#17ArteArtes Visuais

Portfólio: Efrain Almeida

por Efrain Almeida

Efrain Almeida em seu estúdio.

“Efrain Almeida faz da escultura uma possibilidade de autoimagem, autoficção, onde o lugar geográfico, o interior do Ceará, passa a se apresentar na madeira característica daquela região, a umburana, deixando, muitas vezes, o lugar atravessar seu corpo, apresentado em autorretratos. Esta arte assumira a primeira pessoa como situação, um lugar que questionara o formalismo autônomo, apresentando problematizações sobre a diferença, a desigualdade.”

“Da mesma forma que Efrain se vincula a expressões de uma dada cultura popular brasileira, também partilha de códigos próprios aos criadores urbanos e eruditos. Por isso, em vez de uma bem encaixada relação entre o local de nascimento e a identidade do artista, poderíamos pensar naquilo que Marc Augé definiu como uma ‘individualidade de síntese’. O sujeito, assim, transitaria entre uma concepção mais geral de cultura e aspectos de sua própria individualidade conquistados numa trajetória de vida.”

“Ampliando o sentimento de sagrado, Efrain Almeida se direciona a uma instância liminar. As obras se posicionam entre o descanso e o vôo, a formação de um desejo e sua execução. Tal qual na constituição de um território sagrado, o espaço projetado não é homogêneo, mas sim pontuado por diferenças. Cada escultura pode criar uma ruptura e um congelamento na imagem do vôo, nas poses do corpo, imagens que só conseguimos apreender de uma só vez. O artista, então, nos dá a possibilidade de fixar o relance e refletir sobre a efemeridade de ‘instantes súbitos que trazem em si a própria morte’, como nas afirmações de Clarice Lispector.”

#17CulturaLiteratura

Conversa com Julia Cameron

por Ester Macedo

Conheci o trabalho de Julia Cameron no Canadá, quando estava completamente estagnada na escrita da minha tese de doutorado no final de 2009. Um ano e meio depois, já com a tese defendida, e de volta à Brasília, conversando com amigos decidimos seguir a proposta do livro de nos encontrar toda semana para ler e discutir um capítulo de The Artist’s Way (sem tradução para o português). Mas como não conseguimos encontrar uma versão em português, decidi eu mesma ir traduzindo e enviando um capítulo por semana para nossa discussão. Foi uma experiência bastante rica, e foi consenso de todos no grupo que era uma pena esse trabalho não ser mais conhecido por aqui. Essa entrevista é um passo nesse sentido.

Amarello: A fé e a espiritualidade são o centro de seu trabalho, e mesmo para aqueles que não acreditam em Deus, você apresenta a criatividade como prática espiritual. Ao longo de todos esses anos, você notou muitas mudanças nas pessoas com quem trabalha, quanto à atitude delas em relação a Deus, fé, espiritualidade e religião?

Julia Cameron: Me parece que algumas pessoas se tornaram mais mente aberta. Elas estão dispostas a explorar a criatividade como caminho espiritual, e estão mais dispostas a enfrentar a própria resistência.

A: E a sua própria relação com Deus, espiritualidade e religião? No seu trabalho, você demonstra bastante conhecimento em relação a diferentes tradições espirituais. Você tem alguma filiação religiosa? Você sente que sua atitude em relação a Deus, espiritualidade e religião mudou ao longo dos anos?

JC: Eu não pertenço a uma religião organizada, mas já li muito sobre o assunto e tenho um carinho particular pelo uso da própria criatividade como caminho espiritual. Eu recentemente terminei de escrever duas peças, e durante o processo de escrita fiquei muito consciente de que precisei de fé para colocar minhas ideias no papel. Eu rezava toda noite por orientação e inspiração, e muitas vezes me senti guiada quando me voltava ao papel. Existe um livrinho de preces pelo qual tenho um apreço especial: é o Ideias Criativas, de Ernest Holmes. Leio esse livro de preces toda noite, e me vejo concordando com suas ideias. Eu mesma escrevi quatro livros de preces que estão organizados em uma espécie de “buquê” no livro de preces Preces ao Grande Criador. Tenho que admitir, às vezes eu leio minhas próprias preces e penso “Quem escreveu isso?”.

A: Por outro lado, como os líderes de religiões organizadas – por exemplo padres, pastores, rabinos, monges budistas, etc. – reagem em geral ao seu trabalho?

JC: Eu vejo que meu trabalho é amplamente aceito, e muitas religiões diferentes se identificam com suas ideias. Por exemplo: sufis pensam que eu sou sufi, budistas pensam que eu sou budista, cristãos pensam que eu sou cristã.

A: Em seu trabalho, você fala dos bloqueios mais comuns à atividade criativa, que vem em grande parte de um imaginário nocivo sobre o que é ser artista. Ao longo dessas décadas, você tem notado alguma mudança nesse imaginário e na maneira que esses bloqueios se apresentam?

JC: A essa altura, quatro milhões de pessoas já praticaram o The Artist’s Way. Muitos deles continuam a prática das “Páginas Matutinas” e as “Saídas de Artista” anos após sua primeira exposição às ideias. Ontem à noite, quando eu fui ao teatro, fui abordada por uma jovem que me perguntou “Você é a Julia Cameron, não é?” e eu disse que sim, e ela disse “Eu estou fazendo as “Páginas Matutinas” há cinco anos agora, e eu recentemente terminei de escrever um livro. Eu só queria te agradecer pelo seu trabalho – foi um guia para mim”. Ao longo dos últimos vinte anos os mitos e bloqueios me parecem ter permanecido os mesmos. As mesmas ferramentas funcionam tão bem agora quanto há vinte anos atrás.

A: É possível viver da arte? Você recomendaria alguém a abandonar outras profissões (regulares, estáveis) para se dedicar exclusivamente a uma atividade artística? É possível desfrutar dos benefícios da arte mesmo não sendo um artista em tempo integral?

JC: Eu acredito que todas as pessoas são criativas, e que todos podemos nos beneficiar da prática com ferramentas de criatividade. Eu não encorajo pessoas a tomarem grandes passos para os quais não estão prontas. Em vez disso, peço para elas trabalharem fazendo pequenas mudanças. Mudanças grandes muitas vezes começam com mudanças pequenas. Ontem à noite conheci uma jovem que, trabalhando com as ferramentas de The Artist’s Way, havia se mudado de uma vila remota na montanha para uma cidade grande onde as oportunidades para exercer sua criatividade eram infinitas. Muitas pessoas se dão conta de que não precisam largar seus empregos para praticar a criatividade expandida.

A: Uma das ferramentas centrais em seu trabalho são as “Páginas Matutinas”: três páginas escritas a mão com o que vier à cabeça, diariamente, um “dreno mental”, como você diz, para começar bem o dia. Você descreve muitas vezes a importância delas em sua própria vida. Assim como uma rotina de exercícios saudável, algumas pessoas tem dificuldade de manter esse hábito diariamente, ou mesmo com uma rotina bem estabelecida, às vezes ocorrem de pular um dia, ou uma semana ou semanas. Isso acontece com você? Depois que você começou a utilizar as “Páginas Matutinas”, qual foi o máximo de tempo que você ficou sem escrevê-las?

JC: Eu venho escrevendo as Páginas Matutinas consistentemente há uns vinte e cinco anos. Eu nunca passei mais de alguns dias sem escrever as páginas.

A: Muitas pessoas sentem que não podem ser artistas porque já são pais – seus filhos são o trabalho criativo ao qual precisam se dedicar. Quais conexões e desconexões você enxerga entre ser um pai ou uma mãe e a vida de artista?

JC: Aqui eu preciso falar por mim mesma: eu era mãe solteira quando comecei a escrever – e a ensinar – o The Artist’s Way. Eu escrevi, junto com Emma Lively, o livro intitulado The Artist’s Way for Parents. Esse livro detalha ferramentas e técnicas que ajudam pais a fomentar a própria criatividade, e a de seus filhos. A meu ver, não existe um conflito duradouro entre ser pai ou mãe e ser artista. As pessoas me pediram por muitos anos para escrever esse livro, e eu sempre negava, falando “É só trabalhar com o The Artist’s Way”. Então, quando minha própria filha casou e engravidou, eu me vi pensando que talvez precisasse sim existir uma orientação mais aprofundada. Aí então Emma e eu escrevemos o livro.

A: Em um assunto relacionado, alguns membros do grupo estavam se perguntando se seria apropriado trazerem seus filhos adolescentes para os encontros: por um lado, parece um ótimo jeito de estimular seu lado criativo; por outro, crianças e adolescentes não parecem ter tido experiências – ou mesmo bloqueios – o suficiente para precisarem de uma recuperação artística. Você acha que existe uma idade mínima recomendada para a pessoa conseguir se beneficiar do The Artist’s Way?

JC: Eu me vejo assumindo uma postura protetora em relação a pais e adultos. Na minha experiência, eles estão sempre muito dispostos a colocar o foco nas pessoas jovens, negligenciando suas próprias necessidades. Então eu diria que não – não leve os filhos para os encontros. Mas eu acho também que a prática das “Páginas” pela manhã pode beneficiar crianças de doze anos para cima. Adolescentes anseiam por privacidade, e as páginas dão a eles exatamente isso. Eu sugeriria usar as “Páginas Matutinas”, “Saídas de Artista” e caminhadas como ferramentas apropriadas tanto para adolescentes quanto para adultos. Pode ser que eles já tenham se deparado com situações que os bloqueiam. Não se preocupem muito com isso – os deixem encontrar o próprio caminho.

A: Você também diz que nunca se é velho demais para descobrir o próprio artista interior. Você tem ou conhece alguém que tenha experiência trabalhando o The Artist’s Way com idosos?

JC: De novo, a sua pergunta é bastante certeira: o livro no qual estou trabalhando agora com Emma é um livro sobre criatividade na terceira idade. Na minha experiência de professora, aqueles que estão na casa dos sessenta, setenta e oitenta muitas vezes são os que experimentam os avanços mais significativos e alegres.

A: Na introdução do The Artist’s Way você descreve um tempo em que atingiu o fundo do poço, e diz que as ferramentas ali apresentadas ajudaram você a superar aqueles tempos difíceis, em especial sua luta contra o alcoolismo. Você tem ou conhece alguém que tenha experiência trabalhando o The Artist’s Way com pessoas em situações difíceis, como em hospitais ou em centros que lidam com vício, doenças físicas ou mentais, ou conflitos com a lei, por exemplo?

JC: The Artist’s Way é um kit de ferramentas terapêuticas. Eu já ouvi de muitos casos de utilização do livro em centros de reabilitação, centros para idosos, hospitais, prisões e afins. Não tenha dúvida: as ferramentas são um bálsamo eficiente para muitos indivíduos que estão passando por dificuldades.

#17CulturaSociedade

Desenhando o divino

por Sofia Borges

Capela de Bruder Klaus, por Peter Zumthor

Eu posso não ser uma pessoa religiosa, mas tenho fé. Eu posso não visitar a igreja de minha seita, mas visito capelas, locais sagrados e locais de culto nas cidades nas quais moro e nos países que visito. Dentro desses estabelecimentos acendo velas por aqueles que perdi, e me maravilho com as qualidades extraordinárias dos tetos abobadados, além dos ornamentos e vitrais. A noção de fé engloba tudo, desde a crença em um deus específico e uma ordem religiosa até valores fundamentais de compreensão do nosso lugar no mundo. Independentemente das inclinações religiosas, ou da falta delas, a noção de fé e de como representá-la na arquitetura permanece um desafio universal passado de mão em mão há milhões de anos. Esses espaços, desenhados para evocar a sensação de algo superior, agem como santuários críticos para que consigamos nos agarrar à nossa fé quando testada. Eventos fora de nosso controle, que fazem com que caiamos de joelhos de tanta dor e incredulidade, são os mesmos que nos humanizam. Os locais que procuramos para conseguir refúgio e consolo recebem uma importância ainda maior nesses momentos de turbulência. Oscilando entre o celestial e o artificial, a arquitetura da fé transcende as convenções enquanto explora os limites entre o tempo de uma vida finita e a eternidade.

Tradicionalmente, o processo de construção de um local sagrado era entendido como algo que demorava mais a ser completado do que a própria vida do arquiteto eleito. Do Vaticano à Sagrada Família de Gaudí, alguns dos locais de culto mais icônicos trocaram de mãos diversas vezes ao longo de décadas, até de séculos. A árdua tarefa de se projetar algo que provavelmente não se verá terminado captura o espírito da arquitetura baseada em fé. Os construtores da Catedral de Sevilha (século XVI), a terceira maior do mundo, famosamente aspiravam ser lembrados como homens loucos. Quem mais trabalharia com tanto afinco para criar uma estrutura tão luxuosa e sem precedentes, cuja data de inauguração estava marcada para bem depois de suas mortes? Transitando o limite tênue entre brilhantismo e insanidade, os arquitetos dessas maravilhas sagradas desafiavam a imortalidade ao canalizar a convicção transcendental que os seus espaços, uma vez completos, continuam a inspirar.

A ascensão do modernismo silenciou a exuberância de detalhes e qualidades dos períodos da Renascença, Barroco e Gótico, sem sacrificar o impacto emocional. Essas expressões mais recatadas de divindade são espaços para adoração, admiração e reflexão que se focam menos na representação e nos ornamentos, e mais nos aspectos fenomenológicos encontrados na luz, na materialidade, na escala e na procissão. Temos exemplos de meados do século, desde a Notre Dame du Haut, de Le Corbusier, à Chapelle du Rosaire, de Matisse, que oferecem redutos iluminados, embora formalmente abstratos, para o culto pessoal e coletivo. A capela intimista e humilde de Matisse é um pano de fundo discreto para que suas reinterpretações abstratas e alegres de vitrais iconográficos fiquem em destaque. Além de reduzir a quantidade de ornamentos, muitos dos recentes locais de culto também usam escalas diferentes das de antigamente. A capela celestial Bruder Klaus Field, de Pater Zumthor, dialoga com o potencial que até os menores espaços têm de exaltar e reviver nossa apreciação pelo dia a dia. O micro-santuário, desenhado e construído por fazendeiros rurais, exibe um interior de textura carbonizada banhado em luz – o fantasma da impressão deixada pela estrutura de madeira que foi queimada ao chão.

Se suntuosos e grandiosos, ou a verdadeira essência da simplicidade, todos esses diversos locais sagrados manifestam em nós sentimentos similares de deslumbramento enquanto exploram as qualidades viscerais encontradas no limite entre o nosso mundo e o próximo. Esses cenários sublimes nos acolhem quando nosso mundo está abalado, e permanecem conosco muito depois de termos partido. Misturando o secular e o espiritual, o arquiteto da fé coreografa um ambiente imersivo ao mesmo tempo vazio e cheio. O trabalho do arquiteto de materializar esses conceitos efêmeros, emocionais e misteriosos se torna a expressão definitiva de nosso desejo compartilhado de transcender o tempo de uma vida.

#17ArteArtes VisuaisCidades

Donald e o deserto

por Tomás Biagi Carvalho

Julia Cameron, em seu livro The Artist’s Way, diz que criatividade é fé, e que temos de ser fiéis a essa fé para que estejamos dispostos a compartilhá-la com os outros, para os ajudar e sermos ajudados em troca. Ela propõe um programa de doze semanas para aquele que está com sua criatividade bloqueada, para que se conecte a algo maior, e para que deixe seu Deus trabalhar através você.

Marfa é uma pequena cidade no meio do deserto no velho oeste texano, onde você pode andar cem quilômetros de carro e não encontrar absolutamente ninguém. Lá, devido à vastidão e à superfície plana, entende-se claramente que a terra é redonda, e isso, junto com o espírito independente you can do it texano, cria uma atmosfera muito fortalecedora.

No começo dos anos 1970, Donald Judd estava frustrado com os pequenos espaços expositivos das galerias de Nova York, e com a quantidade de gente que ia para o Soho, onde morava. Em 1971, se muda com a família – e com toda sua produção artística – para Marfa, para construir um dos seus mais ambiciosos projetos até então. “Acho que gosto de menos gente, e mais espaço”, disse. Ao chegar à pequena cidade de 1900 habitantes, comprou dezesseis prédios decadentes, uma base militar desativada inteira e três ranchos, que juntos somam mais de 45 acres. Na antiga base militar, Judd transformou os dois gigantescos hangares principais da propriedade em uma catedral de arte moderna.

Paredes de vidro fazem com que a intensa e plácida luz do sol texano ilumine sua série de caixas de alumínio feita especialmente para o local. O conjunto de cem caixas é hipnotizante. Judd construiu a Fundação Chinatti no deserto, com o intuito de acalmar o excesso de emoção nas artes das gerações anteriores a ele, mas o silêncio ensurdecedor dos hangares e as cores plácidas do deserto refletidas no alumínio têm uma carga emocional muito maior que qualquer tela pintada de vermelho.

Em seu manifesto Specific Object, Donald defende que a arte deve existir por si própria. Ou a obra fala com você quando a observa, ou não. Simples. Para ele, o espaço fazia parte da obra, tanto que fez trabalhos específicos, não só para os galpões em Marfa, mas para outros lugares também. Sua obra completa é formada pelas caixas, o galpão, a luz do deserto e a paisagem de fora.

Contra a instituição museu, Judd não acreditava que seus trabalhos precisavam de placas com títulos, muito menos com explicações. Nas fundações em Marfa, o próprio guia é quem tem a chave de todos os pavilhões, e quem os abre para os visitantes. Judd pensava que a grande arte estava nas atividades domésticas diárias, no convívio com a família e no diálogo constante com seus filhos. Por isso, em todos os cômodos de seus prédios, sejam espaços de trabalho ou de moradia, havia uma cama, onde seus amigos quando o visitavam dormiam rodeados de seus trabalhos. As atividades diárias eram melhores se feitas rodeadas por arte. Por isso, também, a importância de manter tudo como ele deixou – o que as fundações fazem com rigor e maestria. Cada objeto, móvel, obra de arte e vestimenta deixadas por ele estão exatamente onde foram programadas para estar, pois criam uma relação entre as coisas e as pessoas que ali vivem/passam. No museu tem-se uma relação passiva com a arte, mas não ali.

O minimalismo, com sua mensagem direta, não foi apenas um movimento artístico. Diferentemente das religiões, com todos os seus códigos e ruídos, propõe-nos que nos livremos do desnecessário. Tampouco simples – diria aí estar sua importância –, faz-nos aparar arestas e chegarmos ao essencial. As formas puras de seu trabalho, que resultam de uma radical simplificação, dos materiais e das cores, abrem um canal de comunicação direta e sem devaneios com o da fé. A mensagem existe por si só, e você simplesmente acredita, assim como Deus, sem maiores complicações.

Judd não traz sentimento religioso para entender o trabalho. Deus e fé seriam abstrações que distraem de experiências diretas. Mas entendo que seja bastante natural ter esse tipo de reação, e começar a pensar pelo caminho do grande caráter da arquitetura e dos trabalhos.

Fé é simplesmente um sentimento de que “algo maior” está presente. Acredito também que um outro tipo de fé pode ser aplicado ao seu trabalho: a fé que as pessoas podem entender e por meio da qual se conectar a ele, sem referências a objetos existentes ou representações. Judd acreditava que as pessoas conseguem enxergar os trabalhos pelo que são e significam no momento em que são apreciados.

Através da sua proporção meticulosa e síntese da forma, junto com o deserto, com seu espaço e vastidão, Donald Judd me conectou a algo maior.

#17CidadesCulturaSociedade

Deus no céu e o queens na Terra

por André Tassinari

“When we’re free to love anyone we choose
when this world’s big enough for all different views
when we all can worship from our own kind of pew
then we shall be free”


Garth Brooks

Os moradores da região do Queens em Nova York gostam de se gabar de que lá é o lugar com maior diversidade étnica em todo o planeta. Consequentemente, a diversidade religiosa encontrada ali também é muito grande. Mas não costumamos ler nos jornais notícias sobre o Queens em que se fala de vizinhos que jogam bombas no terreno ao lado, ou de habitantes que cometem atentados suicidas, ou de limites territoriais em que pessoas de determinada religião não podem circular. Ao que parece o Queens é um bom exemplo para o mundo: um lugar onde pessoas de diferentes religiões podem conviver de forma pacífica.

Quem são essas pessoas tão diferentes mas que vivem todas no mesmo borough da principal metrópole dos Estados Unidos? Os norte-americanos têm dados detalhados para tudo, então podemos facilmente saber que ali vivem cerca de 2,2 milhões de pessoas (dos 8 milhões da cidade), sendo aproximadamente 28% de origem hispânica, 28% brancos não-hispânicos, 23% asiáticos e 18% negros não-hispânicos.

E quais são as religiões praticadas na região? Infelizmente esse dado não é tão fácil de ser encontrado. Isso porque existe uma lei que proíbe que se pergunte às pessoas sobre sua religião, se a pesquisa for de caráter obrigatório como é o caso do Censo. É um certo exagero dos norte-americanos. Bastava haver um campo em que se pudesse colocar “religião não declarada”, como no Censo brasileiro (no Brasil, pelo Censo de 2010, há 64,6% de católicos, 22,2% de evangélicos – número que vem crescendo, e 8% que se declararam sem religião, sendo as outras religiões pouco representadas).

Existem algumas outras fontes de dados que não o Censo que apresentam números de pessoas por religião, mas, justamente por não ser obrigatório responder, as pesquisas acabam não sendo confiáveis, pois muita gente acaba não declarando sua fé. Já que não conseguimos saber mais sobre as religiões no Queens através de levantamentos demográficos, podemos tentar analisar a partir de dados sobre o tipo e a quantidade de igrejas ou templos que estão presentes ali.

No site da prefeitura há um mapa interativo bem fácil de usar onde se pode encontrar uma série de informações e sua localização, tais como escolas públicas, postos de bombeiros, bibliotecas, etc. Basta escolher um distrito da cidade e clicar no tipo de informação que se deseja visualizar no mapa.

Como exemplo, vamos ver o que existe no distrito número 9 do Queens. Esse distrito tem uma população de cerca de 140 mil pessoas. Como comparação, essa é a população aproximada do distrito de Vila Mariana, em São Paulo, ou do bairro de Copacabana, no Rio. Os habitantes dessa área do Queens são 41% de origem hispânica, 22% asiática, 20% são brancos e 8% negros.

Conseguimos visualizar no mapa a localização de 14 escolas públicas, 3 postos de bombeiro e 2 bibliotecas, entre outros pontos de interesse. Mas novamente não achamos nada sobre religião. Não há a opção de mostrar igrejas ou outros locais de cunho religioso. Vamos ter que ir atrás de outras fontes. Usando o Google Maps como ponto de partida e depois os sites das igrejas/templos para confirmação, conseguimos ter um panorama das entidades religiosas no distrito. Igrejas católicas há pelo menos meia dúzia.

Mesquitas são três. Templos hindus, no mínimo cinco, além de dois templos sikhs (outra religião originária da Índia). Sinagogas são duas. Outras igrejas cristãs existem em mais de uma dezena de denominações: presbiteriana, luterana, batista, metodista, da ressureição, assembleia de deus, adventista, mórmon, episcopal, sung shin (coreana)…

Com tanta variedade, decidi investigar mais a fundo uma dessas religiões, uma que fosse de um universo menos familiar para mim. Me programei para ir ao centro religioso no dia da semana mais importante para essa religião. Nesse dia, os praticantes que moram em cada região se congregam no local de culto para orar e fortalecer o vínculo entre os membros da comunidade. (Por sorte eu tenho um tipo físico que me possibilita passar por um membro dessa comunidade.)

A primeira coisa que me surpreendeu é que não havia mulheres no ambiente de oração, que era liderado por um sacerdote que ficava lá na frente voltado para os fiéis. Alguns fiéis que pareciam ter importância na comunidade também eram responsáveis por algumas orações. As orações eram feitas em uma língua muito difícil de entender, mas de bonita sonoridade. Algumas orações eram apenas frases recitadas, já outras eram entoadas de maneira melódica, quase como uma canção. O volume das orações não era alto, a maioria dos fiéis orava baixinho, como que para si mesmo, ou como uma conversa ao pé do ouvido com deus.

Além das palavras havia também alguns movimentos do corpo que eram parte fundamental das orações, entre os quais uma certa curvatura do corpo para frente. As idades dos homens presentes eram bem variadas, desde bem jovens até anciões. Muitos usavam barba, mas não era obrigatório. Apesar do verão nova-iorquino, a praxe era usar roupas que deixavam poucas partes do corpo descobertas. Um item de vestuário que achei interessante era uma espécie de chapéu sem abas, que parecia que ia cair da cabeça a qualquer momento. Aqui chapéu é sinal de respeito e religiosidade, ao contrário de alguns lugares onde usar chapéu em ambiente fechado é errado.

À medida que os fiéis iam chegando, cada um iniciava suas orações, não precisavam começar todos na mesma hora. Lá pelo meio da missa, digo, sessão, o sacerdote começava a falar de maneira diferente com os fiéis: era a hora das palavras de alguém que é considerado um sábio pelos seguidores, que ouvem atentamente suas orientações e reflexões. Após o fim das orações, os homens iam saindo um a um da sala de culto, e trocavam saudações lá fora, onde também conversavam sobre assuntos da comunidade.

Afinal, que tipo de templo era este que eu visitei? Uma mesquita? Uma sinagoga? Ambas. A descrição acima serve para as duas visitas que fiz, uma a uma mesquita, em uma sexta, e outra, em um sábado, a uma sinagoga.

Até que, no meio de tanta diversidade, deu pra encontrar bastante similaridade.

#17CulturaSociedade

O vinho e a fé

por Vasco Croft

Domingo. Acordo entre as paredes de granito de uma casa antiga, que está na minha família há muitas gerações, dizem, desde o século XVII. Abro a janela para a manhã chuvosa de setembro. Entre as portadas Bordeaux, estende-se, bucólica, uma familiar paisagem de vinhas, amparada por suaves montanhas ao fundo. Déjà vu recorrente.

Olho de relance para a mesa da sala. Alinha-se uma coleção de umas nove garrafas de formato Borgonha. Por baixo dos reflexos que brilham no vidro escuro surpreende-me a alegre precisão das imagens dos rótulos, geométricas e contemporâneas, em cores variadas. Do lado direito destas, lêem-se 5 letras maiúsculas – Aphros.

A elegância e a nitidez da presença dos objectos contrasta com a consciência na qual surgem, sem desenho que a defina ou margens que a contenham. Que nada sabe sobre si mesma. Consta que os primeiros nasceram da segunda, que nela habita o criador, o produtor, o responsável.

Nasce um sorriso. Em verdade, esta apenas sabe que, em nenhum momento, o mistério que ali se esconde nasceu da sua vontade, intenção ou conhecimento.

Nunca teve a ambição de fazer vinho, e mesmo hoje, com toda a evidência de garrafas cheias, compostas, numeradas, avaliadas pela crítica, e exportadas para um sem número de países, continua a não o fazer.

Um mistério que não se resolverá.

Muitos anos atrás, ao chegar a um restaurante, depara-se-me, recortada na luz da janela debruçada sobre o mar, a silhueta dum velho e querido amigo, monge budista e brasileiro. Iluminam-se-nos os rostos de alegria e espanto, pois chegara a Portugal sem que nos comunicássemos.

Surpresa que era apenas a primeira de várias, que se sucederiam como bonecas russas. Contou-me que viera de propósito àquele lugar para tomar um vinho que apenas ali se podia encontrar. Sabendo-o abstémio, tal como eu era desde que me conhecera, a surpresa vira estupefacção quando ouço: “Vasco, gostaria de aproveitar este acontecimento para te mostrar uma descoberta que mudou a minha vida!”. Chama o sommelier, e encomenda uma garrafa da safra do ano em que nos encontráramos pela primeira vez.

E assim, entre dois ex-abstêmios, se iniciou a conversa que o vinho escolheu para se apresentar àquele que, anos mais tarde, o destino incumbiu de se ocupar duma pequena quinta ao norte de Portugal. Lá, num recanto verde esquecido pelo tempo, entre regatos, ervas, carros de bois, pés descalços e lábios pintados de vinho retinto. Onde um menino de Lisboa aprendeu, em finais dos anos 1960, a vida rude e maravilhosa do campo, ainda em contornos medievais.

Enfim, chegáramos a 2002 e era preciso encontrar uma solução para tornar a quinta sustentável. Vender uvas tornou-se negócio ruinoso, e o Sr. Antônio, o capataz, estava com 80 anos e a precisar de reforma. Fazer um vinho engarrafado para vender localmente, reativando a velha adega, parecia uma solução sensata e de baixo risco, além dum hobby prazeroso.

Esse o plano do produtor, não certamente o do vinho. Desenganem-se todos os que sonham com a pacatez e o romantismo, se algum dia pensarem em dedicar-se à atividade tão estrênua. Além disso, com os planos que o vinho tem para si mesmo, não adianta argumentar. O Aphros, por exemplo, é bem mais cosmopolita do que eu, que jamais pensei assistir ao vinho da minha velha quinta viajar a países como Japão ou Austrália. Ou a ser apreciado por críticos como Jancis Robinson, que formam a opinião internacional. Mas, se bem que alguma visibilidade ou verniz de glamour possam ser úteis atualmente para a sobrevivência duma vinícola, a verdade é que esses, assim como os preços do mercado, são aspectos laterais e largamente aleatórios, que raramente traduzem o espírito dos vinhos. A viticultura dedicada e ligada à terra é uma vocação diferente da que impera no mundo do comércio globalizado que domina os mercados, inundados pelos vinhos comerciais de grandes empresas que usam extensivamente a agroquímica e os processos industriais, e que são servidas por máquinas colossais de vendas e distribuição. A alma do vinho, essa continua sendo guardada por gente humilde e quase anônima, que o continua fazendo porque nasceu para o fazer.

Nascido originalmente como uma bebida sagrada, e companheiro do Homem em sua caminhada, o vinho, tal como a Fé, é um dom e um chamado à autenticidade, que nos convida a beber da fonte da vida. Porque se a Fé é esse lugar no fundo de nós, onde mora a certeza na bondade da existência, o vinho lhe facilita o acesso, com o mistério de nos fazer sentir esse acordo entre nós e todas as coisas.

Porque inseparável do homem e espelho da sua visão de mundo, o vinho caiu com ele nos abismos em que se despenhou, acabando por se tornar um mero produto de consumo. Tão artificialmente manipulado que a maior parte das vezes nada mais resta da denominação de origem com que é propagandeado, nem da vida que nele deveria alimentar os corpos e as almas.

Ao mesmo tempo, um dos maiores fatores de esperança do nosso tempo é justamente o movimento internacional de resgate do vinho, envolvendo produtores, apreciadores, críticos, comerciantes e restauradores. Os vinhos biológicos, biodinâmicos ou naturais são já o futuro, e estão na vanguarda do movimento ecológico, incorporando em gosto e profundidade um ideal de verdade que podemos provar em cada copo, renovando prazerosamente a nossa Fé.

E, por falar na revolução dos vinhos naturais, é essencial mencionar o filme Mondovino – que considero o maior gesto de Fé da história do vinho, realizado por Jonathan Nossiter, brasileiro por adoção, e cineasta que se tornou o herói duma causa até aí por defender. Talvez o primeiro ser humano a levantar-se e acordar o mundo para uma questão ética e existencial muito mais central na nossa cultura do que se imaginava. E não para de me causar espanto como o fez, saindo estrada afora munido apenas com uma câmara de filmar, para mudar para sempre a consciência planetária. Mondovino é a lança cravada no peito do dragão – depois dele, nada mais será como antes.

Muito devo aos meus irmãos brasileiros, tendo aqui referido dois (mas são muitos, muitos mais!), que fazem parte do meu vinho e da minha Fé. Devo-vos também o meu ritmo favorito, sincopado e a contratempo, que, tal como o vinho, nos liberta e faz sorrir, tornando a existência numa brincadeira feliz. E que mais pode ser o samba e o carnaval senão a celebração da Mente Confiante por parte duma nação inteira? A vós ergo a minha taça, com profunda alegria e gratidão.

#17Amarello VisitaArteArtes Visuais

Amarello Visita: Jejo Cornelsen

por Tomás Biagi Carvalho

Você é de Curitiba. Como veio parar em São Paulo?

Nasci em Curitiba e me mudei com a família para o Rio, em 1962. Na década de 1970 nos mudamos para Portugal, onde iniciei meus estudos na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Em 1974, houve a Revolução dos Cravos em Lisboa, e as escolas e universidades fecharam. Com isso, voltei para o Brasil, e fui morar no Rio.
Um ano depois tranquei a matrícula e voltei para a casa dos meus pais em Curitiba. Fui morar na Chácara, nos arredores de São José, onde passei um ano pintando.

Nessa época, comecei a vir com frequência para São Paulo, a trabalho, a convite da Rita Lee, para fazer a capa de seu LP Rita e Roberto, depois Pedro e o Lobo, pela Odeon. E então veio o convite inesperado, da produtora de filmes Studio ZH, para trabalhar com eles e fazer a direção de arte e criação dos personagens do filme Pantanal Alerta Brasil, produzido por Daniel Taubkin e Rita Figueiredo.

Conheci o “Z”, o Zelada, e em seguida o “H”, o Cao Hamburguer, e depois os outros membros da equipe, com os quais me encantei. Vivian Altman, especialista em modelagem, o Renato Theobaldo, o Felipe Tassara, o Bini, o Fernando Coster e Marcelo Durst, um fotógrafo genial.

A casa era um sonho. Abria a geladeira e estava cheia de bonecos. O porão era a oficina do Zelada e do Bini. Tinha uma salinha de pintura, estufa para secar látex e muitos materiais incríveis. Fiquei muito amigo de todos, e ganhei a chave da casa para que, quando viesse do Rio, pudesse ficar aqui. Essa é a casa aonde vim, para morar, depois que a ZH fechou e cada um foi seguir o seu caminho.

Nos conte um pouco do seu background e sobre como você começou a se interessar por arte.

Meu pai é arquiteto e engenheiro. Sempre frequentei, em sua companhia, as obras que executava e projetava. Convivi desde a infância com os materiais de seu ateliê, em casa e fora também. Era uma sensação maravilhosa ver a planta topográfica ser executada em maquetes 3D – manualmente – feitas por artesãos locais, tanto em Curitiba como no Rio e em Lisboa.

A casa em que nasci era modernista, feita pelo meu pai, na década de 1950. A mobília da sala de jantar era do Tenreiro, tinha um biombo do Eames e mesa de apoio do Noguchi. O [artista] Loio Pérsio pintou uma parede da casa, meu pai pintou um painel de azulejos para a fachada. Lembro que o [pintor] Nilo Previdi frequentava a casa. Meu avô tinha uma coleção de pinturas dele, cujo tema recorrente eram cavalos e animais em larga escala – algo estonteante para o olhar de uma criança.

Sempre me interessei por arte. Desde criança, naturalmente. Por dom, gostava de desenhar.

Vi minha primeira exposição de arte no Instituto Calouste Gulbenkian, do Paul Klee – foi impactante. Nessa época, vi Op-Art e Pop-Art, DADA e Bauhaus, Roy Lichtenstein e Andy Warhol, Rauschenberg e Jasper Johns, Claes Oldenburg e outros clássicos da Pop Art. Esse período foi fundamental na minha formação. Em 1976, fui para Londres estudar pintura na Byam Shaw School of Drawing and Painting, onde fiquei até 1979. Lá, mergulhei a fundo na educação clássica da arte e da pintura. As melhores lições e conselhos que poderia dar a alguém, trago de lá. Estude arte pura, estude os grandes mestres do passado. Estude aqueles artistas com quem você sente uma identidade, uma cumplicidade, não somente na pintura mas também em outros meios como a fotografia, o cinema, a escultura, o design e a arquitetura. Pratique desenho à mão livre, sempre. Não existe tempo definido para aprender e ensinar. Observe a natureza como um elemento da vida e de transformação. A luz, as cores, as formas. Dedique seu tempo precioso a construir um lar em seu espaço de conviviabilidade, com trabalho e pessoas. Aprenda a cozinhar e criar as suas próprias receitas. Cuide bem de sua produção artística.

Você é um cara extremamente talentoso e inspirado. Acredita que talento por si só acontece

Talento e inspiração não fazem acontecer nada sem muito trabalho, disciplina, ordem e pesquisa de diferentes fontes.

Descreva seu ambiente de trabalho. Como o local em que você trabalha influencia sua produção?

Meu ambiente de trabalho passou a ser em qualquer lugar. Com pouca coisa e nenhuma necessidade a não ser o próprio material que me proponho usar.

Nos conte um pouco a respeito do seu processo criativo.

Acredito que a espontaneidade e as circunstâncias nos levam a execução de um trabalho. O processo criativo é também intuitivo. A elaboração mental de como executá-lo pode-se expressar através do desenho ou pintura ou escultura. A organização dos materiais, dos instrumentos e do espaço onde o trabalho será desenvolvido é fundamental. No final, o processo de criação da obra transcende o artista.

Existe algum trabalho/projeto com o qual você se sinta mais realizado?

Todo o trabalho é uma realização.

Quem você citaria como suas maiores fontes de inspiração?

As fontes de inspiração são inesperadas. Não têm precedente. Arte, arquitetura, música, dança, cinema. A natureza e suas majestosas criações. O cotidiano da vida, as pessoas com quem me relaciono, os anônimos.
É sempre importante revisitar os velhos mestres. Tenho pesquisado os trabalhos de Donald Judd, Axel Vervoordt, Richard Serra, Noguchi e as pinturas de Baselitz, Pat Steir, Kiefer, Guston, Louise Bourgeois.

O que gostaria de fazer que ainda não fez?

Tenho feito o que gosto a vida inteira! É um privilégio poder rever, organizar e selecionar o meu próprio trabalho, minha própria produção.

#16RenascimentoCulturaSociedade

Panela velha

por Hermés Galvão

Chão ou vão, de Felipe Cohen (2013)

Tomamos uma anestesia qualquer que nos impede de seguir em frente, ir adiante quando todo mundo, no sentido mais amplo da palavra, já passou de fase e experimenta um novo instante, onde tudo parece, se não melhor, ao menos diferente. Nós, não. Repetimos os erros e persistimos nos acertos até torná-los equívocos por exercício de conforto e falta de impulso. Morremos aos poucos dia a dia, confinados em nossa própria história pregressa, revivendo um passado de média glória quando entregamos aos olhos curiosos um pouco de ousadia e criatividade. Faz tanto tempo…

Fomos modernos um dia, quase avant la lettre, diria. Não inventamos, mas caprichamos e adaptamos arte e música, arquitetura e moda à nossa moda; éramos felizes e sabíamos, e levamos à flor da Terra no apogeu do século XX o que poderia ser apenas o começo de um futuro brilhante. Anabolizamos o pouco que tínhamos e não ganhamos musculatura para crescer e aparecer – deu no que deu. Em quase nada. São Paulo em sua inútil paisagem ainda força uma barra pesada naquele (que já foi) bom e (agora é só) velho modernismo outrora irreverente, escandaloso e anárquico que rompeu com estruturas do passado.

Tudo em volta é concreto e armado, bruto e árido; projetos se erguem e ideias se constroem baseados em lições de página virada. Como buscar agora o original e o polêmico quando tudo e todos perderam a pouca crítica que tinham para, então, denunciar a realidade? A queixa vale para conversas e pessoas, todas quadradas. E casas também. A cena é dura, vidrada, pesada, cinza chumbo. É pau, é regra, é o fim de um caminho que segue para o Rio, onde os mesmos moldes de um Brasil inventivo desabaram pela força do tempo e do vento. Ficou de pé aquela base frágil do banquinho e o som morninho de um violão que há meio século não toca um outro refrão.

Nostálgicos de uma Ipanema burguesa – e de todas as outras épocas que não viveram, da belle époque em Paris à crise americana de 1929 –, cariocas ensaiam na mesma praia arranjos com a mesma base para surtir os mesmos efeitos em tempos nada melódicos. De frente para o mar e de costas para o mundo, a vida segue sem recriação, mas com aquela recreação dos tempos do rei. E as princesinhas de Copacabana, naturais e operadas, ainda estão lá, operando a todo vapor. Firmes e fortes, como só elas.

A ver o renascimento, ou talvez a ressurreição, olhamos agora lá na frente com a ansiedade dos medicados para reconstruir nossa temática, nosso destino e estar no mundo. Recapitulando: o modernismo datou, a bossa nova dançou. E nos deixamos prescrever, viramos démodé, saímos de circulação e deixamos de ter, com a mesma velocidade que passamos a ser, brilho próprio e força de foco.

O planeta girou e a gente saiu da roda. Não somos globais, longe disso. Regionais e autocentrados como senhores feudais ou burgueses reais, insistimos porque não existimos – o que aconteceu com a gente? Onde foi que erramos, onde paramos, para onde vamos e com quem? Voltamos tantas casas que já deixamos de jogar, perdemos o fio da meada, o bonde, tudo. Meu realismo, outrora pessimismo, é óbvio e raso, rasante e arrogante. É qualquer coisa para que se sinta qualquer coisa, quando mais precisamos é de uma injeção de ânimo.

#16RenascimentoArteArtes Visuais

Martyrs: terra, ar, fogo e água

Bill Viola é um videoartista americano, nascido no Queens, Nova York. Começou sua carreira na década de 1970 com trabalhos no Everson Museun em Syracuse, Nova York. Foi influenciado por artistas como Nam June Paik, Joseph Beuys, Wolf Vostell, Bruce Nauman e Peter Campus. Seus trabalhos em vídeo consistem em instalações, vídeos e performances, sendo marcados por um uso transparente do aparato videográfico, um controle e um entendimento complexos do tempo, e por um inventivo uso do som. O tom espiritual de vídeos como The passing (1991) é constante em sua obra; já vídeos como Reverse Television (1983) trabalham uma crítica à televisão e à passividade de telespectadores, enquanto Chott-l-Djerid (1979) apresenta imagens “abstratas” que fogem à analogia fotográfica. Ele trabalha códigos simbólicos e reflete sobre a falta de consciência coletiva na arte, e faz um uso muito próprio do sonho e da fantasia. Seu trabalho mais recente é Martyrs (2014), instalação que inaugurou permanentemente na Catedral de St. Paul, em Londres, e que ilustra a capa e uma das galerias – pela primeira vez – desta edição que você tem em mãos.

#16RenascimentoCulturaSociedade

Confiança e cultura

por Eduardo Augusto Pohlmann

Feltros, de Felipe Cohen (2010)

No início da sua magistral série Civilisation, Kenneth Clark elenca algumas condições que ele reputa indispensáveis para a civilização: “confiança na sociedade na qual se vive, crença na sua filosofia, crença nas suas leis, e confiança nas suas próprias faculdades mentais. Vigor, energia, vitalidade: todas as civilizações tiveram um peso de energia por trás delas.”

Sim, é possível haver culturas e épocas que nasçam e se desenvolvam no medo, no desespero, no tédio, até mesmo no que George Steiner chamou de “o grande ennui” que dominou a Europa do século XIX. Mas, para haver civilização, é necessário haver permanência, e para haver permanência, é necessário confiança.

Qual o estágio atual da confiança que depositamos nos valores, obras e símbolos da civilização ocidental? Gostaria de utilizar um exemplo pessoal para instigar o leitor. Quando, na Inglaterra, participei de um evento chamado The Academy, promovido pelo think tank londrino Institute of Ideas, o evento compreendia uma série de palestras e debates sobre clássicos, história e literatura, e seu objetivo declarado era “lembrar-nos de como deveria ser a universidade: um lugar em que o conhecimento é buscado como um fim em si mesmo, e não apenas como um degrau na escada da mobilidade social”. As nossas companhias, durante os três dias de debates sobre artes liberais e humanidades, seriam livros de grandes autores que pensaram sobre grandes temas e pessoas interessadas no assunto – uma rara defesa do prazer da conversação sobre temas perenes. Para participar como bolsista, era necessário responder a uma pergunta: “deveríamos celebrar a morte da alta cultura ocidental?”

Meu espanto começou quando as respostas foram lidas, e continuou nas interlocuções com os demais colegas. Sendo um evento dedicado aos apreciadores da alta cultura, esperava encontrar ali, perdoem-me a analogia forçada, uma espécie de Corte de Urbino, um local em que os valores que informam o cânone ocidental não estariam em questão. Mas o que mais ouvi foi a mesma litania monocórdica que pervade as humanidades: a dúvida quanto aos próprios valores, a crítica do cânone (acusado de contemplar apenas o dead white European male), a erosão da autoridade, aqui e ali defensores das teses mais radicais do multiculturalismo – como a de que toda cultura possui idêntico valor.

Há vários fatores para esse fenômeno, mas eu gostaria de enfatizar um: a relação entre as críticas à cultura ocidental e a sensação de culpa pelos crimes do imperialismo europeu. Atualmente, a admiração pelas grandes obras e homens da cultura ocidental soa aos ouvidos mais sensíveis como uma vergonhosa defesa e legitimação da sua imposição à força sobre outras culturas. Ou, ainda, que ao defendê-la necessariamente o mérito das outras seria totalmente negado. Assim se parte para o movimento inverso: para expiar a culpa pelo passado, se valoriza a cultura estrangeira em detrimento da própria – quando esta não é desprezada por sua infame ligação com o colonialismo, a exploração, a escravidão etc.

Ora, não deveria ser necessário dizer o óbvio: considerar uma cultura superior (e foge ao objetivo do artigo examinar seus traços distintivos) não implica desprezar as outras ou defender que aquela deve ser imposta à força. Se podemos celebrar nosso cosmopolitismo e abertura às contribuições das culturas mais remotas, isso não precisa vir acompanhado do desprezo ao nosso rico e complexo legado cultural. A apreciação estética não condescendente ou paternalista daquelas obras (para citar apenas um exemplo, tome-se a belíssima arquitetura islâmica) que se situam fora do que se convencionou chamar de civilização ocidental pode tranquilamente andar ao lado da confiança nos valores e atitudes que tornaram possíveis as obras da nossa tradição. E convenhamos: quando se tem nomes e obras como as que nós temos, não deveria ser difícil readquirir tal confiança.

#16RenascimentoCulturaLiteratura

Ilha, maravilha, utopia, alegoria – notas sobre A Tempestade

por Jerônimo Teixeira

Gravura de Benjamin Smith (1797), inspirada em quadro de George Romney

“Cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo”
Sermão da Sexagésima

“…and the thunder,
That deep and dreadful organ-pipe, pronounced the name of Prosper”

A Tempestade


A expressão foi sequestrada por Aldous Huxley: quando o leitor médio ouve falar, hoje, em “admirável mundo novo” (“brave new world”), de imediato pensa em alguma distopia tecno-eugênica. Mas o admirável mundo novo original seria, na verdade, o Velho Mundo. Seus representantes não viviam em um mundo higienizado e pacificado pelo condicionamento psicobiológico, mas na suja e bagunçada Itália do início do século XVII. Naquela que é a última das peças escritas por William Shakespeare (a rigor, a última que ele terá escrito sozinho, sem um dramaturgo parceiro), cabe à jovem Miranda, criada desde a primeira infância em uma ilha isolada, exaltar em termos elevados a confusa e humilhada entourage do rei de Nápoles:

How beauteous mankind is! O brave new world,
That has such people in’t!

(Como é a bela a humanidade! Oh, admirável mundo novo,
Que tem tais pessoas nele)

Miranda tinha apenas dois anos quando seguiu seu pai, Prospero, duque deposto de Milão, em seu exílio em uma ilha mágica do Mediterrâneo. Lá, teve contato apenas com um pai que, pode-se supor, era austero e emocionalmente frio — e além de tudo um mago de poderes quase ilimitados, capaz até de levantar os mortos —, e com o deformado Caliban, criatura meio anfíbia que tentou estuprá-la. Miranda, aos 14 anos, só conhece, portanto, o superhumano e o sub-humano. Compreende-se que a moça veja tamanha beleza no grupo de nobres que se apresenta diante dela no quinto ato. Huxley apropriou-se de suas palavras com distorção irônica, mas Miranda parece demasiado inocente para a ironia. É uma adolescente de olhos infantis, descobrindo um mundo que está ali desde sempre, mas que para ela resplandece de ineditismo. Prospero responde ao entusiasmo da filha de forma lacônica: “’tis new to thee.” (“É novidade para ti”) — entenda-se: essa gente só é nova (e, por extensão, bela) para a ingênua garota que nada sabe de crimes velhos e feios. Estão ali, afinal, todos os que condenaram pai e filha ao exílio: Antonio, o irmão traidor que usurpou de Prospero o ducado de Milão, e Alonso, o rei de Nápoles, ativo participante da conspiração. Prospero perdoou seus malfeitos — e as razões para tal ato de despreendimento serão talvez o mistério central dessa peça cheia de mistérios —, mas certamente não os esqueceu.

Miranda, é verdade, conhece boa parte dessas tramas sórdidas. O pai lhe contou toda a história logo na segunda cena do primeiro ato, em uma passagem de caráter meio didático (Northrop Frye diz que é uma cena “tecnicamente desajeitada”). Mas a menina já está apaixonada por Ferdinand, filho do rei Alonso, e não tem a disposição de alimentar ressentimentos. Ela obedece aos ditames de seu nome: etimologicamente, “Miranda” está relacionado a “maravilha” (o nome tem, aliás, a mesma raiz latina do “admirável” com que se costuma traduzir “brave” no título da ficção científica de Huxley). Miranda causa admiração — a Ferdinand, e também, obscuramente, a Caliban —, e ela mesma se admira.

Não só Miranda. Nesta peça final, o bardo não mobiliza o indisputável talento para tramar intrigas palacianas e desencontros amorosos que o espectador conheceu em Macbeth ou Sonho de uma Noite de Verão. Há só um fio de enredo aqui, e um resenhista mal-humorado talvez pudesse resumir A Tempestade a um desfile de personagens embasbacados. Miranda maravilha-se com Ferdinand, Ferdinand maravilha-se com Miranda, e o casal maravilha-se com o espetáculo mitológico que Ariel e os espíritos da ilha encenam sob as ordens de Prospero. Alonso e seu séquito encantam-se com os truques de Ariel; até os pinguços Stephano e Trinculo, responsáveis pelos esquetes cômicos da peça, maravilham-se, ou pelo menos se espantam, com o monstro Caliban; e o próprio Caliban mostra-se sensível às maravilhas musicais da ilha, em uma das falas de mais profunda poesia na peça.

Decerto um dos mais indevassáveis personagens de Shakespeare, Prospero não parece se maravilhar com nada. Não poderia mesmo se surpreender com nada: é ele, afinal, o grande titereiro da peça; os seres fantásticos que povoam a ilha, com o elusivo Ariel à frente, são seus comandados. Frye observa que A Tempestade leva ao extremo o expediente da peça dentro da peça que Shakespeare empregara, de forma mais limitada, em Hamlet ou Sonho de uma Noite de Verão. Tudo o que se vê no palco é, em última instância, uma encenação de Prospero, e quando ele pede nosso aplauso, no monólogo final, estamos ouvindo um dramaturgo (o dramaturgo?) que se despede de seu público. Prospero não dá título à peça em que atua, mas A Tempestade é a sua peça. Macbeth não é a peça de Macbeth, nem Rei Lear a peça de Lear — não na mesma extensão.

Poderoso como é, Prospero, porém, não tem o poder de calar os demais personagens. Eis aí, como prova, Caliban, que aprendeu a linguagem articulada para ofender os que o ensinaram. E eis aí Miranda: o arrebatamento da menina não sai invalidado pela reticência do pai. Por um momento, ao menos, o leitor ou espectador deseja ver o mundo como ela vê — deseja acreditar, sem ironia, que a humanidade merece admiração.

II

A Tempestade poderia ser, como tantas peças teatrais do período, uma história de vingança. É para levar adiante um plano de vingança que Prospero faz com que Alonso, Antonio e companhia naufraguem em sua ilha. Por que, então, ele os perdoa? A crueldade com que ele trata Caliban e, às vezes, Ariel — ou até a própria filha, Miranda —, não revelam um homem compassivo. Ele não se comove com a desventura de Alonso e seus homens, náufragos perdidos em uma ilha povoada por ilusões e encantamentos — mas se comove com o fato de que Ariel, criatura não-humana, seja capaz de se comover com o sofrimento humano. Será talvez uma monstruosidade própria do espírito demiúrgico de certos artistas: a representação do sentimento os afeta mais do que o próprio sentimento.

Harold Bloom diz que Caliban é um exemplo do que Freud chamou de “estranho” (unheimlich): a emergência de um traço familiar no que deveria ser completamente desconhecido. O monstro não é humano, mas reconhecemos humanidade nele, e por isso ele nos perturba. Correto. Mas Prospero também é, de forma mais radical, uma encarnação da estranheza freudiana. Sim, ele é um homem, como nós: a fragilidade que ele deixa transpirar depois de abdicar de seus poderes mágicos nos enternece. Mas algo nele permanece além da — passe a palavra meio “clínica”, meio moralista — normalidade. A. D. Nuttall especula sobre um fundo de incesto nas preocupações de Prospero com a virgindade da filha. E vale lembrar que Freud construiu o conceito de “estranheza” a partir de O Homem da Areia, conto de E. T. A. Hoffman que evoca os terrores noturnos do sono e do sonho. Prospero é, a seu modo, um homem da areia. A certa altura da peça, ele faz Alonso e seus cortesãos dormirem. De forma ainda mais perturbadora, no primeiro ato, ele se vale da magia para fazer a filha adormecer.

III

That has such people in’t: exalta-se aqui a humanidade, tal como é, falha, mesquinha, egoísta, e não a humanidade redimida dos utopistas. Mas a ilha é, por excelência, o espaço imaginário da utopia. Eis aí Gonzalo, cortesão do rei Alonso, convertido em socialista utópico avant la lettre logo que chega à ilha. É um dos diálogos mais saborosos de A Tempestade: Gonzalo descreve seu estado (commonwealth) ideal em termos que parecem inspirados pelo retrato idealizado que Montaigne fez dos antropófagos brasileiros, e, a cada passo, sua ingenuidade é ironizada por Antonio e Sebastian.

Gonzalo é um homem bom — aliás, é o homem bom de A Tempestade. Foi ele quem arranjou para que Prospero e a filha tivessem provisões no barco em que foram abandonados em alto-mar (mais importante para a trama, Gonzalo garantiu que Prospero conservasse, no exílio, seus livros de magia). Por contraste, Antonio e Sebastian são rematados canalhas. O primeiro traiu Prospero, seu irmão; o segundo planeja, com ajuda de Antonio, matar o seu próprio irmão, Alonso, para reinar em Nápoles. A rejeição debochada de qualquer ambição utópica como tola e irreal será própria de cínicos como Antonio e Sebastian. E, no entanto, é característico da arte de Shakespeare que os vilões tenham um entendimento profundo da natureza humana. Com agudeza, os dois conspiradores desvendam as contradições da fala de Gonzalo, que se nomeia rei de um Estado ideal no qual todos seriam iguais e portanto dispensariam um soberano.

Shakespeare demonstra, na mesma cena, uma compreensão presciente da psicologia do utopista. Alonso, naquele passo, está desolado, inconsolável, pois imagina que seu filho, Ferdinand, tenha morrido afogado no naufrágio. A certa altura, ele pede que Gonzalo pare de tagarelar sobre sua sociedade ideal, pois aquilo nada significa para ele. No entanto, Gonzalo, o compassivo Gonzalo, segue falando. O utopista só se mostra generoso como o distante homem do futuro; não tem tempo para consolar a dor de quem está próximo e presente. Porque é um homem bom, Gonzalo não dará o passo seguinte exigido pela utopia: não causará dor no presente para construir o mundo do futuro.

IV

Ferdinand, de seu lado da ilha, também imagina que o pai morreu. A bela mas enganadora canção de Ariel consolida seu equívoco:

Full fathom five thy father lies;
Of his bones are coral made;
Those are pearls that were his eyes:
Nothing of him that doth fade
But doth suffer a sea-change
Into something rich and strange.
Sea-nymphs hourly ring his knell
Hark! now I hear them, ding-dong, bell.

Na tradução de Augusto de Campos:

Teu pai repousa em paz a trinta pés:
De seus ossos coral se fez:
Aquelas pérolas que vês
Foram seus olhos uma vez;
Nada que é dele se perdeu,
Metamorfose o reverteu
Em algo estranho e nobre.
Sereias tangem o seu dobre:
Dlin-dlão.
Silêncio! O sino agora,
Dlin-dlão, ora.

Hannah Arendt usou a canção como epígrafe em uma das seções de seu ensaio sobre Walter Benjamin: as metamorfoses marinhas seriam uma ilustração da alegoria barroca que Benjamin estudou em A origem do drama trágico alemão. Pelos milagres da alegoria, “cada personagem, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra coisa”, em um indeterminismo radical que, ao fim, apontava para o alto, para a sacralização do profano. A caveira, alegoria por excelência, pode-se converter no rosto de um anjo, segundo um verso de Lohenstein, um dos obscuros autores alemães seiscentistas examinados por Benjamin.

(Lembrei da citação quando visitei o Hospital de La Caridad, em Sevilha. Em uma de suas paredes, aparece o esqueleto com a foice na mão e um caixão sob o braço, em um aposento no qual estão empilhados emblemas das vãs ambições terrenas: globo terrestre, coroas, espada, livros. É o painel In Ictu Oculi, de Valdés Leal. Olhei demoradamente no fundo das órbitas vazias daquela caveira, e não consegui – provavelmente por uma falha de minha imaginação teológica – imaginá-la convertida em anjo.)

Princípio similar de transformação maravilhosa aparece em um autor barroco mais conhecido (ou, pelo menos, mais conhecido para o falante de português):

“… porque é talvez a virtude dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam, gemendo como pomba, que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em Anjos.”

É o jesuíta Antonio Vieira, em 1633, pregando para escravos em um engenho baiano. Em chave mística, tem-se aqui, mais uma vez, o programa do sofrimento presente que será transfigurado no paraíso futuro — mas não, desta vez, um paraíso terreno: para os pretos, sugere Vieira, o trabalho escravo seria a chave de entrada para o reino de Deus.

Ariel é leve e ligeiro: não será capturado pelos pesados esquemas messiânicos e dialéticos de jesuítas ou marxistas. As caveiras submarinas convertem-se em coral, não em anjos. E o fim, ao gosto do mago que é o mestre de Ariel, não será a redenção, mas a estranheza. Something rich and strange.

V

A restauração será uma modalidade de transformação? Northrop Frye pondera que não existe, ao final da peça, qualquer alteração social. O mordomo Stephano e o bobo Trinculo, que com auxílio de Caliban planejavam matar Prospero e assim tomar a ilha, são punidos, enquanto Antonio e Sebastian, que também participaram de conspirações regicidas, conservam-se em posição de ridicularizar os dois subalternos. Prospero, por mais que pareça estar acima das ambições terrenas, deixa muito claro que seu perdão está condicionado à restituição de seu ducado. Tudo volta a ser como antes, salvo, talvez, para Caliban: não está claro se a ilha, que era dele antes da chegada de Prospero, lhe será restituída. (O monstro decerto seria um sucesso em Milão, exposto à curiosidade pública como o índio que Montaigne certa vez entrevistou.)

A despeito desse figurino conservador, Shakespeare guarda algo para quem gosta de afirmações de igualdade. O contramestre (boatswain) do navio que conduz Alonso e os seus faz parte daquele elenco de personagens “populares” que, nas peças do bardo, sequer ganham nome próprio (o porteiro em Macbeth, o coveiro em Hamlet). No entanto, ele é capaz de afirmar seu valor com a mais altiva — e, na perspectiva dos nobres, desaforada — dignidade. No meio da feroz tempestade que dá título à peça, Gonzalo adverte ao contramestre que não se esqueça de quem está a bordo do navio (ou seja, o rei). O contramestre responde, rápido: “Ninguém que eu ame mais do que a mim mesmo.”

(A fatuidade da advertência de Gonzalo reside no fato de estarem todos, muito literalmente, no mesmo barco. No seu modo figurado, a expressão tornou-se um clichê da conciliação social — e como tal inspira justificado ceticismo. Recorde-se o exemplo célebre do Titanic: pobres e ricos estavam, sim, no mesmo barco, mas os botes salva-vidas serviram, antes de tudo, aos ricos. Não haveria botes no navio do rei e do contramestre. Não fosse a tempestade um encantamento, uma ilusão do mago Prospero, teriam todos, nobres e plebeus, virado coral nas profundezas do mar. O que seria uma estranha forma de justiça social.)

VI

I’ll drown my book” (“afogarei meu livro”), diz Prospero ao renunciar à magia. É um verso estranho, ou pelo menos assim soa ao meu ouvido pouco educado no inglês do período. Caliban, quando conspirava com Trinculo e Stephano para tomar a ilha do velho duque, ameaçava queimar o livro de feitiços e conjuros. Prospero, porém, prefere lançá-lo ao fundo do mar, onde talvez o livro passe pelas metamorfoses submarinas de que fala a bela canção de Ariel. O velho sábio renunciava à magia (como Shakespeare ao teatro?), mas não o faria com um auto-de-fé obscurantista. Se é verdade que Shakespeare colaborou na redação de uma peça chamada Cardenio, hoje perdida, e que portanto teria lido Dom Quixote, podemos presumir que o bardo conhecia o capítulo em que o cura e o barbeiro fazem um grande expurgo na biblioteca do Cavaleiro da Triste Figura.

O testamento de Shakespeare não menciona livros. Fala de vários itens miúdos e famosamente deixa para a viúva (aquela que deu a Joyce a oportunidade de um trocadilho inspirado: “if others have their will Ann hath a way”) a segunda melhor cama de New Place, a casa da família em Stratford. Os chamados “anti-stratfordianos”, defensores das mais malucas teses alternativas para a autoria das peças assinadas por Shakespeare, fazem a festa com esse fato. Então o autor de Hamlet não teria livros em casa? Ora, claro, pois não era de fato um escritor, e sim um mero ator ignorante! Tolice especulativa: Park Honan, autor de uma detalhadíssima biografia de Shakespeare, observa que o testamento, por si só, não quer dizer muito. A biblioteca poderia estar em um inventário em separado. E outros poetas e intelectuais da época deixaram testamentos em que livros não foram discriminados.

(Eu, no entanto, gosto de imaginar que, de fato, Shakespeare morreu em uma casa desprovida de livros. Já estava além dos livros, já podia dispensar toda literatura. Nós, que não somos Shakespeare, temos de acumular volumes e volumes nas prateleiras. E quando chegar a hora, com muita sorte teremos — terei — um exemplar de A Tempestade na cabeceira.)

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Morte e renascimento maia: os murais de Bonampak

por Alberto Rocha Barros

Na abertura de Os Gregos e o Irracional (1951), obra decisiva de E.R. Dodds, durante uma visita ao Museu Britânico, um professor de cultura clássica observa as esculturas do Parthenon quando é abordado por um rapaz que confessa não conseguir admirá-las: parecem-lhe “extremamente racionais”. O professor simpatiza: “Creio que o entendia. O que o rapaz estava dizendo era algo que já havia sido dito antes (…) Para uma geração cuja sensibilidade havia sido treinada nas artes africana e asteca, e através de obras de homens como Modigliani e Henry Moore, a arte dos gregos (…) é mesmo propícia a se mostrar destituída de certa consciência do mistério, e de uma capacidade para penetrar em níveis mais profundos e inconscientes da experiência humana.”

Certamente houve um boom de interesse na arte das civilizações antigas e das culturas tribais, sobretudo na Europa da primeira metade do século XX, quando a arqueologia se desenvolveu cientificamente, sítios foram descobertos e abertos ao público, a etnografia tornou-se mais respeitosa e cautelosa, e o turismo transnacional se estabeleceu. Artistas de várias orientações beberam em fontes não-clássicas: as artes tribais da África e da Oceania, assim como a arte pré-histórica e pré-colombiana, foram, cada qual a seu modo, influências decisivas para pintores e escultores do século passado. E muitos aspectos dessas artes não-clássicas produzem sim certa consciência de mistério: elas parecem falar mais diretamente a um mundo pós-freudiano; são, muitas vezes, desconcertantemente modernas, mais oníricas, emotivas, por vezes, violentas, uncanny.

Ocorre que o intuito do famoso livro de Dodds era questionar um pouco essa impressão de realismo racional frio da arte grega. Assim como podemos olhar mais atentamente para a arte greco-romana e enxergar nela tensões e dimensões insuspeitas de sentimentos complexos e profundos, também podemos encontrar uma majestade de composição quase clássica e um diálogo imediato com nossos hábitos de cultura visual nas artes de povos bastante distantes de nós. Os murais de Bonampak, no México, constituem um perfeito exemplo disso.

Na opinião de muitos, a arte maia é uma das mais belas do Novo Mundo e rivaliza com a grega em sua autoconsciência de esplendor, seu orgulho à flor da pele na ciência de seu impacto visual e planejamento atento que ordena as composições. Há nela também um extremo investimento em adornos curvilíneos e as chamadas pirâmides são site specific: as edificações e planos urbanos são desenhados para dialogar com a paisagem natural e geológica que os rodeia e com as estrelas e fenômenos celestiais que os encobrem. Parte do prazer de visitar os diferentes sítios é essa plasticidade do encontro entre os centros urbanos e seu ambiente natural, bem como a compreensão da racionalidade que os ordena: cada ruína maia tem seu charme particular e se apresenta como uma espécie de obra de arte total.

Bonampak é um sítio relativamente menor, na região centro-leste do estado de Chiapas (México), quase fronteira com a Guatemala, e próximo de outros centros maias poderosíssimos no passado, que viviam em perpétuo estado de batalha pelo domínio cultural da região: a majestosa cidade de Palenque, a belíssima e imponente Toniná e a misteriosa Yaxchilán, mergulhada na floresta densa, onde até hoje vemos serpentes e morcegos passeando pelas ruínas e os rugidos dos macacos bugiu assombram as estruturas templares. Embora os índios Lacandones que habitam a região (e que ainda falam uma língua maia) já conhecessem o sítio, foi apenas em 1946 que três norte-americanos descobriram aquilo pelo qual Bonampak ficou famoso: no interior da chamada Estrutura 1 (ou Templo dos Murais), uma fenda na construção havia deixado entrar água pluvial por séculos, formando uma translúcida crosta de carbonato de cálcio que, afortunadamente, preservou os murais mais belos que temos dos maias, considerados hoje um dos pináculos de sua arte e uma das obras-primas da humanidade.

Um dos elementos mais atraentes desses murais é uma cor de tonalidade rara: o renomado azul maia, criado por volta de 300-400 d.C. através da combinação de elementos orgânicos e inorgânicos: um corante índigo obtido a partir das folhas da planta anileira (de onde se obtém também o anil) e paligorsquite, um mineral argiloso. Esse pigmento azul não era apenas um sinalizador de luxo entre os maias, como o cacau e o jade, mas também uma marca de refinamento estético.

O azul maia é uma tonalidade célebre (como o azul egípcio e o International Klein Blue) e oscila entre o ciano e o esverdeado. Dependendo da quantidade de pigmento utilizado, do suporte onde é pintado e da incidência de luz, é possível obter um leque de sutis variações em seu espectro. Em Bonampak o pigmento está também misturado a azurita, um mineral tão raro quanto caro, obtido no extremo norte do México, a mais de 1.200 km de distância.

O Templo dos Murais é composto por três câmaras pequenas (apenas três pessoas podem entrar por vez) cuja função parece ter sido primordialmente estética: a contemplação das artes que elas guardavam. A primeira sala indica uma rebuscada cerimônia de ascensão ao trono da cidade, à dedicação de um templo e à apresentação de uma criança à corte e ao sacerdócio. A segunda sala apresenta uma sanguinária cena de batalha e sacrifício de cativos. Por fim, a terceira representa novas festividades. É possível identificar claramente um projeto nos murais, isto é, uma concepção artística e um grupo de pintores guiados por essa concepção. Mas os murais nunca foram completados em sua época e a unidade narrativa deles é debatida até hoje. Bonampak teve uma vida relativamente breve (foi ocupada por pouco mais de 200 anos) e testemunhou tanto o ápice da cultura maia quanto seu grande declínio.

Em 1994, o levante zapatista tornou seu acesso extremamente difícil. Em 1996, após complicadas negociações, a universidade de Yale iniciou um projeto de documentação detalhado e científico dos murais. No ano passado, o resultado desse projeto foi publicado: o gigantesco e deslumbrante livro The Spectacle of the Late Maya Court: reflections on the Murals of Bonampak (editado por Mary Miller & Claudia Brittenham: INAH e Texas University Press, 2013).

Os murais estão abertos ao público novamente. Fazia tempo que eu queria vê-los ao vivo. Estive lá em abril deste ano com minha irmã. Estávamos exaustos depois de visitar alguns sítios e passar horas no carro. Quando entramos no Templo dos Murais nossa primeira reação foi dizer um para o outro “não deveríamos estar aqui!”. Rimos. Quais são as chances de essas cores sobreviverem à ação do tempo? Conversamos bastante sobre eles — temos um gosto muito semelhante —, e nunca vou me esquecer desse momento com ela. O azul maia é mais duradouro do que se imagina. Bonampak viveu pouco. Seus murais renasceram.

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Beleza e verdade

por Thiago Blumenthal

Copo, de Felipe Cohen (2004)

E se Keats estivesse enganado? Essa é a pergunta que me fiz ao debruçar-me recentemente sobre sua obra, um dos maiores poetas românticos de sua geração, em contraponto a ideais estéticos em desacordo com o cientificismo de seu tempo ­— primeira metade do século XIX. O poeta inglês, sabemos, celebra um certo espírito renascentista de registro, de mimesis, da natureza, em seu esplendor e beleza, com o modelo clássico servindo de raiz inspiradora a obras arquitetônicas, plásticas, literárias. E políticas. O idealismo das virtudes gregas capturado pelo projeto de longue durée não passou batido por Keats. Mas me pergunto: e se essa concepção, dentro da visão de mundo europeia, heliocêntrica, não corresponde ao conceito mais formal de verdade?

Em seu poema Ode on a Grecian Urn, Keats concretiza, conceitualmente, a convicção absoluta da “verdade da imaginação” e conclui, nos últimos versos, que “‘Beauty is truth, truth beauty’ – that is all/ Ye know on earth, and all ye need to know”. Da coleção de grandes odes do autor, esta acabou por tornar-se uma das mais célebres e citadas, devida e indevidamente, como é próprio da fortuna de toda e qualquer citação. Tomado pela beleza dos mármores do Partenon, entre centauros e lápitas, o poema, dividido em dois grandes blocos temáticos (de um amante que não pode realizar seu desejo — “Bold lover, never, never, canst thou kiss” —, e de um sacrifício ritualístico, tirado da cena de Sacrifício de Listra, de Rafael, alto período do renascimento), busca responder os possíveis limites da arte. Keats disseca o imaginário renascentista e conclui que só pode haver beleza na verdade, como só pode haver verdade no que é belo.

A corte, a música, o rito religioso, ali descritos e consagrados, em contraposição com a realidade factual da urna que guarda essas narrativas, compõem um cenário espaçado entre dois pontos distintos: a beleza da arte e a humanidade mais real (e “verdadeira”), em contato direto ao apreciar e tocar aquele objeto. Onde se tem que um elemento não somente não exclui o outro, mas serve de condição para que ambos existam. Assim nos conta Keats sob a premissa de que, sim, julgamentos estéticos são os árbitros para qualquer verdade. Como Einstein, um renascentista tardio, que afirmou que as únicas teorias físicas que aceitamos são sempre as mais belas. A equação, no entanto, para fechar, se determina por um outro campo: o tempo e a memória.

Da eternidade das obras renascentistas e do legado do período, por séculos a fio, não duvidamos. Keats, Flaubert, Beethoven, o mot juste em todas as artes e expressões de lá para cá une verdade e beleza em sintagmas indissociáveis. Artistas que trilharam o caminho da exatidão para atingir o belo. O meu ponto é que a doutrina renascentista, que nos foi passada por Rafael, Botticelli, Da Vinci, ultrapassa a mera busca pela verdade. É o caráter mais revelatório de todas essas obras que, muito mais do que um processo preso a um determinismo cego, manifesta uma sensibilidade de escolhas, tangível e essencialmente subjetiva, sem qualquer platonismo que, quando exposto, pode revelar-se às avessas ou fora do escopo artístico.

A verdade não é a beleza, tampouco a beleza está na verdade. A inadequação dos versos finais de Keats, como uma amostragem didática de uma fórmula quase científica, corresponde a uma gradação da natureza que não respeita o aspecto do tempo: com a monotonia da evolução, do primeiro ao último verso, e do leitor de então ao contemporâneo, a beleza se perde da verdade e a obra tende a tornar-se histórica, somente histórica. Um verso se torna um aforismo, uma declaração, uma sociologia aberta ansiando por validação. É belo, e talvez seja verdadeiro. De outro modo: é verdadeiro, e talvez seja belo.

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A ordem do renascimento

por Léo Coutinho

Ampulheta #2, de Felipe Cohen (2013) – detalhe
Foto de Everton Ballardin

Quinhentos anos depois, o pensamento político do Renascimento ainda vigora em sua plenitude. O Príncipe, obra emblemática de Nicolau Maquiavel, é o retrato de como a política acontecia na prática, e não uma proposta do autor, como a história a absorveu.

Quando usados como metáfora para narrativas atuais, os modos e costumes da política medieval mostram que atravessaram a Renascença e estão absolutamente vivos. Trair, matar, ocupar, dominar, subjugar são verbos que podem ser conjugados no presente na crônica política ao redor do mundo. Em alguns casos, valem inclusive literalmente.

Num contexto histórico, quinhentos anos não é tanto tempo assim. Os métodos anteriores à noção de república estão nas pessoas e ninguém pode negar o atavismo. Estima-se que em menos de 20% das nações exista hoje em dia a combinação de direito a voto, liberdade de imprensa e justiça independente. A direita xenófoba avança no continente europeu. Segundo a Anistia Internacional, quase a metade dos cidadãos da Grã-Bretanha rechaçam a ideia de proibir a tortura em nível global. No Brasil, o IPEA fez as contas e apontou que 26% das pessoas concordam que a mulher que mostra o corpo merece ser atacada. O autoritarismo está entre nós.

A parte boa é que os avanços também são inegáveis. As possibilidades de comunicação que a tecnologia trouxe estão sintonizando o mundo ao senso comum numa velocidade raramente experimentada, muito mais acelerada do que é capaz a evolução do senso comum. Governos autocráticos caem pelos quatro cantos e, se novos tiranos sobem em seu lugar, ou arranjam espaço para reverter conquistas democráticas, é porque o autoritarismo ainda é intimamente tolerado e até defendido pela sociedade em certos pontos. Minha impressão – e torcida – é que o senso comum deve continuar amadurecendo gradualmente no sentido republicano, e os governos terão que se adaptar inexorável e determinantemente.

Não é apenas da política que nos chegam os ecos do Renascimento. Ainda estão entre nós variados exemplos da força transformadora que a criatividade mostra na civilização, mesmo quando avança com velocidade diferente do senso comum. Além das artes – e seria covardia elencar o legado do período —, também a ciência e a tecnologia renascentistas são indissociáveis de nossa experiência contemporânea e do futuro que podemos imaginar – de preferência, com um legado menos terrível e cru que o de Maquiavel.

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Para tudo

por Vanessa Agricola

Anunciação, de Felipe Cohen (2008)

Acordo.

4 dias, 11 horas, 47 minutos. Hoje vem o moço da Granero. Não esquecer de cotar o içamento do piano. Quanto?? Caríssimo. Ligar para a outra empresa que a Ju me indicou. Metade do preço, ótimo. Mas, como assim, metade do preço?? Alô, moço da Granero, por que você é o dobro? Ah, sim, porque você quer que eu pense que você é muito melhor. Parabéns, deu certo, mudamos dia 8.

4 dias, 13 horas, 20 minutos. Mudar de casa é tranquilo, mas mudar de país… Vamos morar fora durante um ano. Ainda não sei como vou continuar trabalhando com um filho de 10 meses sem babá, mas segue a vida. Chegaram os sacos a vácuo das Lojas Americanas. Meu Deus do céu, pra que tanta roupa? Vou dar pra Fran, vou dar pra Fran. Fraaaaaan?? Aspira esses sacos pra mim e coloca na caixa?? Essas roupas aqui, ó, são suas.

Reunião da obra. Estamos construindo uma casa, e em função da mudança não vai dar pra acompanhar. É confiar 100% na construtora do meu irmão. Dizem que nunca mais vou falar com ele. Pelo menos posso xingá-lo durante o processo. Você jura que tudo vai estar pronto em setembro? Olha lá, hein, caralho, a gente volta em julho. Beleza. Mas então vamos marcar uma reunião por Skype toda semana pra falar do status. Tá, tudo bem, pode ser um e-mail. E neste e-mail você manda as fotos, para a gente ir vendo o que já foi feito? Ótimo. Só um segundo.

Alô? Oi, mãe. Posso, mas bem rapidinho. Mmmm? Mmmm? Mmmm? E você não sabia??? Não, senhora, você não tinha me avisado isso nunca. Mãe, eu estou em uma reunião, depois te ligo. Não, não posso. Transpiro.

Desculpa. Legal, eu gosto dessa porta. Falando em porta, e os assaltos? Vocês acham que a gente para de pagar o guardinha da rua? Eu sei, ele não pode fazer muita coisa, mas a gente paga ele pra proteger a obra e ele não fez nada! E quanto vai custar uma empresa de segurança? Affe Maria.

5 dias, 12 horas, 03 minutos. Bom dia. Ah, que delícia, é tapioca? Obrigada. Não, não estou tomando café, me dá muita vontade de fumar. É, faz 5 dias, Fran, acredita? Sinceramente? Ficar sem cigarro no meio dessa loucura de mudança, de obra, não sei se eu aguento. Preciso ir, tenho Doutor Paulino.

Na terapia. O senhor está dizendo que o mais difícil não é parar, é deixar de ser a Vanessa que fuma? É, acho que sim. Ser outra coisa é o mais difícil de tudo. Ontem mesmo eu li um texto de uma carta do tarô, A Morte, falava exatamente sobre isso. Abandonar a si mesmo. Deixar pra trás o que a gente é e que não precisa mais continuar sendo. Tem tanta coisa! Tem a Vanessa que tem preguiça de colocar o CPF na nota, a Vanessa que desde o advento da Nota Paulista precisa ir na Receita resgatar a senha do CPF. Olha o tempo, Doutor Paulino, olha o tempo que eu sou capaz de postergar uma burocracia.

Eu sei, mas… é minha culpa. A gente não achou um apartamento ainda, por exemplo. Eu estou tão ansiosa que tenho sentido vontade de vomitar. Não, antes do Frontal. Faz umas três semanas que estou sentindo esse enjoo. O senhor acha? Tá bom, vou marcar uma consulta.

No médico que o Doutor Paulino mandou eu procurar. Você tem certeza?? Eu estou grávida???

7 dias, 19 horas, 32 minutos. Alô, é da Granero? Oi, moço, sou eu, cancela tudo.

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Conversa com Fernando Schüler

Em um período de tempo extremamente curto, uma única cidade, a Florença do século XV, deu ao mundo mais pintores, arquitetos, políticos e intelectuais do que enormes regiões do globo durante séculos. E não foi a primeira vez que o fenômeno aconteceu: a Atenas do século V a.C. nos deu de Sófocles a Péricles, de Sócrates a Aristófanes. Obviamente, não são apenas as chamadas belas artes que são capazes de nos impactar desse modo: o fenômeno econômico-social da Alemanha ou do Japão do pós-Guerra, ou ainda a força criativa do Vale do Silício nos Estados Unidos são exemplos de que, para além das artes e da vida cultural, da economia à política, o florescimento de grandes sociedades é um fenômeno tão recorrente quanto fascinante, sempre marcado por uma aura de mistério.

Pois bem: o que falta (se é que falta) ao Brasil para viver uma explosão criativa que chancele o florescimento de nossa sociedade? Que energias precisaríamos mobilizar para que experimentássemos os picos de produção intelectual e econômica que caracterizaram muitas das épocas mais marcantes da Grande História das Gentes? Foi com essa questão em mente que Eduardo Wolf e Eduardo Carvalho conversaram com Fernando Schüler, cientista político e doutor em Filosofia. Schüler traz a marca do homem renascentista na amplitude de seus interesses, que se refletem em sua atuação profissional: foi Secretário de Estado de Justiça e Desenvolvimento Social no Rio Grande do Sul (2007-2010), diretor do IBMEC-RJ (até 2014), além de ser o criador e curador do Seminário Internacional de Altos Estudos Fronteiras do Pensamento. Nessa conversa, mais do que uma análise lúcida dos potenciais e dos desafios do Brasil neste século XXI, o leitor encontrará uma visão otimista e cosmopolita sobre o que nos espera.


AMARELLO: Kenneth Clark, em sua aclamada série de documentários Civilisation, afirma que não é possível que uma civilização floresça e se mantenha sem convicção. Você usou uma expressão semelhante num debate sobre as manifestações de junho de 2013, quando afirmou que parece faltar à nossa sociedade convicção. Qual é o nosso problema em matéria de convicções?

FERNANDO SCHÜLER: É um mistério por que algumas sociedades ou civilizações apresentam certo padrão de convicção e certo grau de consenso em torno de valores e outras não. Por exemplo, por que a democracia — que é o valor fundamental em torno do qual giram nossas convicções ou falta delas — se tornou um consenso nos Estados Unidos e no mundo anglo-saxônico e na América Latina isso não aconteceu? As explicações são variadas, certamente. Eu gosto muito de observar como os valores evoluem e diria que o fazem através daquilo que o filósofo e teórico cultural Kwame Appiah chama de “revoluções morais”. Em seu livro O Código de Honra: como ocorrem as revoluções morais (Companhia das Letras), ele cita o caso dos duelos: essa é uma tradição antiga que, do século XIX para o XX, vai ser erradicada. Dia desses li uma biografia de Schumpeter, que em 1909 entrou em um duelo com um bibliotecário da Universidade de Czernowitz, onde lecionava, para defender o acesso dos estudantes aos livros da biblioteca. Isso foi motivo de um duelo de espadas, o que hoje é impensável. Diz respeito à mudança nos consensos e nas convicções de uma sociedade. No caso da sociedade brasileira, quem estuda nossa terceira república, entre 1945 e 1964, percebe como a democracia era um valor escasso no sistema político. Pouca gente, seja no governo Goulart, seja na oposição, liderada por Carlos Lacerda, acreditava na democracia como um valor estratégico. Ocorre que o ciclo militar serviu como um aprendizado, o país soube conduzir uma transição pacífica e a democracia surge como um consenso, nos anos 1980. E assim prosseguimos até hoje. Eu concordo com esse argumento de que as sociedades precisam de convicção. O problema está em saber como surgem essas convicções. Eu diria que esse é o papel da cultura, do debate público, dos intelectuais: a perspectiva de um Norberto Bobbio, de um Isaiah Berlin. A perspectiva de longo prazo e a afirmação de valores.

A: Frequentemente nos deparamos com casos claros em que a cultura Ocidental parece estar de joelhos. Um caso recente, na Inglaterra, foi a aprovação pelo órgão responsável pelo ensino superior que as universidades britânicas segreguem mulheres em sala de aula e em conferências por motivos religiosos. Se os muçulmanos quiserem, dentro das salas de aula britânicas, segregar as mulheres, eles podem fazer isso em nome do direito à diversidade cultural. Parece que a convicção quanto ao que norteava os valores ocidentais até agora saiu do horizonte. Você acha que isso é um risco que a gente corre?

FS: Diria que esse é um dos grandes conflitos do século XX. O conflito entre o lento processo de afirmação dos direitos individuais e o multiculturalismo. O final do século é a época por excelência da globalização, da integração cultural, da internet e da explosão das migrações. A quantidade de migrantes no mundo é muito maior do que há cinquenta anos, apesar de muitas vezes parecer o contrário. Nós vivemos a era da mobilidade, de trânsito, e essa legião de povos com diferentes formações culturais que se dirigem à Europa causaram um tremendo choque cultural, inclusive com um recrudescimento de movimentos conservadores e segregacionistas. Por outro lado, causaram também uma reação um pouco desbaratada da esquerda, que tende a relativizar os direitos individuais diante do fato da diversidade cultural. Esse é um conflito que vai se diluir ao longo do século XXI. E a vitória será dos direitos humanos, dos direitos individuais. Existe uma grande linha de força na cultura moderna, uma afirmação gradual dos direitos individuais. Isto está lá na visão de Kant expressa na Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. A lenta formação de um direito cosmopolita, da grande federação das repúblicas, tem se concretizado, apesar de longos recuos, como o comunismo, o nazismo, o fascismo, as ditaduras na América Latina e agora o fundamentalismo islâmico. Compreendo estes episódios como percalços numa espécie de grande telos [fim] moderno. Não um fim como destino da modernidade, mas como uma tendência histórica que se produz a partir de razões bastante concretas: a informação que circula, os níveis de educação que crescem, as pessoas que se integram, a tecnologia que aproxima as pessoas, os níveis ascendentes de renda. Isso tudo favorece o processo gradativo de esclarecimento humano. Então é muito difícil que, daqui a quarenta ou cinquenta anos, ainda se tolere que as mulheres devam usar véu nas ruas de Paris e sejam humilhadas por seus maridos.

Numa visita recente ao Museu da Cidade de Londres, me chamou a atenção a imagem de uma criança pedindo esmolas na rua. Isso hoje é uma peça de museu em Londres. Quando Oscar Wilde foi preso, nos anos de 1890, havia crianças encarceradas com ele. As revoluções morais de fato acontecem, os costumes evoluem, os direitos se afirmam. Com contradições, com avanços, com recuos, mas é indubitável que há uma tendência positiva. Tento ser racionalmente otimista quanto a isso.

A: Com base na sua experiência, com uma atuação diversificada no poder público, como secretário de estado no Rio Grande do Sul, como empreendedor cultural, como ex-diretor do Ibmec, que tipo de forças um país precisa mobilizar para conseguir dar um grande salto cultural, econômico ou político?

FS: Tenho simpatia pela tese do economista Daron Acemoglu, a chamada visão institucionalista, segundo a qual o que define as perspectivas de um país ou região é um determinado tipo de modelagem institucional. Ela é, antes de tudo, uma tese com enorme apelo prático: a variável institucional é a que, por definição, é acessível à mudança. Não podemos mudar o clima e dificilmente mudaremos a “tradição cultural”, de uma região. As instituições são a variável sob controle. Eu acho que essa tese tem uma dupla vantagem: ela nos convida à ação e deixa claro que uma sociedade avança se consegue mobilizar as energias empreendedoras e inovadoras. No Brasil, por exemplo, há um alto custo para o empreendedorismo. Os custos de transação são muito altos, o nível de risco é muito alto, o crédito privado é escasso, embora o crédito público seja elevado. Classicamente, o empreendedor toma um risco limitado, pois o investidor toma boa parte do risco da inovação. E esse mercado não se consolidou no Brasil porque o investidor é um agente racional: ele observa o custo trabalhista, o ambiente institucional, as garantias jurídicas e de propriedade, todas aquelas características exaustivamente apresentadas no doing business, do Banco Mundial, em que o Brasil está em posição não muito vantajosa. No Brasil, um dos nossos maiores empecilhos é o custo de mão de obra — a nossa legislação trabalhista foi feita para grandes conglomerados fabris, numa época pré-internet, e continua em vigor. Eu diria que a variável institucional é a mais decisiva.

A: Como você concilia esse seu otimismo, que recai sobretudo no papel das instituições, com as avaliações de que o descontentamento das populações europeia e americana com as instituições está altíssimo?

FS: Diria que há uma alta dose de confiança no Brasil em relação a muitas instituições. A justiça eleitoral é uma delas. O Brasil tem um dos melhores sistemas de votação eletrônica do planeta. Nosso sistema financeiro, de um modo geral, tem alto índice de confiança. Nossa imprensa goza, de modo geral, de grande prestígio. Muitas áreas do Estado são altamente respeitáveis: o Ministério Público, a Polícia Federal, e recentemente tivemos uma afirmação espetacular do Supremo Tribunal Federal. De todo modo, quando falo de confiança, não trato sobre como as pessoas, individualmente, consideram as instituições públicas. Falo do estado de confiança, da disposição das pessoas para tomar risco, empreender, inovar. Há um elemento schumpeteriano aí. A questão seria, por exemplo: você topa abrir uma empresa, contrair crédito e contratar pessoas pela CLT? Acho que a grande função das instituições é dar estabilidade e conferir previsibilidade para que os agentes privados façam suas escolhas. E determinados modelos institucionais incentivam este ou aquele comportamento. No Brasil, por exemplo, há um grande incentivo para que as pessoa virem funcionárias públicas, porque há estabilidade rígida de emprego, porque o Estado paga, em geral, mais do que o mercado, porque há um generoso sistema de previdência pública. Há um sistema de incentivos aí, cujo resultado são centenas de milhares de jovens brasileiros, que poderiam estar pensando em criar um novo negócio, envolvidos na chamada indústria dos concursos públicos.

A: Mas isso não explica o descrédito das instituições políticas, especialmente os partidos e a própria noção de democracia representativa.

FS: Sobre a democracia representativa, eu gosto muito de uma observação de Norberto Bobbio, segundo a qual há um elemento saudável na abstenção eleitoral, típica em qualquer democracia avançada. Sendo o voto facultativo, como deveria ser, metade (um pouco mais, um pouco menos) da população, dependendo da época, vota ou deixa de votar. O que pode ser um gesto de confiança, como quem diz “a minha vida está bem, não vejo grandes diferenças entre os postulantes, os partidos, as ideias, etc.”. Em qualquer democracia avançada, as ideologias se aproximam, há uma certa confiança no processo de seleção que é próprio do sistema político. Além disso, não se inventou nada melhor do que a democracia representativa até hoje como forma de ordenar a cooperação política. Alguns falam em democracia direta, em “democracia participativa”, mas há de fato alguma experiência sistemática, em funcionamento, nesta direção, em alguma parte do mundo? Isto não quer dizer que não há espaço para exercícios de participação direta dos cidadãos. O risco é que a democracia se torne refém das minorias organizadas e barulhentas. A boa democracia precisa encontrar a medida do bom senso. Um certo conservadorismo encontra aí sua melhor definição: o lento aprendizado, o respeito ao cidadão médio, a proteção em relação aos grupos de interesse, a prevenção contra o populismo e a fraude da ideologia.

A: Há uma grande aposta no potencial transformador da educação. Assim como durante décadas os economistas estudaram a inflação, hoje há um enorme esforço concentrado em temas de economia e educação, economia e desenvolvimento. Quais são os nossos desafios centrais na área?

FS: A grande maioria — um número superior a 80% — dos alunos do ensino básico hoje são frequentadores das escolas públicas, que eu chamo de escolas estatais. Então o país precisa fazer duas coisas. Primeiro: tornar a rede pública mais eficiente, o que tem sido feito em alguns estados. É preciso implementar regimes de metas, profissionalizar a gestão. Essencialmente, é preciso introduzir os conceitos de mérito e de accountability no interior das escolas. Isto é muito difícil. As corporações de professores, protegidos pela estabilidade no emprego, e pela fragilidade dos governos, não querem ouvir falar nisso. A segunda coisa a fazer é evitar o crescimento da rede de ensino diretamente gerenciada pelo governo. Nossa elite é cínica quanto a isso. Defende o ensino estatal, de baixa qualidade, para os pobres, enquanto as classes média e alta há muito tempo já migraram para o ensino privado. Isso é uma aposta no aprofundamento de nosso apartheid social. É evidente que é preciso tornar o setor estatal mais eficiente, mas devemos fazer uma transição para outros modelos, capazes de promover uma real igualdade. Não é possível que uma criança, por vir de família com maior renda, tenha acesso a uma educação altamente qualificada, e que uma criança de uma família pobre seja condenada ao ensino estatal. O cinismo de nossa elite consiste em dizer o seguinte: o estado cuida dos pobres, ok? Se o estado não funcionar, a gente tenta melhorar. Mas se isso não acontecer, e lá se vão dez, vinte, trinta anos, não tem problema. Afinal, “a gente tentou, não?”. Trata-se de uma paciência infinita com a má educação oferecida aos mais pobres, e paciência nenhuma com a educação que recebem suas próprias crianças, logicamente em boas escolas privadas. Trata-se de um entendimento perfeito entre o ideologismo irresponsável da esquerda e o conservadorismo também irresponsável da elite. É esse acordo tácito que sustenta o apartheid educacional brasileiro.

A: Mas apostar no ensino estatal não é a melhor alternativa para os menos providos?

FS: Não. É só observar qualquer avaliação (Pisa, Enem, Prova Brasil, etc) para ver que não é. O Estado é capaz de fazer muitas coisas bem. Sabe fazer uma eleição sem fraude com mais de cem milhões de eleitores, pagar em dia o Bolsa Família, recolher as declarações de IR pela internet, sem falhas, mas não consegue administrar uma escola, um hospital, um presídio, um asilo ou museu. Quem duvidar, faça uma visita aos museus estatais do Rio de Janeiro. Ou aos presídios estatais, em qualquer estado. Na tradição clássica do welfare state, o Estado tem funções redistributivas, tem funções previdenciárias e tem funções de prestação de serviços. É esse terceiro elemento que falhou, no Brasil, em função das regras de funcionamento que criamos para nosso setor público. Quem duvidar disso, tente gerenciar uma escola com a Lei 8.666, o regime de estabilidade dos servidores e nenhuma autonomia administrativa e orçamentária. O ponto é que a incapacidade gerencial do Estado levou a classe média, com todo direito, a contratar o setor privado, a saúde privada, escolas privadas, a segurança privada. Por que não viabilizar essa alternativa aos mais pobres? Um bom programa nesse sentido foi o Prouni, que permitiu pela primeira vez o trânsito entre o financiamento dos indivíduos mais pobres e a oferta de educação privada. O que é o Prouni senão um programa de vouchers na área da educação? Esse tipo de programa foi estigmatizado durante anos no Brasil pela esquerda, por intelectuais e pedagogos, até que foi implementado pelo governo do PT, pelo então ministro Tarso Genro. E o programa é um sucesso. Ele tem um custo burocrático zero, não produz máquina pública, e cria um profundo senso de igualdade entre pessoas de faixa de renda muito desiguais. É um sistema perfeito de voucher de educação. Por que nenhum intelectual brasileiro reclamou? Por que todos aqueles educadores e pedagogos que vociferaram contra o sistema de voucher não vociferaram contra o Prouni? Terá sido porque foi o PT que implementou? Então o que eu sugiro é a extensão do sistema do Prouni para o ensino fundamental. Será nossa via de ruptura com o apartheid socioeducacional.

A: Qual é, na sua avaliação, o papel que a cultura pode desempenhar nessas mudanças, nesse renascer do Brasil? Dado o histórico que você tem com o Fronteiras do Pensamento, que já trouxe vários prêmios Nobel, escritores, filósofos, cientistas, levando isso para uma plateia variada, inclusive com projetos voltados às crianças nas escolas públicas, tanto do Rio Grande do Sul quanto agora aqui em São Paulo, qual é o efeito de trazer um Vargas Llosa, um Salman Rushdie, um Michael Sandel para debater aqui?

FS: A frase não é original, mas sempre significou muito para mim: “ideias tem consequência”. Eu estava escrevendo um artigo recentemente sobre a trajetória do jovem Fidel Castro. Fidel Castro fez a revolução cubana em grande medida a partir de suas leituras na Universidade de Havana, nos anos 1940. Ele tinha dezoito, vinte anos e lia compêndios marxistas-leninistas (por vezes andava com o Mein Kampf, de Hitler, embaixo do braço). Ele poderia ter lido Isaiah Berlin em sua juventude, ou John Stuart Mill, ou James Madison, ou os ensaios do Montaigne. Ele poderia ter aprendido sobre a moderação, poderia ter lido o Cândido de Voltaire e aprendido sobre os perigos da obsessão política e pelo poder. Ele poderia ter criado uma grande fundação em Cuba para ajudar a disseminar as ideias de liberdade, consolidar uma democracia pluralista. Poderia, em suma, ter adotado uma outra base de valores, e Cuba talvez não tivesse se transformado na mais longeva ditadura da América Latina. Mas Fidel fez as leituras erradas. Veja-se a transformação do jovem Vargas Llosa em um homem maduro e democrata, hoje um dos grandes defensores das liberdades na América Latina. Llosa é leitor de Camus e Octavio Paz. Ela mostra o poder das ideias, da leitura, da disseminação do debate, da força das palavras. Aí está o papel da cultura. O que mais me encanta no Fronteiras do Pensamento não é apenas realizar uma palestra com um grande nome; é antes o efeito irradiador que a imprensa produz, que as revistas, as entrevistas, a internet e, especialmente, o incentivo à leitura, produzem. Em particular, os efeitos que isso produz nas novas gerações, que ainda estão formando suas próprias ideias. Eu lamento que o Brasil não forme instituições culturais fortes como nos Estados Unidos e na Inglaterra, como é o caso da tradição dos think tanks, das fundações com endowment funds. Tive a chance de criar, no Rio Grande do Sul, a nossa primeira legislação de incentivo fiscal à formação de fundos de endowments: instituições que não dependem do governo e que irradiem cultura, apostando naquilo que muitas vezes é considerado inútil no ambiente latino-americano.

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Uma pureza displicente

por Eduardo Andrade de Carvalho

Existem ao menos dois livros fundamentais sobre o homem renascentista: O Príncipe, de Maquiavel, e O Cortesão, de Baldassare Castiglione. Maquiavel escreveu um tratado político – sobre como o homem público deve agir. Castiglione escreveu sobre o homem em sua vida privada: O Cortesão é um manual sobre como deve ser e se comportar um perfeito homem da corte renascentista. As articulações políticas de qualquer câmara de vereadores do interior do Brasil hoje bastam para provar que Maquiavel estava certo – e que, mesmo sem ser amplamente lido, foi totalmente assimilado. O príncipe inaugurou o político moderno, a realpolitik. O tratado de Castiglione, em comparação, é pouco lido, quase esquecido, e praticamente não se fala mais em sprezzatura, a principal característica exigida do cortesão ideal.

Sprezzatura é o oposto de afetação: é uma espécie de displicência calculada, que “demonstre que o que se faz e o que se diz é feito sem esforço e quase sem pensar”. O próprio livro de Castiglione, estruturado em forma de diálogo e escrito em lombardo (e não em latim ou toscano, que seriam opções mais, digamos, eruditas), respeita esse princípio. O Cortesão se passa em quatro noites, em 1506, no palácio do Duque de Urbino – um dos mais bonitos da Itália –, em que membros da mais alta aristocracia italiana estavam hospedados para receber o papa, que deixou os aposentos no dia anterior. O Duque, que tem saúde frágil, precisa dormir depois do jantar, enquanto sua mulher, Elisabetta Gonzaga, entretém as visitas com jogos de conversação. O livro de Castiglione – que serviu à corte de Urbino – é a reprodução de uma possível conversa entre essas pessoas sobre as características exigidas ao cortesão perfeito. A obra foi amplamente traduzida na época – inclusive na Inglaterra – e, em grande medida, fundou a nossa noção de homem educado.

E a primeira recomendação é esta: ter uma certa leveza, uma delicadeza natural nos gestos, na conversação, na forma de se vestir, que faça com que o esforço desapareça mesmo na execução das tarefas mais exigentes. Porque o esforço – a aparência de esforço, na verdade – é o maior inimigo da graça. Não há nada mais entediante (nem mais burro, aliás) do que um discurso muito pensado para parecer inteligente – em que o excesso de cálculo aparece na escolha de palavras difíceis, raras. Esse estudo exagerado, quando é visível, compromete a sensação de naturalidade: como no caso do dom Pierpaolo, narrado por dom Roberto de Bari, que dança “com aqueles saltaricos e as pernas esticadas nas pontas dos pés, sem mexer a cabeça, como se tudo fosse de madeira, com tanta atenção que parece que vai numerando os passos. Quem é tão cego que não veja nisso a desgraciosidade da afetação?”.

Sprezzatura é, portanto, uma espécie de técnica de esconder a técnica – e afastar dos modos do homem (e da mulher, a quem a parte final do livro é dedicada) tudo que seja pedante, pomposo, pensado. É a busca por um equilíbrio natural e delicado em tudo que se faz. E o cortesão de Castiglione deve fazer praticamente de tudo: enfrentar guerras; estar familiarizado com os grandes livros; conhecer música e tocar um instrumento; caçar; conversar agradavelmente; desenhar e pintar; se vestir modestamente, mas com cores, listras e bons tecidos; cultivar os amigos; jogar os jogos da corte; etc. Cabe ao cortesão, aliás, tudo isso fazer com competência, mesmo que não perfeitamente: lembrando que o mais importante é que tudo pareça sempre improvisado, que seja com a “pureza displicente” que encontramos, não por acaso, nos gestos dos personagens do Casamento da Virgem de Rafael – provavelmente o mais fino, mais equilibrado, mais elegante pintor renascentista.

Rafael Sanzio nasceu em Urbino, e o retrato que Rafael pintou de Castiglione talvez seja o melhor retrato seu a que temos acesso hoje. Vasari, aliás, encerra a sua biografia de Rafael com um triste poema que Castiglione escreveu sobre a morte do pintor, que acaba assim: “E a morte se indignou porque [tu] podias devolver a alma aos mortos e porque tu, desprezando sua lei, reparavas aquilo que o longo passar do tempo abolira. Assim, mísero, vencida tua primeira juventude, caíste, lembrando-nos de que todos nós e tudo o que é nosso haveremos de morrer”. Haveremos, mas, enquanto isso, temos obrigação de preservar para sempre, se não os homens, a obra e o espírito de alguns deles.

#16RenascimentoCulturaSociedade

Renascimento perpétuo

por Emmanuel Rengade

Foto de Tinko Czetwertynski

No dia 30 de junho de 2002 – dia em que o Brasil ganhou a Copa do Mundo contra a Alemanha –, sofri um acidente quase fatal. Após ter deixado meu lucrativo emprego em Londres para renovar, sozinho, durante mais de um ano, uma pequena pousada em Picinguaba – uma minúscula vila de pescadores perto de Paraty –, resolvi fazer um break e ver o jogo na cidade. Não conhecia ninguém em Paraty, pois havia seis meses que só trabalhava. Na euforia do dia, encontrei algumas pessoas que me convidaram para assistir ao jogo. A Copa do Mundo era sediada no Japão e na Coreia, por isso a partida seria de manhã. Começamos a beber na véspera, continuamos durante o jogo e depois de o Brasil ganhar o título. A celebração duraria todo o dia.

No final desse segundo dia, acabamos em um barco a motor para tomar um banho de mar perto de uma ilha, na frente de Paraty. O barco era pequeno e meu novo amigo, Pipo – que um minuto depois salvaria a minha vida –, tirou a roupa e mergulhou da proa do barco, com seu impulso fazendo com que o barco girasse mais ou menos 180 graus, enquanto eu, sem perceber, me trocava. Mergulhei logo depois, de cabeça, pela frente, de onde Pipo mergulhara e onde eu pensava estar o oceano, então encontrando rochedos… Esta é minha última memória: um cachorro estava latindo…

Minutos depois estava consciente, coberto de sangue, e alguém costurava a minha cabeça no cais de Paraty. Colocaram-me num táxi para Mangaratiba, o lugar mais perto para uma ressonância. Não tinha nada. Voltei sozinho para Picinguaba e, chegando, encontrei meu vizinho, Marujo, que me viu com a cabeça enfaixada e me perguntou sobre o que acontecera. Falei-lhe que alguns alemães de má-fé insistiram em falar que a final fora roubada e que, portanto, tive de me meter na briga para defender a honra do Brasil (uma referência sutil à final entre França e Brasil em 1998…), e que, inevitavelmente, fiquei um pouco ferido…

Ele pareceu impressionado em como me levantei para defender seu país. Falei que eu era agora um caiçara legítimo, motivo pelo qual aquilo era totalmente normal. Depois, contei para ele a lamentável verdade. Desta vez, não pareceu nada surpreso ou impressionado, e simplesmente falou: “Ah, então você nasceu de novo!” Percebi que isso era exatamente o que acontecera. Tive uma segunda vida de graça! O que iria fazer com isso? Um sentimento de felicidade e força maravilhoso me invadiu. Depois de um ano muito difícil trabalhando, contra o conselho de todo mundo, para fazer nesse lugar o primeiro hotel boutique do país, sem dinheiro, num ambiente desconhecido e longe das cidades, consegui em pouco tempo transformar a Pousada Picinguaba em um dos pequenos hotéis de charme do Brasil. Tinha renascido. Nada podia conter minha energia renovada.

No decorrer da vida, morremos e renascemos muitas vezes, sem que isso seja necessariamente uma morte clínica. É um processo natural, como na natureza. Quando uma árvore recebe um raio, ela continua a prosperar; às vezes mais forte. Quando o mesmo raio provoca um incêndio, a floresta queima, as árvores mais resistentes sobrevivem, as sementes da grama germinam de novo, tudo renasce, regenera. Quando se corta uma bananeira, ela já cresce de novo, indefinidamente. A vida é muito forte. Sempre renasce. É muito difícil apagá-la. Nos desertos mais áridos ou frios, existe sempre vida. A contemplação da natureza nos ajuda a entender que temos uma ideia inexata da vida e da morte: uma não é o inverso da outra; mas a sua condição e necessidade. Celebramos os nascimentos, não as mortes. Outras culturas (no Xingu, por exemplo) fazem o contrário: o nascimento é natural, a morte é celebrada. A morte é a finalidade da vida.

Tenho 25 anos. Estou dirigindo, moro em Lisboa. De repente, em pleno centro da cidade, um carro passa no sinal vermelho e bate no meu a 80 quilômetros por hora. Não estou com o cinto de segurança. Em uma fração de segundo, o carro atinge a parte da frente do meu veículo, do lado do condutor. Uma fração de segundo mais tarde, eu batia no carro da frente, passando através do vidro. Não me machuco. Saio, chocado e bravo, gritando para o condutor imprudente. De repente, depois de meses sem conseguir, eu falo português! O meu carro está completamente fora de uso, sem chance de conserto. Vou para a companhia de seguro. Recuso-me a sair de lá sem um cheque. O cheque é cinco vezes o valor que paguei no meu carro na França (isso foi antes do euro e o meu veículo era um Turbo, na época muito valorizado em Portugal). Pela primeira vez na minha vida, tenho dinheiro no bolso. Mando-me para o Brasil. Viajo um ano com o dinheiro. Nunca mais voltei. Comecei uma outra vida. Renasci.

Tenho 30 anos. Estou agora no meio do mato, no interior do Ceará. Sou um executivo de uma grande empresa americana. Resolvi entrar na maior corrida de aventura de todos os tempos, no norte do Brasil. Oitocentos quilômetros em dez dias, a pé, de veleiro, de caiaque no mar, de bicicleta. Mas acabaram as minhas forças e fiquei perdido no mato. Estou numa rede dentro de uma casa simples, onde há uma paz incrível. Tenho febre. Estou delirando. Escuto um helicóptero me procurando, mas não tenho força nem vontade de me levantar. Estou bem, cercado do amor invisível das pessoas humildes que me recolheram. Não posso andar, tenho os pés machucados. Estou bem, muito bem. Corri durante anos, agora finalmente parei. Vou sair agora desta correria. Vou deixar de ser executivo, vou montar um hotel na praia, vou reaprender a viver. Renasci.

Tenho 35 anos. Estou em um lugar muito remoto da Patagônia, uma fazenda esquecida. E tão remoto que está cheio de animais selvagens, coelhos, raposas, pumas. Em um lago, pesco uma truta gigante, e a preparo para comer. Estou com uma linda mulher. Tomamos um banho num lago frio da montanha. Adormecemos no sol de verão. Quando acordamos, estamos cercados de uma dezena de lindos cavalos selvagens, que se aproximaram, curiosos… o momento está incrível. A natureza nos invade com uma evidência total. Algo dentro me toca profundamente. Sem que isso seja planejado, eu a peço em casamento. Não vejo outra coisa a fazer. Ela sente que eu vou fazer isso. Já entendeu, está pronta. Ela aceita. Ela se chama Filipa, que significa “que ama os cavalos”. Encontramo-nos a primeira vez faz apenas seis meses, numa praia, que se chama a praia da Fazenda. Agora eu sei que a minha vida vai ser compartilhada com ela até a minha morte. Renasci.

Mais tarde, sem bem entender como tudo isso ocorreu, Filipa e eu chegaremos a cuidar juntos de uma fazenda cheia de cavalos, natureza selvagem e lagos. Começamos, sem saber porquê, a seguir os caminhos que poderiam ter levado a uma fazenda, sem planos nem dinheiro, até que um dia ela estava lá. A fazenda ficou, pouco tempo depois, nas nossas mãos, como se fosse algo muito natural. Um dia percebemos que havia nesse lugar algo mais profundo, que nos ligava a uma realidade ancestral. Esta fazenda foi criada e construída por franceses que eram da minha cidade na França, Lyon, numa época em que o Brasil ainda era de Portugal. Filipa é portuguesa, e a família dela morou no Brasil nessa época. Gostaram muito do país, dedicaram-se a ele, mas tiveram de voltar à Lisboa e sempre tiveram saudade do Brasil.

Agora, por causa de alguns cavalos, Filipa voltou. É como se tudo, de uma forma totalmente inexplicável, nos impelisse a fazer o que fazemos hoje: construir, no Brasil, um país que não é o nosso, um lugar para as pessoas se reconectarem, um lugar de renascimento. A verdade é que esses lugares, a fazenda e o país, nos chamaram. Nessa história, o renascimento se confunde com o nosso destino.

É possível que, a cada vez que seguimos o nosso destino, na verdade renasçamos.

No México, centenas de milhões de borboletas Monarca vêm a cada ano do Canadá, sempre no mesmo lugar. Elas fazem mais de 5 mil quilômetros seguindo os ventos, e voltam do mesmo jeito. Mas, no decorrer deste ano, passam-se seis gerações; elas renascem seis vezes. Mesmo assim, sempre acham o mesmo lugar…

Somos bichos da natureza. Ela é o nosso ambiente natural e original. Não é uma questão de preferir campo ou cidade. É um fato. Por isso, por mais que esqueçamos, a nossa memória ancestral se lembra disso. Este ciclo da morte e da vida está gravado dentro de nós. As regras da natureza, então, aplicam-se a nós também.

No decorrer de nossa vida renascemos várias vezes. Talvez renasçamos um pouco todos os dias. Talvez, como na natureza, a gente nunca morra.

#15TempoCulturaLiteratura

Mas tudo mudou

por Vanessa Agricola

Obra de Ricardo Alcaide

Sabe aquela turma que não tem mais nada a ver com a sua vida, mas que de vez em quando você ainda encontra porque, sei lá, faz falta ter uma turma. Aquele monte de gente em casa, o telefone tocando sem parar. Hoje em dia ninguém liga! Toca o telefone é a minha mãe, ou meu irmão, é sempre família. Ou então o cara da obra, pedindo mil desculpas, está muito ocupada, pode falar? Gente, eu não sou a Dilma. E se eu não puder falar não vou atender, simples. Mas o Facebook acabou com o telefone. Agora todo mundo só manda mensagem. Chega aquele: ai, que saudaaade, vamos marcar! E ninguém marca porra nenhuma. Qualquer jantarzinho é a maior burocracia, uma tá trabalhando, a outra o filho tá com febre, o outro tem que acordar cedo… Eu me pergunto, é todo mundo tão ocupado mesmo?

Depois que eu casei a coisa piorou muito. Eu acho que as amigas solteiras acham que porque você casou você não quer mais falar com elas. E se você tiver um filho então, nossa, aí elas acham que você morreu. Meu Whatsapp só tem bate-papo das casadas com filhos. Uma quer saber do dentinho, outra do pediatra, ninguém mais fofoca?

E visita? Hoje chega a ser uma afronta você aparecer assim na casa de uma pessoa. O pessoal até recebe, em dia de aniversário, festa, mas não tem mais essa de chamar os amigos em casa, ver um filminho, fumar uma maconha. Pensando bem, quando eu fumava maconha eu recebia bem mais visitas. A maconha une as pessoas. Quando eu fui morar sozinha, fui a primeira das amigas a alugar um apartamento, ali perto da GV. Eu chegava do trabalho e já tinha gente na portaria, me esperando pra fumar maconha. Eu até me irritava, daí a gente bebia, comia, eu dava risada. O apartamento era minúsculo mas vivia cheio. Acabava uma dormindo no sofá, outra no chão, principalmente em dia de balada. Outra coisa que eu sinto muita falta. Outro dia liguei pra Paulinha, carioca, falei, pô, Paulinha, vamos dançar? E ela, Vaness, a night tá nas trevas. Quer ir jantar? E lá fomos nós encher a cara de Coca Zero no Frevinho da Augusta.

É, meu povo, tá feia a coisa. Eu ando tão carente que aceitei esse convite dessa turma nada a ver, mas que eu conheço desde o colégio, pra tomar uns drink nesse Carnaval. A gente tem um passado em comum. Alugamos uma casa na Praia do Rosa, num réveillon, era uma casa looonge, porque ninguém tinha dinheiro, a gente andava muito, porque ninguém tinha carro, e ninguém tava nem aí pra nada disso. Todo mundo andava junto, quilômetros e quilômetros, rachando o bico. Na noite do ano novo, resolvemos tomar um Iglu, um ecstasy. Bom, chegando na festa, não deu cinco minutos eu fui comprar uma água e conheci um gordo obeso. Foi amor à primeira vista. Olhei bem nos olhos dele, vi uma pessoa liiinda, beijei o cara. As meninas passaram a noite tirando foto nossa (não tinha Orkut ainda, graças a Deus), e da outra beijando o Tomba, um cachorro sarnento que ela encontrou na areia. Sabe esses cachorros da Volta dos Mortos-Vivos? Esse Iglu era muito poderoso. A nega passou a festa com o bicho no colo, depois levou pra casa, e o Tomba ficou lá, virou o mascote da turma…

Mas tudo mudou. Hoje quando a gente se encontra, a única coisa em comum são essas histórias. Pelo menos 85% da conversa é lembrar, os outros 15% sobram pra perceber que nenhuma tem mais nada a ver com a outra. A mais putona virou toda certinha, a mais santinha virou uma puta chata… reclama da empregada, da babá, sabe essas coisas? E justo a do Tomba tá igualzinha. Viraram duas dondocas vestidas de onça. Depois tem três solteiras que só falam de um bar tal cheio de griiingo. Elas se empolgam. Ah, os italianos! Sério? Os italianos? Ah, brasileiro é tudo careta! E nós da outra ponta, casadas com brasileiros, ficamos quietas.

Por fim, alguém retorna às lembranças do Guarujá, quando roubaram nossos tênis na feirinha, e dito isso, eu pago a conta. Chego em casa, vejo meu filho dormindo pela babá eletrônica, me aninho nos braços do meu marido careta, e volto a sentir o quanto a vida é boa.

#15TempoArteArtes Visuais

Portfólio: Ricardo Alcaide

No prefácio do catálogo de sua exposição de 1964, Arquitetura sem Arquitetos (Uma Breve Introdução à arquitetura Sem Pedigree), que ocorreu no Museu de Arte Moderna em Nova York, Bernard Rudofsky escreveu que, na época, tratava-se de um tema “tão pouco explorado que ainda não tem um nome.” Para Rudofsky, um pioneiro nos estudos de arquitetura vernacular nos anos 1960, a história da arquitetura ocidental não passava de um “catálogo de arquitetos famosos por celebrar o dinheiro e o poder”, cujo conjunto de obras limitaria as possibilidades para referências arquitetônicas futuras. Acreditava ser fundamental explorar outras histórias arquitetônicas pelo mundo. Nas cinco décadas conseguintes, muito foi feito, notavelmente por Paul Oliver em sua obra-prima Dwellings (1987). Porém, para mim, a obra magra e ilustrada de Rudosfky permanece essencial e inspiradora.

Rudofsky reconhece a estranheza de sua frase, “arquitetura sem pedigree”, e oferece algumas nomenclaturas alternativas: arquitetura vernacular, anônima, espontânea, indígena, rural. Esta lista é uma ponte para começar a pensar nas obras mais recentes de Ricardo Alcaide, que passou anos trabalhando entre três capitais – Caracas, Londres e São Paulo. Cada vez mais o trabalho de Alcaide foca as possíveis soluções arquitetônicas às situações sociais. Se interessa especialmente nas contribuições, muitas vezes desconhecidas, da arquitetura vernacular global ao Movimento Modernista na América Latina. Uma das questões perenes de sua prática é como pessoas, em ambientes diversos, lidam com a exclusão socioeconômica.

Em seu livro Dwellings, Paul Oliver nota que moradias nômades, “sejam elas erguidas rapidamente para uso imediato ou pernoitadas, para uso mais intermitente ou prolongado, ou para ocupação semipermanente, serão condicionadas de certa forma pela sua função dentro da vida econômica e social do grupo”.

O projeto de Alcaide está engajado, poética e politicamente, dentro de um discurso de intercâmbio multicultural. Também se interessa profundamente pelos diálogos físicos e psicológicos entre a superfície do corpo – a pele – e a arquitetura temporária. Em fotografias dos sem-teto em Londres, por exemplo, seus corpos marcados pelas suas experiências, doenças e a poeira da cidade, foi desenvolvida uma série em que detalhes da pele desses londrinos foram digitalmente transplantados sobre imagens dos outdoors gigantes típicos de São Paulo, e transformados em réplicas minúsculas em fórmica.

Para viver plenamente, temos que poder sonhar. O título da obra conjunta de Alcaide, A Place to Hide (Um Lugar para se Esconder), propõe essa ambiguidade fundamental, sem oferecer respostas claras. Uma obra parece oferecer uma resposta, mas imediatamente outra desfaz esse entendimento. Um grupo de imagens nos convence que é um catálogo de um tipo de humanidade que se prolifera em zonas de crise, mas outro logo nos mostra detalhes de moradias e espaços públicos e privados totalmente diversos.

Contrabalançado no espaço entre o poético e o político, a justaposição das imagens e objetos de Alcaide passa livremente entre o lúdico e o brutal, ou, materialmente, do macio ao duro. As imagens, expostas sob o título original, A Place to Hide, suscitam perguntas delicadas e engraçadas através de objetos como: uma pia, um canto, vasos de plantas, arranha-céus de última geração… Cultura alta e baixa convivem facilmente nas imagens de revistas de design recortadas e reconstruídas nas formas de edifícios modernistas; a arte gráfica desbotada dos muros da cidade refeita em esculturas de fórmica imaculada. Ao propor muitos tipos de arquitetura dentro do mesmo arquivo, A Place to Hide, Alcaide nos volta o olhar, repetidas vezes, às origens do abrigo.