a fecundidade da vida estala na estante frente a mim minha mãe adolescente em 12 retratos num só quadro em cada um um aspecto da sua bela florescência coisa recente do pós-guerra década de 1940 ancestral para mim não para o livro sobre a Idade Média que o quadro recobre porém para mim é o arcano que não poderia conhecer a não ser pelos causos de família contados por gerações de rapsodos familiares entre eles ela que numa fotografia com meu pai da década de 1970 que fui eu mesmo quem tirei como se cresce rápido estão na Piazza Michelangelo com Florença ao fundo enlutada com a morte de Allende de nada ser adulto já sou e meu tempo que viverei já se mistura ao Renascimento que em Brunelleschi vim tanto a amar e ao país próximo em que começo a perceber teve o trágico destino do meu mas uma outra fotografia verde e cinza tão verde quanto o cinza é cinza tirada na Irlanda por minha filha já no século XXI me leva à paz sempre possível ao verde que te quero verde qual seja o cinza a acinzentar e há vento nuns galhos da paisagem pouco mas o vento sempre é vento na rapsódia das fotografias na minha estante o mundo meu pequeno mundo parece aparece no grande mundo com seus encantos nos pequenos presentes tudo são presentes sobre os livros da minha estante sentado estou sobre o chão de pedra com a lareira às costas da Fallingwater num cartão de viagem mandado por meu pai os Jogadores de Cartas de Cézanne com cachimbos e mãos de artesãos lembram meu avô paterno meus netos meus filhos a família inteira desfila seus tempos nas prateleiras na cerca da fotografia de todo ano de todo julho na fazenda e numa obra de outras fotografias de minha filha caço codornas belo é o trabalho do cachorro o resto é o animismo de homem e caça que provei um dia meu filho na Austrália meu filho por toda parte meu netos pulam alto ao mesmo tempo patriarca sou numa foto de agora aos 70 anos década de 2020 um vaso comprado no Alhambra ao lado um simples vaso escandinavo com a forma da água que transborda do vaso de núpcias da antiga Grécia dado a meus pais pelos quatro filhos nas bodas nas núpcias deles a de 50 anos ouro de cor leitosa do líquido do avoengo banho de núpcias do amamentar da merenda da escola quando criança e criança sempre serei a imensidão da história é inalcançável tantas voltas tantos desvios tantos pecados alguma virtude para voltar ao início os livros estão bem arrumados da lógica até a poesia passando por tudo desse tudo que de tudo sei um pouco de nenhum pouco sei um tudo e menino confesso não fui o bravo Aquiles talvez o solerte Ulisses pois à casa à casa de todas as minhas casas enfim retorno
A Amarello celebra 15 anos de arte e cultura com o lançamento da edição 51 — O Homem. Tematicamente inspirada no segundo capítulo de Os Sertões, de Euclides da Cunha, a revista revisita criticamente a obra para pensar a identidade nacional.
Quinze anos é muito tempo. Pensar no mundo de quinze anos atrás e no de agora chega a dar vertigem, de tantas mudanças. Os smartphones se tornaram mandatórios, a política voltou a partir afetos, e as redes sociais dominaram a comunicação mudando a forma como interagimos e compartilhamos informações. O papel perdeu o lugar que tinha, as mudanças climáticas se agravaram, as lutas sociais ganharam uma força nunca antes vista… Fato é que, nesse período, a história moderna assistiu a várias rupturas com o passado e, depois da pandemia, adentramos, de fato, em uma nova era.
Como é dever de uma revista documentar o seu tempo, e eu me interesso pelo tempo em que vivo, proponho para esta edição comemorativa uma reimaginação dos cinquenta temas que estamparam nossas edições, traçando um panorama da vida de lá para cá.
Também para esses quinze anos, montamos o espetáculo Do pré-homem à revolta, apresentado no dia 3 de dezembro de 2024, no Teatro Oficina, baseado n’O Homem, a segunda parte do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. Resgatar esse livro hoje, um retrato fiel de sua época e de todas as suas conjunturas, nos coloca de frente a um espelho que escancara nossas diferenças abissais, ainda tão vivas e não enxergadas. Euclides é o seu pré-conceito, o alto da favela é seu legado, o sertanejo, sua pátria e o apagamento de Canudos, tão em evidência hoje. Euclides também nos inspirou a criar a edição que você tem em mãos. “O Homem”, o ser humano, que de um jeito ou de outro, abarca todos os temas que trabalhamos nesses anos — a cultura em brasileiro, o feminino, o masculino, os sonhos, as emoções e questionamentos que nos fazem existir. São os tempos que correm, correram e ainda hão de correr.
Fazer esta revista me transformou. Cresci, rodei o país, conheci muita muita gente, conheci muita muita gente, deixei para trás o Brasil idealizado e aprendi a respeitá-lo como ele de fato é, fruto do sincretismo, da mistura, da bagunça que tanto gosto, de todos os povos que chegaram e dos que aqui sempre estiveram. Olhemos para eles. Meus olhos se abriram para o que antes eu não via. Me dá orgulho ter criado um veículo que não tem medo de abraçar a fluidez e que oferece conteúdo sério e pontos de vista diversos para que leitores o interpretem à sua maneira, sem imposições. A série Brasa, de Gleeson Paulino, que generosamente ilustra as páginas desta edição, representa bem esse crepitar interno, sutil no olhar, mas forte o suficiente para mover montanhas.
É nisso que acredito. Páginas, ideias e uma esperança irrefreável na transformação constante de cada um de nós.
Apesar de tudo, me animo com o futuro
Obrigado por estar aqui, Tomás Biagi Carvalho Canudos, 14 de novembro de 2024
Há uma poesia discreta na dança do fogo, um equilíbrio entre luz e sombra que nos conecta ao essencial. É algo capaz de capturar nossa atenção, convocando-nos ao momento presente. Inspirada por essa força primitiva e contemplativa, a WENTZ apresenta Objects for Silence, uma coleção de acessórios que fornece ao habitar cotidiano rituais de calma e introspecção. A chama, com seu movimento sereno, se torna o epicentro de uma proposta que une forma, funcionalidade e emoção, refletindo o espírito de um luxo silencioso.
Desde sua fundação em 2016, a WENTZ, liderada pelo designer Guilherme Wentz, tem se consolidado como uma marca de design autoral que celebra justamente a serenidade e a simplicidade. Com a nova coleção, essa visão alcança novos patamares, sendo um convite para desacelerar e encontrar, a partir da convivência com objetos cuidadosamente criados, um refúgio para os sentidos. No mundo atual, que parece avesso à frenagem, cada peça acaba sendo uma ode ao silêncio e a tudo que ele quer dizer. Todas constituem um espaço para respirar em meio ao ritmo acelerado tanto da vida urbana quanto da digital.
E o “como” da história toda é o mais interessante. Afinal, como invocar silêncio em peças de mobiliário? Para dialogar diretamente com a luz e a chama, a coleção apresenta criações que exploram materiais como alumínio e inox em formas minimalistas e geométricas. Porta-incensos, lamparinas, castiçais e luminárias portáteis — cada objeto foi desenhado com a intenção de ressaltar o protagonismo da luz e do fogo, sem competir com sua essência. Essa simplicidade calculada não é apenas estética, ela tem aspectos funcionais. Tal qual a dança serena ritmada pelo crepitar pacífico de uma fogueira, esses objetos evocam toda a fluidez e graciosidade contida no ato de pausar, ainda que a combustão siga acontecendo. É a revolução que acontece num único lugar, aqui e agora.
Guilherme Wentz, não à toa, destaca que o silêncio é uma fonte constante de inspiração, especialmente em meio à agitação da vida urbana, que muitas vezes demanda o resgate de uma vivência mais natural e contemplativa. Para ele, a chama do fogo, com sua calma e difusão, é um elemento que conduz a esse estado de contemplação. É um recurso praticamente terapêutico, uma abordagem de mindfulness aplicada ao design de móveis. Essa visão reflete a profundidade de seu processo criativo, em que os objetos transcendem sua funcionalidade para se tornarem portais de experiências sensoriais.
Além dos novos acessórios, a coleção ressoa com outros itens emblemáticos do catálogo da marca, como a Manta 001, a Vela Volta e o Perfume de Ambiente 001. Juntos, eles constroem um universo em que o design atua como mediador entre corpo e espaço, entre a mente e o agora, transformando ambientes em extensões do cuidado pessoal. É assim que a ideia de silent living ganha materialidade, com um estilo de vida sereno, no qual o verdadeiro valor está nos momentos que cultivamos com intencionalidade.
A expansão internacional da WENTZ, com presença sólida em mercados como Estados Unidos, Itália e Dubai, reforça a relevância do design brasileiro em um cenário global. Contudo, é na intimidade de cada criação que reside a maior parte de sua força. Sem jamais esquecer seu propósito primordial de ser uma coleção funcional que tem muito a adicionar em termos práticos e estéticos à vida de qualquer pessoa, Objects for Silence é um manifesto sobre como o design pode redefinir a relação entre o ser humano e o espaço que habita.
Saiba mais em nossa conversa com Guilherme Wentz:
Como o silêncio se transformou no ponto de partida para a criação de Objects for Silence?
O silêncio é um conceito presente desde o início da marca. Sempre pensamos no morar comoesse refúgio silencioso, um escape da vida moderna. Essa coleção surgiu de uma vontade deamplificar essa mensagem através de peças que estimulam determinados rituais que deixam o silêncio ainda mais evidente.
Qual foi a primeira imagem ou sensação que veio à mente ao pensar em uma coleção inspirada na chama do fogo?
Um final de tarde em uma cabana imersa na natureza, quando começamos a desacelerar eacender o fogo para se preparar para a noite.
A escolha do alumínio e inox é central na nova coleção. Como esses materiais dialogam com o conceito de silêncio e contemplação?
Os metais polidos aqui cumprem a função de refletir a chama do fogo. Esses materiais sempreaparecem como uma solução em nossos projetos porque são materiais precisos e, acima de tudo,silenciosos por não possuírem cor e terem a capacidade de se mimetizar com o ambienteenquanto refletem tudo à sua volta.
Como o contraste entre os objetos e as chamas guiou o desenho das peças?
O processo de design foi reduzir os objetos ao mínimo da forma e deixar a chama do fogo como protagonista. Eu acredito também que as formas geométricas simples são o melhor caminho parauma comunicação universal, já que elas podem ser entendidas por todos, ao mesmo tempo quepodem gerar diferentes significados para cada um. Depois de ter os primeiros protótipos prontos,tive a sensação de que se tornaram objetos quase religiosos, embora tenham sido criados a partir de uma intenção completamente mundana.
Que papel a luz e a sombra desempenham no uso das peças da coleção?
A luz é o protagonista da coleção. O que criamos foram apenas suportes para ela. Os objetos só“acontecem” quando acessos. O fogo tem esse poder sobre nós, algo muito primitivo, que nos fazrefletir, contemplar. E espaços iluminados pontualmente por velas e lamparinas, também ajudama criar uma cena íntima e natural, diferente do excesso de luz branca que encontramos pela cidade enas telas. Também faz parte da coleção uma pequena luminária portátil, que foi nossa tentativa debuscar as mesmas sensações, mas com uso da tecnologia.
Em termos de design, qual foi o maior desafio técnico ao reduzir as formas ao essencial?
Sempre lembro da frase do Brancusi que diz que “a simplicidade é a complexidade resolvida”. A redução é um dos processos mais difíceis tecnicamente porque exigem repensar os materiais, osprocessos e o desenho. Eu acredito que essa busca rigorosa por soluções que simplificam a formafinal da peça é o que faz um bom design. Encontrar os materiais e processos para manter a pureza dasformas é a maior parte do nosso trabalho.
A WENTZ, como um todo, busca inspiração na natureza para criar. Como o conceito de habitar natural e urbano se entrelaça em suas criações?
A ideia é se aproximar de um habitat natural, mas se aproveitar das tecnologias disponíveis parafazer isso de uma forma contemporânea. Estamos olhando para o futuro do habitar e não para anostalgia em um passado rústico. E é nesse design com inspiração natural que podemos encontrar umrefúgio para a vida urbana moderna.
Além da nova coleção, quais outros rituais de autocuidado você considera importantes e como o design pode elevá-los?
A casa por si só é uma plataforma de autocuidado. Acho que todos os elementos da casa podemter um significado: a forma de sentar, iluminar, as obras de arte que estimulam um determinado pensamento, a presença de natureza, e todas as formas de interagir com o espaço. É no silêncio, na solitude e no desacelerar que encontramos as respostas para nossos anseios e, portanto, a melhor forma de autocuidado nos tempos atuais.
O que você espera que as pessoas sintam ao interagir com as peças de Objects for Silence?
Espero que inspire momentos mais lentos e contemplativos e que, mesmo de uma forma muitoindireta, consigam se conectar consigo mesmos.
Como você enxerga a evolução do design brasileiro no cenário internacional e o papel da WENTZ nesse movimento?
Esse é um bom momento para mostrarmos o design brasileiro para além dos mestresmodernistas. A presença da WENTZ em algumas das maiores lojas/galerias de design do mundocomprova que o Brasil pode ter um desenho relevante para uma audiência global, unidos cominovação tecnológica e qualidade de execução necessárias para estar ao lado das marcascentenárias europeias que sempre dominaram esse mercado. O Brasil pode exportar muito alémde commodities.
Tomar café na casa de alguém é um convite para conhecer profundamente essa pessoa. Nossa casa é a casca que nos proteje do mundo. Ela é parte importante de nossa cultura particular, e reflete a maneira como enxergamos e gostaríamos de nos inserir no mundo.
Aqui, dividimos casas de pessoas que gostam de casa. Que têm suas casas vivas, cheias de objetos que contam a história de uma vida, sem um lugar perene em seus espaços.
Cristina Borges é arquiteta e designer de interiores. Morou na Gávea, no Rio de Janeiro, por muito tempo, até se apaixonar por Copacabana, em um apartamento de família, a ponto de nunca mais querer sair de lá.
Cris, me conta quando e como começou a relação com este apartamento.
Este prédio foi construído pelo meu bisavô em 1928, ou seja, daqui a quatro anos ele completa cem anos. O prédio sempre foi inteiramente da minha família, até que, de uns trinta anos para cá, meu tio vendeu as duas unidades dele, meu tio-avô morreu, deixou parte para os seus sobrinhos, deu uma diluída. Hoje em dia, proprietário, da família, temos três. Como a vida inteira eu morei na Gávea, Copacabana era uma coisa distante da minha vida. Eu tinha horror a Copacabana, era uma coisa que me exasperava só de pensar. Mas sempre amei esta cobertura. Quando minha tia-avó morreu, minha mãe comprou do herdeiro dela e ficou alugando a vida toda.
Apesar de eu achar o apartamento em si muito jeitoso, não via ele como moradia. Morava numa casa feita por mim, um projeto meu em que juntei duas casas de vila em uma, fiz uma super casa. E aí, a vida mudou, eu me separei, meu marido faliu, eu fiquei ali segurando, segurando, até que chegou um ponto que não se justificava mais morar numa casa na Gávea, com dois filhos na PUC consumindo tudo que eu botava dentro de casa. Foi quando conversei com a minha mãe e peguei o apartamento, fiz as reformas necessárias e aluguei a minha casa da Gávea. Com o aluguel da casa da Gávea, fiz toda a obra primordial daqui, que era toda a parte de elétrica, de encanamento… E assim vim para cá com os dois meninos. Um depois foi embora, ficou morando com o pai e, na pandemia, voltou.
O que você acha que este apartamento te oferece, em termos de conforto e bem-estar?
Antes de mais nada, podemos falar do ponto. Eu não tenho mais carro. Eu desço e sou praticamente atropelada pelos táxis. Fora que tem Uber também, então isso foi um salto na qualidade de vida para mim, parar de dirigir nesta cidade. Em Copacabana, você dá uma volta no quarteirão e é como se desse uma volta ao mundo, tem mexicano, português, italiano, árabe, brasileiro, bistrô, a quilo e, às quintas-feiras, ainda tem a feira. Para mim, que tenho um pouquinho de TOC de arrumação de geladeira, manter a minha semivazia é uma bênção.
Isso é o ponto número um. Número dois, a vista. Número três, a arquitetura do apartamento: são três metros e trinta de pé direito. Mesmo que eu não tivesse o mezanino, já seria uma glória. Essa arquitetura me favorece muito, e eu agradeço demais por morar num lugar tão lindo. Além disso, estou há oito minutos do aeroporto. Eu tive uma loja no MAM, então eu sei que são oito minutos mesmo. E ainda tem o clube Marimbás, de que eu sou sócia, e o namorado, que mora no posto seis. Então, entre o posto dois e o posto seis, tenho tudo que posso querer ter. Sair daqui, nem pensar.
E você frequenta a praia?
Vou à praia todo santo dia.
Você mergulha?
Mergulho, dependendo do dia. Hoje está frio. Mergulho, imagine, pego sol. Sou do tipo que ainda se bronzeia.
Como você acha que a sua profissão influencia no seu gosto pessoal? E como foi a evolução desse gosto?
Completamente. Eu nasci e fui criada dentro de obra. Eu morei numa das casas mais bonitas da Gávea, do tempo dela. Meu avô era uma pessoa muito sofisticada, foi um dos dez [homens] mais elegantes, teve o primeiro carro, o primeiro pastor-alemão, era um dândi. Basta dizer que meu pai nasceu no Parque da Cidade, que era a casa dele, e depois ele vendeu pros Guinle, e os Guinle doaram para a cidade para fazerem o parque. Então, eu acho que nasci e fui criada nesse berço bacana, chique, uma coisa quase minimalista. A casa do meu avô era imensa, mas tinha dois sofás numa sala e no outro canto um recamier.
Devia ser muito moderno para a época. A gente não pensa em um lugar minimalista atrelado àquela época. A gente está falando de que década?
Minha avó nasceu em 1900, então, década de 20.
Devia ser muito arrojada a casa para a época. Imagina! Na mesma época este prédio aqui estava sendo construído, todo neoclássico.
A casa até que não era muito estilosa por fora, não, mas por dentro… Minha avó e meu avô eram loucos por jardim, foi um francês que fez todo o paisagismo. Essa coisa do jardim eu acho que herdei deles. A coisa do belo eu acho que herdei dos dois lados, porque, pelo lado da minha mãe, a minha avó também era louca por jardim. Não tinha, naturalmente, o poder aquisitivo do outro lado, porém, quando [ela] fez a casa dela, chamou o Carlos Leão para ser o arquiteto, então a casa era toda jeitosinha — pequena, dentro de um lote no Humaitá, mas era uma casa muito bem arrumada. E a arte entra porque meus tios têm uma galeria de arte. A dona deste apartamento aqui, que era irmã da minha avó, era sócia dos meus tios numa galeria no Copacabana Palace, a Galeria de Arte Ipanema. Depois que ela saiu da sociedade, era o tio mais velho e, depois, entrou o tio mais moço, e ficaram eles dois. Eles fizeram a Galeria de Arte Ipanema, em Ipanema, que ainda existe. Hoje, eu particularmente acho que a obra que foi feita não serve para galeria, mas está lá a galeria, com um pé direito que você quase raspa a cabeça. Quando inaugurou, tinha um Lescher lá no fundo, que você via cortado pelo meio. Tudo bem, ali tinha um pé-direito para ele caber, mas o resto da galeria…
Então, isso me moldou como ser humano. Eu amo o belo, quer dizer, o belo que eu entendo como belo. Quem ama o feio, bonito lhe parece. Então eu procuro viajar, estou sempre comprando coisas, sempre trazendo coisas.
Muito provavelmente esse ambiente em que você nasceu e viveu, desde sempre, te levou à sua profissão.
Provavelmente. Mas eu acredito que existe uma aptidão também. Porque eu não fiz faculdade e não me formei arquiteta, mas, desde garota, fazia maquetes com as caixas de sapato. Sempre gostei disso. Meu quarto, quando criança, nunca foi o mesmo por mais de três meses. Este apartamento, até eu entender ele, foi 280 coisas diferentes.
Você ia acrescentando peças ou mexia 280 vezes com as mesmas coisas?
Mudou assim: quando eu me mudei, eu não tinha sofá, eu tinha uns bancos que eu mandei fazer no Fernando Mendes para a casa da Gávea, que eram quatro metros de banco, dois de dois metros, e neles eu tinha televisão, CD — a gente tinha CD na época, então eram pilhas de CD.
Precisava desse espaço.
Eram bancos de setenta centímetros por dois metros que, juntos, faziam os quatro metros. E aí eu acabei mandando eles para a Bahia, porque eu usava ali, mas era muito grande para o todo, e esse negócio eu joguei ali, porque não cabia. Eu não posso ter nada, conforme te digo, eu não posso comprar objeto de mesa, por exemplo. Quando eu tirei essas portas aqui, tinha uma prateleira em cima, onde eu tinha várias coisas que tive que levar para a Bahia, porque eu não tinha onde botar. Até a minha sereia, que eu não levei porque estou com medo de ela enferrujar toda. A sereia ficava aqui, que eram só coisas do mar, tinha um Artur Baglio, que era uma mulher embaixo d’água, esse Vasarely ficava ali também, tinha aqueles negócios de vela que eu trouxe do Egito e que, sempre que recebia alguém, acendia. Agora não tenho onde botar, foi para debaixo da escada.
Como você acha que o seu gosto se desenvolveu ao longo de todos esses anos?
Eu acho que, quanto mais você viaja, quanto mais você vê coisas que têm um foco, muita arquitetura… Sou louca por arquitetura tanto quanto sou por arte. E por jardins. Por exemplo, eu fui a Londres, passei quatro dias em Londres, um dia inteiro foi no Kew Gardens, que é lindo, uma coisa imperdível. Já fui aos jardins botânicos em Nova Iorque, em Berlim, em todo lugar que eu vou. Em Berlim, Sanssouci, o que é aquilo? Você já foi? É a coisa mais linda. Era para o filho gay do rei sei lá das quantas. Ele construiu para isolar o filho, desaparecer com ele da corte, entendeu? E é deslumbrante, na frente tem uns degraus, uns patamares. Aí eu comecei a reparar que tinha uns armários incrustados. Eram hortas no inverno, todas envidraçadas, mas incrustadas nos patamares, para dentro. Uma coisa, uma beleza. Pagode chinês. Olha…
Lá no Kew Gardens, você foi naquele pavilhão da ilustradora? Como que ela chama?
Margaret Mee. Gente, qualquer lugar naquele Kew Gardens.
Então, acho que viajar te joga numa coisa diferenciada. Tudo bem, eu nasci e fui criada na Bocaina, que é um lugar selvagem, virgem. Então eu acho que a minha vida sempre foi permeada entre o muito sofisticado e o muito rude.
É bom, porque tem a natureza completamente interligada.
A gente é raiz, meu pai era mergulhador, foi pentacampeão mundial de caça submarina, foi um dos fundadores do Marimbás. Ele era da equipe dos Marimbás, com Santarelli, Bruno Hermanny, era da turma deles, meu tio João [também]. Viajaram o mundo inteiro caçando. Então eu acho que esse lado bem raiz está no meu sangue por conta do meu pai. E por conta da minha avó também.
Avó de pai?
Avó de pai. Meu avô caçava. Ele conseguiu achar a Bocaina caçando. Comprou aquilo tudo, fez um barraco só para pernoite. E aí depois o meu pai foi evoluindo e fez a lodge, meu irmão depois pegou e fez uma pousada, que ele teve durante anos. E aí, quando ele encheu o saco da pousada, fechou, e agora é a nossa fazenda de novo.
Trabalhando com arquitetura e decoração, ou seja, fazendo casa para os outros, o que você acha que deixa uma casa única?
A personalidade do proprietário.
Às vezes, ele não consegue colocar isso na casa, você não acha?
Eu acho que se ele tem um mínimo de cultura e personalidade, consegue. Eu já fiz apartamento para clientes que eu não gostei, mas eles amaram. Então o meu compromisso não é comigo, não é a minha autoria, é fazer um lar para quem vai morar nele. Por exemplo, eu não sou uma pessoa que entra na casa de uma pessoa e manda jogar tudo fora e vamos fazer tudo [de novo]… “Móvel? Nem pensar, marcenaria, porque é onde se ganha muito dinheiro”. Eu faço a casa dos outros, não a minha. Eu já cansei de entrar em casa que você [diz] “isto aqui é uma casa do Cláudio”, “esta aqui é a casa do Eric”. Eu não quero entrar na casa dos outros. Tem uma história do Cláudio muito engraçada, que, quando ele foi fazer o apartamento do Caetano, a Paula começou, “Olha, eu queria que você visse o teto do meu vizinho aqui de baixo, que no vizinho de cima tem não sei o quê”. Ele olhou para ela e falou assim: “Faz uma coisa, Paula, chama o arquiteto dele”.
O que você acha que torna uma casa brasileira?
Linho, algodão, tem gente que põe brocado — isso é uma moda que eu acho que já passou. Casa brasileira é palha, madeira, e eu acho que ventiladores de teto, uma coisa bem tropical. Cores claras. Depende se a pessoa não gosta de quadro, não tem apreço por comprar arte, aí eu entraria com uma estampa. Talvez uma cor na parede; espelhos, se tem vista. Porque eu acho o uso do espelho extremamente perigoso, pode ficar um monstro e pode ficar lindo. Quando o espelho serve para abrir uma janela, estou dentro; esconder uma coluna, tudo bem. Agora, quando é um espelho tipo decorativo, para não refletir nada, no meu pensar, já cai na cafonice. Mas eu uso, eu gosto de espelho no ambiente, acho que favorece.
Fica uma casa muito adequada ao clima, sim. E, obviamente, falamos muito aqui no domínio da culinária. Qual você acha que é o papel da comida e da alimentação dentro de uma casa?
Eu acho que o agregador da família é a comida, sem a menor dúvida. O que junta é a mesa. E é o que talvez falte muito nos dias atuais, aquele momento de as pessoas se olharem e conversarem, contarem como é que foi o dia, como é que vai ser — se for almoço, como é que vai ser dali para frente… E eu acho que isso é um movimento que está acontecendo. Ontem, por exemplo, eu tentei desmarcar um dentista e não consegui, porque eles agora têm hora de almoço. Acho que é muito importante esse countdown, e a mesa é tudo numa casa. Eu fiz um apartamento, uma vez, que a mulher me disse: “Eu não quero sala de jantar, não, aqui a gente come de bandeja”. Eu falei: “Tudo bem, dá para fazer”. Mas que pena, porque era uma mulher com três filhos, sem marido — sei lá do marido, podia ser separada —, mas cada um comia numa hora, com uma bandeja e vendo televisão. É um desperdício monstruoso de aproximação para uma família. Para mim, a parte da cozinha… Inclusive, ter uma cozinha participativa seria melhor ainda, não ter aquela cozinha…
Ali, você vai estar vendo. Ela é participativa no sentido de as pessoas cozinharem juntas, isso eu acho muito interessante. Meus filhos, desde que ficaram em pé, eu empurrava a cadeira para o fogão e eles cozinhavam comigo. Sabem fazer tudo.
Hoje eles cozinham?
Tudo.
É fundamental isso, a gente ganha muita autonomia na vida. Não é só autonomia para saber se alimentar bem, com qualidade e ter saúde, mas acho que a cozinha ensina muita autonomia de vida para a gente.
Total. Porque você come o que você quer. Ter uma boa cozinha, os ingredientes bons… Você tem isso se a mãe tem esse conceito. Eu nunca tive pacote dentro de casa. Podendo, não tenho. Só, assim, quando era para a merenda dos meninos. Até o meu filho pedir para parar de mandar merenda, porque os colegas ficavam invejando a merenda dele, era muito chato. Fazia tudo bonitinho, um chocolatinho, um sanduichinho, um Toddynho ou uma água de coco, qualquer coisa, e mandava. Porque tinha dois recreios, um para comer e outro para brincar. E o de comer não dava tempo se a pessoa ficasse na fila, ela não conseguia chegar e comer. Então eu mandava. Aí começou a causar problema com os colegas e eu parei.
E o que você acha que a palavra “casa” significa? Quer dizer, o que significa para você?
Eu li uma definição do Hélio Oiticica uma vez, ele falava que a casa… Não lembro se era a casa ou era a casca do ovo, e nós somos o núcleo do ovo. Então, eu acho que a casa é isso, é o lugar que te protege, te abriga, te faz feliz. A minha vontade sempre é de voltar para casa. Acho que quem não tem vontade de voltar para casa está perdido no mundo. Para mim, a casa é o lugar de acolhimento, de afeto, de amor, é o lugar em que você recebe os seus amigos ou não — mas você se recebe, se recicla, se alimenta. Dependendo da casa, dependendo de quem mora na casa. Eu saí de uma casa para vir morar num apartamento que foi transformado numa casa. Eu acho que a casa é você que faz, e faz de acordo com as suas necessidades. Para mim, [a casa] é conforto e alegria, tudo o que preciso na vida é ter minha casa. Eu amo viajar, agora, voltar para casa é uma coisa quente no coração.
Qual é o papel da arte na sua casa?
Na minha casa, são as minhas paredes. Arte para mim é parede. Em casa, é isso. Eu não quero, até já tentei pintar, mas não quero, já tem coisa demais. Na minha vida, é me deixar feliz
Que projeto você acha que ainda não realizou na sua vida?
Eu não escrevi um livro. De resto, plantei todas as árvores, fiz filho, cozinho, lavo e passo roupa, bordo, faço tudo.
Vai escrever?
Acho que sim. Falta conhecer muitos pedaços do mundo e escrever um livro. Não descarto a possibilidade.
Do que seria?
Eu acho que seria um livro de receitas mais amplas.
Em que sentido?
Receitas de cozinha mas que fosse, por exemplo, a receita de um jantar. Aí eu vou fazer a foto da mesa e vou aumentar essa receita para o tipo de papo, o tipo de pessoa que vem. Eu li uma vez um livro de uma mulher de um diplomata italiano, Ornella… Esqueci o nome dela. Perdi muitos livros na mudança, perdi caixas e caixas de livros, mas também não teria onde botar. Ornella Muti, quem sabe? Não, é uma atriz, uma cantora. Ornella não sei das quantas. Ornella Del-Sol, eu acho. [Orietta Del Sole]
Eu pesquiso depois, tento achar e te falo.
O nome do livro é Nunca treze à mesa. Ela fazia a receita do jantar e escrevia sobre os convidados, o papo que rolou na mesa. Então, eu acho que seria isso, com fotos — foto da mesa posta, foto das comidas, dando as receitas. Acho que o meu grande lance é realmente a parte de casa.
Seria quase um livro de atmosfera.
É, por aí. Uma coisa que eu pudesse misturar, com um quadro que teria apego àquilo, uma coisa assim, com algumas referências para ilustrar aquela receita. Mas tendo a receita também. Podendo dar dica de onde comprar, o que fazer aqui no cantinho, enfim, coisas assim, arranjo de flor que ficaria legal com aquela louça — porque minha mãe também é artista, teve o momento louças, eu tenho louça de milho, louça de…
O que você acha que significa essa frase, “passar para tomar um cafezinho” com alguém ou na casa de alguém?
Eu acho que é marcar um encontro, o que é sempre bom entre duas pessoas que se gostam, se admiram, se respeitam. Em casa eu acho sempre melhor, porque adoro receber. Dá preguiça, mas se é uma pessoa com quem você tem intimidade, ela chega, vai junto na cozinha, abre a geladeira… Aqui em casa, a pessoa é de casa, não tem essa de fazer cerimônia. Tenho amigos mais antigos também, então tem gente que vem aqui que já vai e já entra. A única coisa que eu mando tomar cuidado é com o degrau.
O livroO Capital Está Morto, da australiana McKenzie Wark, faz mais do que esmiuçar o estado atual do capitalismo: com lucidez categórica, a obra escancara uma transformação radical que altera a própria essência da ordem econômica. Para Wark, o que chamamos de capitalismo na verdade já se desfez em pedaços para se tornar algo mais invasivo e controlador do que imaginamos — por incrível que pareça, isso é sim possível. Nesse novo sistema-titereiro, a informação tornou-se o principal recurso estratégico e a elite dominante opera sob um novo conceito de classe, chamada pela autora de “vetorialista”.
A classe vetorialista, ao contrário do que nos vem à mente quando pensamos em grupos que prevalecem sobre outros, não detém seu poder com base na posse dos meios tradicionais de produção, mas o faz a partir do controle dos vetores de informação. Isto é, todas as redes e sistemas que dão forma e sentido aos dados que governam a sociedade e influenciam o comportamento humano. Esse controle da informação define novas formas de exploração e desigualdade, tornando-se central para o funcionamento da economia global.
O entendimento tradicional da informação como algo abstrato, leve e quase etéreo é posto em cheque por Wark. A informação, como ela observa, depende de suportes materiais, infraestrutura de redes de dados, servidores, dispositivos e energia que sustentam o fluxo incessante de dados na sociedade contemporânea. Esse novo recurso, então, representaria uma reconfiguração das forças produtivas, na qual os vetores de informação e suas complexas camadas de circulação tornam-se um campo de poder que redefine as relações econômicas e sociais. Wark sugere que a informação, capturada e mercantilizada, transforma-se inevitavelmente em uma ferramenta de dominação, estendendo o controle até os aspectos mais cotidianos da vida, desde as redes sociais até os assistentes digitais que respondem aos nossos comandos de voz e monitoram rotinas pessoais.
Empresas como Google, Amazon, Facebook e Apple exemplificam essa nova ordem em que o valor está no controle dos dados e na capacidade de influenciar/prever os comportamentos humanos. O verdadeiro poder da classe vetorialista reside na “assimetria da informação”, o que quer dizer que, enquanto o público tem acesso a uma pequena fração dos dados, as corporações retêm e acumulam vastos conjuntos de informações, mantendo uma vantagem constante na criação de valor e intensificando o poder sobre a sociedade.
Como um dos resultados desse caos, Wark destaca o surgimento de uma classe subordinada, chamada por ela de “hackers”, composta por todos aqueles que produzem novas formas de informação. Esses trabalhadores criativos (programadores, artistas, escritores, acadêmicos) geram conteúdo e inovação, mas veem suas criações apropriadas — pra não dizer surrupiadas — pela classe vetorialista, que detém o controle e os direitos sobre a circulação dos produtos informacionais. A relação de exploração se intensifica, pois o valor é extraído do trabalho físico, intelectual e de todas as formas de criação que se transformam em mercadoria nas plataformas vetorialistas. Cada pedaço de informação gerada pelos hackers é apropriada e monetizada, gerando mais valor para as plataformas e deixando seus próprios criadores ao deus-dará.
Não bastasse o controle econômico e social, Wark aponta para uma camada biopolítica mais profunda. O domínio vetorialista — e isso percebemos de maneira mais clara a cada dia que passa — alonga suas unhas até chegar à esfera do corpo humano, com tecnologias que monitoram o organismo e transformam aspectos físicos em dados. Relógios inteligentes e outros gadgets capturam informações sobre nossa saúde, sono, movimento e comportamento, criando um ciclo em que cada aspecto da vida se torna um insumo para o capital vetorialista. Quando os dados capturados continuamente ajustam o comportamento humano às demandas de um sistema que faz da vida cotidiana uma matéria-prima de valor, um preocupante sistema de retroalimentação é fomentado.
Fica impossível não se questionar: onde isso vai parar, hein?
Os insights de Wark questionam as noções tradicionais de classe, valor e trabalho, já que, na era do vetorialismo, o valor econômico não se limita ao trabalho direto, ele provém da capacidade de capturar, organizar e transformar dados em capital. O controle da informação vira um meio de controle social abrangente e os vetores que movimentam os dados são os mesmos que moldam as formas de socialização e as próprias escolhas individuais. Essa transformação exige uma nova compreensão da exploração, que incorpore a captura de dados e a constante vigilância de aspectos da vida pessoal.
A resistência à ordem vetorialista demanda novas formas de organização e consciência, pois as lutas tradicionais contra a exploração capitalista não respondem aos desafios do sistema atual. É preciso desenvolver meios de coletivizar o conhecimento e desafiar o monopólio da informação.
A informação, afinal, não deve ser vista apenas como uma ferramenta, mas como uma força de produção com poder de moldar a vida social e política. É por essas e outras que a voz de alguém como McKenzie Wark precisa ecoar, sendo ao mesmo tempo um alerta e uma inspiração para resistir.
Confira nossa conversa com a autora:
Considerando a sua proposta de que o capitalismo foi substituído por uma nova ordem, como você enxerga o papel de uma obra como O Capital Está Morto? Qual a relação da classe vetoralista com os livros?
McKenzie Wark: O capitalismo foi apenas substituído como o modo dominante de produção. Sempre há múltiplos modos de produção que se sobrepõem e se entrelaçam. Livros já foram produtos da indústria cultural, vendidos como mercadorias, e, muitas vezes, seu conteúdo era moldado pela própria forma de mercadoria. Isso ainda ocorre em parte. Mas o “livro” agora também se tornou algo que a nova indústria de “conteúdo” entrega mais como um serviço, na forma de texto digital. O que é único sobre o texto é que ele se tornou uma relação dinâmica, de mão dupla. Ao ler um texto em uma interface, a interface também lê você, extraindo dados sobre seus hábitos e desejos. Esse regime do texto é extrativo de um jeito que o mundo dos livros não era. Com todas as suas falhas—ainda prefiro escrever, e ler, livros.
Na sua visão, o que tem sido mais difícil para a sociedade contemporânea entender sobre essa nova estrutura de poder baseada em dados e informações?
MW: Isso sempre nos é vendido como uma atualização daquilo que já conhecemos. Chegou até nós com a aparência dos meios de comunicação familiares e ainda usamos os termos antigos para isso — filme, livro, televisão e por aí vai. Assim, o lado mais sutil da mudança no modo dominante de produção passa despercebido.
Em uma sociedade que recompensa cada vez mais a velocidade, a produtividade e a exploração de dados, qual é o papel do silêncio, da pausa e da reflexão na construção de uma alternativa a esse sistema?
MW: Não acho que seja tão simples quanto lentidão versus velocidade, silêncio versus cacofonia. De certa forma, a infraestrutura técnica sobre a qual toda a economia agora repousa também é, em certo sentido, lenta. É incrivelmente difícil modificá-la para qualquer direção que não seja sua destruição constante do planeta. Acho que se trata mais das táticas de velocidade, de ter acesso a diferentes velocidades e intensidades.
O processo de coletivização do conhecimento parece fundamental para desafiar a classe vetorialista, mas há muitos desafios práticos para isso. Quais seriam as primeiras etapas para criar uma resistência informacional em direção à autonomia?
MW: Como todas as formas de trabalho e produção de conhecimento podem colaborar na tarefa comum de conhecer o mundo e criar uma relação com ele, dentro dele, que seja sustentável e mantenha esse sustento? Isso é incrivelmente difícil. Nos oferecem apenas formas de coordenação pelo mercado ou autoritárias. Então, trata-se de experimentar formas de trabalho e conhecimento baseadas na camaradagem. Isso pode ocorrer dentro das instituições existentes, enquanto elas durarem, ou fora delas.
Ao explorar o controle sobre o corpo e a mente através dos dados, surgem questões éticas profundas. Como você vê o papel da ética na ciência e na tecnologia hoje, e o que deveria mudar para que a informação sirva à sociedade em vez de controlá-la?
MW: “Ética” é a disciplina que encontra justificativas para as relações existentes de dominação e exploração. Precisamos de uma política da tecnologia e, curiosamente, de uma estética, uma arte experimental dela. Temos muito pouca autonomia em relação à grande infraestrutura da economia vetorial, então é uma questão de começar pequeno, criando ilhas de consciência e autonomia.
Em vários momentos, o livro parece um experimento de linguagem e pensamento. Você vê essa subversão no que escreveu?
MW: O mais difícil é escrever de uma maneira que seja contemporânea. Há uma influência de ideias recebidas, de uma linguagem convencional, incluindo a linguagem conceitual. Ou, ainda, há a tendência de exagerar na novidade, perder de vista a inovação incremental. Para mim, isso significa trabalhar sempre para pressionar a linguagem, para desnaturalizá-la.
Escrever sobre a perda de autonomia e o aumento do controle pode ser um processo que traz inquietação. Foi doloroso ou desconfortável para você escrever sobre a ascensão dessa classe vetorialista?
MW: Quando escrevi Um Manifesto Hacker (2004), eu estava em um momento otimista, o que é menos evidente em O Capital Está Morto (2019). Ganhamos algumas batalhas, mas perdemos a guerra, por assim dizer. As atuais relações sociotécnicas são o resultado de uma série de lutas, não por causa de alguma “essência” da tecnologia. Está ruim porque perdemos. Não estou aqui para vender otimismo. Mas, pelo menos quando as coisas estão ruins, há menos oportunistas. A luta agora é defensiva.
Sua escrita carrega um tom de urgência e um senso de alerta. Qual é o papel da linguagem e do estilo na transmissão dessa mensagem, e como você encontrou o tom ideal para falar sobre essas mudanças de forma acessível e envolvente?
MW: Sou uma escritora. Para mim, os livros são obras de arte tanto quanto qualquer outra coisa. Escrevi todos eles da melhor forma que pude. Leva muitas versões e muitos recomeços. Mas não é apenas por minha conta. Aprendo com outras pessoas, com outros escritores, tanto do passado quanto do presente. E também conversando com pessoas que fazem coisas e sabem de assuntos fora do meu campo de referência. Estou tentando apresentar a escrita como uma espécie de trans-texto, rompendo as divisões de trabalho, de gênero, de disposições estabelecidas, como um estímulo a um tipo de trabalho coletivo e alegre de fazer a vida juntos de uma maneira diferente.
O que você diria para alguém que, ao ler seu livro, se sente profundamente desanimado com a situação? Você vislumbra algum espaço para otimismo ou imagina que precisamos de uma perspectiva mais crítica e desconstrutiva para mudar o sistema?
MW: É uma pergunta muito abstrata… Todos os nossos humores variam de dia para dia, ou até de minuto a minuto! Quem sabe o que vai acontecer no futuro? Que parte das nossas vidas hoje podemos construir juntos agora? Essa é a pergunta.
Conteúdo exclusivo da edição digital Família — Amarello 50
Em um verão do início da década de setenta, Masahisa Fukase (1934 – 2012), um dos maiores nomes da fotografia moderna japonesa, voltou para sua cidade natal em Bifuka, Hokkaido. Depois de ter ficado quase vinte anos em Tóquio, um período em que fez ensaios para inúmeras revistas e se tornou um nome importante da cena avant-garde do país, o retorno, além de um movimento geográfico, constituía uma travessia emocional em direção às suas raízes e à complexidade das relações familiares. Em 1971, ele iniciou uma série de retratos da própria família no estúdio fotográfico dos pais, que viria a se tornar uma das obras mais celebradas, e doloridas, de sua carreira.
Ao longo das duas décadas seguintes, esses retratos, que começaram como uma exploração simples, quiçá até despretensiosa, das dinâmicas familiares, transformaram-se em monumentos de perdas, de fracassos e, sobretudo, da eterna capacidade da fotografia de congelar momentos e capturar tanto a vida quanto a morte — a morte enquanto em vida e a vida enquanto em morte.
Ao lado de nomes como Shomei Tomatsu, Daido Moriyama e Nobuyoshi Araki, Fukase desafiou as fronteiras tradicionais da fotografia, elevando-a de uma prática documental a uma forma de arte introspectiva, pessoal e perturbadora. Seu trabalho, caracterizado por uma fusão de melancolia e intensidade de emoções, muitas vezes explorava sua vida como matéria-prima. Em sua série mais famosa, Karasu (Corvos), de 1986, usou imagens sombrias da ave para simbolizar a devastação emocional de seu divórcio de Yoko, sua segunda esposa. Mas, com Kazoku (Família), expandiu suas narrativas sentimentais a um grupo maior, justamente aquele conjunto de pessoas com quem compartilhava sangue, numa espécie de veneração fúnebre às atribulações familiares e à inevitável erosão da vida.
O ambiente em que Kazoku foi criado não poderia ser mais simbólico. A família Fukase geria um estúdio de fotografia tradicional em Bifuka, onde, desde cedo, Masahisa foi exposto ao mundo da fotografia. O jovem, no entanto, nunca sentiu-se completamente à vontade com essa tradição, pelo menos não com a visão negocial e praticamente não-artística que o estúdio da família lhe impunha. Desde os seis anos, ele era incumbido de lavar as fotos em um pequeno quarto escuro, aquecido por um braseiro de carvão e impregnado pelo cheiro ácido de vinagre. Aquilo, para ele, tinha uma aura de opressão, uma herança familiar que ele parecia destinado a rejeitar.
Em um ensaio escrito em 1991, Fukase refletiu sobre a escolha que fez ao sair de casa para estudar na Nihon University College of Art, em Tóquio. De acordo com o próprio, ele se via dividido entre seguir a carreira de shashin-shi (fotógrafo de estúdio) ou shashin-ka (um fotógrafo-artista no sentido moderno). Embora tenha optado pela última, a conexão com suas raízes e o estúdio familiar continuava a assombrá-lo, até porque fez questão de se manter no mundo da fotografia. Assim, ao retornar em 1971, ele voltou também aos braços desses fantasmas emocionais banhados a sulfito de sódio que o acompanhavam.
Os primeiros retratos da série são, à primeira vista, convencionais. Eles mostram o núcleo familiar de Fukase: seus pais, Sukezo e Mitsue, seu irmão Toshiteru, sua irmã Kanako e seus sobrinhos. A atmosfera é quase reconfortante, à moda de retratos familiares, com os pais sorridentes e todos reunidos. No entanto, a presença de Yoko introduz uma camada perturbadora (ainda mais conhecendo, em retrospecto, o tom pesaroso da série Karasu). Em uma das imagens, ela aparece usando apenas um koshimaki — faixa de algodão tradicional usada debaixo de kimonos — com os longos cabelos cobrindo o peito nu. Essa justaposição entre a formalidade da fotografia familiar e a nudez de Yoko sugere uma tensão subjacente, uma ruptura entre tradição e modernidade, entre o que é visto e o que permanece oculto. Os corvos já grasnavam alto naquelas sonorizações imagéticas.
Essa tensão segue pulsando em variações subsequentes da mesma cena. Em outro registro, Yoko está de costas para a câmera enquanto o resto da família olha diretamente para a lente; em outro momento, é a família que se vira de costas enquanto Yoko encara a câmera. Esses jogos de perspectivas sugerem não apenas o papel da fotografia como mediadora entre o fotógrafo e o objeto fotografado, mas também a alienação crescente de Fukase em relação a Yoko e aos outros ao seu redor. A relação deles, era claro, se deteriorava. Logo após essas fotos, ela o deixaria, citando a fotografia como a barreira que os separava. “Nos dez anos de nosso casamento”, escreveu em 1973, “ele só me viu através da lente de uma câmera, nunca sem ela.”
As imagens refletem uma dor silenciosa e sutil, ladeadas por uma certa dose de teatralidade, com Fukase incorporando bailarinas e atrizes seminuas para posar ao lado de seus familiares. Essas cenas, ainda que chamativos jogos visuais, não podem ser dissociadas do processo de autodescoberta e autoanálise que permeia o trabalho. Ele costumava dizer que seu material de trabalho sempre começava “com o que está mais próximo, com as pessoas que posso alcançar e tocar.” A dor, para todos os efeitos, era próxima o suficiente para que pudesse ser tocada por ele.
Conforme os anos passaram, a série Kazoku muda de tom. A jovialidade dos primeiros retratos é aos poucos substituída por uma atmosfera turva de perda e luto. A família Fukase começa a encolher. Em um dos retratos mais pungentes, sua irmã Kanako segura um retrato de sua filha Miyako, que morreu aos cinco anos. Dois anos depois, a mesma composição é repetida, mas desta vez com Kanako segurando uma foto do pai de Fukase, que também falecera. A progressão das imagens revela a história mais antiga, inevitável e lamentável: o desaparecimento gradual da vida e o esfacelamento da estrutura familiar.
Em 1987, depois da partida de seu pai, a fotografia final da série é uma composição sombria e silenciosa, com sua mãe, Mitsue, sentada em um banco, curvada pela idade e pelo peso do luto, acompanhada apenas por seus filhos e o retrato de seu falecido marido. A imagem parece marcar o fim de uma era, tanto para a família quanto para o estúdio, que logo fecharia as portas.
O fotógrafo, por sua vez, também estava próximo do fim de sua jornada artística. Pouco depois dessa fotografia, ele sofreu uma queda em seu bar favorito, um incidente que o deixaria em coma por mais de duas décadas, até sua morte em 2012. O ciclo de vida que ele documentou em Kazoku se fechou de forma trágica, com o próprio fotógrafo sendo aprisionado em um estado de animação suspensa, incapaz de continuar seu trabalho ou de interagir com o mundo.
O que torna a obra de Masahisa Fukase tão comovente é a capacidade de transformar momentos aparentemente comuns em meditações poéticas sobre a existência humana. A série Kazoku, exemplo categórico disso, evoluiu para um estudo complexo sobre o tempo, a memória e a inevitabilidade da morte. Cada fotografia capturava um momento de vida, mas, ao mesmo tempo, prenunciava a transitoriedade dessa mesma vida, congelando-a no tempo para sempre. Ao documentar o apagar paulatino de sua família, Fukase fez ressoar um coro angelical e trágico que sibila em alto e bom som que a fotografia não é apenas sobre o que vemos, mas sobre o que não vemos, sobre as ausências que tanto insistem em preencher nossas vidas com lástima.
Kazoku é um testemunho visual de como o tempo corrói laços, esvazia ambientes e submerge cada um de nós em uma sequência inevitável de perdas. Cada retrato parece estar impregnado da ideia de que o ato de fotografar é, em si, um lamento. Foi assim que criou uma poética da desintegração. As fotografias de Kazoku não são meras imagens, são vestígios. O sorriso congelado de sua mãe, o olhar distante de seus irmãos, as crianças que não mais crescerão — tudo isso existe dentro dos limites da moldura, mas é o que está fora dela, o que foi apagado ou nunca poderá ser recuperado, que nos envolve.
Fukase, em seu trágico e irônico coma, se tornou uma espécie de emblema de sua obra: paralisado entre o presente de seu corpo e o futuro de sua alma, entre o fechar e o abrir de olhos, entre a vida e a morte. E, como nas páginas de um álbum de família antigo, que começa a desbotar e a desintegrar com o passar do tempo, Kazoku e o trabalho de Fukase como um todo permanecem como uma prova de que, embora possamos tentar capturar o presente com a câmera, é o eco do que foi perdido, daquilo que escapa pela borda da fotografia, que realmente define nossas vidas.
Imagens de Family/Kazoku (2019), de Masahisa Fukase, publicado por MACK
O Podcast da Revista Amarello conversa sobre as ideias que movimentam a cultura.
No primeiro episódio do seu Podcast, a Revista Amarello convida os professores e pesquisadores de música Rafael de Queiroz e Spirito Santo para conversarem a respeito da gênese da MPB. Com mediação da jornalista e antropóloga Pérola Mathias, o encontro aborda o cerne de um dos principais pilares da cultura nacional: seria a Música Popular Brasileira uma fase, um estilo ou um período? Em que medida o conceito de “popular” privilegia certa referências estéticas em detrimento de outras?
No seu livro No Tempo do Escândalo, Rodrigo de Lemos analisa os anos de transição que precederam a Primeira Guerra Mundial, revelando um mundo à beira de uma transformação radical, onde o confronto entre o individualismo crescente e as tradições religiosas e comunitárias desencadeou uma ruptura profunda nas estruturas sociais. O livro, mais que um estudo histórico, é uma reflexão filosófica e cultural sobre o período entre 1870 e 1914, uma era que Lemos denomina como o “tempo do escândalo”. O que define o período são as tensões entre moralidade e decadência, a desconstrução das certezas religiosas, e a busca por novas formas de identidade que marcaram o início da modernidade. O olhar para trás do autor, então, tem como objetivo perscrutar o território ainda incerto do presente e do futuro.
Jean Cocteau, diretor de O Sangue de um Poeta, é um dos autores analisados na obra No Tempo do Escândalo.
No cenário analisado, o escândalo em si não era apenas um evento sensacionalista, mas o símbolo de uma época em que as normas sociais e morais foram desafiadas por novas sensibilidades (qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência). O final do século XIX e começo do XX foi um momento de “tropeço”, quando a cultura ocidental, outrora alicerçada em valores coletivos e religiosos, começa a desmoronar sob o peso do individualismo e do secularismo. O escândalo, portanto, é tanto uma força disruptiva quanto um catalisador de mudança, trazendo à tona uma crise que atravessa as artes, a política, a religião e a psique coletiva.
Um dos eixos centrais da análise de Lemos é a transformação dos mitos literários, especialmente as figuras de Narciso e Salomé. Essas figuras, tradicionalmente ligadas à moralidade e à ordem social, são reinterpretadas no final do século XIX como símbolos da transgressão e da autonomia individual. Narciso, que nas lendas gregas e romanas era punido por sua vaidade, nas mãos de autores como Oscar Wilde e Jean Cocteau, torna-se um herói trágico, uma figura que celebra o narcisismo e a introspecção como formas de resistência contra as normas opressoras da sociedade. Em O Sangue de um Poeta, por exemplo, primeiro filme de Cocteau, Narciso mergulha em seu próprio reflexo como uma busca por autenticidade em um mundo cada vez mais fragmentado.
Da mesma forma, Salomé, cujo mito tem suas raízes no Novo Testamento, é conhecida por ter pedido a cabeça de São João Batista ao rei Herodes, após dançar para ele. Na narrativa bíblica, Salomé é uma figura manipulada por sua mãe, Herodíade, que busca vingança contra João Batista. Contudo, no final do século XIX, essa figura passou por uma ressignificação profunda nas mãos de autores como Huysmans e, olha ele de novo, Oscar Wilde. Ao invés de ser meramente um peão em um jogo de poder masculino, Salomé se transforma em um ícone de desejo e destruição, representando uma força feminina capaz de subverter as normas patriarcais.
Ilustração de Aubrey Beardsley para a obra Salomé (1893), de OscarWilde. Universidade de Heidelberg.
Na peça Salomé, de Wilde, ela é retratada como uma figura enigmática e fatal, cuja sexualidade exerce um poder incontestável, despertando medo e fascínio em Herodes e outros homens ao seu redor. Sua dança dos sete véus, símbolo de sedução e mistério, torna-se uma metáfora da luta pelo controle sobre o corpo feminino e a inquietação que a liberdade sexual feminina provoca na masculinidade tradicional. Lemos interpreta essa Salomé transformada como uma antecipação das tensões feministas que emergiram no século XX, destacando como o autor irlandês usa essa personagem para explorar as complexidades do desejo feminino e o desconforto que ele gera em uma sociedade dominada por homens.
O foco nos mitos é uma escolha para mostrar como essas figuras literárias serviram de espelho para a crise cultural e moral da Europa. Ao serem ressignificados, os mitos ganham novas camadas de significado, permitindo que autores e artistas da Belle Époque confrontassem questões como o lugar do indivíduo na sociedade, o papel da sexualidade na formação da identidade e a erosão das estruturas religiosas. O mito de Narciso, por sua vez, revela a ascensão do eu moderno, uma subjetividade que se volta para dentro e se desconecta das exigências da comunidade. Essa introspecção, ao mesmo tempo, é vista como libertadora e destrutiva, já que a obsessão consigo mesmo pode levar à alienação e à fragmentação.
A arte, como de costume, foi o campo onde essas tensões encontraram sua expressão mais vívida. O final do século XIX testemunhou uma explosão de inovação artística, com movimentos como o esteticismo e o simbolismo rejeitando o realismo e abraçando o imaginário, o sonho e o escândalo. Artistas buscavam explorar os limites da moralidade e da estética, criando obras que provocavam e chocavam suas audiências. A beleza, antes vista como reflexo da ordem divina, tornou-se, para esses artistas, um campo de batalha onde se lutava por novas formas de liberdade individual. Essa nova estética era, em si mesma, um escândalo, pois rejeitava as convenções burguesas de bom gosto e moralidade, celebrando em vez disso o excessivo, o estranho e o perverso.
Esse movimento na arte foi acompanhado por uma transformação igualmente radical na filosofia e na psicologia. Sigmund Freud, um dos personagens-chave discutidos por Lemos, desempenhou um papel fundamental na desmistificação da moralidade tradicional. A psicanálise, ao explorar as profundezas do desejo e da sexualidade, desafiou as noções de normalidade que sustentavam a ordem social vitoriana. O interesse de Freud por mitos como o de Narciso reflete sua preocupação com a relação entre o eu e o inconsciente, e Lemos traça paralelos entre a emergência da psicanálise e o surgimento de uma nova concepção de indivíduo: não mais um ser moral e racional, mas um ser em conflito consigo mesmo, dividido entre pulsões inconscientes e o desejo de conformidade social.
O “tempo do escândalo” é também uma era de fraturas e ambiguidades religiosas. A secularização da Europa, iniciada no Iluminismo, atingiu um novo patamar no final do século XIX, quando figuras como Nietzsche declararam a morte de Deus e questionaram o lugar da religião na vida moderna. A santidade, antes vista como a mais alta expressão da moralidade, foi reinterpretada à luz da psicopatologia. Santo Antônio, por exemplo, é tratado em No Tempo do Escândalo como uma figura em crise, cujo fervor religioso é lido por autores como Flaubert e Huysmans não como sinal de santidade, mas como sintoma de uma mente doente. Isto é, a dessacralização da religião é um dos aspectos mais marcantes dessa era, quando a fé é gradualmente substituída pela ciência e pelo racionalismo, mas sem oferecer respostas definitivas para as angústias existenciais que surgem no vácuo deixado pela religião.
Lemos documenta essas transformações e propõe uma reflexão mais ampla sobre o que elas significam para a nossa era contemporânea. Ele sugere que vivemos em um momento semelhante àquele, onde o individualismo e a fragmentação social são temas centrais. As redes sociais, com sua promessa de conexão global, muitas vezes reforçam o isolamento e o narcisismo, enquanto as antigas certezas sobre moralidade e comunidade continuam a ser desafiadas por novas formas de subjetividade. O “escândalo” hoje, assim como no final do século XIX, serve como um reflexo das tensões que permeiam nossa sociedade. A era digital, com suas bolhas de pensamento e sua propensão ao espetáculo, ecoa os mesmos desafios enfrentados pelos artistas e intelectuais da Belle Époque, que também viam a arte e o escândalo como instrumentos de transformação.
O estudo de Lemos é, portanto, um chamado à reflexão sobre as raízes de nossa própria crise contemporânea. Ao explorar as ressonâncias entre o “tempo do escândalo” e os dilemas do presente, o autor vira nosso olhar para o passado não como algo distante e resolvido, mas como um espelho de nossas próprias incertezas. O escândalo, tanto ontem como hoje, é uma janela para os limites do que consideramos aceitável, e é nesse confronto com o inaceitável que a cultura encontra sua verdadeira força transformadora.
Confira nossa conversa com o autor:
A ressignificação de mitos clássicos e o desencantamento religioso são temas centrais do livro. Por que essas reinterpretações demoraram para acontecer nesse nível e o que elas revelam sobre as ansiedades e aspirações da sociedade do final do século XIX?
Rodrigo de Lemos: No caso dos mitos de que trata o meu livro, Narciso, Salomé e Santo Antônio, creio que, em suas encarnações europeias desde a Antiguidade até o século XX, eles mostram uma mutação ideológica muito relevante: o advento da ideia e do valor do indivíduo autônomo, que se permite conceber a si mesmo como independente da sua comunidade de origem, e por vezes mesmo superior a suas concepções, suas expectativas, suas hierarquias e também a seus preconceitos. Daí resulta uma oposição entre os pólos individual e coletivo, cujo acirramento, no fim do século XIX, constitui o que eu chamei de Tempo do Escândalo, quando essa contradição entre indivíduo e coletividade aflorou de forma especialmente sensível nos terrenos da arte e do pensamento.
Você aborda a relação entre a secularização e o desencantamento do mundo. De que forma esse processo afeta a busca por significado em uma era dominada pela tecnologia?
RL: A relação me parece ser de mão dupla, ou mesmo contraditória: por um lado, poderíamos pensar que a tecnologia digital favoreceria o triunfo do indivíduo autônomo e da razão secular. De fato, isso parece ser um tanto assim, pois as novas formas de comunicação permitem a cada um de nós um acesso vertiginoso a discursos e a imagens oriundos de contextos culturais muito distintos, em escala planetária. Ocorre que, exatamente por causa do acesso vertiginoso, essa mesma tecnologia digital me parece também possibilitar o surgimento de comunidades de opinião, em meio digital, centradas na busca por valores tradicionais, “naturais” e “orgânicos”, os mesmos que foram fortemente contestados no período que analiso no livro. Esses retornos não são novos, e também ocorreram em outros momentos, como reação ao avanço dos valores individualizantes. Foi o caso das versões reacionárias do romantismo no início do século XIX, e também, mais tarde, das reações fascistas ao início do século XX, por exemplo.
Mitos como Narciso e Salomé servem, de um modo, como espelhos para as tensões modernas. Qual é a relação entre esses mitos e as identidades contemporâneas que se formam em um mundo cada vez mais individualista?
RL: Primeiro, é importante ressaltar que, no meu livro, o sentido do termo “individualismo”, que busquei na obra do antropólogo Louis Dumont, não contém uma carga pejorativa. Não equivale a egoísmo ou alienação, mas a uma configuração ideológica das sociedades modernas, em que o indivíduo é concebido como fim e como fundamento de uma sociedade, e não como o meio pelo qual uma comunidade existe e se reproduz, permanecendo parte dependente dela. Narciso e Salomé são vistos, em textos muito tradicionais (nas Metamorfoses, de Ovídio, ou na Bíblia), como seres fundamentalmente faltosos quanto à moral coletiva, ora pelo seu orgulho, ora pela sua lascívia, ora pela sua crueldade, e assim por diante. Acontece que, talvez precisamente por causa dessa valoração negativa convencional, artistas e intelectuais do Tempo do Escândalo, como Freud, Oscar Wilde, Flaubert ou Strauss, puseram esses mitos em evidência nas suas obras, seja para criar conceitos centrais às suas teorias (como o narcisismo na teoria do psiquismo em Freud), seja para representar aspirações estéticas e espirituais que se quereriam muito mais nobres — porque mais raras, mais refinadas, mais “individuais” — do que aquelas que as coletividades mais tradicionais atribuíam a esses mesmos mitos, símbolos do pecado e do desvio moral. É o que acontece na poesia de um Mallarmé ou de um Valéry.
No livro, você menciona a ascensão do individualismo em contraposição a valores comunitários. Quais são as implicações éticas dessa mudança para a sociedade atual e para o futuro?
RL: Como eu disse, creio que, por meio da tecnologia, renovou-se o desejo de comunidade e de tradição, que hoje atravessa famílias políticas e ideológicas. Talvez esse novo desejo de dependência comunitária seja tão mais forte quanto mais isolados os sujeitos em dado momento histórico se sentem, e também quanto menos expectativas de futuro e imaginação política e social eles têm, em função desse mesmo sentimento de isolamento e de desolação. Em alguns desses grupos virtuais de opinião, o retorno a uma tradição, a uma origem e a uma comunidade (com suas dimensões de ilusão e de fantasia) aparece como um projeto sedutor para fazer frente à angústia do momento presente, como se o que restasse, depois do desparecimento do futuro, fosse a evasão em uma espécie de utopia do passado. Tendo a crer que estamos agora apenas começando a sentir as consequências políticas e psíquicas dessa situação.
Quais aspectos do “tempo do escândalo” mais claramente anunciam as crises morais e políticas do século XXI?
RL: Penso que elas se refletem em duas dimensões principalmente: nas da religião e da sexualidade. Ambas são muito próximas, não só porque a religião impõe uma forma de regulação coletiva da sexualidade, mas também porque, como explico no livro, a partir dos escritos de outros pesquisadores, a reivindicação de liberdade de consciência religiosa na Europa, sobretudo a partir da Reforma, precede, e até certo ponto anuncia, a reivindicação de livre disposição do indivíduo sobre sua própria sexualidade, já no Iluminismo e mais ainda no Tempo do Escândalo. O ressurgimento de uma vontade de autoridade comunitária por meio da tecnologia digital, que eu já mencionei, pode representar uma ameaça a essas duas reivindicações de autonomia do indivíduo, tanto no “corpo” quanto no “espírito”.
Tendo a ambivalência em relação à modernidade em mente, você a vê como algo intrínseco do ser humano ao lidar com mudanças culturais significativas?
RL: Não me parece que seja intrínseco, no sentido de que é “natural” às pessoas resistir a essas mudanças, muito menos que é o “destino” do homem arraigar-se em comunidades ditas tradicionais, como a família convencional, os papéis de gênero do passado, o pertencimento étnico-racial ou ainda a religião herdada. Tendo a ver essa ambivalência quanto aos valores modernos como um fenômeno histórico, relacionado a mudanças nas condições concretas de vida, mudanças essas que nada têm de necessário. Falamos das tecnologias digitais e de como elas favoreceram o renascimento, em uma parte da população, de sentimentos e de aspirações que se querem tradicionais. Sem essas mesmas tecnologias, me pergunto se essas aspirações teriam saído do subsolo em que haviam permanecido desde o Pós-Guerra.
A arte contemporânea ainda tem o poder de provocar escândalo? Se sim, como isso se manifesta nas expressões artísticas atuais?
RL: Há uns quinze anos, eu provavelmente teria dito que não. Porém, hoje, em um mundo fragmentado em torno desses grupos virtuais de opinião mais e mais autorreferenciais, parece que houve também uma renovação no potencial de escândalo da arte. Basta lembrar os casos do Queermuseu, de Porto Alegre, ou da performance La Bête, de Wagner Schwartz. Ambas datam do fim dos anos 2010, precisamente quando, no Brasil, consolida-se uma opinião populista reacionária sobre família, sexualidade, política e religião. Por outro lado, é interessante notar que também algumas correntes da opinião progressista recorrem à linguagem do choque e do escândalo moral quando confrontadas com as provocações do populismo reacionário, mais, é verdade, nos campos da política ou da comunicação digital do que no da arte contemporânea. Estaríamos, então, em um processo de retroalimentação dos escândalos, em que um grupo busca atenção pública, e ganhos políticos, por meio da escandalização do grupo opositor? O nosso seria então o Tempo dos Escândalos…
Quais autores ou pensadores contemporâneos você considera que continuam o legado das questões morais e filosóficas levantadas no “tempo do escândalo”?
RL: Parece-me que estamos assistindo a uma difusão e a uma democratização da lógica do Escândalo, em todos os espectros intelectual e político. Nesse caso, eu diria que cabe a alguém que pretende pensar o presente (ao “pensador contemporâneo”) operar fora dessa lógica e privilegiar uma certa fineza de espírito, a atenção às nuances, a precisão na linguagem e a razoabilidade, por mais que essas coisas não tragam aprovação automática por uma comunidade de opinião digital.
“Os números crescentes, a grande variedade e o imenso potencial de estímulos altamente compensatórios são atordoantes. O smartphone é a agulha hipodérmica dos tempos modernos, fornecendo incessantemente dopamina digital para uma geração plugada. Se você ainda não descobriu sua droga preferida, ela logo estará em um site perto de você.” — Dra. Anna Lembke
Neurotransmissor que atua no sistema nervoso central, a dopamina se tornou o centro das atenções na celeuma atual sobre os vícios da sociedade moderna.O conceito de que nosso desejo por um rápido “pico de dopamina” é a razão pela qual não resistimos e nos permitimos consumir um sem-fim de ultraprocessados ou passar horas nas redes sociais tem gerado um certo pânico — e há quem diga que ele é desproporcional. Devia mesmo a dopamina estar sob os holofotes dessa discussão?
O que não se nega é: antes, não há muito tempo, vivíamos um balanço maior entre o estímulo e o não-estímulo, entre o prazer e a espera pelo prazer. A transição de um mundo que temia pela escassez para um de abundância esmagadora de fato nos expõe com facilidade a comportamentos compulsivos.
No best-seller Nação Dopamina, lançado nos EUA em 2021 e que chegou ao Brasil no ano seguinte, a psiquiatra Anna Lembke, de Stanford, explora como o excesso de estímulos prazerosos nos afeta, especialmente em um mundo de gratificação instantânea. Em uma narrativa que mescla suas experiências pessoais e relatos de pacientes, o livro reflete sobre o delicado equilíbrio entre prazer e vício. Esses pacientes, que ganham vida nas páginas, acabam sendo personagens com quem os leitores, ao menos em algum nível, se identificam. É o caso de Jacob, que construiu uma máquina de masturbação para lidar com seu vício em sexo, ou de Delilah, uma adolescente que só conseguia começar o dia após fumar maconha.
“Talvez você sinta repulsa pela máquina de masturbação de Jacob. Talvez você a considere uma espécie de perversão extrema, além da experiência cotidiana, com pouca ou nenhuma relevância para você e a sua vida. Mas se fizermos isso, você e eu, perderemos a oportunidade de apreciar algo crucial sobre a maneira como vivemos agora. De certa maneira, estamos todos envolvidos em nossas próprias máquinas masturbatórias.”
— Dra. Anna Lembke
Essas histórias, embora pareçam extremas e distantes da nossa realidade, ilustram de forma clara um fenômeno que afeta muitos de nós: a dificuldade em lidar com o desconforto, qualquer que seja, sem buscar alívio imediato.
“A deficiência de serotonina está frequentemente ligada à ansiedade e depressão, enquanto a falta de dopamina pode afetar nossa motivação.”
Compreender o papel da dopamina em nossos cérebros é fundamental para entender o vício e não confundi-la com a serotonina, outro neurotransmissor, igualmente importante. Enquanto a serotonina tem um impacto direto na regulação do humor, promovendo uma sensação de bem-estar e influenciando o sono, apetite, desejo sexual e memória, a dopamina nos impulsiona a buscar aquilo que acreditamos nos trazer prazer, alimentando expectativa e motivação. A deficiência de serotonina está frequentemente ligada à ansiedade e depressão, enquanto a falta de dopamina pode afetar nossa motivação. Quando alcançamos o que desejamos, os níveis de dopamina caem, nos lançando em um ciclo de busca contínua.
Esse mecanismo de recompensa, que, não custa lembrar, foi crucial para a sobrevivência e evolução da espécie humana, hoje pode se tornar prejudicial, à medida que vivemos cercados de estímulos digitais e de consumo fácil. Sendo tudo tão acessível, muitas vezes a um toque do celular, a toda hora vamos lançar mão disso ou daquilo.
Contudo, especialistas em dopamina afirmam que muitas dessas preocupações são exageradas. Desmistificar os maiores equívocos sobre esse neurotransmissor é livrá-lo do estigma de vilão — e esse é um passo essencial para entender como lidar com a avalanche de estímulos que enfrentamos diariamente.
A dopamina, por si só, não é uma força boa ou má. As primeiras pesquisas, realizadas com roedores e, mais tarde, com humanos, sugeriram que o sistema de dopamina se ativava ao receber recompensas. Isso levou à crença de que a dopamina estava diretamente ligada a qualquer experiência de bem-estar, como comida, sexo e interações sociais. No entanto, estudos mais recentes, realizados especialmente a partir dos anos 1990, revelaram que a dopamina está mais relacionada à antecipação de recompensas do que ao prazer propriamente dito.
Foto de Nikolett Emmert | Unsplash.
“A constante busca por gratificação altera o funcionamento cerebral, prejudicando nossa capacidade de planejar, resolver problemas e lidar com frustrações.”
No cerne dessa questão está o fenômeno da homeostase cerebral, que nos lembra do bom e velho “para cada alto, há um baixo”. Isso explica por que uma pequena dose de prazer pode, com o tempo, exigir estímulos cada vez mais intensos para gerar a mesma satisfação. No mundo digital, onde o acesso é praticamente ilimitado e imediato, o risco de dependência se torna ainda maior. Além de impactar os circuitos de recompensa, a constante busca por gratificação altera o funcionamento cerebral, prejudicando nossa capacidade de planejar, resolver problemas e lidar com frustrações. Como resultado, vivemos mais no cérebro límbico (focado nas emoções) do que no córtex pré-frontal (responsável pelo raciocínio).
E se, para quebrar esse ciclo de excessos, tentássemos algo simples, como a abstinência temporária? Desconectar-se dos prazeres excessivos por um período pode reiniciar o cérebro e restaurar o equilíbrio. Estamos realmente presos ou é possível sair desse ciclo com um mínimo de força de vontade?
Na teoria, parece fácil; mas, como diz o ditado, na prática a teoria é outra. Desconectar-se, infelizmente, é um luxo que poucos têm hoje em dia. Uma reflexão trivial desmonta o sonho de distanciamento dos dispositivos e do bombardeio digital: como trabalhar sem estar conectado? Até mesmo trabalhos manuais frequentemente exigem uma presença digital, nem que seja para facilitar o contato entre contratante e contratado. Existem meios de limitar esse acesso, mas o afastamento nunca será completo. Questões político-sociais, tão enraizadas na realidade que molda nossos passos, dificilmente serão descartadas de um dia para o outro — e ainda assim querem jogar tudo nas costas da dopamina?
Não podemos ignorar que atividades altamente estimulantes podem, sim, sequestrar nosso sistema de dopamina, tornando recompensas menores menos satisfatórias. Esse ponto de vista é sustentado por algumas evidências, já que o uso prolongado de drogas que liberam grandes quantidades de dopamina — como cocaína e anfetaminas — pode levar o cérebro a reduzir a sensibilidade dos receptores desse neurotransmissor, resultando em tolerância.
“O desconforto é necessário. Isso pode parecer exagero, mas, em uma era de abundância, aprender a suportar pequenas dores e frustrações é o que nos torna mais resilientes e preparados para enfrentar os desafios da vida.”
Embora atividades como videogames e pornografia possam se tornar comportamentos compulsivos, pesquisadores como a Dra. Anna Lembke levantam a hipótese de que essas práticas poderiam, em tese, causar efeitos semelhantes aos da tolerância observada em substâncias viciantes, mesmo que ainda faltem evidências concretas para tal afirmação.
A verdade é que o vício é um fenômeno multifacetado e a dopamina não deve ser vista apenas como uma inimiga. Ela é, de fato, uma amiga em nosso aprendizado e motivação. A verdadeira questão não é como evitar a dopamina, mas como utilizá-la de forma equilibrada e saudável em nossas vidas.
Mas Lembke lembra: o desconforto é necessário. Isso pode parecer exagero, mas, em uma era de abundância, aprender a suportar pequenas dores e frustrações é o que nos torna mais resilientes e preparados para enfrentar os desafios da vida. Em vez de buscar uma constante felicidade, devemos aceitar que a vida é feita de altos e baixos, e que encontrar paz nesse movimento é o verdadeiro caminho para uma vida equilibrada.
“Talvez, como Sócrates, você tenha notado uma melhora de humor depois de um período doente, ou sentido uma euforia de corredor, depois de se exercitar, ou tido inexplicável prazer num filme de terror. Assim como a dor é o preço que pagamos pelo prazer, o prazer também é nossa recompensa pela dor.”
— Dra. Anna Lembke
Nação Dopamina nos ajuda a refletir não apenas sobre como lidamos com a tecnologia e o consumo, mas sobre como podemos redescobrir o valor das pequenas vitórias e do prazer conquistado com esforço.
Dopamina, temos um problema? Talvez não. Os excessos da modernidade não são oriundos tão somente da dopamina. De maneira nada consoladora, está mais para: atualidade, temos um problemão.
Renée Green é uma artista visual, escritora, cineasta e professora norte-americana, cuja prática multidisciplinar abrange escultura, arquitetura, fotografia, vídeo e experiências sonoras, frequentemente culminando em instalações complexas e envolventes. Seu trabalho é profundamente ancorado em pesquisas de antropologia cultural e história social, explorando temas como a figura de Sarah Baartman — mulher sul-africana conhecida como “Vênus Hotentote”, exibida como atração de circo no século XIX —, a história da escravidão, o modernismo arquitetônico e a cultura hip hop.
Space Poem #10 (Anos/Depois), 2024.
Green investiga a relação entre arte e história, utilizando colaborações e arquivos como ferramentas de reflexão e criação. Um bom exemplo disso é seu trabalho lançado em 2014, Other Planes of There: Selected Writings, uma coletânea de textos escritos entre 1981 e 2010, que parte da prática arquivística como ferramenta artística. Além de numerosas exposições individuais e coletivas em museus de renome ao redor do mundo, Green é também uma escritora prolífica, com contribuições regulares em publicações influentes como a October, de Massachusetts, nos Estados Unidos, e Texte zur Kunst, da Alemanha.
A exposição Aproxime-se: Perceptos, realizada no espaço cultural auroras, em São Paulo, é a epítome de tudo que a define como artista e ativista — uma síntese assombrosa, tanto pela excelência com que é realizada quanto pelas questões profundas e inquietantes que expõe.
“Trazer a exposição de uma artista internacional como Renée Green para o auroras”, reflete Ricardo Kugelmas, fundador do espaço, “tem um impacto significativo, tanto para o público quanto para o debate sobre questões ligadas à diáspora africana e fluxos culturais dela decorrentes. Renée Green, com sua trajetória de mais de três décadas, tem uma abordagem profundamente reflexiva e crítica sobre a circulação de pessoas, culturas e narrativas. Sua obra oferece um espaço para pensar essas complexas intersecções de maneira que não é panfletária, mas altamente poética e visualmente rica. Essa exposição não só expande as conversas sobre diversidade racial na arte contemporânea, mas também desafia o público a considerar como essas questões estão presentes nas dinâmicas sociais e culturais brasileiras.”
Estreia de Green no Brasil, a exposição tem as temáticas de colonialismo, diáspora e migração muito presentes, exploradas através de múltiplos meios artísticos, como instalações, vídeos, pinturas e esculturas. Um dos destaques de Aproxime-se: Perceptos, aliás, é a obra Commemorative Toile (Brasil), em que a artista estampa poltronas modernistas com imagens que retratam cenas de resistência escravagista, incluindo episódios da Revolução Haitiana.
Detalhe de Comemmorative Toile (Brazil). Foto de Free Agent Media.
Essas poltronas, mais que simples objetos decorativos, funcionam como veículos de memória, refletindo a complexidade da história colonial. Ver algo assim estampado em uma peça de mobiliário é perturbador, pois naturaliza violências históricas e, de certa forma, as eleva ao nível canônico, quase religioso. Ter essas imagens duras em objetos que usamos no cotidiano é um lembrete aterrorizante de como essas brutalidades podem se infiltrar nas nossas vidas, tornando-se parte do tecido da realidade.
Obra Commemorative Toile (Brazil). Foto de Ding Musa.
“A poética na obra de Renée Green”, corrobora Ricardo, esmiuçando a produção da artista, “está profundamente ligada ao conceito de ‘relações’, que serve como fio condutor em sua produção multimídia. Renée entrelaça sua história pessoal e seus interesses com correntes culturais e intelectuais mais amplas, criando uma interconexão rica entre poesia, literatura, filosofia, história, música e arquitetura. Sua abordagem ressalta como, ao longo dos tempos, símbolos são criados e circulam, moldando e sendo moldados pelas experiências humanas.”
E pensar nessas questões a partir de diferentes mídias, para muito além do mobiliário, torna tudo ainda mais complexo. “Esse interesse pelas diferentes linguagens e etimologias reflete um entendimento profundo das dinâmicas de poder e resistência que permeiam as narrativas da diáspora africana. Green utiliza essa poética não apenas como uma estética, mas como um meio de explorar a intersecção de identidades, culturas e histórias. Uma das partes mais interessantes do trabalho de Renée é o fato dela intencionalmente provocar a auto reflexão e uma livre interpretação pelo público, vide o título da mostra: ‘Aproxime-se: Perceptos.’”
A carreira de Green, marcada pela abordagem interdisciplinar, também lança mão da poesia. Os “Space Poems” da exposição, cartazes fixados de maneira aparentemente desconexa, convidam as pessoas a criar novas narrativas conforme são lidos e relidos com inúmeras possibilidades de sequências. Renée, que também é professora no MIT, apresenta uma visão que desafia fronteiras entre tempo e espaço, sugerindo até uma alteração na ordem do tempo, questionando e reinterpretando narrativas históricas de migração e exílio. Ao longo da exposição, como apontou Ricardo Kugelmas, essas obras não impõem significados específicos, mas incentivam o público a explorar suas percepções pessoais, ecoando o conceito filosófico de perceptos, como teorizado por Gilles Deleuze.
Série Space Poem #11 (The Equator Has Moved), 2024.
O conceito, desenvolvido junto com Félix Guattari, está relacionado à filosofia da arte e à maneira como a percepção é tratada nas obras artísticas, especialmente na literatura e nas artes visuais. Segundo Deleuze, o percepto não é apenas a percepção direta de algo, mas sim uma realidade sensível capturada pela arte e que existe além de uma simples percepção individual ou subjetiva. Diferente do conceito de percepção, que está ligada a um sujeito que percebe, o percepto está ligado à própria obra de arte que gera um bloco de sensações autônomo.Ou seja, o artista tem a capacidade de capturar e criar perceptos, que se tornam independentes do observador, sobrevivendo ao tempo, como blocos de afetos e sensações. Nesse sentido, o percepto é uma espécie de condensação de experiência sensível que a arte materializa, permitindo que os espectadores entrem em contato com um conjunto de sensações que existem por si mesmas, sem precisar ser reduzidas a uma interpretação pessoal.
Assim, o percepto está intrinsecamente relacionado à ideia de que a arte não representa o mundo, mas cria novos modos de sentir e experimentar a realidade — e isso, claro, respira com força em um espaço como o auroras.
Série Space Poem #11 (The Equator Has Moved), 2024
“No início deste ano, Green passou duas semanas hospedada no auroras com o objetivo de refletir sobre o que apresentar em sua primeira exposição no Brasil. A arquitetura modernista do espaço a remeteu à exposição que fez na Schindler House (Los Angeles) em 2015, o que a levou a incluir trabalhos diretamente relacionados ao arquiteto austríaco Rudolf Schindler (1887-1953), pioneiro da arquitetura modernista que imigrou para os EUA por causa da guerra. Green traça essas relações entre os dois espaços e seus deslocamentos, explorando não apenas a estética, mas também a filosofia que atravessa sua arquitetura, favorecendo um diálogo orgânico entre ambos. Mas acredito que sua relação pessoal com o Brasil através do irmão Derrick Green, vocalista da banda Sepultura desde 1998, seja a mais importante influência na seleção de trabalhos.”
A própria presença da exposição em terras brasileiras suscita um sem-fim de interpretações. A relação de Renée com o país é única e bastante enraizada. Come Closer, um curta-metragem feito em 2008, aborda suas conexões com o mundo lusófono e sua experiência de vida em Portugal. Quando se adentra o auroras, os visitantes são imediatamente envolvidos por esse trabalho, que estabelece o tom da exposição, servindo como uma meditação sobre a distância e a conexão, e tecendo uma rede afetiva entre cidades como Lisboa, São Francisco e locais do Brasil. Com uma narração em português, a obra destaca a complexidade das relações entrelaçadas entre os povos e a história, refletindo a relação contínua de Green com o mundo lusófono.A artista examina os vestígios do colonialismo, promovendo diálogos entre o passado e o presente, oferecendo uma rica exploração de temas que envolvem a arquitetura e a diáspora.E essa relação com o mundo lusófono segue. No hall de entrada, Relações: Megahertz, Megastar, Brother, Brasil (2009) apresenta banners suspensos que traçam os fluxos da diáspora africana e suas influências na música e cultura popular brasileira. Este conjunto é acompanhado por um elemento escultórico, que apresenta um vídeo em um iPod, onde Green tenta “se aproximar” de seu irmão. A obra não só explora distâncias físicas, mas também as conexões emocionais e culturais que transcendem fronteiras.
No coração da mostra está o filme Begin Again, Begin Again (2015), que reflete sobre a vida e a morte ao longo de um intervalo de 128 anos, evocando o trabalho do arquiteto R.M. Schindler, como apontou Ricardo. A narrativa, marcada por afirmações numeradas, é interrompida por uma consciência que divaga sobre a estranheza da sobrevivência. No jardim do auroras, uma voz oculta sussurra sobre jardins desaparecidos, criando um ambiente contemplativo que ressoa com os temas de perda, memória e a busca por conexão. Tudo parece se complementar com uma harmonia que sussurra realidades intrincadas com suavidade e clareza.
“Apesar de incluir trabalhos das últimas três décadas, a exposição foi inteiramente pensada pela artista levando em consideração as especificidades da casa, e oferece ao público a oportunidade singular de navegar pela obra da artista de forma contextualizada. Você vai ver obras que falam de modernismo em uma casa modernista, ouvir uma obra sonora sobre o desaparecimento de jardins em um jardim tropical e ler um space poem que envolve os escritos de Borges dentro de uma biblioteca. Em última instância, o trabalho de Renée é sobre questões humanas, e ver essa exposição dentro de uma casa oferece uma perspectiva distinta, mais meditativa.”
Com esta exposição, além de apresentar sua obra a um público novo, Renée Green também estabelece um diálogo profundo com o contexto brasileiro, explorando questões de identidade, memória e as complexidades da diáspora. E, sendo o hóspede de um corpo de um trabalho assim, o auroras se torna um espaço de reflexão e descoberta, onde a visão da artista provoca uma reconsideração do passado e suas repercussões no presente e no futuro.
“Desde a sua fundação em 2016, o espaço trouxe diversas artistas internacionais que jamais haviam mostrado no Brasil, como Cecily Brown, Amy Sillman, Tom Burr, Sarah Crowner e Terry Winters”, conta Ricardo pensando justamente no que já foi e no que está por vir. “Para os próximos dois anos, estamos planejando a primeira mostra no Brasil da alemã Charline von Heyl e dos estadunidenses Jacqueline Humphries e Richard Aldrich, além de uma exposição do músico Arto Lindsay”, conclui, antecipando o que está por vir.
Aproxime-se: Perceptos Sábado, das 11h às 18h, até 30 Novembro — Avenida São Valério, 426, Morumbi. Gratuito
Família. Uma palavra que evoca imagens prontas — um homem, uma mulher, filhos e filhas. Mas o reducionismo desse conceito foi, e ainda é, danoso a muitas pessoas. Será que essa é a única forma de família que podemos imaginar? Há muito mais complexidade e possibilidades no desenvolvimento dos vínculos afetivos — identidades diversas, intimidades que fogem aos padrões, amizades tão fortes que formam laços familiares não-sanguíneos.
Queremos a expansão da expansão, a assimilação e o acolhimento de conceitos que abraçam e entendem mais. Família é plural, e o momento de fazer essa pluralidade valer é agora.
Temos o rosto velado, somos como uma personagem aos olhos dos outros. De quem poderemos saber profundamente, senão sobre nós próprios?
Lázaro, na Bíblia, é uma figura a cuja história temos pouco acesso, mas sabemos que é amigo de Jesus. Ele também que foi ressuscitado por Cristo, por lhe fazer muita falta. O que é curioso é que ele tenha ressuscitado antes de Jesus, Deus na terra, conforme a Bíblia. E que Cristo não tenha sido o único a reviver. A minha interpretação é que, ao ressuscitar Lázaro, essa metáfora pode simbolizar que também o ser humano tem direito à oportunidade de ter uma outra vida.
Intitularmos de amigos mais pessoas do que podemos contar nos dedos das nossas mãos é realmente estranho. Nossas confidentes, nossos conselheiros, o espelhamento de nós nos outros, elegê-los implica que haja a coincidência da troca entre duas pessoas, sejam elas muito parecidas ou extremamente distintas. Encontra-se na reciprocidade o conhecimento do outro. É também por isso que Lázaro ressuscita, talvez. Falamos de nutrir um amor.
Este é um estado de graça, mesmo que não seja definitivo, que podemos ter ou não ter em várias fases na vida. Na sua essência, é como os anjos, sem rosto e de corpo informe, como as entrelinhas das palavras inauditas, de valor incompreensível e igualmente indizível. Isto é o que me move como humano, o último lugar. Não é um troféu. Não tem verbo nem forma. Uma arte que não precisa de discurso.
É raso quando imagens dependem de palavras.
É fútil não entendermos no gesto dos outros o seu sentir.
Como furar uma ligação por uma falha de comunicação. Para evitar isso é necessária a disponibilidade de duas partes.
Em que se resolve e como, este texto?
Na palavra “escuta”.
Escutar para existir amor; escutar os outros e sermos amigos; a família enquanto pessoa que nos escuta.
A família é esse lugar confortável, de cores quentes, com uma aragem de voz quente; uma imagem de um padre que se senta num banco junto a uma lareira comunitária e sente que toda a cidade fria é aquecida ali, comovendo-se. Talvez tenha escutado a voz de Deus.
***
Na primeira vinda a São Paulo, encontrei uma mulher curiosa, a meu ver. Interessam-me pessoas que fogem de um padrão por não corresponderem a uma “categorização”. Ela também já viveu várias vidas. Estudou arquitetura e acabou sendo artista. É uma pessoa invulgar.
A Manuela, conhecida como Manu Costa Lima no contexto do seu trabalho artístico, tem algo que muita gente não encontrou ou nunca sentiu: fé. A diferença é que ela incorpora isso no seu trabalho. Posso falar de fé, mesmo ela sendo uma coisa pessoal, para poder escrever sobre o que a Manu transporta nesse acreditar.
A fé é uma escuta, também. O trabalho que a artista realiza, o ato de fazer, não se vê, como a fé, pois ela é uma intermediária que dá à luz as imagens. Fazendo, contudo, escolhas, sim. Num processo de omitir e revelar, encontro o que há de mais honesto no seu trabalho. E o painel Lázaro torna visível o que desconhecemos. Foi preciso ver para acreditar. As palavras que deixa da Bíblia são a segunda oportunidade de vida e leitura, numa imagem que, a priori, é modernista, mas com essas informações deixa de ser. Esses sacrários, as colagens lacradas, os selos de espírito, encontramo-nos com eles (onde?) senão na intimidade de escutarmos o seu silêncio.
Manu Costa Lima não é uma artista “utilitária”, pois isso sequer existe. Ela faz objetos sem querer ser a protagonista nessas esculturas, querendo manter a sua fé viva, como algo prioritário. Obrigado, Manu, pela partilha dos seus ícones, sem representatividade. O observador, se lhes tiver acesso, que faça a sua leitura. Mesmo que seja como se estivesse a ler a Bíblia pela primeira vez, numa segunda vida.
Folhinhas de calendários sempre me encantaram. Tanto como objeto, por sua pequena escala, que cabe na palma da mão, seu grampo metálico que reúne todas aquelas folhas de papel-jornal e seu caráter corriqueiro e popular, mas também por sua carga simbólica, pela maneira que nos permite realizar fisicamente a passagem do tempo no ato de destacar do todo, dia a dia, mais uma página.
Parti desse objeto porque desejava fazer um trabalho que falasse do tempo, mas, ao me deparar com seu conteúdo — eram folhinhas do Sagrado Coração de Jesus —, acabei enveredando por outro caminho. Feitas pela Ordem Franciscana, as folhinhas traziam, em cada página equivalente ao dia do ano, uma citação bíblica, uma frase de um santo, um escritor ou uma personalidade que marcou a história. Além disso, elas informavam a fase lunar, o início de cada estação e as hortaliças para se plantar ou colher, traziam anedotas, indicações de leitura, orações.
Esse apanhado de informações corriqueiras ao lado de coisas sagradas resume muito do que tenho produzido recentemente. Religiosa que sou, me sensibiliza muito a manifestação divina no ordinário. Busco, com muitos de meus trabalhos, apenas revelar ou enfatizar essa presença invisível.
Manuela Costa Lima, capa da Amarello Família #50
As Folhinhas remetem aos ícones bizantinos. Com planos de cor recubro frases ou informações que me chamam a atenção. O dourado envolve o restante, como a luz divina nos ícones. Deixo, por vezes, apenas uma ou poucas palavras que dão pista do que está ali velado. A composição entre algumas dessas peças cria uma espécie de poema visual, em que forma e cor são pretextos para que, silenciosamente, adentremos essa dimensão sagrada no cotidiano.
Por onde começa uma narrativa que questiona e subverte a ideia de família?
No caso dos artistas Samira Elagoz e Z Walsh, a relação que mais tarde viraria narrativa se iniciou com uma improvável e instigante baforada de anos setenta. Como as pessoas que trocam fotos de gatos dizendo indiretamente “este sou eu”, as primeiras linhas dessa história aconteceram pela troca de fotos de ídolos como Led Zeppelin, Jimmy Page e Robert Plant, que, de alguma forma, refletiam suas personalidades e estéticas. Nessa conversa despretensiosa, foi dada a partida para uma conexão que transcenderia a barreira digital, levando Z a atravessar o oceano para encontrar Sam, indo dos Estados Unidos até Berlim.
O que começou como uma troca de imagens logo se transformou em trocas de olhares, palavras e toques, e virou uma série de momentos registrados por lentes. Assim nasceu You can’t get what you want but you can get me, curta-metragem sobre o desenvolvimento intenso de uma relação, que inclui a afetuosidade de um para com o outro durante uma mastectomia (retirada da glândula mamária feminina com o objetivo de transformação em um tórax anatomicamente masculino) e sua subsequente recuperação.
Ou seja, além de cúmplices de vida, são cúmplices de criação. Ambos têm carreiras marcadas pela investigação profunda de dinâmicas de gênero e olhares queer, cada um utilizando seus métodos para contar histórias de desconhecidos, Samira com câmeras de vídeo e Z com câmeras fotográficas. Mas o que torna You can’t get what you want but you can get me particularmente especial é a inversão de papéis envolta em simbiose na qual criadores, sem deixar de lado a vocação de criadores, viram os personagens de uma história compartilhada. O resultado é tão singelo quanto grandiloquente.
O filme, que ganhou repercussão em festivais de todo o mundo, é um slideshow com fotos menos e mais íntimas, uma coleção de vivências que têm início naquelas primeiras mensagens que já denotavam uma revolução. É uma obra que transita entre o hiperpessoal e o universal, acompanhando o caminhar embrionário de um relacionamento até seu crescimento total e completo, com uma sensibilidade e leveza raras, especialmente em narrativas envolvendo pessoas trans. A escolha por um formato simples, quase cotidiano, reflete o estilo de ambos. Samira, dos documentários, e Z, das fotografias, criam aqui um híbrido visual que une suas potências artísticas e pessoais. A vida imita a arte e vice-versa.
Pelas entrevistas concedidas a posteriori, fica claro que a intenção inicial não era criar qualquer tipo de projeto artístico, mas sim documentar algo especial para ambos. Z menciona que foi quase instintivo capturar cada momento vivido com Samira, dada a intensidade e a novidade do relacionamento. A proposta, porém, mesmo que não de maneira intencional no início, reflete um desejo maior de se apropriar das narrativas trans, frequentemente contadas de fora para dentro e quase sempre com um tom de tragédia ou trauma. Isto é, a narrativa apresentada no curta-metragem também aborda uma questão mais ampla dentro da arte trans: a necessidade de transcender as histórias de sofrimento e superação para incluir narrativas que refletem os pormenores, tão prendados de amor e beleza.
No auge de sua aparente banalidade, You can’t get what you want é um ato contra os estereótipos e a invisibilidade que ainda cercam a comunidade trans. Sentados, em momentos rotineiros, incitam um levante, acreditando piamente que a próxima etapa da arte trans é explorar os espaços intermediários em que a vida como ela é fica sob holofotes e o horror e a glória, que podem até se fazer presentes, não dominam.
Samira e Z não veem necessidade em se justificar e muito menos de educar sobre o que significa ser uma pessoa trans. É uma abordagem T4T (trans for trans ou trans para trans) cujo foco está na conexão e na intimidade, não nas explicações sobre identidade de gênero. O título, que, tendo em vista o apreço da dupla por roqueiros boca-de-sino, ecoa o You can’t always get what you want dos Rolling Stones, deixa claro: você não vai ter o que quer, ou o que acha que quer, você vai ter o que existe aqui e agora. É como se os artistas se vissem como uma forma de arte em si, um processo criativo contínuo e mutável. A ideia de que ser trans é ser um artista, como proposto por McKenzie Wark, ressoa profundamente. Criar-se, moldar-se, especialmente em uma relação que desafia as normas e cria novos paradigmas, é arte por si só.
O filme, que sublinha o apoio mútuo durante a transição, reflete um conceito expandido de família, que vai além da biologia e se fundamenta no reconhecimento e na aceitação plena do outro. A relação de Z e Sam pode ser vista como um novo, possível e revolucionário microcosmo afetivo, pronto para desafiar a normatividade heterossexual.
Pense de novo, Tolstói. Eis uma família feliz à sua maneira.
O filme You can’t get what you want but you can get me é um retrato sutil de intimidade e transição, desafiando as narrativas predominantes sobre experiências trans. O que foi necessário levar em consideração para capturar as camadas do relacionamento de vocês sem cair no didatismo? Foi tudo orquestrado de um jeito que funcionasse ou aconteceu de maneira natural (e, portanto, sem explicações excessivas)? Sam: Tanto eu quanto Z, separadamente, construímos nossas carreiras entrando na casa de estranhos com nossas câmeras, Z fotografando e eu filmando. Todo o meu trabalho é sobre conhecer pessoas desconhecidas e criar algo com elas. Mas, com Z, foi diferente. Pela primeira vez, conheci uma pessoa que me interessava sem ter a intenção de filmá-la. Só que aí, desde o primeiro encontro, Z começou a tirar fotos de mim e, de forma natural, seguimos nos documentando e capturando nosso processo de nos apaixonar. Nunca planejamos criar uma obra juntos, apenas começamos a nos filmar. Só meses depois percebemos que isso poderia virar um projeto. O amor veio primeiro, o trabalho veio depois.
Z: Queríamos ir além das narrativas trans estereotipadas que costumam aparecer por aí — histórias voltadas para educar o público cis, que são ou trágicas ou impossivelmente fofas e para cima. No lugar disso, queríamos mostrar algo no meio disso tudo: uma história sobre pessoas trans vivendo vidas comuns e cheias de amor.
Sam: Alguém chamou nosso filme de: “uma história T4T que não pede desculpas a ninguém e que não se preocupa em se explicar para o olhar cisheteronormativo”. Era exatamente isso que queríamos fazer, um trabalho que focasse menos nas nossas identidades de gênero e mais na conexão que temos um com o outro.
A troca de imagens do Led Zeppelin se tornou um catalisador inesperado para o seu relacionamento e colaboração criativa, especialmente em uma era que não pensa duas vezes antes de rejeitar heróis do passado. De que maneira a importância estética e cultural desses ícones ressoa com seus temas?
Z: Sinto que as pessoas trans não têm a mesma liberdade criativa na expressão de gênero que nossos colegas cis, o que parece contraditório, já que a transgeneridade é baseada quase inteiramente na autocriação. Não é que eu queira ser reconhecido apenas como “um homem”. Sempre achei que os homens mais atraentes são os que têm cabelo longo e usam roupas justas, que não têm medo de um pouco de maquiagem. Então, naturalmente, é esse o tipo de homem que eu quero ser. Não quero ser qualquer um. Quero ser um rockstar dos anos 70. Encontrar Sam foi uma virada de jogo para mim, porque ele não só aceitou minha expressão de gênero, mas a compreendeu de uma maneira que só ele poderia. Nunca conheci ninguém que se expressasse de forma tão semelhante a mim, e foi muito natural explorarmos isso criativamente também.
Sam: Sempre digo que o fanatismo é a 6ª língua do amor. No início do nosso relacionamento, nos unimos pela música, e acho que me apaixonei por Z quando percebi que ele também era um fanboy. No passado, interagi com muitos fanboys, mas eles raramente se importavam com o que eu gostava. Com Z, foi diferente, sua empolgação em compartilhar cultura parecia hiper-romântica. Trocávamos fotos de estrelas do rock como Jimmy Page e Robert Plant da mesma forma que as pessoas enviam fotos de gatos e dizem, “somos nós”. Enquanto a gente passava por nossas transições, enfrentávamos preconceito por causa do nosso cabelo longo e características mais femininas. Foi sintomático criar uma conexão a partir de estrelas do rock que tinham cabelo longo e abraçavam traços femininos sem que ninguém questionasse sua masculinidade.
O filme de vocês tem foco no cotidiano, no mais pessoal, afastando-se das grandes narrativas de sofrimento. Qual é o papel dessa abordagem na reconfiguração da narrativa trans dentro do panorama cultural mais amplo?
Z: Ao longo da história e da cultura pop moderna, os homens trans apaixonados são quase invisíveis. Histórias sobre masculinidade trans muitas vezes são contadas a partir da perspectiva de outras identidades ou, então, em relação a essas outras identidades, num segundo plano. A identidade masculina trans raramente é mostrada como algo que possa se erguer sobre os próprios pés, e não costumamos ser protagonistas. Nossa urgência é criar um espaço onde o amor T4T seja algo natural. Com nosso trabalho, enfatizamos a possibilidade do amor trans como algo profundo, significativo e não centrado em trauma ou tragédia.
Sam: Acho que há algo muito inocente no slideshow. Ele conta uma história de amor quase adolescente, enquanto também mostra a intensidade dos relacionamentos trans. Nos conhecemos e nos apaixonamos como qualquer outro casal, mas temos que enfrentar acontecimentos profundos e transformadores juntos.
Ao misturar as linhas da vida e da arte, o relacionamento vira um meio criativo. Quais desafios surgem na interação entre suas vidas pessoais e seus papéis como artistas, especialmente em um projeto tão ligado à experiência compartilhada de vocês?
Sam: Em qualquer situação em que a intimidade real é retratada publicamente, seja em uma obra de arte ou em um reality show, você se expõe a ser julgado pelas partes mais privadas da sua vida. Pessoalmente, acredito que há algo de nobre em jogar para o mundo sua vida, suas questões, inseguranças e epifanias, confiando que sua experiência é humana, compartilhada e valiosa.
Se você é um artista de um grupo minoritário ou oprimido, está sempre sendo avaliado pelo que representa e se sua representação é considerada adequada. Qualquer consideração sobre suas virtudes para dirigir, escrever ou editar é totalmente secundária — isso quando ela ocorre. O julgamento é sempre pessoal, voltado para sua aparência ou comportamento, e não sobre como você realiza seu trabalho. Homens brancos cis, por outro lado, receberam essa sensação de neutralidade e, com ela, têm a liberdade de representar outros e contar histórias que apenas observaram. Artistas marginalizados são mantidos a um nível mais elevado de pureza e têm mais a perder se não corresponderem ao que se espera.
Z: Para mim, o desafio de trabalhar junto com o parceiro é bem parecido com os desafios de trabalhar sozinho, só, talvez, um pouco mais intenso, já que há dois corações envolvidos. É o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, o diálogo interno negativo, a vulnerabilidade inevitável de transformar em realidade as [suas] visões mais profundas. Claro que os riscos parecem grandes quando você compartilha partes do seu relacionamento mais importante em nome da arte, mas acho que foi exatamente por conta desses riscos que aprendi tanto com esse projeto. É uma honra ter seu parceiro como a pessoa que segura um espelho para você ao longo do processo criativo. Você começa a perceber que a forma como lida com sua criatividade respinga para o resto da sua vida e para todos os seus relacionamentos, independentemente de quão próximo você permita que as pessoas que você ama se envolvam no seu trabalho. Essa percepção me fez ser mais intencional na maneira como me relaciono comigo mesmo e com os outros enquanto crio.
É surpreendente como a ideia de uma pessoa trans ter uma família ainda pode ser vista como algo inesperado, mesmo que isso não devesse causar surpresa alguma. Que mudanças vocês julgam necessárias para tornar o conceito de família mais inclusivo e representativo de identidades e relações diversas? Z: Família significa algo diferente para cada um de nós, essa é a beleza da coisa. Eu me sinto muito grato por ter membros da minha família biológica que me apoiam, e tem sido um prazer conhecer a família do Sam também. Mas algo que gerações de pessoas queer sempre entenderam é o conceito de família escolhida. Poder trazer o Sam para perto da minha comunidade queer/trans de irmãos, irmãs e amigos é tão importante para mim quanto apresentá-lo à minha mãe e irmão! E as únicas pessoas com quem me preocupo que entendam esse tipo de família são aquelas que realmente precisam dela.
Sam: No nosso trabalho, algo que achamos importante foi o fato de que nunca tivemos que admitir nada para nossas famílias, nem nos preocupamos em abordar nossas identidades nesse contexto. Elas simplesmente estavam lá, participando das nossas vidas e do nosso projeto. Essa abordagem reflete a normalização de estruturas familiares diversas, fazendo com que o foco esteja nos relacionamentos e nas experiências, não na necessidade de validar ou explicar nossas identidades. Para tornar o conceito de família mais inclusivo e representativo de identidades diversas, é essencial normalizar essas experiências, retratando-as como uma parte natural da vida e abandonando a ideia de que são exceções ou anomalias.
É no coração de uma floresta finlandesa, erguido, não por acaso, entre o verde intenso e o farfalhar suave de um conglomerado de árvores, que está o Sanatório de Paimio. Concebido por Alvar e Aino Aalto e inaugurado em 1932, esse projeto arquitetônico que transcende o tempo e as convenções é um símbolo indelével do potencial da arquitetura deimpulsionar cura e bem-estar. Numa época em que a tuberculose ainda ceifava muitas vidas ao redor do mundo, quando a luta contra a doença apenas começava a se articular de maneira eficaz, os Aalto vislumbraram um espaço onde a luz, o ar e o design se uniriam feito sinfonia para aliviar o sofrimento de pessoas enfermas.
Na década de 1920, a recém-independente Finlândia via na construção de hospitais, sanatórios e outras instituições públicas uma oportunidade de criar sua identidade nacional e incitar o orgulho patriótico, antes inviabilizado pelo grão-ducado Russo. O país buscava afirmar-se por meio de empreendimentos públicos ambiciosos, e o Sanatório de Paimio tornou-se um exemplo emblemático dessa estratégia, combinando funcionalidade com inovação estética. O processo que culminou na criação do sanatório teve início em 1929, quando o casal Aalto venceu o concurso público para projetar a obra, marcando um ponto de convergência entre a arquitetura moderna e a afirmação cultural finlandesa.
Desde o início, a inovação se fez presente, a começar por uma decisão aparentemente simples , mas inegavelmente revolucionária: o edifício em si seria como uma extensão do tratamento médico. Para os Aalto, um sanatório não deveria ser somente um lugar de confinamento; na verdade, ele tinha tudo para ser uma ferramenta terapêutica ativa, projetada para maximizar os efeitos dos métodos conhecidos, na época, para tratar a tuberculose, como o repouso, o contato com a luz solar e a inspiração de ar fresco. Esses elementos, por mais triviais e pouco hospitalares que possam parecer, formavam o cerne da mentalidade que deu à luz uma das obras mais significativas do movimento modernista na arquitetura.
A cerca de três quilômetros da pequena cidade de Paimio e a quase trinta de Turku, as imensas árvores e os sons tranquilos da floresta criavam um ambiente de serenidade e isolamento, ideal para a recuperação dos pacientes, que muitas vezes passavam anos em tratamento. Estar perto de uma vegetação tão densa proporcionava uma transição suave e necessária do mundo exterior para um espaço inteiramente dedicado à cura e à introspecção.
A estrutura principal do sanatório consistia em várias alas interligadas, cada uma dedicada a funções específicas, mas todas com o objetivo comum de promover a saúde por meio de um ambiente cuidadosamente planejado. A ala dos quartos, com seus sete andares, foi projetada para maximizar a exposição à luz solar. Cada quarto, voltado para o sul-sudoeste, captava o máximo de luz natural ao longo do dia. As amplas janelas, que se estendiam do chão ao teto, inundavam os espaços com luz e eram quase como pinturas barrocas, emoldurando o exterior com suas largas vistas panorâmicas da paisagem ao redor e estabelecendo uma conexão constante entre os pacientes e a natureza.
Dentro dos quartos, os tetos escuros criavam uma atmosfera tranquilizante, enquanto as paredes em tons suaves refletiam a luz de maneira gentil para evitar brilhos mais intensos que poderiam incomodar a vista. As luminárias, com um propósito similar, foram posicionadas de maneira a minimizar o desconforto visual, reconhecendo que a percepção sensorial poderia influenciar o estado emocional e físico dos pacientes. Até mesmo as pias foram projetadas com um ângulo específico para reduzir o ruído da água corrente, demonstrando uma atenção quase obsessiva aos detalhes que poderiam impactar o bem-estar.
Áreas como a sala de jantar, a biblioteca e espaços de recreação foram concebidas para facilitar interações sociais saudáveis e criar um senso de comunidade e apoio mútuo. Terraços amplos e acessíveis permitiam que os pacientes desfrutassem do ar fresco e da luz solar em diferentes momentos do dia, o que promovia a mobilidade e o contato com o ambiente externo, mesmo durante os longos invernos finlandeses. Para os dias mais frios, sacos de dormir forrados de pele eram disponibilizados, tudo para garantir que o clima adverso não se tornasse um impedimento para a terapia ao ar livre.
A colaboração entre Alvar e Aino Aalto foi além da arquitetura estrutural, estendendo-se ao design de interiores e de peças de mobiliário. Juntos, criaram ícones do design moderno, como a célebre Cadeira Paimio. Inspirada no assento Wassily de Marcel Breuer, a versão dos Aalto utilizava madeira laminada curvada, explorando as possibilidades do material para criar formas orgânicas e confortáveis que auxiliavam na respiração dos pacientes.
Tudo ali combinava uma rigorosa análise científica com uma sensibilidade artística e humanista profunda. O casal criador abraçou os avanços da produção industrial e os princípios do funcionalismo, apertando-os forte com ambos os braços, mas sem nunca perder de vista o elemento humano, que sempre foi o motivador central de todas as suas decisões. Alvar Aalto, sempre atento às inovações tecnológicas, introduziu o primeiro elevador panorâmico da Finlândia em Paimio, uma inovação que, além de funcional, servia também para proporcionar aos pacientes uma visão privilegiada da paisagem ao redor. Esse cuidado com os detalhes se estendia à disposição dos blocos de edificações, pensados para minimizar a propagação da doença e garantir a máxima privacidade e conforto aos doentes.
O sanatório e seu conjunto de peculiaridades foram idealizados como uma resposta a uma crise de saúde e como um espaço que reconhecia e valorizava a dignidade e a experiência individual de cada paciente.
A integração harmoniosa entre forma e função, natureza e tecnologia, individualidade e comunidade que os Aalto alcançaram há quase um século continua a oferecer um modelo aspiracional para o futuro da arquitetura e do design. O Sanatório de Paimio permanece como um dos maiores representantes da arquitetura que cura, caracterizada pela capacidade humana de criar espaços que nutrem o corpo e a alma através da luz, do ar e da beleza intencionalmente cultivada.
Ao longo dos anos, o sanatório passou por diversas transformações, adaptando-se a novas funções e necessidades. A descoberta de antibióticos contra a tuberculose reduziu drasticamente a necessidade de sanatórios, levando-o a se reinventar como hospital geral e, posteriormente, como centro de apoio para crianças com transtorno mental e deficiência. Apesar dessas mudanças, a essência do design dos Aalto permanece intacta, graças à preservação e ao reconhecimento do valor histórico e cultural do edifício.
Hoje, quase cem anos após sua construção, o sanatório faz parte do Hospital Universitário de Turku e há um movimento crescente para que o edifício seja reconhecido como Patrimônio Mundial da UNESCO, um reconhecimento que celebraria a convergência entre arte, ciência e humanismo que ele representa. Se um dos objetivos iniciais era forjar uma identidade finlandesa, essa missão foi plenamente alcançada, pois a Finlândia continua a se orgulhar do que foi, é e ainda será realizado ali.
Quando aspectos físicos, emocionais e sociais são considerados, surgem espaços que, além de atender às necessidades funcionais, também enriquecem a experiência humana de maneiras profundas e significativas. Mais do que isso, ao priorizar o ser humano, a arquitetura atinge sua máxima funcionalidade. No coração de cada estrutura bem-sucedida deve pulsar precisamente isso: um coração, junto com uma compreensão profunda das pessoas para as quais ela foi criada. Essa abordagem, muitas vezes subestimada, talvez seja a mais eficiente de todas.
O Sanatório Paimio permanece como um marco e uma voz poderosa na chamada healing architecture, mostrando que é possível transformar o mundo, construindo novos espaços e projetando possibilidades de cura.
No fundo do vale, entre a Serra da Mantiqueira, Bocaina e Itatiaia, chegamos em um portal para um pedacinho de Brasil profundo, onde o tempo parece andar mais devagar, ditado pelo compasso sem pressa da cultura caipira.
Visitamos a região para garimpar um turismo de experiência autêntico, fora do óbvio, perfeito para escapadinhas de final de semana e feriados. Com divisas entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, esse pedacinho do Brasil fala a língua das culturas dos três estados.
Essas terras, que hoje atravessamos de carro, com pressa, sobre a via expressa da estrada asfaltada, foi um dia uma rota pujante de mulas, viajantes e comerciantes da época do Ciclo do Ouro, que escoava de Minas Gerais por esse mesmo vale em direção ao Rio de Janeiro. Foi cruzando essas primeiras trilhas de chão de terra que nosso país cresceu e se desenvolveu pelo Vale Histórico. O trajeto era utilizado tanto na época do Brasil colonial quanto no Brasil republicano. Os primeiros tropeiros comerciantes abasteciam com mantimentos as vilas e faziam o papel de “mídia” para que a informação pudesse circular na Corte Imperial, no Rio de Janeiro. Não coincidentemente, a distância entre cada uma das cidades é de aproximadamente 25 km, a distância média que uma mula conseguia percorrer em um dia de viagem. Cada entreposto acabava formando um rancho, um local de “hospedaria e restaurante”, e a partir deles foram se desenvolvendo essas vilas, hoje as pequenas cidades do Vale Histórico: Bananal, Arapeí, São José do Barreiro, Areias, Queluz, Silveiras, Lavrinhas e Cruzeiro.
Resolvemos, então, montar nas nossas mulas de aço e quatro rodas para fazer uma mídia atualizada, percorrendo parte dessa rota em uma releitura do que se chamaria hoje de “turismo tropeiro”.Nada melhor, para começar a contar esta história, do que uma boa cachaça no Rancho, centro de gastronomia e cultura caipira em São José do Barreiro, em frente à pracinha mais charmosa da cidade. A experiência gastronômica oferecida no local remonta à comida típica dos tropeiros, que mistura pratos indígenas como o iça (farofa com formiga tanajura frita) com pastel de angu e fubá moído no moinho de pedra, além de diversos tipos de cachaça. O espaço conta ainda com um armazém com uma curadoria de produtos locais que transcende épocas, como carne de lata, café moído na hora, produtos a granel e cestos de taboa (levados nas mulas). Nos finais de semana e feriados, o local conta com a presença dos melhores violeiros da região.
“Tropeirando” mais adiante, chegamos à cidade de Areias, que abriga a nascente do Rio Paraíba e que conta com algumas atrações inesperadas, como o HotelSant’Anna, autointitulado o mais antigo em atividade ininterrupta no Brasil desde 1806. Nele, hospedaram-se D. Pedro II e a princesa Isabel, que fundou, na época, um conservatório de música frequentado pela alta sociedade da região, em uma era em que o Brasil econômico era o café, e o café era o Vale do Paraíba.
Vizinho do Sant’Anna, em um casarão antigo, conhecemos o antigo hotel e pensão Marques, por onde passaram Monteiro Lobato e Euclides da Cunha. Aliás, reza a lenda de que foi em Areias que Monteiro Lobato, na época trabalhando como promotor público na cidade, conheceu uma areiense chamada Anastácia, que trabalhou na sua casa e posteriormente o inspirou na criação da célebre personagem do Sítio do Picapau Amarelo, clássico da literatura brasileira.
Assim como tia Anastácia, a simpatia dos areienses é notória em todo lugar. Comece o dia com um café da manhã no Angelito, que une artesanato local com um cafézinho coado na hora e muito papo. A Casa de Cultura da cidade abre as portas da antiga cadeia e mostra orgulhosamente retalhos únicos da história: um exemplar de jornal original com a publicação da Lei Áurea e muitos trechos revolucionistas de 1932, uma vez que a revolução foi também sediada na cidade.
Entre uma cidade e outra do vale, as verdejantes fazendas guardam memórias quase intocadas da era de ouro do café. Algumas são tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), como a Fazenda Pau d’Alho, que é uma das poucas no Brasil com preservação integral e original de quase todas as instalações, sendo possível encontrar nela taipa de pilão e embasamento de pedra.
Outros espaços transformados em hospedagem são a Fazenda do Conde D’Eu, que pertenceu ao próprio marido da Princesa Isabel, e a histórica Fazenda São Francisco, com mais de 200 anos de existência. Esta recebe hóspedes nos seis quartos da casa-sede preservada, com direito a passeio a cavalo e visita a cachoeiras. A propósito, aos adeptos das aventuras equestres, existem outras fazendas que também abrem as porteiras, com hora agendada. Para quem quer experienciar um dia típico de produção de uma fazenda leiteira, desde a apresentação de cada vaca (por nome) até a produção na queijaria, é só falar com o Roberto, proprietário gente fina da Fazenda Barão da Bocaina.
Chegando em em Queluz, outro passeio super autêntico é a Fazenda Restauração. Se você quer fazer história junto, não deixe de visitar o Roberto. A restauração está rolando enquanto você lê essa matéria. Esse advogado com alma de artista é um baita narrador da história do café e profundo entusiasta de todas as raridades que encontrou e restaurou desde quando comprou a propriedade.
Encabeçando a revitalização do turismo rural local, a joia da coroa sem dúvida é a Fazenda Santa Vitória, fascinante propriedade de quatro mil hectares no coração do Vale. Essa fazenda leiteira foi crescendo aos poucos e expandindo seus sonhos neste verdadeiro “eixorural”, que tem hoje múltiplos projetos em andamento. A queijaria, com rótulos premiados, é um deles.
Com um pouco mais de tempo, a hospedagem na fazenda é parada obrigatória de puro “deleite”. Atualmente, são duas as vilas de hospedagem: a Vila Prosperidade, sede principal, mais familiar, e a Vila da Cascata, que é um pouco mais afastada e imersiva na natureza. Tudo com um luxo sustentável e integrado ao ambiente local de um modo que dá gosto. De um centro para o outro, um pouco de trânsito de vacas garante uma experiência rural totalmente genuína.
Ainda faz parte da imersão um pouco de arte para o coração: o recém-inaugurado Respiro, encabeçado pela artista plástica Beatriz Monteiro, é um circuito de obras de arte e residência artística rural dentro da fazenda. Outra novidade são as trilhas recém-mapeadas dentro da reserva ambiental da fazenda, que começam no início de junho com programação guiada.
Novos planos de mais duas vilas de hospedagem e plantio de uvas para enoturismo estão para acontecer na região. Para não perder, seguimos de olho para as próximas novidades e em tudo que ainda florescerá no Vale Histórico.
Filha de pai jamaicano e mãe brasileira, Nabiyah Be é atriz, cantora e dançarina. Multiartista por essência, a jovem baiana, entusiasta do bairro do Rio Vermelho, em Salvador, nos conta sobre o impacto que a relação precoce com a fama teve em sua vida e carreira, a experiência em Nova Iorque e a preparação para o lançamento do seu primeiro álbum musical.
Você tem raízes no Brasil e na Jamaica. O seu pai, Jimmy Cliff, é uma grande figura da música, muito conhecido, mas ele certamente não te fez sozinho. A sua mãe, chamada Sônia, deve ser uma mulher intensamente interessante.
Exato, ela se chama Sônia Gomes. É psicóloga, professora e especialista em trauma.
Como foi a sua infância nesse contexto?
Eu nasci na Bahia e sinto que tive uma infância peculiar, no sentido da exposição à cultura e religião. Meus pais se conheceram numa cerimônia de ayahuasca, fui batizada muçulmana e cresci em Salvador. Devido ao trabalho do meu pai, viajei muito na infância, o que fez minha mãe me criar, de certa forma, sozinha, longe da família. A família por parte dela, contando [com os] nossos amigos como rede de apoio, estavam espalhados, na verdade, pelo país. Uma parte deles em Salvador, outra em São Paulo, e ainda uma parte no Recife. A família por parte de pai ficava espalhada pelo mundo, muitos na Jamaica, irmãos que cresceram no Canadá, alguns em Londres. Então, as viagens, desde muito nova, eram para visitar a família. Comecei a trabalhar com meu pai desde cedo, e dos 7 aos 11 anos eu já cantava e acompanhava ele nos shows. Nos meses em que estava com meu pai, percebia que essa itinerância não era algo comum na vida das outras crianças. Apesar de estar muito exposta a uma ideologia e maneira de viver muito afrocêntrica, por influência do meu pai e da parte da família jamaicana, na qual muitos são rastafári, a escola que meus pais escolheram, para que eu pudesse ter essa vida internacional, foi uma escola americana e bilíngue. Então, [uma escola] extremamente elitista, branca e, de certa forma, católica também. E a gente estava ali, eu com uma família bebedora de ayahuasca, muçulmana — depois, minha mãe se tornou devota de um guru na Índia —, toda essa confluência entre as vias de matriz africana e o mundo branco. Ao mesmo tempo, foi essa escola que me permitiu, posteriormente, viver em Nova Iorque por tanto tempo e transitar por diferentes culturas.
Na prática, você vive o seu exercício artístico desde muito cedo. Mas eu gostaria de saber quando você se entendeu como artista, com os seus próprios desejos e fabulações de criação? Tem um marcador, ou isso foi tão orgânico que você não consegue fazer uma divisão?
Eu separo em dois momentos. A performance em si sempre esteve muito presente. A minha primeira experiência de palco foi com dança. Aos 5 anos, participei de uma companhia de dança contemporânea. Eu saía do meio da plateia, saía correndo, entrava no palco, e começava a dançar com a companhia. Então, o palco para mim sempre foi um lugar sagrado e seguro, onde eu me reconheço como alma e em serviço. Só que, adentrando o psicológico de pessoas que são filhas de pessoas famosas, existe uma crença ali de que, para receber amor, eu preciso performar. Então, aos poucos fui reconhecendo que, apesar de ter muito amor por performar, eu tinha ali um lugar de obrigação. Foi quando senti que precisava pegar um instrumento, compor, fazer algo que não precisasse da presença de uma outra pessoa para validar o que eu estava fazendo. Eu sempre digo que o teatro, que a atuação salvou a minha vida, porque, quando criança, eu performava e dançava em turnês e, nesse processo de estar constantemente desinibida, vivi situações muito intensas na frente de muita gente. Aos 11 anos, comecei a murchar e o teatro serviu, quase como por emergência, num nível educacional, para regular o meu sistema nervoso e a minha vida emocional. Sempre digo que a atuação salvou a minha vida por me ajudar a ter esse lugar de segurança ao acessar minhas vulnerabilidades. Faz sentido pensar no teatro como um caminho que foi dando instrumentos para você lidar com a sua urgência artística, digamos assim.
Sim, quando falo que houve dois momentos, é porque eu tinha muita noção de que, quando cantava ou dançava, era algo meio que “oh” na cabeça das pessoas. Eu tinha consciência desse meu poder quando criança. Mas eu não sabia o que fazer com ele, não sabia o que falar. Eu sabia apenas que, quando performava, acontecia uma atenção prazerosa na minha psiquê. Aí vem o segundo momento, quando [eu era] adolescente e fazia parte de uma companhia de teatro. Lembro que estava de carro, passando pelo Rio Vermelho, em Salvador, quando me veio uma consciência de morte, ligada à ideia de que eu precisava fazer alguma coisa somente para mim, alguma coisa que não significasse a necessidade da presença do meu corpo. Senti, ali, que precisava compor, precisava criar algo que pudesse existir sem o meu corpo. Foi então que me debrucei a me envolver com composição e, bem depois, com produção. No período em Salvador, você chegou a ter experiência com a cena do teatro?
Sim, comecei aos 15 anos e fiquei até ir embora. Fiz teatro de guerrilha, escrevendo, produzindo tudo, colocava a escola em editais, preparava nossas turnês locais. E foi muito importante para mim, porque eu era a única adolescente no meio de um pessoal da faculdade. Então, eu super me achava a intelectual, e realmente foi um grande aprendizado. Aí você sai de Salvador com 18 anos e segue para os Estados Unidos?
Com 18 anos, fui para Nova Iorque sozinha, fazer faculdade. No primeiro ano, já comecei a trabalhar no circuito de teatro. Fiz muita Broadway, musicais, peças, atuei muito dentro do círculo de música brasileira e — pouco, é verdade — com as minhas próprias músicas. Sempre digo que Nova Iorque me fez a artista que eu sou, porque é um lugar de muita reverência e devoção para a arte e as escolhas artísticas de cada um. É uma cultura em que se diz, “ok, vamos estudar, vamos melhorar”. Em alguns níveis, pode não ser saudável, mas há essa cultura do aprimoramento que me fez crescer muito.
Você teve uma jornada que também se destaca na parte audiovisual. Entre filmes e séries, você elenca algum trabalho que foi muito engrandecedor internamente?
O Daisy Jones and the Six, sem dúvida. Tanto por ter sido a minha primeira experiência com uma personagem relativamente grande, de importância na narrativa, quanto pelo fato de ter sido um projeto de longo prazo, com muito tempo de pré-produção, de produção, enfim. Foi uma grande escola, porque pude contribuir com ideias de como adaptar a personagem do livro para as telas. Isso foi muito importante.
Você está em vias de lançar o seu primeiro álbum solo. Como você vê hoje os encontros e as parcerias que você encontrou até aqui? Como você as sente?
Eu percebo que quanto mais clareza tenho sobre o que quero transmitir para o mundo, ou o sentimento que quero acessar, mais fácil se torna reconhecer os meus parceiros. Com isso em mente, fica mais simples conhecer as pessoas e enxergar as suas qualidades. Foi assim com o Lucas [Carvalho] e o Marcelo [Delamare]. Desde o início, pensei, “o que e como eu posso aprender com vocês?”. Em termos de produção, musicalmente também. Eu iniciei a produção desse disco aprendendo a produzir. Aprendi a mexer um pouco, a fazer a engenharia de som e ir direcionando o que eu quero. Tive muita consciência e humildade nesse processo, por isso considero que fiz aprendendo, mesmo. Com muita confiança e um tanto de medo, mas sempre bancando o que eu sei e o que tenho clareza que desejo.
É muito importante o que você diz, de bancar o que se sabe. Você é híbrida, sai de um lugar, vai para outro e aprende no percurso. A Bahia, sem dúvida, te deu régua e compasso para confiar no seu axé. E quanto às referências culturais, o que está explícito no teu trabalho?
Sinto que a minha vivência internacional é muito explícita nesse trabalho. É um álbum híbrido, tanto de línguas como de gêneros. Cada vez mais têm me interessado artistas que vêm fazendo isso, propondo essas transições, misturando gêneros. Nós, enquanto sociedade, somos obcecados por termos uma identidade. Sempre nos definimos como isso ou aquilo. Eu acho que, de certa forma, existe isso nesse álbum. Todas as canções foram compostas, em grande parte, comigo no violão, usando as minhas progressões de acordes, que são muito brasileiras, algumas trazidas também do R&B. Consigo olhar para isso e pensar que é a minha raiz.
Você lançou Everybody, Poçoazul e Hero, três músicas de forma separada. Queria saber sobre a sua experiência de realizar lançamentos independentes para apresentar o trabalho que está chegando.
Fiz esse disco em coprodução, em grande parte, com Marcelo Delamare e Lucas Carvalho, que coproduziu três faixas. A Everybody me deixa muito feliz, porque foi uma das primeiras experiências [que tive] de reconhecer uma produção minha e sentir que eu estou realmente conseguindo produzir. Eu cheguei com uma pré-produção muito pronta para eles, e, até na hora de gravar, eu tinha muita clareza. Da mesma forma, Poçoazul foi uma consequência muito bonita do encontro desse trio, resultando em algo mágico. A Hero era uma música que estava bem encaminhada e o Marcelo a engrandeceu com o seu talento de arranjador e diretor musical.
E na parte da produção audiovisual?
No audiovisual, iniciei a ideia do roteiro, tanto de Everybody como de Poçoazul, no período em que eu estava morando na casa da Leandra [Leal], e ela estava muito próxima das minhas questões internas, do que estava movendo os meus questionamentos. Então, foi superinteressante entender, através do meu corpo, da minha imaginação, como eu queria contar a história e entregar isso para as pessoas construírem em cima. Tanto a Leandra Leal, em Poço azul, como o Edvaldo Raw, em Everybody, me deram essas alegrias criativas. Você conseguir acessar algo sozinho e, ao mesmo tempo, também em colaboração é muito enriquecedor.
Os filmes têm uma escolha estética linda e envolvente. Além de você ser muito cativante. É interessante observar a artista se apresentando.
Que massa, fico feliz. Como comentei, a minha essência é a performance, então, esse é um lugar em que eu me reconheço e me sinto muito à vontade.
Prestes a fazer esse lançamento — que já está acontecendo de alguma forma, como falamos —, você mergulha no seu íntimo e o que encontra hoje, agora?
É muito interessante, porque, na minha crença, a gente recebe muita ajuda espiritual quando está criando, quando está preparando algo autoral. É um verdadeiro trabalho de cocriação com o divino fazer algo do zero. E muito da ajuda que eu sinto que recebi nesse processo, de composição e produção, foi do meu eu do futuro. Um trabalho artístico segue mudando à medida que o trabalho vai tomando forma, seja em show ou outros projetos visuais. Com isso, vou poder compreender melhor a força da mensagem desse álbum. Sinto que é algo conectado com o futuro, que ainda está por vir. Acho que tudo que tenho trazido enquanto autora carrega uma força de buscar viver com o coração aberto, custe o que custar.
Quando pensamos em família, geralmente nos vem à mente o modelo branco-ocidental heteronormativo. “Pai, mãe e filhos”. Além disso, costumamos lembrar também de dogmas que inserem a família num lugar sacro e imaculado. Mas o que será que a filosofia, em especial as sabedorias de origem africana e afrobrasileira, tem a nos ensinar sobre esta instituição-conceito tão central em nossa sociedade? Para saber mais, conversamos com o professor e pesquisador Renato Noguera, autor do livro Por que amamos.
Dentro de uma perspectiva filosófica, o que é ou o que são as famílias?
Noguera – Uma forma de pensar a família, em termos filosóficos, é como um ecossistema afetivo, como um ambiente onde há um tipo de circuito afetivo do qual as pessoas se alimentam, se retroalimentam e podem aumentar sua potência. Podem ser mais ou menos funcionais. Então, em famílias mais organizadas, que são afetivamente mais equilibradas, as crianças, as pessoas adultas, todas as pessoas tendem a crescer mais, desenvolver seus potenciais e serem mais colaborativas, mais proativas e mais funcionais. E famílias disfuncionais são ecossistemas mais desorganizados, ecossistemas que não são autorregulados. Então, por uma teoria filosófica dos afetos, as famílias são ecossistemas afetivos.
Em seu livro, Por que amamos, você traz algumas perspectivas filosóficas, pautando o que a filosofia e os mitos têm a dizer sobre o amor. Você acha que tem algo que os mitos, a filosofia, os itãs podem nos dizer sobre as famílias?
Noguera – Tem algo interessante, porque em algumas culturas, por exemplo, na cultura cristã, o amor tem um papel muito importante, um papel de centralidade. A gente vê isso em Coríntios, em várias passagens: o amor tudo suporta, em tudo crê.
Muniz Sodré destaca uma coisa importante. Ele fala, por exemplo, que a alegria tem um papel central na cultura iorubá, que a alegria é uma coisa que a gente incorpora, uma coisa que tem relação com o núcleo familiar. Então, depende muito de como a gente define amor nesse contexto.
Agora, o amor, em muitas tradições culturais africanas, não é [percebido] da mesma forma que é percebido na tradição judaica ou na tradição cristã. Especificamente, tem essa diferença… Agora, para a gente pensar sobre família, há diferentes formatos. Há famílias que são policonjugais, famílias que não estão no padrão da tradição monogâmica, judaica-cristã, famílias que são mais extensas, famílias que não têm só o caráter nuclear — do pai, da mãe e das crianças, geralmente —, então, são mais amplas.
É importante que a família seja um espaço, um território de segurança psicológica. Acho que isso é o mais importante. Como a gente tem na família um lugar em que as pessoas estão confortáveis para poder dizer o que elas estão sentindo, para poder expressar suas emoções, para poder trazer as suas angústias, para poder ter suporte e apoio. Então, família é um território de proteção e de alimentação espiritual também.
Uma forma de pensar é a família como um lugar onde a gente se alimenta, onde tem apoio e fica mais seguro psicologicamente para poder tomar suas decisões. Um lugar fundamental para que as nossas decisões sejam apoiadas e as pessoas possam não decidir pela gente. Mas são pessoas que gostam e que cultivam admiração [umas pelas outras]. Não tem uma fórmula de como as famílias são, mas eu acredito, eu sugiro nas minhas leituras filosóficas, que o ideal é que a família seja um território onde as pessoas tenham mútua admiração, porque tem uma linha muito tênue entre a admiração e a inveja.
A inveja é aquilo que as pessoas supõem que é muito interessante no outro, e que eu gostaria de ter, e que eu não admiro porque eu sinto que sou merecedor e aquela pessoa tem algo que eu gostaria de ter. De alguma forma, ela disputa comigo aquele lugar que eu gostaria que fosse meu. Já na admiração, independente do que eu queira, do que eu deseje, eu vibro positivamente com o que as pessoas estão fazendo. Então, uma família é interessante quando ela é um manancial de circulação de admiração.
As pessoas se admiram, porque isso faz com que tenham amor. Então, o amor passa pela admiração. Em poucas palavras, uma lição filosófica que aparece em mitos de algumas tradições culturais, nos itãs, é que a admiração contribui, ela faz parceria com o amor. Isso faz com que as pessoas sejam mais seguras, que elas possam ser mais potentes na vida.
No artigo Por que meninos não podem brincar de boneca?, você discute que a cultura ocidental é uma receita líquida e certeira para produção de masculinidades tóxicas. Como você observa o papel das masculinidades na construção familiar?
Noguera – O que muitas pesquisas, muitos estudos apontam — e tem algumas evidências também nesse sentido — é que a gente vai aprendendo, com a brincadeira, a nutrir, a ter mais ferramentas, mais repertório para algumas coisas. Então, quando os meninos são capazes de brincar com boneca, os meninos são mais convidados para atividades de cuidado.
O que acontece com os meninos é que a masculinidade vem a ser construída para que o homem não seja um cuidador, para que o homem seja cuidado por alguém, preferencialmente uma mulher, e para que esse homem seja sempre provedor. Tanto que os homens são mais julgados nesse aspecto cultural por aquilo que eles fazem, que eles representam, e não por aquilo que eles aparentam ser. Então, os homens, nos relacionamentos heteroafetivos, são menos cobrados em relação à aparência e estão sempre focados em performar produção. Uma forma, talvez, de enfrentar essa masculinidade mais intoxicante passa pela possibilidade de inserirmos os homens em atividades de cuidado. Os números mostram isso: os homens estão mais envolvidos em ataques violentos, em situações de violência urbana, nos casos de atentar contra a própria vida e a vida dos outros. Isso não é gratuito, tem uma cultura masculina que leva a esse cenário. Em poucas palavras, é importante que os meninos sejam criados com brincadeiras e brinquedos que possam estimular que eles sejam pessoas que cuidam, de si e dos outros.
Quais formatos de família você tem observado nas suas pesquisas? Você observa diferenças em formatos possíveis de família, comparando Ocidente e África?
Noguera – Cada vez mais encontramos formatos diferentes de família. Acho que uma forma, talvez, de conceitualizar a família, pensando o mundo contemporâneo, é como uma organização social, um grupo de pessoas que tem algum laço afetivo, não só laços consanguíneos. Em algum momento, a ideia de consanguinidade, a ideia de linhagem, atravessava a noção de família profundamente. Então, eram os laços biológicos marcados por uma conjugalidade. Logo, o conceito mais tradicional de família tinha a ver com cônjuges, com o casal — e esse casal, geralmente, era um casal cishetero —, e, a partir dos filhos, dos descendentes, se constituía uma família.
Em algumas culturas, o conceito de família é mais ampliado. Se a gente pensar nas villages, em contextos africanos, nas aldeias indígenas, [eles] se chamam de parentes, se entendem como parentes, não que você não tenha ali conjugalidades, pessoas com laços biológicos, laço consanguíneo, mas não é só isso que define o que é família. Então, cada contexto cultural vai ter uma perspectiva de família mais ou menos ampliada.
O conceito tradicional está sendo discutido. A cisheteronormatividade já tem sido rechaçada, os movimentos sociais contra o patriarcado, que são vários deles, movimentos feministas, movimento de população LGBTQN+, já romperam com isso. Família não é só um casal hétero com seus filhos, isso já está dado. Tem formatos com pessoas que convivem e que se entendem como família. Hoje, são pessoas que convivem, que habitam o mesmo espaço, que têm uma identificação afetiva, e, a partir dessa identificação, elas têm apoio mútuo, é uma rede. Família tem a ver com uma rede de afeto e de apoio, cada vez mais isso. Tem a ver com interdependência.
Podemos dizer também que são pessoas interdependentes que querem o bem-estar dos membros daquela comunidade. Em poucas palavras: família é uma comunidade que se reúne, que vive na mesma casa ou não, que não precisa ter laços consanguíneos, mas tem laços afetivos de apoio e suporte mútuo. Os formatos são evidentemente variados, pessoas casadas, pessoas não-casadas, pessoas solteiras que moram juntas, pessoas que têm um grau de parentesco, com avô, com neto, bisneto, tio, sobrinho, variado, primos, irmãos que moram juntos, irmão ou filho de um, sobrinho. Então, há muitas formas de se compor essa família.
Parafraseando um pouco seu livro, por que você acha que a gente ama? Por que amamos? E por que nos reunimos em família?
Noguera – Por que amamos? Porque o amor é um afeto de organização, é o afeto mais organizador que a gente tem. Então, nós somos seres que têm afetos primários, secundários, terciários.
Afetos primários, das emoções. Secundários, dos sentimentos. E afetos terciários, os nossos pensamentos. O amor é um afeto que, quando se liga com outro afeto, e ele está no controle, ele nos organiza. Não que uma pessoa deixe de ter raiva quando ela ama, ou deixe de ter ciúme, mas se o ciúme é que está dirigindo o carro, o que vai acontecer? Ele vai evitar acidente, ele vai ter mais cuidado numa pista molhada, ele não vai beber antes de dirigir, para não passar pelo bafômetro? Mas se for a raiva dirigindo, o ciúme, a possessividade, esses afetos podem fazer esses tipos de coisas. Então, as pessoas que amam podem tomar decisões ruins, porque o amor pode não estar na gestão daquele corpo.
E a gente se reúne em família porque um dos piores sentimentos é o abandono, é a rejeição. Essa rejeição pode ser simbólica, pode ser efetiva, material, de estar fora de um grupo. Tanto que tem alguns indícios que vão apontar, para estudos de antropologia biológica, que a gente se tornou ser humano a partir do momento em que uma pessoa quebrava o fêmur — isso, falando lá no paleolítico —, e essa pessoa era cuidada por outras pessoas, porque se ela quebrasse o fêmur e ficasse sozinha, ela morreria.
Há séculos a família significa proteção. Sem família, sem grupo, a gente fica largado, porque é um grupo que vê o seu lado, não só a tua melhor edição. A nossa melhor edição está no mundo lá fora. Nas relações mais íntimas, a gente aparece sem maquiagem, aparece sem edição. E aí, só esse amor familiar é que pode fazer a pessoa brigar com a outra e, mesmo depois de uma briga, ela ainda acolher e dar carinho. Porque [você] não vai romper com uma pessoa somente porque ela fez algo errado naquele dia. Se quebrar o prato, não vai ser motivo para não ser mais querida e amada. Por isso, também, que a gente tem que ter um cuidado afetivo importante.
Por exemplo, a criança sente raiva, grita, esperneia. É importante que os pais saiba lidar com isso, senão a recusa da raiva da criança pela família gera na criança a ideia de que ela só pode ser validada se não demonstrar o que sente, só demonstrando bons sentimentos. Isso não é real e não é o mundo real. No mundo real, vamos demonstrar coisas boas e coisas ruins, vai ter discordância.
Nesse contexto, a família serve para exercitarmos nossa humanidade desde cedo, trazendo ali nossas verdades. É nesse espaço que podemos nos permitir agir sem o receio de não sermos benquistos, onde podemos relaxar da casca social, da aparência montada. A família serve — ou deveria servir — para isso, para ficarmos à vontade.
Renato Noguera é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro) e coordenador do Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Infâncias (Afrosin), tem se dedicado a investigar os afetos num diálogo entre antropologia, história, filosofia, neurociência e psicanálise. Autor dos livros “Porque amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor” e “O que é o luto: como os mitos e as filosofias entendem a morte e a dor da perda”.
A família como argumento transecular no teatro ocidental
A família enquanto dispositivo temático e signo estrutural de uma trama está presente na história do teatro ocidental, de acordo com a literatura especializada, ao menos desde a Grécia Antiga. Dos chamados mestres clássicos — Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes, dentre outros — ao giro da dramaturgia shakespeariana, passando também por nomes como Molière, Ibsen, Strindberg, Tchekhov e os realistas russos, Brecht e as críticas substanciais à esfera pequeno-burguesa, enredos que apresentam narrativas concernentes a relações entre pais e filhos, irmãos que pelejam por heranças ou que postulam vinganças, romances proibidos ou a descoberta de segredos e infidelidades são uma constante na tessitura do que convencionou-se intitular teatro universal. Assim, ao mesmo tempo em que desempenha consolidado valor estético e poético, a pauta familiar como argumento teatral também é portadora de expressiva marca documental, uma vez que o que se narra em um programa dramatúrgico, ainda que absolutamente ficcional, evidencia elementos políticos e sociais típicos de uma época — o que engendra não apenas um produto artístico destinado à fruição, mas também um fecundo retrato dotado de historicidade e análise.
Álbum de família, de Nelson Rodrigues, encenada pelo Grupo Galpão. Fotografia de Guto Muniz.
No Brasil, múltiplos são os exemplos de peças teatrais cuja trama esteve pautada na mecânica subjetiva e nos processos de interação de um núcleo familiar. Dos casos mais emblemáticos — tanto por sua importância para a engenharia teatral, como porque operam como testemunhos históricos de seu tempo —, é possível mencionar O juiz de paz na roça (1838), de Martins Pena; O defeito de família (1870), de França Júnior; Moral quotidiana (1922), de Mário de Andrade; Nossa vida em família (1972), de Oduvaldo Vianna Filho; De braços abertos (1984) e Querida mamãe (1994), de Maria Adelaide Amaral; e, mais recentemente, Luís Antônio-Gabriela (2011), de Nelson Baskerville, e a Trilogia das pessoas (2014, 2016 e 2017), de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez. Tais obras, apesar de sua heterogeneidade estética e de época, expõem, criticam e denunciam um sem fim de querelas, violências e/ou perversões intrafamiliares, compondo um contínuo de produções textuais que, decerto, possui em seu cume epistêmico a obra Álbum de família”, escrita por Nelson Rodrigues em 1945.
Álbum de família: uma autópsia teatral da parentela
Álbum de família inaugura uma sorte de linguagem teatral a que o próprio Nelson Rodrigues definira como “teatro desagradável” — de que fazem parte, também, as suas peças Anjo negro (1946) e Senhora dos afogados (1947) —, assim classificadas pelo autor em entrevista à Revista Dyonisios, em 1949, por serem obras “pestilentas, fétidas, capazes por si só de produzir o tifo e a malária na plateia”. Tendo saído à luz cerca de dois anos após a consagração de Nelson por Vestido de noiva (1943), Álbum de família foi retida pela censura do governo de Eurico Gaspar Dutra, tendo permanecido embargada até o ano de 1967 — quando, finalmente, pôde ser encenada no Teatro Jovem do Rio de Janeiro. Dentre as principais razões para a proibição da montagem, destaca-se a multiplicidade de incestos, atos obscenos e cenas familiares asquerosas que compõem o enredo da peça — atributos que constituíam, para as entidades de controle do período, justificativa mais do que plausível para salvaguardar o espectador da influência de comportamentos considerados depravados e indecorosos pelos censores.
Com uma dramaturgia proposta em planos — característica já presente em Vestido de noiva, que veio a tornar-se um dos principais símbolos da identidade estética do teatro rodrigueano —, a narrativa de Álbum de família alterna-se entre cenas compostas por registros fotográficos de um livro familiar, que são comentadas por um speaker que desempenha uma espécie de voz ou opinião pública, e cenas que retratam o cotidiano dessa mesma família, que difere por completo da conduta de aparente harmonia e retidão posada para as fotografias. Daí, então, a audiência se depara com personagens como Jonas, o patriarca, que se envolve sexualmente com meninas menores de idade arranjadas por sua cunhada Rute, que nutre por ele uma enferma devoção; D. Senhorinha, esposa de Jonas, que teve um caso com o filho caçula do casal, Nonô — o que teria condicionado o enlouquecimento do rapaz; Guilherme, o filho mais velho, que frequenta um seminário, mas é apaixonado por sua irmã Glória — que, por sua vez, tem desejos eróticos pelo pai, ao mesmo tempo que mantém uma relação com Teresa, sua colega de convento; e Edmundo, que mora no exterior com sua esposa, a quem abandona por almejar viver um romance com D. Senhorinha, sua mãe.
Desta barafunda de disparadores incestuosos, o raconto de Álbum de família constitui-se de traições, assassinatos, suicídios, estupros, dentre outras ocorrências repulsivas que, como recurso de provocação ao paradoxo, são constantemente intercaladas com a dissimulação imagética proposta pela fotografia — uma vez que a disposição inerte dos corpos ajeitados para o retrato promove uma suspensão temporária da brutalidade e da hediondez, escamoteando uma nefasta ciranda doméstica ao mesmo tempo em que forja um panorama dissimulado de respeito, paz e concórdia. Com isso, Rodrigues destapa alguns dos tantos crimes e as agruras que, lamentavelmente, permeiam as mais diversas configurações da instituição familiar: para o dramaturgo, o âmbito privado — em que se verifica a imensa maioria das dinâmicas de parentela — pode ocultar tantas atrocidades quanto as que transcorrem na sociedade “da porta para fora” de lares e moradas.
A desagradável contemporaneidade
Em Álbum de família, Nelson Rodrigues não apenas contesta a rotunda inadequação da organização familiar enquanto arcabouço social, como também alerta para o fato de que, como uma grande e incontestável escusa, muitos são os infortúnios e as monstruosidades obliterados em nome da preservação e da perpetuação da família como redoma nuclear inabalável, intransponível e incorruptível. Para Nelson, era urgente levar aos palcos esse recado de espanto, com o intuito de chacoalhar, moralmente, o público — que seguramente possuiria em sua rede de parentesco ou se identificaria com figuras tais como Jonas, D. Senhorinha, Rute, Glória, Nonô, Guilherme e Edmundo. Possivelmente por isso, então, é que a peça tenha permanecido vinte e um anos interceptada pela censura, “encarcerada, enjaulada como uma cachorra hidrófoba”, de acordo com Rodrigues em depoimento ao periódico O Jornal, em 1967: porque questionava e promulgava a erradicação de valores, normas e comportamentos que, apesar de execráveis e gravíssimos, asseguravam a manutenção de uma ordem conveniente para o domínio exercido pelos órgãos de poder daquele de então.
Quase oitenta anos após seu advento, a peça de Nelson Rodrigues ainda impressiona e escandaliza por sua absoluta atualidade. Sobretudo porque, se bem a implantação de certas medidas e procedimentos legislativos matiza e difere esta contemporaneidade da do texto rodrigueano — cito, por exemplo, a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990; a sanção da Lei Maria da Penha, em 2006; ou o reconhecimento da união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar pelo STF a partir de 2011 —, também é verdade que o Brasil em que o dramaturgo se baseou para compor a peça de 1945 ainda perdura incólume, e inegavelmente fortalecido, nos mais profusos rincões de nossa geografia. Afinal, apesar da conquista de mudanças, tais como as citadas — inquestionavelmente, vale dizê-lo, por meio da luta de grupos progressistas —, são ainda aterradoras as estatísticas de abuso infantil, considerando-se que cerca de 70% dos casos registrados anualmente ocorrem na residência da vítima e são praticados por familiares; de estupros maritais e feminicídios; de entraves e preconceitos para a adoção homoparental; dentre tantos outros calamitosos acontecimentos que aproximam o tempo histórico de Nelson Rodrigues da perturbadora atualidade em que se vive.
Tanto por sua magistralidade dramatúrgica como por sua essencialidade temática, Álbum de família continua a ser uma peça irrestrita e desagradavelmente contemporânea. Trata-se de uma obra trágica, contundente, por meio da qual dotou-se o teatro brasileiro de um texto amolado para desvelar o abjeto, escancarar o abominoso e firmar-se enquanto mensagem constrangedora, urgente e fundamental. Porque é mesmo bem verdade, como escreveu Friedrich Nietzsche, que a arte existe para que a realidade não nos destrua. Em se tratando desta peça de Nelson Rodrigues, tem-se não apenas um excelente material teatral, como também um excepcional produto político — cujo incômodo e repugnância causados, de sua irrupção em 1945 ao ano em que se escreve este ensaio, confirmam a irrefutável falência dos modos convencionais de projeção, constituição e operação do arranjo institucional familiar.
No coração das paisagens rurais do Brasil, reside um conhecimento ancestral que transpõe o simples cultivo de plantas alimentares. É algo além da agricultura; é uma relação profunda entre seres humanos e não humanos, um vínculo tecido ao longo de gerações por aqueles que entendem que uma semente é mais do que um grão inerte. São histórias vivas, carregadas de memória, esperança e sobrevivência.
Ao começar nossa jornada de pesquisa e catalogação de sementes nativas pelos biomas do Brasil, ficamos impressionados com a reverência que os agricultores tradicionais têm por suas sementes. Para os guardiões e colecionadores que conhecemos, cada semente tem uma personalidade própria, uma história particular que ilustra os saberes da sua comunidade e que merece ser contada.
Tecnologias ancestrais
O melhor jeito de começar a contar esta história é partir da sabedoria ancestral dos povos tradicionais presentes em todos os lugares em que estivemos, um saber que acompanha, há gerações, comunidades, aldeias e famílias de norte a sul do país. Da Amazônia ao Pampa existe a visão do planeta como um macro-organismo, onde humanos e não humanos coexistem em pé de igualdade, promovendo um ciclo virtuoso de vida através da terra.
A partir da observação e do estudo dos processos naturais das florestas tropicais em que vivem, ou até mesmo por conhecimentos que vêm através de experiências oníricas — como é o caso da combinação entre chacrona (Psychotria viridis) e jagube (Banisteriopsis caapi) para a criação da ayahuasca —, notou-se que povos e comunidades em todo o país têm suas próprias tecnologias ao se relacionarem com a terra, e nessa relação de igualdade percebem-se espécies vegetais que coexistem harmoniosamente, formando consórcios equilibrados. Assim, plantas como banana, mandioca, bacaba, milho, açaí, castanheiras e cacau são cultivadas juntas, replicando a complexidade e a resiliência das florestas naturais.
Essa cosmovisão permitiu o desenvolvimento de biomas ricos em biodiversidade, como a Amazônia, bioma moldado pela intervenção humana ao longo de milênios. A terra preta indigena — solo fértil criado por práticas agrícolas ancestrais — demonstra como os povos tradicionais desse território transformaram não só as terras pobres em ambientes férteis e abundantes, mas também trouxeram uma interessante relação com a vida presente em cada semente plantada.
A história de um povo está nas espécies que ele cultiva
Numa visita a um assentamento do Movimento Sem Terra (MST), um dos agricultores nos ofereceu alguns exemplares do gergelim da sua coleção, conhecido cientificamente como Sesamum indicum. À primeira vista, essas sementes pequenas, uniformes, desbotadas e despretensiosas, não se destacavam dentro dos critérios estéticos e pictóricos estabelecidos para o nosso projeto. No entanto, ao notar as palavras que esse agricultor escolhia para se referir aos seus pequenos gergelins brancos, percebemos que a história por trás dessas sementes revelava algo muito maior.
Ao falar sobre elas, o agricultor o fazia com uma reverência impressionante, manipulando-as com o cuidado e o respeito que se dedica a algo que se ama muito. Ele descrevia simultaneamente etapas do ciclo de crescimento do gergelim, seus gostos e suas preferências climáticas, traços da sua personalidade — quase como se falasse de um familiar. Essa intimidade e reverência no seu discurso nos fez entender que tínhamos que ter um olhar além da estética ou da fotografia: não estávamos ali ouvindo sobre uma simples variante do Sesamum indicum, estávamos conhecendo pessoalmente o Gergelim do Mariano. Nesse momento, percebemos com clareza o propósito do projeto: tão importante quanto capturar a beleza das sementes em detalhes, registrar a história das sementes-familiares, é honrar a importância dessas espécies na vida das pessoas que as cultivaram.
Nesses dois anos de jornada pelo Brasil, encontramos outras espécies que, embora comuns, carregam um peso cultural e ecológico imensurável. A bananeira, Musa paradisiaca, por exemplo, é fundamental na criação de florestas produtivas. Essa espécie se desenvolve num ciclo matrilinear, em que três gerações de bananeiras nascem do mesmo bulbo e coexistem para garantir a produção de frutos saudáveis. Avó, mãe e filha crescem juntas, de modo que a avó, após gerar um cacho de bananas, tem seus frutos coletados e é podada rente ao chão. Sua matéria orgânica é devolvida ao solo, oferecendo nutrientes e umidade para as outras espécies. Depois dessa poda, a sucessão continua, e a próxima bananeira a gerar frutos se torna avó, e a pequena bananeira filha tem espaço e luz para brotar e se desenvolver. Essa estrutura cíclica, que lembra a organização de uma família, é crucial para o sucesso das espécies cultivadas nas agroflorestas, nas quais cada planta desempenha um papel essencial na manutenção do equilíbrio do ciclo ecológico.
Outro exemplo é a mandioca, com variação popular “mãedioca”, uma planta robusta e resistente, capaz de romper solos compactados e criar condições favoráveis para o crescimento de outras espécies vegetais mais sensíveis. A mandioca é a verdadeira mãe da terra. Valente, quando plantada junto de outros vegetais, ela oferece sombra e nutrição às delicadas espécies frutíferas que levarão anos para atingir a maturidade. Além disso, ela é a base alimentar de várias comunidades ao redor mundo e um símbolo de resiliência dos povos do Sul Global.
Essa relação de respeito e reciprocidade com a terra também é evidente no cultivo tradicional em conjunto do milho, do feijão e da abóbora — essa é a cultura MILPA ou a cultura das “três irmãs”, uma tecnologia presente no saber de plantio de todas as Américas. Quando plantadas juntas, essas espécies criam um ecossistema de suporte mútuo que garante a fertilidade do solo e a produção sustentável de alimentos. O milho desponta para o céu em busca do sol, fornecendo estrutura para o feijão enramar e encontrar a luz. O feijão garante maior fertilidade do solo, pois aumenta a fixação de nitrogênio. Já a abóbora, de perfil mais rasteiro, protege a terra do sol pleno com suas folhas largas, impedindo a perda de umidade. Nessa dinâmica de mútuo suporte, as irmãs vão de mãos dadas sendo conduzidas até a maturidade, no momento da colheita simultânea. Essas espécies são a base alimentar de comunidades inteiras e constituem um papel fundamental na cultura e na culinária brasileira.
Hoje, em tempos em que o avanço do agronegócio e a devastação ambiental ameaçam toda essa riqueza, genéticas ancestrais presente em famílias há gerações estão sob ameaça de extinção pelo cruzamento acidental com milhos transgênicos que dominam as lavouras de norte a sul do país.
O vento, além de carregar consigo pesticidas aterrorizantes, semeia os poros das sementes GMO que fecundam as delicadas espécies crioulas, que, com isso, infelizmente se perderam para sempre. Essa perda das características originais dos milhos ancestrais tem impactos imensuráveis, que vão além da espiga. Quando essas culturas de milho se perdem, as manifestações culturais dos seus povos de origem se perdem junto. O apagamento histórico dos nossos povos originários começa antes de tudo com o esquecimento da sua cultura alimentar.
Dessa maneira, o convívio com esses guardiões de sementes nos ensinou que preservar a biodiversidade da terra vai muito além da simples conservação de espécies. Trata-se de proteger histórias, culturas e modos de vida que estão intrinsecamente ligados a ela. Cada semente que é plantada carrega consigo o legado de uma comunidade, a ancestralidade de um povo e a formação de uma família e nos ensina que a real relação entre os humanos e a natureza deveria estar fundamentada na compreensão do cuidado e na contemplação de tudo o que é vivo.
O Seeds Collective é uma iniciativa de pesquisa e fotografia de sementes ancestrais brasileiras, tendo como objetivo não só fotocatalogar sementes, mas também homenagear povos originários, comunidades quilombolas, assentadas, indígenas, ribeirinhas e caiçaras em todos os biomas do Brasil. Até setembro de 2024, o projeto coletou mais de trezentas espécies de sementes únicas. Ao lado de guardiões de sementes, ele documentou tradições orais sobre cultivo e manejo, propriedades espirituais e medicinais, e histórias especiais associadas a cada uma delas. Essa pesquisa está compilada no livro-catálogo Seeds and Tales, publicado este ano pelo coletivo.
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