Cine Veneza, no filme Retratos Fantasmas.
Foto: Divulgação

O tempo não age somente sobre o que está vivo, no sentido biológico da palavra. Ele age, de um jeito ou de outro, sobre tudo aquilo que existe, ainda que a coisa viva ou não viva sequer tenha noção disso. Kleber Mendonça Filho entende a abrangência democrática da passagem do tempo e, munido de sua voz singular, tão conhecida e celebrada ao redor do mundo, conta uma história sobre cidade, cinema, memória e arquitetura em Retratos Fantasmas, seu mais novo filme. 

Imagem com o cinema São Luiz, em Recife, ao fundo. Foto: Divulgação

Mas veja bem: “entender o tempo” não é acionar o botão da nostalgia. É como próprio diretor disse na coletiva de imprensa do 51º Festival de Cinema de Gramado, onde o filme fez sua estreia nacional em 12 de agosto: “O que me preocupava desde o começo era que eu não queria fazer um filme saudosista, de ‘ai, como as coisas eram tão melhores antigamente’, eu não queria cair nessa coisa. (…) Queria evitar a nostalgia como produto. Eu queria passar direto e pegar na veia do que é um conhecimento histórico. De uma compreensão histórica. Acho que é isso que está nesse filme.”

Entender o tempo é reconhecer o efeito incontornável das mudanças. O que vale para nós, cujos relógios biológicos batem aceleradamente, vale também para as cidades e os cinemas, que sofrerão processos de alteração até que, bem, não sejam mais cidades e nem cinemas. Composto por imagens do acervo pessoal de Mendonça Filho — registros de mais de 30 anos, captados, principalmente, com Super 8, VHS e câmeras fotográficas —, que se juntam a um material de arquivo da Cinemateca Brasileira, do Centro Técnico Audiovisual e da Fundação Joaquim Nabuco, Retratos Fantasmas constrói uma espécie de mosaico de vultos urbanísticos, cinematográficos e pessoais, um labirinto de espectros que habitam o mundo dos “vivos”. Humanos, cidades e cinemas, no fim, estão fadados a virarem fantasmas.

“A minha relação com a cidade”, explicou também em Gramado, “é um pouco como a casa: na sua casa você sabe que, à direita, tem um banheiro e, depois, tem um quarto. Na cidade, você tem o seu próprio mapa pessoal do lugar. Então, para mim [a relação] fazia completo sentido. (…) E, claro, quando você se apaixona por um cinema, você também pode considerar aquele cinema a sua casa.”

Narrando no tom monocórdio-mas-expressivo ideal, o filme apresenta os cinemas como verdadeiros personagens da cidade, partícipes que muitas vezes por meio de seus letreiros fazem (ou fizeram) — voluntariamente ou não — comentários espirituosos sobre a sociedade (pense em “Bye Bye, Brasil”, de 1980), ao aparecer no fundo de inúmeros registros, marcando presença com uma aura quase etérea. Personagens-termômetros que observavam e marcavam a temperatura que sentiam.

As transformações humanas, arquitetônicas e urbanas são expostas a partir de uma lógica de boneca russa, com uma contendo a outra, mas não necessariamente tomando os atributos de tamanho físico como referência para saber qual contém qual. É mais ou menos assim: temos Recife, temos o apartamento de Kleber em Recife e, no apartamento de Kleber em Recife, temos Kleber Mendonça Filho; mas, nesse Kleber, temos o seu apartamento em Recife e, também, Recife em si. O organismo funciona de maneira complementar e contínua.

“O filme começaria sempre na coisa da cidade e dos cinemas, mas, no começo, eu ficava muito incomodado, porque parecia algo meio National Geographic. Aí no processo — esse filme, aliás, teve todo o tempo que precisava, acho importante respeitar o tempo de cada filme —, aconteceu uma coisa totalmente não relacionada mas que, no final das contas, definiu o filme. Nós entendemos que íamos nos mudar, a gente ia sair daquele apartamento, do apartamento em que eu cresci. Isso aconteceu em 2017. Então, 2016 já teve um impacto muito importante na minha cabeça. (…) E a ideia de sair daquele lugar levou um tempo de processamento. E aí eu comecei a entender que era um lugar muito filmado, porque fiz muitos filmes lá, fiz muitos curtas lá, fiz ‘O Som Ao Redor’ lá e, com a chegada dos filhos, muita imagem foi produzida naquele lugar. Imagens domésticas. E aí que o apartamento se transformou na primeira parte do filme. Quando isso aconteceu, o filme entrou no trilho.”

Kleber Mendonça Filho, coletiva de imprensa do 51º Festival de Cinema de Gramado

Para fazer um paralelo estratégico e necessário com o seu primeiro longa de ficção, O Som Ao Redor (2012), que traz muitas cenas dentro do apartamento em que o diretor morou durante muitos anos, o filme é dividido em três partes que sintetizam como as metamorfoses tomam forma. 

Na primeira, o enfoque é justamente esse apartamento, um espaço que passou por muitas transformações ao longo dos anos, tanto em seu próprio raio geográfico quanto em seus arredores. Estabelece-se de maneira orgânica, quase imperceptível — do jeito que grandes filmes costumam operar —, a relação cumulativa e multifacetada que fatores internos e externos têm no processamento de qualquer passagem de tempo. A sutileza, vale dizer, é algo de positivo, pois, em um filme que se volta ao texto narrado, cravar pingos nos is com qualquer tipo de retórica enfática cansaria qualquer um. 

Em nenhum momento, porém, Retratos Fantasmas parece inatingível. Sabe que se fazer de difícil não bateria bem com a gentileza a que o filme se propõe. É mais como se, espargindo um pouco de alma aqui e ali, ele simplesmente deixasse a assimilação para quem quer que esteja assistindo. O realizador conta que “sendo filhos de dois professores de história, a explicação das coisas sempre pareceu interessante, mas não a explicação com autoridade: a sugestão do que talvez as coisas sejam.”

O que acontece nos vizinhos interfere diretamente nas internas do apartamento e o que acontece em cada moradia também ecoa cidade afora. Paisagens urbanas e pessoas, colocadas juntas como um processo simbiótico: é dessa maneira que aquele jovem cineasta — antes, durante e depois da faculdade de Jornalismo —, aparece em alguns momentos, mostrando entusiasmo em criar narrativas dentro de sua casa e sua cidade. Quando um zoom é dado na cara de um Mendonça Filho imberbe (imagina-se que na casa dos 20 anos), o voice over da pessoa que filma diz: “O foco dessa câmera está zero, viu, Kleber”. Há uma leveza que, além de surpreender pela soma de elementos que a priori não deveria desaguar no mar que deságua, também pinta as vestes do filme com cores relacionáveis e deixa tudo mais instigante. A personalidade do diretor, leve por natureza, transparece pela sequência de registros e pela voz recifense que ressoa, o que talvez seja a justificativa para o ótimo resultado inesperado. 

Com a bênção de Agnès Varda, da leveza suave se tira um senso de compreensão dos porquês o cinema, e os cinemas, são tão importantes na vida dele e da cidade retratada com frequência em seus filmes.

A segunda parte, mais voltada para os cinemas, é recheada de gravações antigas de Alexandre, projetista do São Luiz, com quem Mendonça construiu bonita relação. Alexandre executa sua função com destreza, às vezes com métodos próprios — tirar a camiseta para sentir um mínimo de frescor no calor da sala de projeção é um deles —, mas sempre com objetividade. “Por mim, tudo certo”, dizia o projetista sobre suas reações às censuras da Ditadura Militar, “quando acontecia eu voltava para casa mais cedo”. Por essas e outras, é uma personificação carismática, completamente humana, de quem são os cinemas, do que eles representam e do efeito invisível que eles incutem nas pessoas e nas cidades. 

Na seção seguinte, as transformações de muitos cinemas em templos evangélicos ganham a ribalta. Por suas estruturas que se assemelham às de mega-igrejas, muitas salas de Recife (e do Brasil) foram compradas para dar lugar a palacetes de louvor. Apesar do simbolismo que se enxerga na transformação (as salas de cinema sempre foram templos de exaltação divina, certo?), há melancolia na acepção dos fatos. Onde estão os cinemas que tão bem representavam o Brasil, que tão bem refletiam o mundo e os anseios contemporâneos? Aonde foram parar aquelas salas que nos tiravam das ruas somente para, em seguida, com um choque dos bons, nos jogar de volta a elas? Pois bem. Viraram igrejas ou foram substituídos por estacionamentos, símbolos de uma inação epidêmica.

E, então, o epílogo. Muito embora as imagens que aparecem ao longo dos 90 minutos de filme sejam marcantes, o que mais se aloja na memória e na ponta da língua de qualquer discussão posterior é a sequência final, que dissipa os resquícios de melancolia e joga fumaça em cima de tudo. Num momento ficcional, Kleber Mendonça Filho, interpretando ele mesmo, pega um Uber. O motorista que aceita sua corrida é o ator Rubens Santos, que trabalhou também, sempre com eficiência, em O Som Ao Redor, Aquarius (2016) e Bacurau (2019). O diretor lhe diz que está dando um rolê pela cidade para espairecer, olhar ao redor, esvaziar a cabeça antes de deitar, talvez até esquecer que as farmácias espalhadas pelas ruas gritam que a cidade está doente. Ao descobrir que Kleber trabalha com cinema, e adicionar que “cinema é massa”, o motorista diz que tem um superpoder. Tão logo, desaparece. Mas o carro segue em movimento no trânsito de Recife. O volante é guiado por um fantasma que está ali, mas não está ali.

Fantasia e documentário se encontram para dar espaço a um realismo mágico que, enquanto nota dissonante, conclui a sinfonia com uma fantasmagoria humana.

“Eu recebo muito incentivo das pessoas para fazer um filme fantástico, mas a minha sensação é que eu só faço filme fantástico. (…) Com o ‘Retratos Fantasmas’ eu quase fico incomodado com a definição de documentário, porque eu realmente não estava com essa preocupação de ‘estou fazendo um documentário’. E também não quero chamar de filme-ensaio. Não é isso. Também não posso afirmar que é uma ficção, porque, seguindo como o mercado funciona, é difícil dizer. Mas é um filme. Seja lá o que for, é um filme.”

Kleber Mendonça Filho, coletiva de imprensa do 51º Festival de Cinema de Gramado

Godard dizia que “todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário e todos os grandes documentários tendem à ficção”. A frase parece servir como uma luva aos filmes ficcionais e documentais de Kleber Mendonça Filho, que, como em outros momentos de sua carreira, aqui evoca uma beleza que não é autossuficiente e nem espalhafatosa. É um encanto que se faz dos contornos e depende do olhar externo para se fazer completo. 

Cinema São Luiz, anos 1980. Imagem: Divulgação

O que se projeta numa tela está ali e não está ali, são projeções e retratos de algo que já nasce no passado. As pessoas que se foram estão vivas e não estão mais vivas. Dentro de uma casa ou de uma cidade, vivem todos que por ali passam e passaram. O filme de Mendonça Filho é prova disso. É um filme que, tal qual os cinemas, há de nos assombrar por muito tempo.

Do saudosismo, lágrimas. De Retratos Fantasmas, o mais quente frio na nuca. 

A literatura desenvolve em nós a cota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante.

Antonio Candido, em Direitos Humanos e Literatura (1989)

A obra de Antonio Candido, antes debaixo dos braços da casa editorial Ouro Sobre Azul, está sendo relançada pela editora Todavia, que, apesar de estar em atividade há não muitos anos, já se firmou como uma das principais do país. Por que isso é importante — talvez até mais do que pareça? Considerado como o maior crítico literário brasileiro, Candido não só foi original ao elaborar um método próprio de interpretação literária, ancorando-se no pensamento social, mas fez isso indo na contramão dos ditames acadêmicos da época e, assim, foi capaz de fugir da onda dominante do enquadramento da literatura como algo isolado do mundo real. Com coragem e uma inventividade rara à esfera da crítica, bateu de frente com a ideia da “arte pela arte” e nada mais — algo que, hoje em dia, é cada vez mais rechaçado. Foi dessa forma que, ao lançar mão desse expediente pioneiro com maestria ímpar, também foi um dos principais intérpretes do Brasil. 

Foto de Walter Craveiro/Divulgação Flip

O relançamento da obra de Antonio Candido, portanto, celebra o legado de uma figura de referência para o pensamento brasileiro (não limitado ao campo da literatura) e amplia a circulação de seu trabalho, mostrando às novas gerações a atualidade de um corpo de trabalho decisivo.

“A literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos.”

Ensaio O Direito à Literatura (1988)

Não é à toa que, com frequência inevitável, é posto no panteão, sentado confortavelmente ao lado de nomes como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Celso Furtado e Sérgio Buarque de Holanda. À exemplo desses titãs, também tinha um apreço maior pela forma do ensaio, numa escrita que alcançava aquilo que muitos almejam mas poucos conseguem: refinamento, clareza e acessibilidade. Com seu olhar sensível sobre a cultura e a sociedade, Candido integra uma linhagem de pensadores latino-americanos que marcou para sempre a produção intelectual do continente, com influência internacional.

Explorar as relações entre a literatura e a sociedade talvez hoje soe com os acordes da normalidade, como um caminho que parece o natural, mas, se é que isso acontece, é porque Candido cuidou de fortalecer e enraizar as suas visões com uma fieira de textos divisores de águas. Uma de suas obras mais conhecidas, Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos, publicada em 1959, é considerada um marco na historiografia literária brasileira. Em 2023, mais de 60 anos depois, ela segue com o frescor daquilo que é indelével. Nela, o autor analisa o desenvolvimento da literatura no Brasil, destacando as influências sociais, históricas e culturais que moldaram a produção literária no país. Não é sempre que podemos dizer, de boca cheia, que uma obra transformou por completo o campo a que pertence, mas esse é o caso. Desde a sua publicação, é referência obrigatória para qualquer estudioso da literatura e da sociedade brasileira. 

“Deste modo sendo um livro de história, mas sobretudo de literatura, este procura apreender o fenômeno literário da maneira mais significativa e completa possível, não só averiguando o sentido de um contexto cultural, mas procurando estudar cada autor na sua integridade estética. É o que fazem, aliás, os críticos mais conscientes, num tempo, como o nosso, em que a coexistência e rápida emergência dos mais variados critérios de valor e experimentos técnicos; em que o desejo de compreender todos os produtos do espírito, em todos os tempos e lugares, leva, fatalmente, a considerar o papel da obra no contexto histórico, utilizando este conhecimento como elemento de interpretação e, em certos casos, avaliação.”

Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos (1959)

Por meio de análises e interpretações de diversos períodos literários, do colonial até o modernismo, fornece um panorama abrangente da evolução literária no Brasil, examinando não apenas as obras literárias em si, mas também o contexto social, político e cultural em que foram produzidas. Nas mãos de Antonio Candido, Arcadismo e Romantismo, por exemplo, são considerados, como diz o título, “decisivos” na formação de um “sistema literário” — isto é, a argamassa que se dá entre autores, obras e públicos, para padronizar aquilo que entendemos como uma tradição. Despidos de suas auras de “escolas” inatingíveis, até mesmo o Arcadismo e o Romantismo viram partícipes da história dos brasileiros no desejo de ter uma literatura. Estilos, temáticas e formas literárias se somando às motivações político-sociais dos autores, que, justamente por serem respostas diretas ao contexto, têm o condão de deixar o seu impacto na sociedade. É sobre esse ringue que Formação da Literatura Brasileira, e Candido, dão seus golpes elucidativos.

Através do estudo da formação da literatura brasileira, é possível analisar as diferentes correntes literárias, identificar tendências, entender as influências estrangeiras e apreciar a diversidade de vozes e expressões. Diversidade é o que não falta. Estreitar os estudos a esse ou aquele autor/movimento é minimizar os muitos Brasis que temos na história. Pesquisar de forma abrangente, sim, é uma maneira de pluralizar as referências, num esforço louvável de colocar em pé de igualdade literaturas que, motivadas por elitismo e tantos outras problemáticas sociais, não têm o mesmo destaque. Ao traçar um panorama histórico da literatura do país, identificando os momentos-chave, as rupturas, as continuidades e as transformações ocorridas ao longo do tempo, temos pistas para entender como a literatura brasileira se desenvolveu, desde os primeiros registros literários do período colonial até as manifestações literárias contemporâneas. 

“A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.”

Direitos Humanos e Literatura (1989)

Das obras literárias tira-se reflexões sobre os valores, as ideias, os conflitos e os desafios que permearam a história do Brasil. A literatura muitas vezes é um reflexo das transformações sociais e políticas de uma determinada época, e ao estudar a formação da literatura brasileira, podemos analisar essas relações e interpretar as obras literárias em seu contexto mais amplo. A formação da literatura brasileira também nos possibilita valorizar e preservar o patrimônio literário do país. Ao conhecer e estudar as obras canônicas e não-canônicas, somos capazes de apreciar a riqueza e a especificidade da produção literária brasileira. Isso contribui para a construção de uma identidade cultural nacional e fortalece a importância da literatura brasileira no cenário global.

Isso para não dizer que o estudo da formação da literatura brasileira tem relevância acadêmica, pois alimenta as pesquisas, debates e produções científicas no campo dos estudos literários. Ao compreender a formação da literatura brasileira, os estudiosos podem aprofundar suas análises, desenvolver teorias e contribuir para o avanço do conhecimento literário. É por meio do que propunha Candido que podemos enriquecer nossa apreciação e compreensão da literatura brasileira, reconhecendo sua importância como expressão artística e como fonte de reflexão sobre a condição humana e o mundo ao nosso redor.

“Alterando um conceito de Otto Rank sobre o mito, podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente.”

Ensaio O Direito à Literatura (1988)

Em março deste ano, foram relançados os primeiros cinco livros: Formação da literatura brasileira: Momentos Decisivos, Os parceiros do Rio Bonito, Literatura e sociedade, O discurso e a cidade e Iniciação à literatura brasileira. No segundo semestre de 2023, e depois em 2024, virão os seguintes: Vários escritos, Um funcionário da monarquia, Teresina etc., A educação pela noite, Brigada ligeira, O método crítico de Silvio Romero, Ficção e confissão, O observador literário, Tese e antítese, Na sala de aula: cadernos de análise literária, Recortes e O albatroz e o chinês.

Sua influência continua a ser sentida até hoje, e sua contribuição é amplamente reconhecida e valorizada no meio acadêmico e literário. Colocar Antonio Candido mais uma vez sob os holofotes, num momento em que o país se reconstrói e aprende a se valorizar novamente, é algo necessário. 

Vida longa.

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Entretidos e distraídos: a cultura no tempo do excesso

O mundo contemporâneo é hospedeiro de um emaranhado de conteúdos sem precedentes. Em meio aos stories e reels que se multiplicam no Instagram feito Gremlins, há produções artísticas — literárias, audiovisuais, musicais — emergindo em uma escala massiva. Pelo menos em tese, hoje em dia é mais

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O artista, de Heitor dos Prazeres (1959). Acervo MASP/Divulgação.
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Tensões entre cor e amor: construções sociais nas relações de afeto

“A pessoa pode amar a pessoa preta, ser apaixonada por ela e ser racista” — uma conversa com Lia Vainer Schucman.

O livro Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor, de Lia Vainer Schucman, mergulha nas complexidades de relações familiares brasileiras marcadas pela diversidade étnico-racial, em que o amor e a consanguinidade podem ser tão reais quanto a violência e a repressão motivadas pelos preconceitos raciais. O estudo é feito a partir dos depoimentos de membros de cinco famílias, que dão relatos surpreendentes e instigantes, demonstrando não só a sofreguidão proveniente do racismo estrutural que se embrenha explícita ou implicitamente no seio familiar, mas também os lampejos embrionários de uma consciência racial ativa e coletiva. A cada página somos apresentados a uma nova tessitura que ajuda a compreender como o espaço familiar pode ser um lugar que, a um só tempo, enfrenta e perpetua a violência racial:

“… como um país com decantada e constatável mistura racial pode, ao mesmo tempo, perpetuar os maiores índices do racismo mundial? (…) Diante disso, e partindo de um ponto de vista de um branco não marcado racialmente — não raro a dicção naturalizada da ciência —, é incontornável escapar da observação de que no Brasil é possível: 1) ser contra o racismo, 2) achar que o racismo é um mal que todos devem combater, 3) casar com negros e, ao mesmo tempo, 4) ser racista.”

Capa de Jairo Malta para a edição da Editora Fósforo.

Partindo da perspicaz hipótese de que a intimidade inter-racial seria um lugar privilegiado para contribuir na compreensão qualitativa das relações raciais brasileiras, Schucman apresenta um elucidativo conjunto de amostragens sociais, sem nunca deixar de lembrar de seu papel analítico enquanto pesquisadora e do peso de sua interferência na coleta de dados e em suas respectivas aferições. O extenso e denso material gerado pelas muitas entrevistas é o que justifica a escolha, dentre as tantas feitas nos anos de pesquisa, dessas cinco famílias que tão bem compõem um corpo representativo. Além do que, como explica a autora, muitos modelos internos de discursos raciais se repetem — ou seja, para que a apreensão não fosse dificultada por relatos similares que, embora pudessem aprofundar alguma discussão com uma ou outra especificidade, também deixariam a leitura menos sedutora e direta, a seleção dos casos mais eloquentes e significativos era simplesmente necessária.

Se tivermos em mente que a sociedade brasileira vive submersa no mito da democracia racial, de tão expressivas, as entrevistas chegam a ecoar com ainda mais dor. Diante de uma abordagem psicossocial que não tem medo das tensões e contradições, vislumbra-se a face podre das falácias que teimam em acreditar na igualdade como um charme brasileiro, deixando de lado o impacto da ideologia do embranquecimento — que não é de hoje, mas é, sempre, de agora — na vida das pessoas. 

Poderiam, então, os vínculos afetivos em famílias inter-raciais amenizar ou desconstruir o ideário racista nos indivíduos? Schucman observa que a raça não atua apenas como elemento organizador, mas também como geradora de dinâmicas, discursos, conflitos e hierarquias intrafamiliares. Porque, como escreve no prefácio o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, Silvio de Almeida, “se o amor é construção social, ele também é político.”

E, assim, Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor — lançado originalmente em 2018 e agora relançado pela editora Fósforo — nos convida a refletir sobre os desafios e dilemas enfrentados por famílias inter-raciais brasileiras, fazendo com que, a partir daí, pensemos no corpo social do Brasil, e de tantas outras terras, como um todo. É como a própria autora escreve: para que uma sensibilidade antirracista possa ser aflorada, é preciso “acreditar na raça e desacreditar em seguida”. O poder transformador desse movimento paradoxal se equipara ao abalo da leitura dessas páginas: baquear para levantar engrandecido; enxergar para tornar-se cego.  

Confira nossa conversa com Lia Vainer Schucman.

O amor, me parece, é o ponto de partida para o tema da sua pesquisa, é o que a torna tão original quanto impactante. Pensando que, normalmente, tomamos o racismo como antítese de amor, qual foi o estalo que te fez buscar por essa intersecção inesperada entre afeto e racismo, algo que, como vemos no livro, pode ser tão eloquente? 

Lia Vainer Schucman: Minha pesquisa de doutorado foi sobre branquitude e, na época, as pessoas achavam que eu era uma alienígena, isso em 2008 na universidade. Lembro de procurar no Google há 15 anos e achar somente três citações para o termo branquitude no Brasil. Imagina que faz muito pouco tempo e, hoje, todo mundo fala de branquitude. Depois, quando eu comecei a apresentar a tese em congresso e em outros espaços, um monte de gente que tinha lido o que eu tinha escrito vinha me contar de racismo na família, mesmo que eu ainda não escrevesse sobre isso. Mas as pessoas, não sei por quê, vinham até mim com esse assunto na ponta da língua, talvez por acharem que eu tinha um lugar para essa escuta. E foi então que eu entrei em contato com uma pesquisa de uma antropóloga afro-estadunidense [France Winddance Twine] que tinha feito um trabalho na Inglaterra, em que ela cunhou um termo que hoje muita gente usa: racial literacy, que, na minha tese, eu traduzi para letramento racial

Essas famílias do estudo dela eram inter-raciais. E ela falava que na Inglaterra, de cada família, uma das duas pessoas brancas que conviviam ou tinham relações afetivas com pessoas negras adquiriam esse letramento racial. E aí pensei: “Nossa, mas por que estou escutando tanto sobre isso? Acho que eu tenho que pesquisar.” E, para minha surpresa, não tinha pesquisa no Brasil sobre isso. Achei bizarro, porque, se a gente pensar que gênero produz dinâmicas familiares, que classe produz dinâmicas familiares, é óbvio que a raça faz o mesmo. Mas, por incrível que pareça, não tinha nada na área da psicologia.

Eu tinha esperança que o amor e que o afeto, nessas relações íntimas, fossem um lugar que pudesse desconstruir, ou deixar de identificar, a branquitude na pessoa branca. Na minha pesquisa de doutorado, os brancos que se relacionavam com pessoas negras de uma forma não-hierárquica pareciam reconhecer mais o ideário racista, a ponto de refutar. Então, me perguntei: “Será que nas famílias inter-raciais a hierarquia se desloca para o afeto e o amor pode ser um lugar para a condução de uma desidentificação?” Infelizmente, a minha pesquisa diz que não. O que é muito interessante é que a negação do racismo como forma de amor tem dois aspectos muito importantes: ele pode desconstruir o racismo, mas também perpetuá-lo, uma vez que a negação do outro como negro, a negação da própria existência do racismo, é a condição para que esse amor exista. É muito ambíguo. Essa é uma linha muito tênue entre o afeto poder ser um lugar de desconstrução ou ser aquele que legitima e nega as hierarquias. Cheguei à conclusão que no Brasil a pessoa pode amar a pessoa preta, ser apaixonada por ela, ter tesão por ela e, ainda assim, ser racista.

Pensar no amor também como uma construção social, política, é chegar à conclusão que pessoas negras são colocadas num lugar em que elas têm menos direito ao amor.

LVS: E, realmente, se você pensar que o amor parte da condição do reconhecimento e que, na sociedade ocidental, o reconhecimento da humanidade do negro tem sido historicamente interditado e que o amor é uma faceta do reconhecimento do outro, então exatamente a falta do reconhecimento de humanidade desloca essa possibilidade do amor. É muito triste, se você parar para pensar.

Falando um pouco sobre o processo de pesquisa. Quanto tempo ela durou? Com quantas famílias você conversou e por que cinco foram selecionadas para formar o conjunto da análise?

LVS: É interessante, porque eu fui pesquisando famílias e as coisas iam se repetindo. Mas eu tinha uma orientadora do pós-doc [Belinda Mandelbaum, que escreve a apresentação do livro] que achava que a etnografia era o melhor método para uma pesquisa como essa. Bom, eu tentei a etnografia, mas não fazia muito sentido, porque você vai entrar nessa casa e ficar sentado, só observando a família, sendo que nem todo mundo morava junto. Alguns dos filhos já não moravam mais com os pais, por exemplo. Logo desisti. E aí eu pensei que a melhor solução seria fazer entrevistas com a família como um todo. Esse tipo de entrevista é muito diferente de uma entrevista individual, como as que eu tinha feito no doutorado. Na entrevista com a família, você entende a dinâmica da relação familiar na própria entrevista. Você entende quem corta quem, quem fala mais, quem dita as respostas. Você vê a dinâmica racial acontecendo na própria entrevista. Houve um caso em que um pai foi ao banheiro e, no que ele saiu, a filha e a mãe disseram: “Não escreve isso que ele tá falando.” Ou seja, elas claramente não concordavam, mas, na frente dele, elas não podiam deixar isso claro. Assim você já entendia que ele tinha uma autoridade ali. Na família do “Minha mãe pintou meu pai de branco” [primeiro capítulo do livro], a mãe não deixava ninguém se autoclassificar racialmente. Ela que classificava. Ela negava a própria autoclassificação dos filhos na frente das pessoas. Então, as entrevistas produziram uma ideia de dinâmica muito interessante. E há certos aspectos que não estão no livro, mas que eram muito interessantes de se pensar. Por exemplo: como a maioria das entrevistas foram nas casas das pessoas, você via a hierarquia acontecendo nas fotos da família branca expostas na sala sem nenhuma foto da pessoa negra. 

Para mim era importante devolver as entrevistas para as pessoas, sentir se elas estavam confortáveis com aquilo. Tiveram até casos que eu acabei tirando do livro, por serem muito violentos e por talvez fazer mal àquelas pessoas ter aquela dinâmica relatada ali. A seleção das cinco é uma mistura disso com um filtro do que seria mais interessante apresentar. Mas, com esse processo de manter contato, aconteceram coisas muito bonitas. Uma das entrevistas mais chocantes é a da Mariana [da quarta família que aparece no livro] e depois que eu mandei a entrevista para ela, ela me escreveu uma mensagem tocante sobre o impacto da pesquisa na vida dela, dizendo que era “incrível como ler nos dá a percepção mais real do que falamos”. O que eu sinto é que o livro nomeia coisas que as pessoas sentiram a vida toda e não conseguiram dar nome.

Muitas vezes, não é a cor que se nega, mas o significado real do que é ser uma pessoa negra. Como se o psíquico tentasse bloquear o social. Você vê isso mais como um mecanismo de defesa pessoal ou como uma certa resistência em ver a sociedade como ela é e ter que lidar com isso em termos práticos? Em que medida é possível transformar o mundo exterior a partir do mundo interior?

LVS: Eu acho que a consciência racial traz uma dor muito grande. Não é fácil ter consciência racial. Como mãe de crianças negras, a consciência racial me dá um frio na espinha. Pode ser que a polícia ache que meu filho é um trombadinha e, daí para frente, vai saber o que pode acontecer. Eu acho que tem uma função psíquica de preservação, uma negação no próprio sujeito. Uma função psíquica de poder ver o mundo com mais alegria. 

O interessante do conceito de negação para a psicanálise é que só é possível negar aquilo que se sabe. Ninguém nega algo que não conhece. Agora, quando você nega, é algo que você, pelo menos em algum nível, conhece. Freud dá um exemplo ótimo: um paciente lhe relata um sonho e ele pergunta “Quem era no seu sonho?”, aí o paciente responde “Não a minha mãe”. Ninguém perguntou se era a mãe, certo? Quando o paciente responde um “não”, a lógica é a de retirada, de só ficar com aquilo que é considerado positivo e descartar o que é negativo. É diferente do processo de denegação, que é aquilo que você não consegue nem saber da existência. Então, o que eu acho? As pessoas sabem. Óbvio que sabem. Os brancos sabem que têm privilégio, os negros sabem da sua condição. Agora, a negação é um processo psíquico de se resguardar, tanto no sujeito negro quanto no sujeito branco. É um processo psíquico de não se responsabilizar, porque, se você tem uma consciência racial como pessoa branca, a dívida é impagável. Como grupo social, não cada sujeito, a dívida é realmente impagável.

Algo que vem à tona é a insuficiência das categorizações do IBGE, por estas não responderem às demandas identificatórias. Considerando o contexto histórico e o ideal de branqueamento que influenciou a política e a intelectualidade brasileira no século 19, a ancestralidade fica subjugada frente à ênfase na aparência fenotípica como fator determinante da classificação racial. De que maneira a influência da cor sob a lente psicossocial e histórica na autoclassificação pode ser compreendida e abordada de maneira mais sensível?

LVS: A verdade é a seguinte: a raça é uma invenção completamente arbitrária que, infelizmente, deu certo. Mas a cor da pele e o fenótipo da pessoa são arbitrariedades iguais ao tamanho do pé. Essa é uma arbitrariedade inventada que sobrepõe as identificações dos sujeitos, porque as identificações dos sujeitos são variáveis. Eu tenho total consciência que eu sou branca no Brasil, porque a questão racial é uma imposição para brancos, para negros, para todo mundo, porque é assim que foi construído socialmente e historicamente. Só que ela não alcança as demandas identificatórias do sujeito. Se a pessoa nasce branca de um pai negro e se identifica, de fato, com a cultura negra, e aí? Não tem solução, porque a raça é uma violência. Ela impõe ao sujeito de pele mais clara que tem identificação com a cultura negra que ele tem que ser branco, o que é uma violência. E também seria se fosse ao contrário, apesar de que, nesse caso, acaba sendo mais fácil, porque a nossa cultura é inteira para se identificar com a branquitude. 

A política pública tem que servir quem está sofrendo racismo, que é o sujeito no mundo público. De como as pessoas passam por processos identificatórios porque tem uma sobreposição da sociologia para aquilo que é o psiquismo. Uma coisa é saber qual é o lugar desse sujeito no mundo, na estrutura social: quanto mais preto, mais sofre racismo. A gente sabe como funciona essa estrutura social. Agora, falar que “quanto mais preto for uma pessoa, mais ela sofreu” é uma violência, porque tem gente de pele muito clara que sofre muito. É como uma mulher que eu entrevistei, de uma família de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, filha de uma mãe negra e um pai branco, que, depois da morte da mãe e da ausência do pai, acabou virando a empregada da própria família. Seus avós eram de descendência alemã e falavam que ela tinha que entrar pela porta de trás, enquanto os primos brancos entravam pela da frente. Ela só vai conseguir sair daquele lugar com uns 23 anos e vai para Porto Alegre fazer assistência social na UFRGS e, quando procura o movimento negro, alguém fala para ela: “Você não é negra”. Bom, para que essa história? Tem uma outra entrevistada, de outra pesquisa minha, que é uma pessoa de pele muito escura. Só que ela nasceu na Bahia, numa família do movimento negro. Ouvindo Ilê Ayê, ouvindo “Branco, se você soubesse o poder que o preto tem”, sabe? Vivendo a negritude inteira positivada. Para as duas, é muito diferente. Faz sentido dizer que “quanto mais negro, mais sofre”? Não, porque ninguém sofre pela melanina da pele. As pessoas sofrem pelo encontro com o racismo. O encontro com o racismo na primeira infância dessa menina que tem a pele quase branca foi radical, e o dessa da família da Bahia e do movimento negro não. Isso não quer dizer que a de pele clara, na estrutura social, não vá ter mais chances de mercado. Só que os efeitos psicossociais dela são fortes e negativos, ela é depressiva, sofre demais com ansiedade, e isso enquanto outra está super bem. O que não quer dizer que a polícia não pare mais ela ou que ela seja menos perseguida no mercado.

Essa passagem direta da sociologia para o aparelho psíquico que tem sido feita no discurso das redes sociais eu acho muito violenta. Não é a melanina na pele que faz a pessoa sofrer. É o encontro com o racismo.

Diante da associação direta entre “ser negro” e o sofrimento advindo do racismo, e a percepção de que “ser branco” está associado a uma vida de privilégios, nas famílias observadas em que filhos se encontram num lugar de ambiguidade racial, qual é a relação deles com isso? 

LVS: No caso de Amanda [da terceira família que aparece no livro], dá para ver que ela vive a dificuldade de sentir que não pode se definir como negra por não sofrer racismo, especialmente pela influência do pai, mas vive também a melancolia por ter vínculos ancestrais com a cultura negra. Tem aí todo o tipo de armadilhas empíricas, sociológicas e psicológicas. A possibilidade de ser negra foi interditada a ela. 

Nessa dinâmica familiar, o pai tem um grande poder de fala e chega a um nível de até definir a identidade da filha, de falar que ela não é negra por não sofrer racismo. E você, enquanto pesquisadora, tem que ficar ali e observar. Isso é interessante, porque você começa a pesquisa com uma hipótese, mas de nada adianta fazer com que a situação valide essa sua hipótese. Você tem que responder ao que está acontecendo diante dos seus olhos.

LVS: Eu sou uma pesquisadora com bastante cuidado, cuidado para não colocar a minha interpretação a priori, sabe?

Aproveitando o gancho da pesquisa acadêmica, como você enxerga o papel da pesquisa acadêmica e da divulgação dessas questões na promoção de uma maior consciência sobre o tema do racismo e suas manifestações na sociedade brasileira?

LVS: As pesquisas que têm grande influência são de pesquisadores de fato ligados com os movimentos. Pouquíssimos eram realmente implicados com os movimentos sociais. A gente vê uma grande diferença no impacto das pesquisas quando os pesquisadores negros de movimentos sociais entram na universidade. Sabe aquela ideia de um pesquisador sem implicação com a justiça social? Isso não tem impacto, porque a gente tem aí uma história da sociologia de pessoas que estavam lá falando do negro como um objeto-ameba. Então, eu acho que tem uma diferenciação bem grande. Dá para ver a diferença depois das cotas raciais. 

Os depoimentos de Mariana, da família Oliveira [quarta a aparecer no livro], explicitam uma característica que parece ser maioria: os filhos são mais abertos a falar sobre o assunto e, consequentemente, apresentam mais desenvoltura quando o assunto é o mecanismo racista da sociedade brasileira. Mariana chega a dizer que “quer fazer diferente” de sua mãe, que era racista, apesar de casada com um homem negro. Caso essa pesquisa fosse feita daqui a 20 ou 30 anos, você acredita que os dados coletados seriam totalmente distintos? As novas gerações têm esse poder da transformação na manga?

LVS: O que eu vejo nas minhas pesquisas é que as pessoas de consciência racial, de classe, que não são da bolha, todas chegaram aí pelo rap. Gente, o Mano Brown é o maior intelectual orgânico desse país. Na minha primeira pesquisa de branquitude, os brancos com consciência racial eram pessoas da periferia que ouviam o Mano Brown. Todo mundo, sem exceção. Eu não sei dizer o tamanho do Mano Brown nesse país. Os meus orientandos brancos de classe pobre todos sabem cantar todas as músicas do Racionais. Então, por essas e outras, o que eu vejo agora é o seguinte: tem uma periferia com muita consciência racial, e isso vem dos movimentos estéticos e culturais da periferia. Tem uma mudança bastante grande e as pessoas falam “Eu sou preto” hoje em dia, o que não diminui a violência racial policial do nosso país. A gente não diminui os dados de violência. Há uma consciência racial, mas não ao ponto de que isso mude a violência policial e o aparelho judiciário, que talvez seja o lugar que mais precisa de mudanças. Os julgamentos são bizarros. A gente tem 40% de população negra encarcerada, sem julgamento. 

A pergunta que se deve fazer é: de que forma pode acontecer uma mudança dentro desse aparelho policial que a gente tem? E eu realmente acho que, no capitalismo, nesse neoliberalismo em que a gente está, não se consegue colocar muitos negros em posições de decisão, porque cabe pouca gente assim. Então a gente tem um antirracismo que pode mudar uma tal condição de auto classificação, de reconhecimento. Agora, eu não sei se dentro da estrutura social desse capitalismo bizarro neoliberal que a gente está, muda as condições materiais das pessoas.

Pensando em produtos culturais, fala-se mais sobre o racismo em filmes populares, não só racismo como outras pautas sociais, mas os efeitos práticos não se veem, porque, no final, quem está ganhando dinheiro com isso também, né? 

LVS: Os dez livros mais vendidos no ano passado talvez tenham sido de população racializada, como Krenak e Djamila, mas quem é que ganha dinheiro com isso? Nesse meu livro eu pesquiso famílias inter-raciais, mas eu estudo supremacia branca e junto supremacia branca global com o capitalismo. Eu vejo pouquíssima saída dentro dessa estrutura. Óbvio que um reconhecimento simbólico dá um conforto maior no sujeito e a gente pode ver algumas mudanças por aí, mas, nesse estado das coisas, não sei… Sou meio pessimista.

Mas há motivos para comemorar: seu livro chegou à França e foi bem recebido.

LVS: Pois é! Eu fui para Paris esse ano para o lançamento e tinham 300 pessoas. E ele já está na segunda impressão por lá, mesmo tendo sido publicado no começo do ano. E algo que me pegou de surpresa foram os depoimentos que chegaram em mim, todos de uma radicalidade gigante. Um que me marcou muito foi o de uma menina que contou que a mãe dela tinha transado com um homem da Martinica, por um fetiche sexual mesmo, mas, quando viu que tinha engravidado sem querer, ela, a mãe, entregou o pai para a imigração, porque ele estava lá ilegalmente e ela tinha medo que a filha crescesse perto dele e não aprendesse modos franceses. Tinha medo que ela fosse virar uma pessoa selvagem. 

O nível dos depoimentos das famílias inter-raciais francesas me chocou muito. Lá, entre a pessoa da França e o imigrante, seja da Martinica seja de Senegal, eram encontros coloniais mesmo, com todas as hierarquias que caracterizam isso historicamente. É muita radicalidade. Ou seja, eu achava que meu livro era sobre o Brasil. Mas não é. É sobre o racismo no Ocidente. Eu fiquei em um choque tão grande no dia do lançamento, porque formou até fila para falarem comigo depois, para me contar esses tipos de história, que mais parecem um conto colonial de 1500. Então, eu acho que é um livro que fala de Brasil, mas, ao fazer isso, ele fala também desse mau encontro colonial.

Arlequim, de Heitor dos Prazeres, em exposição no CCBB Rio de Janeiro*.

Se fecho os olhos vejo minha avó, cabelos louros laqueados, unhas vermelhas, vestido azul bordado, olhos brilhando de alegria, entrando na sua festa de 90 anos ao som de Gonzaguinha: Viver e não ter a vergonha de ser feliz.

A minha avó era de risada fácil e contagiante. Esbanjava felicidade, tanto nas suas roupas estampadas como na habilidade de agregar familiares e amigos. Adorava ser festejada com flores, presentes e doces. Não tinha vergonha de ser feliz. Penso muito nela. Nunca fui como ela, de gostar de esbanjar minha felicidade. Quando criança, me escondia durante minhas festinhas de aniversário. Mas sempre gostei de vivenciar – e proporcionar – a felicidade dos outros.

Quando me mudei para a Suécia há sete anos, me vi de repente imersa em uma cultura onde as emoções são suaves. Assim como a estética escandinava, são minimalistas, desbotadas, em tons sutis de brancos e cinzas e pretos. Durante alguns anos, continuei a buscar a minha felicidade na alegria dos outros e foi um longo e duro caminho até entender que aqui não só a luz do sol me faltaria durante longos meses de inverno, mas a luz das pessoas também.

É um paradoxo. A Suécia, assim como os outros países nórdicos, aparece ano após ano no topo do ranking dos países mais felizes do mundo. Como equacionar isso com o que eu estava vivenciando? Via uma sociedade em que exibir fortes emoções parecia causar desconforto e talvez até um pouco de vergonha alheia. 

A felicidade é uma experiência humana universal. De fato, é a emoção que mais transcende as diferenças culturais. Pesquisadores da universidade de Berkeley, na Califórnia, procuraram entender se nossas expressões emocionais são universais ou culturais. Usando tecnologia conhecida como aprendizado de máquina, especificamente uma rede neural artificial profunda, eles analisaram as expressões faciais em 6 milhões de vídeos enviados ao YouTube por pessoas de 144 países ao redor do mundo. Os vídeos continham 16 diferentes emoções a serem interpretadas, incluindo expressões de felicidade, medo, raiva e desaprovação. Os resultados indicam que pessoas de diferentes culturas compartilham cerca de 70% das expressões de emoções. É uma confirmação da universalidade da expressão emocional humana. E a felicidade é a mais reconhecível delas. É inconfundível.

Porque, então, eu estava tão confusa com a felicidade sueca? Afinal, era ou não a felicidade uma experiência universal? O que faz a felicidade de cada pessoa é extremamente pessoal. Alguns gostam de sambar, outros de pintar, alguns de fazer trilha, outros de tomar champagne de madrugada, e alguns de nós gostamos de tudo isso. Mas quando pensamos na felicidade como uma expressão coletiva de uma sociedade, vemos que existem diferenças marcadas na definição, expressão e busca pela mesma.

De acordo com William Tov, pesquisador da universidade de Berkeley, algumas sociedades equivalem a felicidade a estados de alta excitação positiva. Estados, por exemplo, em que nos sentimos eufóricos, animados e festeiros. Uma escola de samba, uma torcida de futebol na hora do gol, uma gargalhada com amigos ou grito de exaltação. Outras sociedades, no entanto, associam a felicidade mais a estados de baixa exaltação. Um momento de reflexão, de profundo contentamento e satisfação. Assistir ao pôr do sol, sentir o calor aconchegante de uma fogueira, contemplar as estrelas no céu.

A própria busca pela felicidade é diferente. Nos Estados Unidos, a busca da felicidade é vista como um direito individual, garantida na constituição do país. Na Suécia, a busca da felicidade é vista como um ato coletivo. Existem regras implícitas que governam cada sociedade, e a de muitos países nórdicos é a de que o nós é maior do que o eu. Portanto, jamais devemos pensar que somos melhores que os outros, devemos sempre buscar o consenso, e tentar ao máximo não nos vangloriar, para que todos sejam ouvidos igualmente e para que todos vivam em harmonia.

Passei a entender então que enquanto nossa felicidade no Brasil é extrovertida, aqui ela é introvertida. É algo que não ostenta, não incomoda, não ofusca, porque nossa felicidade não deve falar mais alto do que a dos outros. Quando parei de procurar a felicidade em estados de alta excitação, passei a encontrá-la em estados de baixa exaltação. Comecei a buscar a felicidade no silêncio da minha própria companhia. Nos silêncios dentro das conversas. No silêncio da natureza. E descobri que estes momentos me traziam uma satisfação diferente da felicidade exuberante. Entendi a felicidade sueca, tímida e simples.

Sinto-me feliz aqui, mas minha alma, mesmo aquietada, ainda sente falta da felicidade em voz alta, a todo volume. Do calor humano brasileiro. Do feirante cantando, da moça da padaria me cumprimentando, da batida da nossa música, da fartura das nossas comemorações. Da sensação de se entregar corpo e alma à alegria e chorar, gritar, rir, pular. De expressar toda a gama das minhas emoções, e viver sem ter a vergonha de ser feliz. 


*A exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome” está em exposição no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, de 28 de junho a 18 de setembro de 2023. Imagem: Divulgação CCBB.

Relógio da Academia Francesa (1929), por André Kertész.

Gal Costa, em uma de suas mais inspiradas interpretações, já cantava: “O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece”. As palavras escritas por Caetano Veloso para Roberto Carlos, muito embora tenham sido concebidas nos anos 70, não poderiam ser mais verdadeiras e atuais. Se a velhice está associada a um frear necessário, um arrefecimento natural e incontornável do ritmo da vida, isso nada tem a ver com o tempo, que só ganha vigor na medida em que vai acontecendo.

Você não é o único a pensar que, por incrível que pareça, a cada ano que passa, o tempo parece correr mais rápido, vencendo todas as corridas que aposta consigo mesmo. Somando à frase de Força Estranha, não só ele nunca envelhece, como também aperta o passo ilimitadamente com fôlego de sobra, dando pintas de rejuvenescer. 

Homenagem a Apollinaire (1912), de Marc Chagall.

Há registros cada vez mais recorrentes de dias que, de fato, duram milissegundos a menos do que o normal. Mas, apesar da condução de estudos, ainda não se sabe ao certo por que exatamente isso vem acontecendo. As teorias falam de oscilação no movimento dos pólos geográficos, de alterações causadas pelos desastres ambientais, dos malefícios do aquecimento global… Por mais que tentemos nos ater à razão científica, fica difícil não enxergar nisso o acontecimento-símbolo perfeito do ritmo tresloucado de nossas vidas. Sentindo a correria diária acometendo suas superfícies, quase como um formigamento que nunca cessa, até o planeta Terra sentiu a necessidade de aumentar a batida do seu diapasão. Há metáfora melhor que essa?

Assim como nenhum outro ser vivo é capaz de detectar ou produzir uma metáfora, o ser humano é o único capaz de contar o tempo. É como se fosse uma de nossas maiores invenções, uma entidade que vai bem além de respostas biológicas e meteorológicas ao nascer e ao pôr do sol. A noção de segundos, minutos, horas, dias e tudo que vem em seguida transforma completamente a nossa existência. Isso porque, com ela, também temos plena consciência de nossa finitude, conseguindo até ter uma ideia geral de até que ponto podemos continuar vivendo — para o bem e para o mal. Talvez, caso soubesse da média de vida de sua espécie, um gato dormiria menos horas por dia, querendo aproveitar mais todos os carinhos e rações molhadas de suas duas décadas. Ou talvez, sabendo como os gatos são, eles dormiriam ainda mais horas por dia. Há quem diga que saber que estamos fadados à morte é o que deixa a vida mais especial, a efemeridade é o tempero que faz a refeição valer a pena, mas há também quem se sinta diariamente comprimido por essa consciência dolorosa. 

Bem, há até quem acredite que, a partir dos avanços tecnológicos, é possível superarmos nossos limites biológicos.

Essas pessoas, aliás, são chamadas de “transumanistas”, que, na verdade, são extremamente racionais, ainda que uma das principais motivações seja a busca pela imortalidade, o que pode soar sandice a quem cai de paraquedas na conversa. No fim, acreditam piamente na aplicação da tecnologia e da ciência para aprimorar as capacidades humanas para além dos limites naturais — não necessariamente imortalidade, com todas as letras, mas, pelo menos, uma vida prolongada de maneira significativa. De acordo com os transumanistas, por meio do avanço da medicina regenerativa, do desenvolvimento de terapias genéticas e da substituição de partes do corpo por próteses avançadas, será possível superar o envelhecimento e as doenças relacionadas à idade. Outro objetivo é melhorar a inteligência humana, explorando formas de aumentar a capacidade cognitiva humana, seja por meio de interfaces cérebro-máquina, implantes neurais ou até mesmo pela integração mente-máquina. 

Retrato de um homem segurando um relógio (1643), de Frans Hals.

É claro que a coisa toda gera muitos debates acalorados, uma celeuma que ultrapassa as preocupações que concernem os impactos desconhecidos que essas intervenções podem ter no bem-estar humano. Não é necessário ir muito longe para concluir que, por já vivermos num mundo bastante desigual, infelizmente, adventos como esses aprofundariam ainda mais essas fendas sociais. Imagine só a cinematográfica guerra pela vida eterna travada entre quem têm acesso às tecnologias e aqueles que não têm. 

Mas outro debate é: será que queremos mesmo mais tempo? O que faríamos com nossas vidas se tivéssemos todo o tempo do mundo? Realizaríamos algo? Cuidaríamos de nós mesmos do jeito certo? Extrairíamos o mesmo prazer das coisas?

A passagem do tempo é um tópico constante na cabeça de qualquer um, até mesmo a mais espiritual das pessoas. Mesmo com a certeza de que há um pós-vida, os anos que vêm e vão marcam capítulos de uma história de desenvolvimento, de evoluções, eles guardam suas próprias matizes, exalam seus próprios odores — e, mesmo com uma vida depois da morte, tais particularidades não se apagam, elas se mantêm encapsuladas nos afetos da memória. É por isso que, quanto mais rápido o tempo passar (ou parecer passar), mais ansiosos tendemos a ficar: sentimos falta do respiro profundo que retém os sopros memoriais em nossos peitos. Não paramos de trabalhar, sentimos a forte necessidade de nos entreter cada segundo do nosso dia, fazemos questão de alimentar as redes sociais, sem perceber que fazer isso é nos aprisionar numa relação tóxica de faça-bem-a-quem-te-faz-mal.

A pandemia, tempos em que estávamos em casa na maior parte do tempo, em tese correndo menos do que corríamos na vida pré-Covid, foi paradoxal nesse sentido: embora sentados, deitados, sem pegar trânsito ou transportes públicos, o tempo pareceu acelerado. Isso, possivelmente, aconteceu pelo fato de os dias terem menos diferenças entre si. Na mesma moradia, assistindo à mesma televisão, com as mesmas pessoas, tudo ficou difuso, dando a sensação de celeridade e pouca absorção. Isso para não falar do medo que tocava a época, outro fator que contribuiu para o borrão temporal. Esses anos deixaram bem explícito o quão relativa, para não dizer emocional, é a passagem do tempo. 

Isso não é novidade, é claro. Desde a mais tenra idade, temos diferentes vivências temporais, disparidades que nascem da subjetividade: numa festa, as horas passam voando; no trabalho ou na escola, as horas se arrastam. Mas, antes da pandemia, a relação parecia mais simples, parecia ser somente uma questão de divertimento versus tédio. Mas, na verdade, tudo vai bem além dessa ingênua dicotomia. Se pensarmos no marasmo/temor pandêmico como um achatamento da experiência humana, sendo capaz até de acelerá-la, então podemos considerar o tempo não como um agente biológico-espiritual que produz a percepção, mas um corpo etéreo totalmente submisso às nossas sensações. 

Nada é mais fugaz que o presente, então nada é mais desconfiável que o tempo — não importa se é sua percepção se ela, no final das contas, é tudo que você tem.

Uma das razões para que a turvação atual seja tão consensual é que, em algum nível, estamos distraídos demais para olhar ao redor. Temos tempo, é bem verdade, de pegar o celular e tirar fotos dos arredores, mas não de realmente apreendê-los. Se o presente não é capturado nem quando tentamos capturá-lo, que dirá se nem sequer tentarmos. Sem o presente, que já não teríamos de qualquer maneira por sua bravura indômita, vivemos com a cabeça atolada no meio-fio entre o passado e o futuro, duas abstrações que se ancoram na autoficção. O título e o andamento frenético do filme Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (2022) resumem bem o metrônomo das canções que cantam as nossas rotinas: um ritmo insano, uma grande sequência de time lapse para dar náuseas em alguém que não está acostumado a tal velocidade. 

Do filme Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (2022), da dupla Daniel Scheinert e Daniel Kwan.

Mas, de tudo isso que acontece ao mesmo tempo, e em todo lugar, existe a névoa chamada presente, que consegue ser mais célere que qualquer instante, qualquer luz, qualquer pessoa. Pense no filme vencedor do Oscar com Michelle Yeoh como uma metonímia da atualidade, mas menos por seus temas e mais pelo seu compasso, pela sua convicção na pressa. Os filmes estão mais rápidos, mas têm aquelas mesmas duas horas de antes (com frequência, chegando em três horas de duração ou até mais). Não é assim que estamos vivendo? Mais e mais rápido? Na verdade: mais, porém mais rápido. 

Faz tempo que não saímos da quinta marcha. No entanto, para fazer um contraponto necessário, a humanidade está avançando a passos largos, mais largos do que nunca. A digitalização do mundo abriu as portas para uma infinidade de novas possibilidades, progressos que nem o mais otimista dos otimistas poderia imaginar há algumas décadas. Mas é claro que, como toda época de grandes avanços, a atualidade exige de maneira nada sutil que nos adaptemos. Primeiro porque, se não o fizermos, estaremos à margem de tudo que está acontecendo; e segundo porque, se somente formos conforme a maré e não tirarmos um segundo para realmente nos adaptar a tudo, separando o joio do trigo e conseguindo assimilar o positivo e o negativo do quadro pintado diante de nós, aí é que estaremos fadados a viver vidas que se resumem a um piscar de olhos. Não podemos voltar no tempo e desfazer toda e qualquer noção da passagem do tempo, desaprender o que são meses e anos, mas, ao invés de viajar no tempo, ir para o futuro e tentar emular filmes de ficção científica, mais interessante seria parar o tempo. Sem notícias, anúncios publicitários, postagens, tique-taques, por pelo menos uma hora. O que você faria?

Mas quem tem tempo para esse tempo de análise e autoconhecimento? Quem tem tempo de se manter longe das novidades e priorizar o respiro meditativo? Pouca gente. Quase ninguém. Bendita é a minoria que tem, maldita é a maioria que não tem. Enquanto estamos suando sangue em cima de uma cruel esteira ergométrica, sempre querendo mais, sempre encaixando mais afazeres no descanso e mais alienação no entretenimento, o presente que não se captura estará lá, fazendo troça de nós. Como uma neblina debochada.

E assim caminha a humanid… Ou, melhor dizendo: assim corre a humanidade.

CulturaLiteratura

A bailarina na corda bamba

por Helena Cunha Di Ciero

Para minha mãe,
Para sempre
.

Escrevo porque não me caibo.
Minhas palavras são meus instantes.
Grama suave onde me deito, orvalho delicado.

Não penso que me exponho assim.

O que tenho em mim guardado
Quando vira frase, está transformado
Minhas palavras saem da minha pele.

Escrevo para respirar,
desaguar lágrimas
Desengasgar

Letras abraçam o que dentro de mim me deforma.
Letras me dão forma
Palavras, oxigênio.
Olho para o papel: Liberdade.
Nas linhas da folha branca a grafia se equilibra numa dança suave.

Sou um funâmbulo no picadeiro caminhando na corda bamba da linha do caderno.
Olho para baixo, abismo.
Olho para cima, um teto colorido
Caminho na linha reta.

Escrevo com meu chão aberto
Estou seguindo, ereta.
Eu e a caneta: Duelo.
Letra e papel: Dueto

Caneta na mão,
vara de condão.
Malabarismo.
Começa a sessão do circo,

Há um leão a ser domesticado dentro de mim.
Tenho medo da sua boca escura.
Enfrento:
Caneta na mão:  espada.
Encontro a rima,
Sou bailarina.

A corda estica.
Caminho nas frases a procura de equilíbrio.
Para sossegar o jazz do meu coração.
Escrevo. Ponto.

Palavras que se sintonizam, harmonia, sossego.
Escrevo, esse é meu ponto, de encontro.
Escrevo, pois, a tela da vida não me basta
ao mesmo tempo me afoga em água.

Escrevo como quem coloca legenda numa cena de filme.
Escrevo, logo existo.
Escrevo, logo persisto.

Minhas palavras são pontes,
Eu e o mundo.
Pontes que atravessam o tempo e o espaço e chegam até o céu.

Nas palavras seguimos: Eu e você.  
Na vida eu enxergo: Eu sem você.
Se eu escrever seu nome ao lado do meu,
em algum lugar caminhamos de mãos dadas.

Ainda.

Podemos ao menos numa frase ser futuro.
unidas agora por um outro cordão: 
a linha do papel
Onde escreverei teu nome, eternamente.

Swedish Dads, série do sueco Johan Bävman, publicada na Amarello, edição O Masculino.

Maternidade e trabalho, aos maquinários conscientes e inconscientes da sociedade, são quase tão inconciliáveis quanto água e óleo: na medida em que a maternidade se apresenta, as oportunidades de trabalho parecem se esconder no fundo do copo

Julianna Margulies na série The Good Wife.

Apesar de hoje em dia a disparidade de gêneros ser uma pauta quente que gera um ou outro avanço, a discussão muitas vezes acaba no campo da teoria, em especial quando colocamos sobre a mesa o desequilíbrio ainda colossal com que o mercado de trabalho lida com a maternidade e a paternidade. Segue sendo prática comum que, em entrevistas de emprego, se pergunte às mulheres se elas têm, ou planejam ter, filhos. Se a mesma pergunta for feita a um homem — o que acontece mas não chega a ser regra —, a resposta não tem o mesmo peso. Afinal, se a resposta for “não tenho e nem pretendo ter filhos”, perfeito; e se for “sim, sou ou quero ser pai”, tudo certo também, pois, no fim, a paternidade não ficará no caminho de ninguém já que ela não é tão demandante como a maternidade. 

E, como se não bastasse a normalização da divisão desigual de tarefas e responsabilidades relacionadas à criança, quanto mais filhos uma mãe tem, menores são as suas possibilidades de encaixe profissional. O estigma é real com as futuras mães em estado de gravidez assim como para as mães recentes — e ninguém confirma isso de forma mais categórica do que os números.

Mais filhos, menos mercado

Em um novo levantamento do laboratório de estudos PUCRS DataSocial, feito a partir de microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), foi constatado que, de um total de 1,9 milhão de mães com três filhos ou mais, um número maior do que 40% estava fora da força de trabalho nos últimos três meses de 2022. A razão? Simples: as quase 800 mil mães estavam ocupadas e cansadas demais, física e emocionalmente, cuidando dos afazeres domésticos, dos filhos ou de outros dependentes. 

Trabalho da artista Mary Catherine Starr. Imagem postada em @momlife_comics

Para que coloquemos os pingos nos is: a pesquisa da PUCRS embarca homens e mulheres de 25 a 50 anos que fazem parte de casais heterossexuais; e por “população fora da força de trabalho” entende-se profissionais que não estão empregados nem procurando oportunidades no setor formal ou informal.

Desde 2016 não vemos uma porcentagem tão alta quanto essa. E se esse número já parece grande sem a sua contrapartida, prepare-se.

No mesmo trimestre final de 2022, apenas 0,62% dos homens em casais com três ou mais filhos estavam fora da força de trabalho em razão dos afazeres domésticos ou do cuidado dos dependentes no quarto trimestre de 2022. Em comparação às quase 800 mil mães, essa porcentagem equivale a, praticamente (e somente), 12 mil. Há uma espécie de “jogo duplo” em ação: a pressão de ser uma mulher “independente” vem em escala menor do que a pressão de ser uma mãe ultrapresente. Caso contrário, adjetivos como “ausente” e “desnaturada” logo surgem, sobrepujando os impulsos sociais de empoderamento feminino — ou como queira chamar —, que por ora acabam perdendo a briga para o tradicionalismo. 

Trabalho da artista Mary Catherine Starr. Imagem postada em @momlife_comics

Dificuldades da maternidade

A maternidade traz consigo uma série de demandas físicas, emocionais e práticas. O cuidado com um filho recém-nascido requer tempo, energia e atenção constantes. As mães muitas vezes se veem enfrentando noites sem dormir, amamentação, trocas de fraldas, consultas médicas e o desenvolvimento do vínculo afetivo com o bebê. Essas responsabilidades podem ser intensas nos primeiros meses, mas também se estendem ao longo dos anos à medida que a criança cresce.

Ao mesmo tempo, o trabalho é uma parte essencial da vida de muitas mulheres. O trabalho remunerado oferece independência financeira, realização pessoal, interação social e oportunidades de carreira. As mães muitas vezes enfrentam dificuldades em encontrar um equilíbrio adequado entre as demandas profissionais e familiares. Elas precisam se organizar para garantir que os cuidados com os filhos sejam atendidos enquanto cumprem suas obrigações no trabalho. No entanto, o que de partida já apresentaria desafios fica ainda pior quando sabemos que há um estigma perseverante e conciliar a maternidade e o trabalho vira um malabarismo ainda maior. 

Uma das principais dificuldades enfrentadas pelas mães é a falta de suporte e políticas adequadas no local de trabalho. A disponibilidade de licença-maternidade e licença-paternidade remuneradas, horários flexíveis, opções de trabalho em meio período ou em casa, creches no local de trabalho e programas de apoio à maternidade podem fazer uma grande diferença na capacidade das mães de equilibrar suas responsabilidades. Por mais incrível que pareça, mesmo em 2023 — tempos em que em tese as empresas, pressionadas pelo momento, estão mais preocupadas em atender as pautas sociais —, em todo o mundo há casos de mães demitidas do trabalho assim que voltam da licença maternidade.

Outro desafio é a discriminação de gênero e os estereótipos arraigados em relação às mães que trabalham. Algumas mães enfrentam preconceito ou falta de oportunidades de carreira devido à percepção de que a maternidade pode interferir em sua dedicação ao trabalho. Desnecessário dizer que o mesmo não ocorre para um pai. Quando falamos de pais, a discriminação funciona às avessas: se ele estiver disposto a dividir as tarefas domésticas e todas as responsabilidades com a mãe, barreiras terão que ser quebradas. Ou seja, num estado natural, o mercado de trabalho não está preparado para estar de portas abertas para a equidade entre paternidade e maternidade, favorecendo intrinsecamente os valores de uma sociedade patriarcal. 

Além disso, é fundamental que a sociedade em geral reconheça o valor do trabalho das mães e forneça um ambiente que apoie sua capacidade de conciliar maternidade e carreira. Isso inclui políticas governamentais, apoio das empresas, mudanças culturais e uma divisão equitativa das responsabilidades familiares entre pais e mães.

Brasil

No Brasil, as mães têm direito a uma licença-maternidade remunerada de 120 dias (4 meses) de acordo com a legislação trabalhista. Embora seja um direito garantido, essa licença ainda pode ser considerada curta, pois o período inicial após o nascimento de um filho requer tempo para recuperação física, estabelecer vínculos com o bebê e ajustar-se às novas demandas da maternidade.

Dados do IBGE apontam que a diferença de pagamento entre homens e mulheres, que vinha caindo até 2020, voltou a subir e hoje é de 22%. Isso significa que uma brasileira ganha, em média, 78% do salário de um homem. Para reverter esse cenário, o atual governo anunciou um projeto de lei que prevê que os empregadores que pagarem salários diferentes para uma mulher que tenha o mesmo tempo de empresa, a mesma função e escolaridade semelhante a um empregado do sexo masculino poderão ser multados em 10 vezes o valor do maior salário pago na empresa.

O projeto também prevê a obrigatoriedade das empresas com mais de 20 funcionários de dar transparência às faixas salariais para permitir a fiscalização do Ministério do Trabalho. A proposta foi enviada ao Congresso e ainda terá que ser aprovada primeiro pela Câmara e depois pelo Senado. A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, negou que a proposta possa resultar na redução da contratação de mulheres por empresas que querem evitar punições. Segundo ela, trata-se de uma visão misógina: “Se um empregador estiver discriminando uma mulher, se isso for um fator para ele não contratar uma mulher, haverá muitas empresas sérias, responsáveis e comprometidas com isso”.

De acordo com o site do Governo, que elenca os principais pontos do PL, “se o Brasil aumentar a inserção das mulheres no mercado de trabalho em um quarto até 2025, poderá expandir sua economia em R$ 382 bilhões — um crescimento acumulado de 3,3% ao PIB, segundo a OIT [Organização Internacional do Trabalho].” O presidente Luiz Inácio Lula da Silva é categórico, dizendo que, ao aceitar que as mulheres ganham menos que os homens exercendo a mesma função, há continuidade da violência histórica contra a mulher: “Este projeto de lei tem uma palavra que faz a diferença entre tudo o que já foi escrito sobre trabalho igual para homens e mulheres: ‘obrigatório’ pagar salários iguais.”

Mudar a narrativa

Em uma realidade de estrutura patriarcal heteronormativa, qualquer pessoa que não seja um homem branco e hétero sai perdendo. A carreira de um pai tem chances substancialmente maiores de continuar tendo um papel central do que a carreira de uma mãe, cuja vida profissional se vê ameaçada desde um primeiro momento. A leitura, apesar de dolorosa, é clara: há forças maiores em jogo aqui, algo que vai muito além das preferências pessoais de qualquer casal. Existem razões estruturais, bem como razões culturais, para isso. E, embora nem todos os pais sejam cúmplices disso, eles ainda se beneficiam disso. 

Quanto mais falarmos sobre o assunto, mais as oportunidades de mudar a narrativa existirão. Isso é verdade e não há quem negue. Mas a real esperança é que esse discurso se torne palpável no dia a dia de quem mais precisa. Para tanto, é fundamental que a sociedade em geral reconheça o valor do trabalho das mães e forneça um ambiente que apoie sua capacidade de conciliar maternidade e carreira. Isso inclui políticas governamentais, além de apoio das empresas, mudanças culturais e uma divisão equitativa das responsabilidades familiares entre pais e mães.

A mudança é estrutural e, portanto, a longo prazo. Espera-se, ao menos, que o prazo não seja assim tão longo. 

“Find your self, then kill it”
Amiri Baraka 

A imaginação radical negra é a habilidade experimental que permite a pessoas melanizadas a destreza para inaugurar mundos e alcançar futuros através de manifestações do agora. Fio de conduta por onde borbulhou, pela primeira vez, o olho d’água da humanidade, sua capacidade infinita tem por costume alterar destinos e reinterpretar códigos existenciais. Por carregar atributos daquilo que é sempiterno, essa força esfíngica se espraia no negrume do universo como uma espécie de viço ultra-dinâmico que tem por desejo nos orientar ao retorno, à condição preexistente, à mônada. A imaginação radical negra nos quer Vazio Vivo!

O surrealismo, negro e martinicano, de Suzanne Cesaire, apresenta o Maravilhoso, a esfera imaginal nos conduzindo ao além:

E este é o domínio do estranho, do maravilhoso e do fantástico, um domínio desprezado por pessoas de certas inclinações. Eis a imagem liberta, deslumbrante e bela, com uma beleza que não poderia ser mais inesperada e avassaladora. Aqui estão o poeta, o pintor e o artista, presidindo as metamorfoses e as inversões do mundo sob o signo da alucinação e da loucura… o sentido mais pleno espontâneo e natural. Aqui, finalmente, está a verdadeira comunhão e o verdadeiro conhecimento, o acaso dominado e reconhecido, o mistério, agora amigo e útil.

A imaginação radical negra nos quer matéria incriada, nos protege em opacidades e sabe que a tudo podemos gerar. Rompe com a lógica e a razão dominantes do pensamento ocidental, e acessa criptografias naturais de realidades fabulosas que hibridizam os mundos visível e invisível.

Pintei o Eden de Preto, 2020. Maxwell Alexandre

As filosofias Congo-Bantu, reinterpretadas por Tiganá Santana, invocam a senciência de línguas ancestrais:

“Wa i mona”, “ouvir é ver!” Deixar o que se vê de lado é sentir de outras formas – pela audição, pelo tato, por outros sentidos. 

Este é um convite para perdermos as imagens coloniais que carregamos conosco, um chamado para adentrarmos no domínio do que é bizarro, superabundante e sensorial. A imaginação radical negra sugere que devemos tatear o escuro, nos incita a reconhecer outras angulações e caminhos. Ela nos diz que devemos ser escuridão inteira, o cume da noite, a morada da sublime miríade onírica de Dinknesh – a maravilhosa. 

O poeta Amiri Baraka, ao desenhar as palavras que abrem este despretensioso escrito, nos alerta que a libertação da experiência imaginativa primeiro se dá no encontro com nosso próprio Eu, e depois com a explosão dele. Baraka nos diz que precisamos então esquecer aquilo que nos molda em colonialidades para flutuar no absurdo do que ainda não foi prefigurado, a audácia de sonhar belezas impensadas.

The Seated I/The Seated III. 2019. Wangechi Mutu

Em suas reimaginações intencionais da experiência africana, a artista Wangechi Mutu profecia: 

‘Iniciei uma crítica contínua e uma vandalização intelectual real daquelas imagens, que estavam me violando, tornando-me invisível.’

Mutu nos alerta que será preciso ostentar arrojo e determinação na busca por universos insondáveis. Incendiar uma ordem não é algo que pareça fácil de realizar. Por isso é preciso estar aberto para acolher o espanto que sentimos diante da vida, e ter saúde suficiente para elaborar continuidades através de uma semeadura/colheita ancestral. Essa proposição é radical em sua essência justamente porque tensiona o que determinado está.  

O historiador Robin Kelley nos provoca em fissuras ao nos alertar sobre a importância de pensar o impensado:

​​“Sem novas visões, não sabemos o que construir, apenas o que derrubar. Não apenas ficamos confusos, sem leme e cínicos, mas esquecemos que fazer uma revolução não é uma série de manobras e táticas inteligentes, mas um processo que pode e deve nos transformar.” 

Arthur Bispo Rosário e um de seus mantos, na Colônia Juliano Moreira, em 1989 (Foto: Lucio Marreiro)

Alforriar a nossa capacidade imaginativa é uma alternativa a escravidão mental a que estamos acometidos. Organizar a cabeça, limpar os espaços do pensamento, encorajar os sonhos, dançar com espíritos, esses são elementos essenciais na busca pela libertação da percepção. Nestes casos, recomenda-se a fuga de tudo aquilo que nos mantém inerte, a distância daquilo que nos faz pensar em uma única forma para as coisas, um único trilho para o tempo, uma única encruzilhada para a vida. 

A imaginação radical negra nos presenteia com o desassossego, ebó de fruto-mistério que emana do espírito e se configura como uma poderosa ferramenta de libertação e avanço, uma inquietação, bela e febril, que a todo tempo nos convida a serpentear pelos abismos do espaço-tempo. 

Pois como bem nos disse Malcolm X:

‘(…) Em frente a liberdade, o corpo negro vai improvisar, fazer nascer mundos dentro de si. E é somente isso que todos queremos…” 

Sun Ra. Foto de Alton Abraham

Nessa espiral, penso que seja saudável desconfiar de sonhos pequenos, destituídos de desejos coletivos. Por isso é crucial cuidar da verve, nutri-la, repousa-la em alumbramentos. Flutuar os corpos, fisico e etereo, como se toda a extensão da pele fosse revestida por olhos terrilmente negros. Enxergar o mundo com os pés, as mãos, os pelos e a cabeça. 

É possível! 

Alcançar o invisível, acessar dimensões outras, e explodir o próprio Eu. Viajar intramundos feito Sun Ra em busca de Saturno, ser fruto da placenta de Amma feito os Dogon no início da existência, ter os furiosos cabelos brancos de Storm Ororo em meio ao caos, negociar sentidos e facilitar a construção de novos horizontes como Luiza Mahin e Abdias fizeram, recriar símbolos e sensibilidades como Cruz & Sousa poetizou, provar da culinária antigravitacional Dagara feito Malidoma Somé, e ritualisticamente, viver no mundo feito Carolina Maria de Jesus: cosendo vestidos com retalhos de céu. 

Um dos grandes poderes da arte é transcender fronteiras, conectar culturas e contar histórias universais. Poucas coisas são mais emocionantes do que ver uma narrativa específica conquistar o mundo da maneira mais abrangente. A universalidade de uma obra, porém, não concede a nenhuma nação o direito de tomar aquilo para si. Infelizmente, por trás de muitas obras — africanas, ameríndias, praticamente de qualquer lugar que não seja a Europa —, repousa uma sombria narrativa de pilhagem e despojo. Durante séculos, nações europeias se apropriaram de objetos valiosos e sagrados, esvaziando comunidades de suas heranças culturais. Hoje, de forma tão tardia, o mundo se vê diante de um debate urgente e complexo sobre a restituição dessas peças às suas origens.

Bronzes de Benin expostos no British Museum

O processo de descolonização — onde quer que ele se atreva a acontecer — é longo e mais aprofundado do que se imagina. Para que se comece a ter noção do quão enraizada é a lógica colonialista, basta pensarmos no quão custoso foi para que chegássemos a simples questionamentos, tais quais: como e por que o Louvre tem tantas peças africanas, asiáticas, oceânicas, pré-colombianas? Ou então: por que elas não estão expostas em seus lugares de origem?

A ideia de que essas peças — em sua grande maioria, obtidas de formas violentas — cabem mais em inspeções antropológicas do que em interpretações artísticas é um mal que tange, e diminui, a sociedade moderna, ainda mais quando o expandimos para uma perspectiva mais generalizada de preconceito. Ao menos, à luz dos novos tempos, algumas restituições culturais vêm acontecendo. Exemplo disso são as devoluções de obras importantes a Madagascar, Senegal e Benin, realizadas em 2020 por Emmanuel Macron, presidente da França. 

A consciência diaspórica

Exibição “Primitive Art Masterworks”, de 1974, em Nova York. O Museu da Arte Primitiva hoje faz parte do MET.

A consciência diaspórica, em linhas gerais, pode ser definida como a consciência coletiva e a experiência compartilhada por comunidades diaspóricas, formadas por pessoas dispersas geograficamente de sua terra natal original. Envolve uma profunda conexão com as terras-mãe e as culturas de origem, juntamente com desafios de assimilação cultural, preservação da identidade e luta contra a discriminação e marginalização. 

Sua relevância no contexto artístico se dá porque, sendo ela moldada pela memória coletiva de eventos traumáticos que levaram à diáspora, pela transmissão de tradições e histórias de geração em geração, intrinsecamente traz à tona as dificuldades da experiência contínua de viver como o “outro” em sociedades estrangeiras — e isso inclui os constantes saques de patrimônios artísticos, que podem ser vistos como ataques pessoais (ainda que tenham acontecido há centenas de anos).

Como essas comunidades são afetadas por desigualdades estruturais, a consciência diaspórica frequentemente envolve a defesa de direitos, a luta contra a discriminação e a busca por igualdade e reconhecimento. Com uma coisa levando à outra, isso tudo evidentemente pode influenciar a produção cultural, artística e intelectual. 

Muitos artistas diaspóricos exploram suas experiências e identidades nas obras que criam, contribuindo para a diversidade cultural e para uma compreensão mais ampla da experiência humana.

O curioso resgate de Wole Soyinka

O escritor nigeriano Wole Soyinka. Foto: Yagazie Emezi/The New York Times

Wole Soyinka, o renomado escritor nigeriano, é conhecido por sua contribuição para a literatura e o teatro mundial. Sua obra abrange uma variedade de gêneros, incluindo peças teatrais, romances, ensaios e produções poéticas. Em reconhecimento à sua excelência literária e à sua luta pela liberdade de expressão, Wole Soyinka recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1986. Uma de suas obras mais aclamadas é A Dance of the Forests (1960), uma peça teatral que marcou sua estreia no mundo do teatro, considerada uma crítica poderosa às contradições e aos dilemas enfrentados pela sociedade nigeriana na época de sua independência do domínio colonial britânico. E esse é só um dos muitos exemplos de sua habilidade em abordar questões universais por meio de uma lente africana. Hoje aos 88 anos, continua a inspirar gerações de escritores e leitores ao redor do mundo, ao mesmo tempo em que oferece uma voz única e vibrante à rica tapeçaria da literatura africana contemporânea.

No seu livro de memórias, You Must Set Forth at Dawn, de 2006, Soyinka descreve o desenvolvimento da sua consciência de diáspora e como parte desse desenvolvimento tem o Brasil como palco. A diáspora africana estabeleceu uma conexão intrincada entre diferentes territórios, culturas e pessoas. É através dessa rede complexa de migração forçada e voluntária que a consciência diaspórica emerge, unindo indivíduos e comunidades dispersas pelo mundo. Um episódio emblemático desse fenômeno interno do escritor ocorreu quando encontrou uma peça de arte sagrada na Bahia, nos anos 1970, desencadeando um resgate inesperado.

Soyinka ficou sabendo que a mítica estatueta de Orí Olókun — uma obra-prima da arte africana retirada ilegalmente da Nigéria e que representa o espírito do mar na tradição iorubá —, que tinha um paradeiro desconhecido sobre o qual muito se especulava, estava afinal numa casa particular na Bahia. Saber disso despertou nele um senso de dever e urgência em relação à preservação e à restituição do patrimônio cultural africano. Algo que já vinha crescendo em sua consciência, mas que ali ganhou materialidade numa tomada de ação categórica. Não só a peça não estava na Nigéria, como ela também não estava nem em um museu, onde poderia ao menos ser vista por um público maior. 

De acordo com o que Soyinka descreve no livro, a história foi incrível: “Não pude acreditar na nossa sorte! Orí Olókun, diziam-me esses colegas, não estava trancado em um museu nacional com fortificações, guardas, dispositivos de monitoramento eletrônico, feixes de laser cruzados, guardas robóticos estranguladores e tudo mais, mas estava em uma galeria privada. E não era nem mesmo uma galeria pública, era uma espécie de estúdio-galeria, que pertencia a um famoso arquiteto!” 

No entanto, o resgate do Orí Olókun não foi uma tarefa fácil. Soyinka enfrentou uma série de desafios legais e burocráticos para garantir a devolução da peça à Nigéria. Questões relacionadas à propriedade, documentação e repatriação legalmente reconhecida foram obstáculos significativos nesse processo. Deixando o lado cinematográfico da coisa toda — algo que poderia ser tratado como um thriller de espionagem hitchcockiano ou como uma comédia surrealista de Terry Gilliam —, esse caso ressalta as dificuldades enfrentadas não apenas por indivíduos, mas também por governos e comunidades que buscam recuperar suas heranças culturais. O sistema complexo de coleções privadas, museus e leis internacionais torna a tarefa de restituição uma batalha árdua.

O resgate também representa um momento de resistência e resiliência. A ação de Soyinka e seus parceiros demonstra o poder da consciência diaspórica em conectar e mobilizar pessoas ao redor do mundo na luta pela preservação da herança cultural africana. Exemplifica a importância de se reconhecer e valorizar o patrimônio cultural de um povo, especialmente quando foi injustamente retirado de seu contexto original, além de servir como um lembrete poderoso de que a conscientização e a ação são fundamentais na luta pela justiça histórica e na preservação das riquezas culturais da diáspora africana.

Reparações históricas

Objetos e estatuetas da coleção de Arte Vodu Africana exibidos em Estrasburgo, na França, 2014.

Atualmente, a questão da restituição de obras de arte ganha ainda mais relevância, já que o debate global sobre o legado da colonização e o reconhecimento da necessidade de corrigir injustiças históricas crescem a cada dia. Países como Alemanha e França agora se veem diante de um dilema moral e político: como lidar com uma herança cultural roubada que faz parte de sua própria identidade artística e patrimonial? A devolução de obras, ao menos algumas, seria um ato de justiça, um gesto de reconciliação com o passado e uma oportunidade de reconstruir pontes entre povos e culturas. No entanto, a tarefa prática de repatriar todas as peças roubadas é complexa, envolvendo questões legais, logísticas e museológicas.

Para compreender a magnitude desse debate, é preciso olhar para trás, para os episódios históricos que moldaram essa realidade. Durante o período colonial, as potências europeias realizaram expedições e saques, alegando descobertas científicas e explorando terras desconhecidas. Nessas incursões, uma miríade de objetos valiosos foi roubada das comunidades africanas, despojando-as de sua identidade cultural e religiosa. As peças mais emblemáticas nesse contexto são os Bronzes de Benin, um conjunto de esculturas e placas de bronze que adornavam o Reino do Benin, no atual território da Nigéria. Em 1897, uma expedição britânica saqueou e incendiou a cidade de Benin, levando consigo milhares de peças preciosas. Essas obras-primas do período medieval africano foram parar em museus e coleções privadas no Reino Unido, onde permaneceram por décadas, afastadas de sua origem e significado cultural.

O movimento de descolonização que ocorreu na segunda metade do século passado trouxe à tona o questionamento sobre a posse desses muitos objetos de arte africanos. Na esteira da independência de várias nações africanas, surgiram vozes exigindo a restituição das peças saqueadas. Países como Gana, Nigéria e Senegal lideraram esse movimento, reivindicando a devolução de sua herança roubada. Esse clamor de justiça histórica ecoou por todo o continente, alimentando o desejo de resgatar a dignidade e a história que foram subtraídas.

A questão não se limita apenas à África, mas também abrange as Américas e culturas originárias. Durante os períodos pré-coloniais, diversas civilizações floresceram em territórios que hoje correspondem às Américas, deixando um legado artístico e cultural de valor inestimável. Muitas dessas obras de arte, caracterizadas como “primitivas” pela perspectiva ocidental, foram adquiridas por museus e colecionadores europeus e norte-americanos durante os séculos XIX e XX. Estátuas, máscaras, cerâmicas, tecidos e outros artefatos indígenas foram retirados de suas comunidades de origem, resultando em um esvaziamento cultural profundo.

A história das civilizações pré-colombianas, como os Maias, Incas, Astecas e várias outras culturas indígenas, é rica em expressões artísticas e simbólicas que refletem sua cosmovisão única. Mas muitas dessas peças foram retiradas de seus contextos originais e, assim como na arte africana, são frequentemente encontradas em exibição em museus europeus e norte-americanos.

A devolução dessas obras seria uma forma de respeito aos povos originários, permitindo-lhes recuperar parte de sua herança cultural e valorizar ainda mais suas raízes. Além disso, a restituição pode contribuir para a valorização e preservação dessas culturas, promovendo um diálogo mais equitativo e inclusivo entre as sociedades.

Essa arte é de quem?

Departamento de Artes Primitivas, no Louvre. Foto: Reprodução Willimote & Associés

O debate sobre a restituição da arte africana e indígena das Américas é um lembrete da necessidade de repensar nossa relação com o patrimônio cultural global. É uma oportunidade para questionarmos os legados coloniais e promovermos a justiça histórica, reconhecendo que a arte é uma expressão vital da diversidade humana e que deve ser respeitada e preservada em seu contexto cultural original. A restituição, quando feita com sensibilidade e respeito, pode ser um passo importante na construção de um mundo mais inclusivo e equitativo, onde todas as culturas sejam valorizadas e celebradas em sua plenitude.

No cerne dessa discussão, a universalidade da arte surge como um ideal a ser buscado. A arte, em sua essência, deveria transcender as barreiras geográficas e culturais, conectando a humanidade em sua diversidade. Porém, como produto de um mundo imperfeito, ela é muitas vezes o reflexo dos desequilíbrios de poder e das injustiças históricas que assolaram o planeta.

Ao reconhecer a violência do passado e buscar meios de corrigir esses erros, países como a Alemanha e a França podem liderar um movimento de transformação com a força para desencadear uma nova era de respeito mútuo e colaboração. Quem sabe, de uma atrasada libertação. Como o caso Wole Soyinka nos mostra, a crítica e o questionamento são noções basilares para isso. Sem elas, toda e qualquer liberdade estará ameaçada.

“Esta revista é um dispositivo de projeção futurista e que deve ser utilizado como passaporte para a sua viagem.”, assim Pâmela Carvalho nos apresenta a proposta da Amarello Imaginação Radical. Junto a Pitter Rocha e Dayrel Teixeira, o trio de editores da edição 45 nos convoca a uma leitura que propõe a imaginação como recurso fundamental para a busca de novas realidades — melhores e mais igualitária: A possibilidade de transformar a imaginação em ação não é e não foi distribuída de forma igualitária entre as pessoas. As ideias sempre foram livres; alguns seres humanos, não.”

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Fotos de Alex Costa e Dayrel Teixeira cedidas pelo Arte Ocupa.

O Arte Ocupa nasceu em 2021 feito uma inquietação, a partir da necessidade de expressarmos a nossa arte nas ruas de Manaus. Realizado inicialmente na comunidade de Mossoró, na zona sul da capital do Amazonas, o projeto se identifica como uma pluralidade de existências da palavra “coletivo” — que significa “algo que ajunta”.

Ajuntar-se é um lugar, é moradia de algum sonho que não deve ser habitante do planeta Medo. É lar do planeta Esperança. O Arte Ocupa altera o olhar ácido, ocupa a visão de alguma criança que desvia da bala de mascar.

“Aqui o amor nem sempre dança!
O som nem sempre é música.
Bala. de. mascar.”

O que um dia já foi — e ainda é — dois malucos da praça, hoje é um movimento que não somente atua na comunidade Mossoró, como vem sendo o Mossoró. A coletividade vem promovendo uma ressignificação local, tornando-se uma ação política, tendo em vista a maneira como não só a comunidade Mossoró, mas periferias em geral são vistas e tratadas a partir da construção estereotipada do imaginário social. Pensam saber o que somos a partir do que a mídia dita, mas hoje, se você pesquisar “Arte Ocupa”, vai nos ver a partir do que nós mesmos dizemos: nos tornamos um ateliê a céu aberto.

As periferias estão repletas de vida e sonhos que se apresentam como alternativas dentro dos outros modos de dizer. Ao ouvir e estudar a história do nosso país através do olhar da arte, você percebe como as criações e ocupações artísticas — principalmente quando se trata do movimento hip hop — mudaram, dentro do possível, o sentido do termo “periferia” e foram de extrema importância para a construção do chamado “orgulho periférico”. Pergunte aos Racionais MC’s em 1993, pergunte ao Cidade de Deus em 2002. Através de ritmo e poesia, os Racionais trouxeram problemáticas da periferia, tratando de pautas como a miséria, a violência policial, o racismo e as dificuldades de oportunidade com que lida a população mais pobre e, logo, marginalizada do nosso país.

Como nos lembra Acauam Silvério de Oliveira, em O evangelho marginal dos Racionais MC’s

Racionais ajudou a fundar uma nova subjetividade, criando condições para a emergência do que ele [Tiaraju D’Andrea] define como “sujeito periférico”: o morador da periferia, que assume sua condição, tem orgulho desse lugar e age politicamente a partir dele. O termo “periferia” passaria a designar não apenas “pobreza e violência” — como antes ocorria no discurso oficial e acadêmico —, mas também “cultura potência”, confrontando a lógica genocida do Estado por meio da elaboração coletiva de outros modos de dizer. (…) Sua radicalidade e seu senso de missão (…) ajudaram a desenvolver um espaço discursivo em que os cidadãos periféricos puderam se apropriar de sua própria imagem, construindo para si uma voz que, no limite, mudaria a forma de enxergar e vivenciar a pobreza no Brasil.

Nos corpos periféricos colocados diante das múltiplas funções que devem exercer, pressionados pela pobreza, bombardeados de carências, que têm que pensar hoje no prato de amanhã, a arte entra que horas? Ela é vista como área privilegiada; entretanto, nós temos olhos de Gilberto Gil, sabemos que arte é igual a feijão com arroz, tem que estar no nosso prato todo dia. A arte é ordinária. A vida também deve sentir o cansaço de uma dança. E nessa criação no espaço-tempo de diversão e criatividade se constrói a autoestima. É onde as crianças se sentem escutadas, criativas, talentosas, felizes, belas, capazes e confiantes em si mesmas. Quando convidamos artistas para as ocupações, as crianças convivem com corpos semelhantes aos delas e os admiram. É um momento para se pensar “eu também posso”. Não é à toa que hoje tem criança aqui que sonha em ser artista. Nós pintamos juntos, conversamos, jogamos, criamos juntos. Não tem preço a felicidade de uma criança por ver sua pintura num varal em exposição ou numa parede de destaque na sua casa. Não tem preço ver a comunidade colorida, sentir que estamos morando num espaço mais bonito. É como no manifesto do coletivo Poro: é por uma cidade-festa, onde as ruas são para dançar, por uma relação próxima entre as pessoas e a cidade, pelo uso do espaço público como lugar de troca, festa, manifestação e encontros. Pelo fim da cidade-medo.

A gente sabe que criar e viver se interligam. Fayga Ostrower afirma que criar é poder dar forma a algo novo; criar é, portanto, a capacidade de compreender, e esta, por sua vez, de relacionar e significar — e assim o ser humano configura sua experiência do viver, lhe dando um significado. Dessa forma, a gente percebe que o ser humano cria não apenas porque quer ou porque gosta, e sim porque precisa. Fayga termina dizendo que o ser humano só pode crescer, enquanto ser humano, dando-se forma e, portanto, criando. Assim, a gente transforma, e quando transforma o nosso redor, não somente percebe as transformações, como sobretudo se percebe nelas. Essa escrita, por exemplo, está sendo construída por Gabriel Medeiros (12 anos) e Sarah Campelo (22 anos).

É importante que a gente acredite nas crianças e na juventude, perceba que elas — nós — são o agora. A nossa intenção, enquanto coletivo, é que as crianças e os jovens tenham cada vez mais voz nas ocupações. Isso é importante para que todos se sintam pertencentes ao Arte Ocupa. A partir do pertencimento é que a gente cria, e de criar as crianças entendem muito bem. Não é à toa que se chama cria-nça, né?

Eu, Gabriel, mais conhecido como Mosquitinho, vejo que tem muita diferença aqui no Mossoró depois do Arte Ocupa, porque antes aqui era uma comunidade muito triste, não tinha crianças reunidas para alegrar, e agora que o Arte Ocupa chegou na nossa comunidade, eu posso ver alegria e união entre a gente.

A gente percebe que ser pobre e ser rico tem diferença, que o rico tem uma escola boa, tem um parque perto de casa para brincar, se divertir, e o pobre não tem isso. Eu acho isso injusto com a gente. Por que o pobre não tem um parque perto de casa para brincar? Era para ser igual, porque eu achava que a gente era igual. Eu aprendi que todo mundo paga imposto, e a partir do momento que uma criança pega ou compra uma bala — de mascar — ela tem que pagar o valor da bala.

Nas palavras dos Racionais MC’s: Fé em Deus que ele é justo! Ei, irmão, nunca se esqueça / Na guarda, guerreiro, levanta a cabeça, truta / Onde estiver, seja lá como for / Tenha fé, porque até no lixão nasce flor.

O Estado renega corpos periféricos — que em sua grande maioria são corpos pretos —, deformando, reprimindo, manipulando nossas existências. Nos são negados espaços de lazer, nos é negado educação de qualidade, nos é negado saúde, nos é negado sensibilidade; concluímos, então, que nos é negada a vida. O amor é político.

E como mudamos, dentro dos nossos limites, essa realidade? Estamos envolvendo o terreno afetivo da comunidade. Em alguma página, Paulo Freire defende que na resposta dos oprimidos à violência dos opressores é que vamos encontrar um gesto de amor, mesmo que eles tenham o poder de definir a violência, mesmo que eles estejam no poder. Mossoró quer contar sua própria história no nosso tom, de se festejar por si e para si, vivendo os outros modos de dizer.

É como Sarah Campelo defende: se a gente não der uma resposta social para o nosso território, a nossa arte vai ser só uma moldura, e o diploma, um pedaço de papel.

O coletivo Arte Ocupa nasceu em 2021, criado pelo Marcelo Rufi e pela Sarah Campelo, e se tornou o que é hoje quando ambos decidiram fazer da rua o seu ateliê, pegaram seus materiais e sentaram na estação de Petrópolis. Como ninguém manda no que a rua diz, várias crianças e vários adolescentes foram se juntando ao redor. Assim, todo fim de semana eles se reuniram para pintar, desenhar, performar juntos, e toda vez as pessoas aproximavam. Isso foi se tornando frequente; quando viram tinham um nome, quando viram tinham uma página no Instagram, tinham logo e começaram a levar material não somente para si. Levantaram uma bandeira. Foi assim que quem frequentava a estação começou a se deparar com gente no chão fazendo arte, com barbante nos portes sendo varal de pinturas em exposição. E foi nessas vivências que a gente foi descendo o bairro e começando a fazer as ocupações no próprio Mossoró. A partir daí, percebemos o tesouro que é ter um espaço de permanência, um espaço onde você está presente para perceber as transformações e se perceber nelas. Não são apenas pessoas que aleatoriamente criam com a gente, hoje somos Ariel, Vinicius, Heitor, Miguel, Galinha, Gabriel, Thaís, Rafa, Vitor, Daniel, Karoline, Sofia, Tarcy, Julie, Isaac, Hugo, Mifó, Arão, Fabiano, Lulu, Jhonatan, Mosquitinho, Thallyson, Josi, Zé, Beatriz, Tatá, Sarah. E Mayara, Geci, Anderson e Marcelo, que de alguma forma também são Mossoró, como tantos outros. Somos uma família.

Taís Araújo um dia perguntou: “Como criar crianças dóceis num país ácido?”. Desde 2021 estamos desenvolvendo ações na área, e vejo como isso me levou a um senso de responsabilidade em relação ao meu território. Eu ia nas casas pedir aos pais que me deixassem levar as crianças para tomar a primeira dose da vacina contra covid-19, ir no Cidade das Crianças brincar. Comecei a ter uma base de respeito e noção de que, se eu estou alcançando e adentrando certos espaços, tenho que estar presente para ampliar esses espaços, para que a minha entrada não seja um ponto final, e sim um ponto de partida de sonhos contínuos. Eu tenho que devolver meus sonhos ao meu território.

Don L canta: “Isso num é sobre onde cê vem, é sobre onde cê quer chegar / E o que vai mudar pra quem de onde cê vem quando tiver lá”. É sobre isso. Quando puder sonhar, sonhe junto, porque assim a gente não ganha, a gente vence. Vamos nos eternizar nesta terra sangrenta. É um mundo que nos separa de nós, mas o nosso corpo é terra fértil, já estamos falando de sonhos pelas manhãs. E, sendo assim, se o Mossoró se tornou um ateliê a céu aberto, ocupamos as pontes para pintar, nossas telas são os muros das nossas próprias casas, são os muros que levantamos.

Acreditamos no direito à cidade. Cidade-festa. Ruas para dançar. Conheça a liberdade sem olhar no dicionário. Esqueça os carros. Isto não é uma arma. Tenha medo. Isto é arte. Tenha mais medo. E é assim que você nos vê. E é assim que a gente se vê no mundo. A gente pinta numa língua que já existia — só não entre a gente. A gente sonha em amarelo. Se Mossoró fosse uma cor, seria amarelo. Aqui as ideias são perigosas, estamos falando de amor. Ideias de amor são perigosas. Amor é fatal. Saber que a cidade é nossa é fatal. Saber o que é nosso por direito é fatal.

Uma vez a escritora Lorena Machado nos escreveu, através de uma troca na exposição da Galeria do Largo, o seguinte:

Sarah Campelo e Marcelo Rufi amam inquietamente, e por isso atravessam e percorrem as cidades-invisíveis para acender cores, formas, sensações, risos: manifestações. Impelidos pela necessidade de ampliar o sentir adentram espaços profundamente esquecidos: os corações que habitam e se movem nos bairros periféricos. O Arte Ocupa é como uma chave que abre nesses corações janelas-portas-ou-celas, muitas desconhecidas dos próprios corpos que os carregam. O material de que é feita a chave é, sem dúvida, o amor. O amor pela cidade em que habitam, o amor pelo sentir, o amor pela necessidade de expandir esse amar-através-da-arte. Uma atitude muito corajosa e transgressora nos dias atuais, onde impera, de todos os lados, os discursos agressivos e intolerantes. É o insólito que harmoniza o peso (libertador) do protesto com a leveza do fazer sentir amar.

Memórias de quem faz o Arte Ocupa

Gabriel Mosquitinho: Teve uma oficina de pintura, que é um evento organizado pela Sarah e pelo Marcelo. Nesse dia teve pintura na ponte, depois teve desfile e depois a Sarah e o tio Marcelo deram blusa do Arte Ocupa para todas as crianças que estavam participando. E nesse dia, na hora do desfile, eu caí no igarapé e cortei meu pé.

E em 2022 teve a Copa do Mundo, aí, pra não passar batido, a gente decidiu pintar a rua e fazer um campinho de futebol. Nesse mesmo dia de manhã, umas 10h, minha prima caiu de moto, mas ninguém se machucou. Aí a gente continuou pintando, e umas 10h45 a tinta que a gente tava pintando o campinho acabou, e a gente foi almoçar e umas 13h20 a gente voltou a pintar a rua. Nesse mesmo dia de madrugada a Sarah fez uma homenagem pra mim, Gabriel, mais conhecido como Mosquitinho.

Gabriel:
Na rua pintando o campinho, pintando a bandeira do Brasil, pintando a bandeira gay, pintando a camisa do Brasil.

Miguel:
Pintando a parede do Zé, jogando bola, a Karoline andando no igarapé e se sujando na guerra de tinta, pintando a cara, a Come Ovo amarrando linha.

Sofia:
Se melar de tinta pintando a parede do Zé, pintando a rua na Copa, a gente desfilando na ponte com roupa de pintura.

Thallyson:
Quando eu pintei as árvores e pintei a frase “Eu torço pela copa das árvores”.

Marcelo: Eu amo me lembrar do primeiro Arte Ocupa Pontes, em que perdi minha xuxinha de cabelo e fiquei comendo militos com o cabelo solto.

Se você pudesse ser qualquer coisa no mundo, o que você seria?

Ariel (7 anos): um cachorro
Fabiano (14 anos): barbeiro
Gabriel Mosquitinho (12 anos): o céu
Sarah (22 anos): um pássaro condor ou um urubu
Vinicius (12 anos): um pitbull
Hugo (11 anos): jogador de futebol
Karoline (11 anos): enfermeira
Josi (32 anos): policial
Miguel (11 anos): um MC adulto
Heitor (4 anos): pintor
Arão (5 anos): dentista
Mifó (5 anos): um pedaço de isopor
Isaac (7 anos): o Homem-Aranha
Gabriel (13 anos): o Superman
Thallyson (12 anos): técnico do Vasco

E você que está nos lendo agora, o que você seria se pudesse ser qualquer coisa no mundo?

Ao entrar aqui, tenha cuidado. Tem sonhos na rua. Tem crianças na rua. Nós devemos pedir perdão às crianças, principalmente àquela que já fomos um dia. Cuidar da infância é o melhor investimento que se pode fazer.

Bem-vindo a Mossoró.

Funkeiros Cults em uma série de releituras de obras clássicas.

Imaginar Michelangelo como um jovem de periferia e a Capela Sistina como uma favela é mais do que um exercício de imaginação, é trazer uma discussão provocativa sobre a arte, sobre como ela nasce e é vista pela sociedade. Quando mostrei a foto de A criação de Adão versão periferia para as pessoas do meu bairro, elas não conheciam Michelangelo ― não por ignorância a respeito do pintor italiano, mas por outros motivos mais complexos; eles reconheceram os elementos da “obra original”, mas encararam a nova imagem com um olhar que nós, criadores, não tínhamos dado: eles viram uma obra única, em que reconheciam os elementos colocados com todos seus detalhes e nuances. Foi aí que percebemos que não estávamos necessariamente criando releituras, que as imagens deveriam ser analisadas além do impacto visual.

Quando analisadas, as obras ganham camadas e camadas, sobretudo sociais, culturais e provocativas, que refletem muito o nosso projeto, o Funkeiros Cults, e a própria cultura brasileira de periferia. Oswald e Tarsila, com o movimento antropofágico, defenderam a ideia de engolir e devorar o estrangeiro para criarmos nossa própria identidade, nossa própria estética. Quando olhamos de perto, o nosso funk passou por isso ― todo inspirado em ritmos vindos de fora e depois adaptados para o que é hoje um dos grandes estilos brasileiros. As obras desta galeria refletem isso em outros níveis, assim como o funk mostra apenas um retrato de muitas realidades que existem no Brasil, engolindo a arte para chegar a uma verdade maior.

Alguns podem questionar o porquê de “refazer” obras que já existem, outros podem fazer comentários levianos, dizendo que algumas pessoas não seriam capazes de entender a obra de arte original ― o que seria chamar o povo de ignorante ―, mas de maneira provocativa eu lhe pergunto: o que você pensa quando imagina um menino negro de 12 anos se identificado com uma obra de “um jovem segurando uma favela nas costas”, tal qual o Atlas da mitologia grega? O que isso diz sobre o lugar e a condição em que o jovem vive? Que aquelas mãos segurando o “mundo” se parecem com as dele? Que casas em cima da sua cabeça poderiam ser a de sua comunidade? Que ele sente um peso, uma pressão, mesmo sem entender, na sua existência? Será que a obra “original” em que ela foi inspirada teria tanto impacto para esse jovem quanto essa nova? Esses questionamentos por si só nos fazem ver as obras como únicas, inquestionáveis em sua função de arte, que é a de nos fazer pensar, nos fazer sentir, nos fazer questionar o nosso mundo e, acima de tudo, o nosso lugar nele.

Uma discussão totalmente válida é se a arte feita na periferia teria que ter necessariamente elementos periféricos, se ela não poderia existir pela sua simples e misteriosa beleza. Poderia, mas nossos corpos e nossas almas são atravessadas de muitas maneiras; temos nosso lugar, nossas falas são como nosso mantra, nossa armadura. É um jogo complexo. Como poderia um ser não falar sobre seu lugar e os sentimentos que viver na pele dele causam? Seria injusto. As obras serem refeitas com esse olhar e a forma como foram feitas faz parte de todo seu conjunto. Elas foram feitas em meio a conflitos e a criatividades; a maioria delas, em especial, foram feitas em uma comunidade da Zona Norte de Manaus, com seus moradores e artistas, a arte de fato encontrando rumos onde “não eram existentes” ― mas é justamente nesse local em que ela mais necessita estar, em completa harmonia com as pessoas, não por carência, mas pela excelência que essas pessoas têm, por sua determinação em querer construir um mundo de tantas possibilidades imagináveis, mesmo em meio ao caos, à falta de acesso e incentivo, e nunca por falta de coragem e desejo de melhoria. 

Grande parte das obras foram imaginadas por mim, Dayrel Teixeira, mas de maneira alguma teriam acontecido sem apoio de Rivotrist, Jovem Rain e Adriano Teixeira, brilhantes artistas do Norte, assim como elas não teriam tantos significados se não fosse a imaginação das crianças e das pessoas que elas atravessaram e que deram a elas um puro significado, verdadeiros operários que se dedicam, das mais diversas formas, a construir, espalhar e inspirar a cultura e a arte no Brasil.

A Margem do Rio, série fotográfica de Beto Oliveira.

Falar de Amazônia é complexo; é necessário falar antes das amazônias plurais, dos espaços em que, de maneira orgânica, nascem e morrem inúmeros modos de levar a vida — vida que sustenta a floresta, vida que torna elementos quase um só: o ribeirinho e o rio, a castanheira e as mulheres, a maniva e o agricultor, o açaí e a língua roxa do caboclo, o peixe no forno a lenha e o quilombola, a palha e a indígena.

Através da fotografia se fala e se leva as amazônias para todos os cantos do mundo. O curso na bacia amazônica se desloca através das nuvens de chuva, e através das fotos deságua no imaginário coletivo. 

É nesse contexto que se convida ao passeio nas marginalidades amazônicas, onde tudo acontece, tudo está exposto, mas não é visto em sua totalidade.

A região amazônica sempre foi o lugar do mistério, da cobiça, do sagrado e dos delírios que prometiam riquezas. Diversos viajantes e naturalistas no século XIX aproveitaram as expedições da época para criar registros do cotidiano de diversas comunidades que ali moravam. Essas memórias influenciam o pensamento contemporâneo sobre os territórios da floresta e as comunidades tradicionais e seus modos de vida. Mas a grande questão que se apresenta é: como é possível enxergar a Amazônia através de dentro? A inversão desse tipo de observação antropológica pode encontrar possibilidade quando a câmera está nas mãos de quem nasceu em terras amazônicas e transita pelos caminhos de rio.

O projeto Margem do Rio nasce depois de uma viagem que faço de Manaus, capital do Amazonas, até o quilombo-aldeia Passagem, no estado do Pará. A travessia toda é feita de barco, descendo o rio Amazonas e passando por diversas margens. O “vazio demográfico” perde seu sentido após a visão dos povoados das margens — o poeta amazonense Thiago de Mello falava em seus textos sobre o “povo das águas” e sua importância para a vida acontecer.

Da capital amazonense ao quilombo-aldeia é necessário perceber “os segredos da mata onde acontecem o real progresso”, parafraseando a banda nortista Batuc Banzeiro, pois os atores principais do cotidiano fazem a floresta funcionar. Sem nenhum tipo de aprendizado em bancos de escolas e em grandes instituições, as populações das margens conseguem organizar suas plantações, suas casas, suas vontades e seus desejos se baseando nas tradições geracionais.

Como é possível a vida agir em torno da água? Que o tempo seja tão preciso que se espera a chuva passar para agir, que se espera a água descer para pescar, que se espera a água parar de ser “assanhada” para lavar roupas? O ponto análogo das respostas para essa questão está nos registros das mãos do povo amazônida: mãos preciosas que sustentam a floresta em pé e que, através de seus modos de vida, reergue possibilidades de um futuro ancestral. A proposta do registro cotidiano das comunidades é justamente trazer à tona os hábitos que resistem há gerações na floresta e as trajetórias do rio que passa por elas, onde a produção de farinha de mandioca e o assado do peixe para o almoço encontram, nas mãos pretas e indígenas, a continuação de sua existência. São contradições que explicam mais do que a falsa simetria nesses territórios ― contradição essa que acrescenta à narrativa poética da Amazônia uma nova forma de encarar a maior floresta equatorial do mundo. 

A poesia e a contradição são os guias da margem do rio. Tudo que se registrou por uma ótica eurocêntrica hoje perde o sentido, ao se deparar com produções de imagens realizadas por quem nasceu na região e cresceu olhando o rio, se alimentando dele e nele se banhando. O convite é se render ao encanto dos registros, navegar, esperar e ir para o interior.

Índio da Cuíca é um artista experiente. Nascido no Morro do Borel, na zona norte do Rio de Janeiro, filho do fundador da escola de samba Unidos da Tijuca, Índio inicia sua jornada artística muito cedo, e mostra, através da arte, que descende de uma nobre linhagem. Um mago do som, com a incrível habilidade de fazer a cuíca protagonizar como um instrumento solista. Seu primeiro disco com composições próprias foi gravado aos 70 anos de idade.

Seu álbum Malandro 5 estrelas (2021) é sensacional, no sentido de confluir rios: vários malandros num só, se despindo, tirando o chapéu, o sapato, o paletó, até terminar com um funk — calçado e descalço, de terno ou sem camisa. Tudo isso é de uma brasilidade absurda; é uma narrativa atemporal e ancestral. As paisagens sonoras e orais que Índio da Cuíca evoca são fruto de uma imaginação radical.

Sara ― Vamos começar a conversa do zero. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco da sua infância, porque sei que ela vai se cruzar com o seu trabalho.

Índio da Cuíca ― Minha infância foi bem engraçada. Meu pai já tocava cuíca e cavaco, era compositor, cantava muito. Ele era seresteiro. Aprendi muita coisa com ele, esse meu talento vem mais dele. Eu tinha seis anos quando ganhei um pandeirinho de plástico. Com 12 anos, saí na escola de samba como pandeirista. Saí na Império da Tijuca, que ganhou troféu. Naquela época não era Estandarte de Ouro, era troféu. E a escola não me deu o troféu. Aí eu disse pra mim mesmo: “nunca mais vou sair em escola de samba”. E até hoje tenho fobia de escola de samba. 

Viu que ali não era o seu lugar?

É, não era o meu lugar, não dava pra mim. Depois me tornei um profissional, e o Sambão e Sinhá foi a primeira casa em que eu trabalhei, em Copacabana, ali na Constante Ramos. Naquela época não falava banda, não, era conjunto, um quinteto. 

E, nesses grupos, qual repertório vocês estavam tocando?

Naquela época não tinha contrabaixo nem nada, era pandeiro, tamborim, surdo e reco-reco.

E vocês cantando?

E nós cantando. Depois entrava com pandeiro, fazia aquele malabarismo, que hoje não faço mais, e terminava ali. Aí acabou o conjunto e eu parti pra São Paulo, novo ainda, na época com 16 anos.

Isso já era o Boca de Ouro?

Não, ainda não. Depois que acabou o conjunto fui pro Brasil Ritmo. Eles estavam no auge, e eu jamais esperaria um convite deles, mas o Neném me viu tocando pandeiro e disse: “Estou precisando lá de um reco-reco”. E eu falei: “Eu vou”. Tempos depois, quando o Neném foi trabalhar com o Jorge Ben, faltou uma cuíca. “Índio, você toca cuíca?”. Falei: “Toco”. Naquela época, eu tocava como amador, aquele toque tradicional, então comecei a estudar cuíca seriamente. Me tranquei no quarto, comecei a estudar pra me tornar uma pessoa com destaque, inédita. O primeiro solo foi o Calango na cuíca, que foi a minha primeira composição. Mas como tinha que solar músicas conhecidas, músicas clássicas, estudei Samba de uma nota só, Garota de Ipanema, Brasileirinho, aí comecei a aparecer e a ficar famoso na noite. Quando fui pra Globo, encontrei o Zeca da Cuíca, que era o destaque do momento com o Originais do Samba. Cheguei lá sem saber o que eu ia fazer, gostaram de mim, do meu trabalho, e comecei a fazer Brasil Pandeiro, Globo de Ouro e Brasil Especial. 

Isso é quando, que ano?

Foi nos anos 70, entre 74 e 76. 

Seu Índio, o seu nome é nome artístico, porque olhando para você, você é um cruzo entre o indígena brasileiro e o africano. Sem dúvida isso está em você e na arte que você expressa, até porque “Índio da Cuíca”… Eu fui até ver qual era a origem da cuíca. Tem cuíca em tupi. Eu fiquei curiosa com seu nome.

É o nome que eu… Eu não gosto de falar meu nome.

Não precisa falar.

Então, eu tenho mais afinidade com Índio. É porque eu usava o cabelo grandão, tinha o cabelo até as costas. Depois, quando entrei no mundo artístico, botei o nome artístico. Essa época dos anos 70 foi muito importante pra mim, porque viajei muito. Viajava muito com o Ivon Curi e o Franco Fontana. O Fontana era italiano, chegava no Brasil, selecionava uns 46 artistas e levava para fazer turnê na Europa e na América.

Conheceu a dona Shirley, sua esposa, nessa época?

Conheci ela quando tinha 16 anos, porque morávamos perto e via ela indo para o colégio. Mas fomos ficar juntos mesmo quando eu já tinha 32 anos. Depois de uma viagem em que fiquei na Suíça por uns três anos e meio, voltei e resolvemos montar uma dupla. Viajamos para a Alemanha e para Miami.

Cantando?

Cantando e dançando. Ela sambava na Brasileirinho. E sempre tive um sonho de gravar isso. Tempos depois, o produtor Paulinho Bicolor me viu na Orquestra de Solistas do Rio de Janeiro e me ajudou a gravar. Foi aí que completei o Calango, minha primeira composição, e fiz A cuíca chora e A cuíca malandra para o meu primeiro disco. Tudo pra esse disco.

Então foi o desejo do disco que fez você colocar sua estilização e enquadrar a cuíca como esse instrumento solista, protagonista?

Isso. Mas no Brasil só percussão não chega a lugar nenhum. Se você não cantar… Você pode ser muito conhecido, ser o maior solista, mas sem voz é muito difícil de circular.

A sonoridades que o senhor tira da cuíca parece uma linguagem única, é como se você tivesse criado um idioma, uma paisagem sonora.

Eu levei quatro anos pra poder chegar nessa linguagem. É um processo que precisa ir se desenvolvendo nota por nota. 

Eu vi uma live em que você fazia toda a demonstração da evolução da cuíca, dos diversos materiais utilizados na construção do instrumento

Você sabia que as cuícas antigamente não tinham afinação? Eram umas cuícas de barril com umas tachinhas pregadas no lado. Você cortava o couro do sapato, redondo, costurava, fazia dois furos, pegava o gomo do bambu, furava ele e prendia com arame fininho. Naquela época, os cuiqueiros saíam com jornal no bolso; quando estava perto do desfile, eles acendiam o jornal e esquentavam o couro. Por isso que a cuíca roncava naquela época, no tempo do Boca de Ouro e do Ministrinho da Cuíca. Por isso que eu tive que correr muito atrás pra fazer uma coisa diferente, pra ser acreditado na noite, fazendo um pouco diferente deles

Nesses conjuntos já era possível encontrar um naipe de cuíca ou isso é uma coisa mais da escola de samba? 

Já tinha umas cuícas trabalhando em conjunto, como o Zeca da Cuíca, tinha o Germano, que trabalhava com negócio de show, tinha o Boca de Ouro… Na frente deles eu sou novo. Tinha o Neném da Cuíca, que apareceu muito. Como eles trabalhavam com artistas de nome, então eles criaram nome. Eu já venho do sufoco, lá do cabaré, da casa de show, e tinha que sambar, me virar mesmo, fazer coreografia, dançar gafieira. 

Recentemente, fui ouvir seu disco Malandro 5 estrelas e fiquei maravilhada com toda a gama de sons, de te ouvir cantar, tocar. O disco vai passeando por diversos ritmos, aí finaliza num funk.

É, eu fiz a cuíca funk. E muito disso porque o palco é um lugar mágico. No palco você vive dez anos, você sai dali realizado, você flutua em paz. Então você tem aquela luz de Deus e os seus colegas, aqueles irmãos todos. Porque ninguém faz nada sozinho. Você fez a música, mas tem ajuda, as composições, as inspirações. A música que eu faço vem assim, do nada. Mas se você falar pra mim “vamos compor”, acabou. Igual uma música que eu fiz, essa daqui é nova:

[Índio canta] “Se um dia o mundo acordar, será o paraíso / se um dia o mundo acordar, será o paraíso / sem maldade, sem traição / sem racismo, sem preconceito / sem maldade, sem traição / sem racismo, sem preconceito / Deus criou todas as cores / se é preto, se é branco, todos nós somos iguais / se é preto, se é branco, todos nós somos iguais / iguais, iguais”. 

Essa nota central que você tem, que aí é Sol, vai depender do tamanho da cuíca ou tem uma média, tem um lugar, é um som que você curte?

Não. Se for uma cuíca maior eu já crio uma escala um pouco mais… Aí já é diferente. Fui aprendendo, fui fazendo essa escala, depois saiu o Samba de uma nota só. Esse foi o primeiro solo.

Aí você foi criando o repertório da cuíca.

Até chegar à minha composição da cuíca.

A cuíca tem uma coisa meio livre, a expressão dela junto com outros instrumentos, parece que ela está livre pra entrar em qualquer espacinho que der, ela não tem uma coisa, uma estrutura assim fechada.

Você fica esperando a hora, é aqui, aí você entra. Essa é A cuíca chora, composição minha também:

[Índio canta]
“A cuíca chora, sambando miúdo lá vou / a cuíca chora, sambando miúdo lá vou eu / lá vou eu, lá vou eu / lá vou eu, lá vou eu”. 

Isso é muito forte, muito potente na sua expressão artística. Porque você é um artista completo. Você dança, canta, compõe, acompanha.

E eu gosto de fazer, você vê que é espontâneo, não tem nada forçado.

É da sua linhagem. E falando em estilo e ginga, como é a sua relação com a capoeira?

Ela me acompanha desde cedo. A capoeira trabalha o seu corpo, os movimentos, a dança, a defesa. A capoeira é a nossa origem na África, na Bahia, é a nossa origem. Não sou um capoeirista, mas gosto muito dela. No berimbau fiz a primeira música. Aprendi um pouquinho, mas não cheguei a ser um capoeira. Dá um pouquinho de trabalho, mas é assim mesmo, afinação de berimbau é assim mesmo.

[Índio pega um berimbau e canta] “Berimbau tocou, meu corpo arrepiou / foi no Largo da Lapa, num jogo de malandro / tem capoeira / eu vou pra jogar”.

Como se deu a formação do Malandro 5 estrelas? 

Acredita que nem fui eu que deu o nome Malandro 5 estrelas? Foi a produção que inventou, porque o samba fala daquele negócio todo da Lapa. “Bota Malandro 5 estrelas, vocês já eram”. Falei “Tá bom”. Mas é isso. Na música, você nunca sabe nada, você está sempre descobrindo. O Brasil tem tanto talento, tem cada instrumento de percussão que você nunca ouviu falar. O Luizinho do Jêje esses dias me mostrou um instrumento que eu nunca tinha visto. “Que é isso?”, perguntei. “Isso aqui é espada de Ogum”. Estou sempre aprendendo e tem muita coisa que não sei e não vi, isso aos 72 anos. 

#45Imaginação RadicalArteArtes VisuaisCulturaSociedade

Dois e dois são dois: Andressa Núbia e Jean Azuos

Foto de Joyce Piñeiro | Reprodução
Foto de acervo

Andressa Núbia é diretora criativa imersiva, com interesse na interação entre arte e tecnologia na concepção de novas pluralidades de mundos. Formada em audiovisual multiplataforma, fundou a AILUROS, estúdio de criação e produção de conteúdo imersivo. Curadora de novas tecnologias na GatoMídia, uma rede de aprendizado para jovens de espaços populares, participou de exposições como artista visual em países como Estados Unidos, África do Sul, Quênia e Gana. Colaborou em diversos projetos tecnológicos de realidade virtual, entre eles “Na Pele”, exibido no Festival de Documentário de Amsterdã, e “Descolonize o olhar”, exibido na Assembleia Geral da ONU, em Nova York. 

Jean Carlos Azuos está Curador na Escola Livre de Artes ELÃ (Galpão Bela Maré/RJ) e Assistente de Curadoria no Museu de Arte do Rio de Janeiro – MAR. Doutorando no Programa de Pós-graduação em literatura, cultura e contemporaneidade da PUC-Rio, desenvolve pesquisas e práticas em curadoria e educação na perspectiva contracolonial, refletindo sobre as presenças negras, indígenas e lgbt+ na composição política de outras cenas na arte contemporânea.

Andressa — Venho pensando muito na junção da arte com a tecnologia pra criar novas pluralidades de mundo. Como diretora criativa inversiva, eu tenho um rolê bem multidisciplinar, então começo na fotografia, mas também sou do audiovisual, também trabalho com tecnologias inversivas, e hoje sou até DJ, que é o que eu mais venho fazendo. Também estou nessa pira de criar metaversos, filmes e realidade virtual, e está sendo meio assim. Sabe como é, né? Sou cria do Complexo do Caju, sou cria de cria, vizinho da Maré. 

Jean — Sou cria do Complexo da Maré desde que nasci! Tô aqui desde sempre.

A — A galera sempre acha que eu moro na Maré, mas não. Eu moro no Caju, que é ali do lado. E eu comecei a estudar fotografia também dentro da Nova Holanda, e ali foi um start pra começar a questionar esse lugar da imagem e da produção imagética dos corpos pretos e favelados. Foi um processo muito foda pra mim, porque foi no lugar onde eu me reconheço enquanto uma mulher preta, enquanto uma mulher favelada. Porque a gente tem isso, né, “eu não moro no Caju, moro em São Cristóvão”, “eu não moro na Maré, moro em Bonsucesso”, então esse lugar de reafirmação veio muito a partir da imagem, da fotografia, e eu comecei a questionar um pouco essa produção. Mas a fotografia também foi um lugar muito amplo de poder criar, de eu poder fazer o que eu imaginava, poder criar essas composições. O meu trabalho vem muito de uma frase da Solange [Knowles], de uma música em que ela fala: “eu vi coisas que eu imaginei”. A música inteira é assim: “eu vi coisas que eu imaginei”. Eu sou uma pessoa que tem sonhos muito lúcidos, tanto é que minha terapeuta uma vez falou que eu estava tendo viagens astrais, que minha alma estava sendo desligada do meu corpo e viajando enquanto eu dormia. Talvez não dê pra explicar exatamente o que acontece aí, mas acho que acredito um pouquinho nisso. Sabe por quê? Sempre tive uma imaginação muito fértil, então, a partir desse lugar das coisas que eu imaginava, eu sempre quis colocar isso em imagem, quis colocar isso através da fotografia, mas pra além do que estava disponível visualmente pra gente, no sentido de, a partir da fotografia, pensar nessas histórias que estão no invisível, pensar essas histórias que não estão nesse campo de… Como eu posso dizer? Histórias que não estão nesse campo material e físico, nesse campo que está disponível, mas histórias que estão no invisível ou que existem a partir de outros lugares, seja a partir das contações de histórias, a partir da fala, a partir do texto. 

J — Eu acho que a imaginação que me faz encontrar você, Andressa, em algum lugar como artista, ou conhecer o seu trabalho, conhecer as profundidade das linguagens, a imaginação que é que é capaz de traduzir esse encontro, traduzir em exposição, traduzir em narrativa, em escrita. Acredito que o poder de imaginar, hoje, tem estratégias pra adiar um fim do mundo, como diz o Ailton Krenak. É aquilo que eu ainda não vivi e preciso viver antes que esse mundo imploda, antes que ele acabe. Eu preciso criar estratégias pra adiar esse fim.

A — Isso vai muito de encontro com a minha realidade, Jean. Quando eu era criança, minha avó morava embaixo e eu morava em cima. E eu adorava, no fim da tarde, descer as escadas e ficar sentada no sofá enquanto minha avó contava as histórias. Tem um autor que eu gosto muito, o Vilém Flusser, que tem um livro em que ele conta sobre a filosofia da caixa preta, que fala que as imagens vêm a partir dos textos, que a formação do sentido vem muito a partir do texto. Então, acredito que a contação de história é ter esse lugar de escuta aberta, tanto na parte de fotografar quanto na parte de gravar. Esse é o lugar em que você olha, retrata outra pessoa, mas, na verdade, eu sempre quis ouvir muito mais do que ver. Muito mais do que utilizar o sentido da visão, utilizar o sentido de escuta pra poder criar essas histórias que não estão disponíveis. Adiar o fim ao criar novos pontos de partida. A partir da fotografia, eu enxerguei uma possibilidade de criar, de mostrar esse imaginário, essas coisas que eu penso, mas também de trazer essas outras histórias. De, a partir da fotografia, criar esses novos sentidos de imaginação. Tipo, o que eu penso na fotografia não necessariamente está disponível, mas, a partir do momento em que a pessoa vê uma fotografia minha, aquilo ali começa a fazer parte do imaginário dela. Então eu acho que gosto de mexer um pouco com o que não necessariamente está ali disponível, mas que, depois que a pessoa vê, daquele momento em diante, vai fazer parte da memória, do subconsciente, do imaginário dela.

J — Acabei de fazer 30 anos, agora em junho, e todos esses anos de Complexo da Maré, pra mim, têm sido também poder imaginar a vida de um jovem negro, bicha, de favela, vivo e pensando e fazendo arte. A minha própria vida já é um estado de sempre anunciar um processo de imaginação daquilo que eu me proponho a fazer no mundo. Desde 2012, escolho e vou buscar caminhos possíveis pra fazer artes visuais. Comecei minha formação como artista e depois comecei um processo de pesquisa ainda em investigações em poéticas artísticas. Naquele momento, enquanto artista, foi fundamental pra entender o poder de uma imaginação e também a liberdade que ela propõe pros nossos corpos favelados, que, de alguma forma, estão sempre à margem por um processo violento, sempre dentro dum processo de estigma. Então, como eu era um favelado, pensar na poética de um trabalho artístico que não falava sobre essas coisas, que queria falar sobre outras paisagens, outras poéticas, tocar no lugar de memória, de subjetividade, isso já era uma grande crise. Imagina só: como assim, um artista favelado não estar falando sobre favela? Não estar falando sobre violência? Não estar falando sobre negritude? 

A — Me identifico muito com isso, com esse lugar de não querer documentar a violência, de sair desse lugar. Por que a gente, por que corpos pretos, por que corpos marginalizados têm que sempre estar pautando esse lugar da dor, esse lugar do sofrer? Eu acho que sempre senti falta dessa necessidade de ver rostos sorrindo, de ver um pouco de alegria e de trazer um pouco mais desse mito, dessa mitologia. 

J — E eu percebi que, dentro daquela minúcia, dentro das minhas inquietações, foi fundamental poder falar daquilo que mais me interessava. Porque se, por um lado, imaginar ser artista já era um caminho tão distante, estar me tornando e me fazendo uma pessoa artista, pesquisadora, tinha uma força vital, uma força política que me abria uma possibilidade, também, de falar sobre qualquer outro assunto. Então, pra mim, imaginação está no lugar de uma possibilidade de inventar um agora ou um porvir, aquilo que ainda não está ou que só existe nessa imaginação. Eu acho que ela também nos dá ferramentas, estratégias pra, de alguma maneira, projetar no mundo aquilo que a gente deseja. Imaginação caminha com desejo, um desejo que me faz hoje chegar na curadoria, nos estudos curatoriais, estar curador assistente no Museu de Arte do Rio, aqui no Rio de Janeiro. Acho que tudo isso foi possível a partir da imaginação, mas uma imaginação que foi acompanhada de muitas estratégias, de muito trabalho, de muita pesquisa. E a imaginação me traz essas possibilidades de projetar os desejos, de configurar mecanismos e um cenário artístico que seja mais poroso, que seja mais negro, que seja mais político, que seja equânime no sentido das presenças, que não seja binário, que seja mais plural, que seja mais acolhedor, que seja mais afetivo. Dentro do discurso curatorial em que me vejo e que me atravessa, posso imaginar exposições, imaginar assuntos, imaginar temas que antes me eram historicamente invisibilizados, interrompidos, apagados. A imaginação me permite criar essas conexões e configurar nesse tempo/espaço outras leituras sobre arte, sobre cultura, sobre a vida. E acho que é por isso que hoje também estou vivo, é por isso que eu continuo animado pra fazer muita coisa, tudo por conta da imaginação, que me deixa um grande lastro de possibilidades e que também me dá horizonte e chão pra seguir caminhando.

A — Nesse sentido, a imaginação é um grande quebra-cabeça do qual a gente pode ir pegando sínteses e ir construindo a nossa cena final, né? Eu gosto muito de mixar possibilidades de histórias. Tanto é que tenho alguns trabalhos que vão nessa direção, porque eu gosto de trabalhar dentro desses quebra-cabeças, de juntar essas peças, de pensar essas composições pra dar um sentido geral pra coisas que parecem aleatórias e não conectadas. Nada do que a gente faz é de forma mega conceitual, proposital. O que a gente faz é colar uma peça na outra. E eu gosto muito também de imagens ritualísticas, como a Maré, o Caju. Essas imagens têm muita energia, elas pulsam demais, elas são de um movimento full time. Acho que a favela tem isso, uma energia particular que pulsa no próprio ritmo. Então, acho que parar pra poder observar ou poder sentir, poder desacelerar o tempo pra criar essas histórias, fazer essas colagens, pra mim foi muito importante. E aí tem uma fotografia que eu gosto muito, que é a Ialodê, de mulheres criando o mundo, eu gosto de como… Eu sou bem sagitariana, tá? Eu dou uma volta no mundo pra poder explicar as coisas. 

J — Acho ótimo, vai fundo.

A — Mas eu gosto muito dessa imagem, porque, há um tempo, uma amiga me pediu pra tirar uma foto dela grávida, e aí a gente passou num cenário, a gente não fez nada proposital, a gente só estava ali querendo fotografar. E quando eu pude pegar a câmera, olhar através daquela lente e ver o que realmente estava e não estava ali, e como aquilo ali me fazia sentir, foi muito importante pra mim. Era uma expressão conjunta, minha, da minha amiga e daquele espaço. E ela odeia contar a história de Oxum, dos mitos africanos, mas eu gosto muito de fazer essa interseção entre as histórias, entre as mitologias que estão aqui. Acho que elas cada vez mais vão se reproduzindo no nosso dia a dia — e eu moro no Caju, que é uma zona portuária do Rio de Janeiro, onde a gente tem o maior porto escravagista do mundo. A maior chegada de pessoas negras fora de África veio pelo Rio de Janeiro. Mas voltando: ela estava grávida, e essa minha amiga odeia contar a história de como as mulheres de Oxum foram proibidas de participar da reunião de como seria a criação do mundo. Mas tem uma hora que Oxum chega e fala: “Mas como assim, eu não estou participando dessa reunião? Eu sou a deusa da fertilidade, da vida”. E aí, quando a gente coloca em cena no fundo uma favela e no centro duas mulheres, duas mulheres pretas, jovens, em lugar de acolhimento e de geração de vida, a gente começa a pensar nas sínteses do que isso quer dizer. 

J — Doido como as mitologias ainda seguem acontecendo e até nos guiando. A nossa vida é a própria munição de proteção, no sentido de como seguir. Olhar pra nossa história é também revirar gavetas, revirar os arquivos e poder reescrever isso de alguma maneira. Fico aqui com esse sentimento de que um dos caminhos e uma das estratégias é seguir podendo imaginar. Não sei, acho que fiquei agora pensando um pouco sobre essas coisas… É muito interessante, porque a gente, ao mesmo tempo que fala, está imaginando também o que falar. Mas eu acho que é olhar pro agora e também olhar pro passado, pensar o futuro, dialogar com esses tempos e poder, enfim, construir imaginações férteis. Acho que é isso.

A — A gente vê como a favela também tem esse lugar muito rico da contação de histórias. Muito rico na questão da criatividade, da simbologia, da invenção. Acho isso interessante. Se eu ando na Nova Holanda, sou afetada por mil coisas, por mil sons, por mil imagens. Como conseguir transcrever isso nessas imagens? É um pouco do que eu penso, sair desse lugar normal e fazer essas sínteses. Essas composições, essas camadas de significados, trazem força pra gente contar sobre a nossa história hoje.

J — Eu sou muito fã de todas as pessoas pretas que lidam com tecnologia, e acho que você é uma delas. Pessoas pretas que lidam bem com essas costuras entre passado e futuro, quando se recorre à ancestralidade pra lidar com esses assuntos, com esses temas. Fico pensando que é sempre muito bonita essa possibilidade da gente criar uma realidade virtual ou um multiverso. É onde as nossas vidas são possíveis, onde as nossas vidas são as protagonistas. E também não queria só romantizar esse campo e nem só trazer um aspecto tecnológico ou de uma experiência de algo que possa ser uma efeméride ou algo que possa ser efêmero, mas dizer que, quando a gente olha pro nosso passado e, de alguma forma, propõe revisões pra ele, a gente está imaginando. Quando a gente pensa nas políticas de acessos, numa discussão ampliada de uma disputa que também é política pra nossa geração, mas que ao mesmo tempo repara numa geração que vem antes, numa luta que sedimentou muito chão pra que a gente pisasse mais tranquilo hoje, então eu também sou imaginação de uma outra geração, que veio antes de mim, o que quer dizer que meu corpo também foi imaginado antes. No fim, eu acho que sou também uma resposta. Estou até um pouco emocionado, porque eu acho que meu corpo também responde a uma imaginação que foi feita anteriormente. E eu acho que essa palavra é tão poderosa porque ela nos dá um direito mesmo de pensar e propor ao mundo qualquer coisa. E, de alguma maneira, não só eu, mas você também. Mulheres pretas sonharam com isso, com mulheres pretas na tecnologia fazendo arte, articulando imagem, articulando esse pensamento racial tão generoso, tão sensível. 

A — Com certeza. Quantas mulheres pretas não imaginaram essa mulher de agora?

J — Muitas, e ainda bem que fizeram assim, porque o que eu trago pra mim eu também estou aqui lidando com você e também com um coletivo que é muito maior do que a gente. Somos uma multidão. Imaginar tem a sua subjetividade, tem as suas particularidades, mas eu também imagino a partir de uma multidão. E eu acho que a gente precisa ter essa consciência, e eu acho que a gente está vivendo isso: esta é a expectativa daqueles que já foram também. O nosso corpo tem também um compromisso, um compromisso que é histórico, que é social, que é territorial, que tem essas implicações todas, políticas, estéticas. Eu acho que imaginar também é imaginar com todas essas camadas, que só acrescentam e orientam um pouco a nossa imaginação. Uma imaginação que possa ser muito respeitosa e generosa também com a nossa história e com aquilo que a gente quer projetar no futuro. Fico pensando sobre isso, porque lido com os processos de curadoria, de conhecer pessoas artistas, e a curadoria é um campo que, de alguma maneira, me coloca frente a frente com a imaginação de outras pessoas, então também é um compromisso maior, somado, é um compromisso que está misturado. E eu acho que qualquer processo de curadoria, seja de uma exposição, seja no cinema, seja no teatro, ele precisa estar muito sensível a isso, sensível a ser uma pessoa receptora de todas aquelas imaginações, a dialogar com todos esses universos, com todos esses espelhamentos. Com essas ressonâncias no mundo. Acho que, quando imagino, imagino por mim, imagino aqui nesta dupla e também imagino com um coletivo que é muito maior, uma multidão. Eu acredito nessa força, que ela tem uma intencionalidade, que de maneira alguma é só estética, mas política, humana.

A — Até com isso em mente, eu queria citar um outro trabalho meu, que se chama Emir, um sopro de vida. Durante a pandemia, eu estava me sentindo muito sufocada. Acho que todos nós estávamos um pouco assim, mas, pra além da crise toda, aconteceu o caso do George Floyd, que falava “não consigo respirar, não consigo respirar”. Isso mexeu profundamente comigo. Não tem como não atravessar a gente: um jovem preto tendo a vida interrompida, clamando ali por um pouco de ar. Eu estava cansada, cansada, cansada de ouvir, de ver toda hora a mesma coisa no jornal, na TV, no celular: morte, morte, morte. Eu falei: “Não, cara, eu preciso reverter essa lógica”. E aí, como eu falei dessas imagens ritualísticas, eu chamei uns amigos e a gente foi pra uma ocupação, o lugar mais pobre, vamos dizer assim, da minha favela, um lugar que se chama Vila dos Sonhos. E nessa Vila dos Sonhos tinha uma árvore, e metade dela estava cortada. Seu tronco e suas raízes permaneciam no chão, enquanto suas folhas entravam por dentro da casa, já um pouco longe do que servia vida a elas. Então, a gente entrou ali, eu e mais dois amigos, e a gente botou uma música e começou a dançar. E aí, nessa dança, nesse lugar ritualístico cheio de folhas mortas, a gente fez um filme. Esse é um filme em VR em que a gente tem essa entidade, esse corpo, que pode ser representado pela gente ou pode ser o George Floyd, tendo a vida. O Emir do filme é o sopro da vida, é a alma do ente, é a coisa mais poderosa que se tem. Então a gente faz o processo da vida retornando ao corpo. Eu acho isso tudo muito simbólico. E pensando esse atravessamento, pensando essa ancestralidade, pensando nessas memórias, ali era o lugar onde minha avó trabalhava e onde eu passava quando criança. Antes, eu passava ali com a minha avó, minha falecida avó, e hoje lá há outro contexto, ali não é mais um hospital, mas sim uma ocupação de pessoas que não têm lugar pra morar. Como eu posso reverter e criar vida, como eu posso criar outras estratégias de sobrevivência que não nos sufoque, mas que pegue as folhas do chão e nos traga esse ar de frescor? Quando eu penso o afrofuturismo, eu fico pensando, tipo, em sair um pouco dessa distopia atual que a gente vive e ir pra um lugar onde há possibilidades reais, há possibilidade de viver e viver bem.

J — Quando você fala disso, eu lembro dum trabalho de uma artista chamada Ventura Profana: ela com um roupão dentro de uma igreja católica meio barroca, e no roupão dela está escrito “Ladra que rouba ladrão”. A gente já foi tão saqueado historicamente, tão roubado, que eu acho que a imaginação é o nosso maior tesouro desse tempo, porque é o que nos possibilita, de alguma forma, pegar de volta tudo que nos foi tirado. A imaginação que é essa possibilidade, a possibilidade de um artista contemporâneo falar de abstração, de poder ter uma obra que é abstrata, de um artista e pessoas artistas pretas falando de tecnologia, de afrofuturismo, pessoas artistas negras fazendo o que quiserem fazer, escreverem sobre o que quiserem escrever. Uma vez eu estava ouvindo a Ana Paula Lisboa, que é uma escritora, e ela estava escrevendo nesse momento pro Segundo Caderno, do Globo, algo que lidava exatamente com isso, essa possibilidade de ser aquilo que a gente quer ser, de inventar um mundo que nos caiba e em que caiba os nossos e as nossas, e que seja também um futuro bonito, e não um futuro tão depois, mas um futuro que pode ser amanhã, uma cena que pode estar sendo pensada e projetada pro amanhã. Eu fico por aqui, e registro isso muito a partir também dos trabalhos que vão me contaminando nesse percurso. Há certa radicalidade nessas imaginações.

A — O imaginar é fazer, é ação. No termo talvez exista uma ideia de passividade, de algo que não sai do teórico, como se, sei lá, a coisa toda não passasse de dois braços cruzados. Mas essa não é a real. Como você falou: imaginar é também propor, desafiar, revolucionar, lutar. Tudo isso junto. 

J — Fiquei pensando nessa palavra agora, “radical”. E é interessante porque, ao mesmo tempo que é contraste, ela também nos dá uma sensação de vigor pra imaginar. Não tem os esportes radicais? É como se poder imaginar também fosse essa grande aventura. Eu me sinto muito convidado pra essa aventura chamada imaginação. E aí fiquei lembrando de uma outra palavra, “delírio”. Eu tenho usado essa palavra em alguns momentos, em textos que tenho escrito, muito apoiado num trabalho de Wallace Ferreira e Davi Pontes, em que eles falam sobre “delirar o racial”, que nada mais é do que pensar a partir desse corpo, da quebra de sequencialidade, de outras coreografias. E eles estão pensando ali também junto com Denise Ferreira da Silva, que é nossa filósofa e pensadora, que vai pensar sobre isso, sobre um processo de pensamento que não é sequencial. E ela me leva pra Leda Maria Martins, que vai trazer uma compreensão espiralar disso, do tempo, das coisas, das políticas, das ancestralidades, das afrografias. E, por fim, me vejo assim, bebendo de todas essas coisas. Eu estava muito pertinho dessas construções. Por exemplo: a exposição de efeito de cor, que se baseia no livro de Ana Maria Gonçalves. É uma exposição tomada de artistas pretos, e eu acho que isso já é um indício de uma cena da qual eu acredito. A própria Bienal de São Paulo desse ano, que vai falar sobre coreografias do impossível, imagina o que seria uma coreografia do impossível se não uma imaginação radical, uma imaginação complexa. O meu sonho é que essas imaginações se encontrem. Eu não sei dizer, não sei materializar, muito menos projetar isso hoje, mas que todas essas imaginações de pessoas da periferia, de pessoas pretas, de pessoas LGBTQIA+, de ribeirinhos, de povos originários, caiçaras, de todas as etnias que nos compõem hoje, que todas as imaginações se encontrem, e que se encontrem num lugar bom, num lugar proveitoso, num lugar de construção, num lugar de possibilidades, num lugar de assentamento. 

A — O encontro em si já como uma grande ação radical.

J — Uma coisa que eu quero que aconteça é algo que eu nem sei nomear ainda, mas que a imaginação clama, sugere essa suspensão, sugere esse encontro, sugere essa beleza. E eu acho que poder imaginar longe dos fetiches, longe das cooptações, das capturas, poder imaginar todo o encontro dessas pessoas, dessa força, esse é um lugar bom de construção de possibilidades. Poder dançar, coreografar, girar dentro de espaços como esse, de momentos como esse, de encontro. Acho que “encontro” talvez seja uma palavra possível, e depois dela ficar atento aos próximos passos de como isso se constrói, de como isso se materializa, de como isso também vaza pro mundo. 

A — Agora é minha vez de citar Krenak: a arte não se separa da vida, a vida é a arte. Então, acho que é sobre a gente poder viver e viver transmutando a partir desses saberes, desses conhecimentos, a partir do corpo, a partir da alma, a partir do espírito. E tudo bem, talvez até melhor não ter essa nomenclatura do que estamos imaginando. Isso é o fazer artístico, isso é o fazer da imaginação. Imaginar e criar são nomes que imediatamente remetem à vida. Nada é mais vivo do que o criar e o imaginar.

Imagens de acervo cedidas pelo 2050.

A favela do Santo Amaro, localizada no Rio de Janeiro, é amplamente conhecida, sobretudo pelas músicas, que se popularizaram através do movimento cultural do baile funk, e pelos projetos culturais conectados ao esporte. A maioria dos artistas da 2050 são frutos de workshops realizados na favela, o que os torna conscientes de como o acesso à tecnologia e à informação pode impactar positivamente não só suas vidas, mas também a vida das pessoas ao seu redor.

A 2050 surgiu da união de artistas independentes que são “crias”’ do Morro Santo Amaro e que decidiram unir suas melhores habilidades para formar a equipe. É um laboratório de tecnologia e inovação que resiste dentro da favela e que tem como objetivo desenvolver soluções criativas e tecnológicas para empresas e artistas, com expertise em realidade aumentada, realidade virtual, produção audiovisual, impressão 3D, inteligência artificial, metaverso e NFTs.

As escrevivências de cada um dos jovens que constroem a 2050 ajudam a entender por que devemos observar a potência das favelas. 

Gean Guilherme é uma figura essencial nesse caminho entre futuro e presente: é diretor criativo, coordenando as atividades da equipe e liderando o desenvolvimento de projetos criativos e inovadores. 

Velez é responsável pela impressão 3D e pela direção artística, utilizando sua expertise para transformar ideias em objetos concretos, além de utilizar a inteligência artificial como suporte para a criação de imagens. 

Ottis é artista e apaixonado por novas tecnologias. É responsável pelas aplicações de realidade estendida, criando experiências imersivas em metaverso, e também atua na parte administrativa da empresa. 

Clickbycria é produtor audiovisual e retrata o cotidiano das favelas através da arte e de histórias contadas em suas fotografias, valorizando a realidade e a riqueza cultural das comunidades. 

Rxbisco “RX” é um talentoso ilustrador digital que desempenha papel crucial na criação dos concept arts dos projetos. Reconhecido pela identidade única em suas obras, ele retrata de forma real a vida nas favelas do Rio de Janeiro.

Osvaldin é o produtor executivo responsável por fazer as conexões com as marcas, além de ser um especialista digital, fornecendo orientação técnica e estratégica à equipe sobre o universo da Web3. 

Renata Lopes é produtora cultural local e atua como assessora do Gean. Com ampla rede de contatos e conhecimento sobre o mercado cultural, ela desempenha papel fundamental na produção dos projetos da 2050.

GB é um articulador cultural e produtor executivo da 2050. É responsável pelo Whiscria, uma plataforma que impulsiona a música periférica. Sua atuação visa promover artistas periféricos e oferecer-lhes visibilidade.

Luan faz parte dos times de produção artística da 2050. Estuda moda e expande a marca em projetos relacionados ao assunto.

Mari Santos é produtora executiva, responsável por alinhar as demandas e articular os criadores. É quem provavelmente irá responder seus e-mails.

A partir dessas trajetórias, três perspectivas são percebidas como essenciais: o desenvolvimento de projetos personalizados, voltados para a área da tecnologia; a criação de um laboratório de arte e tecnologia, que desenvolve projetos próprios e experimentos artísticos com tecnologia; e a atuação em plataformas que se conectam com os produtos do laboratório.

O grupo se depara com diversos desafios, e tem proposto soluções para eles. O acesso a equipamentos é dificultado por conta dos valores elevados — desde os materiais de fotografia até os óculos de realidade virtual recém-lançados. É desafiador e necessário ampliarmos o acesso a quaisquer tipos de recursos tecnológicos. Do wi-fi ao computador. Do celular ao videogame. A palavra acesso é fundamental no desenvolvimento das novas tecnologias. Hoje em dia, temos mais acesso a conhecimento, e podemos saber um pouco mais sobre o que o mundo está respirando. É possível, assim, buscar acesso e educação de forma prática, independente, e construir possibilidades de futuro.

A afirmação de que a favela é o futuro é uma perspectiva que tem sido debatida em diversos contextos. A favela é frequentemente associada a questões como pobreza, falta de infraestrutura básica, violência e exclusão social. No entanto, alguns argumentos têm sido apresentados para defender a ideia de que a favela é e pode ser o futuro. Considerando aspectos como a inovação social nas favelas, as comunidades frequentemente se organizam de maneiras criativas para lidar com os desafios que enfrentam. A falta de serviços públicos adequados muitas vezes impulsiona a criação de soluções inovadoras para questões como água, energia, transporte e infraestrutura. Essas soluções podem se tornar exemplos de resiliência, adaptação e inventividade a serem aplicadas em outros contextos urbanos.

Apesar dos escassos investimentos do poder público, as favelas são centros de atividade econômica vibrante. Pequenos negócios, empreendimentos informais e economias criativas estão florescendo nas nossas comunidades. Além disso, as favelas abrigam uma força de trabalho jovem e dinâmica, com habilidades e talentos diversos. Investimentos em educação, capacitação e infraestrutura podem ajudar a canalizar esse potencial econômico e promover o desenvolvimento sustentável. É importante ressaltar ainda que a transformação das favelas em espaços mais inclusivos e com melhores condições de vida requer investimentos em políticas públicas efetivas, infraestrutura adequada, acesso a serviços básicos, segurança e ações de combate à desigualdade. A melhoria da qualidade de vida nas favelas é um desafio complexo, que envolve múltiplos atores e esforços coordenados. 

Para radicalizar e ampliar o pensamento sobre favela e tecnologia, precisamos fazer de fato. Temos muitas referências de projetos que são apenas números no final de um relatório. Estamos e somos o território; nossa formação vem de dentro, e estamos trabalhando por uma causa coletiva e grandiosa. Estamos fazendo, falando e criando tecnologias. Há empoderamento quando nos apropriamos de ferramentas tecnológicas para criarmos nosso próprio futuro. Realidade virtual, inteligência artificial, realidade aumentada e impressão 3D eram termos até então distantes, e os equipamentos, impossíveis de termos. Hoje, porém, é uma realidade estarmos realizando projetos de inovação, com tecnologia de ponta, que o mundo inteiro está pesquisando e estudando. 

A imaginação radical, para nós, é a capacidade de imaginar um mundo melhor, livre das desigualdades e injustiças do mundo atual. É uma forma poderosa de repensar e reinventar o mundo, permitindo que as pessoas visualizem e lutem por uma realidade que seja boa para nós, de favela. Que seja real, não virtual, e, principalmente, que seja aliada a tecnologias sociais que estejam sob nosso domínio.

Moranguinho num show na rua Flávia Farnese, na Nova Holanda

Era festa junina, e um homem no microfone anunciava repetidamente que às 23h começaria o show gay, a Noite das Estrelas. A rua estava lotada, estávamos mais pra trás da multidão. Perguntei à minha tia Dila o que era show gay, ao que ela me respondeu que se tratava de um show de “viado”, de “homem que gosta de homem”. Ela foi à loucura quando Erika Ravache subiu no palco. Na performance, ela se movia e dublava a música agitando a plateia, de idades, gêneros e raças distintas. Essas imagens tecidas pela presença do espetáculo, dos gestos estabelecidos na performance, abrem um novo universo testemunhado pelos meus olhos, escrevendo a Noite das Estrelas na minha pele, numa operacionalização limítrofe ao que Beatriz Nascimento, no filme Orí, se refere quando diz que “é preciso a imagem para poder recuperar a identidade. Tem que se tornar visível”.

 A Maré é um bairro da zona norte do Rio de Janeiro, composto por dezesseis favelas. Uma terra negra, boca em que se faz o mundo de uma constelação de milhões de vozes da Noite das Estrelas, e o universo dessas e de múltiplas encruzilhadas. É assim que ela permanece infinita, como fluxo do impossível, de vidas insujeitas.

Valquiria num show no Brizolão Samora Machel, na Nova Holanda

Quando a pandemia de covid-19 se tornou a coabitação dos dias, fui passar um tempo na casa da minha irmã. Lá, traçamos uma nova rota para escapar da terrível realidade daquele tempo. Passamos dias conversando sobre como a morte era um desenho arquitetado nas conspirações coloniais e contemporâneas para as corpas LGBTQIA+ negras faveladas. Em um país onde é latente o racismo e a LGBTQIA+fobia e as políticas públicas para a cultura ainda não são estruturadas, as rasuras das nossas existências nas pesquisas, nos censos, em escritos e documentos da memória de construção e formação da Maré são apenas soma e materialidade do pacto social que nos mata. As não audiências não são frutos do acaso: é o traço fundador da colonização, que persiste no contemporâneo, comprometida em nos desmaterializar. Fugimos em bonde, uma multidão que corria conosco como um arrastão, “(…) pois construir uma fuga não significa ser posto para correr. Pelo contrário, é fazer o real escapar, operar nele variações sem fim para contornar qualquer tentativa de captura”, como bem defende Dénètem Touam Bona. 

Essa ideia de escapar está constituída em nossas veias, pois a fuga é o que permite a projeção de novos quilombos, a semeadura de outros mundos. É assim que o projeto continua produzindo suas obras, que, consequentemente, vão agregando narrativas, composições e registros e alguns segredos que envolvem os processos que atravessam essa escrita. Foi assim, contando com colaboradores, que se criou o Entidade Maré, em 2020, projeto de pesquisa, comunicação e produção artística de narrativas, arquivos e memórias LGBTQIA+ da Maré. Lembro que, quando criamos o projeto, um dos consultores que colaboraram com sua estruturação, Rodrigo Reduzindo, nos disse: “Vocês precisam ser canais desta história, registrar que ela está viva. A covid tá levando os nossos mais velhos, não podemos nos tornar órfãos dessa memória”. A criação desse projeto é o que permitiu a estruturação, a expansão e  o desenvolvimento da pesquisa de dados, imagens informações e narrativas LGBTQIA+ da Maré.

O Entidade Maré produziu, com o material levantado na pesquisa, sete produções artísticas, sendo elas: o curta Entidade, de 2020; o Experimento 10 anos de Parada da Maré: uma declaração de amor ao LGBTQIA+ da Maré, de 2020, o filme performático Noite das Panteras, de 2021; o documentário Antes da Noite, de 2021; o álbum visual documental performático Noite das Estrelas, de 2021; o curta-metragem Meu Universo Corpa, de 2023; e atualmente estamos vivendo o impossível sonho da Ocupação Noite das Estrelas.

Carlota em show na quadra da Corações Unidos, localizada na favela no Morro do Timbau

Nesse mote da insistência, de não lidar com a realidade a partir de um aprisionamento, vozes, fotos e vídeos coletados são brechas para espiar e sonhar novas possibilidades artísticas, estéticas, arquitetônicas, metodológicas e estilísticas de se produzir. Os antigos shows da Noite das Estrelas estavam rasgados desse mote, à parte dessas específicas articulações da arte habitar o conjunto do cotidiano. Realidade e fazer artístico assentam a encruzilhada como episteme das articulações entre vozes e pensamentos para afirmar que a Noite das Estrelas está aqui, também como uma iluminação dessa imaginação radical, semelhante ao que Jota Mombaça fala sobre o estilhaçamento, ou melhor, o movimento do estilhaço, pois suas vidas são movimentos que estilhaçam espaços irrespiráveis, nos quais a quebra junta uma na outra:

(…) afinal, é um modo de estar juntas na quebra e de encontrar, entre os cacos de uma vidraça estilhaçada, um liame impossível. Tem a ver com habitar espaços irrespiráveis, avançar sobre caminhos instáveis e estar a sós com o desconforto de existir em bando, o desconforto de, uma vez juntas, tocarmos a quebra uma das outras.

No início do artigo Discursos racializados e epistemologia étnicas, Gloria Ladson-Billings apresenta duas perspectivas epistemológicas. Nessa relação, ela ilustra as visões posicionadas a partir de seus princípios estruturantes. A visão, que aborda uma noção de conhecimento a partir das relações africanas, a construção de conhecimento e a existência são constituídas na relação com o outro, “(…) onde o ditado africano ‘Ubuntu’, traduzido para ‘existo porque nós existimos’, afirma que a existência (e o conhecimento) do indivíduo é dependente das relações com os outros”.

Esse lugar ético, em que olhar pros outros é um dos fatores e elemento designante (e fundante) das irmandades alimentadas pelo ubuntu, só é possível a partir de uma percepção de mundo na qual o outro te afeta. O fator diferença é reconhecido através da relação de inclusão do outro. Uma inclusão que não está atrelada a retornos ou ganhos de uma relação, mas articulada pela percepção social de indivíduo enquanto elemento transparente de uma dinâmica social, que não está encerrada em si ou numa visão de mundo constitutiva da solidão.As corpas encontram, nas expressões culturais da Maré, os buracos para atravessarem as paredes das casas e estabelecerem seus gestos, closes e dublagens nas ruas e becos da Maré. Existir como LGBTQIA+ nesse território é rebeldia descarada. Esse legado torna a Noite das Estrelas uma explosão de amor, que estilhaça e debocha da normatividade. É um parar o tempo fruto do movimento feito por muitas mãos ― mãos carnais e invisíveis. Na tessitura habitada no dia a dia, nos sonhos, nas estrelas e no fazer junto, estão vivas as fugas que ubuntu possibilita serem feitas. Nos movimentos de irmãs há uma magia negra que nos abriga nos planos e nas fugas, e a pretitude não para de amar pra renascer. Por isso não se pode resgatar essa memória: porque ela não pode resgatar o que está vivo.


Um agradecimento especial a Marcela Soares, a Pantera, e a Érika Ravache, a Madame, que contribuíram com seus depoimentos para a produção desse texto. Moradora do Morro do Timbau, Marcela é travesti e se considera parda. Era uma das cabeças dos shows e dona do acervo das roupas que eram utilizadas pelas artistas. Érika Ravache é travesti negra que reside atualmente na Itália, artista dos antigos shows das décadas de 80 e 90. Cedeu entrevista para o Entidade Maré na construção do curta-metragem Noite das Estrelas.

#45Imaginação RadicalCultura

Uma conversa com Spirito Santo

por Pitter Rocha

Spirito Santo é músico e escritor, doutor em Música pela UFRJ, nas praias da cultura africana no Brasil. Reunindo senso político, sensibilidade artística e rigor, navega pelos fluxos intensos das águas do Atlântico Negro em sua trajetória como pesquisador das sonoridades da diáspora negra. Músico junto ao grupo Vissungo, está à frente da oficina de construção de instrumentos africanos, a Musikfabrik.

Pitter ― Quando vemos as pesquisas de música africana, afro-brasileira, temos esse pacotão das dimensões simbólicas, políticas, religiosas, mas eu acho que a ideia de construir um instrumento tem uma dimensão conceitual bem radical, que traz essa tecnologia, toda uma ciência acústica e material de fazer. Como começou isso?

Spirito Santo ― Eu sou cria dos anos 60, fiz 20 anos em 1967. A instigação de tudo tem um viés ideológico muito forte. Eu comecei como artista com 19 anos, fazendo teatro em Padre Miguel, [com] um grupo de jovens, e, apesar de ser ditadura, fazendo coisas absurdas, do tipo estudar Brecht e montar um espetáculo. Eu já compunha um pouquinho, e assumi a trilha musical da parada. Mas tudo começa ali, multiartista, o que eu faço até hoje é isso, não consigo fazer uma coisa só. A coisa do instrumento propriamente dito só aparece bem depois. Eu tive um incidente grave. Fui preso em 69 (…) porque eu já estava militando. Quando saí da prisão, comecei uma carreira de artista individual, mas rapidamente me veio a intenção de trabalhar em grupo. Aí essa ideia me fez criar um grupo chamado Vissungo, que existe até hoje, e eu já comecei com a intenção de pesquisa. Comecei fazendo uma peça teatral, escrevendo já a música, e a peça era baseada num livro de um cara chamado Aires da Mata Machado, eu cito muito esse livro. (…) Eu tinha montado um trio para tocar a trilha. E era um som fantástico, mas era modernista, harmonia mais dissonante. Aí nasce o Vissungo, que rapidamente vai se transformando numa coisa menos elitista, também por força dessa minha veia ideológica. (…) Aí o grupo fez muitos shows alternativos, em qualquer lugar, igreja evangélica, igreja católica, presídio. (…) Rapidamente a pesquisa foi me chamando, comecei a pensar em tocar música africana no Brasil, era radicalmente isso. Aí eu comecei a perceber na pesquisa que essa música africana no Brasil não era aquela que eu estava fazendo, nem tocava no rádio, nem tinha disco sobre ela e tal. E era preciso aprofundar a pesquisa sobre essa música que estava no interior do Brasil. Aí começa nossa pesquisa. No mesmo embalo aparece também a noção de que o som, os timbres que aquela música deveria ter, não estavam constando, não apareciam, e essa ausência estava ligada ao fato dos instrumentos de música africanos não serem ouvidos ou visíveis. Aí eu comecei, já em 75, logo, rapidamente, em 76, 77, a pesquisar organologia, que instrumentos eram esses, como se fazia, começa aí. Isso avança pro início da década de 80 com o filme chamado Chico Rei. (…) A nossa entrada foi o seguinte: pra pesquisa, eu viajava muito pra Minas [Gerais]. Por acaso, eu cheguei em Ouro Preto e o filme estava sendo filmado ali. E eu tinha um amigo que sabia que eu fazia pesquisa. “Vou te apresentar o Walter Lima, o diretor”, disse ele. Na conversa, o Walter pirou, porque eu falei: “Walter, o Chico Rei, além de ser mineiro, veio de Angola (…). Esse roteiro tá todo errado”.

Eles colocam como se a galera tivesse vindo do Congo.

Exatamente. Como está vindo do Congo e as danças são da Nigéria?

Tudo desconectado.

Hoje parece uma coisa básica, mas, na época, não era, pra essa intelectualidade branca. (…) Ele se convenceu de que estava tudo errado, tinha que mudar. Aí assumimos uma espécie de consultoria já nesse momento. E começamos a ir pra Ouro Preto. Aí, cara, convenci o Walter, já que ele estava me dando fita, a refazer a cena final do filme, que exibia mais a cultura africana. E propus trazer grupos de congada de Minas. Trouxe dois grupos do sul de Minas junto com um grupo de Ouro Preto mesmo. Segundo: figurino torto. Apaga, tira essa porra toda. Porque é pesquisa, bicho, Debret e Rugendas e outros desenhistas da época, era só pesquisar. O cara que fazia a direção de arte não entendia nada de nada, criou, inventou umas máscaras, “fantasiou” a roupa num filme, um mico que pode durar anos. (…) Entramos no guarda-roupa do filme, a roupa dos brancos, casacão, que era a mesma roupa que está no Debret, estava toda lá. Botamos os congadeiros em fila, aí pegava um, dava só o casacão, descalço todo mundo, só o casacão, uma calça de capoeirista, o outro só a camisa de babado, outro com chapéu de três bicos. Era assim que o grupo de negros de ascensão social se vestiam. E aí veio a cereja do bolo: construir instrumentos de cena funcionais, esse foi o grande start dessa onda.

A construção de instrumentos. Já começou nesse exercício sempre meio transversal assim, de linguagem e pesquisa.

Fiz, com o grupo, quase tudo. Fiz marimba, harpas. No filme, você vai ver no final. A cena é rápida, já é o roll passando assim. Daí fomos convidados para fazer a trilha sonora, o que não estava previsto. Quase nada de pesquisa etnológica, compus coisas que parecessem folclóricas. A partir daí, eu fui acumulando referências. Daí virei pesquisador desse tema, organologia africana, virei especialista.

Organologia é o quê, pra quem não sabe?

Instrumentos de música, estudo dos instrumentos de música em geral, tipos, fisiologia, materiais, timbres, é um ramo da antropologia.

Quando a gente fala de música africana negra, ela nunca é só música. Às vezes tenho minhas dúvidas se é música, porque ela é tão junta na existência, na vida das pessoas. Integrada.

Tudo, se você for olhar, rigorosamente tudo. Daí vem a linguagem. Mais que as línguas, a linguagem musical é mais essencial do que as línguas, a linguagem musical é um negócio muito foda. (…) E o filme rendeu um disco de vinil, que também foi bem legal. Na trilha do filme não tem as músicas que eu gostaria que tivessem; tem no vinil, mas não rolaram na trilha pela seguinte razão: um produtor da Som Livre na área de TV queria colocar apenas as coisas que vendessem. Vendia o quê? Milton, por exemplo, vendia.

E o Vissungo? Vocês lançaram o Kilomboloko em 2019…

A gente nunca conseguiu gravar um disco solo, acredita? Gravamos Chico Rei, gravamos uma faixa do Milton no disco de carreira Encontros e despedidas, que virou a faixa-título. Gravamos com Wagner Tiso, no disco dele também, Tetê Espíndola, mas nosso, nunca.

Esse disco, além de ser o primeiro disco, é a celebração dessa história.

Exatamente. O que eu fiz? Eu escolhi sons remix de coisas gravadas antigas e tal, porque a grana era mínima. Arrumei um estúdio mais barato e tal. Mas são remixes de coisas gravadas aqui, ali, MP3 e algumas composições novas, como essa que dá nome ao disco.

Eu ouvi algumas vezes, ele tem uma coisa… É um disco transatlântico.

É, Uruguai, Angola.

Tem quantas línguas nele?

Angola é português, Uruguai é espanhol, que é a faixa chamada Um candombe para Gardel. A letra diz isso: eles queriam muito que Gardel cantasse candombe, mas não era possível, não rolava. Aí eles pegam os tambores e vão para a rua tocar e cantar música do Gardel.

Além de ter muitas línguas, vai ter samba, aí tem um funk pesadão, som de tiro…

Tem a língua crioula da Guiné Bissau. (…) Tem uma antiga, Curral das éguas, que é um samba que eu fiz. Curral das éguas é uma favela de Padre Miguel. Quando o trem passava lá, a gente se apavorava, porque eles apedrejaram o trem. (…) É um bandido do Curral das Éguas. Só que ele tem consciência, ele só assaltava na Zona Sul. Lá ele jogava futebol, fumava maconha, quando estava de tardinha assim, ele pegava o trem, Zona Sul…

Aproveitando a deixa, sobre o disco ter essa dimensão transatlântica de várias épocas, queria comentar sobre o seu o livro Do samba ao funk do Jorjão, que virou um sucesso literário.

Eu sabia da qualidade do livro, mas, como era o primeiro a ser lançado, tem a expectativa do feedback que vai dar. Eu não esperava que fosse tanto. E nem que ele virasse referência acadêmica.

É uma leitura muito divertida para um material muito denso. (…) Tem um filme, O último anjo da história, do John Akomfrah. O argumento dele é que vem um ladrão de dados do futuro para encontrar as informações que ele não tem da história negra. Na história, o blues seria a tecnologia secreta para juntar esses pontos. Enquanto lia o seu livro, várias tecnologias foram apontadas…

Não é só na diáspora, na África já é assim. Tem uma unidade formal mesmo, pelo fato delas serem próximas, mas com o trajeto das migrações toma outra forma. Mas todas têm uma unidade ali que identifica, têm uma particularidade em cada uma, própria da música africana. Eu falo isso no livro. [Na música africana] não tem passado, presente, futuro; é uma circular.

Eu fui no recebimento do reconhecimento do notório saber. Sua fala foi sintética dentro do contexto. Você falou do autodidata, dessa figura autodidata. O que guiou seu autodidatismo?

Eu tenho refletido muito sobre isso. Mas antes do convite para o doutorado, eu não pensava, tinha muitas restrições quanto à academia, por causa do eurocentrismo, do racismo, etc. Fiquei já escrevendo artigos, o próprio livro, já batendo de frente. Tanto que deu certo. O título que eu recebi, por alguma razão, omite a palavra doutor. Um negócio doido. E a banda [Vissungo] tocar foi também um ato político.

Vocês botaram uns fantasmas pra dançar.

E não queriam.

Foi fundamental vocês tocarem.

O Brasil é colônia da Europa até hoje, principalmente nessas áreas estratégicas, cultura, academia. Ali, por exemplo, os alunos só aprendem a tocar música erudita da Europa dos séculos XVIII e XIX. Quase não tem música brasileira ali. Tem umas coisas assim pingadas (…). Aí eu me dei conta de que existem, sei lá, centenas de pessoas no Brasil assim, com a minha idade mais ou menos, e que fizeram uma formação autodidata, por conta própria, e que são doutores realmente, e que o Brasil precisa deles, mas a universidade não se importa muito com isso Então tem que, de algum modo, quebrar isso, valorizar essas pessoas. Porque a gente assim vai para o buraco, a universidade, nesse ponto, está no buraco, os alunos saem sem saber quase nada nessas áreas ligadas ao Brasil real. O meu caso foi uma raridade, em 175 anos, a universidade…

Foi o primeiro título.

Sim. Praticamente o primeiro título de notório saber em 175 anos [de UFRJ]. Foi até meio acidental, enquadraram na lei o memorial, que foi incrível, tinha que provar atividades internacionais, por exemplo. Por acaso eu tinha. Uma coisa rara. Até parece que a resolução foi feita pra não ser usada nunca.

#45Imaginação RadicalArteCulturaMúsica

Exu tocou uma música ontem com um som que só inventou hoje: a música negra enquanto tecnologia criadora de mundos e imaginários

por Rafael de Queiroz

Tavia Nyong’o começa seu texto Afro-philo-sonic Fictions: Black Sound Studies after the Millennium (2014) afirmando que “a música há muito tem sido entendida como central para a experiência vivida de pessoas negras”. Seu artigo gira em torno de duas obras recentes que, na sua perspectiva, inauguram uma possível nova área de pesquisa, por ele denominada Estudos do Som Negro, em tradução literal. Relacionados a ela estão os livros de Alexander Weheliye, Phonographies: Grooves in Sonic Afro-Modernity (2005), e de Julian Henriques, Sonic Bodies: Reggae Sound Systems, Performance Techniques, and Ways of Knowing (2011).

 Alguns teóricos negros, de diferentes campos, já vêm trabalhando com a afirmação dessa importância há bastante tempo. Um caso exemplar é o de Paul Gilroy, em seu O Atlântico negro (2001), que teoriza sobre isso colocando a falta de acesso de escravizados ao lugar central da literatura no mundo ocidental, sendo excluídos dos meios de alfabetização, como principal impulsionador da importância do som e da música como meio de expressão e comunicação. Para Steinskog, no livro Afrofuturism and Black Sound Studies: Culture, Technology and Things to Come (2018), a discussão gira em torno de como a música ou o som podem ser considerados também meios de comunicação para além dos meios tradicionais, podendo expandir esse entendimento, e não apenas ficar no dualismo do “ou/ou”. 

Apesar de levantar uma hipótese instigante, Gilroy não aborda o que outros pesquisadores, especialmente na área da musicologia africana e afrodiaspórica, já vinham trazendo com certa anterioridade em relação à música também ser comunicação em diferentes culturas africanas. Primeiramente, devemos lembrar que, em África, apesar de muitas culturas apresentarem sistemas de escrita, a oralidade nunca deixou de ser a principal forma de difusão do conhecimento. Isso, por si só, já seria motivo de defesa da principal hipótese de Gilroy, que versa sobre uma cultura negra transnacional profundamente interconectada. 

A música, entre suas outras prerrogativas, sendo utilizada nas mais diversas atividades, como trabalho, ritos e atividades relacionadas à espiritualidade, entre outras, também era meio de comunicação. Ou mais: a música africana é oralidade, como ilustra a discussão apresentada por Samuel A. Floyd Jr. em The Power of Black Music (1995), trazendo autores como Francis Bebey e Olly Wilson: “Bebey, por exemplo, nos diz que, na música africana, o ‘principal motivo dos instrumentos é reconstituir a linguagem falada’”. Complementando, mais à frente ele afirma: “Wilson sustenta que ‘o repertório pré-existente de padrões de percussão usado por mestres em muitas culturas africanas é baseado em padrões musicais derivados de gêneros selecionados de poesia oral’”.

Essas colocações demonstram, por um lado, a potência da oralidade para as culturas africanas e, por outro, que essa conexão não é casual, porque muitas línguas africanas eram tonais e, assim, os instrumentos de percussão também teriam a função de comunicação, de passar mensagens, ou seja, um media ancestral africano. Sobre esse aspecto, afirma “Salloma” Salomão Silva:

Um maior conhecimento das relações entre a fala e a música no contexto das sociedades africanas certamente ajudariam a iluminar o papel social das musicalidades, certamente recairiam sobre a relação entre os sons dos tambores que imitam a fala, como também dos demais instrumentos musicais e suas possíveis vinculações com a linguagem oral.

Silva cita ainda conhecidos tambores mensageiros, como os “dondom (também chamados de tama), famosos e esquivos tambores falantes, cujos recursos permitem reproduzir as alturas dos sons da fala”, e também defende que “os txinguvos ou chinguvo, tambores-xilofones dos povos tshokwes de Angola, são tanto ‘mensageiros’ quanto tambores convencionais utilizados na vida ordinária e em atividades religiosas”. 

Como demonstram essas citações de Silva, apesar de o caráter oral da cultura africana ser extremamente divulgado, ainda há muito a ser explorado em seus diversos outros aspectos, principalmente na conjunção com línguas tonais e música. No entanto, isso é apenas uma das muitas camadas de significação que poderíamos explorar dentro do binômio música/negritude. Uma que me parece muito sugestiva, nos dando um significado profundo dessa relação, é a discussão sobre cosmopercepção sugerida por Oyèrónkẹ Oyěwùmí. Falando sobre os iorubás, mas também estendendo-se a outros povos africanos, a autora, ao fazer uma distinção entre África e Ocidente na maneira como estes percebem o mundo, coloca que há uma primazia da visão no segundo, enquanto na primeira a audição seria a mais relevante. Isso porque no iorubá, sendo esta uma língua tonal, a audição não poderia ficar em segundo plano; ao mesmo tempo, esse sentido pode focar em diferentes realidades para além do que se pode ver, “não privilegia o mundo físico sobre o metafísico”. Essa reflexão da autora é muito potente e nos ajuda a explicar o poder da música negra e por que a África e suas diásporas articulam-se culturalmente de forma sônica, diferentemente do ocularcentrismo ocidental. Isso move nossas epistemes, não apenas para serem encontradas também nas sonoridades, mas, ao mesmo tempo, para atestar uma ignorância histórica dos europeus em relação a esse fato. 

Segundo Nyong’o, o que une as obras de Weheliye e Henriques é essa descentralização da forma de saber a partir da visualidade/do letramento e o foco no aspecto sonoro das culturas afrodiaspóricas. Mais especificamente, ele cita a frequência grave como catalisadora desse elo comum, pois os dois autores partem da importância que Ralph Ellison deu a essa no seu romance O homem invisível (1952) ― na obra, de forma simbólica, o autor exemplifica como o som é influente na cultura negra, sendo articulado até mesmo na literatura. Assim, segundo Nyong’o, “a tradição radical da comunicação negra nas frequências graves é o que permite a Weheliye e Henriques desafiar o analfabetismo epistêmico ocidental no campo do som negro”.

Rafael Galante, em seu curso sobre a influência de culturas centro-africanas no Brasil, explica como a frequência é importante para a música africana, tendo pormenorizado o grave e sua centralidade como um dos motivos organizadores dessas sonoridades. Dependendo do nível em que é tocada, essa frequência pode nem ser escutada pelo ouvido humano, mas será sentida pelo nosso corpo, ou seja, ela teria o poder de colocar o nosso corpo em movimento. Ao ressoar em nossos corpos, o grave apresenta essa qualidade extrassensorial, fazendo com que o sintamos quase uma materialização do som, deslocando-o “apenas” da dimensão auditiva para a tátil. Isso também implicaria uma ressignificação do lugar da música ocidental como da ordem do ouvido “pensante”, da contemplação. Essa qualidade corrobora ainda a fala de Oyěwùmí sobre a expansão dos sentidos também atingir metafisicamente o que não pode ser visto. 

O grave vai interferir corporalmente em nós, mesmo que não o queiramos, colocando até mesmo os brancos para dançar, uma coisa “diabólica”, como descreveram tantos relatos colonizadores. Tal frequência está participando ativamente de processos sociais e é uma tecnologia africana que é utilizada em diferentes instâncias. Poderíamos exemplificar isso com a maneira como ela é aplicada no contexto da espiritualidade e da medicina, já que a frequência grave é capaz de induzir ao transe, que é um fator de cura e comunicação com a ancestralidade. Essa materialidade sonora abre espaço para um entendimento de mundo por meio do som e da música, assim como para a percepção de uma episteme acústica. Esse vocabulário sonoro é levado a outros patamares; quando a serviço do imaginário, abre possibilidades de se pensar uma cosmopercepção sônica e relacioná-la aos seus usos dentro de uma política-estética afro, reafirmando o locus imprescindível da música em sociedades negras. 

Outra forma de abordar a prevalência da música/do som para as culturas negras, além da sua inexorável presença na experiência vivida, seria enxergá-la enquanto poder de arquivo. Como estamos falando de culturas primordialmente oralizadas, podemos dizer que a música foi/é uma tecnologia mnemônica de transmissão de histórias, saberes e memórias desde os tempos mais remotos. Isso indica uma tradição africana que, de tão arraigada, apresenta uma continuidade, em que tradição e passado são instâncias valorizadas, assim como a mudança. Afinal, segundo Chinua Achebe, “(…) devemos falar da tradição não como uma necessidade absoluta e inalterável, mas como metade de uma dialética em evolução ― sendo a outra parte o imperativo da mudança”. Então, a tradição enquanto forma dialética não pressupõe o inalterável, o estanque.

Esse pensamento nos leva diretamente ao conceito de changing same de Amiri Baraka, no ensaio The Changing Same (R&B and the New Black Music), presente no seu livro Black Music (1966), publicado quando ele ainda assinava como LeRoi Jones. Uma tradução literal seria arriscada, mas está na linha de “o mesmo/a mesmice em mudança”, e, ao falar do contexto da música afro-americana, o blues seria o gênero que deu origem a todos os outros. Nesse processo, há uma entidade chamada “impulso blues” (blues impulse) que permitiu essa transmissão e transformação no tempo-espaço da música negra, e que, na verdade, é reconhecidamente um “impulso africano”, já que sua origem remonta ao passado no continente africano e serve como forma contínua da ligação entre os povos deste, sua comunicação, sua forma de transmissão de saberes, sua mídia de armazenamento de histórias e memórias.

O changing same apresenta uma ideia de núcleo, porém um núcleo dinâmico, que está em constante mudança, e levanta questões sobre a relação entre diferença e repetição e entre continuidade e mudança. Ele traz em seu bojo tanto o presente como o passado e o futuro, numa relação cíclica. Baraka exemplifica com uma qualidade mais do que citada em estudos da música negra o chamado e resposta, característica presente em todos os gêneros da música negra estadunidense e que veio do passado africano. Isso reforça a qualidade de arquivo da música negra. Não por acaso, o chamado e resposta pode ser identificado em inúmeros gêneros musicais da afrodiáspora, como no samba, no coco, na sambada de maracatu, na ciranda, entre outros, confirmando esse aspecto formador africano. 

Pensando em música e no som como arquivo, a importância da oralidade e mesmo a cosmopercepção centrada na audição, chegaríamos à conclusão de que o gramofone não foi a primeira mídia a armazenar o som, e sim o corpo negro, devido à importância que se deu ao ato sonoro, como colocou Weheliye. Afinal, o som também foi arquivado na transmissão dentro de uma comunidade, arricando-se dizer que o som tem papel crucial na formação de uma comunidade: “(…) mas nesse contexto, e de uma forma ainda mais importante, é como a comunidade, enquanto um coletivo, consegue armazenar e reproduzir seus sons, o que é, ao mesmo tempo, sua memória e sua história”, afirma Steinskog.

O que, dentre várias outras coisas, o changing same de Amiri Baraka ajuda a corroborar é o foco na oralidade como forma de transmissão e de registro de toda uma cultura que foi tida como primitiva e atrasada, sem história, por não estar calcada em formas escritas. O conceito também explica o poder da música e do som dentro da cultura negra e atesta a falha do colonialismo e da supremacia branca em seu projeto de aniquilação e inferiorização de culturas de matriz africana. Baraka fala de como memória e história foram transmitidos a partir da música e da dança, destaca o “propósito religioso e/ou ritual” e como o culto aos espíritos esteve sempre na raiz da arte negra. 

Ao falarmos de tecnologias sônicas negras, abriríamos espaço para discutirmos uma infinidade de exemplos, como a invenção do surdo de Mestre Marçal e sua mudança de curso no samba, passando pelo trio sanfona, zabumba e triângulo de Luiz Gonzaga até os efeitos que o uso diferente da eletrificação na música de Jimi Hendrix, de Herbie Hancock e de Miles Davis ajudaram a construir mundos e imaginários a partir do som. Na verdade, a música e a manipulação sonora são uma tecnologia per se, como estamos tentando construir, e fazem parte de uma episteme, de uma cosmopercepção e de valores civilizatórios africanos. 

Isso está presente no conceito de afro-technological, de Salim Washington, em que música e tecnologia estão sendo discutidas, dentro da cultura negra, através de sua representação em livros de ficção científica de Henry Dumas e Samuel Delany. Para o autor, as invenções de instrumentos de sopro quando os percussivos foram proibidos nos Estados Unidos, ou a invenção da guitarra amplificada de Charlie Christian, ou as steel drums do Caribe, criadas a partir de latas descartadas, ou a gênese da bateria como a conhecemos hoje por músicos de jazz de Nova Orleans são exemplos de desenvolvimento tecnológico na música popular realizado por pessoas negras. Também se configuram como tais as criações de técnicas vocais e estilos de tocar os mais variados instrumentos, assim como o uso criativo que DJs de rap deram ao toca-discos para fazer música. A criatividade e a inventividade estão presentes em seu conceito de forma mais preponderante do que o uso em si das “máquinas”, do objeto fruto de tecnologia. Na verdade, o que o interessa mais é o fazer musical em si e como este foi utilizado como tecnologia pelas comunidades negras, agindo nas psiquês dos executores e ouvintes, assim como no mundo físico e espiritual. 

Washington também chama o afrotecnológico de impulso e lida com questões de música como meio de transporte, com seu poder de mudar o ambiente e com ser uma “tecnologia capaz de criar e curar, assim como vingar e destruir” usada de fato ou simbolicamente pelos artistas. Essa ideia me leva diretamente ao postulado de Fela Kuti de que a música é uma arma do futuro e que nós, negros, já sabíamos disso e sempre a utilizamos como tecnologia em diferentes aplicações, até no criar fabulações sônicas para expansão de sentidos e significados e a consequente criação de mundos e imaginários. 


— Este texto foi adaptado do e-book Cronopolíticas afrossônicas: ecos do afrofuturismo na música pernambucana (2023)