“Faze o que quiseres”, eis o dístico sobre a porta da Abadia de Thelema, construída por Gargântua, na célebre obra de Rabelais. Única do palácio, no entanto, tal regra apresentava um terrível contraponto: “desde que agrade ao príncipe”. A galante vida da corte francesa demandava lá seus divertimentos espetaculares, para dar conta do enfado do dia a dia, e, a partir de um circuito fechado, acabou engolindo a si mesma; o lazer, a diversão e as extravagâncias impuseram novos sacrifícios, novos deveres, novos tédios.
Estudar a história francesa a partir do signo da melancolia aponta a caminhos dos mais diversos e, na vereda literária, a uma inevitável e desejável solidão. De Ronsard aos modernos, não faltam relatos de personagens solitários, a caminhar pelas ruas de Paris. Não por acaso a Cidade Luz ter inspirado uma das figuras literárias mais problemáticas, e também estudadas, que é a do flâneur. O flâneur do século XIX, o flâneur de Baudelaire, e até mesmo o de alguns séculos antes, é em essência um ser solitário. Caminhar pelas ruas de Paris tornou-se, em especial, a partir da apreciação crítica de Walter Benjamin, um emblema da experiência urbana moderna.
Quando chegamos em Proust, que creio ser o epítome que lacra a literatura francesa em dois momentos distintos de sua evolução, a solidão sofre um importante golpe que alteraria a experiência daquele que vê-se sozinho. Proust observa que desde Louis XIV, ou seja, desde a segunda metade do século XVII, a sociedade francesa, representada pela metrópole parisiense e seus arredores, passou por profundas transformações. A ritualística palaciana e aristocrática já não mais agradava ao príncipe. Todo o barroco da majestade do soberano, a cortesia dos cavalheiros, a beleza das mademoiselles, seus cavalos e suas carruagens, o alto espírito da realeza e seus cultos e discursos, tudo transformara-se em tédio profundo, antecipando e prevendo a repetição cotidiana da metrópole e de seus funcionamentos.
Proust, seja na ficção ensaística de Contre Sainte-Beuve ou pela narração de sua Recherche, estrutura a solidão como um movimento de escape das opressões tirânicas do hábito e observa o espaço do sujeito solitário fragmentando-se em cidades-modelo projetadas para destruir um dos últimos refúgios das liberdades urbanas. As estreitas ruas medievais de Paris e seus cul-de-sacs foram arrasados em detrimento de enormes bulevares, em uma espécie de coerção a partir do cenário urbano. O flâneur, por assim dizer, não deixou de existir, mas viu seu terreno completamente minado de uma coletividade, da qual sempre pretendeu fugir. Tal qual o albatroz de Baudelaire, que preso nas tábuas do convés, debate-se em um espaço que não é o seu. Como se o calçamento de Paris, surgido em 1184, de repente fizesse surgir uma armadilha terrível. A armadilha do bulevar, com a família a passear e os militares a observarem.
A solidão, para Proust, passa pela resolução de uma equação para lá de complicada. Nascido ainda sob os ecos sociais da supressão da Comuna de Paris, com o declínio da aristocracia e a insurgência da classe média durante a Terceira República, Proust construiu sua biografia em torno deste contexto em particular. Com livre acesso aos salões da alta burguesia, o autor era um fino observador da psicologia humana em pleno fin de siècle. O mundo pedia uma nova apreciação, que respondesse a novas ânsias de um novo mundo e, mais, de um novo fazer literário, por um distanciamento que condicionava uma nova, e problemática, solidão.
Nessa distância, também temporal, que reside o grande infortúnio da solidão de Proust que, para resolvê-la, precisa voltar para si mesmo e para suas memórias e reconstruir não apenas uma gênese do universo ficcional (e real, quando a nós espelhada) mas uma gênese do romance e da literatura – gêneses essas vinculadas por dois extremos, o do desejo e o da tristeza, mas que se tocam no ponto comum da solidão.
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América
por Willian Silveira
on which
i write the circumstances,
you are the solitude
that goes against me.
Sufjan Stevens
Passar a vida em uma cidade é o melhor jeito para jamais conhecê-la a fundo. O enraizamento – algo como viciar-se no cotidiano – traz o conforto ao preço de passar um verniz fosco sobre todas as coisas.
Andy Warhol sabia disso. Nascido em Pittsburgh, em 1928, mudou-se para Nova York aos 21 anos. Uma vez lá, poderia ter seguido o caminho dos colegas de geração Lucien Carr, Allen Ginsberg e Jack Kerouac. A inquietude para tal certamente não lhe faltava. Contudo, diferentemente do trio beatnik, Warhol não viu na estrada a saída para a falta de perspectiva dos paradoxos aparentemente incontornáveis dos Estados Unidos. Atravessar o país a esmo era uma escapatória possível para os garotos bem criados, tomados por pulôveres e gravatas da Columbia University. Para um aluno do operário Carnegie Institute of Technology, filho de pais imigrantes da Eslováquia, movimentar-se aleatoriamente não seria novidade, no máximo dandismo inconsequente.
Ainda que seja delicado afirmar o que fixou Warhol em Nova York, se a convicção das possibilidades ou a necessidade de se estabelecer, o certo é que ele fez da cidade o seu lar. Ao invés de compensar o momento norte-americano com errância, procurou entender os Estados Unidos. Para isso, viajou pelo país recolhendo impressões dos costumes e fotografando os contrastes encontrados. O resultado de uma década de viagens se encontra em América: “se tiver uma oportunidade de viajar pelo país, deve tentar aproveitá-la. Em especial, deve tentar ficar por algum tempo em cada lugar e dar uma boa olhada. Ninguém na América tem uma vida comum.”
Publicado tardiamente, em 1985, apenas dois anos antes da morte de Warhol, o livro é o último e mais inusitado projeto da sua carreira. Durante os anos 60, em especial a partir da inauguração do The Factory, Warhol se fez conhecer por uma série de investidas artísticas, entre elas as latas de sopa Campbell (“Campbell’s Soup Cans”, 1962), a série multimídia “Exploding Plastic Inevitable” (1966-1967), encabeçada pelo The Velvet Underground, e o filme “Chelsea Girls” (1966), codirigido por Paul Morrissey. O apelo pop da arte erigiu um mito, que transformou Nova York em um universo próprio e se tornou seu astro.
Entretanto, a fama que revela também oculta. A imagem pública construída à custa das celebridades pintadas sob mil cores, da ironia desmedida e do apreço pelo mundo das aparências transformou-o em um personagem, literalmente. Aos 40 anos, tamanha alienação quase lhe custou a vida quando Valerie Solanas, figurante de seu filme “I, a Man” (1967), tomada pela personalidade ausente do diretor, entrou na “fábrica” e disparou um par de vezes. Falar com ele, declarou Solanas, era como falar com uma cadeira.
América recupera para a posteridade a humanidade em Warhol. Espécie de antropologia artística da sociedade americana, no livro o artista pop atravessa o país com um olhar aguçado para transformá-lo em um índice sobre a cultura dos Estados Unidos: do amor ao exibicionismo (em vitrines), passando pelo comportamento das pessoas (em people), pelo culto ao corpo (em physique pictorial e vogue) e às celebridades (em all-stars), até chegar ao futuro (em life). No centro de todas essas reflexões, assinala os contrastes dos lugares pelos quais passou, como Washington, Kentucky, Texas, Aspen, Califórnia e, obviamente, a cidade de Nova York. Todos, diz Warhol, têm uma América própria, e todos têm os fragmentos de uma América fantasiosa que acreditam existir, mas não podem ver.
Aos 56 anos, depois do trauma de ter sido declarado clinicamente morto e ressuscitado, Warhol enxerga a América – que é como entende que os Estados Unidos devem ser identificados – com maturidade, voz essa distante daquela da personalidade emotivamente blindada das décadas de 1950 e 1960. Aqui, as diferenças se fazem sentir. O homem uma vez dado à vida noturna dá espaço à sinceridade em declarações como: “Sou do tipo que ficaria feliz em não ir a lugar algum, contanto que tivesse a certeza de saber exatamente o que está acontecendo nesses lugares. Sou do tipo que adoraria ficar em casa e assistir a todas as festas a que sou convidado em uma tela no meu quarto.”
Aos olhos de Warhol, a sua pátria é um cenário gigante, um aglomerado de pessoas diversas, de diferentes estilos e pensamentos. Mas o caráter heterogêneo, o traço que transforma a diferença cultural em orgulho nacional, soma-se a peculiaridades de formação, como a necessidade de viver no eterno “hoje”, fracionando e isolando os indivíduos. A solidão – ou o individualismo, essa versão moderna do mesmo – compactua com um retrato muito presente na arte norte-americana, do realismo de Edward Hopper (1882-1967) ao expressionismo abstrato de Mark Rothko (1903-1970).
Pela primeira vez desde o popismo, Warhol abre mão de apontar ironicamente as aparências para dialogar seriamente com os sentimentos da sua terra. Na passagem pelos cantos do país, pôde perceber que a cultura que tanto o inspirara era a mesma responsável por produzir a solidão em série. Por trás do desejo de fama, sobravam homens e mulheres desfigurados, irremediavelmente órfãos da notoriedade que lhes escapará cedo ou tarde. Se você tem uma vida real, chega a admitir Warhol, pode achar que é um grande perdedor; pode achar que, se pelo menos fosse rico e famoso, ou bonito, sua vida também seria perfeita.
Em América, a reflexão é um paradoxo entre a estupefação e a culpa. O avanço do projeto tecnológico-científico simula à população a possibilidade de chegar ao futuro primeiro. Esse timing desmedido fará do amanhã uma eterna expectativa, postergando e agravando o autoengano e a frustração. Em uma das fotografias de páginas inteiras do livro vemos Jean-Michel Basquiat (1960-1988). Artista original e de potência criativa ímpar, Basquiat tornou-se o protegido de Warhol. A relação, misto de admiração mútua e substituição paterna, resultou em uma parceria artística e afetiva rara, mas que não sobreviveria à vaidade daquele mundo por muito tempo. O rompimento afastou-os por um período suficiente para que Warhol, ao saber que perdera Basquiat prematuramente sem fazer as pazes, desejasse ter sucumbido ao atentado.
Sem melancolia e igualmente destituído de sentimentalismo, América é o retrato cru de um homem encarando o mundo. É o processo profundo de um artista frente às origens das suas alegrias e tristezas – frente ao mundo que criou e pelo qual foi criado.
Gaviões noturnos
Perto de casa, num bar/café que é a cópia perfeita do diner de “Nighthawks” do Hopper, tomo um café morno, tristonho. A cafeteira gigante com ar retrô, os homens de chapéu, as mulheres que forjam um mistério distante, de outro tempo, como se o que existe não desse conta, as revistas de época espalhadas pelo balcão e a música vinda do jukebox compõem o clima emocional do Phillies – uma ilha de nostalgia pelo que não se viveu, onde tudo é analógico e hiper-real.
Ou quase tudo. Debaixo de um chapéu de feltro pork pie, um tipo interessante bebe algo e folheia uma Manchete, na capa “a grande festa do Carnaval de 76”. Percebe o meu olhar e eleva o dele, sem esboçar sorriso; um olhar fixo e circunspecto que mexe, imediatamente, com meu ritmo cardíaco. O homem acende um cigarro eletrônico e volta a ler. Meu corpo treme em ondas erráticas.
Faz semanas que não troco mais de meia dúzia de palavras com outro ser. Falo sozinha, para não esquecer o som da minha voz e quebrar o silêncio; invento diálogos em que travo as duas partes. Penso nos ensinamentos do Dr. Sidharta, meu neo-psicanalista que flutua, e me esforço para resgatar memórias, colocando-as no papel. Mas elas são uma faca de dois gumes: preenchem o vazio ao mesmo tempo em que desenham novas fronteiras de isolamento.
Escrevo cartas curtas que serão lidas por mim mesma no futuro – se é que este presente um dia acaba. Escrevo diariamente para que a “futura eu” possa compartilhar do que sinto agora. O homem de chapéu pork pie lê a Manchete de mais de meio século atrás como se buscasse ali uma resposta. Escrevo como se fizesse o mesmo.
Querida Futura Lara,
Você teve alguns relacionamentos no último semestre, mas nada sério e todos com bots. Há um limite de intimidade possível de ser compartilhada com um robô que emite frases automáticas como “tira a sua calcinha agora” e “vou te comer todinha” (mesmo que ele o faça com maestria). Logo a bateria acaba e é você com você mesma, diante do espelho, tirando o rímel, (des)acompanhada de um robô que cessou de existir e tudo o que resta é sua ausente presença metálica, vagamente assustadora e, sobretudo, entediante. Fuja dos que te privam da solidão sem te fazer, em troca, qualquer companhia.
Com afeto,
Lara de 2049.
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Sinto o peso do olhar do homem de chapéu pork pie. Alguns momentos se passam (quanto mesmo?). Ele fecha a revista, se levanta, vem em minha direção; apoiado no balcão, fixa seus olhos em mim e pede ao deprimido cara do bar um café curto. O homem de chapéu pork pie fica de pé, ao meu lado, pensativo. Eu não mais escrevo; ele não mais lê. Ficamos os dois ali, existindo. Do jukebox, Tom Waits canta “Jersey Girl”. O homem de chapéu pork pie olha para mim e sorri. Ele deposita um pacotinho de sal em seu café. Eu tento impedi-lo, em vão. As linhas que delimitam meu isolamento se redefinem.
Na teia infinita profunda da web, eu tinha contato com fragmentos de arte que de alguma forma me curavam da sensação de não-pertencimento adensada pela vida a cada segundo. Minha última relação começou online com um Surreal Doll® de silicone, um robô bonitão, barbudo. Douglas® – era seu nome de fábrica –, como tantos outros bots, agia como um ser humano normal, de inteligência artificial mediana, com “opiniões” – pouco importava se eram dele ou não – sobre política e cultura pop. Ele gostava de mim, de forma meio programada, mas e daí? O que ele não tinha era um inconsciente. Eu mesma vivia num enorme deserto de alienação, com alguns oásis em forma de insights e pretensas tomadas de consciência, e passava a maior parte dos dias com saudade de algo que não sabia o que era. De alguém que ainda não conhecia.
O fato é que, antes das sessões de terapia com o Dr. Sidharta surtirem qualquer efeito e eu conseguir ter acesso a pastas ocultas de memórias, minhas horas livres eram gastas em chats de encontros virtuais, onde todos os gatos eram pardos.
André, o homem de chapéu pork pie – ou Cyberman 13®, seu nome original –, não é homem nem ciborgue. Não há nada orgânico em seu corpo. Mas ele sonha. Estou diante de um dos primeiros bots dotados de consciência artificial. Não sei por que estou te contando tanta coisa, ele me confessa, entre goles do seu terceiro café, agora açucarado e que, por alguma razão, não tem efeito sobre ele. Tomamos um vinho?, sugiro.
Falamos livremente, Cyberman e eu; e muito nem precisa ser dito. Nossa comunicação se dá em outros níveis. Passo a desconfiar de que talvez não sejamos mais os indivíduos que já fomos um dia. Ainda sólidos, com barreiras de pele e ossos que nos separam brutalmente uns dos outros, sim. Ainda impossibilitados de realmente conhecer outro ser. O que e como sente a minha mãe? Meu ex-namorado? O que Cyberman deseja lá no fundo? Já fui amada? Mas, além de sermos os corpos que nos separam, somos também redes, máquinas que habitam a mente de outras pessoas. Somos memória e estamos o tempo todo deslizando para dentro uns dos outros, nos entremeando e saindo de novo, ad infinitum e sem nenhuma explicação.
O relógio de parede aponta 1 da manhã, a hora instável, quando o nó no peito aperta. Dou por mim e estamos só nós dois no Phillies, além do deprimido atendente do bar, por quem sinto a maior compaixão do mundo. Respiro profundamente. Sou feliz neste instante. A música é interrompida e o cara do bar avisa, ainda mais deprimido, que é hora de fechar.
A displicência no modo de caminhar, o chapéu sobre os olhos e a grande saia com circunferência de 20m, o new look de 1947, representaram a grande onda lançada por Christian Dior em contraponto ao fim da Segunda Guerra. Alguém com a ideia de relançar o luxo num país paralisado por 3 milhões de grevistas, e que criou saias rodadas com tal leveza e quantidade de tecido num período econômico tão delicado, teria de ser considerado um alucinado por muitos. Mas o new look foi mais do que um sopro, foi uma ventania misteriosa nas ruas de Paris. Foi a resposta definitiva de esperança do estilista francês às intempéries causadas pelo fim da grande tristeza mundial. Dior achava que as mulheres precisavam de um motivo para sonhar, de um respiro de felicidade, de uma energia de esperança e amor.
Seria então necessário alguém com o princípio minimalista de Raf Simons para injetar um bom compasso de modernidade à maison Dior, num momento em que o mundo passa, de novo, por grandes ventanias, e para redescobrir a alta costura?
Ao longo da vida da marca, todos os criadores que por ali passaram, cada um com seu próprio carimbo, ovacionaram a extravagância e o exagero: “John Galliano fechou os portões da temporada de criações tão poderosas e excessivas no mundo da moda paralelamente à morte de Alexander McQueen”, lembra João Braga. Estava na hora, portanto, de flertar com o universo do consumidor mais jovem, tempo de menos teatro e super poses. Hora de usar alta costura no cinema, na galeria de arte, na gig, na aula de pilates e no café da manha.
Raf Simons, nascido na calma vila rural de Neerpelt, na Bélgica, filho único, cresceu rodeado de tios, tias, primos, em meio à natureza. Formou-se em design industrial e de mobiliário em Genk, onde fazia parte da turma dos estilistas Martin Margiela, Helmut Lang e Catherine Malandrino (integrante do grupo conhecido com o nome de Antuérpia 6).
Em 1995, Raf lançou sua primeira marca de roupas masculinas, incentivado por Linda Loppa, da Academia Real da Antuérpia (respeitada escola no mundo das Artes e da Moda), ao som de new wave e punk, mesma época em que relançou o skinny black suit. Música sempre fez parte do trabalho de Simons; em 1998, ele colocou os membros da banda Kraftwerk na passarela como modelos de seu desfile.
Sua primeira coleção foi inspirada em uniformes escolares — inspiração recorrente em sua vida, pois estudou em escola católica rígida. As duas seguintes também continuaram traduzindo essa mesma ideia de formas. A coleção de 1996, que se chamava We only come out at night (“A gente só sai à noite”), foi lançada em um vídeo feito por meninos que se reuniam no porão depois de uma festa de família, trocavam suas roupas sociais por roupas confortáveis e jogavam sinuca, retrato de sua geração.
Seu primeiro show foi apresentado em Paris, em 1997, e já nasciam naquele momento características que mais adiante seriam parte de seu estilo minimalista, executado com grande perfeição na alfaiataria masculina. Cinco anos após sua primeira apresentação, por meio da qual se firmou com um olhar à frente entre as marcas de menswear, seria responsável por romper padrões, misturar roupas casuais aos ternos e subverter as formas da alfaiataria.
Quando à frente da marca Jil Sander, onde ficou até o convite para integrar o time da Dior, a editora do The New York Times, Cathy Horyn, escreveu sobre ele: “A coleção do Sr. Simons para a Jil Sander – a sua terceira desde que se tornou diretor criativo da marca, há 18 meses – é perfeita. Vai fazer com o que todo o resto pareça pouco inovador, desajeitado e um pouco pateta”.
Trabalhando com Jil Sander, a darling do minimalismo belga, ele encontrou silhuetas ainda mais refinadas, lânguidas, e soluções para um estilo que sempre teve no seu DNA. Simons foi até o âmago do assunto com a “mestra” da questão e atingiu propriedade absoluta no minimalismo. Nada mais sensato do que o grande desafio que viria depois, o de rejuvenescer a Dior.
Dessa maneira, parece que as formas similares ao new look jamais foram revistas com conexão tão real e contemporânea ao espírito de 1947. Simons é conectado, à sua maneira, com a alma transgressora de Christian, o que é mais do que uma ligação puramente material ou física com suas criações. É uma ligação espiritual com todos os códigos da marca.
Há uma leveza insolente que caracteriza a maior parte da coleção de alta costura apresentada pela marca – em saias que aparentam quase sempre uma elegância tranquila e brilhantemente sofisticada.
Raf é dono de uma mentalidade artística obsessiva, ao mesmo tempo que se mantém conectado com suas verdades do coração, as quais transpõe às mãos — o que se supõe de um artista que comanda a arte da alta costura. Se no menswear ele colaborou ao eliminar volumes nos ombros, agora é o mágico reconstrutor que redefine a basque de Dior brincando com enchimentos que, em 1947, foram responsáveis por chocar um planeta. Manteve o busto ajustado, mas inventou um novo jeito malemolente de se mover, com saias livres e ultraelegantes, para quem, como eu, se interessa também em celebrar a vida com algum movimento.
“Só receio uma única coisa neste mundo –
os momentos em que a vida se congela dentro de mim.”
Marina Tsvetáieva
Na virada para o século XX, observou-se no mundo ocidental uma guinada de produções intelectuais que priorizavam o uso da imaginação na busca pelo conhecimento. Ao negar tanto o realismo quanto o romantismo, autores como Freud e Proust reconheceram, cada um em seu métier, a importância da fantasia na reflexão sobre a realidade. É recorrente nesses autores a evocação de imagens – principalmente de sonhos e memórias – para investigar as profundezas da mente humana. Ao apreender as imagens, o olhar legitima a descoberta, mas também abre espaço ao desejo, que pode se ver frustrado.
O advento do cinema na última década do século XIX decorreu de descobertas tecnológicas, mas seu desenvolvimento só pôde se dar nesse terreno fértil. Afinal, o que é a narrativa cinematográfica senão a tentativa – mediante cortes e movimentos de câmera, que permitem sugestão – de adicionar um toque de imaginação à representação da realidade, a fim de superá-la? Gostaria de me debruçar sobre o lugar reservado à fantasia na obra de Alfred Hitchcock.
Em uma entrevista a François Truffaut, Hitchcock explica a diferença entre suspense e surpresa: caso haja uma bomba próxima ao protagonista, o diretor pode assustar o espectador desavisado com uma explosão ou mostrar-lhe a bomba e permitir que sua própria imaginação crie o suspense. Ao dar lugar à fantasia do espectador, a angústia e a tensão provocadas podem ser intermináveis, e Hitchcock percebeu que nossos desejos podem se realizar, em alguma instância, por meio do voyeurismo.
Psicose (1960) é seguramente o caso mais emblemático. Nesse filme carregado de elementos psicanalíticos, penetramos pouco a pouco – e a cada passo cientes dos desejos de “má conduta” que liberamos ao assistir um filme sobre comportamentos inadequados – o mistério em torno de Norman Bates e sua mãe. Hitchcock explora a fantasia do espectador em cada plano do longa-metragem, em especial na célebre cena do chuveiro.
Em Festim Diabólico (1948), dois amigos assassinam um colega e colocam o corpo no baú da sala onde oferecem um jantar. Entre os convidados estão os pais e a noiva do morto, e ele mesmo é esperado. Ao nos revelar desde o início do filme seu paradeiro e o plano dos assassinos, Hitchcock permite que nos sintamos parte do plano e que suspendamos, sem perceber (ou quase) nossas convicções morais. Saboreamos como nossa, com prazer e apreensão, a tensão do criminoso que desejava praticar o crime perfeito.
Esse abandono de convicções também está em Janela Indiscreta (1954), um filme que aborda esse prazer advindo do olhar e da imaginação. Assim como o protagonista, Jeff, está preso a uma cadeira de rodas, estamos presos ao seu olhar conforme ele observa os vizinhos pela janela dos fundos. Espiar a vida alheia certamente não é uma conduta admissível, mas, como espectadores, percebemos ser aquilo que buscamos ao assistir um filme. Quando Jeff identifica comportamentos estranhos em um dos apartamentos que observa, acompanhamos o percurso de sua imaginação, desde a angústia pela ausência de provas contra o suposto assassino à apreensão por Jeff e sua noiva.
O primeiro filme no qual Hitchcock explorou esses elementos foi Rebecca (1940). Ali, a obsessão da governanta pela memória da falecida torna a mansão macabra tanto para a protagonista quanto para o espectador, ambos os quais desconhecem a verdadeira Rebecca. Seu fantasma se esconde em cada cômodo da casa, e, assim como em Janela Indiscreta, tememos o que construímos em nossa mente – que pode ser ainda mais terrível que a realidade.
A experiência subjetiva do espectador tem papel importante nos filmes de Hitchcock, e os medos e desejos despertados, uma vez depositados na narrativa, a intensificam. Ele conduz o espectador a evocar – e desafiar – o obscuro da narrativa e de sua própria mente. Essas e outras razões tornam sua obra perene e fazem dele um mestre do suspense – e do cinema.
Ao analisar a produção cinematográfica atual, contudo, percebemos que realidade e fantasia vêm desvinculadas. Há uma preferência ou pelo realismo exacerbado ou pela criação de um universo fantástico que foge completamente de nossa realidade. O cinema está perdendo suas nuances, e a falta de espaço destinado à imaginação impossibilita que realizemos desejos a partir do prazer que sentimos ao olhar.
Os olhos de Sidharta
Não sinto nada, a não ser um gosto de metal na boca; é o que digo na sessão com o Dr. Sidharta Singh, a primeira, no seu consultório branco e minimalista, com toques orientais de um passado recente.
Ele me observa sob seu turbante azul, com olhos negros, por um tempo que não sei medir, já que vivemos um presente sem fim. Da cadeira ovo em que me sento posso ver – estamos no 39o andar – algumas cápsulas voadoras que passam disparadas à altura da janela. Famílias entediadas, coletivos sem propósito e viajantes com destinos ultraplanejados transitam no ar. É um dia bonito de junho, ano de 2049. Sinto o sol quente e o prazer instantâneo do calor na pele logo dá lugar a um vazio frio. Tento me lembrar por que estou aqui, mas meu cleverphone está sem sinal.
Meu diagnóstico, eu mesma adianto: desejo hipoativo. Dr. Sidharta diz, Fale mais sobre isso, Lara. Não sinto nenhum desejo nem a formação de nada que se pareça com a inspiração de um querer mais profundo. Alguns espiritualistas diriam que você se livrou do sofrimento de desejar, ele tenta. Olho para ele com meus olhos opacos.
Sabe como é, tudo o que faço na web, cada busca, cada post, alavanca um novo produto criado especialmente para me definir ou aplacar minhas compulsões. Os infinitos hashtags permitem que em zeptosegundos milhares de conexões sejam feitas entre um prazer instantâneo e a possibilidade de um desejo de consumo que não chega a nascer, porque já foi intuído e transformado em wish list inconsciente. Não é desejo; é vício.
Tudo o que tenho de fazer é dizer sim, não há nãos. Minhas bandas, livros e filmes favoritos foram tão plagiados, e com tanta eficiência, que só posso apreciá-los friamente. As emoções não são muito suscitadas: atrapalham o funcionamento das coisas. Importante é o próximo estímulo. Fazer sexo com humanos ainda rola, esporadicamente, mas com softwares de inteligência artificial, robôs ou desconhecidos on-line, o custo/benefício tende a ser maior.
Por quê? O prazer é maior?, ele pergunta. Não. Eu hesito: às vezes, na verdade; essas máquinas são treinadas para fazer exatamente o que quero. Então é consistente, sem todos os riscos que relações com humanos podem trazer: os robôs nunca te dão foras. E tem um que entende de arte, é engraçado até; ando passando mais tempo com o Cyberman 13. Existe um afeto, então?, questiona Dr. Sidharta. Quando ele é recarregado por tempo suficiente… mas… é uma pulsão de vida que me falta. Tem cura, Dr. Sidharta? Nos olhos negros não há resposta.
Você pode me falar de momentos prazerosos que já tenha vivido?, ele indaga.
Não tenho acesso a estas pastas, explico.
Quando percebi que estava perdendo a memória ou o acesso a ela, uma amiga hacker me apresentou alguns fóruns da teia infinita profunda. Há milhares deles. Frequento um clube submerso em que é possível ter contato com os chamados ‘feelings’, reminiscências de um passado moderno/romântico. Ali há restos de memória, fala-se de tempo e desejo; de sensualidade, mundo, poesia, espiritualidade; conceitos que hoje não são mais que ficções.
Chá? Aceito uma xícara para tirar o gosto da boca. O calor perfumado sobe pelas minhas narinas, forte, picante, e chega no meu cérebro como um choque elétrico. Meu corpo todo parece vibrar. Há anos não sinto cheiro de nada!, digo, e tento escanear as reações sutis da experiência. Sidharta me olha, seus olhos sem íris, de tão pretos.
Algumas cenas e imagens são descarregadas das minhas pastas mentais. Sou presa nas engrenagens de uma máquina; danço com um homem de polainas; um trenó me leva rapidamente para a infância; um homem me lambuza de whip cream e lambe; num conversível, me jogo no abismo. Calma, não reconheço essas memórias!
Não se preocupe com memórias muito claras; elas não são tão confiáveis, de qualquer forma. Ele se levanta e se aproxima quando diz isso, me guardando um segredo, o mais importante: a memória é o hiperlink para o desejo.
Mas essas memórias não são minhas, digo, atônita, e mais uma pasta se abre: estou num campo de trigo, com corvos; o céu escuro, três possibilidades de caminho; as cores vibram. Dr. Sidharta me olha, respira fundo e faz som de telefone, que não existe mais, trim trim, 2049 para Lara. Vivemos uma hiper-realidade, lembra? Tanto faz se as memórias são ficções: são suas ficções. O importante é a conexão, é ter contato com elas, diz Sidharta, agora quase flutuando.
Então, quer dizer que, baseada em memórias fictícias, vai brotar um desejo real? E como vou saber se esse desejo é meu mesmo?
Suas memórias – fabricadas ou emprestadas – já apontam para um desejo. Ou para múltiplos desejos. Um não existe sem o outro. Até a próxima semana?
Já? O efeito do chá passou. Olho mais uma vez nos olhos do Dr. Sidharta, agora flutuando, para ver se sinto alguma coisa. Não. Por enquanto, nada.
Café, água e bolacha: Teo Vilela
por Revista Amarello
Você nasceu em Araçatuba. Me conte um pouco sobre como veio parar em São Paulo.
Eu me formei em Direito e vim a São Paulo para trabalhar. Trabalhei com direito por um período muito curto, dois, três anos, e nesse período já estava superinsatisfeito com o que fazia, porque não gostava, e só fazia por uma obrigação familiar. Nunca fui de ficar parado, e, como sempre gostei de decoração, de arrumar a casa, deixar a casa mais bonita – não com um projeto novo, mas com o que tinha mesmo, com o que já existia –, resolvi fazer um curso de decoração. Comecei a fazer uma graduação na Belas Artes – era a primeira faculdade com curso de Design de Interiores que existia no Brasil –, mas aí, por falta de paciência minha, um professor me sugeriu mudar para um curso livre no SENAC, que era bem mais curto, e com certeza eu iria chegar também aos meus objetivos. Como já havia cursado quase um ano na Belas Artes, fiz o curso do SENAC em um ano, e já comecei a trabalhar nesse período na Tok&Stok, no final de semana. Durante a semana ainda trabalhava num escritório de advocacia. Teve todo um processo, porque minha família não queria muito que eu fizesse outra coisa além do direito, mas resolvi mesmo que não era o que queria e decidi correr atrás do que gostava. Nessa época, conheci uma senhora que trabalhava com antiguidade; ela comprava e vendia peças informalmente, e comecei a me envolver com isso e fazer também compra e venda informal de antiguidades.
E isso foi quando, mais ou menos?
Em 2001, me associei à Associação dos Antiquários de São Paulo. E, logo depois, já comecei a fazer as feirinhas de antiguidade, a comprar e vender – comprava para vender nos finais de semana na feirinha, tanto a da Benedito Calixto, no sábado, como a do MASP, no domingo.
Não sabia dessa sua passagem nas feirinhas.
Sim, durante a semana entrava no D&D às dez horas da manhã. Antes disso, acordava às seis e ia a vários pontos estratégicos onde conseguia garimpar coisas; Família Muda-se, etc. Mudei meu horário de trabalho para conseguir fazer todo o garimpo na parte da manhã e trabalhar à tarde. Mas passou um tempo, e a coisa do empreendedor, que sempre tive muito forte, falou mais alto, e não dava mais para ficar trabalhando exaustivamente durante a semana, e no final de semana também trabalhar nas feirinhas. Foi aí que comecei a perceber que o meu próprio trabalho estava dando mais lucro que meu emprego fixo, e que poderia me dedicar a ele durante a semana também.
Então, em 2004, fui passar um período em Londres, e foi lá que comecei a reparar que o mobiliário brasileiro já estava sendo muito comentado, e que os antiquários já estavam meio que abandonando a parte clássica e entrando em um período modernista.
Você voltou em 2005 para abrir a loja?
Voltei já com o intuito de abrir a loja. Como tinha ficado um ano de folga, tinha que trabalhar de novo, e acabei abrindo-a em novembro de 2007. Mas, até 2011, continuei fazendo as feirinhas de fim de semana, para pagar as contas.
E qual é a peça mais procurada na loja?
O que as pessoas mais compram são poltronas. Acho que é um detalhe importante e que dá um charme diferente na casa. É um lugar que você chega, senta, descansa, você vai ler ou vai bater papo… Então, acho que é uma das principais coisas que você vende.
E para você, qual é seu objeto de desejo?
Eu olho sempre tudo, gosto de tudo. Quando entro em um lugar, faço um raio-x de tudo que existe ao meu redor. É impressionante. Às vezes fico até sem graça, porque é instintivo. Olho do rodapé ao teto. Sou preocupado com uma linguagem, sei identificar o que não está feito direito ou que foi totalmente alterado. Quando fazemos um restauro, uma tapeçaria nova, tento deixar a peça o mais próximo da originalidade possível. Então, isso me chama muito a atenção. Está vendo aquela poltrona? (Aponta para uma poltrona perto de onde estávamos sentados). É uma Zalszupin forrada com tecido de nuvem. Como uma pessoa chegou em algum momento e resolveu colocar um tecidinho de nuvem em uma poltrona feita de couro há sessenta anos?
Excelente!
É muito doido isso, são modismos que passam. Oitenta por cento dos móveis que compro já sofreram algum tipo de intervenção.
Então existe um trabalho de pesquisa imenso?
Sim, e o material didático praticamente não existe. Quando vou comprar algo, de uma pessoa, por exemplo, fico batendo papo com a senhorinha, com o senhorzinho um tempão para pegar alguma informação nova, porque essas coisas não existem! A pesquisa é muito grande. Você vai procurar uma revista, às vezes, da época, uma Casa e Jardim, que existe há mais de cinquenta anos, a Casa Cláudia, ou então busco uma revista estrangeira mesmo. Existem fábricas aqui da década de 1920 que já faziam mobiliário moderno, mas pouca gente fala disso. Quando começaram a falar aqui no Brasil, o principal era o Warchavchik, que veio para cá nos anos vinte com a família, mas deve ter começado a trabalhar na década de 1940. O primeiro dado de que falam é que o Warchavchik começou a fazer o móvel modernista para combinar um pouco com a arquitetura que estava sendo feita na época. Mas Niemeyer também, Sérgio Rodrigues, Lúcio Costa, todos eles fizeram um pouco de mobiliário para acompanhar a arquitetura que faziam.
Mas, se Warchavchik começou a produzir nos anos 40, quem são essas pessoas dos anos vinte de que você falou?
Móveis Cimo, que era uma loja em Lageado, no Paraná, e já era uma fábrica da década de 1920. Essa fábrica funcionou por muitos anos, e é muito difícil encontrar um dado a respeito do design, de quem desenhou. Eles fizeram muitos móveis – não era um móvel superfino, mas teve uma inserção no mercado muito grande.
Como você formou sua equipe?
Está cada vez mais raro encontrar essa mão de obra. Antigamente era um ofício, as pessoas estudavam no Liceu de Artes e Ofícios para se tornar marceneiros. Um deles trabalha na parte de estofamento há mais de trinta anos, e o outro deve trabalhar com isso há quase trinta anos também. São pessoas que, com o tempo, vão absorvendo essas técnicas no trabalho de pai para filho. Eu me lembro que, lá atrás, quando fiz o curso de decoração e ainda nem sabia que iria trabalhar com o que trabalho, fomos visitar uma marcenaria, aqui perto de São Paulo, com a Etel Carmona (proprietária da Etel Interiores). Na época, ela havia pego grande parte do pessoal do Liceu de Artes e Ofícios e levado para trabalhar com ela. Me chamou muita a atenção, era um trabalho superartesanal, um trabalho de amor.
Tem um tapeceiro meu, baiano, que é muito cuidadoso. Ele pega o tecido e fala: “Ah, não, esse tecido é muito mole, vai acontecer isso e isso, tudo bem? Quero que você saiba.” “Esse tecido é muito duro, vai acontecer isso, porque a curva…” É uma pessoa que pega um móvel e não olha simplesmente como uma coisa que tem que cobrir de tecido. Olha com carinho, como um médico vai olhar para um paciente. Porque, muitas vezes, para essas pessoas mais antigas, a capacitação fazia parte do processo. Ele falou que trabalhou dois anos numa tapeçaria que até hoje é considerada uma das melhores de São Paulo, como assistente na mesa. Após dois anos, se fosse capacitado, aí poderia assumir outra posição. É demorado, toma tempo. Existem tapeçarias em cada esquina, restaurador de móvel em toda esquina, mas a pessoa às vezes não está preocupada com o que no móvel precisa ser feito, e faz de qualquer jeito, coloca um prego em um móvel que foi todo construído, colado e encaixado. É muito complexo, e de repente você detona, porque espana, estraga, muda a estética.
Sempre procurei saber pesquisando, perguntando. Às vezes você tem que trocar uma folha de uma madeira de um móvel, mas essa madeira não existe mais. Então às vezes você tem que comprar um móvel que está totalmente danificado, ou você procura o resto de uma peça, que foi abandonada em algum lugar, para poder restaurar.
Como você acha que o local de trabalho influencia a sua produção?
Ter espaço é essencial, porque consigo manusear com facilidade, e ver as peças de diversos ângulos. A minha área de trabalho sempre foi muito mais cheia, funcionava como depósito e restauro. Antes era tudo junto. Agora, com as áreas separadas, a produção fica melhor. Conseguimos ver melhor os defeitos, temos mais tempo para cuidar dos móveis e prepará-los bem para o mercado novamente.
Existe algum projeto específico pelo qual você tenha mais carinho?
Existe. Recentemente comprei uns móveis de uma senhora judia que sempre foi supercuidadosa com as peças. Ela encomendou um projeto de mobiliário do Tenreiro, em 1969, 70. Ela tinha um amor tão grande, sabia de toda a história. Foi muito legal bater papo com ela porque ela contou da negociação, contou de como foi feito o processo, como ele desenhou os móveis. Ela não estava interessada só em vender. Estava preocupada com o destino daqueles móveis. Eram peças de 46 anos, que nunca tinham sido mexidas. Comprei a casa toda.
Era tudo de jacarandá?
Tudo de jacarandá! Você vê o peso desse sofá? (Mostra o sofá em que estamos sentados). Está vendo? Tudo maciço, e tudo torneado. Imagina quantas árvores usaram para fazer isso, não existe mais.
Que coisa linda a estrutura dele por dentro.
É uma preciosidade. O trabalho do Tenreiro é um trabalho que não existe. É trabalho feito por artesões, trabalhos artesanais de séculos. No caso dele, a geração do pai dele era de marceneiros, o avô dele era marceneiro. É uma coisa que você vê a construção, o jeito, é tudo muito bem pensado. Ele não fazia o móvel só pela beleza. Fazia pelo conforto. O móvel dele é, muitas vezes, muito delicado também, mas, por exemplo, as cadeiras dela, ela soube cuidar muito bem, e estavam todas intactas. É lógico, um verniz está feio, ou outra coisa. Mas é coisa simples de corrigir. Acredito que o móvel do Tenreiro é o móvel brasileiro mais inspirador. O móvel mais bonito.
Teo, existe alguma peça de desejo que você procura e até hoje não encontrou?
Existe. A cadeira de três pés do Tenreiro. Essa eu gostaria de ter para mim, que é um móvel raro, feito numa edição superlimitada. Desde que comecei aqui, já chegaram pelo menos umas três na minha mão, mas vieram réplicas, não as originais.
Falando dessa questão da réplica, que é uma boa discussão – que, por um lado, democratiza a possibilidade de pessoas poderem ter…
Mas, quando falo da réplica, é quando alguém produz dizendo que é original, e não uma releitura.
Existem pessoas que acabam extraindo um jacarandá (jacarandá está em extinção, e não pode ser mais usado para fins comerciais) que existe por aí ainda, ou uma madeira muito similar ao jacarandá, e produzem móveis dizendo que são originais. Inclusive, recentemente, um artista plástico comprou as cadeiras e eu falei: “Essas cadeiras já vieram para mim, e não são originais. Não tenho por que te falar que é original, não estou querendo acabar com o seu tesão pelas peças”. Mas existe uma turma aí, de bons marceneiros, que está fazendo para ganhar dinheiro.
É porque uma coisa é réplica, né?
É, e uma outra coisa é uma releitura. Eu acho que a releitura faz parte. Acho que é bacana que o trabalho de um designer, depois de ter caído no esquecimento por décadas, volte à tona, como foi o caso do Sério Rodrigues e do Zalszupin, que ainda está vivo. O Sérgio Rodrigues teve altos e baixos enormes na vida dele. Uma pessoa que ficou durante um bom tempo sem nada. E uma pessoa que sempre foi supercriativa, premiada, mas de repente é esquecida. Acho que democratizar o design é importante, mas uma coisa que eles não vão conseguir é a qualidade. Incentivar esse mercado paralelo de madeiras que não existem mais também, porque é totalmente insustentável. A madeira certificada brasileira, que é plantada para produzir a madeira maciça boa, praticamente 90% vai para fora do Brasil. E é um processo que é tão caro que a indústria nacional não consegue absorver. Os lotes bons, as melhores pranchas de jacarandá, iam para a Escandinávia, não para cá.
Você troca bastante as coisas da sua casa?
Moro num apartamento que é dos anos 60, e que até hoje não reformei. Ele está com as paredes originais, as tomadas originais. Tenho que fazer uma reforma nele, mas fico um pouco tenso de ver essas mudanças muito grandes, fico um pouco preocupado. Mas tudo tem uma evolução.
E quais seriam as suas maiores fontes de inspiração?
Acho que a minha família é uma das minhas maiores fontes de inspiração. Tanto meu pai como minha mãe foram pessoas que trabalharam a vida inteira, sempre gostaram do que faziam, e ficaram orgulhosos do que me tornei independente do que tivessem traçado na cabeça deles.
Sempre gostei muito de antiguidade, isso veio muito da minha mãe, ela gostava muito. Lembro que em Araçatuba tinha uma mulher chamada Tereza Cacarecos e que minha mãe adorava ir na tal da Tereza Cacarecos. Era uma mulher que juntava coisas, ia nas fazendas lindas de Minas Gerais, comprava tudo, e empilhava tudo na casa dela – parecia com isso aqui que vocês estão vendo. (Aponta para o galpão de centenas de móveis que ainda serão restaurados). Era uma diversão ir até lá, nem que fosse para tomar um café com aquela senhora. No dia em que minha mãe falava que iríamos lá, ficava sentado na cadeira esperando ansiosamente. Minha mãe sempre gostou muito de reciclar coisas – sempre foi preocupada em reutilizar coisas que talvez já não tivessem mais uso, não jogava nada fora. Venho pensando muito nisso. Talvez o meu gosto venha muito daí. Acho que o design, de uma maneira geral, me inspira.
Sobre o que não se pode falar
por Leandro Oliveira
Chega inevitavelmente a todos a hora em que somos chamados a justificar nossos pensamentos e palavras, nossos atos e omissões. E qual não foi minha surpresa quando, da simpática revista Amarello, surgiu essa convocação. Acabo de ser consultado sobre o falatório da arte de nosso tempo – afinal, por que precisamos de tantas teorias, bulas, contextualizações e justificativas quando lidamos com a arte? A pergunta, escusado escrever, expõe as minhas próprias entranhas profissionais, já que vivo de teorizar, receitar, contextualizar e justificar em palavras e textos o maravilhoso e complexo mundo da música clássica. Assim me resta apenas defender, para os séculos dos séculos, a minha profissão.
Começo pelo princípio: é um mito recente imaginar que a compreensão intelectual da música seja caso de nossa modernidade (ou, já que estamos no terreno apocalíptico, de nossa pós-modernidade). Umberto Eco comenta, em algum momento de seu livro sobre a estética medieval, que já por ali se verificava algo muito sintomático: ao falarem de “músico”, entendiam os medievais “o teórico, o conhecedor das regras matemáticas que governam o mundo sonoro, enquanto o executante é frequentemente apenas um escravo sem perícia e o compositor é um instintivo que não conhece as belezas inefáveis que só a teoria pode revelar”.
Talvez sejamos de outra cepa, talvez não. Mas é claro que o vício de nossa teorização tem outras matrizes. A mais significativa delas diz de sua finalidade: hoje, nossa teoria vem para explicar a obra – a arte, a música, o texto – e não, como para os medievais, para explicar o mundo. Isso é assim porque, se um dia a preocupação da oportunidade da ação do homem para a boa lógica do cosmos era o que justificava a alta conta da teoria, atualmente a fórmula se inverte: é a própria expressão individual da obra de arte, por vezes com predicados íntimos ou puramente solipsistas; é a própria expressão, ia dizendo, que deverá servir como medida para a ordem do cosmos. Teorizamos pois cremos encontrar na música respostas para o Universo, e não o contrário.
Mas há um risco, e acho que de sua percepção partiu a convocação dos editores de Amarello. Afinal, quando a música ou a arte em geral se tornam prosélitos da subjetividade, convidam a nós do público a sermos, com os criadores, meros sensacionalistas, no sentido daqueles tomados por impressões ligeiras, emoções e percepções intuídas. Ora, o leitor há de saber que, se expressar medidas íntimas não é fácil, evidentemente entendê-las é ainda mais difícil – se é que possível. Incorremos no risco do sensacionalismo quando usamos a teoria como uma muleta, falando de música por crer que os elementos objetivos para sua avaliação são falidos.
Ou, dizendo de modo mais generoso: para nossa era, a música e a arte são o transporte para um lugar especial, que podemos chamar poeticamente de “geografia das emoções”. Mas o que fazemos individualmente por aquelas searas, como nos prendemos ou somos levados para este lado e não aquele, por que paramos em dado recanto e por ali nos regozijamos, isso é matéria misteriosa, pois dali retiramos um “significado”. Entre a “emoção” e o “significado”, dois gestos íntimos, ficam as nossas fabulações, mero exercício de entender e se fazer entendido.
O gabião de Manuela Costalima
Numa pedreira, a enorme massa mineral dobrou-se à vontade humana, desfazendo-se em pequenas partes. A grelha de metal encerra esse conjunto de pedras.
Um gabião é um bloco estanque, um troço que sustenta os cortes que o homem infringe na terra crua. Por meio dessa gaiola de pedras a terra é ali contida, para não ocupar espaço indesejado. Um gabião, apesar de composto por um conjunto de pedras, dá a impressão de corpo homogêneo, assim como parece ser coisa única a multidão. Quando dela se aproxima é que se percebe as singularidades das partes que a compõem. A pedra foi retirada da paisagem. Ela é bem maior do que as da pedreira. Sua forma é única, moldada pela natureza. Essa pedra rompe a tela metálica e passa a fazer parte do conjunto, está interposta, parte fora, parte dentro da gaiola. Ela se destaca no conjunto, está emoldurada por ele. Amolece o bloco rijo e traz a ele novos significados. Por meio dessa grande pedra retoma-se à natureza primeira das outras. Ela é, deste trabalho, pedra angular.
Protect me from what I want
Somos feitos de som e fúria, já dizia Shakespeare. O velho Freud adicionaria que, entre fezes e sangue, nascemos. A verdade é que não somos assim tão puros e limpos, como postamos por aí… Embora os filtros virtuais tentem a todo custo disfarçar nossas impurezas, existem desejos inconfessáveis inclusive para nós mesmos: provocam vergonha, são menos civilizados, trazem afetos menos aceitos, mais brutos, e geram culpa, medo, inveja. Embora o desejo nos mova, nem sempre pode ser comunicado às claras.
No entanto, sofremos. É que nossos desejos não partem da nossa reflexão, nem sempre combinam com nossa parte consciente, com os caminhos escolhidos. Eles vêm de outro lugar, menos racional, mais bicho, menos elaborado, indomável e esfomeado, que busca satisfação e prazer. Sua força é violenta, embora a gente viva tentando controlar. A tal bruta flor do querer se prima pela desobediência.
Muitas vezes é preciso reprimir certos sentimentos para manter determinadas escolhas. Mas, por outro lado, o que fortalece o desejo é a sua repressão. Quanto maior for, maior a força na tentativa de realizá-lo. Nossos instintos costumam ser teimosos e persistentes.
Nessa tentativa de domínio, o indivíduo sofre. Conclusão: essa luta constante gera uma tensão muito forte. De um lado, uma exigência de satisfação; de outro, as leis, a moral, as minhas escolhas.
O desejo nasce num lugar poderoso, uma instância psíquica inconsciente que recebe o nome de Id e vive em pé de guerra com um outro lado, responsável pela censura – que recebe o nome de Superego, igualmente forte, responsável por representar internamente a moral, as leis vigentes e os valores familiares.
A civilização funciona como uma tentativa de dominar os desejos, de freá-los. Sejam os sexuais ou os agressivos, a sociedade de alguma forma tenta manter certa ordem, a fim de que a humanidade se preserve de seus próprios instintos. Sabemos que a violência do homem é inerente, tornando-o facilmente presa. Por mais falha que seja a sociedade, o ser humano precisa dela para se organizar relativamente. Essa repressão seria uma tentativa de controle.
Mas existe um lugar onde meu desejo encontra uma possibilidade de existir: os sonhos. Quando sonhamos, estamos com a censura baixa, e certas coisas podem aparecer. Mesmo assim, algumas são censuradas por nós mesmos – juntando uma série de elementos que fazem uma espécie de quebra cabeça simbólico, somando vivências e experiências singulares e individuais. Ou seja, certas coisas aparecem de forma disfarçada. Por isso, dicionário de sonhos não deve ser levado muito a sério. Para cada um, um símbolo que aparece num sonho tem um significado específico, que só pode ser decifrado pelo próprio sujeito sonhador. O sonho é o território da realização do desejo. Mesmo que apareça de maneira torta, ele conta sobre um sentimento que acordado pode ser muito ameaçador.
É como se, dormindo, nosso desejo acordasse no sonho em que apresentasse de uma forma mascarada. Isto é, a fantasia é um dos veículos onde o desejo se apresenta. Lá, tudo pode acontecer. E o ato de sonhar e fantasiar nos possibilita uma tolerância maior da realidade. Não é raro sabermos de pessoas que suportaram uma condição muito difícil utilizando a imaginação. Anne Frank é um exemplo. O filme A vida é bela, outro. Precisamos do sonho para dar voz ao nosso desejo, e assim resgatar a força de lutar para viver.
A solidão do todo
por Léo Coutinho
Através da história, a humanidade deu nomes diferentes às formas de governo, mas, em que pese a importância dos detalhes, elas foram basicamente duas: democracia, onde o poder é dividido por todos, e autocracia, em que é concentrado.
Para saber que o exercício do poder dividido dá muito mais trabalho ninguém precisa ir longe, basta sair com amigos para uma pizza. Sendo a variedade de possibilidades proporcional à de gostos pessoais, a escolha sempre gera algum debate, mesmo contando com a anuência dos que escolhem não escolher.
A alternativa do poder concentrado sem dúvida é mais rápida. Sozinho, o sujeito pede a sua preferida e o assunto está encerrado. Os demais costumam aceitar passivamente se estiverem com fome, com algum interesse além da pizza ou se simplesmente ignorarem as outras possibilidades. Salvo essas circunstâncias, vão querer participar da escolha.
Esta é a natureza humana. Embora seja melhor comer em grupo do que sozinho, cada um tem seu gosto particular e quer ser atendido. Quando o grupo é grande a ponto de ficar impraticável ouvir os pedidos individuais, naturalmente a decisão é conduzida por um líder, que nem sempre é quem entende mais de pizza. Este pode até exercer alguma influência sobre os demais, mas o líder será aquele que entender melhor a turma e tiver habilidade para conciliar seus gostos na medida do possível.
Havendo condições para muitas pizzas, o trabalho do líder será relativamente fácil. Para manter o grupo em harmonia, basta-lhe conseguir atender à maioria sem criar uma conta alta demais. Alguns vão pedir mais por mais calabresa, massa mais fina, mais grossa, sem cebola. Outros vão falar da lenha, das condições de trabalho do garçom, da justiça que seria cobrar menos de quem não bebe. Mas, entre idas e vindas, ele continuará pertencendo ao todo, ainda que, no ato de juntar as pessoas, fazer o pedido e acertar a despesa, esteja sozinho.
O problema é quando, por um ou outro motivo, falta pizza. Nesse momento todos reclamam, com ou sem razão. Surge, em cada indivíduo, a vontade de salvar a sua parte. É o instinto de sobrevivência. Tudo parece urgente, o consenso demorado demais, e o grupo se dispersa. Cada um por si. Então o líder não será mais parte do todo – porque o todo já não existe.
A solidão do líder é a nossa solidão. A decisão dele, a nossa decisão. Nascemos e morremos sozinhos, mas, para viver, precisamos do todo, e o todo precisa de um líder, que é cada um de nós.
E eu que era triste?
por Vanessa Agricola
Hoje é a primeira vez que saio de casa depois do nascimento da Teresa. Está menos 16 graus aqui fora. O vento frio, a luz do sol, o gelo na calçada, me dão vontade de gritar: – Eu não estou mais grávidaaa! Mas a emoção é tanta que fico calada. Trato de fechar os olhos e aproveitar ao máximo a sensação de estar sozinha. Respiro o ar congelante. Tenho o impulso de abrir os braços, igual no Titanic.
Cuidado antes de ter filhos. Você pode se tornar essa pessoa muito estranha, que fica muito feliz só de ir sozinha até a esquina. Ou de fumar um cigarro e tomar uma cerveja, mesmo que você não fume e não goste de cerveja. É um êxtase reviver aquele tipo de vida que só os sem-filhos têm. Passar uma madrugada baixando música, uma manhã de domingo lendo a Folha…
Outro dia, no meio do dia, Joãozinho dormiu e Maria também. Aí eu pensei, nossa, que momento mágico, os dois dormindo! Preciso aproveitar esse momento para fazer alguma coisa que não faço há anos. Sei lá, jogar um tarô. Mas sabe o que eu fiz? Comprei brinquedos pros dois na Amazon. Aí quando terminei, os caras acordaram ao mesmo tempo chorando. Corri eu prum quarto, o pai pro outro.
Cuidado antes de ter dois filhos. Você pode acabar com o seu casamento. Se não houver muito amor, mas muito amor mesmo, sobrando, daqueles que transbordam e descartam o tesão, roupas bonitas, cabelos lavados, nem tenha filhos. Compra um gato.
Tenho conversado muito com Doutor Paulino sobre isso. Desde que sou mãe, eu já não sei mais quem eu sou. Eu que só pensava em trabalhar e nunca mais trabalhei. Eu que queria tanto ser roteirista e recusei um trabalho para a TV Cultura. Eu que nunca mais pintei o cabelo, nem fumei maconha.
Antes do projeto maternidade, uma guru indiana me avisou que não ia ser fácil ser mãe. “Filhos demandam muito tempo”, mas eu não imaginei que fosse todo o tempo do mundo. E também não imaginei que eu ia querer passar o tempo todo com eles. E ia dispensar a babá, e dar todos os banhos, e tirar todas as melecas, e analisar a consistência de todos os cocôs (e cheiros).
O que restou daquela garota cuja razão da vida era a independência, Doutor Paulino? Aquela garota que entrava no carro, abria as janelas, ligava o som alto e ia até Paraty sozinha ler livros. Aquela Vanessa que não ia casar e hoje não abre uma lata sem pedir pro marido. O senhor está me entendendo? Eu virei a mãe dos meus filhos? A mulher do meu marido? Um pedaço de nós quatro? Me fala! Se for, eu não me importo.
(E quem tiver um analista que responda às suas perguntas, me mande o contato.)
Conte-nos um pouco do seu background. Como você se interessou por música?
Leandro Oliveira: Estudo música desde meus 5 anos e comecei a pensar em me profissionalizar aos 15. Nasci e estudei no Rio de Janeiro, e o início foi muito difícil; não tinha músicos na família, e era um interesse puramente pessoal. Existia uma certa resistência da minha família, em relação ao estudo da música, mas certamente uma resistência em me tornar um profissional da música. Meus pais são de classe média baixa do Rio. Não tinha a menor possibilidade de imaginarem um músico na família! Ainda mais eu, que tinha uma certa sensibilidade para música clássica. Era muito distante. Minha mãe queria que eu fosse funcionário público ou algo assim. Ela imaginava uma carreira um pouco mais consistente, que fosse mais “garantida”. Médico! No meio da faculdade, comecei a buscar professores particulares, e encontrei uma figura importante, um professor israelense de piano, Mordehay Simoni, e com o tempo fui me aperfeiçoando na lida mesmo. Tive a oportunidade de passar alguns pequenos períodos na Itália, acompanhando algumas produções, e de trabalhar com o maestro Neschling, tanto lá como na Suíça, e sobretudo aqui na Sala São Paulo. Até que, aos 25 anos, ele me convidou para vir trabalhar efetivamente aqui, e me tornei uma espécie de aprendiz de maestro, literalmente, um aprendiz de feiticeiro, até conseguir entender essa loucura que é uma orquestra sinfônica. Na época, eu já estudava regência, compunha e era pianista de formação. Porém, a engrenagem de uma orquestra é tão complexa que, para nós, que vemos de fora, é quase uma coisa esotérica, um mundo de castelo encantado, cheio de trâmites administrativos. Foi nesse espírito que passei meus quatro primeiros anos. Tirei um período sabático e, quando retornei foi para fazer isso que faço agora, que é o Falando de Música – as apresentações para o público em que explico o programa antes dos concertos da OSESP, para cada temporada.
Como você acha que o espaço onde você trabalha – especialmente a Sala São Paulo – influencia em seu processo de criação e em seu trabalho?
A Sala São Paulo é um lugar muito magnético! Na verdade, antes de vir morar aqui, o meu tesão era vir para a Sala São Paulo. Lembro claramente de alguns ensaios que assisti aqui no final dos anos 1990, logo depois da inauguração, em 1999. Fiquei muito ansioso, querendo fazer parte disso tudo, era efetivamente muito galvanizante. É muito impressionante o que a Sala São Paulo entrega para quem está aqui. Ela funciona como uma espécie de fantasia de civilização! Quando trabalhamos com música clássica, essa fantasia acaba sendo muito ocorrente porque estamos em diálogo com um monte de gente morta, com várias estéticas diferentes. É uma coisa muito inclusiva por necessidade. Na música clássica você tem um som vanguardista e o conservador do século XVIII, todos lidando com a mesma matéria-prima. Isso eu acho a coisa mais bonita; um gesto civilizatório. A Sala São Paulo, de alguma forma, no meio dessa cidade caótica, acaba preservando esse sonho, essa fantasia. Do ponto de vista emocional, eu sempre saio da aula melhor que antes, naturalmente. Isso me dá energia pra fazer mais aulas e melhores.
É um sonho mesmo ou uma realidade?
É um realidade! Claro que existem todos os meandros aqui da Sala, coisas muito do dia a dia. Prazos a serem cumpridos, funções que não são as mais inspiradoras, e que nem o artista que está estudando Chopin, necessariamente, deveria fazer. A despeito disso, o lugar é muito inspirador.
Nos conte um pouco sobre como funciona seu processo de criação.
Lido de uma maneira muito pouco ortodoxa com a criação. Nesse sentido, eu me sinto um artista menos inspirado. Estou muito longe de ser um artista angustiado, que precisa compor por força da necessidade. Trabalho meio de labuta, com objetivos. Sento todo dia, por meia hora, para fazer exercícios de composição, mas também tenho prazos que preciso cumprir em um momento ou em outro. Acabo sendo muito pouco dionisíaco! Trabalho pelo time. Funciona muito bem para mim. Mas tenho amigos mais catárticos. Quando a gente pega a execução como momento da criação, a performance fica muito evidente sem a rotina do estudo diário do piano e da regência. A inspiração do momento é algo com que conto quase nunca – muito pouco, na verdade. Também preparo minhas aulas continuamente. Por exemplo, vindo pra cá e lendo Bulgakov, tive insights para a aula. É algo que se integra ao meu dia a dia.
Você acha que vem aumentando ou diminuindo o interesse das pessoas por música clássica?
Aumentando vertiginosamente. Sobretudo aqui em São Paulo, onde a amostragem é impressionante. Cheguei aqui há doze anos, e o interesse não só pelo consumo da música – de sentar na sala de concerto e escutá-la –, mas por entender o universo da música, que é uma coisa que exige um pouco mais de dedicação, aumentou muito! Não só querer comer bem, mas querer entender como se faz o prato. Você me entende? Isso em São Paulo é impressionantemente auspicioso. Percebo uma curva ascendente. Por exemplo, acabou de abrir a nova temporada do Theatro Municipal, e eles tiveram um aumento de número de assinantes de 50% em relação ao ano passado. Partindo do zero, conseguiram mais de mil novos assinantes no primeiro ano. Isso é, evidentemente, uma mostra de que ainda existe maior demanda do que oferta de música clássica no Brasil. E isso se mede não só pelas sociedades de concerto, mas também pelo interesse mais imediato que existe hoje. Minha empresa organiza conferências e cursos sobre música para pessoas que querem começar a se interessar por música clássica, e é impressionante o aumento da procura de novos alunos a cada semestre.
Por que você acha que existe esse aumento?
Tivemos no Brasil, durante muito tempo, uma falta de oferta de boa música, sobretudo nas grandes cidades, como São Paulo e Rio. Não tenho dúvida de que, se tivéssemos hoje mais três, quatro orquestras de alto nível em São Paulo, todas estariam bombando. A questão é que ainda essa demanda se organiza para dois ou três espaços existentes. Os músicos da OSESP, por exemplo, estão trabalhando no limite. Fiz um evento em São Carlos, uma cidade completamente fora do circuito. Apresentamos um programa com quinteto de cordas do Carlos Gomes, obras de Mozart, obras contemporâneas, e tudo estava absolutamente lotado! Trezentas pessoas aplaudindo de pé. Ainda existe uma energia de consumo que não foi completamente atendida. O mercado ainda não está estável, acho que ainda faltam atores que se proponham a explorá-lo mais.
Você acha que a música clássica é envolvida por uma espécie de formalismo que atrapalha o acesso das pessoas?
Sim, existe uma resistência que não é resistência sensível. O cara vai ao concerto e geralmente gosta. E isso não diz respeito à sua formação cultural, universitária, educacional ou intelectual. É temperamento mesmo. Tenho amigos que não aguentam uma sinfonia de Mahler, uma peça de cinquenta minutos, uma hora e dez. Mas, a despeito disso, tem também a forma das salas de concerto – que é um pouquinho proibitiva mesmo. Porque ainda estamos em uma tradição que é do século XIX, de ouvir concerto um pouco como se vai a uma igreja, onde o certo é ficar calado, onde o público está acostumado com essa relação de atenção em silêncio. É muito evidente, para mim, que isso diz respeito à couraça do consumo da música. É possível imaginar que exista muito mais gente que prefira escutar música clássica no carro, na rádio ou na TV, em casa, do que na Sala São Paulo, onde o sujeito pode – e isso não é um fato – supor que irá se deparar com uma plateia esnobe ou algo do tipo. Preciso dizer que, em alguns lugares na Europa, o acesso aos ambientes de concerto às vezes é muito mais fechado e esnobe, capaz mesmo de criar um constrangimento. Lembro de um concerto em Palermo – tudo bem, eu estava acostumado com o ambiente de música clássica no Rio – em que fui de tênis e fui muito malvisto. Fiquei constrangido, porque percebi que não deveria ter ido de tênis. Como disse, isso aconteceu em Palermo. Aqui, na Sala São Paulo, você vem ao concerto sábado e encontra todos os tipos de gente. Velho, jovem, aluno, gente da Zona Leste e de Higienópolis. É um convívio muito democrático, muito aberto.
Evoluímos na relação do público com a orquestra, ou podíamos ainda ser um pouco menos formais – conversar nos intervalos com a plateia, por exemplo?
Existem muitas iniciativas legais a respeito disso, e eu suspeito que não só no Brasil. Existe um projeto muito simpático com a Sinfônica de Salvador, com o maestro Carlinhos Prazeres, que bolou uma coisa em um espaço muito bonito, com almofadas no chão, a orquestra sem fraque, de roupa normal, e ele ensaia, toca, tudo conversando com a plateia. As pessoas deitam, conversam, e o formalismo é quebrado. O que acontece em relação a esse tipo de consumo é que ficamos com uma expectativa menor de atenção, que é o que faz com que o sujeito exija o silêncio antes e o silêncio depois, para criar a moldura para a música ser encaixada. Certamente, quando pegamos a música do século XVII e XVIII, os grupos de música antiga curiosamente estão muito preocupados com a questão filológica da música, com a dicção – mas não estão preocupados com a maneira que Bach tocava em sua época, em um café, por exemplo. Imagino que, quando Bach tocava as suas Cantatas Profanas num café em Leipzig, o público não tomava café em silêncio como se estivesse na Thomaskirche assistindo a um sermão. Muito pelo contrário. Aliás, nem o sermão na Thomaskirche, sabemos, era em silêncio.
Em que momento surgiu esse formato atual?
Foi quando começaram a cultivar uma tradição, músicos mortos, uma espécie de cânone. Com as primeiras instituições sinfônicas como museu, na Revolução Francesa. As primeiras salas de concerto no formato caixa de sapato surgiram nas décadas de 40 e 50 do século XIX. E com essas salas de concerto houve um ponto de virada muito curioso. Existem estatísticas que dizem que, até a primeira década do século XIX, 80% do repertório era de compositores vivos, e 20% de mortos; na década de 50 do século XIX, com esses primeiros edifícios como a Sala São Paulo, a história se inverte completamente, e as pessoas começam a ouvir os mortos como se estivessem falando com santos, e dá-se o distanciamento. A cultura de que assistir a música clássica é ter uma aula, é participar de algo elevado, em que você tem de estar à altura da ocasião, não existia, imagina, no passado. Mozart tinha de entregar o que o público queria. Era um jogo de eu dou, você me retorna. Se não gostar, eu melhoro para a próxima.
O que você acha de iniciativas como o Spira Mirabilis, onde músicos de grandes orquestras da Europa se reúnem para passar meses juntos, tocando música por prazer, sem maestro?
Sem maestro é maravilhoso, e eu posso dizer isso sem problema algum, pois sou um deles. O músico, como qualquer outro artista, quer se expressar, e, com esse formato, resgata-se certo prazer e liberdade, que, às vezes, no meio de uma instituição, você perde. Assim como temos um certo prazer em jogar cartas, existe um certo prazer em tocar um quarteto de cordas. Existe um entendimento entre músicos. Você fala uma frase, eu respondo. O resgate desse prazer, da maneira espontânea de quando o sujeito não tem preocupação nenhuma com cachê, não tem preocupação se o público vai estar lá ou não, pode ser um pouco utópico. A princípio, acho que não geraria uma engrenagem economicamente viável, mas, talvez, em algum momento vire. Uma espécie de modelo Wiki. Um modelo de autogestão, que entrega produtos de qualidade, e às vezes até melhores, porque envolve outro tipo de entrega, com outra disponibilidade dos artistas, e certamente isso tem de ser olhado com atenção pelas grandes instituições. Acho que é um modelo que, ligeiramente adaptado, pode ser inclusive absorvido pelas grandes instituições em alguns momentos.
É muito difícil ser músico no Brasil, por ser um país emergente?
No Brasil temos bons professores de música, sem sombra de dúvida. Pessoas que são capazes de dar aos alunos uma educação musical de alto nível. Viajar é sempre importante, conviver com as diferenças da vida artística, que são as cores do mundo, com distintas opiniões, formas de viver diferentes. É isso que, no final, constrói o interior do músico. A despeito das questões fundamentalmente técnicas, de fato, ele pode encontrar algumas respostas um pouco melhores trabalhadas fora do país. O músico no Brasil tem muitas oportunidades com a música clássica, mas, como em toda profissão de muita competição, é uma profissão em que o sujeito tem de contar com muita dedicação e sorte. Estar no lugar certo, conviver nos ambientes corretos, produzir. Tem de saber se colocar em certos ambientes. Sem sombra de dúvida, o Brasil já esteve muito pior. Nas década de 1980 e 1990, a gente vivia em um Saara de produção musical. Mas hoje existem alguns benchmarks: a Sala São Paulo, a Filarmônica de Minas, o Theatro Municipal, e todas essas instituições requerem músicos de alto nível, que acabam contaminando todo o ensino da música, todo o consumo da música, e o nível se eleva. Mas o céu é o limite com a arte! Ainda é um choque quando vamos assistir às grandes orquestras mundiais: as Big Five americanas, ou as grandes orquestras da Europa, Berlim, Viena, Amsterdã, São Petersburgo, onde você consegue ver aonde pode chegar uma cultura que se adensa por gerações, construindo um compromisso com a alta cultura. O resultado é muito evidente. A Sala São Paulo e a OSESP são projetos com 15, 16 anos de vida. Estamos ainda na primeira geração de músicos, passando pela primeira renovação. A Filarmônica de São Petersburgo, por exemplo, tem sua origem no século XIX. Outras orquestras como a Gewandhaus, grosso modo, nasceram no século XVI. Enfim, ali existe uma relação longeva do aluno com o professor, que constrói uma sonoridade, um estilo que vai passando de geração para geração, e evolui para um lugar muito nobre. O Brasil chega lá, se a aposta na música clássica seguir sendo coerente e séria. Porque também pode desandar rapidinho. Uma geração é muito pouco. Hoje existe aqui apenas um perfume do que pode ser um bom ambiente de consumo de música clássica. Se na Europa e nos EUA se veem algumas orquestras sendo fechadas… A de Detroit, por exemplo, pediu concordata. Podemos imaginar o quão inóspito o mercado é. Enquanto no Brasil a gente vê um público crescente, na Europa ele diminui! Um público que envelhece. A equação é complexa. Mas o Brasil é um bom lugar para estar!
No filme O Último Quarteto, a personagem de Phillip Seymour Hoffman diz que ele entende a dinâmica do quarteto quando percebe que ser parte do grupo requer converter-se em um, e não ser o the one. Você concorda com isso? Poderia me falar um pouco dessa dinâmica?
Concordo e arrisco dizer que não é apenas uma dinâmica do quarteto de cordas. O maestro italiano Claudio Abbado comenta, num papo de 1997 com Lidia Bramani, sua assistente por muitos anos, sobre a experiência transformadora dos anos berlinenses. Abbado fala do “zusammen musizieren” da Filarmônica local, a cultura de – desculpe o neologismo – “musicar” em conjunto. Gosto de “musicar”, pois é mais que “fazer música”. “Musicar”, acho eu, abrange mais naturalmente também os que ouvem música – e ouvir é criar, de algum modo. A coisa toda é que o sujeito que toca e o sujeito que ouve música – se ouve bem, ou seja, ouve com o corpo inteiro: o intelecto, as vísceras, o coração – de algum modo convertem-se em um. Mas sem perder o limite de si – senão, deixariam de ser ativos na coisa. Acho que isso soa um pouco esotérico, e fico com medo de ser mal interpretado. Mas há alguma coisa de transcendente nessa prática ao mesmo tempo ativa e passiva, uma troca em que se faz e deixa fazer. Uma boa dinâmica de performance é quando todos estão neste jogo de pergunta e resposta pelo sentido dos sons, de entrega e ação pelo significado das coisas. Você não pode apenas atuar com ego; precisa saber suspendê-lo. A troca é ao mesmo tempo sofisticada e simples. Fazer e ouvir música é ser inteiro, um indivíduo com opções e escolhas prementes, mas também é deixar-se levar. Acho que já está dito, mas, nestes termos, fazer e ouvir música é coisa para quem tem, antes de tudo, muita coragem.
Partículas que se espalham: a fragmentação esquizofrênica do papel do intelectual nos dias de hoje
Uma campanha abominável para distrair a opinião pública e cobrir os próprios erros. Para Émile Zola, intelectual e escritor francês da virada do século XIX para o XX, a república francesa falhava em detectar e punir a mentira do caso Dreyfus: questões nacionalistas, frequentemente despertas em contextos de fragilidade política, se sobrepuseram na condenação de Alfred Dreyfus, em 1894, e o então oficial de artilharia do exército francês foi levado à Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, sob regime perpétuo. Seu crime? Ser judeu. Nenhuma prova foi encontrada, e o oficial só seria solto após aproximadamente meia década na prisão, quando evidenciou-se que o verdadeiro espião a serviço dos alemães era Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy.
O “J’Accuse…”, como ficou conhecido o artigo que estampou a primeira página do jornal L’Aurore de 13 de janeiro de 1898, acabou por se tornar um dos escritos mais célebres de Zola, e um dos documentos mais corajosos da história. No texto, o escritor acusa as mais altas patentes do exército francês do que chama de “une campagne abominable pour égarer l’opinion et couvrir leur faute”.
Dreyfus, apesar de ter sua carreira militar maculada, jamais recebeu qualquer tipo de exoneração. E Esterhazy, ao contrário, jamais foi condenado.
Zola, ao conceber seu “J’Accuse…”, fala em nome de uma mobilização nacional; sua voz amplifica o grito de muitos, judeus e não judeus, contra a injustiça e contra o antissemitismo característico da sociedade francesa. Levar tal indignação à primeira página de um jornal de grande circulação, mais do que um ato de coragem, cumpriu um papel cabido aos intelectuais de qualquer época; o de pronunciar-se de maneira independente e em prol de uma causa social. Escrever era estampar o próprio rosto, sujeito a achincalhações, escárnios e até à censura. Mas também era ser destacado para falar em nome de uma coletividade, com valores em comum, e expor, evidentemente, o discurso de muitos que não possuem voz e demandam um representante.
Por onde andará este Zola nos dias atuais é o que muita gente se pergunta. Tivera sua importância relativizada diante dos meios de comunicação que passaram a dar mais acesso (e palavra) ao indivíduo? Ou nossos tempos não mais necessitam desta figura simbólica, que sobe no alto de uma grade, megafone em punho, e discursa contra uma autoridade ou uma ordem que precisa ser revogada e recriada? Somos capazes, individualmente, de dar conta de nossas posições na sociedade sem uma representação máxima que se manifeste em nossos nomes? Talvez um pouco de tudo. A importância deste intelectual, conceituado como erudito, muitas vezes como polímata, destinado a, mais do que pensar nossos tempos, defender nossas ideias, teria sido reduzida no imenso cataclismo que vivemos hoje?
Estar junto, conviver junto, defender um mesmo valor, combater uma injustiça, juntos, tudo isso ainda faz sentido, sem dúvida, à nossa sociedade, ainda engatinhando rumo a um século XXI para lá de obscuro. Se não estivermos juntos e se não formos representados por um pensador que nos ajude a entender o que e como vivemos (e devemos viver), estaremos fadados ao obscurantismo de opiniões disparatadas, reproduzidas insanamente em redes sociais, a partir de qualquer fato, do cotidiano mais mesquinho às discussões políticas que vão mudar os ventos e os rumos de uma nação inteira. E o grande questionamento que devemos nos fazer é de que modo isso acontecerá, e como afetará a todos nós, que vivemos no calor dos acontecimentos, e ainda sem esta representatividade.
Há quem suponha que o intelectual de hoje falha em aparecer por ter sido sugado pelo individualismo cada vez mais presente, de forma que não há espaço sequer para um representante de nossos ideais: tornamo-nos nossos ideais, damos conta de todos eles sozinhos. A possibilidade da publicação, graças às redes sociais, criou essa falsa impressão de poder, do discurso e do texto que será lido por todos, ou, no mínimo, por muita gente. Pela primeira vez na história, nunca foi tão fácil expor uma acusação à moda de um “J’Accuse…”. Temos o Facebook, o Twitter e outras ferramentas de publicação instantânea a partir das quais, em algumas linhas e em um clique, dezenas, centenas ou milhares de pessoas receberão, cada uma em seu computador ou dispositivo móvel, aquele conteúdo, aquela determinada indignação. Somos, pela primeira vez, lidos, e isso gera um poder inédito à sociedade.
Seja por um círculo social restrito (amigos, família, colegas de trabalho) ou em círculos maiores, todos nós temos nossos leitores. De modo que o papel do intelectual se fragmenta em discursos perdidos pelo espaço, pelo limbo gerado no tráfego diário e incessante de bytes de informação. O meu temor, que pode ser desdobrado em apelo fácil, é que esse poder se torne esquizofrênico, que apedrejemos todos uma figura que chegue à primeira página de um jornal, e que as ideias se percam em nada mais que partículas, mais do que pensadas, digitadas. Quase uma sujeira espacial, mas com um poder de gerar novos Dreyfus, de acusarmos as causas erradas, pelos motivos errados. Com um poder atômico de fazer tudo explodir ao nosso redor.
Andando na linha
É possível estimar com certa precisão a qualidade de vida de uma cidade observando apenas uma linha: a que separa o espaço público do que é propriedade privada. Quando mais enfática, mais ostensiva ela for, repare: muito provavelmente pior será o ambiente em que vivem os seus moradores; e, ao contrário, quanto mais sutil, mais delicada for essa divisão, a tendência é que a vida nessa cidade seja melhor – mais agradável, mais segura e mais divertida. Uma forma de medir a civilidade de uma cidade é pela altura dos seus muros.
Uma cidade é basicamente uma aglomeração de pessoas que decidiram morar juntas. E essa proximidade se justifica em praticamente todos os aspectos da vida dos seus habitantes – como Edward Glaeser, professor de economia urbana em Harvard, explicou em seu livro O triunfo da cidade, lançado em 2013. A vida na cidade permite que seus moradores sejam mais eficientes economicamente, que se eduquem melhor, que tenham mais acesso às informações e aos tratamentos médicos, que convivam com pessoas diferentes – e, por isso, sejam mais tolerantes, mais civilizadas.
Porque civilização é isso – ou, se quiser, é consequência disto: de uma espécie de consenso entre pessoas diferentes (de várias origens, classes sociais, religiões, etc.) de que vale a pena vivermos juntos. É do diálogo entre pessoas curiosas e diferentes que aparecem as melhores ideias. E a cidade ideal precisa refletir em suas decisões arquitetônicas essa abertura de espírito. É preciso haver praças e parques para seus habitantes se encontrarem; boas calçadas para caminharem; uma equilibrada mistura entre áreas residenciais e comerciais para que possam trabalhar, se divertir e fazer pequenas compras perto de casa.
Não há cidade ideal – nem civilização possível – em que moradores se afastem uns dos outros, se tranquem em ambientes privados e praticamente empurrem os pedestres que passem na frente da sua casa para o outro lado da calçada. E é quase isso que fazem esses muros beges e infinitos de condomínios-clube, por exemplo, que se espalharam pela cidade nos últimos dez anos, ou casas gigantescas em bairros exclusivamente residenciais em que não há calçada. Esse tipo de divisão ostensiva, agressiva, entre o que é público e o que é privado é um desrespeito aos outros moradores da cidade, à estética, e – como Jane Jacobs explicou impecavelmente em Morte e Vida das Grandes Cidades – é inútil para a segurança.
Praticamente não há muros em Manhattan. No ano passado, Boris Johnson, prefeito de Londres, mandou arrancar os espetos contra mendigos que havia na cidade. E as casas dos canais de Amsterdã são ótimos exemplos de projetos em que essa linha que divide a calçada e o interior dos ambientes quase não aparece: a própria parede cumpre esse papel e, no caso da capital holandesa, com janelas normalmente abertas. Mas São Paulo também tem projetos excelentes em que essa linha é discreta ou invisível. O Conjunto Nacional, na Paulista, e o Copan, no Centro, são referências clássicas de projetos que combinam vários usos – residencial, escritórios, lojas – em harmonia com o seu entorno. O Edifício Piauí e o Louveira, ambos em Higienópolis, têm jardins totalmente abertos à rua. E existem inúmeros predinhos anônimos ou pouco conhecidos, como o Pacaembuzinho, que são pequenas lembranças de um dia em que já tratamos a nossa cidade melhor.
E são essas lembranças – de um dia em que talvez tenhamos sido mais abertos e menos desconfiados – que, para vivermos bem juntos, precisamos recuperar.
Sobre o divisor de Lygia Pape
por Diego Matos
Em 1981, na fase terminal de um regime antidemocrático, O Pasquim publicaria uma entrevista com Mário Pedrosa, dirigida e realizada por um grupo de formadores de opinião, no qual felizmente encontrava-se Lygia Pape. Ao discorrer acerca da natureza do intelectual público, Pedrosa é pego pela cumplicidade da artista ao deflagrar a pergunta afirmação: “Quem nasce para a aventura não toma outro rumo”. À qual o crítico de arte responde enfatizando sua experiência política em primeiro lugar e colocando “arte e pensamento” como uma dupla irrefutável na construção revolucionária da vida.
A aventura, enquanto experiência vivida, comparece como o cerne da questão. E, para que aconteça e ganhe corpo enquanto arte, a sua razão é complementar à da política. É sobre o espírito imbuído de estar no front, portanto, libertário, que a obra coletiva do mundo se constrói atentando para o diverso – ou melhor, a alteridade. Sobre isso e muito mais, nada mais exemplar que a relação criador e criatura que aqui se apresenta, símbolo de uma construção coletiva – Lygia Pape e a obra Divisor (1968).
Três elementos podem conferir substratos à leitura da experiência artística do Divisor – o protagonismo da artista, a relação espaço-tempo e a conjunção poético-simbólica da obra. Pape é um dos vértices da base triangular do movimento neoconcreto e, de certo, parte da invenção do contemporâneo pelos lados de cá – ao lado de Lygia Clark e Hélio Oiticica. A arte aproximava-se dos processos da vida, deslocando a natureza artística para o espaço social. Grosso modo, via-se a contaminação do rigor concretista pelos meandros da cultura urbana conflituosa. Por intermédio do que Oiticica definira como participador, o artista multiplicaria a existência dos Parangolés e dos Bólides, Clark radicalizaria a experiência sensorial construindo, por exemplo, A Casa é o Corpo, e Pape produziria trabalhos em que o uso era horizontal e sem hierarquia, cujo exemplo de maior clareza é o Divisor.
Como definiu a própria artista, o Divisor seria “a pele de todos: lisa leve como nuvem: solta”. Um dispositivo tão simples quanto um lençol de 30 metros quadrados com furos pelos quais podem passar as cabeças de quem quiser vesti-lo e participar de uma brincadeira sem regras preestabelecidas, nas ruas e nos parques da cidade. Nasce no uso daquele imenso manto uma coreografia espontânea, em que um mar de individualidades reveladas pelas cabeças dos indivíduos conduziria um movimento de permanente negociação coletiva.
A performance e situação pública nasceram da negação de um saber restrito à artista e do estatuto de uma galeria de arte (ou de seus espaços de contenção). Delegando o lugar de ação de sua obra a terceiros, a artista inventaria aspectos de uma criação orgânica e plural em oposição à racionalidade e à previsibilidade das máquinas. Nesse ímpeto de abertura, a artista relativizava também a noção de autoria. Ao motivar a performance e a participação, sejam elas programadas ou espontâneas, Lygia Pape arregimenta um conhecimento artístico de aspirações coletivas.
Processo e conceito, ludicidade e sensibilidade, aliados à amplitude participadora no trabalho de arte, parecem ser os elementos que fazem da obra de Pape reveladora da noção de diversidade. Colocava-se “o vasto e o íntimo” – como diria o crítico Guy Brett – em uma zona de instabilidade física, confundindo o fora e o dentro, o público e o privado, o consenso e o dissenso. Essa é a razão do Divisor.
De forma mimética, essa razão transparece a turbulência daquele ano de 1968. O recrudescimento de um estado de exceção tentava segurar as rédeas de uma ordem social em pleno crescimento exponencial das cidades e, por consequência, da diversidade urbana. Curiosamente, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) inaugura sua nova sede naquele ano, presenteando São Paulo com um amplo espaço de negociação política: o vão livre de Lina Bo Bardi e, por conseguinte, a definição de um lugar de acolhimento à experiência coletiva. Se Lina, sob o gesto subversivo do seu desenho, oferece o espaço arquitetônico do coletivo ao particular, Lygia apresenta, a partir da experiência particular mas compartilhada, a concepção coletiva de um lugar arquitetônico em movimento. Simbolicamente, tem-se nesses dois gestos criativos e complementares a evidência da indissociável relação entre arte e pensamento – ação política por excelência na aventura revolucionária da vida.
Os filmes por trás do diretor
por Willian Silveira
Você se preocupa em encontrar a voz dos seus trabalhos. Perde o sono na tentativa de achar a unidade que guia os seus projetos. Esqueça. Isso só vai paralisá-lo. “Criar é viver a dúvida”, diria Rilke (1875 – 1926). O resultado íntimo da carreira de quem cria está amarrado ao talento e à sorte, e se fará ouvir somente no decorrer do percurso.
Aos 29 anos, o diretor norueguês Kristoffer Borgli segue a incerteza do caminho. Com uma das carreiras audiovisuais mais interessantes dos últimos tempos, o jovem é um exemplo de quem aceita o desconhecido. Vivendo em Oslo, onde nasceu, Borgli produz comerciais, videoclipes e ficção. A cidade, que lhe dá acesso a um cenário particular e inusitado, desconhecido mesmo para os europeus, serve como ponto geográfico anônimo, distante das referências óbvias, como os centros Londres, Paris e Berlim.
A relação de Borgli com o visual começou cedo. Influenciado pelo irmão mais velho, dono de uma locadora de filmes, assistiu a uma infinidade de títulos antes de encontrar no estabelecimento um de seus primeiros empregos, aos 18 anos. O gosto pelo cinema – lado a lado com o skate e o grafite – foi a inspiração para a estética de Kristoffer, que trabalha com vídeos de até 15 minutos filmados em digital, formato em que combina planos longos com montagem ágil. A escolha pelo estilo, que mescla o tradicional com o moderno, é o primeiro traço a chamar atenção para o diretor e revelar a sua preferência pela narrativa, em detrimento do modelo atual, em que se procura impactar pelo conjunto de imagens em velocidade.
Em um tempo dominado pela linguagem visual frenética, imposta pelos videoclipes dos anos 1990, Borgli caminha na direção contrária. Não porque ir de encontro à corrente lhe renda mais reconhecimento, mas porque a sua criação parte da singularidade. As experiências pessoais do diretor juntam-se a acontecimentos insólitos e tornam-se fagulhas para acender os enredos. Ao sabermos pouco sobre a fronteira entre realidade e ficção, Kristoffer prefere assumir a confusão.
“Síndromes”, “Sonhos juvenis” e “Primeiros dias de algo” são traduções livres para alguns dos trabalhos do diretor. Como quem sai de si para ver-se à distância, Borgli expressa os sentimentos da geração que se convencionou chamar de Millennials (ou “geração Y”). Assim, a principal característica dos seus personagens está em viver a instabilidade, seja no emprego ou nos relacionamentos. Tornar-se adulto surge como um desejo complicado e uma obrigação frustrante. Criados a partir de sonhos e de expectativas inatingíveis, o mundo descortina-se como um lugar tomado por situações peculiares. Quando a realidade não parece convidativa, o melhor refúgio está dentro de si. I could be bounded in a nutshell and count myself a king of infinite space, confessa Hamlet, na tragédia homônima de William Shakespeare.
“O fator dominante”, diz Borgli, “é a questão do momento em que realizamos. Isso diz respeito a filmar e criar um instante.” No mínimo reveladora, a declaração, que soa quase como um desabafo, pode ser uma pista sobre a duração da criação, que não precisa se preocupar em ter um impacto perene. Mais do que se concentrar em realizar obras consideradas geniais, o diretor procurou explorar o que tinha de verdadeiro em cada vídeo. Sondando as emoções que o consumiam, Kristoffer conseguiu uma série de filmes que o permitiram expressar-se em um estágio preciso de sua vida. Pouco importa se hoje os filmes não o representam mais, pois os personagens e as suas circunstâncias bastam aos inúmeros espectadores que ali se reconhecem.
Produzir para si é o jeito mais fácil de atingir os outros. “Assim como muitos diretores, eu trago muito das minhas memórias e experiências para os filmes”. O que está por trás de ser plural, de abordar diversos assuntos, não é a falta de sintonia com uma linha de pensamento. A criação realizada por necessidade – seja pela cobrança de prazos ou por circunstâncias pessoais – desconstrói um dos mitos mais antigos da produção artística: a de que o criador precisa esperar pela inspiração. “Eu acredito na produtividade tanto quanto na criatividade, porque, sempre que um processo criativo leva muito tempo, eu perco o interesse e não sigo adiante.”
Os temas de Kristoffer não foram elaborados antecipadamente ou decididos para gerar valor a longo prazo. “Eu não diria que qualquer dos meus trabalhos é autobiográfico. Eu estou interessado em borrar as fronteiras entre realidade e ficção, criando um espaço em que você vê a história enquanto história, mas repentinamente se depara com uma nova dimensão no meio disso” , diz o diretor. O que se vê são obras aleatórias, realizadas pela urgência do presente. Mesmo assim, o fio que as conduz é sutilmente preciso: as nadadoras presas em um ginásio aquático, o músico que aceita o insucesso da carreira, os primeiros dias após o fim de um relacionamento, um amor de verão, duas crianças sozinhas em casa. Kristoffer trata do raro e da beleza (em geral melancólica) naquilo que é incomum. Ou comum, porém doloroso. Enjoy the ride, sugere a unidade por trás do trabalho do norueguês.
Um baile de máscaras
No dia 21 de julho de 1914, enquanto parte do mundo se preparava para um terrível conflito internacional que marcaria a história do século XX, três irmãos adolescentes – Max, Jacques e Louis – saíram para explorar um sistema de cavernas pouco conhecido que integrava terras de seu pai, o Conde Henri Bégoën, localizadas na comuna de Montesquieu-Avantes, em Ariège, no extremo sul da França. Enquanto a Europa marchava em direção aos horrores da guerra moderna, os rapazes estavam prestes a se defrontar com o longínquo passado humano.
A aventura culminou na descoberta de uma das obras-primas das artes pré-históricas. Num dos mais profundos recintos da caverna, hoje conhecida como Grotte de Trois-Frères, num recanto claustrofóbico, de difícil iluminação, onde o lúgubre silêncio da caverna é quebrado, de tempos em tempos, por estranhos sons e ruídos geológicos, no alto de um nicho quase inacessível, havia uma estranhíssima figura semi-humana: o chamado Feiticeiro de Trois-Frères. Estima-se que foi pintado há cerca de 13.500 anos.
O sistema de cavernas criado pela ação do rio Volp contém uma série de importantes gravuras rupestres. Mas a caverna, que foi batizada em homenagem aos três irmãos, possui a singularidade de ter, dentre suas imagens, duas figuras híbridas, que misturam elementos humanos e animalescos de maneira tensa e poderosa. O feiticeiro mede cerca de 76 cm de altura por 45 cm de largura. O rosto remete ao de um homem maduro, barbado. Braços e pernas foram desenhados ambiguamente, com elementos humanos e animais. Galhadas brotam de sua cabeça e, talvez a característica mais desconcertante de todas: ele se volta para nós, mirando-nos fixamente com olhos que parecem tresloucados, como se o houvéssemos surpreendido em meio às suas misteriosas andanças ancestrais pela escuridão de seu santuário rochoso.
Ninguém sabe ao certo o que significa ou representa a estranha imagem. Seria um deus arcaico? Uma abominação monstruosa, dessas criadas pela imaginação de adultos e crianças de todas as idades e culturas? Um xamã? Alguma espécie de espírito? O que é certo é que estamos observando uma fascinante união entre homem (há um pênis claramente desenhado) e um ser zoomórfico (um cerdo e/ou bisonte). Talvez estejamos contemplando uma espécie de “fotografia instantânea” rupestre – um snapshot paleolítico – captando um momento de um processo de transformação homem-animal ou animal-homem.
Fantasias a respeito desse tipo de transformação ou hibridismo são comuns a nós homo sapiens sapiens (pense nos deuses zoomórficos dos egípcios antigos, ou no Minotauro da mitologia grega clássica, ou nos homens-jaguares das culturas ameríndias, ou em mais um sem número de exemplos…). Mas os seres humanos descobriram um outro artifício para dar vida a esses impulsos criativos de união, fusão e transformação animal: o uso de máscaras. Alguns pesquisadores aventam a ideia de que o Feiticeiro de Trois-Frères representa a contrapartida mágica ou estética de algum rito que continha um participante mascarado (quiçá a representação idealizada do próprio mascarado).
Máscaras são objetos que o homo sapiens sapiens reconhece, manipula e se relaciona com, exibindo alta destreza e familiaridade. Ocorrem nas mais variadas regiões, culturas e contextos; de rituais a festas folclóricas, de bailes às fantasias cinematográficas de Hollywood – a hoje famosa máscara do vilão Darth Vader da saga Guerra nas Estrelas tornou-se instantaneamente reconhecível e corre o risco de ser assimilada profundamente pelo nosso cânone cultural.
Máscaras também são surpreendentemente antigas. Até março deste ano, o Museu de Israel, em Jerusalém, apresenta a exposição Face to Face: The Oldest Masks in the World (Cara a Cara: As Máscaras Mais Antigas do Mundo). São máscaras pré-históricas, do período conhecido como Neolítico Pré-cerâmico B (8.300 – 5.500 a.C.), oriundas da Judeia e feitas de rochas sedimentares, especialmente calcário e giz.
O período é de extrema importância na história humana. Foi quando ocorreu a chamada Primeira Revolução Agrícola (também conhecida como Revolução Neolítica), quando a economia de caçadores-e-coletores nômades se converteu em uma economia de fazendeiros assentados em terras fixas, com grande salto no processo de domesticação de animais, momento em que a chamada dieta paleolítica foi substituída por um regime alimentar inteiramente novo. Informações arqueológicas sobre essas máscaras são escassas, mas hipóteses sugeridas incluem a de que possam ter alguma ligação com a nascente necessidade de assinalar a posse de terra, ou com a proximidade dos mortos que a vida sedentária traz consigo. As características plásticas de algumas sugerem união com o mundo animal, mas a maior parte indica outro tipo de fusão: entre vivos e mortos, entre a singularidade do retrato e a universalidade do crânio.
É possível categorizar máscaras de diversas maneiras, um recurso que nos permite iniciar o estudo científico dessa inclinação humana. Aponto quatro recortes que me parecem particularmente importantes:
Quanto ao uso: algumas máscaras são criadas para serem usadas sobre o rosto, enquanto outras integram vestimentas complexas em posições as mais criativas possíveis; algumas são criadas para recobrir o semblante dos mortos, enquanto outras não são para serem usadas, sendo, por vezes, objetos íntimos, que somente podem ser vistos por algumas pessoas especiais, ou em ocasiões especiais.
Quanto à figuração: máscaras operam num binômio entre o antropomórfico e o não-antropomórfico (podem ser zoomórficas, corporificar monstros ou representar espíritos ou deuses, etc.). Arriscaria sugerir que a sofisticação e a variedade das máscaras não-antropomórficas servem para sublinhar a radical não-humanidade delas.
Quanto à imaginação: em alguns casos, tanto o mascarado quanto sua plateia flertam com a ideia de uma transmutação de um ser em outro – o mascarado se transforma na máscara ou vive uma situação limiar e paradoxal (é, a um só tempo, a representação e o representado, o ator e o personagem) –; em outros casos, a transmutação não é vivenciada nem é um requisito.
Quanto ao contexto cultural: máscaras são usadas tanto em contextos laicos, com pouca ou nenhuma ritualização, quanto em situações fortemente carregadas de energia sacra – as encontramos em coloridas festas populares, em cerimônias tribais ou como adereços fúnebres.
Para mim, o Feiticeiro de Trois-Frères e as máscaras neolíticas da Judeia representam os dois polos mais típicos deste tão humano baile de máscaras. De um lado, temos as máscaras antropomórficas, que, demarcando território ou disfarçando o semblante morto das pessoas amadas, parecem dizer “isto é humano, ser gente significa isto”, uma espécie de exibição da condição humana. De outro, as zoomórficas parecem destacar a nossa união com o mundo natural, especialmente com os animais vertebrados. Ao vesti-las, o homem alude ao seu paradoxo solitário e singular: o de ser apenas um animal, mas um animal como nenhum outro.
Universo particular
por Leka Mendes
“Para cada pessoa que você olhar, você consegue enxergar um universo em seus olhos; se você realmente estiver olhando.”
George Carli
Serge Peyrot e a morfoanálise
Serge Peyrot, formado em fisioterapia clássica pela Universidade de Marselha, estudou com Françoise Mézières, a fisioterapeuta francesa pioneira do que hoje é mais conhecido como Reeducação Postural Global, o RPG. Em 1985, após perceber que os sentimentos e as emoções eram expressão autêntica do conteúdo inconsciente das retrações e tensões musculares, e que não poderiam ser excluídos do trabalho corporal global, fundou a Terapia Morfoanalítica. Um método terapêutico que acredita que corpo e mente são duas caras da mesma moeda. Ambos constituem a mesma memória corporal-emocional vivida desde que o bebê está no útero materno até o momento presente. A Terapia Morfoanalítica parte da concepção do ser humano como uma unidade indissociável corpo/psique, e sua técnica valoriza o papel do corpo na psicoterapia, especialmente nas manifestações psicossomáticas. “O sintoma é tratado no plano físico ou psíquico sobre o qual se manifesta, criando condições para que o paciente reconheça e incorpore sua dimensão inconsciente”, diz Serge.
Você começou sua formação como fisioterapeuta, na Universidade de Aix-Marseille. Nesse período, depara-se com algo que lhe faz duvidar de que a fisioterapia seja um marco terapêutico completo: um livro. Que livro era esse? O que significou para você?
Ainda estava estudando fisioterapia em Marselha quando li o livro de Thérèse Bertherat, O corpo tem suas razões. É um livro que teve um grande sucesso naqueles anos (entre 1975 e 1985) porque colocava em foco o importante papel da vida emocional nos transtornos posturais, musculares, articulares, e em muitas doenças autoimunes. Sempre pensei que era possível tratar uma pessoa inteira, e não somente um sintoma, que o corpo é um reflexo da alma, que a consciência das sensações permite transformar o corpo objeto em um corpo que vibra, ressoa e tem história. Esse livro falava disso, e me levou a pensar que algum dia trabalharia nessa linha.
Para obter seu título, o senhor começa sua carreira profissional como fisioterapeuta. No entanto, não se sente completamente satisfeito com esse método terapêutico, ao menos na visão mais clássica. Por quê?
Trabalhei por pouco tempo com a fisioterapia tradicional. Rapidamente me dei conta de que os tratamentos clássicos tinham efeitos superficiais e pouco duradouros. Como as causas profundas não eram detectadas nem tratadas, acabavam por continuar causando os mesmos efeitos. Os sintomas voltavam de uma maneira crônica e o paciente não conseguia sair desse círculo vicioso. Então intuí que existia outra forma de ajudar o paciente a libertar-se desses sintomas, de uma maneira completa, mais global, mais eficaz.
Você conheceu, em 1979, Françoise Mézières, que deu um passo além da fisioterapia clássica. O que ela agregou ao seu trabalho?
Conheci Françoise Mézières um pouco antes de terminar meus estudos. Sentia vontade de conhecer diretamente a grande professora que havia inspirado Bertherat. Foi uma pioneira na fisioterapia postural, a primeira que sistematizou um método de reeducação global que aplicava de maneira exata o conceito de “cadeias musculares”. Segundo esse conceito, todos os músculos do corpo são interdependentes, estão organizados em cadeias, de tal forma que qualquer lesão ou desequilíbrio em uma parte do corpo pode se transmitir e se manifestar em outra região. Ela propunha uma série de posturas de estiramento horizontal e vertical do corpo. Era uma nova forma de entender a anatomia e a correlação de postura, e isso me encantou.
A partir de 1979, o senhor começa a aplicar em suas consultas a fisioterapia tal como Françoise Mézières. Inicia-se, então, um período de seis anos de intenso trabalho clínico, e o senhor chega à conclusão de que o método que está utilizando é incompleto. O que o levou a essa conclusão?
De uma visão biomecânica, o método de Françoise Mézières parecia perfeito. No entanto, não levava em conta os aspectos psicoemocionais da história da pessoa e a maneira como se manifestam no corpo. Meus pacientes não demoraram a me ensinar que mudar de postura é um processo complexo que não se limita a reorganizar ossos e músculos. Durante as sessões, algumas pessoas viviam reações emocionais, outros relatavam sensações intensas, algumas lembravam momentos esquecidos de suas infâncias; todas sentiam uma necessidade de compartilhar, com palavras, essas diversas expressões para organizá-las e transformá-las em pensamentos.
O senhor faz o uso da psicanálise para completar seu método de trabalho e sua maior influencia nesse campo vem do psicanalista e psiquiatra suíço Jean Sarkissoff. O que o senhor incorporou da psicanálise em seu método?
No começo, quando uma expressão emocional se manifestava em uma sessão, eu fazia o que me saía naturalmente: acompanhava e acolhia a emoção, escutava o que a pessoa dizia das suas sensações, imagens e memórias. Progressivamente, fui organizando um quadro terapêutico, pensando em uma maneira de acolher a dimensão sensorial e a emoção que emergia do trabalho corporal global. Paralelamente, experimentei vários tipos de terapias psicocorporais, porque era evidente que eu mesmo necessitava me conhecer de maneira profunda, física e psicologicamente, para poder ajudar os meus pacientes. Enfim, conheci o grande psicanalista suíço J. Sarkissoff, que me permitiu chegar pessoal e profissionalmente a uma compreensão do trabalho do inconsciente e a ser capaz de detectar como ele se manifesta pelo meio corporal ou verbalmente. Sobretudo, ajudou-me a entender e integrar os aspectos transferenciais da terapia corporal global.
Em 1985, o senhor considerou que seu método era diferente de qualquer outro e decidiu criar a Terapia Morfoanalítica, com a qual continua trabalhando até hoje. Quais são suas principais características?
Ao longo dos anos, junto dos meus colaboradores, transformamos totalmente a forma de trabalhar as posturas globais, com microestiramentos, toques suaves, precisos, condução verbal colaborativa, incorporando um trabalho respiratório diafragmático e integrando a consciência sensorial em todas as fases de cada sessão. Completamos nosso quadro terapêutico com outras técnicas também: massagem sensitiva, massagem profunda no tecido conjuntivo, massagens específicas (abdome, mãos, pés, rosto), mobilidades específicas (braços, pernas, cabeça), trabalhos de consciência de postura, e integramos a expressão corporal, emocional e sensorial como representações naturais de uma mesma realidade: a unidade postural. A postura é um equilíbrio complexo que se vive e se manifesta no presente, mas que tem suas raízes em sua história psicoafetiva infantil. Assim, construímos um método muito bem estruturado, uma terapia psicocorporal global que permite aprofundar-se nesses três campos (corporal, emocional e sensorial) e, sobretudo, articulá-los entre si, de tal maneira que a comunicação corpo-mente-emoção-sensação seja restaurada. Um método adequado tanto para pessoas que sofrem patologias físicas quanto para quem padece de problemas psicológicos. Trabalhamos o corpo com os mesmos princípios de um psicanalista: não forçamos, não empurramos, não julgamos, não decidimos pelo paciente o que tem de ser sentido. Respeitamos o ritmo de cada pessoa. Cada corpo carrega a história da pessoa, e o equilíbrio postural se articula com o equilíbrio psicoafetivo, porque os dois atuam sempre juntos, mesmo que não tenhamos consciência disso. Ajudamos nossos pacientes a tomar consciência dos laços que unem corpo-emoção-sensação para desativar os mecanismos patológicos responsáveis por sua aparição no sistema. Quando os músculos retraídos soltam suas tensões e recuperam sua elasticidade, os conteúdos emocionais são liberados e se expressam física, emocional e sensorialmente; ou com os três campos de uma só vez. É importante que o terapeuta aplique o método que permita acolher e integrar a diversidade de todas essas manifestações, porque graças a elas temos acesso à riqueza e à complexidade da personalidade de cada indivíduo.
Como funciona o processo de reequilíbrio do indivíduo? Em outras palavras, o que acontece com o paciente quando seu corpo e/ou sua mente libera memórias, emoções?
Muitas tensões corporais crônicas estão relacionadas com lembranças ou emoções reprimidas no nosso inconsciente. Quando o trabalho corporal libera essas memórias e emoções, a grande quantidade de energia que servia para mantê-las presas é liberada, e pode manifestar-se de várias maneiras. Por exemplo: a pessoa vive uma emoção, intensa ou leviana. O terapeuta a acolhe, pois sabe que essa energia é a que mantinha a hipertensão no corpo. Quando termina a onda emocional, o terapeuta ajuda o paciente a expressar com palavras o que foi vivido. A expressão verbal simboliza e transforma em pensamento algo que havia ficado internamente como material “bruto”, não trabalhado, ou confuso. Às vezes, a grande quantidade de energia liberada se manifesta com sensações intensas em algumas regiões do corpo, que o terapeuta, através do diálogo, ajuda o paciente a expressar verbalmente, pois sabe que as sensações são uma linguagem que necessita ser decodificada para ser compreendida. Quando as emoções e as sensações são elaboradas verbalmente e transformadas em pensamentos, são assimiladas e voltam a fazer parte da história psicoafetiva da pessoa, enquanto o corpo e a postura recuperam seu equilíbrio e tonalidade elástica. O que reequilibra, tanto física como psiquicamente, é a integração e a interação do corpo com o sensorial e o emocional.
Quais são os problemas mais comuns que os pacientes trazem em suas consultas?
Podemos classificar a necessidade dos pacientes em duas categorias principais. Os que sofrem de problemas físicos, agudos ou crônicos, tendo certa consciência de que esses sintomas são a expressão corporal de uma série de situações afetivas e emocionais não resolvidas. Esse tipo de paciente precisa de uma terapia que possa acolhê-lo e tratar a dor física, mas também entender a dimensão psicológica das causas inconscientes desses sintomas. A segunda categoria é formada por pessoas que sofrem de transtornos emocionais diversos como: anorexia, depressão, insônia, bulimia, angústia, e que sentem intuitivamente a necessidade de receber ajuda verbal, mas também através do corpo. A maior parte dos nossos pacientes já havia tentado outros tratamentos, com poucos resultados, antes de decidir por uma solução que integrasse corpo-emoção-sensação-palavra-relação, como faz a Terapia Morfoanalítica.