#36O MasculinoCulturaLiteratura

Em queda livre

por Luísa Horta

Devo confessar que foi ligeiramente incômodo escutar, pela primeira vez, que eu possuía um rosto masculino. Inicialmente atribuí por impulso esta percepção pela semelhança que tenho com meu pai: trazemos os mesmos olhos indígenas, meio rasgados, o formato oval e alongado da face, a testa profunda. Aos poucos, compreendi que esta característica está adiante da herança paterna. Não tenho a menor dúvida de que meu franzino corpo não evoque qualquer entusiasmo viril, qualquer ímpeto de violência, como é de se esperar da masculinidade; mas reconheço que certa seriedade, forjada no peso dos anos, talvez tenha contribuído para a construção dessa máscara. Este masculino que em mim habita está impregnado em minha superfície: terno e grave ele se ancora, sem brigar com sua dualidade. Ambos os lados mantêm em silêncio acordos tácitos de camaradagem e sobrevivência.

Sinto que meus masculinos e femininos não devam ser acessados como forças opostas em tensão ou como lados complementares, mas como partes fulgurantes que constituem um mesmo corpo. Cada um deve ser apreendido pela sua autonomia e totalidade, distante do antagonismo notório que conhecemos e que os definem ora como luz, ora como sombra.

O que pode uma mulher, enquanto corpo, saber do masculino? Se há algum sentido nesse movimento, ele é feito em parte pela perda, pelo desejo de aproximar do que nos falta. A falta aqui é compreendida não como uma parte negativa inerente a dois pólos coexistentes, mas como o vazio pelo qual percorremos sem saber muito como; pela via do estranhamento da apropriação de um gênero diferente àquele que nos é dominante. O processo de identificação de uma mulher com seu masculino passa também pelo reconhecimento da assimetria da qual somos feitas. 

Fora do corpo, o traço másculo torna-se evidente naquilo que é dominado por funções maquínicas, mecânicas e, principalmente, repetitivas. É o traço dotado de retidão, que se apresenta como uma flecha: capaz de grandes esforços em um só fôlego, percorre longos trajetos sem desvios, afinal, não é um corpo maleável, nem flexível. Sua maior virtude é a objetividade.

Tentemos nos desvencilhar desta noção de contrários. Não se deve destituir o masculino de nenhum corpo, de nenhum espaço. Até porque quando digo “o masculino” não me refiro, necessariamente, ao homem. Ao segundo é reservado uma função social, um jeito de ser e estar no mundo. Ocasionalmente, eles coincidem de ocupar o mesmo corpo. 

Em seu romance Malina, Ingeborg Bachmann afirma que “de um homem a outro, um corpo de uma mulher precisa perder todos os seus hábitos e readquirir hábitos totalmente novos. Mas o homem prossegue calmamente em seus hábitos; às vezes tem sorte; na maioria das vezes, nenhuma.”. Isso me faz pensar na quantidade dos músculos de uma mulher que são contraídos durante um orgasmo, na relação destes com o jato de alívio do gozo do homem, e seu relaxamento imediato. Imagino como seria se os homens pudessem gozar indefinidamente, sem tempo refratário, na medida expressa do seu prazer. O gozo fálico é em si um coito, firme e pragmático. Já um orgasmo múltiplo, este tem em sua natureza um compilado de interstícios, uma gama de espaços vazios como aqueles a que estamos socialmente acostumadas a preencher dentro de uma relação, sexual ou não.

Na equação naturalmente desequilibrada dos conjuntos, fico me perguntando porque nos parece mais confortável alinhavar a ideia do masculino dentro do feminino do que vice versa; para que um corpo se transforme, ele precisa estar disponível para se metamorfosear, se dissolver e fundir com o seu meio. Deve estar preparado para ganhar, assim como para perder.  Quando uma mulher encontra — e assume — o seu masculino, ela invariavelmente começa a perder. Primeiro vê suprimir uma parte de si, para enfim em seu exterior ver subtrair algumas de suas relações, na maioria das vezes as de menor importância.

Penso que é preciso fomentar o masculino de sua instabilidade, dotar o vigor de crises. Não uma crise qualquer, mas da instabilidade crítica de sua própria essência, como a que posso enxergar no estado de um corpo que se lançou no abismo e ainda não aterrissou. Este corpo enquanto permanece em queda livre, mantém sua confiança atávica. Tenta resistir ao vento, apesar da certeza do baque. Rígido, teso e seguro de si toca o chão, para em seguida se esborrachar. 

No esfacelamento de sua retidão, na inevitável constatação de sua impotência bélica, eis um retrato da masculinidade que me parece mais interessante. E ele tem a beleza de um homem triste, consciente de seu fracasso.

#36O MasculinoArtigo

O Masculino: direto do subsolo à cozinha daqui de casa

por Carlos Antonio Ferreira

Carl Gustav Jung (1875 – 1961).
(Photo by Hulton Archive/Getty Images)

Há alguns anos, quando não sabia ao certo para onde ir, ouvi de um amigo sobre a tradição de certa tribo africana. Os mais velhos se reúnem com quem está se sentindo perdido e começam a chamá-lo por seu apelido de infância – todos na tribo têm um. Recordam juntos momentos marcantes da vida daquela pessoa, trazendo à tona memórias afetivas de sua história. Quando um não sabe para onde ir, é preciso lembrar de onde veio.

Da mesma forma, quando não sei ainda para onde um texto irá me levar, recorro ao velho hábito de consultar dicionários e buscar pela etimologia das palavras. Foi assim também com o “masculino”, mesmo que hoje seja muito difícil decidir onde buscar definições para este adjetivo que a cada dia se apresenta mais complexo.

Mas.cu.li.no (mɐʃkuˈlinu): adjetivo.
1. relativo ou pertencente a homem;
2. relativo ou pertencente a macho;
3. Botânica: diz-se da flor que possui apenas estames;
4. Gramática: diz-se do gênero gramatical que se opõe ao gênero feminino ou aos gêneros feminino e neutro; e
5. relativo a comportamento ou aparência tradicionalmente associados aos homens.

Mesmo sendo o dicionário de edição recente, suas definições não me satisfizeram. Recorri então às estruturas da psique observadas pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, autor da psicologia analítica, segundo a qual os princípios psicológicos do masculino e do feminino exercem papel fundamental na constituição da natureza humana e no seu processo de desenvolvimento.

Todos nós, humanos, temos presentes em nossas personalidades ambos os aspectos, contrapostos e bem definidos. Da tensão entre esses opostos surge nossa capacidade e potencial de crescimento. Do convívio harmônico das potencialidades do masculino e do feminino emerge nosso potencial criativo, nossa oportunidade de cocriar nossa própria identidade. Um “eu” maior, capaz de reconciliar esse casal invisível do nosso inconsciente pessoal, ampliando nossa consciência e percorrendo o caminho que Jung nomeava individuação, o encontro profundo com nossa essência, única, indivisível.

Jung reconhece as qualidades psicológicas femininas inconscientes que o homem possui, assim como as masculinas possuídas pela mulher. Enquanto o aspecto feminino em nós é o que tem contato com nossas emoções, o que nutre, cuida, acolhe, o aspecto masculino é o da lógica, da racionalidade, é o que estabelece as regras, as leis e a ordem – o código de Hamurabi é um dos conjuntos de leis escritas mais antigos e bem preservados da nossa história, elaborado por volta de 1772 a.C., na Mesopotâmia. Recomendo uma busca pela imagem desse monumento, talhado em pedra, que ora se encontra no Museu do Louvre, em Paris. Ele fala por si só.

Jung atribuía ao princípio feminino nossa capacidade de seguir a vida aceitando mudanças, com confiança, segurança e esperança diante dos encerramentos de ciclos e renascimentos que formam nossos aprendizados. Ao masculino, nossa capacidade de tomar decisões, de ser independente e de nos tornar agressivos e competitivos, mas também responsáveis, provedores, figuras de autoridade. É o princípio que nos guia para separar o bem do mal, o certo do errado, o permitido do proibido, não só ditando disciplina e ordem, mas também criando e colocando limites para nós mesmos e para os outros.

No passado, o conflito mais comum entre esses princípios se dava em nossa cultura, na dificuldade e até mesmo na proibição de que os homens acolhessem e lidassem com seus aspectos femininos e as mulheres o fizessem com seus aspectos masculinos.

Hoje, com uma melhor compreensão sobre a diversidade de gêneros, ainda que engatinhando, já é possível observar e lidar melhor com os potenciais positivos e negativos do feminino e do masculino. Não se pode fazer referência a um sem o outro.

As réguas da masculinidade são o sucesso, o poder, a admiração que uma pessoa provoca – ela busca ser independente, audaciosa, agressiva, capaz de tomar riscos e decisões importantes. Como natural decorrência dessas qualidades, colhemos a violência pessoal e coletiva, a competição desenfreada e sem propósito, o estresse, a obsessão pelo alto desempenho.

Essa masculinidade é constantemente ameaçada pela intimidade, pelo sentir, chorar, pela afetividade característica do feminino. Proibido, ponto de fraqueza, a ausência do feminino torna a pessoa incapaz de se entregar a uma relação verdadeira.

A redução do mundo dos afetos ao sexo permite o jogo da sedução, mas evita o envolvimento, o compromisso, produzindo parceiros-objetos, quaisquer que sejam suas naturezas biológicas, gêneros ou opções sexuais.

A ausência do feminino nos distancia da natureza, dos instintos, da intuição. Perdemos a alegria de viver, a confiança na vida, a oportunidade de lidar com incertezas, com o imponderável. Já a ausência do masculino nos leva a um atoleiro de emoções que nos confunde, nos impede de agir racionalmente, facilmente nos deixando mais melindrados com tudo e todos, reagindo com mais sarcasmo, jogando indiretas ao invés de objetivar a situação ou experiência que vem sendo vivida.

Essa busca não deve ser de um em detrimento do outro, mas sim da presença marcante de um e de outro, em diálogo e não em competição. É preciso ser masculino e feminino para ser humano. Tarefa simples de ser escrita, uma epopeia a ser vivida, muitas vezes conflitante com nossa natureza biológica e cultural. Trabalho para corajosos ou loucos que se aventuram na jornada do autoconhecimento.

Comecei este nosso diálogo no subsolo de minha casa, já que, por conta do confinamento imposto pela Covid-19, minha esposa se estabeleceu no meu escritório e consultório para realizar suas videoconferências de trabalho, o que é a própria síntese do que tento compartilhar agora.

No campo psicofilosófico a que me atenho, veja bem – a que me atenho -, cor, preferência(s) sexual(is), prática(s) (ou não) religiosa(s), dietas, estilos de se vestir ou falar pouco ou praticamente nada importam. Muito pelo contrário, quanto mais diversos, mais ricos, mais elucidativos, mais humanos.

Mesmo assim, me sinto de alguma forma preso, ao escrever, pelas estúpidas amarras a que estamos nos permitindo ser atados. O sofisma já se inicia quando julgamos que possa existir uma forma única possível de agradar a todos.

Portanto, balela! É praticamente o mesmo dilema da porta: eu gosto de abrir portas: do carro, da casa, das salas, do elevador, quer seja para mulheres, homens, trans, homos, héteros, jovens, idosos, atletas, amorfos, pretos, brancos, amarelos, vermelhos ou verdes.

Sinto-me bem explicitando minha reverência ao outro. Faço isso sempre. Muitos gostam; outros, não, se sentem mal, ofendidos ou subjugados. Discordo, mas respeito, porque o que eu penso sobre o outro é irrelevante. O que ele sente é o que existe quando se propõe de fato a uma conexão com o outro. Mas sempre corro o risco de abrir a porta, observando a reação, que definirá se continuarei ou não a abrir portas para este um específico.

Já percebeu o tamanho da minha encrenca? No mundo machista, sou excessivamente gentil, talvez falso ou até mesmo efeminado. No feminista, subjugo a força e a independência das mulheres. Porém nada me impediria de ser eu mesmo.

Voltando ao meu subsolo, vamos recuperar a imagem da minha esposa trabalhando no meu escritório enquanto eu me exilo no subterrâneo de nossa casa. Precisei descer e me trancar nesse pseudoútero para fazer parir essas ideias que queria compartilhar.

Se no passado a singularidade dos modelos de homem, mulher, pai, mãe, masculino, feminino, nos oprimia e amputava, a pluralidade atual mais confunde do que nos orienta. Oscilamos do masculino para o feminino, da norma rígida para a ausência de regras e ordem.

Estamos vivendo uma grande carência de modelos. Modelos de ser humano no século XXI, em busca de mais e melhor integridade, de jogar fora rótulos sob os quais políticos e marqueteiros hoje deitam e rolam, enquanto a natureza e o desenvolvimento humano choram por abandono.

Ser íntegro, ou buscar integridade, é buscar por completude, totalidade, consciente e inconsciente, individual e coletiva, bonita e feia, feminina e masculina. É buscar tornar-se um indivíduo: aquele que não se divide, que não se pode dividir.

Termino agora, já de volta ao meu escritório, em domingo ensolarado, porque preciso preparar o almoço de dia das mães. Em homenagem a elas, quem cozinha aqui em casa, todos os dias, sou eu.

#36O MasculinoArtigo

O patriarcado e os arquétipos do masculino

por Lígia Ito

O termo patriarcado se refere à cultura influenciada e dominada exclusivamente pelo homem, simbolizado na figura do pai. No mito de criação da igreja católica, Deus criou o homem e, a partir dele, a mulher, gerados com assimetria sexual e distintas atribuições. A função da mulher era fundamental à espécie, através da procriação. A divisão de papéis baseada nas diferenças biológicas era, dessa forma, funcional e justa.

E se Deus ou a natureza havia criado essas diferenças, ninguém poderia ser responsabilizado pela desigualdade.

A biologia masculina proporcionou maior capacidade física e agressividade, destacando o homem como melhor caçador e, por suas destrezas com armas, melhor guerreiro. Como chefe de família, passou a delimitar suas terras, cuidando do plantio, da colheita e da estocagem para a defesa e proteção de seus descendentes. Marca registrada da agricultura antiga, o patriarcado se tornou a base da civilização ocidental de diferentes maneiras, sendo a força responsável pela organização, ordem e produção e, assim, a subsistência. Ditou modelos de masculinidade e feminilidade, fortalecendo um padrão monogâmico, heterossexual e de expressão da individualidade. 

E no silêncio da noite, fortaleceu a repressão da sexualidade, trancando a sete chaves os desejos mais íntimos de uma parcela da humanidade.

Os argumentos religiosos do século XIX foram substituídos pelos embasamentos científicos da teoria Darwiniana, que postulou a supremacia da sobrevivência da espécie sobre a autorrealização individual, ressaltando o papel da mulher na procriação e maternidade. Sigmund Freud destacou a ausência do pênis e a busca pela compensação na psicologia do feminino. Posteriormente, a biologia social considerou a maternidade não apenas um papel socialmente designado, mas, também, o que melhor se encaixaria às designações físicas e psicológicas da mulher. Assim, o patriarcado, atendendo a necessidades econômicas, políticas e sociais da civilização, se perpetuou através da história, reforçando a supremacia do masculino. 

O progresso visível trazia benefícios a muitos, mas as insatisfações ocultas viriam a provocar grandes prejuízos a todos.

Com a revolução industrial, as mulheres foram obrigadas a trabalhar para sustentar suas famílias, o que lhes possibilitou um status financeiro e o acesso à educação. O modelo de casamento e das leis da era agrícola passou a ser questionado, e as mulheres começaram a se organizar para participar de marcos culturais e políticos, iniciando a luta pelo direito ao voto.

Após as consequências nefastas da Segunda Guerra Mundial, “a regra do pai” passou definitivamente a ser contestada pelas mulheres. Com o advento da pílula anticoncepcional, a gravidez passou a ser uma opção da mulher na obtenção do prazer e no controle da natalidade. Os homens foram favoráveis a essa conquista feminina em favor da sexualidade compartilhada, apoiando, inclusive, a oposição ao patriarcado. Isso pouco adiantou, pois a luta contra a dominação masculina já estava iniciada, incluindo a liberação das leis do divórcio e contra os estereótipos sexuais femininos.

As insatisfeitas se armavam.

Nos anos setenta, a contracultura, o movimento dos direitos civis e antiguerra deram força à criação do Movimento da Liberação da Mulher. O patriarcado desmoronou sem que o homem pudesse perceber o que estava acontecendo. No século XX, as estratégias masculinas de acasalamento foram desconstruídas, assim como o modelo de dinâmica sexual entre homem e mulher. O movimento feminista exigiu uma mudança nas regras de conquista, sem oferecer novas. O sexo casual e a monogamia em série se tornaram direito de todos. O casamento como um sistema designado a uniões permanentes fracassou, e o divórcio se tornou inevitável. “Até que a morte nos separe” era tempo longo demais para se esperar. 


A raiva domina. A guerra começa.

A era da tecnologia abriu espaço para o relacionamento virtual: seguro, sem dor e sem contato. Para os que ousaram passar para o mundo real, os aplicativos de encontro determinaram as regras de onde, quando, como e com quem. Os homens se tornaram inseguros; as mulheres, impositivas. Nasceu a identidade de gênero. Mas o patriarcado, ainda que disfarçado, sobreviveu. Na mente e na atitude masculina e lá, muito no interior, da mente da mulher.

Todos estão perdendo: arquétipos do masculino

Carl Jung, renomado psiquiatra e psicólogo suíço, reconheceu o poder psíquico dos arquétipos, os quais residem no nosso inconsciente coletivo. São traços internos comuns a toda a humanidade, cuja forma de expressão é influenciada pela nossa experiência individual e cultural. Diferentes arquétipos estão subjacentes à experiência humana, mas alguns são fundamentais, pois abarcam expressões importantes e comuns ao nosso funcionamento mental e emocional. No universo masculino, três arquétipos se destacam: o soberano, o guerreiro e o sábio. 

O arquétipo do soberano traduz o senso de finalidade e direção no mundo, a busca das melhores decisões para viver a vida, a carreira, como administrar o espaço ao redor, seja familiar, profissional ou social. A energia natural expressa é a liderança, a decisão, a maturidade e o poder; há sabedoria compassiva e disponibilidade para ajudar no amadurecimento alheio. A expressão deste arquétipo é quase inexistente no mundo atual.

O arquétipo do guerreiro possui atributos de nobreza, justiça e proteção a algo de grande valor. Um exemplo desse arquétipo está nos samurais, que, sob o comando de um senhor corrupto ou imoral, procuravam um novo mestre. Esse servidor necessitava de um chefe que o controlasse e o enviasse a missões de proteção a pessoas e ao território. Esse arquétipo é hoje melhor representado pela energia masculina que parte para a ação no mundo, define limites, realiza tarefas e alcança objetivos, ou seja, o trabalhador.

O arquétipo mítico do homem sábio tem origem nos magos do mundo antigo e nos brâmanes indianos, cuja grande motivação é a solução de problemas. Domina todos os tipos de pensamento, o racional, o lógico e o criativo, servindo como o conselheiro ou consultor do líder. Há uma atração pelos desafios intelectuais, mas sem muita consideração pelas consequências emocionais. É uma apresentação bastante comum, nos dias de hoje, no mundo financeiro e no desenvolvimento tecnológico.

Como os arquétipos do masculino se relacionam com o mundo atual? A mudança profunda de valores e crenças do mundo moderno e os novos posicionamentos de gênero tornaram o homem atual indefeso. Por procurar respostas fora de si mesmo, ficou ressentido e foi à forra. Desconectou-se de si mesmo e de suas emoções e personificou padrões do masculino que o distanciaram das forças psíquicas em sua totalidade. Resta a este homem olhar-se no espelho e ver com profundidade o que reflete, exercitar plenamente suas capacidades emocionais e reestruturar sua nova imagem perante uma sociedade que busca por igualdades e sofre para se reconstruir.

Recomeço.

#36O MasculinoArteCulturaLiteraturaMúsica

Narciso ao espelho: a masculinidade em Luís Capucho

por Rafael Julião

Fotos: Ana Rovati

1.

O primeiro registro das canções de Luís Capucho, embora só lançado em disco em 2003, aconteceu em um show no Rio de Janeiro em 1995. O álbum, chamado Antigo, apresenta uma das primeiras descrições explícitas do masculino em sua obra. A canção “Amor é sacanagem” afirma:

Felinos têm o desenho do rosto mais belo
Que o desenho do rosto dos homens
Quanto ao resto do corpo, homens são mais concentrados
Quando olho o corpo e o rosto de um gato sei ver
Mas quando olho você
Com seu corpo concentrado
Assim desse modo fico louco, eu sou louco, sou vulgar
Sou vulgar no amor
O amor é sacanagem
Não tem poesia, nem matemática, o amor é magia

A “magia” da transfiguração é elemento fundamental do processo de criação de Luís Capucho. Movido por uma espécie de pulsão do olhar, o compositor tudo transforma por meio dos sentidos, dando relevo à potencial estranheza de todas as coisas. A canção começa com a imagem dos felinos, tão marcados por sua inteligência arisca, sua precisão de movimentos, sua sensualidade espontânea. Ainda que estes tenham o desenho do rosto mais belo, os homens são descritos como “mais concentrados”, em uma caracterização estranha tanto em si como na comparação. 

Vejam que, de um lado, o corpo masculino aparece carregado de densidade física e simbólica e, de outro, revela-se o caráter central que a visão da masculinidade ocupa no olhar desejante dessa voz que canta. Declaradamente despido da idealização poética ou da lógica matemática, é por meio dos sentidos aguçados – concentrados – que o real se transfigura. Ou seja, é justamente na vulgaridade (desdobrada entre suas dimensões de banalidade e erotismo) que a magia se realiza.  

2.

Além das canções, Luís Capucho também ficou conhecido por seus romances, dentre os quais destaco o Cinema Orly,de 1999. O livro é uma narrativa de evidente caráter autobiográfico, na qual acompanhamos as incursões do narrador-personagem nos cinemas pornográficos do centro do Rio de Janeiro, especialmente o que dá título à obra. Assim, somos apresentados ao espaço e seus frequentadores e assistimos à saga do protagonista em busca de prazer, mas também de um namorado. 

A descrição do ambiente comenta os filmes pornográficos que se passam na tela, mas está concentrada no que acontece na contratela, entre as poltronas do cinema. Assim, o sexo eminentemente heterossexual da pornografia (onde homens másculos performam uma sexualidade viril) refrata-se na plateia sob a forma de experiência homoerótica. Nesse jogo de espelhos, evidencia-se o culto narcísico e falocêntrico da masculinidade, que está na medula deste livro e também é tema de destaque nas canções de Luís Capucho.

Já no primeiro parágrafo do texto, o narrador registra seu deslumbre em “ver na tela homens jovens nus com paus grandes, pernas abertas, muito grandes e gostosas, e sacos onde se pressente a umidade e o odor, deixando o nosso peito incandescido e a respiração inflamada”. Em outro momento, afirma: “Antes de beijar um homem, achava que vê-lo nu, aberto, os pelos amaciando a atmosfera, saco e pau escancarados junto ao tufo de pentelhos era encontrar Deus”.

O cinema e o sexo, na tela e na contratela, exibem-se como espetáculo de imagens, cheiros e sensações, que são captados tanto em sua beleza erótica como em sua atmosfera grotesca de suor, penumbra e fumaça, formando um conjunto obsceno em que o horror e a maravilha conjugam-se em vez de se oporem.

3.

O jogo de espelhos entre o que se passa dentro e fora da tela não é o único que se desenvolve no livro de Capucho. Nesse sentido, é fundamental pensar na centralidade do tema da masculinidade para a compreensão de sua obra. Em dado momento de Cinema Orly, afirma-se:

A masculinidade, representada por um caralho, era tudo que eu queria possuir, que eu invejava, que achava bonito, como se eu fosse uma mulher, como se eu fosse uma criança, um anjo, um bicho, uma ave e do que mais gostava era ir ao cinema Orly e, sendo tudo isso, ver minha imagem refletida em sua lagoa, como na história de Narciso, ou de Eros e Psiquê de Fernando Pessoa.

Nessa passagem, ficam evidentes os componentes narcísicos e falocêntricos da representação da masculinidade em Luís Capucho. A centralidade do falo é uma forma de atingir a transfiguração do ser e das coisas, fazendo desse sujeito mulher, criança, bicho, ave e, na projeção almejada, homem, masculino. Não por acaso as citações de Narciso (cujo lago se sobrepõe ao próprio Cinema Orly) ou de “Eros e Psiquê” de Fernando Pessoa, em que um príncipe que sonhava com a princesa descobre, ao final, que “ele mesmo era a princesa que dormia”. O texto de Capucho vai representando, assim, a fruição livre do prazer que conduz o sujeito à sua emancipação, à sua essência.

Já nas páginas finais do livro, o narrador nos conta que, quando criança, observava um rapaz lindo de vinte anos, sobre o qual diz: “Para mim esse rapaz era o símbolo da virilidade adulta e sonhava ansioso que eu completasse vinte anos para, enfim, estar possuído da graça de ser um homem”. E conclui:

Pois o Orly trouxe-me, antes do tempo pensado, essa masculinidade adulta tão esperada, embora não passasse de uma bicha. […] No Orly, não era uma bicha feminina nem masculina. Para mim, esse nada que eu era, a ausência de formação de imagens sensuais no meu espírito era a masculinidade, contribuía para ela meu corpo, minhas roupas, meus pelos, minha voz. 

O gênero romance, como nos ensina Lukács, é uma narrativa em que o protagonista atravessa uma jornada em busca de conquistar sua essência. O fragmento acima, posto na parte final do livro, deixa claro que essa masculinidade, definida de modo particular, como um processo a um só tempo interior e exterior, é o ponto de chegada dessa aventura, ainda que as reiteradas incursões no cinema pudessem nos levar a crer, equivocadamente, que o sexo homossexual ou a conquista do namorado eram os objetivos últimos da empreitada.   

O livro Cinema Orly é, desse modo, uma representação da homossexualidade masculina mas, sobretudo, da masculinidade homossexual, impulsionada também por um processo de identificação narcísica. Assim, o objeto desejado é também espelho, onde se encaram o desejo de ter e de ser. 

4.

O livro Cinema Orly tem uma obra-irmã que liga o Luís Capucho escritor ao compositor de modo mais explícito. Trata-se do disco Cinema Íris de 2012, em referência a outro célebre cinema pornográfico do centro da cidade. A canção-título fala na “moça que faz striptease no cinema íris (…) enquanto homens masturbam-se na neblina do cinema”. Em dado momento, esses homens aparecem assim descritos:

Homens muito gordos, com barrigas enormes
Homens maravilhosamente magros e altos
Muitos masculinos
Muitos femininos
Jovens com carisma, com charme
Com pernas muito gostosas abertas
Aqueles tinham caras de veados
Homens com caras cabeludos
Homens com caras de bigode
Homens com caras travestidos
Homens com caras de hospício
Homens com caras de mal

A repetição de “homens” aponta para uma multiplicidade adjetiva girando em torno de uma mesma força substantiva. Apesar de opor, em dado momento, os homens “masculinos” aos “femininos” (o que nos dá a dimensão do quanto essa distinção é facilmente compreendida e naturalizada), a canção se empenha no caráter concentrado dos “homens” e na atração que exercem sobre o sujeito. 

Descrição muito semelhante aparece em Cinema Orly, reforçando o parentesco entre as duas obras e as duas formas de expressão de Capucho:

Havia homens muito velhos, mancos, com uma das pernas decepadas, muito gordos com barrigas enormes, homens maravilhosamente altos e magros. Muitos masculinos, muitos femininos, jovem com carisma, com charme, com cara de hospício, homens de bigode, de barba, imberbes, antipáticos, nojentos com cara de idiotas, louros, morenos, negros, mulatos, cabeludos, carecas, homens banguelas, fedidos, com nariz grande, homens robustos, mignons etc.

5.

Voltando ao disco Antigo, a canção “Mamãe me adora” faz um curioso jogo edipiano de espalhamentos, em que mais uma vez se exercita o caleidoscópio descritivo de homens. A letra começa com “Mamãe me adora/ profundamente ela me quer/ mais do que quis outros homens que ela também amava/ que ela também devorava”, e se desenvolve na constatação: “eu também sou feliz com homens/ como os que amou mamãe”, para chegar a uma lista extensa de contemplação do masculino: “homens que são cheios de tensão/ como diabos”, “homens que são como aparição/ como nossa senhora”, “homens que são belos e bons, sentados, homens em pé, fortes, feios, gordos, galantes, machos, motoristas, rudes, ruins… delicados, generosos, gentis, bravos, brutos, crespos, lisos, presos, soltos, suaves, sofisticados, simples, soldados, ciganos, pedreiros, patrões”.

Em um arco entre o diabo e a santa, o olhar sobre o masculino se multiplica novamente entre diversos adjetivos, todos unificados e conjugados em uma dimensão essencial – o masculino. 

6.

Outras duas canções de Luís Capucho ajudam a pensar o masculino em sua obra, ambas unidas pelo signo da flor. 

A primeira delas, “São flores”, afirma: “os rapazes são deuses pra mim/ que tudo são flores/ os caralhos são flores pra mim/ são deuses com flores/ são flores pra mim”. Novamente, observamos o culto falocêntrico que atravessa Cinema Orly , reverberando a citação em que o “caralho” aparece como representação da masculinidade. Outra vez, também, a masculinidade aparece complexificada pela aproximação com uma atmosfera lírica e sagrada, conduzindo à beleza e à contemplação. É notável, no fragmento, o apelo à imagética clássica, que conjuga a natureza e o divino, interseccionada pelos corpos expostos e bem-feitos dos deuses entre flores.

Isso nos leva à canção “Homens flores”, parceria com Marco Sacramento, em que se afirma:

Os mundos são mais belos
Quando olhados pela janela
E as colinas estão repletas de homens fortes
E eu olho pra elas porque elas são o mundo inteiro
E eu olho pra eles porque eles são o mundo inteiro
E eu olho pra elas porque elas são meu terreno
E eu olho pra eles porque eles são meu terreno
Onde eu vou plantar
Onde eu vou plantar
Flores homens
Homens flores

A imagem, posta em tela pelo quadro da janela, apresenta colinas repletas de homens fortes, em mais uma pintura verbal de natureza classicista. A arquitetura da composição é igualmente equilibrada, em frases límpidas e inversões de referentes que provocam todo um efeito. O sujeito olha para elas, as colinas, e para eles, os homens, conjugados como síntese do mundo inteiro e como “terreno” onde se podem plantar “flores homens”, “homens flores”. 

Aqui, feita a aglutinação entre homem e natureza, os termos “flores” e “homens” são explorados em suas dimensões substantivas e adjetivas, reivindicando o paradoxo do masculino – símbolo de virilidade e beleza, força e delicadeza, estranheza e alumbramento. A masculinidade, posta assim ao espelho (flores homens/ homens flores), funciona como objetividade e transfiguração, visão exterior e revelação interior, unidade e multiplicidade.   

A propósito, narciso é nome de uma flor. 

#36O MasculinoArtigo

Chiaroscuro

por Mônica Paes

O trabalho Chiaroscuro nasce em 2019, quando iniciei meus estudos sobre as questões de gênero, e conheci a drag queen brasileira Rita Von Hunty, (Guilherme Terreri), hoje um(a) grande amigo(a) e fonte de inspiração deste trabalho. Rita é conhecida por suas aulas e palestras, uma marxista apaixonada pelo que faz, que acredita na educação, cultura e arte como forças motrizes na construção de um país melhor e mais evoluído. 

Foi Rita quem me aproximou da cultura drag queen. Nossas conversas despertaram o meu interesse por essa arte, até que recebi o convite para conhecer um grupo formado por Alexia Twister, Mercedez Vulcão e Thelores, durante os ensaios para uma peça de teatro. Sim, ao contrário do que eu imaginava, elas não estavam fazendo show em uma casa noturna, mas em um palco de teatro revelando seus traumas. Nesse momento, percebi que os nossos mundos artísticos conversavam e que eu precisava retratar e mostrar ao mundo o que eu senti ali como uma mera espectadora. Essa experiência não poderia ser só minha, ela deveria ser registrada pelo meu olhar, para que outras pessoas pudessem sentir o que eu senti vendo aquele espetáculo: orgulho, sim, orgulho de ser humano. 

Ali, na plateia, enquanto observava o feminino ser exaltado e elevado à última potência, em dado momento parei de pres- tar atenção e me perdi em pensamentos. Comecei a traçar pararelos entre o que eu via e o que eu sentia, e foi quando tive um flash. Meus olhos passaram não mais a ver, mas a perceber que a alegria de viver está dentro de nós. Soube que a fotografia seria a melhor forma de escrever esta história. 

Chiaroscuro é uma série dedicada a exaltar a arte drag brasileira e a mostrar que a sombra que permeia a vida de seus personagens não faz parte desta arte, mas possui luz própria, e esta luz interior foi o que busquei retratar nessas fotos. 

Infelizmente, a sombra é algo presente na vida de uma drag queen, uma vez que vivem sempre à margem da sociedade. Por muitos anos, a arte drag precisou se esconder no Brasil, travestida de ilusionismo, existindo sem ser notada, praticando uma invisibilidade que fazia parte do seu cotidiano. Sem permissão de serem vistas montadas pelas ruas, só lhes restava existir não existindo. 

Os anos passaram, mudanças aconteceram, mas a intolerância pelo diferente se mantém presente, colocando em questão a própria dignidade dessas pessoas. O presente trabalho visa evidenciar estas artistas, colocando-as no lugar em que merecem, no palco da sociedade e da vida. Colocando-as entre nós. 

As fotos que seguem servem de instrumento ao talento de Alexia, Mercedez e Thelores. 

#36O MasculinoArteMúsica

Conversa Polivox: Bruno Cosentino

por Mariana Quadros

Fotos: Ana Rovati

Vou começar nossa conversa pensando no intervalo do seu último disco até este que sai agora. Entre 2015 e 2017, você vinha lançando um álbum por ano. Houve aí uma espécie de espera…

Eu queria fazer um disco por ano e eu vinha fazendo, porque era o que eu podia fazer. Quer dizer, é relativamente fácil gravar, e eu sinto que a cada disco eu ando para frente, mato um fantasma. E uma coisa que eu fui percebendo – e que hoje é bem claro para mim – é que gravar um disco, publicá-lo, é sobretudo um processo terapêutico. Então, de fato, tiro coisas de mim e ponho nas canções. Quando ponho para fora, de alguma forma dou uma resolvida nelas. Só que algumas coisas aconteceram aí nesse tempo. Uma foi que eu defendi meu doutorado sobre amor e erotismo nos poemas e canções de Vinicius de Moraes, lá na Letras [da UFRJ]. Outra coisa é que antes eu não tinha trabalho com horário fixo, e agora estou trabalhando no Instituto Moreira Salles há dois anos. E mais: esse disco está gravado há muito tempo. Eu já podia ter lançado, não sei, talvez até um ano depois do anterior, mas foi quando teve a tese, quando um montão de coisas começaram a acontecer, e aí veio a pandemia. É um pouco crise dos 40 também, tudo junto, sabe? E esse foi o motivo pelo qual ficou só para agora, com um intervalo maiorzinho.

Você também lançou um single recentemente, “Canção do amor impossível”, que é lindo. E eu nem sabia que o Bad Bahia já vinha sendo gestado há mais tempo. Fiquei pensando que a divulgação do single e do álbum, embora eles falem de universos muito diversos, também ajuda a revelar a complexidade do seu trabalho, uma unidade multifacetada que as suas músicas abarcam. Fiquei pensando de a gente conversar um pouco sobre isso e um pouco sobre essa experimentação experimentação não no sentido de um certo “fetiche do novo” vanguardista, mas um impulso que percebo em realizar experiências intensas, em tentar se aproximar/apropriar criativamente de um repertório que é vasto, que vai do Guinga ao Antonio Cicero, do experimental ao cancioneiro popular brasileiro, e, ao mesmo tempo, há uma busca por fazer vibrar sua música de uma forma singular. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso, sobre esse diálogo entre invenção, recomposição, inovação e comunicação na sua música.

Eu gosto muito de experimentação, inclusive a formal, ligada às vanguardas. Agora, para mim, ela vai além disso. Ela acontece a cada vez que você faz uma canção, no sentido de que cada objeto, por sua singularidade, vai ter uma forma só dele, que não sabemos qual será antes de começar a fazer; não tem uma forma predefinida. Mas outra coisa que eu também busco é comunicar. Gosto de estender a mão – uma vez eu li em algum lugar um autor que estabelecia uma distinção entre Matisse e Picasso, dizendo que Picasso fazia uma arte mais do choque ou do confronto e Matisse estendia mais a mão ao público, apesar de ambos serem igualmente vanguardistas. Então, dentro dessas tipologias, eu sou mais o que estende a mão. E realmente gosto de muita coisa diferente. Essa “Canção do amor impossível” é mais antiga ainda do que o Bad Bahia; eu musiquei um poema do Antonio Cicero e chamei o Guinga para tocar. São universos muito diferentes, os dos dois, e gosto de pensar que, no fim das contas, só foi possível juntá-los porque tinha eu ali como ponto de convergência, que gosto tanto de um como de outro. Essas subdivisões, acho que são motivadas mais por questões sociais e antropológicas, de grupo, de cena etc.; elas sempre me interessaram muitíssimo pouco. 

Eu queria voltar um pouquinho à letra, ao seu trabalho como letrista e como intérprete. No caso da “Canção do amor impossível”, você faz o trabalho de composição da música para um poema do Antonio Cicero. Já no Bad Bahia, você faz todas as composições, letra e música. Eu queria ouvir você falar um pouco sobre essa questão, sobre seu trabalho como letrista. Eu percebi que no Bad Bahia suas letras se expandem mais em alguns momentos, você tem uma espécie de avanço nesse trabalho de composição – não sei se é falar de enriquecimento, mas de variação, talvez.

Eu acho, sem dúvida, que é o disco em que eu sou melhor letrista – melhor no sentido de recursos poéticos, de liberdade poética, liberdade de associações, de criação de imagens e sons com as palavras. Fiz as canções todas num mesmo período. Você deve ter percebido que elas conversam entre si. Pedaços de letra e questões ficam se repetindo entre elas, tanto que eu as tenho como uma única canção continua, sabe? Como eu fiz umas próximas às outras, ia fazendo às vezes com os mesmos acordes. Então, elas não têm só um traspassamento de letra e temas, mas também a mesma paleta de cores. Isso também foi sem querer, porque não faço as coisas de propósito; não conceituo antes, conceituo durante e depois. Acho que criar conceito antes quebra muito a história, a coisa acaba ficando um pouco amarrada. E também, nessa época, eu estava assistindo a uma aula de poesia portuguesa com o Jorge Fernandes de Silveira lá na Letras, aí eu conheci a Luiza Neto Jorge, que amei de paixão (inclusive, tem um versinho dela lá em uma das canções), e reli poemas do Herberto Helder, o que foi incrível, porque eu estava nessa onda de uma sensualidade mais hermética – tinha enchido o saco de interpretar e encontrar sentido nas coisas e preferia aquilo que não fazia sentido, mas vibrava de um modo misterioso, ou em outros termos, de uma experiência que atingia mais os sentidos e menos a cognição. Muitas coisas desse disco eu não entendo; foi uma coisa de processo de criação, as palavras vão vindo, né? Elas se encaixam, pelo som, vêm vindo, vão soando bem e, às vezes, você nem sabe o que aquilo quer dizer. Acho que, de fato, houve um avanço nesse disco. São minhas melhores canções, apesar de não serem exatamente as de que mais gosto. 

Eu ia fazer uma pergunta sobre isso mesmo, sobre essa questão da busca do entendimento, porque tem um verso que fala em “negar a razão, salvar a paixão”. Essa é uma busca que se repete nas canções: tentar entender o outro, encontrar o outro; o outro se perde, você volta a interrogá-lo. Então, fiquei me perguntando: há lugar para a razão nessa busca por entender ou é por outra via que a coisa caminha?

Eu sou muito racional, então acho que sempre tem lugar para a razão – só que uma razão muito embebida de sentimento, de afeto, de mistério. Não é uma razão absoluta, é uma razão que conhece seus limites, mas sempre está presente, a razão sempre está.

Você lê e estudou poesia, fez o doutorado sobre Vinicius de Moraes e trabalha no Instituto Moreira Salles com literatura. E aí eu fiquei observando esse gozo da materialidade das palavras, não só nas letras, mas também na sua dicção; tem um lance na maneira como você entoa as canções que também está relacionado a isso. Eu queria que você falasse um pouco sobre essas linhas enredadas da literatura e da música.

Antes de tudo, eu era melodista. Nunca fui músico, que conhece nota e tal, mas eu fazia melodias de que eu gostava, e fazia letras que detestava. A certa altura, fui fazer aula de ouvinte na Letras; conheci o Eucanaã [Ferraz], que foi a primeira pessoa com quem eu assisti a aulas lá. Achava que a poesia ia me ajudar a fazer letra. Mas, depois, esqueci isso e fui lendo e conhecendo poemas e poetas. Aquilo ficou dentro de mim, e teve uma época em que percebi: “poxa, eu já sou capaz de julgar se um poema é bom ou não”. Porque ler poema é uma coisa muito difícil. Eu já tinha ganhado alguma experiência, lido um tanto de coisa. Mas é tudo muito não planejado. Você vê, fiz um doutorado em poesia brasileira; nunca pensei que pudesse fazer isso. Ainda me acho muito outsider dentro da universidade e da literatura mesmo. O que eu sabia é que queria fazer canção. No meu primeiro disco, eu já sacava que as letras vinham um pouco pelo som. Fui aprendendo a me soltar, a me deixar levar – aí, pronto, fui curtindo muito a materialidade das palavras. Pensando agora, tem um reencontro do melodista primeiro que eu era, com o som das palavras, que sou mais capaz de manejar agora. No meu disco anterior, tem uma canção que se chama “Sou frágil” e numa parte diz “doida de prazer”; eu brinco com a pronúncia, e fica parecendo também “doída de prazer”. Quando eu saco que tem esses duplos sentidos, eu curto. Isso acontece algumas vezes. 

Outra coisa que eu ia perguntar é sobre o trabalho com os músicos. Como foi a produção e a gravação dos discos?

Os dois anteriores eu gravei com uma banda que se chama Exército de Bebês, que são quatro músicos incríveis. O primeiro com eles, que foi meu segundo disco, Babies, foi um disco de banda. A gente se reuniu, gravou, ensaiou um pouco e gravou. Eu gosto muito desse disco. O segundo com eles, que é o meu terceiro, aí já teve orquestra de cordas, teve também sopro, porque eu tinha um pouco mais de dinheiro, de um edital da prefeitura do Rio. A gente foi gravar com o Chico Neves, que é um produtor renomado e incrível, que mora perto de Belo Horizonte. A banda toda foi, só que não tinha mais a unidade da banda, ainda que tivesse um pouquinho, mas a gente variou mais os instrumentos. Com o Exército de Bebês, na verdade com todo mundo, é assim, eu gosto de ficar recebendo o som deles; a gente começa a tocar, e eles ficam lá tateando a música, conhecendo, e eu gravo tudo. Aí depois eu ouço em casa e faço a colheita. Monto o quebra-cabeça. O processo com os músicos é esse, ainda que nesse disco eu tenha feito diferente um pouco. Além do Guilherme [Lirio] e do Pedro [Fonte], do Exército de Bebês, chamei o Marcos Lobato, que é uma das pessoas que eu mais amo no mundo – ele tocava n’O Rappa, mas O Rappa acabou, e tem também uma banda chamada Afrika Gumbe, um cara muito bom de swing de música africana, enfim, uma pessoa muito incrível e musical. E a outra é o Marcos Campello, que é um guitarrista que eu amo também e com quem já fiz muita coisa. Ele sempre participa dos meus discos de alguma maneira; a gente gravou muita coisa sozinho também. É muito ligado em música de vanguarda e experimentação. A gente se dá muito bem e eu sou fãzaço dele. O Marcos foi também o produtor musical do disco. Ele alinhavou todos os arranjos de base que eu, Guilherme, Pedro e Lobatinho tínhamos feito. Essa história é até mais longa, esse disco ia ser de voz e violão, mas depois eu conto isso, senão vou ficar falando demais, vai ficar chato.

Agora eu quero ouvir.

É porque eu fiquei com as canções desse disco por muito tempo; elas já estavam prontas. Eu as gravei com voz e violão no celular, ficava ouvindo toda hora, já tinha feito até uma ordem. Mostrei para o Marcos Campello, e ele sugeriu que eu fizesse o disco só com voz e violão. Cheguei a fazer show com ele assim, de improviso. Mas pensei: “não quero gravar voz e violão, porque acho que uma música ou outra não vai ficar legal”. Então decidi gravar com bateria e baixo, e eu tocando violão para manter o clima que estava no início. Só que ficou insuficiente, faltou arranjo. Mostrei as bases para o Campello, e foi ele quem deu um jeito nos arranjos, tocou o sintetizador e a guitarra, tirando uma coisa ali, botando outra coisa lá, regravando alguns baixos para ficar mais numa determinada onda. Ele foi o cara que produziu o disco.

A outra pergunta que eu ia fazer era sobre a capa, que me parece um elemento importante dos seus álbuns. Você vem assim numa sequência de partes de corpos. Tem o seu torso nu no Amarelo, tem o seu rosto metamorfoseado, com os olhos obscurecidos, no Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer, e agora tem essa espécie de fragmento de rosto e de uma garganta – mais oculta do que aparente, explodida, ofuscada. Queria que você falasse um pouco sobre essa imagem.

Desde cedo, eu disse para mim mesmo: “eu quero fazer a capa desse disco”. Eu estava com isso na cabeça, mas não fazia por causa da crise toda. Só que aí a Ana [Rovati], minha amiga com quem sempre tiro as fotos dos meus discos, sabe que eu não gosto de me ver de frente – eu realmente detesto. Então, sempre fazemos alguma coisa para estragar minha cara. Nesse último, eu fiquei muito na dúvida do que fazer. Essa foto que eu usei se parecia um pouco com a capa do primeiro disco, só que eu gostava muito dela, então, um pouco conceitualmente, resolvi a questão, pensei: “vou transformá-la em negativo, porque eu acho legal e porque, de certa forma, esse disco, para mim, é um negativo do primeiro”. Depois, percebi que essa foto quase revela aquilo que está oculto no primeiro, porque no Amarelo corta aqui no pescoço, e no Bad Bahia vem até a boca – quem sabe no próximo eu mostre minha testa? (risos). Essa coisa das partes do corpo talvez venha da vontade de tirar minha cara, embora no primeiro eu tenha tido a intenção de expor o corpo – porque eu tinha muita vergonha, eu tinha uma banda e tinha vergonha até de fazer uma carreira solo, com meu nome na frente; então pensei “vou fazer com meu nome e vou mostrar meu corpo”. No fim das contas, ali não sou eu, né? Isso aprendi. É meu nome, mas não é meu nome. Tudo que está ali é um personagem de mim mesmo, como meu filho disse uma vez – ele fez uma coisa com carrinho e eu disse ”não faz isso”, aí ele falou assim “mas foi o carrinho”, e eu perguntei para ele “mas quem está dirigindo o carrinho?”, e ele respondeu “é o meu outro eu”. Então é isso, nessa exposição impessoal que acontece com a canção, são meus outros eus que estão dando pinta. 

Fiquei pensando também sobre a capa: “é uma garganta, que é por onde passa o som, mas um som ainda antes da diferenciação e do fonema” – tem muito disso no disco, não é?

Que bonito isso, poxa, bonito. Aí já me faz até gostar mais da capa, porque é verdade mesmo. Bonito isso que você falou, adorei.

Quero perguntar agora sobre o nome do disco, Bad Bahia. Sobre a paisagem geográfica, afetiva, musical, tem tanta coisa nesse nome… 

Posso ser muito sem graça nessa resposta. Quando fiz a primeira música desse disco, ela se chamava “Bad Bahia”, porque logo no início fala assim “eu ria quando me dizia para evitar as bads”. Sempre dou um nome qualquer quando organizo no Google Drive esses arquivos – de muitos álbuns que tenho na cabeça, alguns que já fiz e outros que ainda não fiz. Eu organizo tudo lá em pastinhas e dou um nome para cada pastinha. Escolhi Bad Bahia porque tinha que dar um nome, e logo gostei dele. Eu acho muito bom esse nome, adoro.

Sonoramente é bom.

Sonoramente é bom. E essa é a resposta no fim das contas: gosto do som. Tentando entender depois o nome, percebi que esse disco tem três lugares: São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Isso eu percebi depois, e achei legal. 

Há uma espécie de tensão que acompanha a sonoridade da sua voz. Uma espécie de jogo. A palavra não é nem “jogo”, mas uma relação tensa entre essa voz que é suave e que ao mesmo tempo se descasa em algum momento e se torna uma voz que pode ser áspera. E eu fico pensando que isso fala muito do mundo que você criou com as suas canções, da sua “mitologia pessoal” – expressão sua que eu li em algum lugar –, e fala muito sobre isso, sobre esse outro eu. 

Minha voz é suave. A certa altura, enjoei dela – não que eu a amasse antes, não tenho muito isso; eu tenho prazer em cantar, isso sim. Mas aí teve um momento em que enjoei da minha voz e fui perdendo o prazer de cantar. Não sei se era o timbre ou o jeito de cantar. Não sei como que começou isso. Então, quando fui convidado a gravar uma canção do Cazuza, pela primeira vez fiz uns vocalises, me soltei mais, era eu mesmo, o que eu gostava, sabia e podia fazer. Enfim, me soltei musicalmente. E gostei dessa liberdade que me dei. Acho que eu ficava muito contido, não me permitindo errar, desafinar. E aí eu fui fazendo isso para sempre, desde o primeiro disco. Tinha uns gritos, tinha até muito grito. Pode ser que seja o desejo de criar um contraste com a minha voz, que é muito melíflua. Eu gosto desses arranhados, eu gosto do ruído. Então, já que eu posso ser tão afinado, fui buscando desafiná-la de um modo de que eu gostasse. Porque eu detesto muita afinação, sabe? Por exemplo, a cantora que eu mais amo no mundo, a Nana Caymmi, semitona bastante. E o que faz ela ser linda, maravilhosa e a maior cantora do mundo é isso. Mas ela semitona lindo! Ninguém desafina como ela. Então, essa separação de afinação e desafinação, para mim, é muito dura. Eu gosto de som, e o som para ser bonito tem que ser belamente desafinado. Eu também frequentei durante um tempo a Audio Rebel, onde rolava uma ceninha de improvisação livre e de música de ruído. Meu ouvido foi deseducado à última potência ali. Para quem cresceu ouvindo bossa nova e canção brasileira em geral, tudo muito afinadinho, afinadinho com dissonância, mas enfim, tudo muito afinadinho, eu me deseduquei bastante, e fiquei com uma alta tolerância à desafinação. Percebi isso em situações em que alguém dizia “ah, aquilo ali tá desafinado”, e eu falava “não, não ouço desafinado, para mim está ótimo”. Fui relativizando afinação e desafinação. Hoje penso mais em termos de que um som soa bem ou não, mais do que se está afinado ou não. 

O disco tem muito ruído. Ele começa com ruído e termina com ruído. Tem pigarro, respiração, buzina; isso fala muito do som do disco também. 

Desde o meu disco anterior, eu peço para as pessoas que estão gravando o disco deixarem os ruídos, não tirarem depois na edição. E eu peço para gravar com um microfone condensador, que é muito mais sensível, e propositalmente canto muito perto dele. Então, tudo que é ruído da boca e de baba imprime no som. Isso é intencional; eu gosto que isso esteja ali. Porque não gosto nada de som HD. Detesto. Acho que a sujeira está no centro da vida. Se não tiver sujeira, impureza, não fermenta. O Marcos Campello foi também grande responsável pelos ruídos desse disco. 

O corpo tem uma presença muito marcante nas suas canções. São muitas experiências do corpo: que transita, dança, goza, sofre. Em muitos momentos, parece que Bad Bahia se banha mais das inquietudes do corpo do que outros discos seus. Em “Ciúmes”, a gente ouve: “cada um tem seu lugar/ no corpo do outro no ninho da pessoa/ eu, que lugar tenho no seu?”. Em Corpos são feitos para encaixar e depois morrer, a carne triste já começava a se insinuar. Agora, ainda mais esse corpo é dúvida, angústia. Tem aquele verso do Bandeira: “Os corpos se entendem, mas as almas não”. O corpo escapa à alma. O corpo de Bad Bahia se dobrou às angústias do espírito? Ou o corpo deste álbum pode resistir de alguma forma ao desencontro?

Não sei (risos). Eu acho que pode – quer dizer, tem que poder. É tanta coisa… O sexo é uma alegria, mas ele pode ser muito triste também. No fim das contas, o sexo nunca é só corpo. Precisa ter algo além de corpo – as pessoas se entendem. É claro que podem só transar sem dramatizar ou querer viver juntas, casar etc. Mas são corpos de pessoas. Não são simplesmente dois pedaços de carne, entende? Dois pedaços de carne não se entendem. No fim das contas, o grande mistério do sexo é que ele é ao mesmo tempo muito profano, baixo, reles, e absoluto, sagrado. Rolam umas energias muito atravessadas. É uma questão muito complicada essa coisa do sexo – a começar que de uma transa pode nascer gente.  

O disco tem um tom muito melancólico. Tem uns momentos em que as canções doem. Mas tem um verso que me chamou atenção logo na primeira faixa, que é “melancolia que me resta pra renascer”, quase pensando em uma solução para a superação da bad. Eu fiquei pensando: como a alegria participa desse Bad Bahia?

Eu sou pela alegria, sabe? Sou muito melancólico, sempre fui. Mas descobri que a melancolia é essa moeda de duas faces. E eu escolhi a alegria, apesar de difícil. Atualmente, mesmo, eu estou tendo que fazer muita força, muito esforço, para aderir a ela – digo, como modo de vida, modus operandi, sabe? Eu sou de escorpião. Não entendo muito de signo, mas tenho uma amiga, a Rita, que também é de escorpião, e ela disse que o escorpião é o signo que renasce. Então isso ficou na minha cabeça. É verdade que eu estou querendo renascer sempre. 

As letras são muito melancólicas, o corpo muito angustiado, mas em algum momento é como se a sonoridade abrisse um espaço para esse corpo pulsar, para uma certa alegria. Então, às vezes a letra está falando de um desencontro, mas é como se a música ainda tivesse essa possibilidade do renascer. 

O canto é sempre alegre. O que é bonito, por exemplo, no blues. Aquilo tudo é só tristeza de amor, só que, quando você canta, é alegria do corpo. Não tem como não ser. O canto transforma a dor. É saúde do corpo. Então, você pode estar cantando a maior bad, só que aquilo ali é seu corpo reagindo em ato, com máxima vitalidade. Talvez venha daí uma espécie de exorcismo.

O disco é muito habitado pelo mundo pequeno do encontro íntimo. Mas tem um mundo que é o lado de fora, que às vezes aparece. Está em “útero mundo estúpido, escuro, desde o fim”, em “Bad Bahia”, e, em “Você não sabe o que eu sofri”, tem bastante mundo, tem miséria, “famílias morrendo de fome”. Que mundo a gente entrevê nesse Bad Bahia? E como, de alguma maneira, esse mundo miserável que a gente está vivendo participa dessa composição?

Eu acho que é menos pontual e mais a miséria do mundo desde sempre. É uma tensão que não cessará nunca entre um hedonismo e as mazelas do mundo que estão à espreita. Eu tendo a ser muito individualista. A política institucional me interessa muito pouco, porque não tenho nenhum alcance. Votar nos governantes é uma democracia insuficiente, na qual não acredito, ainda mais se pensarmos em todo aparato técnico e ideológico que criam as fake news, financiamento de campanhas etc. Mas sou muito político e atuo na micropolítica dos meios onde circulo, onde consigo intervir de alguma forma. Então, é por isso que eu, muito lucidamente, não participo dos grandes debates com intuito de intervir, de ação.  

A passagem de uma canção a outra é especialmente significativa no disco. Ou porque desloca a sonoridade em que o público tinha mergulhado na faixa anterior ou porque contribui para a construção de uma certa narrativa costurada entre as faixas. Fiquei pensando como é que seria isso no universo dispersivo da circulação digital, em que a pessoa pode comprar uma faixa só ou ouvir canções, de álbuns distintos, sugeridas por algoritmos.… Como é que você vê isso?

Eu não sei muito como as pessoas ouvem. Mas eu ouço álbum. Ouço o disco do início ao fim. Mas acho que as canções têm autonomia, elas são e podem ser ouvidas separadamente. Apesar disso, eu tento construir uma sequência. Construo menos uma narrativa pelo que está sendo cantado e mais pelo som. Ainda que também misture tudo. Mas acho que as pessoas podem ouvir como quiserem. Não tem problema. Ah, a pessoa está numa festinha e quer colocar aquela música de que ela gosta. É isso aí. Tipo, não vai ser nenhuma desse disco que ela vai colocar na festinha, mas pode colocar de algum outro, menos deprê (risos). 

É deprê, mas tem algumas que não são deprê.

Uma, talvez, né? 

É. Tem “O grande azul”. Até a “Bad Bahia” eu não acho que seja deprê. Ela é deprê quando a gente mergulha muito. Mas eu acho que ela só cresce. Ela vai te levando de alguma forma. Você vai quase entrando naquele ritual. Crescendo, crescendo, crescendo. Agora, se a pessoa colocar o disco inteiro na festinha não vai rolar. 

“O grande azul” é a única que é um axezinho, tem um pouco de sol ali. 

Eu tinha notado algumas que parecem solares, mas elas são falsamente solares. Mesmo “O grande azul” é solar e não é. Porque ela termina “sem horizonte”, e aí tem um verso que diz “não sei, mas agora veja onde a gente se achou.” Você lendo, tem a vírgula, mas cantando parece que é “não sei mais agora”, a coisa se altera. É como se o arranjo dissolvesse o tom melancólico, mas ele está lá. Quando você diz que dói, o coro também parece que dissolve a dor, como se tivesse um coletivo que cerca a perda. 

Essa música está falando da alegria, que a gente comentou no início. É um verso do Caetano [Veloso]: “apostar na alegria”. E essa música tem muita coisa do Caetano. Esse verso “veja onde a gente se achou” é dele também, da música “Aquele frevo axé”. Nesse disco, eu colei de muita gente. Tem Herberto Helder, Luiza Neto Jorge. Respondendo um pouco àquela pergunta da literatura e da música, não tenho nenhuma relação especial com a literatura. Ela está no mesmo patamar de uma troca de olhares, de uma emoção intensa, de um banho de mar. Aliás, está mesmo em patamar inferior, porque é uma experiência mediada pela leitura. E as experiências de verdade me servem mais para fazer canções do que a leitura propriamente. Da literatura, pego mais as palavras, daqui e dali. 

*

Deixa eu só contar uma coisa que percebi com esse disco – porque eu gostei tanto de você, de conversar com você sobre o disco, porque você fez observações que iluminaram muito as canções para mim. Um amigo, o Antônio Sobral, que é artista plástico, foi ver um show meu em que cantei essas músicas só com o violão. Quando o show acabou, ele estava lá fora fumando um cigarro e falou assim, ”ah, eu vi uma bela mulher, eu vi uma mulher linda no palco, de vermelho”. Aí eu pensei “gente, que legal”, porque eu estava de calça jeans e camiseta. E esse papo fez tanto sentido para mim, porque eu gosto muito do mito do andrógino, do Aristófanes, essa coisa do feminino-masculino povoa a minha cabeça, e vejo evidências desse mito o tempo todo. E eu tinha visto recentemente o filme Orlando, da Sally Potter, sobre o livro da Virginia Woolf, com aquela mulher maravilhosa, Tilda Swinton, e lembro de uma cena em que ela está na montanha, já tornada mulher, debaixo de uma árvore de copa enorme, linda, uma senhora poderosa, olhando seus domínios, e tive um sonho em que eu era como ela, e tinha uma sensação de plenitude sexual, era uma plenitude que não existe de verdade, porque no sexo, depois da tensão, vem o repouso, mas era como se o instante da plenitude tivesse congelado e eu tivesse, de uma forma calma, aquele prazer que você só tem no orgasmo, que é o contrário da calma. E essa foi uma sensação muito boa, de saciedade, de serenidade, de plenitude, ou seja, de um retorno à figura do andrógino, redondo, perfeito e completo. E o Antônio falou, então, dessa mulher no palco, e eu logo associei ao meu sonho e descobri que esse disco é, na verdade, essa mulher andrógina. Enfim, queria só contar essa história como um modo de agradecer a você, porque, assim como o Antônio, você também me revelou muito sobre o disco e me ajudou a entendê-lo. Obrigado. 

#36O MasculinoCulturaFotografia

Trégua

por Gui Mohallem

Refletir sobre o lugar do desejo é um gesto que orienta minhas pesquisas desde 2008. Se no santuário queer onde realizei a série Welcome Home (2012) era possível vivenciar outras maneiras de performar as masculinidades, essa não é uma experiência facilmente replicável fora daquele contexto de exceção. Para além desses espaços, as complexidades dos indivíduos não costumam encontrar tanta receptividade. O caldo cultural é infinitamente mais restrito de possibilidades e mostra, de forma evidente, o que acontece como um todo na masculinidade: uma roupa extremamente justa. 

A partir do meu envolvimento com o ativismo LGBT+, fui apresentado a diversas questões trazidas pelas mulheres trans, bissexuais e lésbicas — questões essas tão difíceis quanto libertadoras. A exposição a tais discussões contamina a produção pessoal e transforma profundamente os entendimentos e abordagens sobre o desejo. 

Uma das lições que aprendi é que o mesmo machismo que tenta castrar as feminilidades também tenta constranger as masculinidades a um espaço de sentidos simplesmente inalcançável, pautado pela busca da potência, da autossuficiência e pelo desprezo por qualquer traço do que entendemos como feminino – a misoginia nossa de cada dia. 

O conjunto de imagens apresentado a seguir foi organizado especialmente para esta edição da revista Amarello e busca atualizar esse gesto/desejo em imagens, numa espécie de pensamento em público. O que há no masculino para além do macho, do falo, para além da autodeclaração de potência? Quem cabe aí? Quem efetivamente consegue? O masculino cego diante do espelho, a dúvida ainda entendida como ameaça. Como se repensar sem espaço para o autoquestionamento?

Quero saber sobre as fraturas da masculinidade; o que está partido e segue sem nenhuma pretensão de reparo, o que não tem remendo. Olhar o masculino também como lacuna, como buraco; ver nele a celebração do oco, da falta. 

Aqui, a revolução vem da intimidade: é tomar o masculino como descanso – ou, enfim, como uma espécie de trégua.

#36O MasculinoCulturaSociedade

Föräldraledighet

por Leticia Lima

Saio de casa para caminhar. O frio corta meu rosto e arde meus olhos, mas o sol brilha sobre a neve caída ao chão, criando cristais incandescentes, como que vistos através de um caleidoscópio. Logo me deparo com o primeiro deles, um homem solitário, caminhando lentamente, sua respiração gerando pequenas nuvens de vapor no ar. Alguns passos adiante avisto mais dois, estes andando a passos largos e rindo de alguma piada compartilhada. Continuo em frente, contornando a margem do mar Báltico, admirando a beleza resplendente da cidade que se revela pouco a pouco à medida que o sol esvaece os últimos resquícios da névoa matutina. Ali em frente à sede da prefeitura, um dos recantos mais bonitos da cidade, estão agrupados mais três homens. Parados, em silêncio, admiram a vista. E, quem sabe, aproveitam também um momento precioso de silêncio vindo dos carrinhos de bebê na sua frente. 

Não é nada incomum encontrar homens – sozinhos, em duplas ou pequenos grupos – empurrando carrinhos de bebê pelas ruas de Estocolmo. São os chamados “lattepappas”, os “papais com cafés”, e são unidos por uma obsessão nacional: a igualdade de gênero. 

Em 2020, o Índice Global de Desigualdade de Gênero elaborado pelo Fórum Econômico Mundial colocou a Suécia em quarto lugar no ranking mundial, com 0,820 pontos e atrás apenas da Islândia, Noruega e Finlândia. O índice varia de 0 (total desigualdade) a 1 (total igualdade). O Brasil, para ter-se ideia, está na 92˚ posição, com 0,69 pontos, atrás de países como a Bósnia-Herzegovina, Burundi e o Cazaquistão. Na América do Sul, o Brasil fica apenas à frente do Paraguai (o índice não apresenta dados para a Guiana). Não podemos esquecer que o índice mede apenas a desigualdade entre os gêneros, sem levar em consideração o desenvolvimento do país, e que isso gera uma certa distorção no ranking – não há dúvida de que a Suécia está longos passos à frente do Brasil, e de grande parte do mundo, neste quesito. Mas por quê?

Swedish Dads, série fotográfica de Johan Bavman

Existe uma preocupação nacional com essa desigualdade, e há décadas o Estado elabora políticas especificamente para combatê-la. Essas políticas vão mudando e sendo ajustadas à medida que a percepção de igualdade e de gêneros muda. Um bom exemplo disso é licença-maternidade/paternidade, lei que deu origem aos lattepappas que perambulam pelas cidades com seus filhos. Hoje, na Suécia, o casal (seja heterossexual ou homossexual, casados ou apenas morando juntos) tem direito a 480 dias de licença remunerada quando tem um filho, seja este biológico ou adotado. O nome já diz muito – a lei é conhecida como föräldrarledighet, uma composição de föräldrar, ou pais (palavra neutra e sem gênero, ao contrário do gênero masculino do termo em português) e ledighet, licença. A licença pertence a ambas as partes, e deve ser compartilhada por ambas as partes, mas custou algumas décadas e algumas mudanças na legislação para chegar aqui.

Em 1974, a Suécia se tornou o primeiro país a oferecer a licença-paternidade remunerada aos pais. Eles teriam direito a seis meses de licença-paternidade juntos, receberiam remuneração do Estado em até 90% do valor de seus salários e teriam o direito de decidir como dividir estes seis meses entre eles. Em 1978, a lei aumentou o tempo para 9 meses de licença e, em 1980, para 12 meses (9 com 90% da remuneração e 3 com uma remuneração baseada no salário mínimo). Em 1989, a lei novamente mudou, aumentando o tempo de licença para 12 meses com 90% de remuneração salarial e mais 3 meses de remuneração base. Metade destes 15 meses era reservada para cada parte, ou seja, 7,5 meses para um parceiro e 7,5 para outro. Nos anos 1990, o valor da remuneração baixou para 80% do salário, com um teto após o qual o empregador deveria completar a remuneração feita pelo Estado. O objetivo dessas mudanças foi dar aos pais a oportunidade de ficar mais tempo em casa com seus filhos e, também, diminuir a desigualdade entre homens e mulheres. O Estado pretende que a opção de ter um filho por parte da mulher não prejudique sua vida profissional e que as mulheres possam ter seus empregos e suas carreiras garantidos assim como os homens.

Nas primeiras décadas da lei, as mulheres ainda usavam a maior parte da licença. Seus parceiros optavam por transferir sua metade para que as mães ficassem em casa. A ideia da licença-paternidade entrava na consciência social, mas, na prática, os homens continuavam voltando ao trabalho muito antes das mulheres. O Estado decidiu intervir mais uma vez, mudando a lei para que cada parceiro tenha um período de 90 dias reservados de licença, formando um total de 180 dos 480 dias. Os 300 dias restantes da licença ainda podem ser divididos conforme o casal preferir. Se o pai não usar seus 90 dias, estes serão perdidos; não poderão mais ser transferidos para a mãe ou o outro parceiro. No primeiro ano de vida da criança, os pais podem tirar a licença juntos por um período de apenas 30 dias. Todo o resto deve ser separado. Essa mudança na lei acabou gerando uma mudança de comportamento. Em 1974, a licença-maternidade era 100% utilizada por mulheres. Em 2020, os homens utilizam 27% da licença. Em torno de 80% das crianças na Suécia hoje têm dois pais que trabalham. 

Em janeiro de 2018, o Estado sueco criou a Agência de Igualdade de Gêneros para implementar políticas concretas a fim de minimizar a diferença entre os gêneros. Eles definem a igualdade de gêneros como: “homens e mulheres terem os mesmos direitos, responsabilidades e oportunidades em todos os âmbitos da vida” e acreditam que, para obtermos a igualdade de gêneros, não basta termos números iguais de mulheres e homens em cada área da sociedade; precisamos mudar as atitudes, normas, valores e ideais que governam a sociedade.

O que mais me interessa é que sempre acreditei que as leis de um país refletem os valores de sua sociedade. Jamais tinha pensado que, na verdade, as leis também têm o poder de mudar o pensamento da população. Somos todos produtos das nossas sociedades, das nossas famílias, oportunidades, condições socioeconômicas, cultura, religião, etc. Minha experiência na Suécia comprovou isso de forma aguda. Sou brasileira, católica, tradicional, de uma família do Sul do país. Estou beirando os 40 anos de idade. Sou de um lugar e de uma geração bastante patriarcal, de uma família bastante machista. Sou caçula e, embora minha mãe tenha trabalhado durante anos após ser mãe da minha irmã e do meu irmão, na minha memória ela já era uma dona de casa dedicada – arrumando, orientando, cozinhando, comprando coisas para a casa, escolhendo a decoração. Enquanto isso, meu pai trabalhava longas horas em um escritório que exalava masculinidade – sofás de couro, cheiro de charuto, retratos de grandes obras e miniaturas de escavadeiras; um mundo do masculino que me parecia misterioso e distante. Preferia ajudar minha mãe a montar uma mesa perfeita, convidativa, agregadora e demonstrar amor pela família através de grandes almoços no domingo. 

Meu marido sueco tirou quatro meses de licença-paternidade quando nossa filha nasceu aqui em Estocolmo em 2018. Foram quatro meses essenciais. Tive um parto complicadíssimo, uma cesárea de emergência que me deixou com dores insuportáveis por meses. Longe da minha família, sem o apoio de empregados domésticos ou babás, fiquei em casa tentando sobreviver ao furacão da maternidade e da vida doméstica. E, por mais que meu marido tentasse limpar, cozinhar, lavar roupa, passar, ir ao supermercado e à farmácia, cuidar do nosso cachorro, servir refeições e outras tarefas de Sísifo, eu o criticava porque ele não fazia nada daquilo ao meu gosto, ao meu patamar. Minhas noções de limpeza eram outras, mais brasileiras que suecas; minhas refeições mais equilibradas, bem servidas; as roupas passadas além de limpas. A casa deveria estar impecável e, com a neném em casa e eu de cama, ela estava de pernas para o ar. Isso me deixou enfurecida. Como ousava aquele homem entrar no meu campinho e deixar de chegar ao meu nível de exigência. Eu sabia melhor, eu fazia melhor, e o lugar dele era fora de casa.

E aí está parte do problema. Meu marido é muito menos machista do que eu e, para ele, também foi difícil entender essa minha obsessão com a casa. Não importa, ele dizia, que está uma bagunça. O importante é que estamos juntos, curtindo nossa filha. Mas eu não conseguia curtir nada com o peso do fracasso da minha “profissão” – a de ser mãe e dona de casa. Essa divisão de gêneros que existe na minha cabeça, onde enxergo as metades em branco e preto, onde a casa e os filhos são meus e o escritório é dele, é produto de como fui criada e fruto da minha personalidade. Essas ideações enraizadas custam a ser mudadas, mas, após alguns anos de Suécia, estou aos poucos me amainando. Já não julgo os pais que vêm à escolinha da minha filha deixar sua prole descabelada e melequenta. Ou não muito. Afinal, estão fazendo o seu melhor para criar uma sociedade onde as mulheres possam ter a oportunidade de ter ambos, família e carreira – coisa que não conseguiremos sem o apoio e sacrifício dos homens e, crucialmente, sem o apoio e o julgamento de outras mulheres. E nisso o Estado sueco está realmente à frente da maioria. 


#36O MasculinoArteCulturaFotografiaSociedade

Libertação através da imagem

por Willian Silveira

O asfalto estava frio quando Ennis Del Mar desembarcou do caminhão que lhe deu carona e firmou as botas de vaqueiro na estrada. Àquela altura da manhã, a fricção dos pneus e os raios do sol ainda não haviam despertado sobre nenhuma das tantas rodovias que cortam o ermo estado de Wyoming. Ali, no extremo noroeste dos Estados Unidos, em um território esquecido entre as Grandes Planícies e as Montanhas Rochosas, o cimento é a matéria-prima preferida quando se trata de construir estradas e corações masculinos.

Deste início até a primeira conversa entre Del Mar e Jack Twist, acompanhamos uma sequência visualmente simbólica para compreender o que estará em jogo no restante de Brokeback Mountain. Para representar a masculinidade com precisão — ou, ao menos, o que significa ser homem à sombra de John Wayne —, Ang Lee percebeu que não bastaria contar com dois protagonistas talentosos e uma história envolvente. Assim como a natureza na mitologia do Western, que surge como o desafio primitivo a ser domado, seria pre- ciso personificar outro aspecto primitivo, fundador das relações masculinas, o qual seguimos sem domar — o nosso silêncio.

Romper com os arquétipos, como Brokeback faz com a figura do herói americano, é a metodologia adotada para iniciar, se não a mais completa, certamente a mais didática exposição sobre o mundo masculino. Concebida pelo Barbican, em Londres, Masculinities: Liberation through Photography imprime na transparência do título uma proposição ao mesmo tempo política e educativa. Ao passo que apresenta a proposta de ilustrar a pluralidade de manifestações pelas quais a masculinidade pode ser expressa, a exposição também critica o papel opressor da imagem na formação de um ideal de masculinidade dominante.

Street Fashion Jock, de Hal Fischer

Pensada a partir de seis eixos temáticos, Masculinities exibe o trabalho de mais de 50 artistas de todas as partes do mundo, distribuindo-os a partir de propostas como: Rompendo com os arquétipos; A ordem masculina: poder, patriarcado e espaço; Muito perto de casa: família e paternidade; Masculinidades queer; Reivindicando o corpo negro e Mulheres sobre homens: invertendo o olhar masculino. O escopo abrangente contempla o vocabulário visual que vem dos anos 60 até hoje, e tem a virtude de unificar sob uma mesma ótica artistas distintos como Karen Knorr, Catherine Opie e Rotimi Fani-Kayode.

Logo de início, Masculinities inaugura o olhar do público com Self-portrait (1994), de John Coplans, uma sequência de quatro imagens que segue a linha de investigação do fotógrafo inglês, interessado em depurar o envelhecimento do corpo e a fragilidade trazida pela idade. Nas telas de grande proporção, a força dos músculos e o viço da pele são os elementos ausentes diante de um corpo que simula posições do estatuário greco-romano. Harmoniosamente concebidas para exibição em público, as obras clássicas representam a finalidade impossível de tudo aquilo que é submetido ao tempo, ressaltando o injusto lugar que cabe ao corpo flácido e envelhecido na sociedade atual, legado à vergonha e ao esquecimento.

Reconhecido pela técnica apurada na encenação das imagens, o israelense Adi Nes exibe a série Soldiers (1994–2000). Nela, o fotógrafo faz uso da fama militarista de seu país para registrar os soldados em instantes de lazer. Produzidas nos acampamentos do exército, as imagens atacam o conceito de masculinidade como sinônimo de virilidade e heterossexualidade, ao registrar instantes em que a naturalidade se confunde com afetividade e tensão sexual.

A alemã Karen Knorr, por sua vez, aparece com um dos seus trabalhos de maior destaque, realizado nos anos 80. Gentlemen é fruto do período em que Knorr viveu em Londres para estudar fotografia. Durante esse período, conseguiu acesso às fraternidades e aos clubes masculinos, bem como à alta sociedade inglesa, compondo a partir desse material um instigante corpus documental que representa a masculinidade como sinônimo de um poder que opera unicamente com o objetivo de expandir e perpetuar a sua influência na esfera pública.

A abordagem temática da exposição permitiu o diálogo entre linguagens distintas, como no caso do premiado fotógrafo da Magnum, Thomas Dworzak, da performática Catherine Opie e do flaneurismo de Sunil Gupta. Prova de um olhar eminentemente lírico ainda quando em situações extremas, Dworzak exibe Taliban Portraits (2002), um registro que consegue projetar os fundamentalistas islâmicos distantes da imagem de brutalidade e virilidade esperada. Se Dworzak ilustra o realismo desconhecido do grupo terrorista, por outro lado, Opie apresenta Being and Having (1991), uma série de retratos coloridos, em que amigas lésbicas brincam com bigodes falsos, tatuagens e acessórios associados ao estereótipo masculino, denunciando o caráter lúdico e artificial da masculinidade. Nesse conjunto performático, as cenas montadas de Dworzak e Opie ganham a companhia do indiano Sunil Gupta. Radicado no Canadá desde jovem, Gupta explora o reduto gay de Nova York nos anos 70 em Christopher Street. A série registra os primeiros movimentos da comunidade homossexual na esfera pública, produzindo um belo inventário do processo de libertação desses homens e da busca por um novo repertório para realizar as suas identidades na sociedade.

Conhecido por Ravens, potente obra de caráter confessional em que registra o luto pela esposa, Masahisa Fukase apresenta um trabalho de longo prazo. Após ser acometido por uma doença séria, o fotógrafo japonês inicia Family, em que propõe a releitura das fotos de família. Durante duas décadas, Fukase ergue uma memorabilia peculiar, entrelaçada pela ironia de conviver com quem nem sempre gostamos ou desconfiamos não conhecer muito bem. O resultado propõe a refundação da estrutura familiar a partir do embaralhar das posições de poder, justamente no seio da tradicional sociedade oriental.

A dificuldade de ser imigrante e o extravio do desejo que a acentua são os pilares da obra de Rotimi Fani-Kayode. A dupla perda — do país natal e do corpo negro — habita o horizonte do fotógrafo que, aos 12 anos, teve de fugir da guerra civil na Nigéria. Em solo inglês, Fani-Kayode recupera na imagem aquilo que não encontra em vida. Encenados a partir do jogo de luzes, do contraste acentuado e da presença de elementos da cosmologia yoruba, os registros em preto e branco subvertem propositadamente o purismo da linguagem de poder e desejo do universo ocidental, representado em Richard Avedon e Robert Mapplethorpe, para elevá-lo à categoria de ação, reivindicação e gozo.

Não menos importante, a visão feminina encerra Masculinities como a responsável por entregar uma nova perspectiva ao tema. Possível unicamente após os esforços do movimento feminista das últimas décadas, finalmente a masculinidade passou a ser olhada desde fora, vendo-se obrigada a estar no lugar do outro. Transformar o sujeito em objeto é a proposta da artista visual Laurie Anderson em Fully Automated Nikon (Object/Objection/Objectivity), de 1973. Nessa série, Anderson se apropria do desconforto causado pelo assédio masculino e o converte em ação. Ao registrar os homens que lhe dirigiam comentários na rua, a fotógrafa recupera para si o poder do olhar, reenquadrando a objetificação ao expor seus personagens com os olhos borrados, em um claro movimento na direção de apagar as suas identidades e individualidades.

#36O MasculinoEditorial

O Masculino — Amarello 36

por Revista Amarello


O Masculino

Em sua edição 36, a Amarello faz um convite à desconstrução do conceito de masculinidade, a fim de imaginar um mundo mais plural e equilibrado.

O Masculino recebe o psicólogo José Ernesto Bologna como editor convidado e apresenta capa de Gal Marinelli e Rodrigo Pinheiro.


Garanta a sua edição

O masculino transpassa as distensões que existem entre gênero, sexualidade, sexo biológico e, inclusive, a ideia de feminino. Pensá-lo para além do homem é fundamental para romper com o esmagamento que a ficção da masculinidade impôs, e ainda impõe, ao mundo há séculos.

O feminismo expõe a violência inerente ao paradigma heroico e o velado desdém do patriarcado pelo universo das mulheres. O novo masculino parte daí, e está essencialmente ligado às movimentações sociais. 

A associação do masculino ao homem macho, se é que um dia funcionou, não funciona mais. A quebra da performatividade dominante nos sugere que os homens podem encontrar novas formas, mais complexas e livres, de desfrutar e se conectar com o seu interior.

Falar do masculino não é falar somente do gênero, mas de um jeito de estar no mundo: múltiplo e difuso. A divisão rígida entre homem e mulher, masculino e feminino, é uma construção social que precisa ser atualizada. Para isso, é importante ampliarmos o nosso limitado espectro de diversidades e possibilidades destinadas ao existir. Estar no mundo é encarar, diariamente, nossa vulnerabilidade. Encarar fantasmas e preconceitos impostos pela sociedade construída pela masculinidade dominante, permitindo-nos estar abertos aos movimentos que a vida nos propõe. 

Esta edição é um convite à desconstrução, um ponto de partida para homens, mulheres e pessoas não binárias escutarem o seu masculino, de forma que naturalizemos a desconstrução a fim de conseguirmos, de fato, habitar um mundo mais equilibrado.

Precisamos dar exemplos melhores e mais reais do que significa ser masculino para as futuras gerações.

Tomás Biagi Carvalho

Dedico esta edição a Thiago Blumenthal, colaborador de longa data e intelectual brilhante, que nos deixou precocemente em novembro deste ano. Sua partida deixa saudade e, sem dúvida nenhuma, o mundo menos interessante.

#36O MasculinoCulturaEditorialSociedade

O Masculino

por J. E. Beni Bologna

Editor convidado da edição O Masculino #36

Ante o pedido dele para ler seu próprio escrito, o grupo ficou em silêncio.

Lui leu.

“O Circo e o Fogo”

Estou escrevendo um pequeno ensaio crítico abordando o tema da atual opressão sobre os humanos que se encaixam na seguinte descrição:

Homem, masculino, heterossexual, culto, branco, produtivo, trabalhador, familiar, leal, fiel, patriótico, ético, distributivo, provedor, consciente da necessidade da sustentabilidade em seus diversos aspectos – ambiental, econômica, social –, biograficamente avesso à violência repressora, avesso a preconceitos, afetivo, responsável pelos filhos, amigo dos amigos, contribuinte tributário, e outras virtudes.

Hoje, esse clássico “homem homem” vem sendo inegociavelmente tratado pelas mulheres, pelos filhos, pelas mídias e por todas as autointituladas “minorias” como um opressor preconceituoso, machista, chauvinista, reacionário, violento e outros absurdos, num fenômeno sociocultural e midiático cuja histeria está cometendo a injustiça, e o desatino, de cuspir na mão amiga, protetora, disponível, humilhando os dedicados, cuja índole e disposição são, social e historicamente, imprescindíveis e louváveis.

Embora, como se insiste, “nunca o mundo foi melhor do que o atual”, ao mesmo tempo – e talvez por isso mesmo –, nunca o mundo, à guisa de uma pretensa “(r)evolução cultural”, foi tão injusto e tão ingrato com sua própria história de aquisições, tão imediatista e tão autodestrutivo em função de sua cegueira moral, sua gula patogênica e sua inveja ressentida e vitimada.

Se, um dia desses, uma explosão de conservadorismo da pior vertente, realmente truculento e repressivo, acontecer – já há sinais eleitorais –, que não digam os analistas que a culpa se restringe aos arcaicos opressores, mas que tenham a decência e a dignidade de acrescentar que as palavras e as condutas passaram dos limites, desequilibrando o sistema no sentido oposto ao que pretendeu equilibrar. Se o pêndulo, que um dia pendulou no extremo da opressão patriarcal despótica, foi correta e compreensivelmente puxado para o meio, mas em seguida levado ao outro extremo, certamente seguirá outra fase de opressão.

O “discurso da inclusão” está excluindo quem ele acha que a todos excluía, mas esquecendo que, entre esses, muitos, muitos, não excluíam. Ao contrário, protegiam, e estão sendo massacrados. Um dia desses, em defesa do próprio espaço existencial, e portanto do direito e da dignidade de existir, serão obrigados à mesma violência que claramente estão sofrendo, absurda e injustamente.

Será triste, regressivo, e destrutivo. Já dá sinais, e ocorrerá nas famílias, entre amigos, nas escolas, no trabalho, até mesmo no lazer. Afetará os hábitos íntimos, galgará o discurso público, atingirá o Estado, as mídias, as praças, as alcovas e os salões.

O intuito de diálogo, equilíbrio e inclusão terá fracassado pela mais irônica razão: se excedendo de maneira inaceitável, esse esforço irá tornar-se exatamente aquilo que se dispôs a transformar.

Espero que aqueles que praticam tais excessos e que conseguem perceber o claro apelo expresso aqui – e, portanto, não o fazem com consciência intencional do seu ódio estruturado – enxerguem o recorrente e histórico perigo: inabilmente provocar e acentuar exatamente o que pretendem reduzir e eliminar. Quanto aos que o fazem por “projeto ideológico anarquista, mascarado de virtudes solidárias”, que a lucidez da maioria não se deixe infantilmente seduzir, enganar, nem cooptar. Ou seja, termino já exercendo a, justa, irritação (felizmente ainda contida) derivada dos excessos: – Que se restrinja apenas aos palhaços a alegria, suicida, de ver o circo pegar fogo.



Tendo lido, Lui aguardou os comentários.

Por curtos eternos minutos, o grupo ficou em silêncio, até que a estridência que o silêncio continha se manifestou na voz de Elle:

— Não gostei! E não concordo! Acho muito agressivo! E também ressentido! Na verdade, parece um círculo vicioso, comete o que pretende criticar justo ao criticar o que comete, e gira assim. Ou seja, faz a mesma coisa que delata. Acho que se trata da mesma reclamação machista, chauvinista, repressiva, que pretende defender. Não me engana…

O grupo se reunia semanalmente há alguns anos. Eram oito: quatro homens e quatro mulheres. Eu havia planejado dessa forma de propósito, buscando uma amostragem razoável do ambiente social adulto, de uma classe econômica de “média” para cima – seja o que for que se entenda por “acima” –, com o intuito sob o título, a essa altura indefinível, de “psicoterapia” – seja o que for que se entenda com a palavra.

Sempre com homens e mulheres em igual número, os participantes variaram com os anos. Eu procurava abranger um mínimo de duas gerações, por vezes três, tendo portanto clientes desde os vinte até os sessenta anos. Ou seja, gerações analógicas, e ao menos uma geração nascida digital, habitavam o círculo. Tãf foi direto:

— Você escreveu porque se sente assim tão mal? Você de fato acha, como diz, que muitos homens sentem assim?

— Acho, sem dúvida! Vejo e ouço… Antes, era por toda parte… Agora, que ficou politicamente proibido ser um homem homem, como foi um dia, ouço menos… Gente como eu está se retraindo… “Homem homem”, sei que essa expressão já traz, em si, os problemas que gera, desde a provocação, até a reação …

Elle, como sempre, foi enfática:

— É, sim! Uma provocação. Esses tais “homens homens”, me desculpe se você se diz um deles, se sentem mal apenas porque não querem admitir as barbaridades que pensaram, que disseram, que escreveram, que fizeram, e ainda fazem… E agora ficam como bebezinhos assustados, por ter chegado a hora, já tardia, de perder os privilégios, de pagar o que devem… Devem, sim! E vão pagar! Pouco adianta essa conversa de virtudes silenciosas… É sempre a mesma enganação…

Lei interviu:

— Eu não vejo como Elle. Ainda que eu pertença a uma geração mais velha, e tenha sido criada naqueles valores, eu não vivi revoltada, nem me sentindo oprimida por ser uma mulher de família estável, com um marido mais ou menos parecido com esse homem que Lui descreve no seu texto. Eu criei meus filhos, formei-os, cresceram, casaram, trabalhei parte do tempo. Vocês sabem que eu perdi meu marido há alguns anos, tenho meus netos. Por mais que Elle se oponha, eu sou a favor dos “homens homens”… Um deles me fez muito feliz… Dentro do que é possível ser feliz…

Guei a interrompeu:

— Você está dizendo que só um homem como esse do texto pode fazer uma mulher feliz? Ou fazer outro homem feliz? Como no meu caso… O mundo só pertence, ou deve pertencer, a gente que se diz “normal”? E com isso pretende definir esse “normal”? E quem não for assim não cabe?

Notei que Elle já se preparava para aderir a Guei, argumentando com seu estilo direto contra Lui e Lei, mas voltei meu olhar para Jeune, tentando encorajá-lo. Ele notou, e se dispôs, me surpreendendo com uma segurança inesperada:

— Vocês sabem que tenho dezenove, que já nasci plugado… Não sei se é por isso, mas eu ouço vocês falarem e penso “por que será que vocês não tratam do que realmente interessa?” O que é que tem a ver, um com o outro, ou com o mundo, a liberdade de cada um, se a intenção não for controlar os outros, para que sejam como vocês querem que eles sejam? Falemos de trabalho, viagens, grana, autonomia, significado, preservação… E a liberdade de cada um é com cada um… Isso não deveria ser assunto… Se é assunto, e se não sai de cena, podem ter certeza que é desejo de controle… Essa é a desconfiança, e cabe…

Tãf interviu:

— Você ainda é garoto demais para entender que esses assuntos influem muito, e mesmo determinam, um mundo comum, um contrato para o ambiente no qual quero viver, ou cada um quer viver… E, portanto, uma mínima estabilidade para esses combinados…

— Mas que então caibam muitos combinados, que existam os ambientes onde cada um pode viver como quiser – retrucou Jeune. Por que o mundo tem que ser um só? Do jeito que uns poucos querem? Então, que existam mundos para todo mundo…

O grupo riu com simpatia da autenticidade com que Jeune se expressou. Tãf insistiu:

— Porque um atrapalha o outro, torna o mundo do outro insuportável para ele mesmo…

Fema entrou nas falas:

— Ahhh, filhinho, esse insuportável é sempre dos dois lados. Para mim também é insuportável que o mundo não admita que eu existo, que me vejam como um mal, como um estorvo que atrapalha os bonitinhos, como esse macho do texto… Ele deve ser gostoso… Eu também queria um desses para me sustentar e me fazer feliz… Em “todos” os aspectos… — sorriu Fema, e o grupo junto, com a insinuação dirigida a Lei e seu marido.

Nesse instante, eu coloquei toda a minha atenção na reação de Lei, avaliando o efeito de uma brincadeira que poderia invadi-la, ou ofendê-la. Mas não! Lei também sorriu com a provocação de Fema e, com sua típica elegância, até aderiu:

— Meu marido era gostoso, sim! Mas acho que só gostava de mulheres… Bem — sorriu de novo —, assim eu supus a vida toda…

— Mas eu sou uma mulher!  — retrucou Fema, avançando um tanto mais.

O grupo se entreolhou; eu sempre atento, no meu dever de criar e manter o melhor espaço evolutivo – ou até mesmo “terapêutico” – conforme emergiam, pelas falas, as energias emocionais, em entendimento ou fricção. Tãf seguiu:

— Pessoal, com todo o respeito pelo, ou… pela… Fema… e também pela, ou pelo, Maf, até agora em silêncio… mas não acho que seja possível considerar esses fatos como “normais”, ou pelo menos “comuns”… Até mesmo por sua raridade…

Maf, citado por ele, interpelou Tãf, e seguiu-se este diálogo:

— A minha existência te incomoda? Eu torno o teu mundo pior?

— Você quer que eu seja realista? Ou politicamente correto?

— Realista! Direto, reto! Quanto ao correto, verei eu…

— Sim! Incomoda. Não propriamente a sua existência. Por mais que me critiquem hoje como inflexível, antiquado, preconceituoso, claro que eu acho que todo existente tem o direito de existir. O que principalmente me incomoda é se você agride o ambiente social e moral com o que eu considero excesso de exibicionismo, ou pretenda forçar o seu espaço.

— Mas, se eu não forçar o meu espaço, gente como você não me deixa existir.

— Não é verdade! É claro que eu nada tenho a ver com o fato de você existir da maneira que você nasceu, e é…

— …Não! Esse é o seu engano! Eu nasci de uma maneira que não sou. Eu precisei cortar uma parte do meu corpo para ser, e parecer, como quem de fato eu sou. Você não teve esse problema. Sorte sua! Azar o meu… Mas eu me resolvi, e me assumi, e aqui estou como nasci por dentro, e não por fora…

Elle interferiu, dessa vez mais ponderada:

— Se nós ouvíssemos o único aqui dentro que me parece justo e atualizado… Jeune é o mais jovem de nós todos, e está certo quando diz que esses assuntos não deveriam interessar a ponto de nos perdermos dentro deles… Talvez nos muitos mundos que poderiam ser criados todo mundo caberia… e não haveria tanta encrenca e sofrimento…

Tãf interviu:

— Pessoal, não sei se eu posso colocar de forma mais profunda a minha visão, preciso tempo, mas o assunto não é tão simples porque não há tanto espaço, tantos mundos, e o espaço no mundo que gente como eu construiu por muitos séculos, eu e os muitos “homens homens” que o Lui traz… me desculpem, esse espaço está invadido…

— E o nosso? Que sequer chegou a existir? Porque gente como você, e como os tais “homens homens” nunca deixaram existir, oprimindo, reprimindo e se apropriando, por milênios, de todos os espaços disponíveis. Espaços naturais, e espaços culturais.  — Elle foi enfática.

— Mas há uma biologia!  — disse Tãf — Há uma realidade natural na base da realidade moral e cultural! Ninguém dita os valores da cultura somente baseado em palavras e contratos. Há uma base sociobiológica sobre a qual a cultura é construída, e ela deve ser respeitada pelos valores morais que constroem e dão estabilidade ao contrato social.

— Então eu não sou “natural”?  — disse Fema, e Maf a acompanhou. — Se eu não sou “natural”, entre essas aspas absurdas, eu sou o quê? Uma espécie de monstro artificial? Vindo de onde?

Tãf insistiu:

— Me desculpe a franqueza, mas você a pede, e eu não quero ofendê-lo, ou ofendê-la, nem a ninguém. Você é uma exceção do natural, portanto também é natural… Mas exceção…

— E no seu “cultural” não cabem as exceções? Exceções, por exemplo, naturais? – ironizou Fema, e Maf riu de forma debochada.

Jeune interviu:

— Eu agradeço a Elle o elogio, e insisto: “o que é que vocês estão fazendo com a vida de nós todos? É incompreensível para mim, e para todos os meus amigos e amigas, e amigas e amigos, com menos de vinte anos, que vocês insistam em discutir o que menos interessa, senão para exercer a absurda prepotência de controlar todas as vidas, para explorar e tirar proveito próprio. Depois, vocês dizem que “não prestamos atenção” e que “perdemos o respeito e o interesse”. Mas como pode alguém desperdiçar sua atenção, e focar seu interesse, em assuntos tão banais que deveriam ser um “não assunto”? É evidente que tudo é natural, regras e exceções, e que a cultura deve preservar o natural, e fazê-lo caber de qualquer forma. No limite, se o choque for extremo, escolheremos. Mas para esses assuntos?! Para esses temas da intimidade individual?! O que é que cada um de nós tem a ver com isso, no outro? Por que tanta energia dirigida ao sexo, se no final das contas é apenas mais uma forma de vivência, de experiência, e até mesmo de consumo?

Tãf se adiantou:

— Tem muito a ver, meu bom garoto! Por exemplo, como diz o Lui, e eu concordo, não se pode mais abrir a boca sem sofrer algum massacre. E o sexo é o tabu por excelência, e a forma mais antiga, e mais primária, de controle. Os humanos descobriram muito cedo que aqueles que controlassem o acesso ao sexo controlariam o mundo. É um desejo por si mesmo, aparece na consciência com sua própria lógica, e se impõe às regras e à razão. O desejo convence a razão, e a submete, você ainda não viveu o suficiente para saber o efeito disso.

Elle entrou:

— Eu concordo! Mas isso vale para todos! Não deve ser um privilégio do “homem homem”, que aliás já teve, e tem, seus privilégios, inclusive o machismo do controle desse tal “acesso”, eu poderia dizer autorização… assim como o desejo. O corpo é meu! É seu! É de quem for… Vejam bem, antes das mudanças de mentalidade que o século XX conseguiu, ninguém podia ser dono do seu próprio corpo. O corpo das crianças pertencia às mães, das adolescentes pertencia ao pai e à moralidade social, para logo depois pertencer aos maridos. O corpo dos jovens pertencia ao Estado, que os convocava para a guerra. O século nos deu um corpo, e com ele podemos atender nossos desejos.

Lui e Lei estavam quietos, Guei também. Contive, com o olhar, a tendência de Tãf seguir com a discussão. Olhei o relógio; a sessão terminaria em dez minutos. Depois do exercício analítico, e desestruturante, eu precisaria ao menos de cinco minutos para a síntese final, procurando oferecer a consciência construtiva que as palavras pudessem alcançar. Tãf não atendeu ao meu gesto de parar, e prosseguiu:

— Vocês podem pensar o que quiserem. Espero que não me tomem pelo porco chauvinista que não sou. Os três desejos fundamentais de uma mulher mulher, que não seja uma exceção, podem ser descritos como: um, encontrar e atrair um parceiro que a deseje e ame a ponto de propor a ela vida juntos; dois, ela ter filhos com ele; três, ela colocá-lo a serviço dela e das crianças, e ele aceitar essa responsabilidade de bom grado. O mesmo, em espelho, vale para os homens homens. A evolução assim selecionou, e é por isso que cabe às mulheres melhorar a espécie com as escolhas, e cabe aos homens aceitar a escolha delas, mesmo sofrendo muito com as rejeições e as preferências. Todos já viveram, ou infelizmente viverão, a dor de amar sem ser amado, desejar sem ser desejado, precisar e não ganhar… A vida tem sua própria lógica… E a razão não a controla.

Elle realmente se irritou:

— Eu considero essa sua pseudoteoria uma ofensa à dignidade das mulheres. Que absurdo! Então a vida, e a felicidade, de uma mulher dependem exclusivamente de achar seu homem homem, ter filhos, e colocá-lo a seu serviço. O que é isso? Então uma mulher não pode optar por não ter filhos, ser autônoma, trabalhar, criar, contribuir? Não querer esse tal “homem homem”, ao redor do qual, segundo essa sua barbaridade, tudo gira? Eu, se fosse você, jamais repetiria isso…

Tãf entrou:

— Elle, me desculpe, e vocês todos. O dia que as mulheres enxergarem o prejuízo que o feminismo já gerou para as mulheres e homens em geral, elas irão se assustar, e espero que muitas mudem de opinião. Eu digo com todas as letras que o feminismo é contra o feminino e, entre outras desgraças, está destruindo o masculino. O efeito será, e acho que já é, mulheres sós, super demandadas por si mesmas, com filhos que se sentem indesejados por estarem abandonados, e as empresas ganhando com as executivas convencidas de heroínas. Vocês não enxergam que isso tudo é um engodo?

Guei, Elle, e Jeune se mobilizaram no desejo de falar, mas fui obrigado a interromper, e quase nem mesmo tive tempo para uma síntese final. O que fiz foi um resumo das diversas posições, com comentários positivos e encorajadores sobre a disposição que demonstraram em abordar temas difíceis, e decidi esperar a sessão seguinte.

Eram os sete:

Lui, um homem homem, tal e qual feito e esperado pelos séculos afora;

Lei, a esposa, a mãe, a professora da maioria de todos nós, inclusive Guei, Fema e Maf;

Elle, a mulher só, de meia-idade, ativista convicta das rupturas de sua época;

Tãf, o estruturado defensor de uma possível base sociobiológica que fornecesse substrato a uma possível teoria cultural, absurdo ou não;

Fema, a mulher que nasceu homem, e mulher tornou-se, realizando a cirurgia que reorientava a natureza;

Maf, o homem que nasceu mulher, ou assim tornou-se, utilizando intimamente os implementos que reorientam a natureza;

Jeune, o jovem jovem, já nascido digital, assistindo aos diálogos-monólogos cujos temas raramente interessavam da maneira, por arcaica, como expostos e abordados.

O oitavo, eu.

Assistindo, como ouvinte, e ponderando, como crítico, com o dever de aprimorar as possibilidades da consciência, via palavra, e buscar integridade, bem-estar e algum avanço, seja isso o que bem for.

Terminou a sessão. Todos se foram. Cinco minutos permitiam um café.

Tocou meu celular. Olhei a tela, era o Tomás:

— Eu estava relendo um artigo que você escreveu, já faz um tempo, naquela nossa edição do “Feminino”… E tive a ideia de fazer uma edição “O Masculino”… Queria te convidar…

— Olá, Tomás! Faz algum tempo… Obrigado pela confiança. Bem, hmm… Quero aceitar… Aceito, sim! Mas você tem ideia do tamanho dessa encrenca!?

— Claro que sim! Se não tivesse, não estaria convidando…

— As pauladas virão de todo lado… E beijinhos quase mesmo de nenhum..

— Mas o couro é grosso o suficiente para saber que “a primeira chuva não molha”.

— Então eu topo! Que venha a chuva… Só acho que não fica na primeira, e portanto vai molhar…

E desligamos…

A chuva, honesta, solidária, corajosa, farta e generosa, germinou no que se segue…

Cultive o chão conosco, evitando ervas daninhas, em especial as que possam nascer da sua própria intimidade. Sejamos construtores de possíveis concordâncias, não apenas promotores da discórdia.

O chão está semeado, o cultivo é com você, colha os frutos que estiverem ao seu alcance.

ArteMúsica

Os 10 anos do Festival Novas Frequências

por Pérola Mathias

Marta Supernova

O Festival Novas Frequências há 10 anos movimenta a cena artística do Rio de Janeiro e chega, agora em dezembro, a mais uma edição. Como é de se esperar, devido à pandemia, de forma virtual. A marca do festival é trazer nomes nacionais e internacionais da cena da música experimental e de exploração para os palcos da cidade – ou tornar a cidade um palco, como tantas vezes fez. No entanto, a cada ano que passou, promoveu também as artes multimídia e multilinguagem. 

O Novas Frequências irá ocorrer entre os dias 1 e 13 de dezembro, apresentando, 43 propostas comissionadas, ou seja, realizadas especialmente para o festival, de artistas provenientes de 13 estados do país, que poderão ser assistidas no site. A estratégia adotada pelo festival foi a de não realizar “lives”, a fim de buscar novos formatos de apresentação. O público encontrará, esse ano, conteúdos multilinguagem: trabalhos audiovisuais, videoarte, curta-metragem, vídeo-ensaios, experimentos com som imersivo, podcasts, websites, dentre outros.

O conceito curatorial tem como tema o X, que se refere tanto ao número romano que representa essa marca histórica, mas também ao ‘X’ de indefinição, de incógnita, de pluralidade, de feminino etc.

Para saber mais sobre essa edição especial, conversamos com Chico Dub, curador e diretor geral do Novas Frequências.


O Festival Novas Frequências comemora em 2020 seus 10 anos e tem como tema o X. Como foi pensado o conceito do festival para esse ano especial de aniversário, que acabou sendo marcado pela excepcionalidade da pandemia e das crises políticas e econômicas que nos assolam?

O conceito passou por algumas ideias prévias. Durante a pré-pandemia, havia o um desejo muito forte de trazer artistas de programações anteriores e apresentá-los dentro de outros contextos: artistas que tiveram participações icônicas no festival se apresentariam dentro uma espécie de “best-of”. Por exemplo, o Stephen O’Malley, o Keiji Haino e o Oren Ambarchi que tocaram solo respectivamente em 2013, 2018 e 2019, mas que poderiam em 2020 voltar em formato trio, o Nazorarai. 

Somente depois de um bom tempo de quarentena é que veio a ideia do “X”, que considero amarrar de forma excelente a referência aos 10 anos, ou seja, essa parte mais celebratória, com diversos outros simbolismos que traduzem algumas das questões mais fundamentais do tempo presente. Em especial, talvez, a incerteza, mas também a negação, a ruptura, o impedimento e a proibição.


Não vai ter “live“, mas vão ter obras com diferentes linguagens e formatos. Fala um pouco sobre a relação entre o que você propôs aos artistas e o que eles apresentaram de propostas para formatar o festival desse ano, integrando diferentes mídias.

Junto à criação do tema veio também o desenho de formato que, pra quem nos acompanha, vem se configurando como algo tão crucial quanto a própria programação. Dada a impossibilidade do encontro presencial, não fazia sentido algum criar simulacros de situações ao vivo. Então o que nos sobrou foi experimentar para além da questão música, aproveitando essa limitação como combustível criativo. 

A partir, então, da fabulação do tema e do formato, fui até os artistas, que semanas depois voltaram com ideias. Em alguns casos mais específicos, a criação se deu de forma conjunta, já na primeira conversa. Em outros, como no caso do O Grivo e do quarteto formado por Flora Holderbaum, Nanati Francischini, Marina Mapurunga e Tânia Neiva, eu trouxe uma provocação mais assertiva. 

Foi sem dúvida o Novas Frequências mais prazeroso e ao mesmo tempo complexo (mesmo no digital!) de montar. Eu que sonhava em fazer um Novas Frequências 100% com trabalhos comissionados, acabei conseguindo, e justamente na 10ª edição.

Nelson Soares e Marcos Moreira de O Grivo

E como fica a programação deste ano, que conta com as obras que serão apresentadas pelo site em horários e dias definidos, mas também com atividades extras de conversas, mesas redondas, cursos e etc.?

Mais do que nunca, a edição deste ano é um misto de festival de música com exposição de arte. Dos 43 trabalhos, 7 se colocam como obras de temporalidade aberta. Já outros têm data e hora marcada, como num festival mais tradicional. A diferença do festival nessa configuração digital é que, na verdade, as obras se mantêm disponíveis para o público mesmo após o dia 13, último dia do Novas Frequências. 

E ainda temos duas obras buscam visualidades – ou materialidades – distantes do elemento virtual. Que são os incensos da dupla Fronte Violeta, numa obra sensorial-sinestésica e os mapas em formato lambe-lambe colados pela cidade da Camila Proto: zona de escuta que fazem referência ao som.

Além da parte artística, desenhamos um curso de arte sonora ministrado por quatro professores, em que cada um conduz uma aula e seis conversas bastante variadas entre si.


Qual a importância de ter a Jocy de Oliveira na programação deste ano, pioneira da música eletroacústica, mas também os veteranos de O Grivo, e nomes super jovens, mas já representativos da música experimental no país, meio que cobrindo um arco na produção sonora brasileira?

Sinceramente, ficou faltando a Jocy no ano passado. Ela poderia ter perfeitamente se encaixado numa programação que contava com Beatriz Ferreyra e Eliane Radigue; artistas que, como ela, são pioneiras na música eletrônica e na eletroacústica. A boa notícia, claro, é que conseguimos trazê-la justamente para estes 10 anos, se configurando como a grande artista homenageada desta edição

Agora, quanto à sua pergunta em si, tem bastante de quebra-cabeça na equação do Novas Frequências. Isso no sentido de termos peças bem diferentes entre si, criando um jogo de variedade o mais amplo possível: equidade de gênero, pluralidade geográfica, representatividades minoritárias, escolas e idades variadas e por aí vai.


Como as obras e a presença de artistas de destaque, do teatro e da literatura, como Grace Passô e J. P. Cuenca, impactam na proposta do festival?

Nesse processo de criação híbrida e de aproximação com outros fazeres da arte, faz cada vez mais sentido nos envolvermos com artistas de outros campos. Também ajuda estarmos inseridos no que alguns teóricos vêm nomeando de virada sônica. Que é uma mudança gradual do foco do visual para o auditivo. O que em outras palavras quer dizer que o som vive um momento único na história da humanidade. É a última fronteira da arte contemporânea ainda não totalmente esgarçada, dotada de um campo vastíssimo ainda para ser explorado. 

Sem dúvida alguma que esses artistas trazem possibilidades muito reais de ampliação de público. E de criações propícias ao desenvolvimento de estéticas únicas, fora das nossas zonas de conforto.

Jocy de Oliveira, pioneira da música eletroacústica

ArteArtes Visuais

O Polochon de Lina Bo Bardi

A peça icônica criada pela artista tem tiragem especial revertida para o Instituto Bardi e a Casa de Vidro

O Polochon é uma invenção que nasceu da mente do escritor simbolista francês Alfred Jarry, em 1885, mas veio a ganhar forma apenas cem anos depois, na cenografia da montagem brasileira da peça Ubu Rei, criada por Lina Bo Bardi, a convite da companhia Teatro do Ornitorrinco.

Desde então, a figura simpática de duas bundas vive na Casa de Vidro, antiga residência da Lina Bo e seu marido Pietro Bardi, tendo participado de diversas exposições mundo afora.

Para celebrar os 35 anos do Polochon, a Carbono Galeria e o Instituto Bardi desenvolveram uma edição exclusiva de 35 exemplares, com escala reduzida e renda revertida para o Instituto. A edição foi desenvolvida a partir de um escaneamento 3D do trabalho original e reproduzida em resina na escala 1: 4.

A caixa de madeira que acompanha e acomoda a edição foi inspirada nos desenhos do mobiliário de Lina. A obra ficará exposta e disponível para venda na Carbono, tanto na galeria quanto pelo site, e um exemplar também estará à vista na Casa de Vidro.

Editorial

Feira: um mergulho no Sertão

por Tomás Biagi Carvalho

É com imenso prazer que apresentamos a vocês a Feira, um sonho idealizado há anos e que toma forma agora, através da luz quente e estonteante do sertão brasileiro. 

Nesse primeiro lote da nossa loja online, propomos um mergulho no Sertão, trazendo objetos que bebem do realismo mágico da região do baixo Rio São Francisco, onde as riquezas culturais da Bahia, do Alagoas e de Sergipe se encontram e se potencializam.

A Feira acontece a cada três meses. Nela, lançaremos coleções temáticas de produtos que exaltam nossa cultura, explorando novas formas de expressá-la, com a intenção de fazer o Brasil olhar para si.

Saiba mais sobre a Feira clicando aqui.


Direção criativa: Tomás Biagi Carvalho
Direção: Gleeson Paulino
Direção de fotografia: Bernardo Nielsen
Produção executiva e assistência de direção: Ana Sano
Elenco: Dedé Fontes Torres, Carlos André de Amorim, Italo Victor, Jeferson Ricardo e Júlio César de Melo
Figurino: Alexia Hentsch
Montagem: Pedro Alves
Lettering: Mateus Acioli
Agradecimento especial: Augusto Falletti e Carolina Magano Prado
#35PresenteArtigo

Desejos para um futuro

por João Bandeira

O poeta João Bandeira oferece um presente aos tempos atuais

Atravessar a parada
Carregar o entendimento

Desligar as amarras
Reanimar todas as rodas

Enviesar os sentidos
Disparar o movimento

#35PresenteCulturaLiteratura

Pequeno manual para cena de crime

por Berna Reale

A artista Berna Reale oferece o seu presente para os tempos atuais

1. Isolar o local se este não tiver resguardo/não for isolado.
É, na maioria dos casos, a polícia quem isola a cena de crime assim que chega ao local. Não sendo efetuado esse isolamento, o perito criminal pode solicitar esse procedimento para que os trabalhos se desenvolvam e elementos e pessoas estranhas à cena não prejudiquem a análise. 

2. Observar em silêncio, falar somente o necessário. 
O silêncio é importante para que a análise seja feita com o que está na cena do crime. Perguntas devem ser precisas e com foco em respostas elucidativas. 

3. Mover-se com leveza e segurança. Entrar e sair na mesma direção. 
Evitar alterar a cena. Um movimento brusco pode contaminar a cena e apagar ou alterar vestígios. Andar em direções definidas, mesmo que em sentidos contrários, ajuda a preservação do local do crime e pode ser essencial para análise da cena. 

4. Esgotar-se em observações no local.
Uma cena pode conter muitas histórias; não deve ser limitada a poucas observações. 

5. Desconfiar dos sinais. Não se limitar à primeira comprovação. Fazer mais de uma análise. 
O perito criminal não deve limitar-se a uma possibilidade ou comprovação; fazer muitas análises é necessário para chegar a uma conclusão consistente. 

6. Não descartar vestígios à primeira vista, mas analisá-los. 
Vestígio é aquilo que é encontrado no local do crime que possa ter relação com o fato. 

7. Distinguir os sinais das provas, os vestígios das evidências. 
Evidência é o vestígio que, após analisado, torna-se uma prova. 

8. Preservar, recolher, analisar. 
Saber preservar e recolher um vestígio para análise é de extrema importância, pois este pode vir a ser um elemento de evidência do crime. 

9. Anotar, registrar espaço/tempo. 
Importante o horário e o tempo da chegada e saída do local, e todas as possibilidades de relação com o horário do fato. 

10. Não confiar na memória. Fotografar a cena geral e em partes. Fotografar tudo, em todas as direções/sentidos/posições e em alta resolução.

#35PresenteArteArtes VisuaisCulturaLiteratura

O Verde

por Marcelo Brasiliense

#35PresenteArteArtes Visuais

Nunca fui tão boa em esperar quanto te esperei

por Carolina Cherubini

O trabalho que apresento segue minha investigação a partir da edificação de objetos de memória afetiva como forma de revisitar o passado, trazendo-os para o presente atual. Esses objetos, reconfigurados de valores, assumem uma transposição temporal e, a partir desta nova composição, reorganizam-se e acolhem novas formas.

Tensões caras ao meu universo, como o equilíbrio, o acaso, o volume, a sobreposição e o próprio processo de construção, se convergem na imagem que aqui está, e questiono: como pensar os dias atuais a partir dessa investigação? 

A composição escultórica criada é única e suscetível à queda por vir, e a fotografia capta essa iminência ao criar uma suspensão no tempo, que nos traz novamente para o presente, mesmo que derradeiro e incerto.

Essa mesma incerteza aparece em questões que se fundem entre realidade e pictoriedade: como estamos em meio a todas as incertezas? A crise sanitária e política vai passar? Como estamos enfrentando o presente? A pilha de roupa vai desmoronar? Como pensamos o passado? Quem espero que vá chegar? Como pensamos o futuro? O copo de vidro vai se estilhaçar? 

São perguntas que antecedem as ações-respostas e, por isso, o ato de esperar se torna tão presente. É viver segundo após segundo, e, aqui, a cadeira assume sua imagem mais simbólica, a espera, e as roupas virtuosamente dobradas, a obsessão acumulada pelo tempo. 

O que vem acompanhado subjetivamente da imagem – a queda, a pós-queda, a vertigem, o tempo obcecado, a espera certa e a expectativa incerta – surge como reflexos dos dias atuais e nas formas de pensar o presente mesmo quando o fazemos criando projeções de um futuro.

#35PresenteArtigo

Sobre a capa

por Marcelo Amorim

Marcelo Amorim assina a capa
da edição Amarello Presente

Em janeiro de 2020, antes mesmo que a pandemia fosse anunciada, eu já estava exausto. Para mim, o começo dessas trevas que nos colocaram se demarcou anos atrás, com a perseguição aos artistas. 

Eu tenho a convicção de que as fábricas de notícias falsas usaram as artes visuais como seu laboratório, como primeiro alvo. Acredito que escolheram as artes visuais porque são um território de necessária liberdade para a experimentação. Pelo que me recordo, um dos primeiros ataques aconteceu ao MAM, em São Paulo, e eu me lembro de ficar surpreso com a a maneira como vídeos, memes, textos eram produzidos com agilidade e certo grau de sofisticação. Parecia ser – e hoje sabemos que era – algo orquestrado. Havia todo um maquinário atacando continuamente e criando nas artes visuais um inimigo imaginário para a população.

Foi, portanto, em um museu de arte que as notícias falsas começaram a ser espalhadas, que se instaurou como prática comum o assassinato de reputações, e foi dali que se espalhou como um vírus a imensa cegueira que levou boa parte do país a tomar a decisão de colocar no poder as piores pessoas, com as piores intenções. Como na fábula de Esopo, as rãs escolheram como rei um pássaro que por fim as engoliu. 

Estamos agora dentro de uma névoa cerrada e não enxergamos um palmo diante dos olhos. Na tentativa de dar um próximo passo, decidi me voltar às coisas mais fundamentais. Ao começo. Se, como artista, eu comecei fazendo autorretratos, pintando a óleo, foi nisso que eu me agarrei. Resolvi fazer uma série de retratos. A arte em seu gênero e linguagem mais tradicional – e como assunto, os artistas.

Para mim, o mais importante desse processo é que essas pessoas foram postas juntas, ainda que metaforicamente, ainda que apenas diante dos meus olhos ou penduradas na parede do meu ateliê, pois, como diz o ditado irlandês: é no abrigo uns dos outros que as pessoas vivem.

#35PresenteCulturaViagem

Capricho de mulher

por Alinka Lépine-Szily

O presente de Alinka para Noemi Jaffe

Eu nasci na Hungria e lá vivi até os 14 anos. Em 23 de outubro de 1956, quando a Revolução Húngara eclodiu, eu estava lá. Nesse dia, minha mãe chegou em casa e falou: “Vamos, vamos, porque estão derrubando a estátua de Stalin”. Ela se referia à imensa estátua de Stalin que ficava numa praça muito grande, em Pest, onde eram realizados os grandes desfiles de 1º de maio. A partir daí, a gente decidiu ir embora. No fundo, minha mãe e eu não queríamos ir, mas eu tinha um irmão de 17 anos, e ele sumia por vários dias durante essa época. Meses depois, em novembro, quando a Revolução já tinha sido derrotada, meu irmão nos confessou: “Eu preciso ir embora, porque participei de coisas. Eu tenho medo”. “Bom, você não vai embora sozinho”, respondeu minha mãe, que tinha perdido meu pai em 1945, em um dos últimos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. “Se você for, nós vamos todos”.

Saímos de Budapeste sem saber para onde ir, e nunca imaginei que acabaríamos no Brasil. Primeiro, caminhamos noite adentro em direção à Áustria, até encontrarmos uma aldeia. Lá, minha mãe telefonou para parentes que moravam em Viena, e eles nos acolheram durante algumas semanas. A ideia de então era morar na Alemanha, aproveitar que minha mãe dominava a língua e ficar na Europa. Fomos de trem e chegamos a um campo de refugiados na Baviera, que descobrimos ter servido como campo de concentração anos antes. Ainda estavam lá, inclusive, os lugares das câmaras de gás. Vivemos por semanas nesses grandes barracões de madeira, improvisados no formato de dormitórios com beliches, enquanto minha mãe passava o dia procurando emprego, mandando cartas para todos os lados. Mas, mesmo ela tendo doutorado em Química, a Alemanha de 1957 não estava recuperada, o que significava que conseguir emprego e moradia era um grande desafio. Foi quando percebeu que ficaríamos anos vivendo da ajuda do governo que minha mãe, uma mulher impaciente e decidida, declarou: “Sabe de uma coisa? A Alemanha não tem futuro. Vamos embora”.  

Voltamos para Viena ilegalmente, porque era proibido retornar. Tivemos sorte. Lá, nos registramos para vir ao Brasil, onde tínhamos parentes, fruto de um empreendimento do governo brasileiro dos anos 30, que trouxe muitos húngaros para construir uma fábrica de explosivos no interior de São Paulo. Nesse meio-tempo, minha mãe conseguiu um emprego como tradutora no consulado americano de Viena. Ofereceram a ela a oportunidade de irmos para os Estados Unidos. Lembro de quando ela chegou em casa dizendo: “Bom, tem a chance de ir para os Estados Unidos. Vocês escolhem. O que preferem?”. Imagina, eu tinha 15 anos, e meu irmão, 18. No nosso imaginário, o Brasil era uma aventura, com a Amazônia, os índios, as cobras e a selva. “Queremos ir para o Brasil”, dissemos. Naquela época, eu estava convencida de que fomos nós que decidimos. Mas, hoje em dia, acho que minha mãe fez uma pequena encenação. Ela não queria ir para os Estados Unidos, porque lá meu irmão imediatamente seria mobilizado para ser soldado, teria de servir na guerra, porque os Estados Unidos estão sempre envolvidos em uma, e ela queria ir para longe dessa realidade. Até porque o horror da Segunda Guerra ainda estava vivo na nossa família, e perder o marido havia sido o bastante. 

Viemos para o Brasil e nunca nos arrependemos. A viagem de navio foi fantástica. Saímos de Gênova e fomos parando. Primeiro em Marseille, depois Portugal, Dakar, Recife, Rio, até chegarmos em Santos. Ali, meu tio estava nos esperando para pegarmos um ônibus em direção a São Paulo. Lembro que foi emocionante ver a estrada velha de Santos, cheia daquelas curvas e aquela vegetação exuberante. Chegando da Europa do pós-guerra, a imagem desse verde em abundância marcou nossa chegada e segue viva em mim até hoje.

Desembarcamos sem nenhum tostão, claro, sem dinheiro para se instalar. Mas o fato de a minha mãe falar línguas sempre abriu portas, e ela logo conseguiu emprego em uma fábrica que tinha laboratórios químicos. Em seguida, fomos encontrar a colônia húngara, onde estavam os padres beneditinos húngaros que fundaram o Colégio Santo Américo, que existe até hoje no Morumbi. Nós os procuramos porque sabíamos de um grupo de escoteiros que era coordenado por eles. Sem saber falar uma palavra de português, não havia condição de frequentarmos a escola, e o grupo serviria como uma forma de socialização. Junto aos escoteiros, fizemos muitos amigos – amizades que duram até hoje, como a da minha amiga e tradutora Edith Elek. 

Foi a Edith que me apresentou à Noemi Jaffe, quando ela buscava alguém que tivesse estado em Budapeste durante a Revolução Húngara. Quando a Noemi me telefonou, ela me contou que estava escrevendo um livro sobre a Revolução e gostaria muito de conversar comigo. Bom, eu aceitei, claro, e foi um encontro ótimo, de simpatia mútua. Passamos muitas horas compartilhando histórias. Anos depois, em 2015, recebi um e-mail da Noemi dizendo que o livro estava pronto e me convidando para o lançamento. Na época, eu estava viajando a trabalho, e pedi que minha filha e uma amiga dela fossem no meu lugar. Para minha surpresa, foi somente com a publicação do livro Írisz: As Orquídeas, que descobri que a protagonista da história havia sido inspirada em mim. Recebi o livro com uma linda dedicatória da Noemi, e esse foi um dos presentes mais bonitos que já recebi, algo que me deu uma alegria incomparável. Durante o lançamento, a Noemi teve a sensibilidade de nos convidar, minha filha e eu, para jantarmos em sua casa. Mas aconteceu, então, essa coisa que é São Paulo, que tudo engole, e o convite acabou não se concretizando, e nunca mais nos encontramos. 

Passou-se um tempo, e recebi um novo e-mail da Noemi, dessa vez me convidando para participar dessa edição da Amarello. Quando pensei em quem eu queria presentear, rapidamente me surgiu a imagem da Noemi. Eu não tive dúvida de que era o momento certo de retribuir de maneira singela um pouco da alegria que ela me proporcionou com o seu livro. Por isso, escolhi como meu presente desta edição preparar um doce húngaro que remetesse à minha infância.

O Capricho de mulher (Nói szeszély, em húngaro) é um doce que evoca o aroma e os sabores do país que conheci quando pequena. Por ser simples, fácil e de ingredientes baratos, ele se tornou muito popular na Hungria, especialmente pela geleia de damasco, que acrescenta um sabor muito especial. Parece que hoje em dia ele saiu de moda, mas era um verdadeiro sucesso nos anos 50. Sabendo que a família da Noemi também é de origem húngara, imaginei esse doce como uma retribuição. Um presente que nos trouxesse conexão, afeto e, ao mesmo tempo, fosse símbolo de agradecimento.