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#23EducaçãoAmarello Visita

Amarello Visita: Luiz Fernando Carvalho

por Tomás Biagi Carvalho

Fotos de Gleeson Paulino

Luiz Fernando Carvalho é resistente. Além de ter mais de dois metros de altura, trabalha a serviço de sua liberdade criativa e luta bravamente, dentro de seu universo televisivo, para que isso aconteça. Para preparar os atores de seus projetos, construiu um galpão: uma mistura de circo com escola de samba, mambembe, feito de material reciclado e resto de cenário; uma célula criativa dentro dos Estúdios Globo. É ali, segundo me relatou, que esvazia os atores que chegam cheios de vícios, com exercícios e catarses, para que consigam encontrar seus personagens. Esse processo reflete-se em todos os detalhes, que não são poucos, de suas produções. Raimundo Rodriguez, artista plástico cearense, responsável por todos os santos de Velho Chico (novela de Benedito Rui Barbosa, que Luiz Fernando dirige atualmente), me disse: “Os atores são preparados para o improviso. Como tudo pode acontecer, os objetos têm que ser de verdade, não de cenário”, e então me mostrou um relicário para São Longuinho, feito num pedaço de lata do telhado de uma das casas de Meu pedacinho de chão. Tudo é reciclado, nada desperdiçado.

O diretor faz um investimento sensível nos profissionais que o circundam. No primeiro dia em que nos encontramos, falou que é preciso uma boa dose de generosidade para com os colaboradores. Se reconhecemos que alguém tem um talento, temos que liberá-lo. É o que acontece em seu núcleo, e aconteceu com seu competente diretor de fotografia, Leandro Pagliaro, que o conheceu fotografando moda para o caderno Ela, de O Globo. Hoje, já são seis anos de trabalho em conjunto. Assim como se deu com sua sensível e delicada figurinista Tanara Schönardie, que era assistente de Beth Filipecki e hoje é chefe de todo o departamento de figurino dentro do galpão. Seu senso de trabalho coletivo é muito forte. Todos trabalham hipnotizados e devotados ao que é filmado. Luiz Fernando conduz os atores como um abraço pelo set, e sorri. Dirige com um sorriso no rosto, como se visse um filho nascer.

Isso tudo podemos ver no produto final. Velho Chico é uma novela que não subestima o telespectador, que fala com a gente, cheia de afeto, camadas e sentimento. A cada obra ele nos apresenta um Brasil profundo, que não costumamos ver, porque conhece a cultura do país em profundidade e tem aval para tal mergulho. Luiz entra de corpo e alma em seu trabalho. Se entrega. Busca a fantasia na verdade e a verdade na fantasia. Ele faz arte brasileira, e toma partido do alcance da televisão para levá-la longe. Porque arte, na verdade, é falar a verdade para si.

Conte um pouco da sua trajetória e de como surgiu o interesse pelo trabalho de direção.

Sou filho de classe média. Meu pai, engenheiro, formado na década de 1920, na Escola Politécnica. Minha mãe, sertaneja, de uma família de médicos sanitaristas, consequentemente com um pendão de humanistas, de esquerda. Essa parte da família foi “expulsa” do mercado de trabalho de Alagoas na posse do Getúlio. Se vendo meio sem perspectiva, meu avô, com uma família grande, decidiu vir para o Rio de Janeiro em 1950.

Perdi minha mãe aos quatro anos, e tenho apenas uma imagem dela. Por não ter muitos registros, lá pelos meus vinte e poucos anos comecei a fazer uma pesquisa pessoal, entrevistando todo mundo da família, para descobrir quem era ela, o que fazia, o que gostava, o que lia, o que ouvia. Depois de um tempo, já trabalhando na televisão, fui fazer uma série de documentários sobre a cultura popular no sertão de Pernambuco, e uma das pessoas entrevistadas foi Ariano Suassuna. Foi quando nos tornamos grandes amigos. Ariano me ajudou muito nisso, porque muitas coisas que eu escutava, “Ela gostava do bumba meu boi”, ninguém sabia explicar exatamente o que era, se era o folguedo, a, b ou c. E ele me esclareceu várias dúvidas em relação a essas predileções, os festejos, esse universo da infância da minha mãe. Ariano também havia perdido seu pai com a mesma idade que eu. Uma vez, trabalhando sobre uma adaptação que fiz [Luiz fez três adaptações da obra de Ariano Suassuna para a televisão, Uma mulher vestida de sol, A farsa da boa preguiça e A pedra do reino], ele se virou para mim e disse: “Nós somos dois mendigos”. E eu: “Por quê?” Ele falou que havia me perguntado quantas imagens eu trazia da minha mãe, e eu havia respondido “uma” e perguntado quantas ele trazia do seu pai, ao que ele respondeu “três”, e completou: “Eu sou um homem mais rico do que você [risos]. Três imagens do meu pai, e você só tem uma da sua mãe”. Depois falou: “Porra, nada disso, caralho, nós somos é dois mendigos. Você tem uma moeda e eu tenho três moedinhas, mais nada”. Tudo isso para dizer que essa única moeda é, na verdade, para mim, uma janela. Esta única imagem que tenho de minha mãe é vista com uma câmera baixa, como se estivesse deitado de bruços na cama olhando na direção de uma janela, onde ela está de costas, olhando para o que viria depois dessa janela. Essa imagem que tenho é fundamental no meu trabalho, porque é como se eu quisesse atravessá-la, para avistar o que minha mãe via. Assim, o meu olhar se complementaria com o olhar dela, e a partir daí nós nos encontraríamos no nível da criação, o que a devolveria para mim, através do seu olhar. Foi aí que tudo começou. Desde menino tenho uma curiosidade muito grande pelo mundo das imagens, pelo mundo sensorial, pelo invisível. Acho que a ausência da minha mãe também exercitou esse diálogo, exercitou o músculo da imaginação. Por mais que me dissessem “Você não tem mãe”, dentro de mim sempre tive uma mãe muito presente – muito mais do que outros membros da família, que estavam comigo, porque eu imaginava muito a minha mãe. Depois, com o tempo, quis a comprovação dessa imaginação. Por isso fiz as entrevistas, as viagens, fui conhecer o sertão e tudo mais. Essa busca pela minha mãe me levou a uma viagem em busca do país. Foi aí que conheci o Brasil. Porque, na minha jovem idade adulta, lá pelos vinte e poucos anos, eu fazia parte de uma geração que gostava de filmes europeus e que odiava falar do Glauber Rocha, do Di Cavalcanti, do Portinari. Lygia Pape – os modernos, então, eram todos banidos da conversa. Eu não entendia muito bem por quê. Só a partir do momento em que fui escavando essa mãe é que encontrei esse subsolo artístico que veio junto, e com ele fui necessariamente resistindo e contestando estes grupos. Assim fui formando, no meu modo de sentir, uma linguagem, uma espécie de posicionamento em relação ao meu pensamento, que depois desembocaria na minha opção de trabalho, no meu ofício. O que não demorou muito, porque, em 1980, aos vinte anos, eu já estava estagiando no cinema.

E o que você fez no cinema?

Fui assistente de som, boom man, continuísta, montador, assistente de direção, fiz muito curta-metragem até dirigir e escrever meu próprio curta-metragem, em 1984. Fiz um pouco de tudo. Cheguei a montar em moviola, na época, e fui assistente de montador de grandes figuras do Cinema Novo. O Severino Dadá, que foi montador do Glauber; trabalhei com Geraldo Sá, uma turma forte, e, em paralelo, fui fazer faculdade de Arquitetura. Meu pai, engenheiro, tinha certa dificuldade de me enxergar com um futuro ligado às artes. Lembro muito bem de um papo na lagoa de Araruama; água até a cintura, ele se aproximou de mim, “E então, o que vai ser?”, e eu, naquela água quente, gelei [risos]. Falei “Arquitetura”. E meu pai, cheio de dúvidas e ironia: “Arquitetura? Mas no Brasil não existe mais arquitetura… Tem certeza? Não quer Engenharia?”. Com isso, acabei entrando na faculdade com uma certa angústia da família. Arquitetura, na época, estava muito em baixa, e hoje é uma das coisas que se salvam no planeta. Arquitetura é um grande processo. Fiz três períodos, na Bennett, no Rio de Janeiro. Tranquei uma vez, voltei, tranquei de novo, fiz outro vestibular, para Letras, na PUC, pensando em conciliar a literatura com a escrita para cinema, mas, como já estava trabalhando, tive que optar entre fazer filme ou fazer faculdade. Os horários não se encaixavam, e já estava bem próximo do meu início na televisão, que foi num núcleo de criação que existia na Globo Tijuca, um estúdio alugado da Herbert Richers.

Nessa época, a Globo Filmes começou a dar seus defeitos, e, com o crescimento da teledramaturgia no Brasil, muitos diretores de cinema e de teatro foram convidados para esse núcleo chamado Usina, para produzir especiais, minisséries e seriados. Foi exatamente aí que entrei. Fui assistente do Avancini durante muitos anos, fiz Rabo de Saia, Anarquistas graças a Deus e O Grande Sertão: Veredas, quando realmente comecei a dirigir. Numa tarde, sem aviso prévio, o Avancini vira para toda a equipe – trezentos figurantes, trinta atores, não sei quantos cavalos: “Olha, eu estou indo embora depois do almoço para o hotel e o Luiz Fernando vai continuar dirigindo” [risos].

Conte um pouco como é o seu processo de criação.

Parto sempre de uma tela em branco. Sempre da janela de que falei e o que teria para além dali. Não sou de reunir muitas referências, de falar do audiovisual para o audiovisual. Sou afetado por uma música, por exemplo, e quero que o figurino interprete aquilo, e que aquela música seja a veste de determinado personagem. Vou trabalhando dessa forma, bem no caminho de tornar o invisível visível. Não parto de uma forma muito concreta, que me inspire outra forma. Parto de um som, de uma cor. “Este personagem vai ser vermelho” – não estou querendo dizer, com isso, que suas vestes serão vermelhas, mas que ele vai ter que ter um batimento sanguíneo, como vai ser sua caracterização, sua voz, velocidade, câmera e luz. Para isso, tenho um delírio de associações muito amplas, e boto todos os meus colaboradores nessa energia. É um processo alquímico. Quando você entrou no galpão, você entrou dentro de um espaço onde já tinham 25 capítulos gravados; você pode imaginar o que é entrar num espaço onde ainda não se gravou nada? Pode estar tudo parecendo caótico, mas, na verdade, tudo está sendo questionado, jogado contra a parede, para ver o que cai – e se cai e fica ou se cai e levanta, e fala “estou em cena, continuo”. É um processo de muita energia questionadora e alquímica, de transformação mesmo, e principalmente de afeto. Acho que o afeto e o amor são energias potencializadoras. É como se fosse uma substância que imanta tudo. Se o cara fizer sem amor, não pertence ao grupo.

E como o galpão influencia sua produção? Tudo aquilo que você criou e lutou para ter dentro de uma estrutura tão rígida como a Globo.

Isso é uma longa história também. Quando fiz O Rei do Gado, era uma novela que tinha uma primeira fase, que contava um pouco da imigração italiana, e tinha uma dramaturgia muito condensada, construída a partir de pouquíssimos personagens. Existiam apenas duas famílias, Mezenga e Berdinazzi. Peguei essas duas famílias, e fui para o interior de São Paulo, na região de Serra Negra, onde descobri duas fazendas incríveis, decadentes. Reconstituí elas e gravei todas as cenas da primeira fase lá.

Foi lá que tive acesso a uma dramaturgia muito forte, quase teatral. Montada com muito poucos artifícios, com pouquíssimos personagens, sem malabarismo de produção, sem necessidade até mesmo do Projac. E então, quando tive que ir ao Projac e dar continuidade aos outros cem capítulos, passei por uma grande crise profissional. Na verdade, a partir do texto, porque o texto mudava muito. Tinha uma queda na potência dramática do texto, do universo, e não consegui resolver aquilo dentro de mim. Eu realmente senti aquele impacto e me senti assim: “Eu não sei fazer isso, não sou um diretor de novela que agora vai descer, entrar no estúdio e falar ‘atenção, vamos lá, gravando” e que não está se importando com a queda de potência dramática, com o universo que se perdeu, com nada disso – eu fui completamente afetado por tudo isso, e tive dificuldades físicas, mesmo, de ir para o estúdio. Tive total consciência de que aquele processo não me interessava, não era aquela a minha profissão. Levei a novela até o final, aos trancos e barrancos, lidando com essa minha dificuldade, minha impossibilidade, me forçando a gravar, forçando a me reconstruir, para trazer o que tinha construído lá em Serra Negra para cá, na minha relação com os atores e tudo mais. Porque até a relação com os atores nos aproximou muito; você se coloca no lugar do personagem, sente também que “opa, essa história mudou”, “ih, essa fala não está boa”. Enfim, tive grande dificuldade, mas levei até o final e, quando chegou no final, pedi para sair da televisão. Nessa época, o Boni falou que gostaria que eu fizesse mais novelas, mas eu disse que seria impossível, pois estava justamente lutando por uma obra fechada, em que eu pudesse atuar de forma mais autoral, para conseguir dominar os procedimentos industriais a ponto de fazer com que eles servissem à minha linguagem, e não que eu servisse à linguagem industrial. Pedi um afastamento, e entrei numa crise profissional profunda.

Foi durante esse desligamento que você fez Lavoura arcaica?

Sim, exatamente. Pedi um afastamento para pensar na vida e ver o que ia fazer. Esse afastamento foi acompanhado de várias leituras — sociologia, antropologia, todas as coisas que me interessavam. Até uma amiga falar: “Olha, você tem que ler Lavoura arcaica”, e eu falei: “Eu não tenho que ler Lavoura arcaica nenhuma [risos], estou com uma pilha de livros, não quero saber de ficção e dramaturgia”. E ela todo dia martelando: “Você tem que ler, você tem que ler”. Era um livro que não tinha sido muito lido na época de seu lançamento, em 1975, e, até então, eu não tinha ouvido falar a respeito. Aí, comecei a receber sinais [o livro fora relançado, pela Companhia das Letras], porque quando passava em frente às livrarias, sempre o via nas vitrines. Falei: “Porra, esse livro está me perseguindo [risos], por onde eu passo eu vejo esse livro olhando para mim, negócio esquisito isso”; mas não queria saber. Até que um dia a Raquel Couto [documentarista que também colabora com ele] me comprou o livro.

Cara, eu abri o livro, sentei, li em duas horas, e falei, “É isso. Eu tenho um filme pronto na cabeça.” Ele representava, em termos de expressão, tudo que eu ansiava ouvir, ver, assistir, e também fazer. Era uma contramão radical em relação ao que fazia na televisão. Não era naturalista, era barroco, não tinha uma linguagem coloquial, tinha uma linguagem poética, e tinha um fluxo narrativo de pensamento de um único personagem, além de uma história familiar – coisa que eu achava muito forte e sempre quis fazer. Ele reunia vários elementos que eu gostaria de ter visto, e eu não podia compreender como um livro tinha aquela potência expressiva, sensorial. Ele me incendiou e mudou minha vida, porque foi a partir dos procedimentos que tomei para erguer o livro como filme que o meu rumo profissional mudou.

Foi aí que encontrou seu processo criativo que aplica hoje no galpão?

Foi. Quando voltei para a televisão depois do Lavoura, decidi mudar totalmente a minha relação com o processo criativo. A partir da experiência com esse livro, tudo se inverteu. A importância passou a ser o que desde a lente, para a frente dela, existia. Percebi que a função de um diretor, a minha função, deveria ser produzir um acontecimento de ordem espiritual em frente à câmera, deveria mexer com os intérpretes, com a cadeira, com a luz, com tudo, de forma a construir uma atmosfera de tal modo sensível e forte [que fosse] capaz de contaminar a todos.

O livro me ensinou que você precisa experienciar as coisas para ter um conhecimento sobre elas. A partir daí, levei os atores para experienciarem coisas, para descobrirem os seus personagens. Se você não experimenta ser um lavrador, você nunca saberá o que é ser um lavrador. Vai ser sempre uma versão imitativa daquilo. Foi um mergulho. Uma peste no sentido de ir contra toda a formatação oficial, toda palavra de ordem, toda regra, toda cartilha, na maioria das vezes sustentada por leis de mercado. E tive a grande sorte de ser acompanhado por um bando de pestilentos e de artistas famintos, que eram desde o Raul Cortez, o mais jovem de todos, um homem de sessenta e tantos anos na época, mas que tinha uma coragem para o vazio, para o novo, para a experiência, absurda, que contaminava Simone Spoladore, na época com dezessete anos, e o Caio Blat, que tinha dezoito. O próprio Selton Mello teve uma mudança de rumo na carreira a partir da experiência com esse trabalho mais vertiginoso. É uma experiência do avesso, mas é uma experiência que lida com coordenadas do real: terra é terra, pano é pano, porta é de madeira, trinco, mesa, chão, teto, parede, rio, água. É dentro desse real que você vai encontrar as relações espirituais do olhar.

Quando voltei para dirigir Os Maias, que era também uma experiência realista, eu já trazia elementos do Lavoura. Era novamente uma tragédia familiar, sobre incesto. Um texto que amparava uma leitura mais operística, não simplesmente naturalista. Ele tinha voos de interpretação, de concepção de figurino, de espaço cênico, de luz acima do naturalismo relambido que tinha me posto em crise. E, depois de Os Maias, vieram as experiências com as minisséries. Talvez a mais fundamental delas tenha sido, sim, Hoje é dia de Maria. Foi quando falei: “Agora eu vou me afastar disso tudo”, no sentido de que vou virar a roupa pelo avesso, vou virar a dramaturgia também pelo avesso, a atuação pelo avesso. Não me interessa ver o movimento da marionete, mas os fios que estão conduzindo ela, a mão do marionetista. Eu me interessei por uma pesquisa mais brechtiana mesmo do espetáculo. Queria conseguir ver o processo. As pessoas ficam falando que o Brecht não é emocionante; eu acho de uma emoção absurda. Como também, na sua revista, você vê o conteúdo, mas você vê o fazer, você vê a escolha do papel, os detalhes todos. Você não glamoriza a revista a ponto de não perceber o objeto.

Hoje é dia de Maria eu fiz como se fosse uma aplicação dessa experiência, para dentro da televisão, mas não sendo num espaço dentro do Projac. Era em um terreno baldio ao lado, e as nossas salas de preparação de elenco, de trabalho e produção, eram os restos de um acampamento dos operários que construíram o Projac. De certa forma, foi em Hoje é dia de Maria que dei continuidade a esse processo de preparação dos atores e de trabalho colaborativo com a equipe. A partir daí, não consegui mais voltar e fazer de forma convencional, industrial e tradicional. Não teve mais volta. É sempre uma luta, mas é também uma alegria ver as pessoas envolvidas e criativas.

Acredito que o seu trabalho educa os telespectadores quando apresenta personagens nada óbvios, humanos e singulares. Como você lida com a relação entre liberdade artística e as metas a serem cumpridas?

Com muito rigor. É como se o meu processo fosse balizado pelo rigor e pelo caos, duas coisas completamente antagônicas. Dentro desse caos criativo, esse caos que estimula, que faz uma pessoa dar uma pirueta excepcional fora de hora, alguém falar alguma coisa que não tivesse nada a ver, mas que intuiu, tudo isso passa por um rigor da direção.

Com a quantidade de atores e núcleos que existem em uma novela, como funciona a dinâmica entre você e todos os outros diretores, para que a sua visão não seja perdida ao longo do processo de uma novela?

Daí a importância do galpão. Aquela sala de ensaio é onde eu conceituo, com muita parceria e troca com os atores, o que estou buscando para o projeto. O norte de Velho Chico é a antropofagia, o Brasil barroco, o neobarroco, mistura de igreja do recôncavo baiano de 1600 com uma cidade cheia de neons, de anacronismos intensos se entrechocado mais e mais. A ideia oswaldiana de engolir e sair vomitando a obra de arte, engolir os contrastes todos, o que faz bem, o que faz mal, uma espécie de Rei da vela. Se o norte é esse, eu coloco todo mundo para trabalhar em torno disso, trazendo experiências, estudiosos, elementos, para fundamentar e contextualizar o que é isso que estou chamando de neobarroco, que neoantropofagia é essa, que engole a própria linguagem da televisão para gerar uma nova televisão, uma televisão em que acredito. Uno todo mundo para produzir esse novo olhar sobre o país. Esse é um momento único, meu e com o grupo. É um trabalho bastante rigoroso, em que digo “essa lente você pode usar, essa lente você nunca vai usar”, “esse tecido você pode usar, esse tecido você nunca vai usar”, “esta cor você não usa, você usa esta”.

Seu trabalho tira o telespectador do lugar comum quando abre espaço para a essência humana, não muito fácil de se encontrar nos nossos dias de consumo tão rasos. Você acha que esse lugar para o qual leva as pessoas pode afastá-las?

No meu trabalho, tudo é uma tentativa. Não acredito em regra nenhuma. Não acredito em palavra de ordem nenhuma. Não acredito em planilhas, audiência e mercado. Não trabalho sob essas coordenadas. Trabalho sobre tentativas que são acionadas pelos meus sentidos, pela minha sensibilidade e pela minha percepção de mundo. Então, eu não tenho muita coisa a oferecer, não tenho garantias para oferecer a ninguém, e sou bem claro quanto a isso. Nessas tentativas, existem aquelas em que a comunicação entre a obra e o público se dá de forma mais intensa e outras em que se dá de forma frágil, independente da minha vontade. O meu esforço pela comunicação sempre é o mesmo. Hoje é dia de Maria foi um sucesso estrondoso à meia-noite e meia, e A pedra do Reino não obteve o mesmo sucesso de público no mesmo horário. Por outro lado, se você for ver A pedra do Reino, para além da história que está sendo contada ali, é um tesouro de coordenadas culturais. Ali você tem grupos de festejos populares, de cantigas, que hoje em dia você não encontra mais. Já se perderam. O valor de um projeto para outro, o que significa, a sua importância, tudo isso é muito relativo, muito discutível. Na perspectiva do tempo, o que vai ficar para daqui cem anos? Hoje é dia de Maria? A Pedra do Reino? Velho Chico? Os Maias? Dois irmãos [minissérie que dirigiu], que nem acabei? Talvez, daqui a cem anos, quando você não tiver mais nada disso por aí, e tudo tenha se tornado virtual, ou uma imitação fake para turista, A pedra do Reino, um projeto de menor ibope, seja o projeto mais acessado num Netflix da vida.

Agora, eu tenho total noção de quando comunico mais e comunico menos. Quando a falha na comunicação se dá, tenho total consciência de que é um erro meu. Não é uma incompreensão do público, de maneira alguma. Já fiz coisas muito sofisticadas, do ponto de vista da linguagem, que foram um sucesso absurdo de audiência. São tentativas, e não posso ter esse receio de continuar buscando, cavando linguagens novas, e oferecer o que eu for encontrando para o público. No fundo, tudo é tradução. Você tem uma ideia, mas precisa traduzi-la. E essa tradução também é algo que se movimenta, evolui, se transforma dia a dia. Os novos meios, as novas plataformas, redes sociais, tudo isso interfere no vocabulário dessa tradução. Jamais desistirei de cavar. Cavando alguma coisa nova para mim, vai ser novo também para o público. A questão é se eu encontro ou não a forma certa de tradução dessa minha necessidade pelo novo. Às vezes sim, às vezes não.

A cada obra que você cria, você dá luz a um traço da nossa cultura regional, cada vez mais difícil de ser acessada. Qual é a importância de protegermos nossa cultura popular?

Ela é de fundamental importância. A cultura popular tem a ver com a nossa ancestralidade. É como um arquétipo, uma incessante repetição, para muito além dos nossos quinhentos anos de civilização branca no Brasil. Ajuda a contar de onde viemos e para onde vamos.

Você vai optar por apagar essa memória ou por lutar para que o rio não se perca? Vou lutar para que o rio não se perca, para que não seja esquecido, porque, consequentemente, todo o conjunto de memorabilia que o circula renascerá junto com ele. Não é só a vegetação que vai renascer, não é só o peixe que volta para o rio, é a roda de coco, é o canto da lavadeira, é uma quantidade de eventos humanos, eventos espirituais, religiosos, sagrados, que voltam com as águas. Essa memória é fundamental para a resistência da cultura de um país, para a resistência da cultura de uma pessoa. Se você tira a memória de alguém, esse alguém vira um ser vegetativo, um ser morto. Se a gente se esquece disso, a gente vira um terreno árido, que é muito fácil de ser ocupado. Se não tem uma árvore frondosa ali, qualquer cultura se impõe. E a cultura que é exportada é a pior. O que nós recebemos dos americanos é o pior dos americanos.

Esse pacote neocolonialista é que a gente não pode deixar acontecer. Somos um país ainda muito novo, um país ainda em busca de se fazer, de se criar, de se estruturar; tudo ainda por fazer, tudo em literatura, em artes gráficas, em televisão, em cinema. Isso tudo é o que move a minha produção artística: o meu interesse pelas questões culturais e estruturais do Brasil.

É. Tem muita coisa para ser feita. Ainda vivemos na terra da oportunidade. Em entrevista que deu recentemente à Folha, você citou o papel fundamental da beleza e de uma história bem contada na televisão para um país. Como você enxerga essa atual banalização de violência, reality show, assédio à mulher, à criança?

As novelas mais recentes, principalmente do horário nobre, foram ambientadas no eixo Rio-São Paulo. Não só isso bastasse, também trabalharam muito em cima de temas que se repetiram – favela, violência etc. Acho que há uma ausência de modulação muito grande na televisão hoje. Ela se atrofiou. É fruto, talvez, de um período que já vai para lá de duas décadas, de uma ausência de uma reflexão sobre qual é o seu verdadeiro papel. O verdadeiro papel da televisão, a meu ver, além de criar espectadores e vender espaços publicitários, é principalmente abraçar a missão maior de criar cidadãos. E se cria cidadãos através de conteúdos de qualidade, estética de qualidade, ética de qualidade. Assim, você estará complementando, por exemplo, uma escola, um museu, um livro. Por que a televisão precisa ser tão ruim? Não entendo isso. Com relação aos temas que se repetiram, não acredito em regras de sucesso. Também não acredito que exista algum tema que traga garantias de audiência ou prestígio. Não acredito em nada que seja tratado como garantido, como se fosse uma palavra de ordem para o sucesso. Acredito realmente no ser humano. Esse é o tema que me arrasta para os projetos. Acredito que o público necessita, hoje em dia, conversar mais com a narrativa dos personagens. Quando uma obra não dá certo, não é porque o público não entendeu o que foi jogado; é que aquilo foi mal jogado, mal colocado. Dentro de uma história ambientada numa favela, num mundo seja qual for, urbano ou não, existe, em primeira instância, o gênero humano. Se não há esse diálogo, a gente tem que ter, no mínimo, humildade e consciência para perceber que esses equívocos são do espetáculo, não da plateia. O público não é burro.

E tem que haver também certa libido no fazer. Você faz a sua revista com uma boa dose de libido, senão você não consegue vencer os problemas que o próprio fazer representa, e começa a virar um problema imenso. Os conteúdos devem ser realizados – não estou falando só do audiovisual, mas de questões artísticas e culturais – por amadores, por pessoas que amam o que fazem. Os profissionais estão engessados, não respiram mais, não percebem mais o mundo ao redor, transformaram-se numa espécie de xérox apagado de si mesmos. Estão se autoplagiando de tal modo que já não conseguem reproduzir nem o próprio plágio. O público sabe disso, e acaba, com toda razão, exigindo cada vez mais uma relação mais imaginativa, mais lúdica, afastando para bem longe o ego desses criadores que acham que são geniais e imortais.

Nos seus trabalhos, existe uma presença musical muito forte, que tem um papel fundamental, ajuda a contar as histórias. Como é sua relação com a música?

Sou um músico frustrado. Não toco nenhum instrumento, mas tenho um piano em casa que fico dedilhando coisas dissonantes e imperfeitas, e que me faz um bem danado. Por ser esse músico frustrado, ouço muita música. Eu ouço não só no sentido emocional e espiritual, mas também no sentido do pesquisador. Viajo, por exemplo, para uma determinada região para pesquisar um certo tipo de música. Fui para o interior do sertão, desde Minas até Alagoas, para estudar os aboios. Passei meses viajando, gravando, procurando aboiadores, cirandas, sem a menor intenção de aplicar aquilo diretamente em um trabalho. Quinze anos depois, vem Hoje é dia de Maria, e pego algo daquele material e reutilizo. Recentemente viajei para o leste europeu para pesquisar música cigana. Fiquei morando com os ciganos durante meses, estudando a música dos Bálcãs. São grupos constituídos por famílias; quando você chega em certa família, ou em certa vila, existem dez casas de ciganos, onde um toca sax, outro toca trompete, e por aí vai. E, quando você fica íntimo de uma comunidade dessas, não te deixam ir embora. “Fica aqui, dorme aqui”, “a viagem até cidade tal é cansativa”, “tem um grupo melhor, dos meus primos, da cidade tal, vamos ligar para eles agora”, e ligam, falam “estou aqui com Luiz Fernando, nosso amigo do Brasil, quando você vai fazer show?”, aí o cara, “Vou fazer show na praça na Sérvia no dia tal”. E o outro diz: “Tem show na Sérvia no dia tal, você tem que ir? Então você vai para a casa dele, fica lá até o dia do show”. Fiquei meio agarrado e preso a esse emaranhado de afetos fortíssimos, fazendo registros incríveis de música. O trompete, especificamente, para uma comunidade pobre, na Sérvia pós-guerra, tem o mesmo valor de uma bola de futebol aqui no Brasil. Você vê mendigos com trompetes todos quebrados, desafinados, faltando peças, tirando sons incríveis na rua, como você vê meninos fazendo embaixadinha numa comunidade no Brasil. Eles têm uma ideia de que o futuro de um menino pobre é ser um virtuose no trompete.

Como é ser diretor de TV e cinema no Brasil?

Depende muito de que cinema e de que televisão você quer fazer. No meu caso é, ao mesmo tempo, um enorme sacrifício e um estado de graça. Porque, quando você trisca minimamente o teu sonho, o desejo, que é, no fundo, a concepção e a criação de uma atmosfera, de um universo novo, de um olhar novo, isso te desloca um pouco do teu mundinho profano e banal, e te alimenta muito. É como a poesia. Às vezes, num canto de jornal, um poeta pode salvar seu dia escrevendo meia dúzia de palavras. Enquanto o meu trabalho estiver me devolvendo esse pequeno espaço num canto de página onde possa projetar algumas imagens, vai fazer sentido para mim. Quando esse espaço não houver mais, ou não estiver me reconhecendo nessa busca, não faz o menor sentido continuar. E isso, para mim, é um dilema diário.

Existe algum trabalho ou projeto com o qual você se sinta mais realizado?

Com certeza é algo que virá. Não é o que eu estou fazendo. O que estou fazendo é sempre erguido a partir de muitas dúvidas. Trabalho muito com a dúvida. Por isso que chamo de tentativa. Velho Chico é uma tentativa. Algumas pessoas perguntam: “Mas e aí, está gostando?” Não tenho como te responder isso agora, não terminei ainda, é um processo. Em um processo, é no último dia que for ao ar que você fala “gostei”, “não gostei”, “gostei disso, não gostei daquilo”.

Quem você citaria como as suas maiores fontes de inspiração?

Sem dúvida o gênero humano. O invisível. Acho que a minha função é tornar o invisível visível. Como é que se torna um sentimento visível, como é que se torna o temperamento de um sujeito visível. Claro que tudo isso é um conjunto de relações que envolvem intérpretes, câmera, luz, figurino… Ter essa invisibilidade, aprender a contracenar com ela, e, tudo indo muito bem, você vai conseguir traduzi-la.

E tem alguma coisa que você gostaria de fazer que ainda não fez?

Muita coisa, nossa… Acho que estou sempre a ponto de começar a pintar um quadro. Compro tinta, compro pincel, faço pesquisa de tela, aprendo a montar tela, corto madeira. E nunca pinto.

E um instrumento musical?

No instrumento eu fico com medo de perder certa coragem e uma boa dose de delírio, ao manipular o piano, por exemplo. Em relação à música, acho que vou continuar fazendo tudo errado. Tiro muito prazer em tocar errado. Muito prazer. Fecho os olhos: só toco se for de olhos fechados, sei a região em que está a mão, uma nos graves, a outra mais nos agudos, posso trocar uma pela outra, mas não sei o nome da nota, não sei nada, e não quero saber. Eu quero continuar completamente inebriado e surpreendido pelo acontecimento.

Fiquei com uma música na cabeça nesses três dias em que te acompanhei (“Eta nóis”, de Ney Matogrosso), e que me fez sentido te perguntar: “No milagre da lida, o amor vira mel”?

O amor vira mel? Vira. Mas o mel também pode virar amor. Nessa alquimia amorosa toda é onde você tem os grandes encontros, as grandes trocas, os grandes fluidos, as grandes paixões. Para quem escolheu ser artista em vida, tem que se lambuzar [risos].

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MPB ou Música Preta Brasileira: muita treta pra Vinícius de Moraes

#47 Futuro Ancestral Arte

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Nem todo “Índio” é Tupi ou Tapuia

#51 O Homem: Amarello 15 anos Cultura

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Distração ou identidade? O dilema das telas na formação dos jovens

Educação

por Revista Amarello

Nuvens em Kassel

#21 Solidão Cultura

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Desvelar o abjeto, escancarar o abominoso: a desagradável contemporaneidade de Álbum de Família

#50 Família Cultura

por Mariana Ferraz Conteúdo exclusivo para assinantes

Os outros

#22 Duplo Cultura

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Conversa Polivox: Melly

#52 Satisfação Música

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Proust, o amor na terra: Os pilriteiros

# Terra: Especial 10 anos Cultura

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Retóricas visuais da Memeflix brasileira

#39 Yes, nós somos barrocos Cultura

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Caminhos para o autoamor

#44 O que me falta Cultura

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Perdemos a mão

#24 Pausa Cultura

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#23EducaçãoCulturaEducação

As lições mais importantes da vida

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John Stuart Mill – provavelmente o filósofo mais influente na Inglaterra do século XIX – começou a aprender grego aos três anos. Antes dos oito, leu Heródoto, Xenofonte, Isócrates e vários diálogos de Platão no idioma original. Aos oito, começou a estudar latim e, com doze, já lera as Metamorfoses de Ovídeo, várias Orações de Cícero e a Eneida de Virgílio – além de continuar suas leituras em grego, que incluíam Homero, Aristóteles, Tucídides, Demóstenes, Políbio. Nessa idade, já tinha noções de ciência, matemática, política econômica e também familiaridade com os principais clássicos ingleses de literatura e de história. Seu professor foi seu pai.

Diariamente, dos quatro aos sete anos, John caminhava com o pai antes do café da manhã e repassava com ele as suas notas de leitura do dia anterior. Nessas caminhadas, seu pai, James – autor de uma enorme história da Índia e filósofo utilitarista –, aproveitava para fazer pequenos discursos sobre “civilização, governo, moral, cultivo intelectual”, que pedia para John repetir em seguida, com as suas próprias palavras. A primeira operação intelectual que o pai lhe ensinou foi como dissecar um argumento falso; muito cedo, também, ele aprendeu a importância de se expressar com palavras precisas. Além de livros de histórica, lógica e dos clássicos da literatura, seu pai gostava de lhe passar também livros sobre homens corajosos superando circunstancias difíceis: como African Memoranda, de Philip Beaver, e o depoimento de David Collins sobre o primeiro assentamento em New South Wales.

Na abertura de sua Autobiografia, Stuart Mill aponta que um dos principais motivos de ter escrito a história de sua vida foi contar como uma educação diferente, rigorosa, especialmente na primeira infância – que normalmente, segundo ele, é “desperdiçada” –, pode ser muito útil. E não apenas útil: um dos aspectos mais marcantes do primeiro capítulo de sua autobiografia é, além da quantidade de leituras que fez muito cedo, o prazer com que se dedicava a elas. Por diversão, leu a Ilíada mais de vinte vezes, e sempre folheava a história da Grécia Antiga, de Mittford, nas horas vagas. Quando entrou em Oxford, Stuart Mill se sentia com uma formação 25 anos à frente de seus colegas.

John Stuart Mill aprendeu cedo, em casa, o que Henry Adams (diplomata, jornalista, historiador e romancista americano) recomenda, no meio de sua autobiografia – The Education of Henry Adams –, como a única coisa que realmente importa aprender cedo: como aprender (“they know enough who knows how to learn”). Durante toda a história da humanidade, continua Adams, muita inteligência foi desperdiçada, “e não há duvidas de que o professor é o pior criminoso”. Henry Adams também reconhece que a principal influência em sua primeira educação foi a de seu pai – que, no máximo, corrigiu seu sotaque em francês e que, de resto, o deixou passar a infância brincando. Em várias passagens de seu livro, Adams insiste que educação é coisa séria, que não é igual a divertimento. Mas é curioso como – insistindo tanto que as duas coisas são diferentes, assim como Stuart Mill, relembrando as suas primeiras leituras – muitas vezes repete que se divertiu.

Harvard “o ensinou pouco, e esse pouco mal, mas deixou a sua mente aberta, livre de vieses, ignorante sobre fatos, mas dócil”. (O seu livro é curiosamente escrito na terceira pessoa.) Em Berlim, ouviu muita música ruim, bebeu cerveja, fumou charutos, viu mulheres gordas alemãs tricotarem, mas fez isso “só pela companhia, sem pretensão de se divertir” – como se o fato de estar com pessoas agradáveis não fosse em si mesmo divertido.

Em Roma, onde passou seis meses com a expectativa de se “civilizar”, Adams se encantou com a cidade ainda medieval que existia, sem restauros, mas, ao fazer o balanço do capítulo dedicado à cidade, conclui que, com relação à educação, “ele não recebeu nenhuma, mas se divertiu”. Quando, aos sessenta anos, pondera sobre a responsabilidade que a idade exige, parece resumir o que pensa acerca da relação entre educação e diversão: “um mundo que não pode educar não pode divertir, e além de tudo é feio”.

Na segunda página de Minha formação, Joaquim Nabuco reconhece também a importância paterna em sua educação: “era natural que, aos quinze ou dezesseis anos, seguisse a politica do meu pai, porque essa devoção era acompanhada de um certo prazer, de uma satisfação de orgulho”. Ao mesmo tempo, suas ideias eram “uma mistura e uma confusão. Ávido de impressões novas, fazendo os meus primeiros conhecimentos com os grandes autores, com os livros de prestígio, com as ideias livres, tudo o que era brilhante, original, harmonioso, me seduzia e arrebatava por igual”. Seu livro é uma coleção dessas impressões: dos livros que leu, das viagens à Inglaterra, aos Estados Unidos, de seus principais interlocutores intelectuais, de sua infância entre escravos no engenho da sua madrinha – a experiência, descrita no capítulo mais famoso do livro, Massangana, que o inspiraria a dedicar a sua vida política à abolição.

O livro de Joaquim Nabuco é maravilhosamente bem escrito e infelizmente está esquecido pelas nossas melhores escolas. Henry Adams, aliás, entenderia o motivo: “Harvard era uma boa escola, mas, no final, do que o garoto não gostava mesmo era de escola em qualquer sentido”. Assim como o pai de John Stuart Mill, que preferiu confiar na sua biblioteca pessoal e na sua capacidade de conversar para apresentar o mundo ao seu filho. Talvez, aliás, o que se pode aprender dessas três autobiografias – de homens que passaram a vida empenhados em se educar – seja justamente isto: que as lições mais importantes não são ensinadas na escola.

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Happy to learn

O pesquisador James Tooley ficou decepcionado ao ser enviado, pela Universidade de Newcastle, a Haiderabade, na Índia, para estudar as escolas privadas da elite local. Sua paixão fora sempre a educação da base da pirâmide social, e lá estava ele para produzir relatórios sobre os colégios mais caros da cidade. Aproveitando, contudo, a estadia em um país subdesenvolvido, resolveu explorar uma das favelas da cidade e as escolas públicas que a atendiam. Conversando com os moradores, descobriu algo inusitado: além da escola pública local, havia dezenas de pequenas escolas privadas operando na comunidade e cobrando mensalidade.

E não se tratavam de grandes redes de ensino que abriram filiais nas comunidades. O modelo era o de uma iniciativa vinda de dentro: um morador local, com um pouco mais de conhecimento que a média, dava aulas em sua própria casa. Com o sucesso, contratava mais professores, alugava ou comprava o casebre anexo e expandia suas operações progressivamente.

Tooley então visitou países da Ásia e da África e, em praticamente todos, encontrou a mesma coisa. Em cada favela, escolas privadas cheias de alunos pagantes. Com mensalidades baixíssimas (algumas chegavam a U$ 1), professores motivados davam aulas para salas abarrotadas de alunos interessados.

Por que tantos pais preferem a escola privada? O principal motivo é que os professores faltam menos e as crianças vão com mais interesse. Além disso, são escolas atentas ao que os pais têm a dizer. Assim, tem-se, de um lado, escolas públicas caras aos cofres estatais e com funcionários desmotivados; de outro, escolas 100% informais, com professores engajados e que, mesmo vivendo estritamente de mensalidades baixíssimas, dão lucro.

O grande teste, contudo, ainda estava por ser feito: será que as escolas privadas ensinam melhor que as estatais? A única maneira de testar é aplicando um teste padronizado, e foi justamente isso que Tooley fez. Não é surpresa descobrir que os alunos das escolas privadas se saíram sempre igual ou melhor que os das públicas.

Assim, o livro derruba platitudes do senso comum. A primeira e mais óbvia a cair é a de que, por conta própria, os pais são menos interessados na formação de seus filhos do que burocratas do governo ou professores desestimulados no sistema público.

Mostra também que ser pobre é muito diferente de ser “pobre coitado”. Os moradores das grandes favelas do mundo não são uma massa passiva e indefesa, aguardando a ajuda que vem do Céu ou do governo. São pessoas ativamente engajadas na própria ascensão social e econômica, e que não raro encontram os meios mais eficazes para isso. O primeiro é ter já deixado a miséria rural e se mudado para o mundo das possibilidades urbanas; e o segundo é poupar o pouco que ganham para investir em seus filhos.

Tooley mostra muito bem como o desejo de lucrar e o de servir à comunidade não são contraditórios; pelo contrário, reforçam-se mutuamente. Na escola privada, os professores dão aula bem e raramente faltam, mesmo ganhando salários muito inferiores aos da escola pública. Não raro, as escolas privadas oferecem bolsa para os alunos muito pobres; prova de que o desejo do lucro não extinguiu o desejo de servir ao próximo.

É uma surpresa que as escolas privadas consigam desempenho melhor com menos dinheiro? Não exatamente. Uma diferença está em que, na escola privada, a remuneração do empreendimento depende da qualidade do serviço prestado, que é avaliada pelos próprios pais; quem falta ou ensina mal é punido com menor remuneração. Na escola pública, o dinheiro vem dos impostos (e de doações bilionárias de países ricos) e nada muda se o serviço for péssimo. Para que se esforçar?

Ironicamente, é a relativa ausência do governo que permite que os sistemas privados funcionem. As escolas desses locais são todas informais. Só continuam a operar porque os fiscais do Estado nunca passam por lá e, quando passam, são facilmente subornáveis. Se o governo não atrapalhasse, já faria um grande favor.

Tooley não prega uma postura de indiferença dos países ricos. A educação no mundo subdesenvolvido precisa, sim, de ajuda e investimentos. O que ele faz é um alerta sobre como essa ajuda tem de se dar para obter os melhores resultados. Ao invés de doar dinheiro para um sistema estatal, burocrático, centralizado e ineficiente na hora de transformar dólares em impacto social, é mais interessante patrocinar o ecossistema educacional que emerge das próprias comunidades, seja com investimentos diretos ou com uma política de vouchers – dar às famílias a liberdade de escolher onde seus filhos estudarão e deixar que o Estado pague a mensalidade.

Lições que podem ser trazidas para o Brasil, onde – até onde se sabe – a educação privada nas favelas não tem a mesma dimensão que na Índia, mas cuja vocação empreendedora tem cada vez mais sido levada também à educação.

The Beautiful Tree é um livro para todos que se interessam pelo tema da educação e do progresso social. Um pequeno estudo sobre um processo mundial de ascensão social dos mais pobres que ocorre de baixo para cima, sem planejamento e, não raro, apesar dos esforços daquelas instituições formais que supostamente os servem.

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A magia da multiplicação

por Marina Klink
Fotos de Marina Klink

No verão de 2005, como de costume, estava com minhas três filhas na praia de Jurumirim, em Paraty. Eram 8h45 quando avistamos o Paratii2 adentrando a pequena baía de nossa casa. A bordo dele, estavam Amyr e sua tripulação. Chegavam, então, de mais uma volta ao mundo com apenas uma escala, desta vez na península Antártica. As meninas eram ainda muito pequenas e estavam eufóricas por rever o pai após seis meses no mar. Era difícil explicar para elas onde ele estivera por todo aquele tempo. Naquela época, tinham entre cinco e sete anos. Pensei que seria mais fácil ir até lá e mostrar aquilo tudo para elas, para que vissem com os próprios olhos onde era aquele lugar tão distante para onde o pai delas sempre retornava, e quem sabe assim conseguissem absorver experimentando. Foi quando tive a ideia de irmos todos juntos numa próxima vez, e pela primeira vez. No verão seguinte, estávamos todos juntos embarcando para a Antártica.

A princípio, o Amyr foi reticente, mas não demorou muito para que se convencesse de que se tratava de uma boa ideia. Certamente, porém, levar as meninas a um dos destinos mais temidos do planeta não era programa fácil de se executar. No verão seguinte, as gêmeas Tamara e Laura estavam com oito anos de idade, e a Marininha completava seis quando todos juntos cruzamos o Cabo Horn pela primeira vez. E, ao contrário do que se pensa, conosco o cabo não foi tão impiedoso assim. O mais temido ponto das navegações de todos os tempos, o extremo sul do continente americano, geograficamente o ponto de encontro dos oceanos Pacífico e Atlântico, o mais famoso palco de naufrágios deu uma trégua e nos deixou passar.

Aquela foi uma grande oportunidade de podermos protagonizar em família uma viagem singular. Mas não reservamos a viagem somente para nós; embarcaram conosco outros amigos, e também dois filhos de amigos na mesma faixa etária das nossas filhas, a Gigi e o Luca. Rapidamente, as cinco crianças se tornaram amigas e, devido à intensa convivência, juntas descobriam as riquezas de estarem vivenciando dias especiais nas suas vidas. Dei a cada uma delas um pequeno caderno, onde deveriam anotar seus pensamentos e descobertas do dia. Completei que não precisariam ser necessariamente textos, mas também desenhos ou frases bem curtas, desde que anotassem algo marcante de cada dia. Expliquei que o que nos parece inesquecível hoje logo será esquecido, e as anotações seriam uma forma de eternizar descobertas.

Costume nada brasileiro esse de fazer anotações pessoais, mas cena bastante comum quando se viaja de trem pela Europa. O hábito de registrar impressões faz com que, ao abrirmos os cadernos anos depois, sejamos capazes de viajar pelas páginas da memória outra vez. Assim foi feito. A princípio, havia certa resistência e um tanto de preguiça, mas, como essa era a única tarefa da viagem, aos poucos as crianças foram engrenando. Valorizo as anotações e certamente os diários pessoais servirão para sempre como fonte de consulta e como resgate da nossa memória.

Aquela viagem foi transformadora para todos. Juntos, cada um, no seu próprio tempo fomos percebendo que sem disciplina tudo se tornaria muito difícil. Desde a convivência a bordo e os horários nada fáceis de determinar até o fato de que, se não nos ocupássemos em preparar as refeições, elas simplesmente não existiriam. Durante uma longa viagem de barco, é impossível ficarmos parados. Diante de um espaço restrito, temos que ser muito proativos e, aos poucos, cada um dos tripulantes vai se posicionando nas funções naturalmente. Dependendo de suas habilidades, um assume a limpeza, outro assume o preparo da comida. Um se adianta no apoio às manobras, outro se ocupa nos aprendizados técnicos dentro do barco. Como exemplo, a Tamara gostou de aprender a fazer pão e passou a garantir nosso café da manhã ao longo de toda a viagem. A Marininha assumia o controle da louça e explicava que ninguém limpava melhor do que ela.

Naquela viagem, mais do que aprender sobre o continente gelado, todos aprendemos a valorizar uns aos outros. Aprendemos sobre os talentos pessoais e a valorizar cada criança, dando-lhes o mérito de sua participação no trabalho em equipe. Entendi, assim, que poderíamos estar em qualquer lugar da Terra, não necessariamente no continente mais remoto e menos conhecido de todos, para compreender que o principal ingrediente da viagem estava dentro de nossa casa.

Para que aquela viagem não se tornasse entediante, procurei estimular a curiosidade das crianças, mostrando o que lhes poderia parecer mais interessante na natureza. Pesquisava sobre o comportamento dos animais nos livros que levara a bordo. Buscava fatos que pudessem entreter as crianças para que soubessem observar e admirar cada um deles. Não havia para onde ir a não ser apreciar os desembarques diários no gelo, retornando apressadamente, sempre que surgia a iminência de uma depressão meteorológica nada incomum.

De dia, víamos os animais de perto, e, na hora do jantar, eu verificava as anotações feitas por cada uma delas. Às vezes reclamavam, mas aos poucos foram entrando no ritmo e pegando gosto por suas produções. Foi quando começaram a caprichar, e até faziam desenhos coloridos como referência ao que tinham vivido naquele dia. Fizeram registros de experiências únicas, mesmo porque não é todo dia que se vê uma baleia Jubarte de perto, ou um elefante marinho trocando de pele. Poder vivenciar tudo isso, o natural, é muito diferente de receber essa mesma informação de um professor, sentado em uma cadeira dentro de uma sala de aula.

No ano seguinte, pudemos voltar para a Antártica, mas daquela vez me antecipei e fui à escola onde estudavam. Propus aos educadores que essa viagem de férias fosse encarada como uma viagem de estudos do meio ambiente. Estabeleci o compromisso de que, ao retornarmos, elas apresentariam aos colegas o que haviam aprendido. A escola avaliou minha proposta e, dias depois, apresentou um plano de trabalho com um roteiro que ia além das lições de casa. Elas fariam também registros técnicos, e isso tudo justificaria suas faltas letivas.

No nosso retorno, 45 dias depois, lá estavam elas, unidas, magnetizadas em frente a um computador, escolhendo as fotografias que ilustrariam a apresentação. Na semana seguinte, as três, juntas, faziam pela primeira vez uma palestra, a narrativa de suas férias na Antártica. O sucesso foi grande e gerou novos convites para que se apresentassem não só para outras turmas da sua escola, mas também para outras instituições de ensino. Passei a treiná-las para que se profissionalizassem nas apresentações e, no ano seguinte, surgiu o convite para, juntas, escreverem um livro.

Com muito entusiasmo e dedicação de todas nós, rapidamente o livro ficou pronto (editado pela Editora Peirópolis – Grão). O lançamento de Férias na Antártica aconteceu na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) e, desde então, ele tem sido adotado por diversas escolas particulares e pela rede pública de ensino. O livro já está na nona edição. As meninas continuam se apresentando e somam mais de 150 palestras em escolas, empresas e organizações.

Sinto muito orgulho, sim. Não só como mãe, mas ao ver que foram além daquele projeto escolar. Fico recompensada por enxergar que o caminho aberto pelo pai delas não se encerrou apenas em viagens extraordinárias, mas se abriu em um aprendizado em família e acabou alcançando outras crianças, muitas das quais jamais teriam conhecido algumas das riquezas de um continente distante.

Em contrapartida, algumas vezes recebemos bilhetes e ilustrações feitos por alunos que assistiram à palestra ou mesmo que leram o livro. Muitos trazem conceitos que extrapolam o que viram ou leram, revelando o que sentiram. A isso se soma a preocupação com o meio ambiente, especificamente com a defesa das baleias. Provas de que meu esforço valeu a pena. Não posso levar todas as crianças para a Antártica, mas a minha maior realização é constatar que, de certa maneira, pude trazer a Antártica para dentro das salas de aula.

E as meninas não pararam por aí. Pegaram gosto e criaram sozinhas o blog onde relatam suas viagens (www.IrmasKlink.com.br/diariodebordo). Atualmente, as três juntas somam sete viagens para a Antártica, entre outras tantas para o continente africano, para o Norte e o Sul do Brasil, e diversas para o Pantanal brasileiro. Criadas desta maneira bastante fora da caixa, elas não se importam de viajar para destinos onde não encontram muita gente. Quanto menos gente, mais a natureza fala diretamente ao coração. Diante de tantas opções de destinos, preferimos ir para lugares que ainda não estejam prontos; aqueles que não são pacotes oferecidos por agências de viagem. Melhores são aqueles que oferecem muitas surpresas pelo caminho.

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Os pontos luminosos da educação brasileira

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Escolas com grades, pichações, falta de merenda, professores desestimulados e com poucos estudantes na sala de aula. Infelizmente, esse ainda é o principal retrato da educação brasileira. A boa notícia é que a imagem carimbada está mudando nos últimos anos, através de iniciativas individuais e de instituições públicas e privadas que não só buscam, mas realizam projetos alternativos, que garantem educação de qualidade e que, principalmente, estão ligados às realidades desses 50 milhões de estudantes.

Em 2013, esse cenário de mudança positiva não era tão claro. E eu queria muito descobrir quais eram as iniciativas que faziam a diferença na educação do Brasil. Saí do meu emprego e da casa em que sempre vivi para iniciar uma viagem de cinco meses de ônibus por 58 cidades do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste. Essa jornada foi chamada de Caindo no Brasil e não seguiu qualquer roteiro determinado por especialistas na área. Foi andando pelas ruas e conversando com moradores das cidades que conheci as melhores pessoas e iniciativas transformadoras na área. Esses projetos encontram-se não só dentro dos muros da escola, mas também em ONGs, quadras, parques, museus ou até mesmo cidades inteiras, onde espaços públicos e privados são usados como extensão das escolas.

“Você tá procurando coisas diferentes em educação, é isso?”
“Isso mesmo!”, eu respondia.
“Então tem que falar com meu tio”.
“Então tem que conhecer uma escola aqui perto”.
“Então precisa ouvir minha história”.

Com esse tipo de conversa, conheci dezenas de escolas públicas e privadas, iniciativas de governos, ONGs e, principalmente, pessoas conhecidas no máximo em âmbito local ou regional. Queria dar luz a essas ações “escondidas” pelo Brasil e divulgar esses projetos.

Uma Casa Grande que fortalece a cultura e a comunicação no Cariri

“Você está plugado na 104,9 e meu nome é Totonho. Eu estou aqui na Fundação Casa Grande há oito anos, e o que me faz estar aqui é a experiência e as oportunidades que temos durante toda a convivência com as outras pessoas.”

A abertura do programa de rádio feita pelo jovem Totonho não seria possível se, em 1992, a Fundação Casa Grande não tivesse sido criada em Nova Olinda, uma cidade de 15 mil habitantes, sendo sua grande maioria em zona rural, no interior do Ceará.

A ONG, conhecida como “Escola de Comunicação da Meninada do Sertão”, ocupa a primeira casa construída na cidade, em 1717. Até o início de 1990, as crianças brincavam de “31 salva todos” – uma espécie de esconde-esconde – e tinham medo da Casa Grande mal-assombrada da rua Jeremias Pereira, quase vizinha à Igreja Matriz. Quase trinta anos depois, as crianças continuam com a mesma brincadeira, mas dentro dos muros da antiga casa “assombrada”, que se tornou um dos principais pontos da cidade.

Conheci o projeto depois de pegar dois ônibus intermunicipais e uma van, que me deixou na beira da estrada que passa por Nova Olinda. Na grande casa azul, aberta a todos, crianças aprendem sobre lendas e cultura da região a partir de brincadeiras populares. Os jovens são profissionalizados aprendendo, com a mão na massa, ao ocuparem posições de produção e direção nas áreas de comunicação e cultura: produzem programas de rádio, vídeos e quadrinhos; fazem a manutenção da DVDteca, da área de arqueologia que resgata a cultura rupestre da região, do único teatro da cidade, entre outras atividades. A ONG também apoia as famílias e os “meninos da Casa Grande”, que já viraram homens e mulheres formados no programa de geração de renda familiar a partir do turismo comunitário.

Os principais responsáveis por essa transformação são Alemberg Quindis e sua esposa Rosiane Limaverde. Apenas com ensino fundamental completo, Alemberg viveu na cidade de Nova Olinda até os nove anos de idade. De volta à cidade, resolveu transformar a Casa Grande em museu e centro cultural, para difundir a cultura material e imaterial do Cariri cearense – famoso pelas peças rupestres e pelas lendas que Alemberg ouvia de Dona Artemísia, uma cabocla da cidade, na infância.

Alemberg também teve muita influência da época em que viveu em Miranorte, uma cidade no atual estado do Tocantins, em uma região sem muitas atrações culturais. O fundador relembrou: “Era uma região que não tinha nada: nem televisão, nem banca de revista. A gente ia comprar revista na cidade vizinha. Mas nesse lugar eu me deparei com o cinema e com um tipo de música diferenciada. Naquela época, a gente escutava coisas de fora, como Bob Dylan. Naquela região era diferente de outras cidades, em que só se tocava música caipira. Isso foi muito importante para a qualidade do nosso repertório. Na Fundação, você nota que as crianças têm um repertório cultural mais selecionado. Isso vem muito dessa época do Tocantins. A base do projeto está justamente na busca da qualidade”.

Com as referências de Alemberg e olhares e ações de todos os meninos e meninas que já passaram pela instituição, a Fundação Casa Grande se tornou uma disseminadora de cultura e comunicação do Cariri cearense e trouxe infinitas possibilidades que mudaram a realidades das pessoas da região e inspiraram outras iniciativas Brasil afora.

E tem muito mais. Durante e depois da viagem pelo Brasil, conheci muita gente envolvida na transformação positiva da educação do país. Tive a oportunidade de conversar com um senhor analfabeto que estava apoiando a filha a se formar no curso de Engenharia de Segurança; uma garota de dezoito anos que formou uma rede de jovens para debater e realizar iniciativas envolvendo educação, comunicação e direitos humanos em periferias de treze estados brasileiros; um projeto milionário que ajudou várias cidades do interior da Bahia a conterem o êxodo rural e estimularem o desenvolvimento comunitário a partir da educação.

Conheci histórias como as de Dayse, maranhense de São Luis, a primeira da comunidade em que vivia a entrar na universidade e que, na época, era monitora de um museu. Quando visitei seu trabalho e a conheci, contei o que buscava e ela disse: “Então você precisa ouvir minha história”. De infância pobre, estudou em uma escola com chão de cimento, merenda insuficiente e trocas de tiros na porta. Oportunidades surgiram, e as políticas de acesso à universidade permitiram que Dayse cursasse História na universidade pública. Em um estágio como professora, Dayse não ouviu seus colegas quando disseram que uma de suas salas era uma “sala problema” e que “não havia o que fazer lá”. Compartilhando sua história, mostrou que aqueles jovens que estudavam em uma escola pública um pouco melhor do que aquela em que havia estudado também poderiam ter acesso a universidades e oportunidades melhores que seus pais e conhecidos.

A educação transforma o país. Conheço algumas dezenas de histórias todos os meses online ou em cafés e eventos, e essas que compartilhei aqui são apenas alguns exemplos disso. Uma revolução silenciosa está acontecendo no nosso país, sendo feita por forças locais e desconhecidas fora de seus raios, e torço para que eu possa divulgar cada vez mais trabalhos e histórias incríveis que mostram essa mudança positiva.

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A Mão no Brasil: O tear rústico de Malhada Grande

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As ambiguidades e os pequenos achados de Luiz Zerbini

Arte

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Explosão ou O útero do mundo ou Caverna ancestral

# Terra: Especial 10 anos Arte
#23EducaçãoCulturaLiteratura

Corpo campo

por Poli Pieratti

Trabalhos de Charlotte Heal

Aprender e cultivar são palavras que combinam. Quando olho o meu corpo adulto, penso que ele já foi nada. E então átomo, célula, semente de gente. O corpo, mesmo crescido, segue construindo e destruindo, brotando e decompondo.

É gradual, quase não notamos, mas o tempo colide com nossos poros. Cria relevos, saliências e reentrâncias. As horas são escultoras sutis, os dias lapidam mais, a década deixa vincos.

Dia desses mirei minha pele bem de perto, sob a luz, como quem analisa um terreno visto de cima, em perspectiva aérea. Quis ler minha paisagem, minha idade, mapear meu crescimento. Quando sabemos onde estamos, sabemos como somos?


corpo campo

Tudo começou quando senti um arrepio no braço.

Meus pelos em pé, levemente inclinados, pareciam um campo de capim. Entre as folhas finas, vi um solo cheio de cor. Imaginei um rio passar por aqui.

Por mim, pela minha pele.

A correnteza romperia o corpo–corpo, irrigaria o espaço. Despertaria o corpo–campo.


O olho migra do pulso para a mão. Lá, o capim é ralo, o bioma muda. Olhe agora para a sua mata de transição, veja se não é verdade. Árida e marcada, a mão direita parece um sertão rachado de sol.

Não fosse pela baleia. No polegar direito, na margem da digital, tem um desenho minúsculo e triangular que forma um rabo de baleia. E então o sertão duro, da pele seca, vira mar aberto. E o maior dos bichos vivos vem avisar que há água. E há peso.

A minha boca saliva esse peso, eu sinto a língua viva, os dentes duros, um gosto confuso, a sede. Lembro dos meus fluidos literais, como a água salgada dos olhos.

Lágrima é mar, choro é oceano. Uma baía tem todos os prantos?

Relaxo a pupila, fecho as pálpebras e um azul chega marinho, profundo. Nas costas dos olhos é sempre noite.

Abro, volto à luz. Para não me perder, ancoro a visão na palma da mão. Ela parece ter um mapa, ela parece ser um porto.

Pela palma, chegam todos os corpos do mundo. Cada dedo um cais a reagir às marés. Vou imaginando os atracadouros nas dobradiças e acho, no susto, duas marcas na lateral da mão.

De perto, vejo que são pintas, aparentam ser manchas rupestres ou continentes. Quando foi que elas surgiram aqui? Eu não tinha pintas nas mãos. Será que teve um parto? Será que o marrom era um vermelho que secou?

Pinta é pigmento, pintura. E, nesse caso, é pontuação também: dois pontos a afirmar a vida.

A gente leva muito tempo para essa equação: se ver como mundo. Até que um dia seremos outra coisa. Perderemos o corpo de vista.

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A margem do rio

#45 Imaginação Radical Arte

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#23EducaçãoArquiteturaDesign

In progress: Ricardo Alcaide

por Ricardo Alcaide

O projeto SITU, desenvolvido pela Galeria Leme com curadoria de Bruno de Almeida, é uma plataforma de produção e pesquisa artística que promove um diálogo entre arte, arquitetura e cidade, especificamente criado para o espaço externo da galeria Leme, projeto arquitetônico comissionado ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha.

Fazer a instalação para a terceira edição do projeto foi um desafio novo para mim. Além da complexidade de pensar uma obra que se relacionasse às enormes proporções do espaço, ela teria de ser uma extensão natural do meu trabalho e, também, precisaria dialogar com as linhas conceituais propostas pelo curador. Depois de inúmeros esboços, reuniões e conversas para resolver de forma coerente a pesquisa, o conceito e a materialidade da instalação – esta finalmente possível com a precisa execução da equipe Marton Estúdio, que procurei sem hesitar para levar minha visão à realidade com absoluta perfeição e com o mesmo rigor que apresenta o projeto arquitetônico.

Para a obra, usei madeirite plastificado, um material utilizado na construção civil para moldes de concreto in situ. Sua escolha está relacionada com o próprio método construtivo das paredes de concreto da galeria e, por outro lado, é um material que garantiria uma grande resistência da obra às mudanças climáticas.

Do ponto de vista técnico, uma das principais preocupações foi o escoamento das águas do pátio. Como a instalação anula o espaço entre os dois edifícios da galeria, ela acaba cobrindo todos os pontos de escoamento de água. Como o período de exposição iria coincidir com a época mais chuvosa do ano, decidimos, no momento da montagem, para minimizar complicações maiores, deixar pequenas frestas entre as chapas de madeirite e, também, entre a instalação e o edifício, que facilitariam o escoamento sem perder o aspecto de volume maciço.

A principal intenção da obra é interromper o funcionamento normal da galeria, cortando o fluxo habitual do edifício e dificultando algumas das funções prescritas pelo projeto arquitetônico, como a entrada e o estacionamento de carros no pátio, o uso das portas laterais e o acesso à campainha, que ficava, literalmente, dentro da obra.

O projeto é um grande volume escultórico à primeira vista, mas é como se fosse parte integrante da arquitetura e obstrui e ocupa o espaço de modo extremamente disfuncional

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Redescobrimento

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Como todo Brasileiro no exterior, vivo uma constante dicotomia.

Estou longe da minha cultura e sofro para tentar entender um Brasil tão complexo, mas, ao mesmo tempo, me sinto em uma posição privilegiada, onde consigo ter uma visão de fora muito mais ampla. Daqui, enxergo o país em um eterno misto de nostalgia e olhar quase turístico, fascinado com a cultura do meu próprio país.

Com isso, acabei obcecado com o mundano e o cotidiano brasileiro, e, para tentar entender mais o país que deixei, e me aproximar mais de algo tão distante, comecei o Leitura.

Vivendo no Brasil, talvez nunca enxergaria, ou demoraria mais para enxergar, o que consigo ver hoje com esse distanciamento.

A beleza, a poesia e a arte nas pequenas coisas. Esse é o meu Brasil.

Como a minha mãe sempre diz, com sarcasmo, quando não percebo algo muito perto da minha vista: “Se fosse uma cobra te mordia”.

Retratos Pintados

O dia em que a fotografia digital foi introduzida mudou a vida de muita gente. Mas, principalmente, mudou a vida dos retratistas.

Essa arte popular tão difundida pelo Nordeste perdeu a maioria de seus consumidores, que agora carregavam seu próprio equipamento, antes exclusivo ao retratista. A onipresença de câmeras digitais foi lentamente tirando a arte da mão do artista e passando-a, sem muita estética e cuidado, ao grande público.

A selfie substituiu o retrato pintado, o pau de selfie substituiu o pincel, e a tela digital substitui o papel fotográfico.

Mas o que não pode ser substituído é o valor dessas imagens.

Os retratistas não só davam cor às imagens preto e branco, mas, como o fotógrafo William Eggleston, davam a essas imagens um novo significado, um novo olhar.

Interpretando e colorindo os retratados, eles os elevavam à condição de arte.

A Arte Pop dos Brasões


Com o fim do Estado Novo, em 1946, os estados e municípios brasileiros ganhavam autonomia e liberdade para escolherem seus próprios símbolos.

No momento em que os estados e cidades buscavam sua própria identidade e independência Federativa, os brasões foram muito importantes para unir pessoas, culturas e regiões do Brasil. Imagine a dificuldade de cada estado e cidade para criar seu próprio logo, escolher um ícone que representaria e agradaria a maioria dos seus clientes, os cidadãos. Ícones como a araucária, a foice, a arma, o mar, o milho foram escolhidos e desenhados de uma forma quase naïf, simplista, e que acabaram alcançando seu objetivo para a união necessária naquele período. Um ato quase altruísta de artistas
desconhecidos que, sem querer, alcançaram uma qualidade estética incomparável. Pop art dos Brasões.

Maracatu

O Maracatu da fotógrafa Barbara Wagner é distinto do Maracatu conhecido pela maioria dos brasileiros. Esses retratos não contêm as fantasias, os apetrechos e as camadas que geralmente descem as ruas de Recife e Pernambuco todos os anos. Nessas fotos, vemos um ritual mais cru, mais real, com um olhar quase antropológico da fotógrafa, que não tenta julgar nem buscar um clichê, mas sim capturar uma outra dimensão desse complexo ritual.

Barbara capturou os maracatuzeiros em ensaios noturnos pelo Nordeste. Muitas vezes, eles, os maracatuzeiros, estão imersos em um transe, um misto religioso e alcoólico. Daí as poses e caras, que parecem transcender o físico e atingir uma esfera espiritual.

Benjamin Guimarães

Um barco a vapor do Mississipi nas águas brasilienses? Parece conto de pescador, mas é verdade.

Benjamin Guimarães veio do Mississipi na década de 1910 e é o último barco a vapor em funcionamento do mundo. Minha mãe grávida da minha irmã, na década de 70, fez a jornada de Minas até o Pernambuco. Hoje, o Benjamin, mais velho e com mais de cem anos de serviço, faz só parte desse trajeto no Rio São Francisco.

Rendeiras de Cariri

O vale do Cariri em Pernambuco é um lugar onde o tempo ainda passa mais devagar, e as rendeiras aprenderam a lidar com o tempo de sua própria maneira, ponto a ponto. Esse ofício é passado de rendeira a rendeira, de geração em geração. Cada renda, cada manta, cada vestido é um esforço coletivo que às vezes toma um ano ou mais para ser completado. Em 2016, as rendeiras viraram fashion, o trabalho delas teve projeção nacional na coleção de Fernanda Yamamoto no São Paulo Fashion Week. É o Brasil profundo ditando moda.

Fé

O Brasil é um país predominantemente cristão. Mais precisamente, 87% da população. Mas quem não mistura tudo, santo, candomblé, mandinga, fita do Senhor do Bonfim?

O sincretismo que o país vive me encanta daqui de fora. Um grande amigo, cristão no papel mas sincretista de carteirinha, todo ano novo experimenta algo novo, numerologia, umbanda, camdomblé, espiritismo, borra de café; já passou por tudo e às vezes me leva junto com ele. Sua mente aberta à experimentação e a ausência total de intolerância religiosa, para mim, definem o Brasil. Um lugar onde todas as fés vivem em uma certa harmonia. Exceto o futebol, é claro.

Os Nonatos

Ouvi os Nonatos pela primeira vez no filme Boi Neon, de Gabriel Mascaro. A canção tema do filme, “O Astronauta”, não saiu da minha cabeça, como chiclete, mas chiclete bom.

Ela me levou para um lugar no Brasil que eu nunca havia estado.

Os Nonatos não são irmãos. Nasceram em cidades distintas, um no Paraíba e outro no Ceará, e são um dupla de repentistas, tratada como celebridade por quem os conhece.

Mais de trinta e cinco bandas brasileiras já interpretaram suas músicas, entre elas “Mudar pra quê?”, “Metamorfose” e “Ponto G”. Essas são algumas das mais tocadas na minha playlist.

Samico

Gilvan Samico é um desses artistas que trabalhava do seu jeito, avesso ao mundo que cada vez corre mais rápido. De uma forma calma e lenta se preocupou em resgatar e recuperar o romanceiro popular brasileiro e a literatura de cordel.

Nos últimos dez anos antes de sua morte, produziu apenas um trabalho por ano. Mesmo ao seu tempo, conquistou o mundo com suas xilogravuras complexas e seu reino rico de temas folclóricos brasileiros que já ocuparam as paredes do MoMA, do Caixa Cultural e outros museus mundo afora.


Miss Penitenciária

A primeira coisa que um grupo de soldados americanos fez ao descobrir prisioneiras nos campos de concentração da Alemanha nazista foi dar-lhes um batom. Esse ato simples devolvia a condição de humano e de mulher que as foi renegada durante o regime. O ato devolvia a autoestima.

Algo muito parecido acontece todos os anos em mais da metade dos estados brasileiros. Desde 2004, penitenciárias femininas de todo o Brasil tomam um ar mais leve, mais feminino, mais humano, pelo menos por um dia, quando realizam o concurso de beleza. O Miss Penitenciária de 2015 atraiu até personalidades como Raul Gil e Anna Hickman, e entre as vencedoras estavam, além das brasileiras, uma sueca e uma angolana.

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Perder a cabeça

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#38 O Rosto Cultura

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Rosto de bruxa

#38 O Rosto Cultura

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Qué ficar bunitu?

#4 Colonialismo Arte

por Paulo Nazareh Conteúdo exclusivo para assinantes

Somos o que falamos?

Cultura

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

A Morte

#5 Transe Cultura

por Ana Bagiani Conteúdo exclusivo para assinantes

Tema livre

#12 Liberdade Cultura

por Hermés Galvão Conteúdo exclusivo para assinantes

Eu tenho medo de chuva: desastre natural ou racismo ambiental?

#42 Água Cultura

por Pâmela Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Já escutou?

Arte

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Todo brasileiro é verde e amarelo

#51 O Homem: Amarello 15 anos Sociedade

por André Tassinari Conteúdo exclusivo para assinantes

Fagulha — Amarello 41

#41 Fagulha Editorial

Castro Maya, William Morris e uma qualidade

#10 Futuro Cultura

por Eduardo Andrade de Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

#23EducaçãoCulturaSociedade

Dos filhos deste solo, és mãe gentil?

por Flavia Milioni

Pátria s.f.: país em que se nasceu, e ao qual se pertence como cidadão.
País s.m: 1 – Região, terra. 2 – Território habitado por um grande conjunto de famílias, que constituem determinada nação.

Nação s.f.: 1 – Conjunto de indivíduos que habitam o mesmo território, falam a mesma língua, têm os mesmos costumes e obedecem à mesma lei. 2 – Sociedade politicamente organizada que adquiriu consciência de sua própria unidade e controla, soberanamente, um território próprio.

São os brasileiros que fazem o Brasil, e não apenas os mais de 8 milhões de quilômetros quadrados muito mal distribuídos. Aliás, se sua terra fosse melhor distribuída – melhor entende-se por mais justa –, os brasileiros não seriam quem são e, portanto, o Brasil não seria o que é. O que esperar de um país quando ele próprio, na figura de seu cidadão, não cuida de si mesmo? Como uma pessoa que negligencia sua própria saúde pode lamentar a doença?

Em 2007, o senador Cristovam Buarque*, então filiado ao PDT, apresentou um projeto de lei que poderia ser a força motriz de uma grande guinada na educação pública do país e, por consequência, base para a maior das revoluções: a política.

O projeto determinava a obrigatoriedade de os agentes públicos eleitos matricularem seus filhos e demais dependentes em escolas públicas. A matéria nunca foi votada porque foi arquivada antes mesmo de chegar ao plenário. O senador ouviu inúmeras críticas de seus colegas, em grande parte dizendo que seu projeto era inconstitucional, pois feriria o livre-arbítrio. A resposta de Buarque é tão oportuna quanto sua proposta de lei: ninguém é obrigado a ser candidato.

Ser ou não ser, eis a questão.

Política vem de polis: cidade em grego; e de polites: cidadão, no mesmo idioma. Não por acaso, a democracia (demo = povo; cracia = poder) teve origem na Grécia. E funcionava mais ou menos assim: a cada ano, quinhentos cidadãos eram sorteados para compor o Conselho, onde se decidiam, em assembleias abertas à audiência dos demais cidadãos, todos os assuntos relacionados à polis. Eram todos políticos, quer queira quer não. Não havia escolha. Também não havia eleição, candidato, partido político, e muito menos a desculpa de não gostar de política. Vive em sociedade? É político. Portanto, político não era profissão, era obrigação. De todos. A qualquer momento, o sorteado poderia ser você. E detalhe: nenhum cidadão poderia ser sorteado mais de duas vezes no período de uma vida inteira.

Com a deturpação do sistema democrático, ou, como alguns diriam, com a adaptação do sistema, da democracia direta para a representativa, a sociedade só perdeu. Quem ganhou foram os que fizeram carreira nesta que é das profissões mais infames já inventadas.

E a representatividade? A sociedade brasileira é composta por 53% de negros, e o Congresso não tem nem 20%; 51% da população brasileira são mulheres, e no Parlamento tem apenas 10%; 37% da população possui ensino superior, e no Congresso são 80%; 60% do povo brasileiro ganha até dois salários mínimos (isto é, até R$ 1.760,00), e 50% do Parlamento – metade de seus eleitos – têm patrimônio acima de R$ 1 milhão. O Congresso tem 153 deputados integrantes da bancada ruralista, sendo o Brasil o país com uma das mais dramáticas concentrações de terra do planeta. Representa?

Quando Cristovam Buarque responde, em tom irônico, para não dizer lacônico, que ninguém é obrigado a se candidatar, traz à tona a grande fissura de nossa democracia representativa. Trocando em miúdos, a pessoa que, deliberadamente, escolhe se candidatar deveria ter consciência de que seu trabalho será para o coletivo e que, se for eleito, terá de seguir algumas regras. Existe um rol de atribuições para cada função pública, e ter seus filhos e demais dependentes matriculados em escola pública seria apenas mais uma delas. Se o emprego diz respeito à máquina púbica e se o salário vem da mesma máquina pública, por que a relutância em usar uma instituição de ensino pública? É óbvio que a resposta que não se quer dar é: porque o ensino público é ruim. E não se quer dar porque, se assim o fizer, estará com isso atestando que o próprio trabalho, e de seus colegas, não é bem feito.

E por que o trabalho não está sendo bem feito? Porque os agentes políticos eleitos no Brasil representam, em sua imensa maioria, a classe média alta e os empresários. Porque política virou profissão, invertendo a prioridade: o eleito trabalha para si e seus pares, não para o país.

O ponto crucial do projeto de lei de Buarque, preciso como um mapa, é que, se o político, e não apenas a população distante de sua classe social, sofresse as consequências de seu próprio trabalho, certamente cuidaria para que este fosse o melhor possível. E, para ser justo até com a classe política, o senador estabelecia uma vacatio legis (período entre a publicação da lei e sua entrada em vigor) bem generosa. Ou seja, os municípios, estados e união teriam alguns anos para deixar as escolas públicas com melhores equipamentos, professores bem remunerados e gabaritados, material escolar de referência, currículo tal qual o melhor colégio particular, carga horária adequada e merenda saudável, entre outras coisas, tudo em perfeito estado para receber as crianças. E o motivo para fazerem isso é triste e simples. É porque suas crianças estariam entre elas.

O pensamento político mais corrente no Brasil é: se eu não sou afetado diretamente por um problema, ele não é meu. Ledo engano. As rachaduras no ensino público, que tiveram início com a migração em massa das classes média e alta para o ensino particular, nas décadas de 1960 e 1970 principalmente, trazem consequências para todos. A falta de educação, ou uma educação precária, para os mais pobres pode até parecer interessante para uma elite que quer se manter no poder indefinidamente; mas ela sabe, porque teve boa educação, que toda ação corresponde a uma reação. E a reação de uma camada enorme da população, excluída, marginalizada, sem estudo apropriado, sem qualquer preparação para a vida civilizada, depois de um curto prazo de obediência e subserviência, é a revolta, a violência e o caos. Curioso pensar nos altos índices de violência atuais e observar o início do sucateamento das escolas há quarenta anos. A quantidade de meninos de rua, abandonados à própria sorte, na década de 1980, e o crescimento do tráfico de drogas, nos anos 2000. Pensar nos menores infratores de hoje é prever uma guerra civil em, talvez, uma década? Um país não é desenvolvido e possui excelentes índices sociais do nada. São anos, décadas de investimento em programas sociais de base. E o Brasil só vai ser o país que queremos quando a elite brasileira se apropriar e se responsabilizar por uma de suas piores mazelas.

Certa vez, durante um debate promovido por uma universidade americana em 2000, o mesmo senador Cristovam Buarque foi questionado sobre o que achava da internacionalização da Amazônia, e o jovem que perguntava pediu para que ele respondesse como humanista e não como brasileiro. Claro que a questão trazia em si uma preocupação com o futuro da floresta, por conta de sua enorme relevância ambiental para todo o planeta. A resposta de Buarque é uma aula, especialmente no que se refere às crianças:

“Comecemos usando essa dívida [os candidatos à presidência dos EUA naquele ano defendiam a ideia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca do perdão da dívida externa] para garantir que cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que morram quando deveriam viver.”

À elite brasileira, esta que detém o poder político e econômico, cabe o maior desafio. Cuidar de todas as crianças como se fossem suas. A única saída para um país mais justo a longo, é levar sua criança bem nascida para dentro da realidade das crianças mais pobres, para que elas tenham o mesmo tratamento, o mesmo ponto de partida. Ou vice-versa. Temos que começar a nivelar por algum lugar. A escolha está entre nivelar por baixo ou por cima. As duas opções estão na mesa.

Uma mãe não pode privilegiar um filho em detrimento de outro. Nem a pátria.

*Nota de esclarecimento: a autora não faz campanha para o senador citado no texto.

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Editora convidada: Ligia Cortez

por Ligia Cortez

“Todas as artes contribuem para a maior de todas: a arte de viver.”
Bertolt Brecht

Tratar sobre o tema educação numa revista especializada em arte soa, à primeira vista, um pouco incomum, mas a proposta não poderia ser mais pertinente. Arte e educação estão mais próximas e organicamente mais relacionadas do que parece.

A atividade artística no período de formação possibilita à criança aprender a pensar sobre o mundo em que vive, sobre ela mesma, e a adquirir recursos críticos para atuar no futuro. A experiência artística traduz com palavras, sons, cores e música o que não precisa ser dito, e sim compartilhado. É a comunicação para o outro, o pensamento, a reflexão sob novos paradigmas – o que é, a meu ver, a essência da educação. Abre a possibilidade do indivíduo em formação se tornar responsável para com o outro e o lugar em que vive. A produção artística da criança passa a ser importante não só como realização pessoal, mas também como fonte de pensamento e resultados para uma sociedade. É com a experiência da arte que ela passa a ser respeitada pela sua capacidade própria de gerar e atuar. Porém, sentimos que a educação está cada vez mais distante da experiência e do pensamento crítico.

Existe um equívoco, cada vez mais valorizado na atualidade, segundo o qual educação é acúmulo de bagagem de informação. A quantidade de matérias e assuntos que um aluno recebe é o que servirá de parâmetro para avaliar uma boa ou má educação recebida. Todos os índices de avaliação, como rankings escolares, exames, vestibulares, caem em cima do resultado. Difícil estar preparado para a vida adulta sob tanta demanda de performance, de resultados, na fase de formação. As crianças passam a ser aceitas e valorizadas pelo que realizam, e não pelo que são e virão a ser.

Anthony Seldon, historiador político, um dos mais importantes pensadores contemporâneos sobre a educação na Inglaterra, propõe, entre várias outras ações, que as escolas voltem a oferecer aulas sobre Shakespeare e que os alunos também atuem nas peças assiduamente. Uma ideia ótima para qualquer indivíduo em formação. Assistir a peças e, principalmente, atuar nelas abre portas para a compreensão profunda da natureza humana. Shakespeare pode vir a ser uma grande ferramenta educativa, e a profundidade da experiência que as crianças teriam, também.

A proposta é importante, mas poderia se dar com qualquer outro exemplo artístico.

A educação deve ser pensada sob um conceito mais amplo. A responsabilidade de formar uma nova geração de indivíduos preparados para o novo século, para a ação em coletivo e em prol do crescimento da sociedade, parece menos presente do que poderíamos desejar. Um currículo que também contemple habilidades como criatividade, trabalho em equipe, empatia, resistência, perseverança, honestidade, seria o melhor dos mundos. Mas como isso se daria se não através da arte, dos conteúdos humanos, do sentido de existência, dos conteúdos simbólicos que ela proporciona?

A educação está inserida no campo da cultura. Binômio difícil de ser compreendido até pelos setores mais experientes. É impossível haver educação sem cultura e cultura sem educação. Existe uma inter-relação de organismos que conversam e se alimentam. A cultura ainda é vista como algo descartável ou de segundo plano, ainda mais quando se fala de um país em crise.

Nosso país tem dimensões continentais, com diversidade cultural riquíssima. A difusão, o fomento e o respeito pelas diferenças começam pela junção entre educação e cultura, com a riqueza de manifestações sendo, além de respeitada, também conhecida. Ainda a cultura é vista equivocadamente como algo erudito, sofisticado, de elite, ou então é ligada à diversão, frequentemente confundida com o entretenimento.

Em relação às ações públicas que têm sido feitas no Brasil, sem educação básica forte e abrangente será difícil termos um país desenvolvido no futuro, pois sabemos que a escola pública consegue alcançar metas bastante modestas de qualidade de ensino e que o cenário só tende a piorar. Se desejarmos uma melhora, no Brasil, será preciso um esforço coletivo. Muitas vezes penso como seria se tivéssemos a possibilidade de parar tudo e imaginar uma nova forma de educar. A tarefa não é fácil. Seria necessário reavaliar valores e resgatar um compromisso civil de todos nós.

Imagino o estado de espírito de animação e entusiasmo que se instaurou na Rússia quando, após a revolução civil, no começo do século, os organismos públicos responsáveis pela formação foram instados a repensar as formas de educar. Instaurou-se um departamento cultural que abrigava um setor de teatro voltado, prioritariamente, para a prática teatral com crianças. Momentos criativos como esse chegam muito perto do estímulo de origem da ação artística.

Hoje, quando pensamos em educação no Brasil, temos uma apatia, uma impotência, uma angústia. Afinal, como uma sociedade consegue colocar ações que de fato transformem? O melhor, então, talvez seja nem pensar sobre o assunto. Ir levando. E, com isso, toda uma geração de adolescentes é levada a estado de cisão. Genuinamente, todos os jovens querem agir, mudar, transformar. Há uma força de pensamento e ação que está sendo perdida.

Certamente, se pararmos para pensar sobre educação, teremos uma série de boas ideias que poderiam contribuir para uma melhora. A revista Amarello é um enorme sinal de que já contamos com ótimas iniciativas. Arte e educação sendo debatidas num espaço independente, ligado à realização artística, feito de um material tão criativo e sensível que, por si só, já é veículo de educação. A partir disso, o que mais poderíamos sonhar?

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A revolução que vem do berço. O editor da Amarello informou o prazo para entrega do texto: 8 de março. Coincidência ou não, Dia Internacional da Mulher. Sob o tema Educação, o pedido vinha acompanhado de um combinado tácito formado ao longo desses seis (!) anos de colaboração: ambientar o tema no universo político. Educação política, portanto, e, com a coincidência, o papel da mulher nessa construção.

Impossível não começar reconhecendo o poder da mulher sobre a formação do Homem. As chances de qualquer pessoa ter recebido de uma mulher as primeiras noções de educação são quase absolutas. Salvo raríssimas exceções, as mães são as primeiras responsáveis pela educação dos filhos, diretamente seguidas pelas professoras. Reconhecendo o poder, reconhecemos também a responsabilidade.

Num panorama rápido pela luta dos direitos das minorias, encontra-se pela história recente casos de negros escravagistas, assim como são conhecidos casos de judeus nazistas. Há uma enormidade de gays que não toleram bissexuais ou qualquer outra forma de sexualidade sem rótulo. Sul-americanos que apoiam Donald Trump? Há por aí. Mas me arrisco a dizer que, entre as minorias, nada supera a quantidade de mulheres machistas. Seja por atavismo, conveniência ou convicção, elas estão entre nós.

Tivemos Cleópatra, Catarina de Médici, Catarina da Rússia, Margaret Thatcher. Princesa Isabel e Alzira Vargas. Chiquinha Gonzaga, Pagú, Bibi e Zuzu. Dilma também, sim senhor. Tem a Mara e a Marina. Tem a Luana. E pode ser Hillary depois do Obama.

Citar exemplos históricos e contemporâneos tem seu lado bom. Mas é triste notar que são exceções ante a unanimidade de mães com todo seu poder transformador subestimado. Tão triste quanto os números.

Você que assina ou compra revista em banca provavelmente viverá mais do que 85 anos e conhece gente dessa idade em plena atividade. Pois saiba que há 85 anos as mulheres no Brasil ainda não votavam. Mais números? Em 2014 o número de mulheres eleitas para o Congresso Nacional cresceu, mas ainda não superou os dez por cento, sendo que 39,8% delas são chefes de família. Pior? Nos dez primeiros meses de 2015 foram registrados 63.090 casos de violência contra a mulher, média de um a cada sete minutos.

Não resta dúvida de que a realidade precisa ser transformada. Por onde? Bom, são 67 milhões de mães no Brasil. Meu palpite é que a revolução começa no berço.

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Era domingo, eu tinha tomado um pé na bunda, talvez eu fosse a pessoa mais triste do planeta naquela hora. Tentei ver uma série americana, não consegui, achei um cigarro no meio dos cardápios delivery. Ia pedir uma pizza. Melhor voltar a fumar.

É uma dor que nada adianta. Nada faz você achar que o mundo é menos que um cocô de pomba que caiu na sua cabeça. Lembrei do dia que ele chegou de madrugada, tive certeza que estava com outra. Estou cansado, ele disse.

Eu também estava. É exaustivo amar uma pessoa que não ama você de volta. E você fica tentando dar um jeito daquilo funcionar, mas não tem jeito. E não é culpa da pessoa. Ela não é a malvada e você a boazinha. Não era pra ser!, não é isso que diz o clichê?

Mas naquele domingo nada disso me ocorria. Nenhum amor meu vai dar certo. Nunca. Antes desse teve aquele outro, e aquele outro, estou fadada ao fracasso! Vou envelhecer sozinha, fumando, eu comigo aqui trancada nesse apartamento, igual uma música do Leandro e Leonardo.

Passei o resto desse ano odiando os homens. Em janeiro, conheci um coitado num bar do Itaim, ele me disse eu te amo em duas semanas, quase vomitei. Mas deixei rolar. Gostei tanto de ter de volta uma companhia pro cinema… o ser humano é egoísta. Deixei o coitado ter esperanças, fui dando corda, deixei o coitado me escrever coisas. Só parei o dia que ele escreveu um negócio muito triste, que eu estava distante, que eu não liguei da praia, que se ele tinha me feito alguma coisa, qualquer coisa… O que é que eu ia falar? Não é você, sou eu. Me perdoa.

Outro clichê da vida é o aqui se faz, aqui se paga. Um pouco depois do coitado, eu me apaixonei por um cara, ele era casado com uma chinesa. Estava numa pista de dança, me achando, quando esse sujeito me apareceu vestido de preto. Claro que ele não se apresentou dizendo, oi tudo bem, eu sou casado, mas quando eu já achava que ele era o amor da minha vida, em duas semanas, ele contou que tinha uma pessoa. Ela estava na China, ia chegar na sexta, ela morava com ele ainda e eles eram casados. Como é? Não, calma, deixa eu explicar. Ela não tem onde morar, eu não tenho como mandar ela embora, ela não tem grana, a gente nem se fala, porra!

Você acredita que eu comprei essa história? Passei quase um ano almoçando e jantando em restaurante de quinta, dormindo em motel. Quase um ano, até dar de cara com os dois numa festa, beijando na boca de língua…

Tem um filme brasileiro que eu adoro, chama Pequeno “Dicionário Amoroso”. Andrea Beltrão e Daniel Dantas são casados, daí eles se separam, o filme é sobre isso. Perder, recomeçar. Em uma cena, a personagem da Andrea Beltrão descreve o que está sentindo. “Parece que me arrancaram um braço”. É uma dor que nunca me esqueço.

Beijo por beijo, sonho por sonho, amores vão mas a verdade é que os braços voltam. Dali a pouco, atento aos seus próprios afazeres, sentado do outro lado da mesa, um outro amor nos fará companhia.

E ele não dá a mínima se estou aqui há horas sem lhe dirigir a palavra. Com fones de ouvido, cantarolando minha música sertaneja. Ele é o meu amor em paz. Meu amor que não me cobra. Não acabou ainda? Não vai jantar? É o meu amor que não faz meu coração saltar pra fora. Não liga se eu não atender o celular. Não me prega bronquinhas porque eu sou avoada. Não li a mensagem de texto, não sei se hoje é sábado ou domingo. É o meu amor que não acha que eu tenho que consertar os meus defeitos, não me pede pra eu ser diferente… É o meu amor de verdade.

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Amarello: Nos conte um pouco do seu “background” e de como você se interessou por música.

Marcelo Jeneci: Me lembro bem de uma situação. Tinha cinco anos de idade e estava voltando do hospital no colo do meu pai. Eu assoviava uma música que tinha escutado uns dias antes, na ida pra lá. Me lembro muito de assoviar, e do meu pai ficar espantado, e falar da memória musical que eu tinha. Logo cedo ele percebeu essa vocação, e a partir daí começou a me incentivar a tocar um instrumento. Acho que, durante sua adolescência, ele guardou o desejo de ser músico. Existe a coisa dele realizar uma vontade própria em mim. Ele tocava violão em um boteco perto da casa dele, se não me engano, mas nada a sério. Isso tudo lá em Guaianazes, na COHAB Juscelino, no fundão da zona leste, e de lá pra cá são várias estações e vários pit-stops.

Está ligado diretamente ao seu pai?

Com certeza está, mas existe uma maneira minha de agarrar isso, ter a minha leitura e separar. Isso é meu, não dele. Tudo bem ele se alimentar disso, mas é um desdobramento. Como se ele fosse o artilheiro do time e me passasse a bola, deixasse comigo.

Como acontece seu processo de criação?

É bem desordenado e maneiro como acontece, nunca do mesmo jeito. Por exemplo, ontem estava falando com o (Luiz) Tatit, de uma música que eu havia mandado pra ele uns dias antes, e que gravei como a gente está gravando essa entrevista, voltando pra casa, dirigindo o Opala. Com os quatro vidros abertos, e o maior barulho, improvisei uma melodia, uma métrica de uma canção com começo, meio e fim. Mesmo com o barulho do carro (um Opala 1973), a inspiração veio. Sair cantando do nada é uma maneira de compor, sem nenhum instrumento. Componho bastante na farra também, com amigos queridos, pessoas que eu amo, me divertindo. Alguém pega o violão, e simplesmente compomos, sem pensar. Eu e o Arnaldo Antunes sempre marcamos de nos encontrar pra compor… E assim é com vários outros parceiros.

Você considera toda sua casa seu espaço de trabalho?

Trabalho na casa inteira. Na sala, na laje, no “chuveirão”, às vezes na cozinha. Quando a balada está acabando, sempre tem a hora da musiquinha, das madrugadas adentro, e lá no estúdio. Tenho certeza que, quanto mais relaxado, melhor você faz o que tem pra fazer.

De que maneira ela influencia seu trabalho?

Minha casa é um retrato da maneira que tento me expressar e da maneira que trabalho. Estamos na cidade de São Paulo, no alto da Lapa, e, daqui da sala, não dá pra ver nenhum prédio, não dá pra ver muitas casas. Tem árvores, plantas, palmeiras. É meio Piracaia, Piracainha, minha futura Piracaia! E isso foi uma escolha romântica. Escolher um lugarzinho que traga esse romance no escolher, no observar. Eu acho que é mais do que influência, está tudo diretamente ligado. Essas escolhas, de aproximações de belezas, de singelezas, são bem parecidas com o disco Feito pra acabar, que nasceu todo aqui.

Tudo nasceu nesse exato cantinho em que estamos. Toquei com Laura pela primeira vez aqui. O pai dela me recebeu muito bem, quando cheguei de Guaianazes, aos 19 anos. Ele foi um excelente cantor, multi-instrumentista. Tocava violão, pandeiro, cantava que nem o Chet Baker, essa linha de voz plena, raro de ouvir, sabe? Quando mudei para a Pompéia, comecei a conviver com ele, ensaiando um show em homenagem ao Baker, e ele me apresentou São Paulo toda. Aí Ariano descobriu que estava doente, passou dois anos se cuidando e faleceu no dia do aniversário dele, dia 6 de abril, um dia antes do meu. Depois de um tempo, Laura apareceu cantando em sua homenagem. Eu não sabia que ela cantava. Eu a via na casa dele, quando ia ensaiar lá, muito jovem, com calça de moletom. Ela cantou com os óculos que ele usava. Ela é muito parecida com ele fisicamente, o rosto. O timbre, inclusive, acho que também veio do desenho do nariz, do crânio, isso tudo influencia muito a voz. E ela cantou “Across the universe”. Nessa época, eu tocava com o Cidadão Instigado, e ela era muito fã do Rodrigo Amarante, que ia participar do show. Ela pediu pra mãe dela entrar em contato comigo, pra levá-la no camarim, na passagem de som, pra conhecê-lo. Foi quando eu a chamei pra passar uma tarde aqui em casa, isso foi em 2006. Nesse dia falei “poxa, em vez de seguir com músicas que já existem, vamos compor um negócio nosso!”. A primeira que compus para ela cantar foi “Amado”, e o álbum nasceu. A mãe dela, ao descobrir que ela havia passado a tarde aqui, me escreveu, dizendo que passou a adolescência nessa casa, pois era amiga das donas. Tudo tem romance, existe uma opção de olhar por esse lado real e belo! Eu dou mais foco nele. Combina com esse lugar.

Acha que existe algum trabalho seu, ou projeto, no qual você se sinta mais realizado?

Gosto muito de uma música da gravação do DVD do Arnaldo Antunes, chamada “Luzes”, do Paulo Leminski. Eu toco sanfona, o Betão toca violão, e o Arnaldo canta. Além do DVD ser lindo esteticamente, todo preto e branco, com uma luz expressionista bem forte, de baixo pra cima, gosto dele porque foi num momento um pouco antes de começar a labuta da carreira solo. Um momento em que estava ali transbordando, querendo mudar de posição, sabe? Toda vez que eu vejo e ouço essa gravação sou levado a esse momento. O momento do Big Bang. Foi a mudança de instrumentista para compositor. Como se as notas já não dessem mais conta, quando comecei a desejar “Vou gravar um disco”.

Quem você citaria como maiores fontes de inspiração?

As pessoas verdadeiras. Percepções da vida e maneiras de lidar com ela, com isso, com aquilo, algumas com mais dificuldade, outras com menos. Também tenho uns artistas que, estética e artisticamente, são meus pilares. Mas vêm depois das pessoas verdadeiras. Kevin Parker, do Tame Impala, por exemplo. Ele tem uma coisa de dominar harmonicamente o instrumento, que tem a ver com Toninho Horta. Gosto muito também do Clube da Esquina. Eles têm uma junção muito boa de melodias lúdicas com movimentos femininos e letras com aquela voz de sereia do Milton, que faz ainda mais sentido quando você está naquele trajeto doido de Minas Gerais. Musicalmente, eu olho mais pra essa órbita do que para aquelas que têm o discurso filosófico mais importante. Erasmo Carlos, Arnaldo Antunes, Wisnik. Acho bonita a maneira que Vanessa da Mata leva sua carreira; cada vez com mais perfeição ao lapidar um disco pop. Muito segura, bonito de ver. E é claro, meus amigos que tocam comigo: Régis Damaceno, João, Prado, Riff, DeLauro.

O que você gostaria de fazer que você não fez?

Tenho muita vontade de fazer uma trilha pra cinema, com um orçamento legal (risos), e gravar um disco de música pra pista, um disco totalmente Disco, com uns refrãos bons. Vivo fazendo isso, já tenho todas, só falta encarar, e encontrar um parceiro pra fazer uma batida legal.

Na canção “Alento”, você fala de encontrar aconchego em suas próprias memórias e pensamentos. É possível falar de romance sem ser “para alguém” ou “de alguém”?

Acho que sim, se falarmos mais das relações verdadeiras que temos, com tudo que não sejam os homens. Com as flores, é um bom exemplo. Falar de conexão, de elo, de beleza. Acho que incentiva a gente a olhar isso ao nosso redor. A indústria televisiva optou por focar somente as brutalidades da humanidade, e não no que estamos falando aqui, sensibilidade, profundidade, respeito, admiração. Tudo é somente focando justamente onde o ser humano deu “chabu”, e isso é chato, torna o viver mais pesaroso.

O que é um final feliz?

É ter vivido com intensidade todas as etapas da vida: infância, adolescência, fase adulta, ser pai, avô. E aí sim, vou estar satisfeito, proto para a próxima viagem, quero saber qual vai ser a próxima fase. É assim que eu vou tentar fazer!

Seu trabalho tem um tom leve e livre, você acha que é possível falar de amor e de liberdade?

Sim. Fiz uma música que se chama “Gravitacional” e que fala justamente sobre isso. Fiquei muito feliz quando Elba Ramalho, uma pessoa muito bonita, me pediu uma música nova e eu dei pra ela. Ficou linda na voz dela. (Marcelo toca a música):

A saudade tá batendo muito forte
Nem parece que eu te vi antes de ontem
Você foi e me deixou o mundo inteiro
Mas agora o meu mundo é um cinzeiro

Que gira em torno de um sistema solar
Tal qual a terra com o sol e o luar
Assim sou eu com essa mão no meu isqueiro
Com a outra no cinzeiro eu faço o mundo flutuar

Com o meu pulmão respiro o ar celestial
Com pés no chão me sinto gravitacional
Na solidão procuro a minha outra metade
Que apesar da gravidade pode ouvir o meu sinal

Pois o universo é como um homem abandonado
Estrelas cadentes são e-mails e recados
Que vão correndo para dizer a quem já foi
Que a liberdade é boa e pode ser vivida a dois
Que a liberdade é boa e pode ser vivida a dois
Que a liberdade é boa e pode ser vivida a dois

Quando se fala de amor, se fala em liberdade no final das contas. É assim que eu tento amar. Amar a outra pessoa dentro da existência dela, do espaço que ela precisa ter pra lidar com a sua missão. Apertar de um lado, afrouxar de outro, liberdade para mim é isso.

No clipe “O Melhor da Vida”, você coloca dois bailarinos, que parecem mais estar em um duelo que em uma dança. Mas sua outra canção de sucesso tem ritmo de valsa. Seria o amor esse duelo ou uma valsa? Em qual dos ritmos o amor te parece durar mais?

Duelo! Com certeza, duelo! (Risos) Valsa enjoa! Duelo é atrito, fricção, é o que está no antes do antes de qualquer coisa que existe. Daí que surgiu a primeira célula. Tentamos representar no clipe a salvação da relação! Queria que fosse uma briga, porque penso que devemos partir em busca da distância perfeita, já que se vive junto. Acho mais interessante pensar em distância do que em proximidade como frequência perfeita entre um casal ou mais pessoas. A distância perfeita é o que equilibra, ela dá o espaço e a liberdade que precisa haver dentro do cometa que você é! Ela é como um café perfeito, não é forte nem fraco – uma delícia.

O que há de diferente entre o primeiro e o segundo disco?

A minha saída plena na hora de encontrar o caminho para o segundo disco foi entender que precisaria me aproximar da minha verdade, dizer o quer estava sendo vivido. No período entre os dois discos, muitas mudanças aconteceram na minha vida. Eu era casado, me separei, fiz 30 anos, e parei de me preservar tanto, dizer mais sim e experimentar o que achava que me convinha! Mais ou menos como uma planta que precisa quebrar o seu vaso para crescer do seu próprio jeito! Eu ainda não tinha vivido esse momento. Saí de casa novo, sempre tive uma mãe amorosa, e já conheci uma namorada. Tive sempre uma proximidade maternal, e de repente tudo isso precisou se quebrar: chega! Foda-se! Deixa eu ficar aqui sozinho!

Isso me colocou em um outro lugar, para que tivesse um ponto de vista mais amplo das coisas. Essa é a maior diferença entre um disco e outro. Tudo que diz respeito às sensações, aos prazeres, à esfera sexual, às relações, às amizades – viver a vida e tentar ficar mais presente no presente. Assim surgiu o segundo disco, cujo nome veio de uma frase que eu escutei do Curumin: o melhor da vida é de graça.

Vale a pena largar tudo e casar domingo, se a vida tem muitas segundas-feiras também?

Acho que vale. Botar o volume no máximo da intensidade das coisas que a gente consegue viver. É dizer: vamos no máximo que dá pra ir no que a gente está sentindo, nesse namoro, nesse romance. Mas é justamente por causa da segunda-feira que a gente tem que entender que a vida é aqui e agora. Que todo dia tem uma coisa nova e temos que aprender a lidar com isso, negociar. É aí que está a graça de viver pra mim. E, nessa correnteza, não tentar levar muita coisa contigo. As coisas vão dando certo.

O que mudou na sua visão de amor? De mais jovem a hoje?

No começo da adolescência a gente acha que amar é contar para o outro tudo da sua vida. Existe esse exagero. Mas quando crescemos, entendemos que amar não tem nada a ver com isso e, sim, com saber a distância perfeita, com oferecer o espaço que a pessoa precisa para ser inteira e verdadeira sempre.

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Penso em uma associação muito parecida quando me debruço sobre o tema do romance, assunto privilegiado por esta edição de Amarello. Popularmente, e muito corretamente, o termo está ligado a certa concepção de amor, de amor romântico, de uma aventura sentimental guiada pelo coração. Estaríamos todos destinados a buscar romances em nossas vidas? É o romance que traz um pouco de sentido a uma existência sem muitas respostas e sem muitas motivações? Ou seria o amor, esta instituição tão celebrada dentre todos os sentimentos humanos, o grande motor para algum sentido? Penso que o romance precede o amor.

Somos matéria feita de memória e de romance, já nos dirão os grandes escritores românticos em todos os tempos. E nossa memória acaba por revelar que muitos dos amores aos quais nos apegamos partiram essencialmente de algo anterior, de uma subcamada sentimental que liga os pontos entre o coração e a mente, e que gosto de chamar de romance. Criamos uma fantasia amorosa, uma intriga com repentes bruscos, e nos envolvemos, tudo isso muito antes do amor. Leva-se um tempo para dizer “eu te amo” porque aguardamos o trânsito, os destinos e os desdobramentos dessa narrativa para então abrir o coração e nele inserir esta que é uma das frases mais universais de toda a história. Como a ignição ao motor.

Não se trata de diminuir o sentimento, de rebaixá-lo a uma subcategoria presa a lógicas próprias da ficção que criamos de nossos cotidianos e de nossos estímulos. Vivenciar, ou tentar, uma narrativa não compromete o amor que dela resulta; ao contrário, penso que o romance reverbera o amor. Uma boa história, um romance, costuma criar os amores mais apaixonados ou os mais cinematográficos.

Se tomarmos o conceito mais próximo do literário, ou aristotélico, o romance é uma obra geralmente em prosa que se destaca pelo tipo de abordagem eleita pela narração: enquanto a poesia se demarca pelo subjetivo e pelo eu, em versos que se dirigem sem intermediário a um leitor ou a um determinado objeto de sua paixão, a prosa pressupõe um narrar com maior mediação entre todos os elementos da história: eu conto algo a você, te mostro onde aquilo se passa, em que tempo, quem são as personagens que vão viver comigo (ou sem mim) aquela história, que não necessariamente será de amor. Uma história ou um romance não precisa ser de amor, embora em quase tudo já escrito ele esteja ali presente – o que se varia é a maneira como se olha para este amor. Diferentemente também do gênero dramático, em que os diálogos são reproduzidos para a posterior representação de atores em um palco, o romance não precisa se prestar à representação. Tudo nele basta.

Ao longo da história, o termo já foi moldado ao sabor das épocas e das escritas. O romance já foi uma língua, já foi até mesmo uma forma peculiar de versos épicos; hoje chamamos de romance o que James Joyce apresenta em Ulysses ou o que Machado de Assis relata nas páginas de Dom Casmurro. No entanto, se voltarmos à origem do termo, é possível estabelecer associações interessantes com seu significado mais moderno. Começa a ser usado entre os séculos XIV e XV, do francês antigo, romancier/romanz, e estava ligado à ideia de “traduzir uma narrativa para o francês”. Para nossa surpresa, tinha o valor sintático de um advérbio! Essas narrativas medievais figuravam, em geral, guerreiros e heróis em suas aventuras épicas.

Mas foi do latim romanus, para designar tudo o que vem de Roma, a partir de 1300, que todas as suas adjetivações e acepções surgiram. Traduzir o que vinha de Roma para o francês, em romancier/romanz, adquiria um papel importante na narrativa daquele período da história, em que o tom aventuresco dos antigos relatos romanos precisava se desprender um pouco de seu estrato latino e ganhar uma cara mais “moderna”, por assim dizer, francesa. Fato é que, desde sua origem, o termo tem intensa ligação com um contar de história, como processo criador de universos, de intrigas, de aventuras, de amores.

O romance tem seu ápice com Balzac, na mesma França, que é quem determina basicamente tudo o que será e continua a ser escrito até os nossos dias. Balzac foi o grande mestre do romance universal e não me parece exagerado associá-lo a uma tradição do romance também no sentido em que trato na introdução deste texto: os amores de Balzac lidam com essas intermitências da narrativa que, para existirem, precisam deste grande narrador que, ao colocar dois personagens juntos, revira o cenário, do íntimo, até o social e parisiense, para fazer surgir algo que se compreende como amor. E não seríamos nós frutos de uma influência abstrata e invisível de uma comédia humana? Somos, ainda, um retrato balzaquiano em nossas relações. Como um Lucien de Rubempré atrás de suas glórias, seus amores e suas ilusões.

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Um apontamento de identidades

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“Madame Bovary sou eu”, assim respondeu Gustave Flaubert ao processo movido contra ele por obscenidade, atentado à moral e conivência com o adultério após o lançamento do seu célebre romance. Se pensarmos, no entanto, na figura do escritor como um reflexo da sociedade burguesa da qual participava, Madame Bovary era também a imagem de todo francês daquele tempo, fruto dos seus costumes, instituições e da sua educação; e são tanto quem era esse francês quanto como ele foi retratado dentro da obra as perguntas que tal frase nos enseja.

Antes de entrarmos propriamente em tais questões, mas já entrando nelas de forma oblíqua, cabe-nos fazer um recuo ao horizonte de expectativas romanescas e estéticas que figuravam na época do lançamento do livro. Naquele tempo, a experiência de leitura dos futuros leitores de Flaubert era dada pelos romances de Stendhal e de Balzac, nos quais os protagonistas, em geral vindos do meio rural, deparavam-se, cheios de sonhos e de vontades pungentes, com o grande cenário de Paris, com o clima de boemia, com os teatros e as tentações da metrópole em meio ao turbilhão da Revolução Francesa e do período napoleônico. Personagens de modo algum vulgares, destinados a enfrentar os limites impostos pela ordem social vigente num clima de euforia e de crença nas capacidades e liberdades do indivíduo, educavam as mentes e os corações dos franceses até a inversão cáustica proporcionada pelo romance flaubertiano: em vez das luzes e dos cafés de Paris, os personagens de Madame Bovary nascem, pertencem e vivem no mundo rural, provinciano – sem grandes chances de moverem-se dali.

A ação é ambientada num lugarejo de nome Yonville, cujo centro urbano mais próximo é a cidade de Ruen, uma espécie de Paris de segunda ordem nas palavras do crítico Samuel Titan Jr. Em vez dos tempos conturbados da revolução, o autor nos situa no tempo pós-revolucionário, conhecido como a Monarquia de Julho, um hiato entre dois Napoleões, época do reino de Luís Felipe, da crescente fé na revolução industrial e da consolidação do bem-estar burguês, na qual as pessoas não se dão mais o luxo de serem excêntricas, mas se movem de acordo com o interesse, o lucro, o desejo material e o esclarecimento científico baldio de alguns se contrapondo à fé dogmática de outros; e, principalmente, em vez de heróis, somos apresentados à gente inepta para as tramas românticas de então, incapazes de triunfar no mundo como ele é, quer pela falta de talento, quer pela falta de uma vontade legítima, seja pela mediocridade provinciana, seja pelos ares campestres que reproduzem. Desse modo, o autor parodia, tomando como modelo e rebaixando, toda a produção literária precedente e, indo além desses pontos, inova o que vinha sendo produzido ao procurar o emprego da palavra exata, o realce do detalhe, o alto grau de percepção visual, a compostura não sentimental sem comentários supérfluos, a verdade mesmo que sórdida, a neutralidade ao julgar o bem e o mal. O narrador desaparece em prol da matéria narrativa, dos personagens que, quase independentes de seu autor, por meio do confronto de caracteres e vontades, deverão ser responsáveis por guiarem seus destinos até o fim de suas tramas. Nas palavras de Flaubert, “um autor deve ser como Deus no Universo, presente em toda parte e visível em parte alguma”.

Tais considerações contribuem para nossa resposta, que, não obstante, deve levar em conta a impotência feminina retratada no livro, contra a qual a protagonista se revolta a ponto de desejar na gravidez que seu filho nascesse varão. Sendo, porém, o realismo como uma nódoa de sujeira numa calça branca, Emma dá à luz uma menina, que, ao final do romance, será largada ao acaso do mundo e a parentes distantes, tendo de trabalhar numa fábrica de tecelagem para suprir suas necessidades. Na França de 1827-1846 – tempo cronológico da obra –, somente os homens tinham o poder de guiarem suas vidas no bem e no mal, de terem acesso à riqueza e à propriedade. As únicas alternativas de Emma para satisfazer suas aspirações, portanto, ou se darão por meio do sucesso profissional de seu marido Charles, que poderia levar o casal a um novo degrau da estratificação social, o que não se torna possível devido à incompetência dele em todas as esferas, ou recorrendo ao seu corpo como moeda de troca, utilizando-se do fascínio que despertava nos demais. Assim, o adultério da heroína é a sua maneira de ter algum controle sobre o próprio destino, possibilitando seu empoderamento sobre os amantes, resultando no seu endividamento e consequente suicídio.

Fruto de uma educação sentimental em um convento, de natureza idealista, numa espécie de paródia quixotesca, cuja insatisfação crescente com a realidade a leva a cada vez maiores exageros, Emma Bovary revolta-se contra as convenções de sua classe. Ela é o contraponto entre os ideais românticos e a realidade asfixiante de seu meio, de modo que, ao assumir a responsabilidade por seus atos, é esmagada pelas dívidas e pela desilusão em relação ao amor pobre que seus amantes lhe votavam; seu charme lhe serviu ainda uma última vez para convencer Justin, ajudante do farmacêutico Homais, a lhe permitir a entrada no aposento onde este guardava arsênico. De todos os ângulos em que se a olha, a punição da personagem feminina, que ousou alimentar uma força maior que a de seus pares masculinos, é a morte: o recurso ao suicídio, que, no lugar do sono tranquilo da promessa de felicidade romântica, vem carregado de dores, de vômitos e de sangue, de uma tortura que dura muito tempo.

A resposta de Flaubert sobre a identidade de sua protagonista em nada nos alenta em relação a quem era o francês seu contemporâneo. Enquanto Emma revoltava-se, a vida burguesa seguia sem grandes sobressaltos. Os demais personagens da obra se esvanecem se comparados a ela. Contudo, é a mediocridade deles que triunfa: a sua falta de gosto, as suas ambições em matéria de conhecimento e crença numa tecnologia de que não entendem. Charles é um homem vulgar, ordinário, que não logrou ser médico, mas um simples oficial sanitário; o farmacêutico Homais é o pretenso homem de ciência; partidário dos ideais positivistas e crente no progresso, sua linguagem é recheada de lugares comuns de desprezo à Igreja e à burguesia (da qual faz parte), fala de tudo e de todos, escreve à imprensa, faz alarde de sua presença, mas é limitado e cego aos próprios defeitos, sonha com glórias como a Legião da Honra, a qual, por fim, consegue; Monsieur Lhereux é um mercador manipulador que, por meio de algumas alusões aos casos de Emma, convence-a a consumir e a renovar suas dívidas até desesperá-la e impeli-la ao suicídio; os dois amantes da protagonista são ambos superficiais: Rodolphe Boulanger é um típico conquistador, homem de certa nobreza e de certo saber, que, sentindo-se atraído superficialmente pela heroína, a enquadra num estereótipo de mulher ingênua e seduzível, perdendo o interesse por ela, por não ser capaz de corresponder à intensidade de seus sentimentos, ao passo que Léon Dupuis compartilha as ideias românticas da amante, juntamente ao seu desprezo à vida comum; mas, ainda que fosse educado em Paris, se mostrasse corajoso em confronto com a gente de Ruen, se amedrontaria em frente a qualquer moça de família parisiense; no início de seu caso, o casal ama-se com toda a vontade de seus corações, porém o escrevente também não é capaz de manter a reciprocidade dos ímpetos de Emma, sentindo-se a parte fraca da relação. Quem seria enfim a Madame, ou, melhor dizendo, os franceses a quem ela apontou o dedo na cara?

Fracos, manipuladores e vulgares são os homens sob o crivo da pena de Flaubert. Embora sejam eles que detenham a capacidade de movimentar-se livremente na sociedade, todos se tornam presenças e caracteres mais fracos que a protagonista, cujo destino, uma ironia do autor à sociedade da época, prefere a morte dolorosa ao convívio com eles.

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Tenho uma teoria íntima: as redes sociais transformaram profundamente a maneira como nos relacionamos, obviamente, mas essa transformação foi tão aguda que mudou a nossa relação com os espaços que costumamos ocupar. Me explicarei: sou um construtor de palcos. Espaços de convivência, pequenos aquários que servem de cenário para os dramas humanos acontecerem. Talvez esta seja a maior recompensa do meu trabalho: saber que pulsões de vida e morte são sustentadas pelo contexto que criei. Quantos bebês nasceram porque seus pais se conheceram em um dos meus lugares, e quantas vidas abreviadas tragicamente atrás de um volante depois de uma noitada. Não existe o morno: as intensidades estão todas ali.

Enfim, os clubes, ou a nova denominação deles, as “baladas” (termo abominável), nasceram sociais, espaços que aglutinavam em seu eixo pessoas com interesses em comum. Não farei uma genealogia dos clubes, basta dizer que, a partir da década de 1970 e, de maneira mais contundente, da de 1990, a música, não o espaço, passou a ser o eixo que enfeixava as pessoas: a música em si era a expressão de certa estética de existência, de uma maneira de ver o mundo e, nesse sentido, um importante vetor de cultura. Os iguais se encontravam na pista para ouvir um determinado DJ, e sair ou não acompanhado era um detalhe, sendo comum você sair sozinho e encontrar os seus na pista. Afinal, era pra isso que ela também existia: além de servir de um momento de escapismo, para afirmar determinadas maneiras de viver.

Esta maneira de afirmar sua existência exigia um segredo: ao descobrir um espaço, você o comunicava somente aos mais íntimos, àqueles que compartilhavam contigo a sua maneira de existir: quantas vezes lugares descobertos eram passados de boca a orelha, mão em concha, como segredos, seguido de um “não espalha”? Porque este lugar, pobre do dono, não era para todos: era para nós, para nós existirmos, para nós expressarmos nossa maneira muito peculiar de vivência. Forasteiros não eram bem-vindos: eles permitiam que o véu de sonho fosse rompido pelo mundo que a porta que dava pra rua ajudava a conter. A imagem clássica dos filmes de western vem à cabeça: os olhares todos dirigidos como balas contra aquele que irrompia pela porta do saloon sem ser convidado.

O segredo, quando passado adiante, criava um laço de gratidão. Fazia do doador um generoso, e criava no receptor uma nova responsabilidade, a de compartilhar dele apenas com aqueles que eram como nós. Ali se criava um pacto: esse é o lugar onde existiremos ora em diante. Isso fazia com que o lugar fosse ocupado apenas por alguns, sequestrado para a formação de identidades. Não era apenas ou tão somente um negócio, era um palco para determinadores atores sociais se apresentarem.

Mas tudo isso mudou em 2007, ou um pouco antes disso: passamos a operar as redes sociais como manifestos de existência: eu curto, logo existo. Manifestar através das redes sociais suas predileções, sejam elas as obras que te agradavam ou os lugares que você frequentava, era tão ou mais importante que frequentar ou fruir estas mesmas obras ou espaços. Curtir, termo tão anacrônico, passa a representar existir.

Daí que espaços que antes, por conta do segredo, tardavam meses para encher e se transformar em economicamente viáveis passaram a virar hits da noite para o dia. Não existia mais o segredo: um post de Instagram, um check-in de Foursquare ou Facebook, ou um tweet que compartilhasse o segredo de maneira exponencial faziam com que seus seguidores soubessem do mesmo e urgissem para compartilhar com seus seguidores o lugar que exprimia sua maneira de existir, e assim sucessivamente, em cadeia.

Fruir o espaço é uma preocupação de segunda ordem: primeiro se coleciona o registro amplificado pelas redes sociais para depois se pensar o que fazer com o lugar. Colecionar estes registros e usá-los como dardos contra os seus seguidores, algo como um “estou aqui, me inveje”, é uma obsessão no confessionário de existências em que se transformaram as redes. O que era impensável, quase apocalíptico há dez anos, o uso de coleiras eletrônicas que nos localizariam no tempo e no espaço, como vaticinou Deleuze em seu Sociedade de controle, hoje fazemos de bom grado.

Os espaços são descartáveis, reclamamos continuamente da falta do novo, da falta de um lugar para encontrar os nossos. Esta íntima relação entre o espaço e sua identidade nas redes sociais criou novos problemas para os mesmos, doces e amargos. Doces porque não é mais necessário esperar para um bom projeto se tornar economicamente viável, uma vez que ele encherá em tempo recorde. Amargos porque será rapidamente descartado, depois da massa confessar que ali esteve. Talvez seja o início de uma era de espaços temporários, fugidios, voláteis e transitórios, tão fugazes quanto suas curtidas.

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Subestimemos de tudo um pouco da nossa quase nada pop cultura, mas jamais sejamos injustos com as nossas novelas. Esqueçamos de ontem em diante e voltemos no tempo para lembrar de como éramos felizes, e sabíamos, diante da televisão de tubo sem controle remoto. Não cometamos a injustiça de desonrar o passado de glórias do nosso mainstream áudio e visual, tão longe da ficção de hoje, tão distante da produção pós TV aberta que, urgente, devia fechar para balanço e olhar para trás – pois o amanhã é mais duvidoso do que nunca para quem não soube se reinventar. No país onde só tem valido a pena ver de novo tudo que é velho, e o nosso velho era moderno demais para a época, é bom lembrar que era uma vez uma história com roteiro original e enredo sempre magistral: qualquer tema discutido, elenco escalado, tarde da noite ou censura prévia, não havia razão, enterro de ente querido ou discussão com vizinho ou paquera de ocasião que nos fizesse perder um capítulo de novela. Seja ela qual fosse.

A vida e o mundo lá fora passavam na TV e a gente acompanhava, as modas e as manias, os romances que começavam como um beijo técnico e terminavam nas revistas semanais com histórias reais baseadas em fatos surreais – e nem havia foto de paparazzi para ilustrar o fato, o que deixava a história, pelo menos suas nuances, ainda mais colorida pela nossa imaginação. Ficção e realidade caminhavam lado a lado em tênue diferença, quase imperceptível de tão fiel ao fato – e era, aliás sempre foi, preciso dizer que “esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”. Mas era tudo tão verossímil, mesmo quando tudo que se queria no folhetim era morar em outro lugar ou imaginar um país menos irreal que o original.

Misturavam-se a literatura e a mitologia, folclore, fantasia, essa era a receita de sucesso mesmo quando o enredo era um fracasso. Fazia parte do show dar errado, e mesmo assim muito mais da metade do país não mudava o canal. A morte assistida era parte do show e acompanhar uma novela, por pior que fosse, era um pacto de sangue inquebrável. Afinal, faltaria assunto àqueles que não soubessem o paradeiro, o assassino, o suspeito, o amante. Amávamos e odiávamos por inteiro cada capítulo, éramos tão noveleiros quanto os franceses são cinéfilos. Nosso orgulho nacional tinha nível internacional; fomos vistos da China a Portugal, dublados e legendados, traduzidos, adorados. Criamos para sempre personagens que foram morar no eterno; foram-se os cenários, viraram eles lembranças que vagueiam na memória e no inconsciente: tornaram-se todos eles os heróis, vilões e mocinhos que mal tivemos nos livros e no cinema feito em casa.

Formamos nossa identidade cultural na televisão, aprendemos um pio de inglês ao cantar as canções dedicadas a eles, aos pares românticos e aos amores impossíveis. Desenvolvemos através deles a capacidade de imaginar como seria o futuro, mesmo que a curtíssimo prazo. E aquele “a seguir cenas do próximo capítulo” era a deixa para desenharmos a sós, antes de dormir, como seria o dia seguinte na vida paralela que vivíamos ali, diante da pequena tela, quando todo o real à volta perdia a importância e a cor. A imagem e as palavras, a cidade fictícia, o galã e a namoradinha, o Brasil de verdade num faz de conta seriado que partia corações quando o FIM estava próximo. E, logo após a cena final, cabia a nós juntarmos todos os pedaços, as tramas e os dramas para formar uma única história antes de arquivá-la para, então, recomeçar tudo na segunda-feira seguinte, no primeiro capítulo de uma nova história, quando esperanças davam lugar às lembranças. Novas trilhas, novos personagens, novos cenários – para ninguém dizer que a vida não passa na TV.

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Will you let me romanticize,
The beauty in our London Skies,
You know the sunlight always shines,
Behind the clouds of London Skies.

Jamie Cullum

Uma amiga foi na cartomante pedindo a volta do seu amado: “Come o nome dele durante sete dias”, disse a senhora. A jovem apaixonada, formada, madura e bem resolvida, saiu de lá decidida: passou uma semana engolindo um papel com o nome do moço, em jejum. Levantava da cama e, numa folha, escrevia até o sobrenome do eleito. Sim, ele voltou depois de um tempo.

Tem algo de triste e de bonito nessa cena de mulher apaixonada que suplica para um amor não partir. Podia ser eu, uma prima, uma vizinha. Onde há amor, há romance e magia. Toda mulher, em algum momento da vida, se torna menos princesa, mais bruxa em defesa do território do encantamento. Qualquer loucura é justificável para a preservação do sonho. Chico Buarque canta lindamente a cena da mulher abandonada: “dei para maldizer o nosso lar, para sujar seu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço, te adorando pelo avesso… para mostrar que ainda sou tua”. Mesmo Shakespeare se curvou dizendo que, entre o céu e a terra, não existe fúria maior que a da mulher rejeitada. E a velha Medeia é a precursora desse movimento.

“Malévola” é um filme revolucionário: a fada que se vinga do homem que corta suas asas com ferro quente em troca do poder de outro reino. (Será que há imagem mais rica do que essa para falar de amor? Se esse é o sentimento que rouba nossa liberdade e entrega de bandeja ao outro? Dizem que o primeiro amor é educativo, nunca nos entregamos novamente com a mesma força e ingenuidade da primeira vez.)

Desiludida pela traição de seu amado, a personagem transforma-se numa bruxa poderosa e vingativa. E lança seu feitiço para a filha do homem que a trocou por outro reino. A bruxa, porém, observando a Bela princesa crescer, vai entrando em contato novamente com outro amor, o materno – e sua ira vai sendo suavizada.

Perfeição politicamente correta falta à Malévola para ser a protagonista de um conto de fadas, mas sobra humanidade – o que a torna apaixonante para o espectador, que perdoa e compreende suas charmosas travessuras de “bruxa má”, e, solidário, identifica-se com ela. Afinal, ridículo é quem nunca escreveu uma carta de amor.

Me pergunto se a Bela Adormecida não representa essas mulheres que passam a vida inteira aprisionadas num sonho de ideal romântico esperando que alguém generosamente as desperte. Um amor como solução de todos os problemas, como a causa de um despertar. Mas, no filme, o único amor passível de despertar a Bela Adormecida seria o materno. Esse, sim, teria a condição da eternidade. O resto são só promessas.

Sou de uma geração que cultuava a perfeição das princesas: Cinderela vitimizada, a alva pele de Branca de Neve e sua pureza. Tudo muito cindido, o bem contra o mal, bruxas contra príncipes, a Bela e a Fera. Confesso que fico esperançosa pelos novos ventos que se apresentam, quando um dos maiores livros de sucesso infantil, atualmente, tem como título: Até as princesas soltam pum. Tomara que minha filha (se eu tiver uma) não viva em busca de ser perfeita e à espera de um príncipe encantado e sem sal. Talvez essa próxima geração escape dessa ilusão do amor perfeito. Talvez.

A minha ainda sofre dessa herança do sonho de uma vida cor de rosa. A menina que sonhava em ser uma princesa desperta depois de um longo tempo de baladas em Maresias, trilhas e viagens à Bahia dormindo em pousadas nas-quais-toma-se-banho-de-havaianas. Esse despertar se dá ao conhecer um rapaz que novamente a faz acreditar que existe, sim, um final feliz, que é possível ser uma princesa. Ah, o amor…

As festas suntuosas de casamento quase enganam as jovens moças de que a vida adulta é pura celebração. Escolha o vestido que você quer minha filha, faça sua lista de presentes, dê uma linda festa, convide todos os seus amigos, vá ao melhor maquiador, encha de flores e boa música “e bibidibobidiboo”: gire as saias do seu vestido na pista de dança de olhos bem fechados – vai quase ser real. E, na volta da lua de mel, que susto! Existe um negócio chamado conta de açougue, o namorado apaixonado é meio bagunceiro, tem que arrumar a cama e nada disso parece assim tão encantador depois que a noiva vira abóbora e se torna esposa. (Abóbora mesmo, pois, na lua de mel, a gente engorda tudo que tinha emagrecido antes de casar.)

Essa tal lenda do príncipe encantado acaba com o mercado masculino, já que ocupa um ideal de impossível competição. Não dá para comparar um marido que vem com mil defeitos (assim como as mulheres) com o príncipe encantado tão sonhado e propagado há gerações nos contos de fada.

Mas ninguém contou também que o dia a dia tinha lá seus encantos, escondidos no meio da rotina, de uma dupla que opta por tentar se aventurar no mundo numa parceria, abandonando um universo que anteriormente era confortável. É preciso muita coragem para sair do reino conhecido e começar uma vida nova. E que há também algo de mágico no aconchego de voltar para a casa e ter alguém ali que te desafia e convoca a buscar amor todo dia, dentro de esconderijos internos, para suportar a tal da convivência.

O excesso de romance por vezes acinzenta a realidade. Faz com que a gente espere muito do que vem de fora e estrague o que tem, só porque não é assim tão mágico. Mas é de verdade. Anos de lágrimas podem ser economizados se essa figura encantada deixar de ser tão importante, tão definidora, e puder ser simplesmente uma pessoa, que assim como a gente está tentando acertar. E não é eterna. Não existe o para sempre. Para sempre é muito tempo. Ainda bem.

Talvez o conto de fadas do futuro termine com: felizes por enquanto. Tirando esse peso da eternidade, nos aliviamos e, de brinde, valorizamos o hoje: se não é eterno, preciso aproveitar, cuidar. E principalmente: sobrevivo sem. Embora essa última parte a gente esqueça quando apaixonado. E talvez precisemos disso para amar… Afinal, somos reféns do romance e dos clichês, todas as cartas de amor são ridículas mesmo. Sem elas, a vida perderia o pó de pirilimpimpim. Freud define o sonho como um processo vital e necessário para que suportemos estar acordados. Isto é, suportamos a realidade, pois dela nos retiramos quando sonhamos. Sem a ilusão, o mundo gira numa constante repetição, fria e acinzentada.

Assim como Dom Quixote precisa de Sancho Pança para fincar os pés no chão, a vida real precisa do romance e da ilusão. Sem esses temperos, tudo fica morno, sem sabor. De fato: não há um final feliz no fim do conto de fadas da vida, mas pode haver bons momentos durante o caminho das pedras amarelas, bem ali, somewhere over the rainbow. É só não nos esquecermos de fechar os olhos de vez em quando e sonhar.

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