.

Na prática, daremos ao público interessado a oportunidade de escutar vários pontos de vista acerca do mesmo tema. Simplesmente porque há mais respostas que o “sim” e o “não”. A riqueza está, também, no “talvez”, na dúvida, no ponto de vista surpreendente. Nosso mundo não anda dando chance a quem tapa os ouvidos seletivamente.

Viver a dois é ótimo. Pensar em Dois, não dá.

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Na faculdade de Psicologia havia um exercício estranho: fazer careta em frente ao espelho e olhar fixamente para nossos próprios olhos até que surgisse alguma sensação. Depois dividíamos com o grupo quais teriam sido os sentimentos comuns, estranhamento e medo – lembro que foi unânime. E foi uma surpresa saber que encarar o rosto mais familiar pode ser também amedrontador.

É comum ouvir a frase “não consigo nem me olhar no espelho” quando estamos diante de alguém angustiado. A figura do lado de lá afronta, anuncia uma dor que passa o dia escondida, maquiada, que traz à luz a marca do tempo, culpas, temores, fracassos. Ela sabe de tudo. Reflete como me sinto. Mas o espelho não é só de vidro. Pode ser de gente.

Projetamos o tempo todo. É uma forma de rejeitar – para fora – aquilo que somos, de atribuir ao outro algo que nos pertence. Por quê? Para aliviar, respirar, afastar sensações incômodas, comunicar algo do nível inconsciente – acima de tudo. Projetamos pois não aguentamos ver algo em nós mesmos que é doloroso e, então, expulsamos essa sensação: a realidade vira uma tela de cinema do nosso mundo interno, e nos comportamos diante dessa imagem projetada.

Na Copa de 2006, encontrei um amigo. Ele tinha saído com minha amiga e eu acabara de ficar sabendo. Estava torcendo pelos dois, mas sabia que deveria ser discreta. Eis que ele me conta:

– Você soube que fiquei com a sua amiga?
E eu:
– Sim, eu soube. Que legal.
Foi logo se justificando, enquanto continuei quieta:
– Mas não vou ligar para ela, não. Apesar de achar ela uma mulher incrível, estou trabalhando muito e quero ser livre. Nada de compromisso. Não sou esse tipo que gosta de namorar sério, não nesse momento, de muito trabalho.
Minha resposta:
– Entendi.
Ele ficou nervoso, bravo mesmo. Tinha bebido umas e outras, clima de dia de jogo:
– Então você acha que eu devo ligar, senão vou perder ela, e que estou sendo um bobo por não convidá-la para sair. É isso? Para de me pressionar. Fica aí me olhando com essa cara. Eu não quero ligar, não vou… Meu psicólogo é foda!

Silenciosamente, assenti com a cabeça e assim fiquei. Entrei muda e saí calada. Mesmo assim, sobrou para mim.

O que eu representava para ele naquele momento? Será que falava comigo naquela hora ou me usava como espelho? Estava brigando comigo ou com a parte de si que estava com medo de convidá-la para sair?

Estamos no ano de 2015 e eles são casados, com uma filha linda de quatro anos. Ainda bem que me enfrentou, pois pôde se enfrentar – pensando bem.

Sair de cena e se perguntar com quem aquela pessoa na sua frente está falando pode ser libertador. Por exemplo, quando alguém te xinga no trânsito desmedidamente sem que você tenha feito algo grave. É pertinente parar e se perguntar antes de reagir: com quem essa pessoa está falando? Ou, quando escuta “eu te amo” de alguém que viu apenas uma vez, será que essa pessoa está falando com você mesmo? O que essa pessoa enxerga em você é real? Tem mesmo a ver com você de fato ou é projeção maciça cuspida e escarrada no rosto de quem nada tem com isso?

Projetar é preciso

O bebê, quando começa a enxergar a mãe, sorri apaixonado. Porém, esse que parece um sorriso contemplativo é, antes de mais nada, um sorriso imitativo. Antes que sorrisse, a mãe lhe sorria. O primeiro lugar no qual projetamos é a figura materna: ao olhar para esse rosto, o que o bebê vê é a si próprio. Ele se molda internamente a partir desse olhar, que acaricia e ao mesmo tempo define seu contorno interno, a autoimagem. O olhar da mãe é o espelho que conta à criança: você é amado. Enquanto nomeia o que se passa com ele, se é fome, dor, sono. Ele vai assim aprendendo a se nomear, o que possibilita seu crescimento e desenvolvimento.

Seria este o lugar de onde se iniciam as primeiras trocas significativas com o mundo. Esse espelho inaugura nosso psiquismo e traz uma sensação pela qual brigamos a vida inteira: a de segurança.

Na situação amorosa, o mesmo ocorre. Tratamos a pessoa amada como gostaríamos de ser tratados e, quando ela se afasta, a sensação é de que uma parte nossa foi roubada.

Freud descreve o estado de apaixonamento como um empobrecimento de ego, uma vez que há uma ilusão de fusão por causa das projeções: “somos eu e você a mesma coisa”. E, quando o outro se vai, a sensação é de perda de uma parte de si próprio.

A arte tem essa mesma qualidade, reflete sentimentos que até então estavam ocultos, traduz experiências emocionais singulares. Naquela figura, projetamos algo nosso.

Tenho no meu consultório, de frente ao divã, um quadro. É uma menina loira de costas de frente para uma piscina que gera tanto comoção quanto raiva. Cada um vê no desenho uma parte de si, um sentimento. Alguns enxergam um menino abandonado, outros uma menina serena. Um adolescente muito criativo viu um menino bolando um baseado.

Existem também situações nas quais nossas projeções nos aprisionam e nos deixam inseguros: o paranoico, por exemplo, projeta no mundo externo partes de seu interior e comporta-se de tal forma que o universo torna-se um perseguidor. O que começa a ocorrer é um ciclo vicioso – se o mundo é um reflexo de meus terrores íntimos, torna-se, então, ameaçador, reflete tudo que me amedronta.

Se libertar das projeções para viver também

Muitas vezes, tornamo-nos prisioneiros da projeção do outro. Como nos casos de pais que não conseguem enxergar outra coisa nos filhos além de si mesmos, tornando-os reféns de um desejo deles próprios não realizado, incapazes de fazer suas próprias escolhas. A menina que deve responsabilizar-se por concluir as antigas aspirações maternas, ou o menino que deve tornar-se, por exemplo, o grande atleta que o pai não conseguiu ser. Existem pais que veem nos filhos uma possibilidade da realização daquilo que a vida os fez abdicar. Seriam os filhos responsáveis pela continuidade de sonhos interrompidos. E, de fato, muitos se deitam nessas projeções familiares por falta de coragem para assumir aquilo que são, pois sabem que isto trará um custo, uma dor, um corte.

Por isso, a simples pergunta “é comigo?” é tão pertinente. Oferece uma possibilidade de reflexão antes de seguir caminhos que definem mais aquilo que esperam de nós do que nosso próprio desejo. Para que nosso reflexo seja nosso e de mais ninguém. Seria esta a pergunta capaz de enfrentar a triste questão que Cecília Meirelles coloca em seu poema “Retrato”: Em que espelho ficou perdida minha face?

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Não saio da cama. Tenho me alimentado basicamente de shakes proteicos, cápsulas vitamínicas e sorvete de caramelo. Assisto a todos os Truffauts e Godards me sentindo a última das mortais – o que não é tão absurdo, já que é cada vez maior o número de pessoas rumando para a imortalidade. As Kardashians, dizem, já chegaram lá.

Conheci Leo há alguns anos. Ele me seduziu com sua afetividade explícita, sua preocupação com tudo ao seu redor e comigo. Aprendi a ser ligeiramente mais otimista com ele, a aceitar a impermanência, a achar graça no óbvio. Subíamos montanhas e acampávamos em planaltos vastos. Ele lia histórias para mim, escrevia poesia ruim, cantava na chuva. Fomos felizes por dezesseis meses.

Leo foi uma paixão sinuosa que nunca passou. Eu ainda acreditava na possibilidade de reconquistá-lo quando fui morar no prédio em que ele vivia, no Centro. O apartamento dele era o 161; o meu, o 171. Abríamos um a porta do outro com as nossas digitais. Éramos próximos assim. Sua lealdade, sua natureza generosa, o penne à primavera de madrugada, a melhor vista de São Paulo, os noturnos de Chopin, sua simples existência tornava minha vida suportável. Seu humor absurdo e afiado não poupava anões nem ninguém. Leo também era mau. Ele terminou comigo porque, explicou, era cindido e precisava reunir as duas partes. Em vez disso, tirou os dois sapatos e pulou do décimo-sexto andar.

Há tempos me sinto muito sozinha na cidade e, não fosse por Leo, já teria me mudado – só não sei para onde. Agora que ele se desintegrou no ar, fico pensando se tudo não seria exatamente igual em Florianópolis ou Indianápolis. A paisagem muda ligeiramente; os problemas, não. E o problema é que eu achava que só com Leo as coisas faziam sentido e, sem ele, entrei num limbo existencial.

Sou tomada de ódio por sua mãe, uma femme fatale que abusou dos tratamentos embelezadores com células-tronco. A relação mãe e filho era profunda, tensa, um verdadeiro clichê freudiano. “Dorme com a mamãe”, Leo me contava que ela pedia. Ele, um rapazote de dezessete anos. Sônia (seu nome) passou para coletar objetos pessoais de Leo e levou até o frasco que continha as últimas gotas do perfume dele, tão difícil de encontrar.

No meio de uma tarde especialmente árida, migro para o sofá, em busca de novos ares. Meu desejo é cada vez mais frágil; não chega nem a se formar. Automática, checo meus e-mails e… o ar me falta. No inbox, uma mensagem de Leo Stephanopoulos. Afasto-me do computador, num pulo. Um trote, claramente. Vou até o banheiro e me olho no espelho; a pele emaciada, cor de massa corrida. Meto a mão na minha própria cara, com força: aí estou, viva.

Segue cópia da missiva:

——-
20 de janeiro de 2048

Lara,
Espero que o choque já tenha passado. Provável que eu tenha chegado aonde quer que eu tenha ido enquanto vc lê este e-mail. Fique bem, OK? E, sim, eu te amei (mas sempre achei q vc devia se preocupar mais em amar do que em ser amada…). Fiz um backup da minha memória e gostaria que vc guardasse isso. Dá pra acessar imagens, diálogos, filmes. Não tem uso, nem quero que vc perca seu tempo – é muito material: minha vida inteira, desde a primeira respiração até o fim que eu escolhi. Só queria que vc guardasse, te peço. Está tudo num chip que deixei na primeira gaveta da escrivaninha, com instruções. Eu andava muito infeliz, tenta entender. E não, não teve nada a ver com vc. Uma coisa aprendi: viver é duro, mas morrer é viscoso. Se cuida.

L.
————

Abro a grande tela holográfica e faço um select das imagens apresentadas pelo programa. Escolho os melhores sorrisos, movimentos, olhares e frases de Leo. Em seguida, faço o upload dos dados para a pasta “cérebro” do avatar. Em menos de uma hora, tudo está pronto.

O avatar toma forma na tela. Alguns touchs, e o holograma aparece. É Leo. É inacreditável! Olha o sorriso torto, a risada sardônica, os olhos que prometem o que jamais poderá ser cumprido, os tiques. O holograma Leo é detentor dos segredos dele e dos meus, da nossa história, mas nada disso é meu.

Vejo-me no espelho do banheiro e minha imagem parece turva. Jogo uma água no rosto. Estou esgotada.

Leo era um neofreak que sonhava com bioreservas orgânicas, onde vivem novas versões das velhas comunidades hippies que consomem o que plantam, curtem cupcakes de haxixe e acreditam no amor livre. O planeta, ele dizia, esta grande teia biológica, vai virar um computador ordinário.

Nerds como Leo têm acesso ao complexo mundo da imersão total na realidade virtual. Ele foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da engenhoca que traduz sinais eletrônicos em ondas que interceptam as informações sensórias levadas ao cérebro.

Um dia, ele dizia, logo mais, vão transportar mentes conscientes pra corpos humanos, androides, hologramas; você ainda vai conhecer – e quem sabe se apaixonar – por um robô consciente. A profecia não tardou a se concretizar. Um tempo depois, conheci certo bot de chapéu pork pie num bar da cidade.
A solidão é diluída com o holograma. Deitada no sofá, converso com um espectro brilhante que me dá respostas preexistentes.

Leo não existe mais. Tudo o que restou é um fac-símile plácido da sua mente. Não há movimento, não há consciência.

Há uma série de pastas de memórias: família, amores, infância… o outro. Entrei nessa última, curiosa. São arquivos e arquivos de fantasias e desejos perversos: métodos de tortura, orgias sangrentas, narrativas complexas de assassinatos de parentes próximos, listas e listas de minuciosas traições, de crueldade deliberada, de horror. Eu entrava como personagem em várias dessas histórias. Numa delas, o desejo de que um tubarão me devorasse em alto mar.

Levanto e vou lavar o rosto, lívida. Olho para o espelho e não me vejo. Sou eu e uma outra. Jogo mais água na cara e esfrego os olhos. Passo vários instantes encarando a desconhecida.

Entro no apartamento que era de Leo e busco algum resquício do Comme des Garçons odeur de borracha queimada, perfume tão estranhamente afetivo quanto Leo era. Não detecto cheiro nenhum. É como se ninguém nunca tivesse vivido ali.

Sinto-me uma invasora em seu apartamento desabitado. Procuro algo que não sei o que é.

Acesso as memórias mais uma vez. O holograma se acende. Vejo dois reflexos no espelho: o holograma Leo e uma mulher que não reconheço.
Durmo mal, tensa, como se dividisse a cama com um estranho. Ouço passos leves, som de cartas sendo embaralhadas. Levanto-me; a lua é colossal e seu brilho cai sobre o rosto da mulher que caminha em direção à janela e abre a cortina. Ela é igual a mim! E ela se joga. Acordo com meu grito.

De manhã, escovo os dentes, com medo do espelho. Levanto o olhar, rápida, para confundir a imagem, mas ela está lá, idêntica a mim. E não sou eu. Vejo duas metades de mim, que sou outra coisa, um terceiro ser, cindido. Essas metades se procuram e se perseguem.

Não desejo mais nada e sei que preciso de ajuda.

Espelho, espelho meu, pergunto, existe outro eu?

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Gilmara Cunha, moradora do Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, receberá, no dia 8 de dezembro de 2015, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, a Medalha Tiradentes, mais alta honraria fluminense, por serviços prestados à comunidade. Cunha é transexual e ativista LGBT, foi coroinha, passou a adolescência numa fraternidade católica, é conselheira nacional da juventude e trancou a faculdade de Psicologia para se dedicar à ONG Conexão G.

Eduardo Cunha, morador da Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, foi eleito presidente da Câmara dos Deputados em 1º de fevereiro de 2015 para mandato de dois anos. É deputado federal, evangélico, foi estafeta, formou-se em Economia, operou no mercado financeiro, exportou carne moída para a África, presidiu a Telerj durante o governo Fernando Collor, por indicação de PC Farias, e foi líder da bancada do PMDB na Câmara.

Em 2006, Cunha fundou a ONG Conexão G, pioneira em dar voz ao movimento LGBT nas favelas, ambiente notado pela ausência do Estado, onde as leis são feitas e aplicadas pelo poder paralelo, segundo ela “machista, sexista, homofóbico, transfóbico”. Sofreu discriminação mas perseverou, e hoje organiza paradas LGBT, com trio elétrico e 30 mil participantes, dentro da favela. Porém, sabe que sua agenda é pelo direito de existir: “Na favela, não se pode dar um beijo ou andar de mãos dadas. Quem é gay, lésbica ou transexual no território de favela não usufrui dos avanços que os LGBTs do país vêm experimentando. Não lutamos para adotar um filho. Ainda estamos lutando para sobreviver”, disse à BBC Brasil.

Casado pela segunda vez, Cunha tem cinco filhos, gosta de bons restaurantes, vinhos, charutos e carros esportivos. Tornou-se evangélico há quinze anos. Segundo a Folha de São Paulo, na campanha para presidente da Câmara, “pediu votos para, ‘se Deus quiser’, estar em consonância com a sociedade no comando da Casa”. Autor de legislações antiaborto, contra a legalização da maconha e o casamento de pessoas do mesmo sexo, a favor do Dia do Orgulho Hétero e da lei contra a heterofobia, acredita que a consonância social siga esta agenda.

Há quem diga que Gilmara é de esquerda, e Eduardo, de direita. Também há quem diga que a livre iniciativa, como a da Gilmara, é de direita, e o apreço pelo Estado de Eduardo, de esquerda. Assim como não falta quem considere a Maré da Gilmara de esquerda, e a Barra do Eduardo, de direita. Mas não seria a favela, território absolutamente alheio ao Estado, um feudo da direita? E a Barra, com ampla presença do Estado, o sonho da esquerda?

Gilmara luta pelo respeito aos direitos individuais. Eduardo legisla para que o Estado possa arbitrá-los. Dois lados, dois Cunhas e a pergunta: o que seria esquerda ou direita?

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“A mamãe não! A mamãe não!”. Mais uma vez ele me enxotou. Ouvi uma choradinha na babá eletrônica, fui lá, e fui expulsa: “Eu quelo o papai, eu quelo o meu papaizinho!”. Deita aqui no colo da mamãe, filho. “Nããão, a mamãe nããão!”.

Tá bom. Eu sei que ele não é a única criança que prefere o pai; lá na casa da Bá, minha amiga mais bem-resolvida, eles também só chamam o pai. Mas quem disse que não dói? A Bá vive me dizendo que dá graças a Deus que não é ela que tem que ir lá de madrugada, que ainda bem que não é ela que tem que sair da cama (a Bá é uma pessoa que preza muito por uma boa noite de sono), mas não é só de madrugada que ele me rejeita. Ele prefere o pai para tomar a mamadeira, o banho, ele quer o pai pra levar ele na escola. Vamos com a mamãe, filho? “Nããão, o papai leva”. Filho, a mamãe fez macarrão, vamos jantar? “Nããão, o papai dá”.

Eu vim aqui na varanda para dar uma respirada, porque é difícil lidar com a rejeição, não é mesmo? Eu mal consigo conviver com minha babá que me odeia, e minha sogra; imagina tomar essas invertidas do meu neném, meu zizi, meu formigueirinho. Eu ia acender outro cigarro, mas já fumei uns cinco. E justo hoje o doutor Marcelo falou, “cuidado com o cigarro”. O doutor Marcelo fala que eu tenho o trio elétrico: colesterol alto, gordura no fígado e proteína C reativa sempre reagindo. “Até a menopausa, os hormônios femininos te protegem, depois infarta mesmo”.

Eu vou falar uma coisa para você. Eu sou meio a fim do doutor Marcelo. Ele é gênio, ele é bonito (combinação bombástica para um coração feminino) e ele é tão, mas tão educado. Pensa você que eu vou lá desde os 27 anos, e ele nunca me mandou tomar no cu. Desde os 27 anos ele me manda parar de fumar e eu não paro, desde os 27 anos ele me diz para fazer exercícios e eu não faço, desde os 27 anos ele me avisa que eu tenho o trio elétrico e que, se eu não tomar a Rosuvastatina, que eu não tomo, eu vou infartar mesmo.

Mas eu sou teimosa. Eu tomo cápsula de alcachofra e água de casca de berinjela, umas gotinhas, porque um homeopata me falou que a Rosuvastatina causa rigidez muscular. “Sei”, o doutor Marcelo disse. A outra coisa que o doutor Marcelo sabe é que homeopatia não funciona. Não para uma pessoa com LDL 208, como eu. Mas isso ele não disse. Só me abriu uma pesquisa da The New England Journal of Medicine e me mostrou, parágrafo por parágrafo, os resultados do último teste cego duplo feito com mulheres com colesterol e proteína C reativa altos, que teve que ser encerrado, porque as mulheres acima dos 50 anos que não tomavam a Rosuvastatina morriam.

Tá bom, doutor, tá bom. “Só tem mais uma coisinha que não está muito boa. Seus eosinófilos estão em 19,7%.” O que significa isso? Estou com vermes. Eu não sei se eu fiquei mais incomodada em ter vermes, ou que o doutor Marcelo soubesse que eu tenho vermes.

Estava aqui pensando, será que foi por causa do dia em que eu gritei com ele porque ele não queria comer nem o macarrão, e aí eu tive um surto e dei um soco na mesa? Ai, meu deus do céu, que culpa. E também teve outro dia em que eu tive outro surto no carro, porque ele queria a chupeta e a chupeta estava no chão, e eu não conseguia alcançar a chupeta, e ele gritava, gritava, e eu gritei mais ainda.

O pai nunca levantou a voz para ele na vida. O pai é muito mais legal que eu (e que a maioria das pessoas do mundo, na verdade; é concorrência desleal). O pai para o carro, estaciona e pega a chupeta. O pai desiste do macarrão e faz uma mamadeira. Eu sou uma louca, meu filho, eu te entendo. Mas eu sou louca por você, meu formigueiro. A coisa que eu mais gosto no mundo é quando você deita no meu colo. Inclusive, se eu fosse um bicho, eu seria um cachorro, que precisa de colo. Seu pai é mais gato. Ele fica bem sozinho.

Ele não tem vermes, nem colesterol alto. Eu vou morrer mais cedo que seu pai, vai me escutando. Ou pelo menos escuta o que o doutor Marcelo falou.
“É um colesterol na categoria dos estratosféricos. Mata mesmo.”

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— Doutora Jaqueline, o que você achou do que minha mulher disse?
— Olha, eu achei que foi uma boa eu ter sido mãe solteira. (O bom da doutora Jaque é que ela não é daquelas terapeutas lacônicas.)
— Legal, me ajudou bastante. Mas o que eu faço com isso? Eu não quero que minha mulher pense que meu filho, digo, nosso filho, gosta mais de mim do que dela. Isso não tem nada a ver. E muito menos que ela pense que vai morrer antes de mim. Vê se pode? Quem será que anda colocando essas minhocas na cabeça dela?
— Peraí, talvez eu possa te dar uma luz. Deixa eu abrir esse estudo aqui do Wienerschnitzel Institute na Alemanha, acho que pode ter alguma coisa a respeito. (O bom da doutora Jaque é que ela não finge que sabe tudo, ela tem humildade para consultar outras fontes sempre que preciso.)
— O seu filho só deixa você dar comida pra ele, certo?
— Certo.
— E só deixa você dar banho nele, certo?
— Certo.
— E só quer que você leve ele pra passear, certo?
— Uhum.
— Acompanhar ao penico?
— Papai.
— E colocar pra dormir?
— Eu.
— Eu acho que os sintomas estão claros. O cachorro dessa história não é sua mulher, é seu filho. Aqui diz que até os 3 anos e 7 meses de vida algumas crianças se comportam exatamente como cachorros: escolhem apenas um dono, e só deixam que este dono realize todas as atividades básicas de sobrevivência. Lembra daquele filme Marley e Eu? Aquele labrador era presente pra Jennifer Aniston, mas ele escolheu o Owen Wilson como seu dono. Seu melhor amigo, companheiro. Era pra ele que o Marley corria ao ouvir um trovão.
— Mas meu filho não tem medo de trovão…
— O que ele pede quando toma um tombo ou se machuca?
— “Tólo. Tólo papai.”
— Então. Mas, pelo que você já me contou, em termos de brincadeiras, ele se diverte até mais com a mãe do que com o pai.
— É verdade. Pra cada gargalhada que ele dá com o pai, ele dá três com a mãe.
— Então, na verdade ele acha a mãe mais legal. Isso que sua mulher tá falando é exatamente o oposto, tá vendo? O que ele vê no pai é um porto seguro. Vocês têm também uma filha de menos de um ano, não é isso?
— É.
— Você já deixou de colocar ele pra dormir por causa dela?
— Não.
— Já deixou de acudir ele de madrugada porque estava dando de mamar pra ela?
— Não, né.
— Já deixou de dar comida pra ele porque tinha que colocar ela pra dormir?
— Não.
— E já deixou de pular da cama com ele às 6 da manhã porque não conseguia abrir o olho depois de dar de mamar pra irmã dele a noite toda?
— Claro que não.
— E sua mulher, já fez uma dessas coisas?
— Quando, hoje…?
— Tá vendo? Mas pra brincar ele não só aceita o que ela propõe como até a procura.
— É verdade. Eles brincam de polvo maluco, de carrapato faminto, de tamanduá no formigueiro, de super-herói voador, de atirei o pau no gato em ritmo de rock, de diálogo yanomami, e sei lá mais o que que aqueles dois riem tanto.
— E ele não gosta?
— Bom, ele não para de gargalhar e fica pedindo “mais, mais”. E não me parece que ele seja masoquista (se tem algum masoquista na relação deles é a mãe, que deixa ele ficar dando mordida nela até um ponto em que fica a marca dos 14 dentes que ele já tem).
— E ele é carinhoso com a mãe, tirando os momentos de atividades rotineiras?
— Bom, se dar selinho na mamãe através do vidro do box do banheiro não é ser carinhoso, eu não sei mais o que é.
— Então não restam dúvidas, isso é Síndrome de Weimaraner. O filho, até os 3 anos e 7 meses, tem o pai como Sicherheitsreferenz, ou referência de segurança numa tradução literal. A mãe exerce um papel mais lúdico, mais romântico. A mãe é Eros, é Ludus. O pai é Zeus. Mas, depois dessa idade, a criança já é menos bichinho e mais humano, e consegue estabelecer duas relações mais equilibradas com o pai e a mãe. Não é mais um ou o outro, e sim um mais o outro.
— Poxa, que boa notícia. Então é só eu falar pra ela aguentar mais um aninho e pouco e pronto!
— Isso. Fora que com tudo isso de gargalhada que sua mulher dá com seu filho, ela ganha um bônus de longevidade de uns 10-15 anos, pode falar pra ela. Mas, se eu fosse você, eu não contava que também por volta dos 3 anos e meio há 73% de chance de as meninas só quererem o papai pra tudo.

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