#24PausaDesignEstilo

Enjoy the silence

por Camila Yahn

Quando fui convidada para escrever sobre o tema desta edição, a pausa, percebi logo de cara o desafio que seria. Eu me engano observando e acompanhando pessoas e movimentos que lutam contra essa era do speed, pois o ritmo acelerado está dentro de mim (de nós). Não tem yoga, respiração, meditação, nada que me ajude a desacelerar porque, para começar, não consigo nem criar a disciplina para uma prática constante.

Primeiro, porque o celular virou uma extensão dos meus braços. Segundo, porque trabalho com moda, o mercado que mais abraçou a velocidade como sinônimo de performance e sucesso.

Estamos todos cada vez mais conectados e presos a um ciclo vicioso, que a sociedade atual nos faz acreditar ser o caminho mais curto e certo para a realização. Mas será o melhor?

O mundo está apressado, agitado, frenético. Essa loucura virou o ritmo normal e tem ditado nossos trabalhos, relações, experiências e o convívio com outras pessoas. Na velocidade acelerada, é mais fácil e rápido mostrar superficialmente quem somos, pelas lentes das redes sociais, que são as máscaras do nosso tempo.

Na moda, presenciamos o passo a passo na construção de uma indústria global e ambiciosa, que não poupa o meio ambiente nem as pessoas. Se antes as marcas desfilavam duas vezes ao ano, hoje têm oito apresentações anuais, incluindo aí desfiles de todos os segmentos em que estão presentes, como masculino, alta-costura e as linhas de pré-inverno e pré-verão. Apenas grifes que são verdadeiras corporações (Dior, Chanel, Gucci, Burberry…) conseguem dar conta de tanta eficiência, produção e dinheiro.

Ainda assim, mesmo pessoas preparadas para esse nível de pressão têm feito escolhas que trazem mais tempo, liberdade e espaço, como aconteceu com o belga Raf Simons, que deixou a direção criativa da Dior de surpresa, após três anos na casa. Raf tem uma marca masculina, que desfila na semana de moda de Paris, e com ela pode fazer do seu jeito, no seu tempo.

Dois fenômenos detonaram esse movimento: a formação dos conglomerados de moda e o fast fashion. Daí vem o aumento no consumo, que reflete em mais oferta e mais produção, que resulta em mais vontade de comprar, em um jogo de presa e predador em que consumidor e indústria têm os dois papéis ao mesmo tempo. Precisamos de tanto? Não! Nosso impulso, nossa ansiedade, nossas inseguranças podem ser saciadas de outras maneiras, vivendo uma vida mais real, menos digital, dando atenção ao que é importante de verdade. Entender o que é essencial, mais do que um exercício, é uma escolha.

A moda sempre viveu de novidade. O problema é que as novidades de ontem ficam velhas hoje e você tem que sair em busca das de amanhã. É matar no almoço para comer no jantar. Um ciclo vicioso em que estilistas, empresários, produtores e fornecedores pagam um preço caro para sustentar a demanda por novidades.

Por que a obsessão com velocidade e quantidade? Se a ideia é produzir coisas boas, que tenham vida mais longa, correr não é a melhor forma de fazê-lo. Acelerar não aquieta a mente, só produz barulho e ansiedade.

Para todo grande movimento, há sempre uma oposição. Ela é formada por pessoas que decidiram dar uma pausa. Repensar, refletir, refazer, só que de outro jeito. Cada vez mais, no Brasil e no mundo, aparecem estilistas, designers e iniciativas que trabalham o tempo de outra maneira: a seu favor e não contra. Que atuam de forma horizontal, quebrando normas e hierarquias antigas.

Nesse silêncio, descobrem novos valores e maneiras de ir contra o que está se provando insustentável. Há um novo pensamento na moda, que inclui a otimização de tempo e dinheiro, a criação de algo durável e autêntico, a humanização dos processos e o não desperdício (de tempo, material, trabalho, mão de obra, ansiedade etc.). E isso não quer dizer que a tecnologia não seja aplicada, que o resultado não cause desejo, que a empresa não seja lucrativa e saudável.

Como exemplos, posso citar Paula Raia, Isabela Capeto, À La Garçonne, Flavia Aranha, Fernanda Yamamoto, Ronaldo Fraga, Carol Baum, Comas + Japonique e Helen Rödel. Marcas totalmente diferentes umas das outras, mas que têm em comum esse ideal e vão, bravamente, contra o fast.

A maioria tem uma operação pequena, com apenas uma loja em São Paulo e alguns canais digitais, como online shops próprias ou multimarcas. Como qualquer empresa, seu processo de criação tem uma meta: virar um produto. Mas o durante é tão importante e prazeroso quanto o fim.

Fernanda Yamamoto, Flavia Aranha, Paula Raia e Carol Baum capacitam mulheres de comunidades Brasil afora, ensinando novas técnicas manuais que podem ser aplicadas em suas peças. São muitas idas e vindas até ficar do jeito certo, de experimentos com tingimentos naturais e processos em cima de tecidos à criação de novos pontos de renda.

A Isabela tem uma história conhecida pela forma como faz suas peças, com trabalho manual, arte, beleza e amor. Suas roupas parecem que vêm carregadas de boa energia em cada bordado. Em sua mais recente coleção, ela usou peças já usadas para dar vida a novos vestidos e saias trabalhados a mão. Nada perto do que encontramos na nossa fast mais próxima.

Na À La Garçonne, nova empreitada de Alexandre Herchcovitch com seu parceiro Fábio Souza, encontramos peças que são feitas a partir de outras roupas mais antigas ou com tecidos vintage. Histórias que passaram transformam-se em novas histórias.

O não desperdício também é o foco da Comas + Japonique, que tem como lema a total otimização de tempo, dinheiro, mão de obra e materiais. Já Ronaldo Fraga tem uma estrutura maior, mas há tempo encontrou um ritmo próprio que o permite se aprofundar nas suas ideias e transformá-las não apenas em roupas, mas também em exposições, desenhos, livros e contos.

Um novo tempo, emoções sinceras, inspirações originais, esforço, inteligência, estratégia, sabedoria em técnicas, processos e materiais, trabalho honesto, horizontalidade e respeito nas dinâmicas estão entre os valores dessa proposta.

Em um momento em que mais de 500 milhões de mensagens são compartilhadas por dia no WhatsApp e o avanço da tecnologia tem feito o mundo enfrentar mudanças complexas, a pausa é o nosso calmante, nosso ácido, nossa receita contra o império da ansiedade e da busca por algo que perde a graça assim que encontrado.

#24PausaCulturaSociedade

As coisas mudam no devagar depressa dos tempos

por Bruno Fujii

Em 1952, Guimarães Rosa acompanhou oito boiadeiros em uma viagem pelos caminhos do sertão de Minas Gerais. Esse foi o início de um dos mais importantes livros da literatura brasileira: Grande Sertão: Veredas (1956). Inspirado pelo universo do escritor, e no cenário vivido por Riobaldo, é que minha experiência pelo sertão se inicia — mas sem pensar em um fim, pois, como diz o próprio Guimarães Rosa: sertão é dentro da gente.

A região está muito diferente do que foi há mais de sessenta anos, já não se encontram veredas vicejando vida pelos caminhos; e os surubins, uma vez em abundância ao longo do rio São Francisco, hoje estão escassos.

Seu Norberto e o rio São Francisco são um só. Desde o primeiro momento em que nos recebeu, com um grande sorriso no rosto, em Três Marias, foi possível sentir que para ele não há separação entre natureza e homem. O que o rio ensinou a Seu Norberto não se aprende nas linhas de nenhum livro, e isso foi o que mais deu forças para ele ser um ribeirinho militante consciente e respeitado por todos que já o encontraram um dia.

Na comunidade quilombola de Ribanceira em São Romão, Vilson foi chegando com sua bicicleta e, num momento, encostou perto de uma árvore, ficando em silêncio e observando. Sua curiosidade acompanhada de um olhar sonhador aos poucos se mostrou tão amigável como uma pessoa próxima da família. E deve ser isso viver em Ribanceira: uma grande família. Mas uma família que traz no sangue a resistência da história quilombola como força vital para superar todas as adversidades cotidianas.

Antes das 5h, ainda escuro, o horizonte começando a clarear o dia, descendo as margens do rio São Francisco na altura de São Romão, encontramos Seu Vital e seu barco prontos para começar a lida diária. Assim começava um dia quente, mas com muita sombra, conversa e barus impossíveis de contar. Depois fiz o convite: “Seu Vital, topa fazer uma foto no seu barco na beira do rio São Francisco, bem como te conheci hoje pela manhã? Se for muito cedo vou entender…”, e a surpresa na resposta veio na afirmação positiva, com a cabeça, de Seu Vital: “Essa hora pra mim o dia já começou faz tempo, tou acostumado.”

Valdemiro criou as três filhas através do artesanato. Conversando e trabalhando, no começo não deu muita atenção, mas aos poucos foi se abrindo e se mostrou tão acolhedor como todas as outras pessoas. Nos detalhes do trabalho ele vai mostrando e explicando, e noto: nas mãos, na fala e no olhar, o amor e dedicação que tem pela arte transbordam e causam admiração.

Seus Zezo é, com certeza, o maior exemplo de que é possível buscar um equilíbrio entre tradição e modernidade. Nos Vãos dos Buracos, onde seria o Liso do Sussuarão, andamos pela mata até chegar a um olho-d’água. Eu, impressionado, matando a sede, tento achar palavras para explicar o momento. Seu Zezo sabe que para algumas coisas, na natureza, não há palavras, e fica em silêncio.

#24PausaArteArtes Visuais

Tecido

por Marina Weffort

O tecido, material escolhido por mim para esta série, é constituído de uma estrutura de fios que se cruzam ordenadamente. As direções são sempre as do urdume, vertical, e da trama, horizontal. Essas linhas, perpendiculares entre si, criam minúsculos encontros, perfeitos e estáveis, que possibilitam ao todo a realização de uma superfície única, um plano outro, maleável e resiliente. Meus trabalhos com tecido se valem da lógica construtiva inerente ao próprio material para explorar questões como cheio e vazio, leve e pesado, tensão e distensão, superfície e profundidade, e a passagem do tempo. As ações de cortar e desfiar, pregar e esticar são os únicos elementos do jogo.

Os trabalhos, em sua maioria de cores claras, são esticados diretamente sobre a parede, fazendo com que sua sombra seja incorporada à imagem da obra. Esse sútil rebatimento de luz e sombra entrecruza o desenho da nova trama, ao mesmo tempo que a insufla de ar, formando uma espécie de caixa vazada de linhas reagentes ao mínimo sopro. Revela um procedimento de escultura àquilo que, em um primeiro momento, pode parecer algo bidimensional, como um desenho ou uma pintura. Os padrões de movimento, que aparecem com a ação da mais sutil entrada de ar, muitas vezes assemelham-se à imagem do sopro do vento em uma superfície de água. A rarefação da superfície e sua fragilidade visual e física contribuem para sua dissolução no espaço. Essa relação com o espaço e com a luz que atravessa as tramas dos tecidos exige do observador um permanente esforço para corporificar essas estruturas-limite.

#24PausaArtigo

Dois e dois são dois: Bruno Herrera e Yuka Okuyama

Rodolfo Herrera, 33, formou-se em Design Gráfico. Há três anos, trocou o mouse, tabela Pantone e monitor pelas xícaras, moedores e aromas do café. Barista e cofundador do Beluga Café em São Paulo, acredita no envolvimento direto com seus meios produtivos – a origem dos grãos, o esmero no processo -, criando a ponte entre o produto e seu público consumidor.

Yuka Okuyama, 28, formada em Arquitetura e Urbanismo. Divide seu tempo entre a arquitetura e a produção de café em Rio Paranaíba-MG. Filha de agricultores, sempre compartilhou com a família a paixão por café. Há dois anos desenvolve um trabalho na parte de qualidade, focado em microlotes de cafés especiais para o mercado interno.

Rodolfo Herrera – Quando começamos o Beluga, eu trabalhava com design gráfico já havia uns dez anos. Aí passei por esse momento de certo declínio do mercado de comunicação em geral, quando tudo começou a ficar muito bagunçado por conta da internet e de todas as transformações que o mercado sofreu. Como sempre tive uma questão de que quem trabalha com comunicação tem cada vez menos influência sobre o resultado final das coisas, isso começou a me gerar uma frustração muito grande. Começou-se a falar muito que as pessoas têm que procurar satisfação no trabalho, uma ideia de que o trabalho quase deixa de ser trabalho. E a história do café surgiu justamente dos momentos de pausa que eu tinha em relação ao meu trabalho com design. Queria estudar alguma coisa nova, e comecei a estudar café – um tema que me interessava. Consequentemente, comecei a tomar cada vez mais café, café de melhor qualidade, e tentar entender por que esses cafés eram melhores, eram diferentes, por que o Brasil, que é o maior produtor de café do mundo, não deixava esses cafés aqui. Era muito difícil encontrá-los aqui e, quando você os achava, eram muito caros. Eu achava que eram caros. Hoje já não acho que sejam. Acho que são baratos até. Nesses pequenos momentos de pausa, fui entrando cada vez mais nesse tema, até o momento em que isso começou a tomar mais tempo do que imaginava que deveria tomar na minha vida, sabe? E aí foi um ponto sem retorno, em que olhei e pensei: por um lado, eu tinha uma profissão que ia relativamente bem, era sócio de um estúdio de comunicação legal, mas, por outro, não via um futuro naquilo, não via aonde aquilo poderia chegar com essa configuração que se deu, e achava que o momento era o ideal para criar alguma coisa nova.

Tomei essa decisão em 2012, passei 2013 ainda trabalhando com design e estudando cada vez mais, e em 2014 foi quando larguei tudo. No final do ano, eu e Flávio abrimos o Beluga. E, de lá para cá, de certa maneira, acabaram esses momentos de pausa [risos], porque começamos a trabalhar muito. Mas aí comecei a sentir uma coisa que não sentia havia muito tempo, uma satisfação muito grande de estar trabalhando com algo em que o esforço individual tem influência gigantesca no resultado daquilo que você entrega. É o seu trabalho, junto com o trabalho de sua equipe, que diz: “o resultado está aqui”, na xícara. Se é uma xícara ruim, você falhou em algum momento; se é uma xícara boa, acertou. Simples assim. Só que existe por trás uma cadeia complexa, que só trabalhando nisso começamos a entender. Quando abrimos o Beluga, tínhamos uma visão muito estereotipada do que seria trabalhar com cafés especiais, e fomos aprendendo, trocando a roda do carro com o carro andando, sabe? E foi muito legal, mas exige muito esforço no dia a dia. Começamos a fazer um trabalho de nos conectarmos cada vez mais com quem produz o café, porque, no nosso ponto de vista, é ali que está realmente o ponto mais importante da cadeia toda. Não é só pensar no consumidor, porque o consumidor, de certa maneira, está afoito a receber novidades. Mas é olhar para o produtor, se conectar com ele, e trazer, para quem entra na loja, essa conexão direta de certa maneira. É fazer as pessoas pararem em algum momento e olharem para aquilo que estão consumindo, prestarem atenção. Acho que, obviamente, sempre vai existir o lugar onde você vai pegar um café rápido e vai embora, mas acho também que o que estamos fazendo aqui, e que outras cafeterias estão fazendo, é provocar um momento de ruptura, em que você entra e se interessa por uma cadeia, não só pelo produto final que consome. Você quer saber quem é o produtor, de onde vem, como é a relação, enfim… Isso que estamos esboçando aqui. E, assim, a relação com o campo vai nascendo aos poucos. Estudando cada vez mais, vamos conhecendo mais um percurso, tentando nos aproximar dos produtores, e a Yuka foi uma dessas pessoas, nos conhecemos aqui.

Yuka Okuyama – Eu também estava bem desanimada com a arquitetura, quando meu irmão, que morava aqui em São Paulo, acabou voltando para Minas, para a fazenda de café da nossa família. Sempre fui entusiasta do café. Acho que, da família, sou a que mais curte beber café. Para mim, é uma pausa mesmo. De lá, meu irmão se envolveu com café e me fez uma proposta de trabalharmos a qualidade do café da nossa fazenda. Isso foi mais ou menos na época em que o Beluga abriu, e ver todo esse movimento, que estava crescendo aqui em São Paulo, deu um gás ainda maior para nós. Ter contato com vários cafés do Brasil também. Porque, como produtores, é difícil ter o produtor que provou o próprio café. Normalmente existe uma pessoa que avalia o café e precifica, aí você vende. Até mesmo isso, de provar seu próprio café, é raro. É um absurdo, mas é muito raro. Eu não tinha muito repertório de café, e então começamos a pegar alguns lotes e dar uma caprichada. Aprendemos mais sobre o pós-colheita, que é o que traz qualidade para o café. Se você não dá um bom tratamento no pós-colheita, a qualidade pode cair muito. É um dos momentos mais importantes para o café. A fazenda da minha família fica no serrado mineiro, região conhecida pela produtividade. Temos algumas vantagens, digamos assim, porque o terreno lá é plano, então a gente tem colheita com máquina. Só que, como o Brasil tem o pensamento de quantidade, e não de qualidade, somos o maior produtor de café mas não somos conhecidos como o melhor café do mundo. Quando você tem muito café, é muito difícil ter tempo e cuidado com todos os lotes. Meu pai consegue uma qualidade e uma produtividade no café dele, mas começamos a dar mais atenção para alguns lotes com mais potencial, e no ano passado, em nosso primeiro teste, e pontuamos muito bem. A primeira vez que meu pai provou o próprio café foi no Beluga. Em casa a gente só tomava o café dele.

RH – Mas era uma coisa torrada na fazenda, né?

YO – É. Daí é outra história, você fecha o círculo, né? Você produz um café bom, tem um mestre de torra que torra bem, que vai buscar o melhor perfil para o seu café, e ele chega à cafeteria onde o barista vai servir-lo da melhor forma. Para o meu pai foi muito especial, mesmo.

RH – E nossa relação nasceu muito espontaneamente. Você vinha aqui como cliente, a gente nem sabia que você produzia café, fomos conversando cada vez mais, e um dia você trouxe uma amostra, nós provamos e falamos: “Caramba, esse café é incrível, dá para sair muita coisa boa daí”. E a gente foi aprendendo meio junto também.

O café tem uma relação com o tempo que é primordial para seu desenvolvimento. Vocês tiveram essa primeira safra focada em qualidade, nós provamos e demos feedback, além de outros feedbacks que vieram também, mas isso será aplicado somente na safra do ano seguinte. Existe uma espera de um ano para que isso aconteça de novo, e você nem sabe se realmente vai sair da maneira que quer que saia, porque há a influência do clima, dos processos pós-colheita, enfim… O café é um negócio que exige muita paciência e muita dedicação.

Por isso que é importante a proximidade com quem produz e com o campo. Aqui, tudo é muito rápido, para nós que estamos preparando e servindo. Produzimos centenas de xícaras ao longo dia. Só que, para que isso aconteça, para que a qualidade chegue de maneira padronizada nas xícaras, exige-se todo esse tempo “pré” do produtor. Se você experimenta novas variedades, plantando diferentes espécies, vai esperar essa planta crescer, e vai demorar três, quatro anos para dar a primeira colheita. Por isso o café exige outro tempo mesmo, e é muito difícil de conciliar. Isso de que você falou, que o Brasil é um país que sempre focou muito em quantidade e agora está aprendendo a trabalhar com qualidade, é uma mudança de paradigma enorme na maneira como a gente lida com o café. Mesmo para o consumidor é uma experiência diferente chegar aqui ou em outros lugares que trabalham com cafés especiais e consumir. O cliente pede um café coado e ele não está pronto. Preparamos na hora, moemos na hora, e demora mais tempo para ser feito e servido. Existe uma relação, que as pessoas vão aprendendo pouco a pouco, com o preparo das coisas, que toma um pouco mais de tempo, que não é tão mecânica.

YO – A onda do slow, né? Slow food, slow fashion… Está voltando um pouco agora, com o mundo tão acelerado. Acho que pouco a pouco estamos retomando essas coisas que demandam mais tempo, que são feitas com mais calma e mais qualidade. Talvez uma volta desses momentos de pausa.

RH – É. E o café especial está inserido justamente nessa mudança. É o que falei das pessoas se reconectarem um pouco com o produto e entenderem que existe um tempo para ele ser feito. Por exemplo, faz dois dias que estou sem café na prateleira – isso não deveria acontecer, em teoria, mas é porque a gente está num momento de entressafra, então os lotes que a gente tinha estão acabando, e não conseguimos tê-los imediatamente. Eu dependo do café que está no torrefador, sendo torrado, e ele vai me entregar agora à tarde para poder empacotar e colocar na prateleira. Não é um processo automatizado, industrial; são pessoas que estão envolvidas ali fazendo isso manualmente. E isso é muito legal, porque a pessoa que está aqui consumindo vai aprendendo esse timing, que toda semana eu recebo um lote de café torrado novo, então sempre vai ter esse frescor. A pessoa chega aqui – e isso é uma mudança de comportamento muito grande que acontece – e a primeira coisa que faz é olhar embaixo do pacote para ver qual é a data da torra do café. Isso é demais! É quebrar com a coisa do supermercado, que você pega e você nem sabe quando aquele café foi colhido, quando aquele foi torrado, quando foi moído.

YO – Validade de um ano. Café que já está moído…

RH – Um ano de validade. O café não dura um ano! Nenhuma comida deve durar um ano! [risos] Ela perde sabor, perde frescor, uma série de coisas. Óbvio que estou falando de uma coisa muito específica. Entendo que a industrialização da comida seja importante para uma série de coisas. Não conseguiríamos alimentar tanta gente se não tivesse uma indústria de alimentos, mas, nesse nicho, é muito importante esse processo para manter o frescor, para manter o café sempre novo.

Vemos essa mudança acontecer aqui diariamente. De gente que chegava, um ano e meio atrás, quando abrimos, e que só tomava café espresso com açúcar, e que agora toma um copo enorme de café coado sem açúcar e sai daqui feliz.

YO – Os cafés especiais têm uma doçura muito presente. Esse que a gente tomou agora… é muito suave.

RH – Isso tem a ver com essa história de saber a origem das coisas. Começar a entender que o café é uma fruta, e fruta tem doçura, tem acidez, tem tudo. Então você começa a olhar para o café de uma maneira diferente, o seu paladar muda. E quando o paladar muda, já era. Não tem volta. Uma vez que você provou uma coisa boa, dificilmente você volta. E aí entra também um trabalho nosso, de toda a cadeia, de tentar fazer com que esse café seja cada vez mais acessível, que tenha mais pontos para as pessoas consumirem e poderem levá-lo para casa.

Hoje, os nossos momentos de pausa têm sido quando conseguimos sair daqui, ir atrás de novos produtores, visitar fazendas, nos envolver mais nos processos. É uma das partes mais gratificantes, e todo ano é diferente. Todo ano você vai provar um café do mesmo produtor, e ele vai ter produzido alguma coisa diferente, porque o clima naquele ano foi diferente durante o plantio, durante a colheita, a maturação foi diferente, teve mais sol, menos sol, mais chuva, menos chuva… É um momento que paramos a loucura da cafeteria e nos reconectamos com o produto para entender como é que ele se desenvolveu naquele ano e como é que você vai trabalhá-lo depois que sair dali. As receitas de preparo vão mudando, as receitas de torra vão mudando, muda tudo a partir desse momento em que nos conectamos com a produção. E isso tem sido muito importante para nós, para vivenciarmos também uma mudança muito importante que tem acontecido no campo no Brasil. Se ficamos só em São Paulo, ignoramos um pouco o que existe no cenário do campo. Recentemente estivemos no sul de Minas comprando café de uma cooperativa de que sempre compramos, e ficamos assustados de chegar num lugar em que não tem uma placa escrita em português. O campo no Brasil é um troço muito, muito, muito avançado. Existe um nível de desenvolvimento e de tecnologia envolvido que a gente fica abismado quando vê. Isso quando falamos das regiões que trabalham com volume. Óbvio que, quando você vai para um lugar como o Espírito Santo, que é onde esses cafés são produzidos em pequenas propriedades, ainda tem a colheita manual, tudo acontece num outro timing. Mas, em alguns lugares de Minas, é outro mundo. Muito high-tech.

YO – É agricultura de alta precisão, né?

RH – De alta precisão, exatamente. Você sai da cidade achando que está entendendo muito do que existe de mais moderno, quando você está muito para trás. Existe um desenvolvimento interessante, principalmente relacionado ao café, em que o Brasil tem certa liderança de domínio tecnológico em relação à produção que é muito legal de ver.

YO – Vou passar esse próximo mês em Minas. Lá na fazenda estamos já colhendo, mas o trabalho que vou fazer lá é avaliar o café – eu não sou Q-Grader* nem nada, mas vou acompanhar.

Trabalhamos junto com uma cooperativa lá, e o meu papel vai ser basicamente acompanhar essas provas e ir separando os lotes que têm potencial para avaliarmos. Como é só uma vez por ano só que temos a oportunidade de testar novas formas de secagem, novos tratamentos do café, então vou pegar esse mês agora para fazer alguns testes. Como a nossa colheita é quase 100% a máquina que faz, a minha ideia agora é reunir um pessoal para fazer uma colheita seletiva manual. Aí vamos pegar esse café, secá-lo, fazer o beneficiamento… E só depois vamos provar.

RH – Vamos ter esse café pronto quando?

YO – Bom, já estamos provando alguns, mas começamos a colher no começo do mês. Então ainda tem um processo demorado, né? Porque ainda tem que secar o café, deixar descansar, e descascar até virar o grãozinho.

RH – Então, em uns dois meses depois de colhido?

YO – Sim, acho que uns dois meses até chegar aqui. Todo mundo está colhendo, está uma loucura, mesmo para o provador lá da cooperativa. Ele prova vários cafés por dia…

RH – E quando chegar aqui tem a outra parte, que é começar a fazer os testes de perfil de torra, sentar com o torrador e começar a procurar qual o perfil adequado para aquele café que você nos entregou. Existem, sei lá, cinco, seis perfis diferentes, provamos várias amostras dos mesmos perfis, escolhemos um que está mais ou menos no caminho ideal, e aprofundamos mais essa torra. A gente não tem uma estrutura de torrefação ainda. Quem faz a torra pra gente é um parceiro chamado Hugo. Até chegar na xícara exige muito tempo e esforço.

Depois que o perfil está pronto, ele é replicado naquele café semanalmente, enquanto existir ali. Mas ainda existem ajustes que fazemos nesse perfil, porque o café vai envelhecendo, perdendo suas características e ganhando outras. É uma coisa viva. É muito dinâmico. Todo dia é diferente.

YO – Na fazenda também é assim. Muito difícil. Se um talhão teve boa pontuação, o dividimos em partes, e, se no ano passado esse talhão bebeu bem a bebida, nesse ano pode ser que não seja assim.

RH – Se um café de um determinado talhão ficou melhor na xícara, no ano seguinte pode ser que não seja tão bom…

YO – Então, mesmo para nós, temos que identificar qual a melhor forma de trabalhar com aquele café. Acho que isso que é o que dá mais prazer de trabalhar com café; é muito complexo, são muitas variáveis… Porque é uma planta. Então tem ano em que o fruto vai estar mais doce. Daí, se ele produziu muito, no próximo ano talvez não produza tanto, porque a árvore dá uma descansada…

RH – Você estressou muito a planta.

YO – E também tem esse tratamento da secagem do café, que é muito importante, que pode também estragar um ótimo café. Temos que ficar de olho em todas as etapas, para poder trabalhar só esses lotes especiais. E fazer testes, mesmo. Acho que não estamos muito maduros ainda. Meu pai já faz isso há muito tempo, mas a gente está aprendendo muita coisa, testando muitas coisas agora. E é uma vez por ano. Você tem que dar uma avaliada geral e ver o que aconteceu com aquele café.

RH – E já começar a planejar a safra seguinte.

E tem uma coisa interessante também em relação à pausa, que é a relação das pessoas com a cafeteria. Eu sempre frequentei cafeteria, mas acho que nunca tive esse olhar que tenho agora. Agora que estou do outro lado do balcão, eu consigo observar o comportamento das pessoas que estão dentro da cafeteria. E é muito engraçado ver como as pessoas que procuram a cafeteria têm diferentes padrões. Um deles é o mais comum, que é o da pessoa que está no escritório e sai para tomar um café em algum momento do dia, para passar um tempinho fora do escritório, pensando na vida. Um outro perfil, que se repete cada vez mais, é o de gente que vem trabalhar aqui. E isso tem feito a gente olhar para relações muito interessantes que têm se desenvolvido. Pensando na região aqui, que é uma região que tem diversos escritórios de arquitetura e tal – a cafeteria começa a ter um papel muito importante em conectar as pessoas que estão por aqui por um motivo ou outro. Vemos cada vez mais reuniões de pessoas que trabalham na mesma rua e que não se encontravam constantemente, e acabam se encontrando aleatoriamente para conversar e acabam conversando sobre projetos, sobre o que estão fazendo… Vemos pessoas, também, que sabemos que são de escritórios diferentes e que vêm juntas para cá. O café tem essa capacidade social, de alavancar relações, que, para nós, de trás do balcão, é muito interessante. Reparar como esse ambiente propicia esse tipo de coisa, das pausas ao longo do dia.

Isso me fez lembrar de um livro do Steven Johnson, que é um jornalista que escrevia sobre ciência, física, vários temas diferentes, e começou a se interessar cada vez mais por tecnologias, e por como a tecnologia interfere na nossa vida. Ele escreve pequenos ensaios. Os livros dele são bem interessantes. Mas tem um livro chamado Where Good Ideas Come From que fala que ideias inovadoras nem sempre – quase nunca, na verdade – nascem daquela coisa da luz que acende, sabe? Ele diz que nascem de uma construção social. E tem um ponto muito interessante no livro, que é bem no início, em que ele fala sobre uma transformação que acontece na Inglaterra a partir de mil seiscentos e pouco, que é quando surgem as primeiras cafeterias, os primeiros lugares para consumir café. Porque, até então, se pensarmos na Inglaterra pré-revolução industrial, não existia água encanada, água limpa nos lugares, então a coisa mais segura que tinha para você beber não era água, mas álcool, porque era garantido que estava esterilizado, e eles tomavam cerveja ou destilados. Então você tinha uma população que basicamente – obviamente ele estereotipa isso – vivia bêbada 24h por dia, que se reunia para beber, e os encontros eram sempre à base do álcool. Quando começam a surgir as cafeterias, começa a haver um reagrupamento das pessoas em torno do café, para conversar e discutir ideias tomando um estimulante, e não mais uma coisa que as derrubava. E ele começa a relacionar isso a uma série de desenvolvimentos tecnológicos que começam a surgir na Inglaterra a partir desse momento, porque o café propiciou esses encontros e começou a estimular as pessoas a ficarem mais produtivas, mais sãs. É só um parênteses histórico que acho interessante, mas que, no final, vemos acontecer aqui diariamente. A pausa para um cafezinho é muito diferente da pausa que acontece ao final do dia, quando as pessoas se encontram para beber.

Em um ano e meio desde que o Beluga está aberto, eu nunca conheci tanta gente na minha vida, e nunca conheci tanta gente interessante. São muitas histórias diariamente. Quando você sai daqui e vai para o campo, também são outras histórias incríveis que você conhece; são outras realidades, vamos nos conectando. O café te obriga, de uma certa maneira, a se conectar com muitas realidades diferentes. Sou uma pessoa muito melhor, muito mais aberta, muito mais compreensiva por conta dessa convivência que tenho aqui na cafeteria. Você é obrigado a isso, sabe?

#23EducaçãoCulturaLiteratura

Corpo campo

por Poli Pieratti

Trabalhos de Charlotte Heal

Aprender e cultivar são palavras que combinam. Quando olho o meu corpo adulto, penso que ele já foi nada. E então átomo, célula, semente de gente. O corpo, mesmo crescido, segue construindo e destruindo, brotando e decompondo.

É gradual, quase não notamos, mas o tempo colide com nossos poros. Cria relevos, saliências e reentrâncias. As horas são escultoras sutis, os dias lapidam mais, a década deixa vincos.

Dia desses mirei minha pele bem de perto, sob a luz, como quem analisa um terreno visto de cima, em perspectiva aérea. Quis ler minha paisagem, minha idade, mapear meu crescimento. Quando sabemos onde estamos, sabemos como somos?


corpo campo

Tudo começou quando senti um arrepio no braço.

Meus pelos em pé, levemente inclinados, pareciam um campo de capim. Entre as folhas finas, vi um solo cheio de cor. Imaginei um rio passar por aqui.

Por mim, pela minha pele.

A correnteza romperia o corpo–corpo, irrigaria o espaço. Despertaria o corpo–campo.


O olho migra do pulso para a mão. Lá, o capim é ralo, o bioma muda. Olhe agora para a sua mata de transição, veja se não é verdade. Árida e marcada, a mão direita parece um sertão rachado de sol.

Não fosse pela baleia. No polegar direito, na margem da digital, tem um desenho minúsculo e triangular que forma um rabo de baleia. E então o sertão duro, da pele seca, vira mar aberto. E o maior dos bichos vivos vem avisar que há água. E há peso.

A minha boca saliva esse peso, eu sinto a língua viva, os dentes duros, um gosto confuso, a sede. Lembro dos meus fluidos literais, como a água salgada dos olhos.

Lágrima é mar, choro é oceano. Uma baía tem todos os prantos?

Relaxo a pupila, fecho as pálpebras e um azul chega marinho, profundo. Nas costas dos olhos é sempre noite.

Abro, volto à luz. Para não me perder, ancoro a visão na palma da mão. Ela parece ter um mapa, ela parece ser um porto.

Pela palma, chegam todos os corpos do mundo. Cada dedo um cais a reagir às marés. Vou imaginando os atracadouros nas dobradiças e acho, no susto, duas marcas na lateral da mão.

De perto, vejo que são pintas, aparentam ser manchas rupestres ou continentes. Quando foi que elas surgiram aqui? Eu não tinha pintas nas mãos. Será que teve um parto? Será que o marrom era um vermelho que secou?

Pinta é pigmento, pintura. E, nesse caso, é pontuação também: dois pontos a afirmar a vida.

A gente leva muito tempo para essa equação: se ver como mundo. Até que um dia seremos outra coisa. Perderemos o corpo de vista.

O projeto SITU, desenvolvido pela Galeria Leme com curadoria de Bruno de Almeida, é uma plataforma de produção e pesquisa artística que promove um diálogo entre arte, arquitetura e cidade, especificamente criado para o espaço externo da galeria Leme, projeto arquitetônico comissionado ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha.

Fazer a instalação para a terceira edição do projeto foi um desafio novo para mim. Além da complexidade de pensar uma obra que se relacionasse às enormes proporções do espaço, ela teria de ser uma extensão natural do meu trabalho e, também, precisaria dialogar com as linhas conceituais propostas pelo curador. Depois de inúmeros esboços, reuniões e conversas para resolver de forma coerente a pesquisa, o conceito e a materialidade da instalação – esta finalmente possível com a precisa execução da equipe Marton Estúdio, que procurei sem hesitar para levar minha visão à realidade com absoluta perfeição e com o mesmo rigor que apresenta o projeto arquitetônico.

Para a obra, usei madeirite plastificado, um material utilizado na construção civil para moldes de concreto in situ. Sua escolha está relacionada com o próprio método construtivo das paredes de concreto da galeria e, por outro lado, é um material que garantiria uma grande resistência da obra às mudanças climáticas.

Do ponto de vista técnico, uma das principais preocupações foi o escoamento das águas do pátio. Como a instalação anula o espaço entre os dois edifícios da galeria, ela acaba cobrindo todos os pontos de escoamento de água. Como o período de exposição iria coincidir com a época mais chuvosa do ano, decidimos, no momento da montagem, para minimizar complicações maiores, deixar pequenas frestas entre as chapas de madeirite e, também, entre a instalação e o edifício, que facilitariam o escoamento sem perder o aspecto de volume maciço.

A principal intenção da obra é interromper o funcionamento normal da galeria, cortando o fluxo habitual do edifício e dificultando algumas das funções prescritas pelo projeto arquitetônico, como a entrada e o estacionamento de carros no pátio, o uso das portas laterais e o acesso à campainha, que ficava, literalmente, dentro da obra.

O projeto é um grande volume escultórico à primeira vista, mas é como se fosse parte integrante da arquitetura e obstrui e ocupa o espaço de modo extremamente disfuncional

Como todo Brasileiro no exterior, vivo uma constante dicotomia.

Estou longe da minha cultura e sofro para tentar entender um Brasil tão complexo, mas, ao mesmo tempo, me sinto em uma posição privilegiada, onde consigo ter uma visão de fora muito mais ampla. Daqui, enxergo o país em um eterno misto de nostalgia e olhar quase turístico, fascinado com a cultura do meu próprio país.

Com isso, acabei obcecado com o mundano e o cotidiano brasileiro, e, para tentar entender mais o país que deixei, e me aproximar mais de algo tão distante, comecei o Leitura.

Vivendo no Brasil, talvez nunca enxergaria, ou demoraria mais para enxergar, o que consigo ver hoje com esse distanciamento.

A beleza, a poesia e a arte nas pequenas coisas. Esse é o meu Brasil.

Como a minha mãe sempre diz, com sarcasmo, quando não percebo algo muito perto da minha vista: “Se fosse uma cobra te mordia”.

Retratos Pintados

O dia em que a fotografia digital foi introduzida mudou a vida de muita gente. Mas, principalmente, mudou a vida dos retratistas.

Essa arte popular tão difundida pelo Nordeste perdeu a maioria de seus consumidores, que agora carregavam seu próprio equipamento, antes exclusivo ao retratista. A onipresença de câmeras digitais foi lentamente tirando a arte da mão do artista e passando-a, sem muita estética e cuidado, ao grande público.

A selfie substituiu o retrato pintado, o pau de selfie substituiu o pincel, e a tela digital substitui o papel fotográfico.

Mas o que não pode ser substituído é o valor dessas imagens.

Os retratistas não só davam cor às imagens preto e branco, mas, como o fotógrafo William Eggleston, davam a essas imagens um novo significado, um novo olhar.

Interpretando e colorindo os retratados, eles os elevavam à condição de arte.

A Arte Pop dos Brasões


Com o fim do Estado Novo, em 1946, os estados e municípios brasileiros ganhavam autonomia e liberdade para escolherem seus próprios símbolos.

No momento em que os estados e cidades buscavam sua própria identidade e independência Federativa, os brasões foram muito importantes para unir pessoas, culturas e regiões do Brasil. Imagine a dificuldade de cada estado e cidade para criar seu próprio logo, escolher um ícone que representaria e agradaria a maioria dos seus clientes, os cidadãos. Ícones como a araucária, a foice, a arma, o mar, o milho foram escolhidos e desenhados de uma forma quase naïf, simplista, e que acabaram alcançando seu objetivo para a união necessária naquele período. Um ato quase altruísta de artistas
desconhecidos que, sem querer, alcançaram uma qualidade estética incomparável. Pop art dos Brasões.

Maracatu

O Maracatu da fotógrafa Barbara Wagner é distinto do Maracatu conhecido pela maioria dos brasileiros. Esses retratos não contêm as fantasias, os apetrechos e as camadas que geralmente descem as ruas de Recife e Pernambuco todos os anos. Nessas fotos, vemos um ritual mais cru, mais real, com um olhar quase antropológico da fotógrafa, que não tenta julgar nem buscar um clichê, mas sim capturar uma outra dimensão desse complexo ritual.

Barbara capturou os maracatuzeiros em ensaios noturnos pelo Nordeste. Muitas vezes, eles, os maracatuzeiros, estão imersos em um transe, um misto religioso e alcoólico. Daí as poses e caras, que parecem transcender o físico e atingir uma esfera espiritual.

Benjamin Guimarães

Um barco a vapor do Mississipi nas águas brasilienses? Parece conto de pescador, mas é verdade.

Benjamin Guimarães veio do Mississipi na década de 1910 e é o último barco a vapor em funcionamento do mundo. Minha mãe grávida da minha irmã, na década de 70, fez a jornada de Minas até o Pernambuco. Hoje, o Benjamin, mais velho e com mais de cem anos de serviço, faz só parte desse trajeto no Rio São Francisco.

Rendeiras de Cariri

O vale do Cariri em Pernambuco é um lugar onde o tempo ainda passa mais devagar, e as rendeiras aprenderam a lidar com o tempo de sua própria maneira, ponto a ponto. Esse ofício é passado de rendeira a rendeira, de geração em geração. Cada renda, cada manta, cada vestido é um esforço coletivo que às vezes toma um ano ou mais para ser completado. Em 2016, as rendeiras viraram fashion, o trabalho delas teve projeção nacional na coleção de Fernanda Yamamoto no São Paulo Fashion Week. É o Brasil profundo ditando moda.

O Brasil é um país predominantemente cristão. Mais precisamente, 87% da população. Mas quem não mistura tudo, santo, candomblé, mandinga, fita do Senhor do Bonfim?

O sincretismo que o país vive me encanta daqui de fora. Um grande amigo, cristão no papel mas sincretista de carteirinha, todo ano novo experimenta algo novo, numerologia, umbanda, camdomblé, espiritismo, borra de café; já passou por tudo e às vezes me leva junto com ele. Sua mente aberta à experimentação e a ausência total de intolerância religiosa, para mim, definem o Brasil. Um lugar onde todas as fés vivem em uma certa harmonia. Exceto o futebol, é claro.

Os Nonatos

Ouvi os Nonatos pela primeira vez no filme Boi Neon, de Gabriel Mascaro. A canção tema do filme, “O Astronauta”, não saiu da minha cabeça, como chiclete, mas chiclete bom.

Ela me levou para um lugar no Brasil que eu nunca havia estado.

Os Nonatos não são irmãos. Nasceram em cidades distintas, um no Paraíba e outro no Ceará, e são um dupla de repentistas, tratada como celebridade por quem os conhece.

Mais de trinta e cinco bandas brasileiras já interpretaram suas músicas, entre elas “Mudar pra quê?”, “Metamorfose” e “Ponto G”. Essas são algumas das mais tocadas na minha playlist.

Samico

Gilvan Samico é um desses artistas que trabalhava do seu jeito, avesso ao mundo que cada vez corre mais rápido. De uma forma calma e lenta se preocupou em resgatar e recuperar o romanceiro popular brasileiro e a literatura de cordel.

Nos últimos dez anos antes de sua morte, produziu apenas um trabalho por ano. Mesmo ao seu tempo, conquistou o mundo com suas xilogravuras complexas e seu reino rico de temas folclóricos brasileiros que já ocuparam as paredes do MoMA, do Caixa Cultural e outros museus mundo afora.


Miss Penitenciária

A primeira coisa que um grupo de soldados americanos fez ao descobrir prisioneiras nos campos de concentração da Alemanha nazista foi dar-lhes um batom. Esse ato simples devolvia a condição de humano e de mulher que as foi renegada durante o regime. O ato devolvia a autoestima.

Algo muito parecido acontece todos os anos em mais da metade dos estados brasileiros. Desde 2004, penitenciárias femininas de todo o Brasil tomam um ar mais leve, mais feminino, mais humano, pelo menos por um dia, quando realizam o concurso de beleza. O Miss Penitenciária de 2015 atraiu até personalidades como Raul Gil e Anna Hickman, e entre as vencedoras estavam, além das brasileiras, uma sueca e uma angolana.

#23EducaçãoCulturaSociedade

Dos filhos deste solo, és mãe gentil?

por Flavia Milioni

Pátria s.f.: país em que se nasceu, e ao qual se pertence como cidadão.
País s.m: 1 – Região, terra. 2 – Território habitado por um grande conjunto de famílias, que constituem determinada nação.

Nação s.f.: 1 – Conjunto de indivíduos que habitam o mesmo território, falam a mesma língua, têm os mesmos costumes e obedecem à mesma lei. 2 – Sociedade politicamente organizada que adquiriu consciência de sua própria unidade e controla, soberanamente, um território próprio.

São os brasileiros que fazem o Brasil, e não apenas os mais de 8 milhões de quilômetros quadrados muito mal distribuídos. Aliás, se sua terra fosse melhor distribuída – melhor entende-se por mais justa –, os brasileiros não seriam quem são e, portanto, o Brasil não seria o que é. O que esperar de um país quando ele próprio, na figura de seu cidadão, não cuida de si mesmo? Como uma pessoa que negligencia sua própria saúde pode lamentar a doença?

Em 2007, o senador Cristovam Buarque*, então filiado ao PDT, apresentou um projeto de lei que poderia ser a força motriz de uma grande guinada na educação pública do país e, por consequência, base para a maior das revoluções: a política.

O projeto determinava a obrigatoriedade de os agentes públicos eleitos matricularem seus filhos e demais dependentes em escolas públicas. A matéria nunca foi votada porque foi arquivada antes mesmo de chegar ao plenário. O senador ouviu inúmeras críticas de seus colegas, em grande parte dizendo que seu projeto era inconstitucional, pois feriria o livre-arbítrio. A resposta de Buarque é tão oportuna quanto sua proposta de lei: ninguém é obrigado a ser candidato.

Ser ou não ser, eis a questão.

Política vem de polis: cidade em grego; e de polites: cidadão, no mesmo idioma. Não por acaso, a democracia (demo = povo; cracia = poder) teve origem na Grécia. E funcionava mais ou menos assim: a cada ano, quinhentos cidadãos eram sorteados para compor o Conselho, onde se decidiam, em assembleias abertas à audiência dos demais cidadãos, todos os assuntos relacionados à polis. Eram todos políticos, quer queira quer não. Não havia escolha. Também não havia eleição, candidato, partido político, e muito menos a desculpa de não gostar de política. Vive em sociedade? É político. Portanto, político não era profissão, era obrigação. De todos. A qualquer momento, o sorteado poderia ser você. E detalhe: nenhum cidadão poderia ser sorteado mais de duas vezes no período de uma vida inteira.

Com a deturpação do sistema democrático, ou, como alguns diriam, com a adaptação do sistema, da democracia direta para a representativa, a sociedade só perdeu. Quem ganhou foram os que fizeram carreira nesta que é das profissões mais infames já inventadas.

E a representatividade? A sociedade brasileira é composta por 53% de negros, e o Congresso não tem nem 20%; 51% da população brasileira são mulheres, e no Parlamento tem apenas 10%; 37% da população possui ensino superior, e no Congresso são 80%; 60% do povo brasileiro ganha até dois salários mínimos (isto é, até R$ 1.760,00), e 50% do Parlamento – metade de seus eleitos – têm patrimônio acima de R$ 1 milhão. O Congresso tem 153 deputados integrantes da bancada ruralista, sendo o Brasil o país com uma das mais dramáticas concentrações de terra do planeta. Representa?

Quando Cristovam Buarque responde, em tom irônico, para não dizer lacônico, que ninguém é obrigado a se candidatar, traz à tona a grande fissura de nossa democracia representativa. Trocando em miúdos, a pessoa que, deliberadamente, escolhe se candidatar deveria ter consciência de que seu trabalho será para o coletivo e que, se for eleito, terá de seguir algumas regras. Existe um rol de atribuições para cada função pública, e ter seus filhos e demais dependentes matriculados em escola pública seria apenas mais uma delas. Se o emprego diz respeito à máquina púbica e se o salário vem da mesma máquina pública, por que a relutância em usar uma instituição de ensino pública? É óbvio que a resposta que não se quer dar é: porque o ensino público é ruim. E não se quer dar porque, se assim o fizer, estará com isso atestando que o próprio trabalho, e de seus colegas, não é bem feito.

E por que o trabalho não está sendo bem feito? Porque os agentes políticos eleitos no Brasil representam, em sua imensa maioria, a classe média alta e os empresários. Porque política virou profissão, invertendo a prioridade: o eleito trabalha para si e seus pares, não para o país.

O ponto crucial do projeto de lei de Buarque, preciso como um mapa, é que, se o político, e não apenas a população distante de sua classe social, sofresse as consequências de seu próprio trabalho, certamente cuidaria para que este fosse o melhor possível. E, para ser justo até com a classe política, o senador estabelecia uma vacatio legis (período entre a publicação da lei e sua entrada em vigor) bem generosa. Ou seja, os municípios, estados e união teriam alguns anos para deixar as escolas públicas com melhores equipamentos, professores bem remunerados e gabaritados, material escolar de referência, currículo tal qual o melhor colégio particular, carga horária adequada e merenda saudável, entre outras coisas, tudo em perfeito estado para receber as crianças. E o motivo para fazerem isso é triste e simples. É porque suas crianças estariam entre elas.

O pensamento político mais corrente no Brasil é: se eu não sou afetado diretamente por um problema, ele não é meu. Ledo engano. As rachaduras no ensino público, que tiveram início com a migração em massa das classes média e alta para o ensino particular, nas décadas de 1960 e 1970 principalmente, trazem consequências para todos. A falta de educação, ou uma educação precária, para os mais pobres pode até parecer interessante para uma elite que quer se manter no poder indefinidamente; mas ela sabe, porque teve boa educação, que toda ação corresponde a uma reação. E a reação de uma camada enorme da população, excluída, marginalizada, sem estudo apropriado, sem qualquer preparação para a vida civilizada, depois de um curto prazo de obediência e subserviência, é a revolta, a violência e o caos. Curioso pensar nos altos índices de violência atuais e observar o início do sucateamento das escolas há quarenta anos. A quantidade de meninos de rua, abandonados à própria sorte, na década de 1980, e o crescimento do tráfico de drogas, nos anos 2000. Pensar nos menores infratores de hoje é prever uma guerra civil em, talvez, uma década? Um país não é desenvolvido e possui excelentes índices sociais do nada. São anos, décadas de investimento em programas sociais de base. E o Brasil só vai ser o país que queremos quando a elite brasileira se apropriar e se responsabilizar por uma de suas piores mazelas.

Certa vez, durante um debate promovido por uma universidade americana em 2000, o mesmo senador Cristovam Buarque foi questionado sobre o que achava da internacionalização da Amazônia, e o jovem que perguntava pediu para que ele respondesse como humanista e não como brasileiro. Claro que a questão trazia em si uma preocupação com o futuro da floresta, por conta de sua enorme relevância ambiental para todo o planeta. A resposta de Buarque é uma aula, especialmente no que se refere às crianças:

“Comecemos usando essa dívida [os candidatos à presidência dos EUA naquele ano defendiam a ideia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca do perdão da dívida externa] para garantir que cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que morram quando deveriam viver.”

À elite brasileira, esta que detém o poder político e econômico, cabe o maior desafio. Cuidar de todas as crianças como se fossem suas. A única saída para um país mais justo a longo, é levar sua criança bem nascida para dentro da realidade das crianças mais pobres, para que elas tenham o mesmo tratamento, o mesmo ponto de partida. Ou vice-versa. Temos que começar a nivelar por algum lugar. A escolha está entre nivelar por baixo ou por cima. As duas opções estão na mesa.

Uma mãe não pode privilegiar um filho em detrimento de outro. Nem a pátria.

*Nota de esclarecimento: a autora não faz campanha para o senador citado no texto.

#23EducaçãoEditorial

Editora convidada: Ligia Cortez

por Ligia Cortez

“Todas as artes contribuem para a maior de todas: a arte de viver.”
Bertolt Brecht

Tratar sobre o tema educação numa revista especializada em arte soa, à primeira vista, um pouco incomum, mas a proposta não poderia ser mais pertinente. Arte e educação estão mais próximas e organicamente mais relacionadas do que parece.

A atividade artística no período de formação possibilita à criança aprender a pensar sobre o mundo em que vive, sobre ela mesma, e a adquirir recursos críticos para atuar no futuro. A experiência artística traduz com palavras, sons, cores e música o que não precisa ser dito, e sim compartilhado. É a comunicação para o outro, o pensamento, a reflexão sob novos paradigmas – o que é, a meu ver, a essência da educação. Abre a possibilidade do indivíduo em formação se tornar responsável para com o outro e o lugar em que vive. A produção artística da criança passa a ser importante não só como realização pessoal, mas também como fonte de pensamento e resultados para uma sociedade. É com a experiência da arte que ela passa a ser respeitada pela sua capacidade própria de gerar e atuar. Porém, sentimos que a educação está cada vez mais distante da experiência e do pensamento crítico.

Existe um equívoco, cada vez mais valorizado na atualidade, segundo o qual educação é acúmulo de bagagem de informação. A quantidade de matérias e assuntos que um aluno recebe é o que servirá de parâmetro para avaliar uma boa ou má educação recebida. Todos os índices de avaliação, como rankings escolares, exames, vestibulares, caem em cima do resultado. Difícil estar preparado para a vida adulta sob tanta demanda de performance, de resultados, na fase de formação. As crianças passam a ser aceitas e valorizadas pelo que realizam, e não pelo que são e virão a ser.

Anthony Seldon, historiador político, um dos mais importantes pensadores contemporâneos sobre a educação na Inglaterra, propõe, entre várias outras ações, que as escolas voltem a oferecer aulas sobre Shakespeare e que os alunos também atuem nas peças assiduamente. Uma ideia ótima para qualquer indivíduo em formação. Assistir a peças e, principalmente, atuar nelas abre portas para a compreensão profunda da natureza humana. Shakespeare pode vir a ser uma grande ferramenta educativa, e a profundidade da experiência que as crianças teriam, também.

A proposta é importante, mas poderia se dar com qualquer outro exemplo artístico.

A educação deve ser pensada sob um conceito mais amplo. A responsabilidade de formar uma nova geração de indivíduos preparados para o novo século, para a ação em coletivo e em prol do crescimento da sociedade, parece menos presente do que poderíamos desejar. Um currículo que também contemple habilidades como criatividade, trabalho em equipe, empatia, resistência, perseverança, honestidade, seria o melhor dos mundos. Mas como isso se daria se não através da arte, dos conteúdos humanos, do sentido de existência, dos conteúdos simbólicos que ela proporciona?

A educação está inserida no campo da cultura. Binômio difícil de ser compreendido até pelos setores mais experientes. É impossível haver educação sem cultura e cultura sem educação. Existe uma inter-relação de organismos que conversam e se alimentam. A cultura ainda é vista como algo descartável ou de segundo plano, ainda mais quando se fala de um país em crise.

Nosso país tem dimensões continentais, com diversidade cultural riquíssima. A difusão, o fomento e o respeito pelas diferenças começam pela junção entre educação e cultura, com a riqueza de manifestações sendo, além de respeitada, também conhecida. Ainda a cultura é vista equivocadamente como algo erudito, sofisticado, de elite, ou então é ligada à diversão, frequentemente confundida com o entretenimento.

Em relação às ações públicas que têm sido feitas no Brasil, sem educação básica forte e abrangente será difícil termos um país desenvolvido no futuro, pois sabemos que a escola pública consegue alcançar metas bastante modestas de qualidade de ensino e que o cenário só tende a piorar. Se desejarmos uma melhora, no Brasil, será preciso um esforço coletivo. Muitas vezes penso como seria se tivéssemos a possibilidade de parar tudo e imaginar uma nova forma de educar. A tarefa não é fácil. Seria necessário reavaliar valores e resgatar um compromisso civil de todos nós.

Imagino o estado de espírito de animação e entusiasmo que se instaurou na Rússia quando, após a revolução civil, no começo do século, os organismos públicos responsáveis pela formação foram instados a repensar as formas de educar. Instaurou-se um departamento cultural que abrigava um setor de teatro voltado, prioritariamente, para a prática teatral com crianças. Momentos criativos como esse chegam muito perto do estímulo de origem da ação artística.

Hoje, quando pensamos em educação no Brasil, temos uma apatia, uma impotência, uma angústia. Afinal, como uma sociedade consegue colocar ações que de fato transformem? O melhor, então, talvez seja nem pensar sobre o assunto. Ir levando. E, com isso, toda uma geração de adolescentes é levada a estado de cisão. Genuinamente, todos os jovens querem agir, mudar, transformar. Há uma força de pensamento e ação que está sendo perdida.

Certamente, se pararmos para pensar sobre educação, teremos uma série de boas ideias que poderiam contribuir para uma melhora. A revista Amarello é um enorme sinal de que já contamos com ótimas iniciativas. Arte e educação sendo debatidas num espaço independente, ligado à realização artística, feito de um material tão criativo e sensível que, por si só, já é veículo de educação. A partir disso, o que mais poderíamos sonhar?

#23EducaçãoCulturaLiteratura

A revolução que vem do berço

por Léo Coutinho

A revolução que vem do berço. O editor da Amarello informou o prazo para entrega do texto: 8 de março. Coincidência ou não, Dia Internacional da Mulher. Sob o tema Educação, o pedido vinha acompanhado de um combinado tácito formado ao longo desses seis (!) anos de colaboração: ambientar o tema no universo político. Educação política, portanto, e, com a coincidência, o papel da mulher nessa construção.

Impossível não começar reconhecendo o poder da mulher sobre a formação do Homem. As chances de qualquer pessoa ter recebido de uma mulher as primeiras noções de educação são quase absolutas. Salvo raríssimas exceções, as mães são as primeiras responsáveis pela educação dos filhos, diretamente seguidas pelas professoras. Reconhecendo o poder, reconhecemos também a responsabilidade.

Num panorama rápido pela luta dos direitos das minorias, encontra-se pela história recente casos de negros escravagistas, assim como são conhecidos casos de judeus nazistas. Há uma enormidade de gays que não toleram bissexuais ou qualquer outra forma de sexualidade sem rótulo. Sul-americanos que apoiam Donald Trump? Há por aí. Mas me arrisco a dizer que, entre as minorias, nada supera a quantidade de mulheres machistas. Seja por atavismo, conveniência ou convicção, elas estão entre nós.

Tivemos Cleópatra, Catarina de Médici, Catarina da Rússia, Margaret Thatcher. Princesa Isabel e Alzira Vargas. Chiquinha Gonzaga, Pagú, Bibi e Zuzu. Dilma também, sim senhor. Tem a Mara e a Marina. Tem a Luana. E pode ser Hillary depois do Obama.

Citar exemplos históricos e contemporâneos tem seu lado bom. Mas é triste notar que são exceções ante a unanimidade de mães com todo seu poder transformador subestimado. Tão triste quanto os números.

Você que assina ou compra revista em banca provavelmente viverá mais do que 85 anos e conhece gente dessa idade em plena atividade. Pois saiba que há 85 anos as mulheres no Brasil ainda não votavam. Mais números? Em 2014 o número de mulheres eleitas para o Congresso Nacional cresceu, mas ainda não superou os dez por cento, sendo que 39,8% delas são chefes de família. Pior? Nos dez primeiros meses de 2015 foram registrados 63.090 casos de violência contra a mulher, média de um a cada sete minutos.

Não resta dúvida de que a realidade precisa ser transformada. Por onde? Bom, são 67 milhões de mães no Brasil. Meu palpite é que a revolução começa no berço.

#23EducaçãoCulturaLiteratura

Oficina

por Vanessa Agricola

A gente chegou já era noite. Minha mãe parou o carro na frente da casa dele, as luzes da varanda acenderam (estou inventando isso agora, eu não me lembro), meus irmãos saíram correndo do carro. Eu e minha mãe ficamos; ela segurando no volante com o carro desligado, eu chupando dedo.

Ele surgiu de braços abertos. Meus irmãos o abraçaram com um entusiasmo que eu não entendi direito, continuei agarrada na minha mãe (já tínhamos descido do carro). Quando ele veio me dar um oi, chamei ele de tio.

Lá dentro, ele me deu um canudo para beber água (minha mãe perguntou se ele tinha um canudo, e ele tinha). A casa dele era toda desmontada. A televisão ficava no chão, e umas caixas. Acho que tinha acabado de se mudar: “Crianças, vão brincar lá no quarto que a mamãe precisa conversar com o seu pai”.

Meu pai? Eu achava que meu pai era o namorado da minha mãe. Meus irmãos não pareceram surpresos com a notícia. O mais velho colou a orelha atrás da porta, eu e o do meio brincamos de copiar. Não lembro o que escutamos. E não sei depois de quanto tempo minha mãe entrou no quarto chorando e nos colocou um pijama e não sei como se despediu. Eu não me lembro da despedida. Só lembro de ouvir o barulho do carro dela na frente da casa e, mesmo sem entender muita coisa, ter entendido que ela ia embora.

***

Françoise Dolto foi uma psicanalista francesa, da década de 30, que dizia que as crianças são capazes de compreender todas as coisas. “Não importa a complexidade do problema”. “Dê satisfação a elas”. “Não as deixe serem surpreendidas”. Meus pais não leram Françoise Dolto.

Por que ela está indo embora? Quando ela volta? Meu pai não veio até o quarto me explicar. Teria sido muito difícil esclarecer para os filhos um divórcio complicado que foi parar na justiça? “Escutem, crianças, sua mãe perdeu a guarda porque eu menti que ela abandonou o lar, mas eu vou cuidar de vocês, tá?”

***

A próxima lembrança é na casa da costureira. Meu pai fazendo carinho no meu cabelo enquanto ela me tirava as medidas para o uniforme da escola, uma bata xadrez com um bolso grande na altura da barriga. Também lembro dele me levando para a escola. Ele disse que ia ficar por lá, mas quando a Ádila falou que meu nome era feio, ele já não estava. A professora colou um barquinho escrito meu nome na lousa: “Vanessa é a aluna nova!” E a Ádila: “Vanessa, que nome feio”.

Quando acabava a escola, meu pai ainda estava no trabalho; era a empregada que me buscava. Essa empregada tem uma contribuição musical na minha vida, o Julio Iglesias. Assim que meu pai saía para trabalhar, ela colocava o disco do Julio Iglesias, no último volume, e ligava a enceradeira.

Não sei depois de quanto tempo, eu já me sentia em casa. Já era amiga da Bianca, que voltava da escola com a mãe dela, e ia andando comigo e com a empregada até minha casa, pois erámos vizinhas.

Nos finais de semana, meu pai levava a gente para o Rio, para visitar minha avó e meu avô. Eu sempre vomitava na estrada. Meu irmão Carlinhos vomitava primeiro, depois aquilo me dava enjoo, e meu pai ficava puto porque a gente não avisava que ia vomitar a tempo de descer do carro. Aí chegava no Rio, ele fazia meu irmão lavar os tapetes e o banco. A Paraty azul fedia a vômito.

***

A casa da minha avó era tipo um sítio. Tinha a casa grande, que era da minha avó e do meu avô; a casa pequena, que era da tia Liara; o galinheiro; o pomar; a casinha de couro, onde minha tia fabricava bolsas e cintos; e meus primos, Rafa, Ingrid, Mônica, Taíssa e Mariane, tudo da minha idade.

A gente brincava de escolinha na varanda da frente. De Cuca, de pic alto, de bola de gude e, quando meu avô saía, a gente entrava escondido na oficina. Imagina uma garagem cheia de tranqueiras, rádios antigos (meu avô era rádioamador, mas fica para outro texto), televisores, liquidificadores, móveis, tudo quebrado. Tudo que quebrava, meu avô dizia que ia consertar.

Aquilo era uma Disneylândia para crianças. Só que meu avô não era muito chegado em pequenos humanos propensos a quebrar coisas (mesmo as coisas que já estavam quebradas), então a gente era proibido de entrar na oficina. Assim como na sala de estar, que tinha bibelôs em cima da mesa, e onde quer que ele estivesse, precisando de silêncio.

Quando meu pai sofreu o acidente de carro (o carro dele caiu num penhasco, ele ficou numa cadeira de rodas por um ano), a gente foi morar lá no Rio. Minha mãe vinha visitar, meu pai fazia ela esperar no portão. Era minha avó que descia para abrir o portão para a gente sair, era minha avó que perguntava se a gente estava com saudade.

A única lembrança que eu tenho do meu pai neste ano, de verdade, foi que ele levou os meus irmãos no Rock In Rio, e comprou uma camiseta preta do Queen, que foi a única camiseta preta do meu pai.

***

Acho que em 86 voltamos para Mambucaba. Meu pai começou a namorar a Luciana (ou eles já namoravam?), aí eles se casaram e ela veio morar com a gente. Não sei em que velocidade. A gente foi para Minas comprar móveis. A gente foi para o Rio comprar pratos e copos. Eles montaram um bar, mas nunca beberam.

A casa bagunçada ficou com cara de casa bonita. A Lú era bonita e enfeitava a casa. Mas só teve um dia que ela me fez uma trança. Quem me arrumava para o balé era eu mesma, ou a Miriam, a empregada nova, que se chamava Eliete mas se fazia chamar de Miriam (por causa da Myriam Rios).

***

A Miriam era má. Ela contava que a gente tinha ligado a televisão (meu pai não deixava a gente assistir televisão, mas, às vezes, só às vezes, a gente via o Chaves), contava que eu dei o quiabo para o cachorro, ligava para o meu pai no trabalho, para contar que a gente tinha entrado na oficina.

Sim, a mesma oficina que meu avô tinha na casa dele, meu pai fez na nossa casa. Tudo começou porque a Luciana não gostava de bagunça, aí meu pai foi colocando a bagunça dele na garagem, e aí foi juntando coisa quebrada que ele dizia que ia consertar. Igualzinho ao meu avô; o mesmo monte de coisas quebradas, televisão, rádio, geladeira, e a mesma tirania. Criança não entra.

Então a gente entrava escondido. E a Miriam ligava para ele no trabalho. Aí ele chegava puto: “Quem fez essa bagunça aqui?” Como se aquilo já não fosse bagunçado. E a Miriam: “Foram as crianças, seu Carlos!”

Por causa da Miriam (não por culpa, claro), a gente apanhou muito. O dia que meu irmão chamou a Miriam de morcegão (porque ela era preta e se pendurava na janela para fofocar com a vizinha e, assim, parecia que ficava de ponta cabeça), meu pai bateu nele de cinto. O dia que eu chamei a Miriam de morcega (chamei mesmo), meu pai me deu um tapa na cabeça. Ele me chamou de racista, que aquela não era a educação que ele me dava, e que eu estava de castigo no final de semana: “Mas pai!”, “Fica quieta!”, e saiu para a oficina.

***

Todo dia a mesma rotina. Meu pai chegava do trabalho, lanchava (na casa do meu pai não se janta), e ia para a oficina. Saía de lá de madrugada. Eu terminava de lanchar e ia fazer lição. Quando eu não tinha lição da escola, tinha lição de alguma coisa. Piano, pintura, datilografia, inglês, Kumon, tudo que abria de curso em Mambucaba meu pai me inscrevia. Fora os esportes e danças, natação, balé, jazz, sapateado. Nunca levei jeito para nada disso.

Sábado e domingo, quando minha mãe não vinha visitar e a gente enfim descansava, meu pai parou de ir para o Rio por causa da Luciana e trocou a Luciana pela oficina. Meu pai sempre acordou cedo, tipo seis da manhã no máximo, aí ele assistia o Globo Rural (de repente tomou gosto pela televisão) e se metia em sua bancada, soldando peças em placas eletrônicas.

Nunca sentou comigo para estudar. Uma única vez, tão única que eu lembro que foi no dia em que cortei o cabelo igual à Guta do Pantanal, ele abriu meu caderno de matemática (coisa que eu nunca entendi) para me ajudar. Antes de me ensinar qualquer coisa, ficou pasmo com o quanto minha letra era feia (no dia seguinte, me arrumou uma professora de caligrafia), aí esqueceu o assunto matemática, porque lembrou de alguma coisa que precisava fazer na oficina, e eu tive que estudar na casa da Ádila, minha arqui-inimiga, porque eu realmente precisava de ajuda.

***

É fácil lembrar. Foram tão raros os momentos em que meu pai parou de consertar as coisas para ficar comigo, as piadas que ele fazia na hora do lanche, as vezes que ele passou manteiga no meu braço quando eu pedia, pai, me passa a manteiga? As gargalhadas que ele dava. Teve um dia que ele escutou um disco do Balão Mágico com a gente na sala e se emocionou com a música “Dia dos Pais”. Eu nunca mais esqueci essa música. Quando ele me levou na praia do Coqueiro e me explicou que eu não podia ir nas piscinas de pedra porque a maré subia muito, que o mar era muito perigoso. E quando ele apareceu na minha formatura (única que ele foi) do curso de Modelo e Manequim, reservou uma mesa na primeira fileira e contratou um moço para tirar foto nossa (são fotos lindas, que eu tenho até hoje).

A viagem a Petrópolis. Meu pai em êxtase porque eu entrei no palácio imperial e me senti em casa. Foi muito estranho, eu conhecia aquilo tudo inteiro. E meu pai foi ficando muito, mas muito empolgado. Filha, você já morou nessa casa?! (Meu pai é espírita, aquilo foi outra prova para ele de que a vida continua, e mais, de que a filha dele tinha sido uma Orleans e Bragança).

***

Cinco anos se passaram, e eu voltei à guarda da minha mãe em São Paulo. Meu padrasto, a quem eu sempre chamei de Gui, e para as outras pessoas de pai, porque ele foi o pai que meu pai não foi, faleceu agora, vinte e sete anos depois.

No dia em que o Gui morreu, meu pai foi o primeiro a ligar: “Oi, filha”.
Quando a gente fica triste de verdade (eu, pelo menos), é tão difícil chorar. Naquele dia, eu só chorei para o meu pai. Foi no ombro do meu pai que eu consegui desmoronar a tristeza da morte do pai que ele não foi. E, depois daquele dia, como se meu pai tivesse entendido o quanto eu precisava dele agora que eu não tinha mais o Gui, ele passou a me ligar sempre.

Até hoje, quando toca o telefone e eu vejo que é ele, eu estranho. Tantas vezes ele dizia que ia ligar, que ia vir, que ia ver se dava, nunca deu. E então ele começou a me ligar toda semana. “Oi, filha.” “Oi, filha.” “Oi, filha.”

Metade do telefonema ele fala de doença (meu pai é um baita de um hipocondríaco), a outra metade ele diz que eu sou linda.

***

Ontem, no Skype, pela primeira vez na vida, meu pai disse que estava doente, e eu fiquei preocupada. O Skype pega mal aqui em Nova York, a câmera demorou para abrir e, quando abriu, ele me apareceu com o pescoço caído, a cabeça toda torta: “Oi, filhota!”

O primeiro médico, de Mambucaba, disse que era torcicolo. “Aí, filha, como isso não passou, eu fui num médico lá no Rio, e ele acha que é câncer mesmo.”

Câncer, pai? “Mas não faz essa carinha de preocupada não, filhota. O Dr. Hans lá do centro espírita disse que dá para operar. Eu já fiz uma operação espírita, lembra? Deu para sentir tudinho, filhota, o corte, a raspagem do osso, precisa ver que bacana.”

“Pai, vai num médico de verdade, pelo amor de deus.” “Mas eu fui! Eu não te falei que eu fui nesse médico lá no Rio? Esse cara é o chefe da oncologia do Hospital do Fundão, o cara é fera!”

Segunda-feira sai o resultado da biopsia.

“A arte moderna começa com a renúncia à pintura de História.”1

A Independência vai desaparecer. É fato. A pintura conhecida como “O grito do Ipiranga”, de Pedro Américo, 1888, encomenda feita pela família real brasileira para exaltar a figura de D. Pedro I e plasmar no imaginário o símbolo da independência de Portugal proclamada em 1822, não poderá ser vista até 2022, ano no qual serão terminadas as reformas do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, em cuja coleção a obra se encontra.

Independência ou morte (versão provisória 1) 2014

Sem se propor a debater a significação política da criação de mitos históricos, na própria obra e no próprio museu (todo seu acervo é relativo à Independência), sua decadência e sua reinauguração, a realidade é que uma das pinturas de referência da cultura popular brasileira só vai estar disponível à nossa visão, nos próximos nove anos, através de reproduções.

Esta é a notícia com a qual Bruno Moreschi começa a dar forma ao projeto “Em obras”. A primeira proposta é a reprodução da famosa imagem de Américo, em partes e destacando alguns detalhes, feita por várias mãos de “pintores de rua” no ateliê do artista, que atuou como assistente.

Independência ou morte (povo 2), 2014

É uma primeira camada da investigação que Moreschi vem desenvolvendo, que, em sua forma mais abstrata, eu chamaria “do visível e do invisível”. Porque a obra original vai passar a ser invisível, uma vez que os destaques são personagens normalmente não percebidos nem citados na história oficial: um tropeiro, um boiadeiro e uma pessoa na janela de uma casa. São as testemunhas mudas, os invisíveis do relato visível.

A reivindicação do conteúdo se revela também no processo: as peças foram produzidas em colaboração por uma equipe de diferentes pintores que comercializam seu trabalho negociando diretamente com o cliente e usando o espaço público como lugar de vendas. São esses trabalhadores ou profissionais da arte que, assim como um assistente tanto no Renascimento como agora, permanecem invisíveis na instituição arte.

Nesta ocasião, todos eles aparecem como artistas da mostra, todos são autores das obras. O interessante deste processo são as relações criadas para além do conceito de obra ou de autoria, já que estamos falando a partir de um espaço que faz parte do aparelho validador da arte contemporânea. Cada uma das pessoas contratadas como um trabalhador para realizar a cópia de uma obra estabeleceu uma relação laboral. E aqui se levanta a grande questão sobre o que seria e o que definiria um artista profissional, um trabalhador, portanto, em nosso ambiente de arte contemporânea e fora dele.

Diálogo 1:
BM – Não vamos terminar toda a pintura, acho melhor mostrar um pouco o processo… Que tal?
P1 – Você tem certeza?
BM – Qual é o problema?
P1 – É que vão achar que pinto mal.

Habilidade, destreza, acabamento, processo, finalização, certeza. Um produto acabado não deixa à vista nenhuma das partes do processo. A obra de arte é só um produto num contexto de mercado, mas tem, ou deveria ter, um significado e uma autonomia para além deste. A atividade artística contemporânea não se enquadra apenas aos meios e sistemas de produção. Além do mais, seus processos, abertos à crítica e autocrítica, ao livre pensamento ou à dúvida, podem/costumam gerar estupefação e/ou desagrado em uma grande maioria da sociedade, mais ainda se sua forma de concretização – que poderia ser qualquer uma – se afasta das tradicionais belas-artes.

Sigmar Polke dizia que a pintura não era mais que uma moral construída.

“Independência ou morte”, esse é o título original da obra do Ipiranga, mas a Independência é circunstancial, por vários motivos: porque, afinal, não estamos falando do que aconteceu às margens do Ipiranga, mas principalmente disso, porque qualquer pergunta que lancemos sobre as relações criadas num sistema dependem de seu contexto.

A segunda ação realizada por Moreschi consistiu na contratação de nove pintores de parede para que livremente escolhessem uma cor, uma forma e um pedaço de uma das paredes da galeria para aplicar a tinta. A composição foi totalmente determinada por eles – por acaso, todos realizaram retângulos como nas provas de cores, embora numa disposição livre – sem indicação ou julgamento estético algum do artista.

Diálogo 2:
P2 – Mas eu sou pintor de parede. Estou acostumado a pintar parede…
BM – Mas vai ser na parede.
P2 – Mas eu pinto sempre do mesmo jeito. Vou ter que criar?
BM – Vai ter que escolher o jeito que você achar melhor…
P2 – Vale tudo?
BM – Vale.
P2 – Então a conclusão é que vou ter que criar.

O materialismo histórico divide a sociedade em proletários e capitalistas; Hanna Arendt o faz em A Condição Humana: o técnico para o qual o trabalho é um fim em si mesmo, e homo faber, o produtor superior de pensamento. Richard Sennett, por sua vez, propõe um sistema no qual a ação da mão e do cérebro se dá de forma conjunta, sem negar a ninguém a capacidade dessa dupla ativa e reflexiva, e que chegaria à sua máxima potencialidade nos trabalhos colaborativos horizontais2.

Unindo as ideias de Rosalind Krauss3, que define a prática artística como uma série de operações lógicas efetuadas sobre termos culturais, às de Bourriaurd4, segundo as quais “fazer a obra é inventar uma maneira de trabalhar, mais que ‘saber fazer’ tal coisa melhor que outras”, poderíamos pensar na instalação Pintores como uma proposta para repensar novos contextos sociais através da reflexão dos termos “artesanal” e da expressão “relação de trabalho”.

O desafio continua sendo a conexão real do mundo da arte contemporânea e da sociedade na qual se insere. Qual é o conceito de trabalho, e o conceito percebido sobre o trabalho do artista e/ou o artista como trabalhador?

Diálogo 3:
P3 – Pode ligar para minha mulher. Diz que virei artista. Vou terminar aqui e depois deitar na rede.

Independência ou morte (Fragmentos 1 e 2), 2014
Independência ou morte (versão provisória 1), 2014

Notas:

1. Nicolás Bourriaud, Formes de vide. L´art moderne et l´invention de soi, 1999.
2. Richard Sennet, The Craftsman, 2008
3. Rosalind Krauss, L’Originalité de l’avant-garde et autres mythes modernistes, Paris, 1993.
4. Nicolas Bourriard, op. cit.

#23EducaçãoAmarello Visita

Amarello Visita: Luiz Fernando Carvalho

por Tomás Biagi Carvalho

Fotos de Gleeson Paulino

Luiz Fernando Carvalho é resistente. Além de ter mais de dois metros de altura, trabalha a serviço de sua liberdade criativa e luta bravamente, dentro de seu universo televisivo, para que isso aconteça. Para preparar os atores de seus projetos, construiu um galpão: uma mistura de circo com escola de samba, mambembe, feito de material reciclado e resto de cenário; uma célula criativa dentro dos Estúdios Globo. É ali, segundo me relatou, que esvazia os atores que chegam cheios de vícios, com exercícios e catarses, para que consigam encontrar seus personagens. Esse processo reflete-se em todos os detalhes, que não são poucos, de suas produções. Raimundo Rodriguez, artista plástico cearense, responsável por todos os santos de Velho Chico (novela de Benedito Rui Barbosa, que Luiz Fernando dirige atualmente), me disse: “Os atores são preparados para o improviso. Como tudo pode acontecer, os objetos têm que ser de verdade, não de cenário”, e então me mostrou um relicário para São Longuinho, feito num pedaço de lata do telhado de uma das casas de Meu pedacinho de chão. Tudo é reciclado, nada desperdiçado.

O diretor faz um investimento sensível nos profissionais que o circundam. No primeiro dia em que nos encontramos, falou que é preciso uma boa dose de generosidade para com os colaboradores. Se reconhecemos que alguém tem um talento, temos que liberá-lo. É o que acontece em seu núcleo, e aconteceu com seu competente diretor de fotografia, Leandro Pagliaro, que o conheceu fotografando moda para o caderno Ela, de O Globo. Hoje, já são seis anos de trabalho em conjunto. Assim como se deu com sua sensível e delicada figurinista Tanara Schönardie, que era assistente de Beth Filipecki e hoje é chefe de todo o departamento de figurino dentro do galpão. Seu senso de trabalho coletivo é muito forte. Todos trabalham hipnotizados e devotados ao que é filmado. Luiz Fernando conduz os atores como um abraço pelo set, e sorri. Dirige com um sorriso no rosto, como se visse um filho nascer.

Isso tudo podemos ver no produto final. Velho Chico é uma novela que não subestima o telespectador, que fala com a gente, cheia de afeto, camadas e sentimento. A cada obra ele nos apresenta um Brasil profundo, que não costumamos ver, porque conhece a cultura do país em profundidade e tem aval para tal mergulho. Luiz entra de corpo e alma em seu trabalho. Se entrega. Busca a fantasia na verdade e a verdade na fantasia. Ele faz arte brasileira, e toma partido do alcance da televisão para levá-la longe. Porque arte, na verdade, é falar a verdade para si.

Conte um pouco da sua trajetória e de como surgiu o interesse pelo trabalho de direção.

Sou filho de classe média. Meu pai, engenheiro, formado na década de 1920, na Escola Politécnica. Minha mãe, sertaneja, de uma família de médicos sanitaristas, consequentemente com um pendão de humanistas, de esquerda. Essa parte da família foi “expulsa” do mercado de trabalho de Alagoas na posse do Getúlio. Se vendo meio sem perspectiva, meu avô, com uma família grande, decidiu vir para o Rio de Janeiro em 1950.

Perdi minha mãe aos quatro anos, e tenho apenas uma imagem dela. Por não ter muitos registros, lá pelos meus vinte e poucos anos comecei a fazer uma pesquisa pessoal, entrevistando todo mundo da família, para descobrir quem era ela, o que fazia, o que gostava, o que lia, o que ouvia. Depois de um tempo, já trabalhando na televisão, fui fazer uma série de documentários sobre a cultura popular no sertão de Pernambuco, e uma das pessoas entrevistadas foi Ariano Suassuna. Foi quando nos tornamos grandes amigos. Ariano me ajudou muito nisso, porque muitas coisas que eu escutava, “Ela gostava do bumba meu boi”, ninguém sabia explicar exatamente o que era, se era o folguedo, a, b ou c. E ele me esclareceu várias dúvidas em relação a essas predileções, os festejos, esse universo da infância da minha mãe. Ariano também havia perdido seu pai com a mesma idade que eu. Uma vez, trabalhando sobre uma adaptação que fiz [Luiz fez três adaptações da obra de Ariano Suassuna para a televisão, Uma mulher vestida de sol, A farsa da boa preguiça e A pedra do reino], ele se virou para mim e disse: “Nós somos dois mendigos”. E eu: “Por quê?” Ele falou que havia me perguntado quantas imagens eu trazia da minha mãe, e eu havia respondido “uma” e perguntado quantas ele trazia do seu pai, ao que ele respondeu “três”, e completou: “Eu sou um homem mais rico do que você [risos]. Três imagens do meu pai, e você só tem uma da sua mãe”. Depois falou: “Porra, nada disso, caralho, nós somos é dois mendigos. Você tem uma moeda e eu tenho três moedinhas, mais nada”. Tudo isso para dizer que essa única moeda é, na verdade, para mim, uma janela. Esta única imagem que tenho de minha mãe é vista com uma câmera baixa, como se estivesse deitado de bruços na cama olhando na direção de uma janela, onde ela está de costas, olhando para o que viria depois dessa janela. Essa imagem que tenho é fundamental no meu trabalho, porque é como se eu quisesse atravessá-la, para avistar o que minha mãe via. Assim, o meu olhar se complementaria com o olhar dela, e a partir daí nós nos encontraríamos no nível da criação, o que a devolveria para mim, através do seu olhar. Foi aí que tudo começou. Desde menino tenho uma curiosidade muito grande pelo mundo das imagens, pelo mundo sensorial, pelo invisível. Acho que a ausência da minha mãe também exercitou esse diálogo, exercitou o músculo da imaginação. Por mais que me dissessem “Você não tem mãe”, dentro de mim sempre tive uma mãe muito presente – muito mais do que outros membros da família, que estavam comigo, porque eu imaginava muito a minha mãe. Depois, com o tempo, quis a comprovação dessa imaginação. Por isso fiz as entrevistas, as viagens, fui conhecer o sertão e tudo mais. Essa busca pela minha mãe me levou a uma viagem em busca do país. Foi aí que conheci o Brasil. Porque, na minha jovem idade adulta, lá pelos vinte e poucos anos, eu fazia parte de uma geração que gostava de filmes europeus e que odiava falar do Glauber Rocha, do Di Cavalcanti, do Portinari. Lygia Pape – os modernos, então, eram todos banidos da conversa. Eu não entendia muito bem por quê. Só a partir do momento em que fui escavando essa mãe é que encontrei esse subsolo artístico que veio junto, e com ele fui necessariamente resistindo e contestando estes grupos. Assim fui formando, no meu modo de sentir, uma linguagem, uma espécie de posicionamento em relação ao meu pensamento, que depois desembocaria na minha opção de trabalho, no meu ofício. O que não demorou muito, porque, em 1980, aos vinte anos, eu já estava estagiando no cinema.

E o que você fez no cinema?

Fui assistente de som, boom man, continuísta, montador, assistente de direção, fiz muito curta-metragem até dirigir e escrever meu próprio curta-metragem, em 1984. Fiz um pouco de tudo. Cheguei a montar em moviola, na época, e fui assistente de montador de grandes figuras do Cinema Novo. O Severino Dadá, que foi montador do Glauber; trabalhei com Geraldo Sá, uma turma forte, e, em paralelo, fui fazer faculdade de Arquitetura. Meu pai, engenheiro, tinha certa dificuldade de me enxergar com um futuro ligado às artes. Lembro muito bem de um papo na lagoa de Araruama; água até a cintura, ele se aproximou de mim, “E então, o que vai ser?”, e eu, naquela água quente, gelei [risos]. Falei “Arquitetura”. E meu pai, cheio de dúvidas e ironia: “Arquitetura? Mas no Brasil não existe mais arquitetura… Tem certeza? Não quer Engenharia?”. Com isso, acabei entrando na faculdade com uma certa angústia da família. Arquitetura, na época, estava muito em baixa, e hoje é uma das coisas que se salvam no planeta. Arquitetura é um grande processo. Fiz três períodos, na Bennett, no Rio de Janeiro. Tranquei uma vez, voltei, tranquei de novo, fiz outro vestibular, para Letras, na PUC, pensando em conciliar a literatura com a escrita para cinema, mas, como já estava trabalhando, tive que optar entre fazer filme ou fazer faculdade. Os horários não se encaixavam, e já estava bem próximo do meu início na televisão, que foi num núcleo de criação que existia na Globo Tijuca, um estúdio alugado da Herbert Richers.

Nessa época, a Globo Filmes começou a dar seus defeitos, e, com o crescimento da teledramaturgia no Brasil, muitos diretores de cinema e de teatro foram convidados para esse núcleo chamado Usina, para produzir especiais, minisséries e seriados. Foi exatamente aí que entrei. Fui assistente do Avancini durante muitos anos, fiz Rabo de Saia, Anarquistas graças a Deus e O Grande Sertão: Veredas, quando realmente comecei a dirigir. Numa tarde, sem aviso prévio, o Avancini vira para toda a equipe – trezentos figurantes, trinta atores, não sei quantos cavalos: “Olha, eu estou indo embora depois do almoço para o hotel e o Luiz Fernando vai continuar dirigindo” [risos].

Conte um pouco como é o seu processo de criação.

Parto sempre de uma tela em branco. Sempre da janela de que falei e o que teria para além dali. Não sou de reunir muitas referências, de falar do audiovisual para o audiovisual. Sou afetado por uma música, por exemplo, e quero que o figurino interprete aquilo, e que aquela música seja a veste de determinado personagem. Vou trabalhando dessa forma, bem no caminho de tornar o invisível visível. Não parto de uma forma muito concreta, que me inspire outra forma. Parto de um som, de uma cor. “Este personagem vai ser vermelho” – não estou querendo dizer, com isso, que suas vestes serão vermelhas, mas que ele vai ter que ter um batimento sanguíneo, como vai ser sua caracterização, sua voz, velocidade, câmera e luz. Para isso, tenho um delírio de associações muito amplas, e boto todos os meus colaboradores nessa energia. É um processo alquímico. Quando você entrou no galpão, você entrou dentro de um espaço onde já tinham 25 capítulos gravados; você pode imaginar o que é entrar num espaço onde ainda não se gravou nada? Pode estar tudo parecendo caótico, mas, na verdade, tudo está sendo questionado, jogado contra a parede, para ver o que cai – e se cai e fica ou se cai e levanta, e fala “estou em cena, continuo”. É um processo de muita energia questionadora e alquímica, de transformação mesmo, e principalmente de afeto. Acho que o afeto e o amor são energias potencializadoras. É como se fosse uma substância que imanta tudo. Se o cara fizer sem amor, não pertence ao grupo.

E como o galpão influencia sua produção? Tudo aquilo que você criou e lutou para ter dentro de uma estrutura tão rígida como a Globo.

Isso é uma longa história também. Quando fiz O Rei do Gado, era uma novela que tinha uma primeira fase, que contava um pouco da imigração italiana, e tinha uma dramaturgia muito condensada, construída a partir de pouquíssimos personagens. Existiam apenas duas famílias, Mezenga e Berdinazzi. Peguei essas duas famílias, e fui para o interior de São Paulo, na região de Serra Negra, onde descobri duas fazendas incríveis, decadentes. Reconstituí elas e gravei todas as cenas da primeira fase lá.

Foi lá que tive acesso a uma dramaturgia muito forte, quase teatral. Montada com muito poucos artifícios, com pouquíssimos personagens, sem malabarismo de produção, sem necessidade até mesmo do Projac. E então, quando tive que ir ao Projac e dar continuidade aos outros cem capítulos, passei por uma grande crise profissional. Na verdade, a partir do texto, porque o texto mudava muito. Tinha uma queda na potência dramática do texto, do universo, e não consegui resolver aquilo dentro de mim. Eu realmente senti aquele impacto e me senti assim: “Eu não sei fazer isso, não sou um diretor de novela que agora vai descer, entrar no estúdio e falar ‘atenção, vamos lá, gravando” e que não está se importando com a queda de potência dramática, com o universo que se perdeu, com nada disso – eu fui completamente afetado por tudo isso, e tive dificuldades físicas, mesmo, de ir para o estúdio. Tive total consciência de que aquele processo não me interessava, não era aquela a minha profissão. Levei a novela até o final, aos trancos e barrancos, lidando com essa minha dificuldade, minha impossibilidade, me forçando a gravar, forçando a me reconstruir, para trazer o que tinha construído lá em Serra Negra para cá, na minha relação com os atores e tudo mais. Porque até a relação com os atores nos aproximou muito; você se coloca no lugar do personagem, sente também que “opa, essa história mudou”, “ih, essa fala não está boa”. Enfim, tive grande dificuldade, mas levei até o final e, quando chegou no final, pedi para sair da televisão. Nessa época, o Boni falou que gostaria que eu fizesse mais novelas, mas eu disse que seria impossível, pois estava justamente lutando por uma obra fechada, em que eu pudesse atuar de forma mais autoral, para conseguir dominar os procedimentos industriais a ponto de fazer com que eles servissem à minha linguagem, e não que eu servisse à linguagem industrial. Pedi um afastamento, e entrei numa crise profissional profunda.

Foi durante esse desligamento que você fez Lavoura arcaica?

Sim, exatamente. Pedi um afastamento para pensar na vida e ver o que ia fazer. Esse afastamento foi acompanhado de várias leituras — sociologia, antropologia, todas as coisas que me interessavam. Até uma amiga falar: “Olha, você tem que ler Lavoura arcaica”, e eu falei: “Eu não tenho que ler Lavoura arcaica nenhuma [risos], estou com uma pilha de livros, não quero saber de ficção e dramaturgia”. E ela todo dia martelando: “Você tem que ler, você tem que ler”. Era um livro que não tinha sido muito lido na época de seu lançamento, em 1975, e, até então, eu não tinha ouvido falar a respeito. Aí, comecei a receber sinais [o livro fora relançado, pela Companhia das Letras], porque quando passava em frente às livrarias, sempre o via nas vitrines. Falei: “Porra, esse livro está me perseguindo [risos], por onde eu passo eu vejo esse livro olhando para mim, negócio esquisito isso”; mas não queria saber. Até que um dia a Raquel Couto [documentarista que também colabora com ele] me comprou o livro.

Cara, eu abri o livro, sentei, li em duas horas, e falei, “É isso. Eu tenho um filme pronto na cabeça.” Ele representava, em termos de expressão, tudo que eu ansiava ouvir, ver, assistir, e também fazer. Era uma contramão radical em relação ao que fazia na televisão. Não era naturalista, era barroco, não tinha uma linguagem coloquial, tinha uma linguagem poética, e tinha um fluxo narrativo de pensamento de um único personagem, além de uma história familiar – coisa que eu achava muito forte e sempre quis fazer. Ele reunia vários elementos que eu gostaria de ter visto, e eu não podia compreender como um livro tinha aquela potência expressiva, sensorial. Ele me incendiou e mudou minha vida, porque foi a partir dos procedimentos que tomei para erguer o livro como filme que o meu rumo profissional mudou.

Foi aí que encontrou seu processo criativo que aplica hoje no galpão?

Foi. Quando voltei para a televisão depois do Lavoura, decidi mudar totalmente a minha relação com o processo criativo. A partir da experiência com esse livro, tudo se inverteu. A importância passou a ser o que desde a lente, para a frente dela, existia. Percebi que a função de um diretor, a minha função, deveria ser produzir um acontecimento de ordem espiritual em frente à câmera, deveria mexer com os intérpretes, com a cadeira, com a luz, com tudo, de forma a construir uma atmosfera de tal modo sensível e forte [que fosse] capaz de contaminar a todos.

O livro me ensinou que você precisa experienciar as coisas para ter um conhecimento sobre elas. A partir daí, levei os atores para experienciarem coisas, para descobrirem os seus personagens. Se você não experimenta ser um lavrador, você nunca saberá o que é ser um lavrador. Vai ser sempre uma versão imitativa daquilo. Foi um mergulho. Uma peste no sentido de ir contra toda a formatação oficial, toda palavra de ordem, toda regra, toda cartilha, na maioria das vezes sustentada por leis de mercado. E tive a grande sorte de ser acompanhado por um bando de pestilentos e de artistas famintos, que eram desde o Raul Cortez, o mais jovem de todos, um homem de sessenta e tantos anos na época, mas que tinha uma coragem para o vazio, para o novo, para a experiência, absurda, que contaminava Simone Spoladore, na época com dezessete anos, e o Caio Blat, que tinha dezoito. O próprio Selton Mello teve uma mudança de rumo na carreira a partir da experiência com esse trabalho mais vertiginoso. É uma experiência do avesso, mas é uma experiência que lida com coordenadas do real: terra é terra, pano é pano, porta é de madeira, trinco, mesa, chão, teto, parede, rio, água. É dentro desse real que você vai encontrar as relações espirituais do olhar.

Quando voltei para dirigir Os Maias, que era também uma experiência realista, eu já trazia elementos do Lavoura. Era novamente uma tragédia familiar, sobre incesto. Um texto que amparava uma leitura mais operística, não simplesmente naturalista. Ele tinha voos de interpretação, de concepção de figurino, de espaço cênico, de luz acima do naturalismo relambido que tinha me posto em crise. E, depois de Os Maias, vieram as experiências com as minisséries. Talvez a mais fundamental delas tenha sido, sim, Hoje é dia de Maria. Foi quando falei: “Agora eu vou me afastar disso tudo”, no sentido de que vou virar a roupa pelo avesso, vou virar a dramaturgia também pelo avesso, a atuação pelo avesso. Não me interessa ver o movimento da marionete, mas os fios que estão conduzindo ela, a mão do marionetista. Eu me interessei por uma pesquisa mais brechtiana mesmo do espetáculo. Queria conseguir ver o processo. As pessoas ficam falando que o Brecht não é emocionante; eu acho de uma emoção absurda. Como também, na sua revista, você vê o conteúdo, mas você vê o fazer, você vê a escolha do papel, os detalhes todos. Você não glamoriza a revista a ponto de não perceber o objeto.

Hoje é dia de Maria eu fiz como se fosse uma aplicação dessa experiência, para dentro da televisão, mas não sendo num espaço dentro do Projac. Era em um terreno baldio ao lado, e as nossas salas de preparação de elenco, de trabalho e produção, eram os restos de um acampamento dos operários que construíram o Projac. De certa forma, foi em Hoje é dia de Maria que dei continuidade a esse processo de preparação dos atores e de trabalho colaborativo com a equipe. A partir daí, não consegui mais voltar e fazer de forma convencional, industrial e tradicional. Não teve mais volta. É sempre uma luta, mas é também uma alegria ver as pessoas envolvidas e criativas.

Acredito que o seu trabalho educa os telespectadores quando apresenta personagens nada óbvios, humanos e singulares. Como você lida com a relação entre liberdade artística e as metas a serem cumpridas?

Com muito rigor. É como se o meu processo fosse balizado pelo rigor e pelo caos, duas coisas completamente antagônicas. Dentro desse caos criativo, esse caos que estimula, que faz uma pessoa dar uma pirueta excepcional fora de hora, alguém falar alguma coisa que não tivesse nada a ver, mas que intuiu, tudo isso passa por um rigor da direção.

Com a quantidade de atores e núcleos que existem em uma novela, como funciona a dinâmica entre você e todos os outros diretores, para que a sua visão não seja perdida ao longo do processo de uma novela?

Daí a importância do galpão. Aquela sala de ensaio é onde eu conceituo, com muita parceria e troca com os atores, o que estou buscando para o projeto. O norte de Velho Chico é a antropofagia, o Brasil barroco, o neobarroco, mistura de igreja do recôncavo baiano de 1600 com uma cidade cheia de neons, de anacronismos intensos se entrechocado mais e mais. A ideia oswaldiana de engolir e sair vomitando a obra de arte, engolir os contrastes todos, o que faz bem, o que faz mal, uma espécie de Rei da vela. Se o norte é esse, eu coloco todo mundo para trabalhar em torno disso, trazendo experiências, estudiosos, elementos, para fundamentar e contextualizar o que é isso que estou chamando de neobarroco, que neoantropofagia é essa, que engole a própria linguagem da televisão para gerar uma nova televisão, uma televisão em que acredito. Uno todo mundo para produzir esse novo olhar sobre o país. Esse é um momento único, meu e com o grupo. É um trabalho bastante rigoroso, em que digo “essa lente você pode usar, essa lente você nunca vai usar”, “esse tecido você pode usar, esse tecido você nunca vai usar”, “esta cor você não usa, você usa esta”.

Seu trabalho tira o telespectador do lugar comum quando abre espaço para a essência humana, não muito fácil de se encontrar nos nossos dias de consumo tão rasos. Você acha que esse lugar para o qual leva as pessoas pode afastá-las?

No meu trabalho, tudo é uma tentativa. Não acredito em regra nenhuma. Não acredito em palavra de ordem nenhuma. Não acredito em planilhas, audiência e mercado. Não trabalho sob essas coordenadas. Trabalho sobre tentativas que são acionadas pelos meus sentidos, pela minha sensibilidade e pela minha percepção de mundo. Então, eu não tenho muita coisa a oferecer, não tenho garantias para oferecer a ninguém, e sou bem claro quanto a isso. Nessas tentativas, existem aquelas em que a comunicação entre a obra e o público se dá de forma mais intensa e outras em que se dá de forma frágil, independente da minha vontade. O meu esforço pela comunicação sempre é o mesmo. Hoje é dia de Maria foi um sucesso estrondoso à meia-noite e meia, e A pedra do Reino não obteve o mesmo sucesso de público no mesmo horário. Por outro lado, se você for ver A pedra do Reino, para além da história que está sendo contada ali, é um tesouro de coordenadas culturais. Ali você tem grupos de festejos populares, de cantigas, que hoje em dia você não encontra mais. Já se perderam. O valor de um projeto para outro, o que significa, a sua importância, tudo isso é muito relativo, muito discutível. Na perspectiva do tempo, o que vai ficar para daqui cem anos? Hoje é dia de Maria? A Pedra do Reino? Velho Chico? Os Maias? Dois irmãos [minissérie que dirigiu], que nem acabei? Talvez, daqui a cem anos, quando você não tiver mais nada disso por aí, e tudo tenha se tornado virtual, ou uma imitação fake para turista, A pedra do Reino, um projeto de menor ibope, seja o projeto mais acessado num Netflix da vida.

Agora, eu tenho total noção de quando comunico mais e comunico menos. Quando a falha na comunicação se dá, tenho total consciência de que é um erro meu. Não é uma incompreensão do público, de maneira alguma. Já fiz coisas muito sofisticadas, do ponto de vista da linguagem, que foram um sucesso absurdo de audiência. São tentativas, e não posso ter esse receio de continuar buscando, cavando linguagens novas, e oferecer o que eu for encontrando para o público. No fundo, tudo é tradução. Você tem uma ideia, mas precisa traduzi-la. E essa tradução também é algo que se movimenta, evolui, se transforma dia a dia. Os novos meios, as novas plataformas, redes sociais, tudo isso interfere no vocabulário dessa tradução. Jamais desistirei de cavar. Cavando alguma coisa nova para mim, vai ser novo também para o público. A questão é se eu encontro ou não a forma certa de tradução dessa minha necessidade pelo novo. Às vezes sim, às vezes não.

A cada obra que você cria, você dá luz a um traço da nossa cultura regional, cada vez mais difícil de ser acessada. Qual é a importância de protegermos nossa cultura popular?

Ela é de fundamental importância. A cultura popular tem a ver com a nossa ancestralidade. É como um arquétipo, uma incessante repetição, para muito além dos nossos quinhentos anos de civilização branca no Brasil. Ajuda a contar de onde viemos e para onde vamos.

Você vai optar por apagar essa memória ou por lutar para que o rio não se perca? Vou lutar para que o rio não se perca, para que não seja esquecido, porque, consequentemente, todo o conjunto de memorabilia que o circula renascerá junto com ele. Não é só a vegetação que vai renascer, não é só o peixe que volta para o rio, é a roda de coco, é o canto da lavadeira, é uma quantidade de eventos humanos, eventos espirituais, religiosos, sagrados, que voltam com as águas. Essa memória é fundamental para a resistência da cultura de um país, para a resistência da cultura de uma pessoa. Se você tira a memória de alguém, esse alguém vira um ser vegetativo, um ser morto. Se a gente se esquece disso, a gente vira um terreno árido, que é muito fácil de ser ocupado. Se não tem uma árvore frondosa ali, qualquer cultura se impõe. E a cultura que é exportada é a pior. O que nós recebemos dos americanos é o pior dos americanos.

Esse pacote neocolonialista é que a gente não pode deixar acontecer. Somos um país ainda muito novo, um país ainda em busca de se fazer, de se criar, de se estruturar; tudo ainda por fazer, tudo em literatura, em artes gráficas, em televisão, em cinema. Isso tudo é o que move a minha produção artística: o meu interesse pelas questões culturais e estruturais do Brasil.

É. Tem muita coisa para ser feita. Ainda vivemos na terra da oportunidade. Em entrevista que deu recentemente à Folha, você citou o papel fundamental da beleza e de uma história bem contada na televisão para um país. Como você enxerga essa atual banalização de violência, reality show, assédio à mulher, à criança?

As novelas mais recentes, principalmente do horário nobre, foram ambientadas no eixo Rio-São Paulo. Não só isso bastasse, também trabalharam muito em cima de temas que se repetiram – favela, violência etc. Acho que há uma ausência de modulação muito grande na televisão hoje. Ela se atrofiou. É fruto, talvez, de um período que já vai para lá de duas décadas, de uma ausência de uma reflexão sobre qual é o seu verdadeiro papel. O verdadeiro papel da televisão, a meu ver, além de criar espectadores e vender espaços publicitários, é principalmente abraçar a missão maior de criar cidadãos. E se cria cidadãos através de conteúdos de qualidade, estética de qualidade, ética de qualidade. Assim, você estará complementando, por exemplo, uma escola, um museu, um livro. Por que a televisão precisa ser tão ruim? Não entendo isso. Com relação aos temas que se repetiram, não acredito em regras de sucesso. Também não acredito que exista algum tema que traga garantias de audiência ou prestígio. Não acredito em nada que seja tratado como garantido, como se fosse uma palavra de ordem para o sucesso. Acredito realmente no ser humano. Esse é o tema que me arrasta para os projetos. Acredito que o público necessita, hoje em dia, conversar mais com a narrativa dos personagens. Quando uma obra não dá certo, não é porque o público não entendeu o que foi jogado; é que aquilo foi mal jogado, mal colocado. Dentro de uma história ambientada numa favela, num mundo seja qual for, urbano ou não, existe, em primeira instância, o gênero humano. Se não há esse diálogo, a gente tem que ter, no mínimo, humildade e consciência para perceber que esses equívocos são do espetáculo, não da plateia. O público não é burro.

E tem que haver também certa libido no fazer. Você faz a sua revista com uma boa dose de libido, senão você não consegue vencer os problemas que o próprio fazer representa, e começa a virar um problema imenso. Os conteúdos devem ser realizados – não estou falando só do audiovisual, mas de questões artísticas e culturais – por amadores, por pessoas que amam o que fazem. Os profissionais estão engessados, não respiram mais, não percebem mais o mundo ao redor, transformaram-se numa espécie de xérox apagado de si mesmos. Estão se autoplagiando de tal modo que já não conseguem reproduzir nem o próprio plágio. O público sabe disso, e acaba, com toda razão, exigindo cada vez mais uma relação mais imaginativa, mais lúdica, afastando para bem longe o ego desses criadores que acham que são geniais e imortais.

Nos seus trabalhos, existe uma presença musical muito forte, que tem um papel fundamental, ajuda a contar as histórias. Como é sua relação com a música?

Sou um músico frustrado. Não toco nenhum instrumento, mas tenho um piano em casa que fico dedilhando coisas dissonantes e imperfeitas, e que me faz um bem danado. Por ser esse músico frustrado, ouço muita música. Eu ouço não só no sentido emocional e espiritual, mas também no sentido do pesquisador. Viajo, por exemplo, para uma determinada região para pesquisar um certo tipo de música. Fui para o interior do sertão, desde Minas até Alagoas, para estudar os aboios. Passei meses viajando, gravando, procurando aboiadores, cirandas, sem a menor intenção de aplicar aquilo diretamente em um trabalho. Quinze anos depois, vem Hoje é dia de Maria, e pego algo daquele material e reutilizo. Recentemente viajei para o leste europeu para pesquisar música cigana. Fiquei morando com os ciganos durante meses, estudando a música dos Bálcãs. São grupos constituídos por famílias; quando você chega em certa família, ou em certa vila, existem dez casas de ciganos, onde um toca sax, outro toca trompete, e por aí vai. E, quando você fica íntimo de uma comunidade dessas, não te deixam ir embora. “Fica aqui, dorme aqui”, “a viagem até cidade tal é cansativa”, “tem um grupo melhor, dos meus primos, da cidade tal, vamos ligar para eles agora”, e ligam, falam “estou aqui com Luiz Fernando, nosso amigo do Brasil, quando você vai fazer show?”, aí o cara, “Vou fazer show na praça na Sérvia no dia tal”. E o outro diz: “Tem show na Sérvia no dia tal, você tem que ir? Então você vai para a casa dele, fica lá até o dia do show”. Fiquei meio agarrado e preso a esse emaranhado de afetos fortíssimos, fazendo registros incríveis de música. O trompete, especificamente, para uma comunidade pobre, na Sérvia pós-guerra, tem o mesmo valor de uma bola de futebol aqui no Brasil. Você vê mendigos com trompetes todos quebrados, desafinados, faltando peças, tirando sons incríveis na rua, como você vê meninos fazendo embaixadinha numa comunidade no Brasil. Eles têm uma ideia de que o futuro de um menino pobre é ser um virtuose no trompete.

Como é ser diretor de TV e cinema no Brasil?

Depende muito de que cinema e de que televisão você quer fazer. No meu caso é, ao mesmo tempo, um enorme sacrifício e um estado de graça. Porque, quando você trisca minimamente o teu sonho, o desejo, que é, no fundo, a concepção e a criação de uma atmosfera, de um universo novo, de um olhar novo, isso te desloca um pouco do teu mundinho profano e banal, e te alimenta muito. É como a poesia. Às vezes, num canto de jornal, um poeta pode salvar seu dia escrevendo meia dúzia de palavras. Enquanto o meu trabalho estiver me devolvendo esse pequeno espaço num canto de página onde possa projetar algumas imagens, vai fazer sentido para mim. Quando esse espaço não houver mais, ou não estiver me reconhecendo nessa busca, não faz o menor sentido continuar. E isso, para mim, é um dilema diário.

Existe algum trabalho ou projeto com o qual você se sinta mais realizado?

Com certeza é algo que virá. Não é o que eu estou fazendo. O que estou fazendo é sempre erguido a partir de muitas dúvidas. Trabalho muito com a dúvida. Por isso que chamo de tentativa. Velho Chico é uma tentativa. Algumas pessoas perguntam: “Mas e aí, está gostando?” Não tenho como te responder isso agora, não terminei ainda, é um processo. Em um processo, é no último dia que for ao ar que você fala “gostei”, “não gostei”, “gostei disso, não gostei daquilo”.

Quem você citaria como as suas maiores fontes de inspiração?

Sem dúvida o gênero humano. O invisível. Acho que a minha função é tornar o invisível visível. Como é que se torna um sentimento visível, como é que se torna o temperamento de um sujeito visível. Claro que tudo isso é um conjunto de relações que envolvem intérpretes, câmera, luz, figurino… Ter essa invisibilidade, aprender a contracenar com ela, e, tudo indo muito bem, você vai conseguir traduzi-la.

E tem alguma coisa que você gostaria de fazer que ainda não fez?

Muita coisa, nossa… Acho que estou sempre a ponto de começar a pintar um quadro. Compro tinta, compro pincel, faço pesquisa de tela, aprendo a montar tela, corto madeira. E nunca pinto.

E um instrumento musical?

No instrumento eu fico com medo de perder certa coragem e uma boa dose de delírio, ao manipular o piano, por exemplo. Em relação à música, acho que vou continuar fazendo tudo errado. Tiro muito prazer em tocar errado. Muito prazer. Fecho os olhos: só toco se for de olhos fechados, sei a região em que está a mão, uma nos graves, a outra mais nos agudos, posso trocar uma pela outra, mas não sei o nome da nota, não sei nada, e não quero saber. Eu quero continuar completamente inebriado e surpreendido pelo acontecimento.

Fiquei com uma música na cabeça nesses três dias em que te acompanhei (“Eta nóis”, de Ney Matogrosso), e que me fez sentido te perguntar: “No milagre da lida, o amor vira mel”?

O amor vira mel? Vira. Mas o mel também pode virar amor. Nessa alquimia amorosa toda é onde você tem os grandes encontros, as grandes trocas, os grandes fluidos, as grandes paixões. Para quem escolheu ser artista em vida, tem que se lambuzar [risos].

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As lições mais importantes da vida

por Eduardo Andrade de Carvalho

John Stuart Mill – provavelmente o filósofo mais influente na Inglaterra do século XIX – começou a aprender grego aos três anos. Antes dos oito, leu Heródoto, Xenofonte, Isócrates e vários diálogos de Platão no idioma original. Aos oito, começou a estudar latim e, com doze, já lera as Metamorfoses de Ovídeo, várias Orações de Cícero e a Eneida de Virgílio – além de continuar suas leituras em grego, que incluíam Homero, Aristóteles, Tucídides, Demóstenes, Políbio. Nessa idade, já tinha noções de ciência, matemática, política econômica e também familiaridade com os principais clássicos ingleses de literatura e de história. Seu professor foi seu pai.

Diariamente, dos quatro aos sete anos, John caminhava com o pai antes do café da manhã e repassava com ele as suas notas de leitura do dia anterior. Nessas caminhadas, seu pai, James – autor de uma enorme história da Índia e filósofo utilitarista –, aproveitava para fazer pequenos discursos sobre “civilização, governo, moral, cultivo intelectual”, que pedia para John repetir em seguida, com as suas próprias palavras. A primeira operação intelectual que o pai lhe ensinou foi como dissecar um argumento falso; muito cedo, também, ele aprendeu a importância de se expressar com palavras precisas. Além de livros de histórica, lógica e dos clássicos da literatura, seu pai gostava de lhe passar também livros sobre homens corajosos superando circunstancias difíceis: como African Memoranda, de Philip Beaver, e o depoimento de David Collins sobre o primeiro assentamento em New South Wales.

Na abertura de sua Autobiografia, Stuart Mill aponta que um dos principais motivos de ter escrito a história de sua vida foi contar como uma educação diferente, rigorosa, especialmente na primeira infância – que normalmente, segundo ele, é “desperdiçada” –, pode ser muito útil. E não apenas útil: um dos aspectos mais marcantes do primeiro capítulo de sua autobiografia é, além da quantidade de leituras que fez muito cedo, o prazer com que se dedicava a elas. Por diversão, leu a Ilíada mais de vinte vezes, e sempre folheava a história da Grécia Antiga, de Mittford, nas horas vagas. Quando entrou em Oxford, Stuart Mill se sentia com uma formação 25 anos à frente de seus colegas.

John Stuart Mill aprendeu cedo, em casa, o que Henry Adams (diplomata, jornalista, historiador e romancista americano) recomenda, no meio de sua autobiografia – The Education of Henry Adams –, como a única coisa que realmente importa aprender cedo: como aprender (“they know enough who knows how to learn”). Durante toda a história da humanidade, continua Adams, muita inteligência foi desperdiçada, “e não há duvidas de que o professor é o pior criminoso”. Henry Adams também reconhece que a principal influência em sua primeira educação foi a de seu pai – que, no máximo, corrigiu seu sotaque em francês e que, de resto, o deixou passar a infância brincando. Em várias passagens de seu livro, Adams insiste que educação é coisa séria, que não é igual a divertimento. Mas é curioso como – insistindo tanto que as duas coisas são diferentes, assim como Stuart Mill, relembrando as suas primeiras leituras – muitas vezes repete que se divertiu.

Harvard “o ensinou pouco, e esse pouco mal, mas deixou a sua mente aberta, livre de vieses, ignorante sobre fatos, mas dócil”. (O seu livro é curiosamente escrito na terceira pessoa.) Em Berlim, ouviu muita música ruim, bebeu cerveja, fumou charutos, viu mulheres gordas alemãs tricotarem, mas fez isso “só pela companhia, sem pretensão de se divertir” – como se o fato de estar com pessoas agradáveis não fosse em si mesmo divertido.

Em Roma, onde passou seis meses com a expectativa de se “civilizar”, Adams se encantou com a cidade ainda medieval que existia, sem restauros, mas, ao fazer o balanço do capítulo dedicado à cidade, conclui que, com relação à educação, “ele não recebeu nenhuma, mas se divertiu”. Quando, aos sessenta anos, pondera sobre a responsabilidade que a idade exige, parece resumir o que pensa acerca da relação entre educação e diversão: “um mundo que não pode educar não pode divertir, e além de tudo é feio”.

Na segunda página de Minha formação, Joaquim Nabuco reconhece também a importância paterna em sua educação: “era natural que, aos quinze ou dezesseis anos, seguisse a politica do meu pai, porque essa devoção era acompanhada de um certo prazer, de uma satisfação de orgulho”. Ao mesmo tempo, suas ideias eram “uma mistura e uma confusão. Ávido de impressões novas, fazendo os meus primeiros conhecimentos com os grandes autores, com os livros de prestígio, com as ideias livres, tudo o que era brilhante, original, harmonioso, me seduzia e arrebatava por igual”. Seu livro é uma coleção dessas impressões: dos livros que leu, das viagens à Inglaterra, aos Estados Unidos, de seus principais interlocutores intelectuais, de sua infância entre escravos no engenho da sua madrinha – a experiência, descrita no capítulo mais famoso do livro, Massangana, que o inspiraria a dedicar a sua vida política à abolição.

O livro de Joaquim Nabuco é maravilhosamente bem escrito e infelizmente está esquecido pelas nossas melhores escolas. Henry Adams, aliás, entenderia o motivo: “Harvard era uma boa escola, mas, no final, do que o garoto não gostava mesmo era de escola em qualquer sentido”. Assim como o pai de John Stuart Mill, que preferiu confiar na sua biblioteca pessoal e na sua capacidade de conversar para apresentar o mundo ao seu filho. Talvez, aliás, o que se pode aprender dessas três autobiografias – de homens que passaram a vida empenhados em se educar – seja justamente isto: que as lições mais importantes não são ensinadas na escola.

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O segredo da educação privada

por Joel Pinheiro da Fonseca

Happy to learn

O pesquisador James Tooley ficou decepcionado ao ser enviado, pela Universidade de Newcastle, a Haiderabade, na Índia, para estudar as escolas privadas da elite local. Sua paixão fora sempre a educação da base da pirâmide social, e lá estava ele para produzir relatórios sobre os colégios mais caros da cidade. Aproveitando, contudo, a estadia em um país subdesenvolvido, resolveu explorar uma das favelas da cidade e as escolas públicas que a atendiam. Conversando com os moradores, descobriu algo inusitado: além da escola pública local, havia dezenas de pequenas escolas privadas operando na comunidade e cobrando mensalidade.

E não se tratavam de grandes redes de ensino que abriram filiais nas comunidades. O modelo era o de uma iniciativa vinda de dentro: um morador local, com um pouco mais de conhecimento que a média, dava aulas em sua própria casa. Com o sucesso, contratava mais professores, alugava ou comprava o casebre anexo e expandia suas operações progressivamente.

Tooley então visitou países da Ásia e da África e, em praticamente todos, encontrou a mesma coisa. Em cada favela, escolas privadas cheias de alunos pagantes. Com mensalidades baixíssimas (algumas chegavam a U$ 1), professores motivados davam aulas para salas abarrotadas de alunos interessados.

Por que tantos pais preferem a escola privada? O principal motivo é que os professores faltam menos e as crianças vão com mais interesse. Além disso, são escolas atentas ao que os pais têm a dizer. Assim, tem-se, de um lado, escolas públicas caras aos cofres estatais e com funcionários desmotivados; de outro, escolas 100% informais, com professores engajados e que, mesmo vivendo estritamente de mensalidades baixíssimas, dão lucro.

O grande teste, contudo, ainda estava por ser feito: será que as escolas privadas ensinam melhor que as estatais? A única maneira de testar é aplicando um teste padronizado, e foi justamente isso que Tooley fez. Não é surpresa descobrir que os alunos das escolas privadas se saíram sempre igual ou melhor que os das públicas.

Assim, o livro derruba platitudes do senso comum. A primeira e mais óbvia a cair é a de que, por conta própria, os pais são menos interessados na formação de seus filhos do que burocratas do governo ou professores desestimulados no sistema público.

Mostra também que ser pobre é muito diferente de ser “pobre coitado”. Os moradores das grandes favelas do mundo não são uma massa passiva e indefesa, aguardando a ajuda que vem do Céu ou do governo. São pessoas ativamente engajadas na própria ascensão social e econômica, e que não raro encontram os meios mais eficazes para isso. O primeiro é ter já deixado a miséria rural e se mudado para o mundo das possibilidades urbanas; e o segundo é poupar o pouco que ganham para investir em seus filhos.

Tooley mostra muito bem como o desejo de lucrar e o de servir à comunidade não são contraditórios; pelo contrário, reforçam-se mutuamente. Na escola privada, os professores dão aula bem e raramente faltam, mesmo ganhando salários muito inferiores aos da escola pública. Não raro, as escolas privadas oferecem bolsa para os alunos muito pobres; prova de que o desejo do lucro não extinguiu o desejo de servir ao próximo.

É uma surpresa que as escolas privadas consigam desempenho melhor com menos dinheiro? Não exatamente. Uma diferença está em que, na escola privada, a remuneração do empreendimento depende da qualidade do serviço prestado, que é avaliada pelos próprios pais; quem falta ou ensina mal é punido com menor remuneração. Na escola pública, o dinheiro vem dos impostos (e de doações bilionárias de países ricos) e nada muda se o serviço for péssimo. Para que se esforçar?

Ironicamente, é a relativa ausência do governo que permite que os sistemas privados funcionem. As escolas desses locais são todas informais. Só continuam a operar porque os fiscais do Estado nunca passam por lá e, quando passam, são facilmente subornáveis. Se o governo não atrapalhasse, já faria um grande favor.

Tooley não prega uma postura de indiferença dos países ricos. A educação no mundo subdesenvolvido precisa, sim, de ajuda e investimentos. O que ele faz é um alerta sobre como essa ajuda tem de se dar para obter os melhores resultados. Ao invés de doar dinheiro para um sistema estatal, burocrático, centralizado e ineficiente na hora de transformar dólares em impacto social, é mais interessante patrocinar o ecossistema educacional que emerge das próprias comunidades, seja com investimentos diretos ou com uma política de vouchers – dar às famílias a liberdade de escolher onde seus filhos estudarão e deixar que o Estado pague a mensalidade.

Lições que podem ser trazidas para o Brasil, onde – até onde se sabe – a educação privada nas favelas não tem a mesma dimensão que na Índia, mas cuja vocação empreendedora tem cada vez mais sido levada também à educação.

The Beautiful Tree é um livro para todos que se interessam pelo tema da educação e do progresso social. Um pequeno estudo sobre um processo mundial de ascensão social dos mais pobres que ocorre de baixo para cima, sem planejamento e, não raro, apesar dos esforços daquelas instituições formais que supostamente os servem.

Fotos de Marina Klink

No verão de 2005, como de costume, estava com minhas três filhas na praia de Jurumirim, em Paraty. Eram 8h45 quando avistamos o Paratii2 adentrando a pequena baía de nossa casa. A bordo dele, estavam Amyr e sua tripulação. Chegavam, então, de mais uma volta ao mundo com apenas uma escala, desta vez na península Antártica. As meninas eram ainda muito pequenas e estavam eufóricas por rever o pai após seis meses no mar. Era difícil explicar para elas onde ele estivera por todo aquele tempo. Naquela época, tinham entre cinco e sete anos. Pensei que seria mais fácil ir até lá e mostrar aquilo tudo para elas, para que vissem com os próprios olhos onde era aquele lugar tão distante para onde o pai delas sempre retornava, e quem sabe assim conseguissem absorver experimentando. Foi quando tive a ideia de irmos todos juntos numa próxima vez, e pela primeira vez. No verão seguinte, estávamos todos juntos embarcando para a Antártica.

A princípio, o Amyr foi reticente, mas não demorou muito para que se convencesse de que se tratava de uma boa ideia. Certamente, porém, levar as meninas a um dos destinos mais temidos do planeta não era programa fácil de se executar. No verão seguinte, as gêmeas Tamara e Laura estavam com oito anos de idade, e a Marininha completava seis quando todos juntos cruzamos o Cabo Horn pela primeira vez. E, ao contrário do que se pensa, conosco o cabo não foi tão impiedoso assim. O mais temido ponto das navegações de todos os tempos, o extremo sul do continente americano, geograficamente o ponto de encontro dos oceanos Pacífico e Atlântico, o mais famoso palco de naufrágios deu uma trégua e nos deixou passar.

Aquela foi uma grande oportunidade de podermos protagonizar em família uma viagem singular. Mas não reservamos a viagem somente para nós; embarcaram conosco outros amigos, e também dois filhos de amigos na mesma faixa etária das nossas filhas, a Gigi e o Luca. Rapidamente, as cinco crianças se tornaram amigas e, devido à intensa convivência, juntas descobriam as riquezas de estarem vivenciando dias especiais nas suas vidas. Dei a cada uma delas um pequeno caderno, onde deveriam anotar seus pensamentos e descobertas do dia. Completei que não precisariam ser necessariamente textos, mas também desenhos ou frases bem curtas, desde que anotassem algo marcante de cada dia. Expliquei que o que nos parece inesquecível hoje logo será esquecido, e as anotações seriam uma forma de eternizar descobertas.

Costume nada brasileiro esse de fazer anotações pessoais, mas cena bastante comum quando se viaja de trem pela Europa. O hábito de registrar impressões faz com que, ao abrirmos os cadernos anos depois, sejamos capazes de viajar pelas páginas da memória outra vez. Assim foi feito. A princípio, havia certa resistência e um tanto de preguiça, mas, como essa era a única tarefa da viagem, aos poucos as crianças foram engrenando. Valorizo as anotações e certamente os diários pessoais servirão para sempre como fonte de consulta e como resgate da nossa memória.

Aquela viagem foi transformadora para todos. Juntos, cada um, no seu próprio tempo fomos percebendo que sem disciplina tudo se tornaria muito difícil. Desde a convivência a bordo e os horários nada fáceis de determinar até o fato de que, se não nos ocupássemos em preparar as refeições, elas simplesmente não existiriam. Durante uma longa viagem de barco, é impossível ficarmos parados. Diante de um espaço restrito, temos que ser muito proativos e, aos poucos, cada um dos tripulantes vai se posicionando nas funções naturalmente. Dependendo de suas habilidades, um assume a limpeza, outro assume o preparo da comida. Um se adianta no apoio às manobras, outro se ocupa nos aprendizados técnicos dentro do barco. Como exemplo, a Tamara gostou de aprender a fazer pão e passou a garantir nosso café da manhã ao longo de toda a viagem. A Marininha assumia o controle da louça e explicava que ninguém limpava melhor do que ela.

Naquela viagem, mais do que aprender sobre o continente gelado, todos aprendemos a valorizar uns aos outros. Aprendemos sobre os talentos pessoais e a valorizar cada criança, dando-lhes o mérito de sua participação no trabalho em equipe. Entendi, assim, que poderíamos estar em qualquer lugar da Terra, não necessariamente no continente mais remoto e menos conhecido de todos, para compreender que o principal ingrediente da viagem estava dentro de nossa casa.

Para que aquela viagem não se tornasse entediante, procurei estimular a curiosidade das crianças, mostrando o que lhes poderia parecer mais interessante na natureza. Pesquisava sobre o comportamento dos animais nos livros que levara a bordo. Buscava fatos que pudessem entreter as crianças para que soubessem observar e admirar cada um deles. Não havia para onde ir a não ser apreciar os desembarques diários no gelo, retornando apressadamente, sempre que surgia a iminência de uma depressão meteorológica nada incomum.

De dia, víamos os animais de perto, e, na hora do jantar, eu verificava as anotações feitas por cada uma delas. Às vezes reclamavam, mas aos poucos foram entrando no ritmo e pegando gosto por suas produções. Foi quando começaram a caprichar, e até faziam desenhos coloridos como referência ao que tinham vivido naquele dia. Fizeram registros de experiências únicas, mesmo porque não é todo dia que se vê uma baleia Jubarte de perto, ou um elefante marinho trocando de pele. Poder vivenciar tudo isso, o natural, é muito diferente de receber essa mesma informação de um professor, sentado em uma cadeira dentro de uma sala de aula.

No ano seguinte, pudemos voltar para a Antártica, mas daquela vez me antecipei e fui à escola onde estudavam. Propus aos educadores que essa viagem de férias fosse encarada como uma viagem de estudos do meio ambiente. Estabeleci o compromisso de que, ao retornarmos, elas apresentariam aos colegas o que haviam aprendido. A escola avaliou minha proposta e, dias depois, apresentou um plano de trabalho com um roteiro que ia além das lições de casa. Elas fariam também registros técnicos, e isso tudo justificaria suas faltas letivas.

No nosso retorno, 45 dias depois, lá estavam elas, unidas, magnetizadas em frente a um computador, escolhendo as fotografias que ilustrariam a apresentação. Na semana seguinte, as três, juntas, faziam pela primeira vez uma palestra, a narrativa de suas férias na Antártica. O sucesso foi grande e gerou novos convites para que se apresentassem não só para outras turmas da sua escola, mas também para outras instituições de ensino. Passei a treiná-las para que se profissionalizassem nas apresentações e, no ano seguinte, surgiu o convite para, juntas, escreverem um livro.

Com muito entusiasmo e dedicação de todas nós, rapidamente o livro ficou pronto (editado pela Editora Peirópolis – Grão). O lançamento de Férias na Antártica aconteceu na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) e, desde então, ele tem sido adotado por diversas escolas particulares e pela rede pública de ensino. O livro já está na nona edição. As meninas continuam se apresentando e somam mais de 150 palestras em escolas, empresas e organizações.

Sinto muito orgulho, sim. Não só como mãe, mas ao ver que foram além daquele projeto escolar. Fico recompensada por enxergar que o caminho aberto pelo pai delas não se encerrou apenas em viagens extraordinárias, mas se abriu em um aprendizado em família e acabou alcançando outras crianças, muitas das quais jamais teriam conhecido algumas das riquezas de um continente distante.

Em contrapartida, algumas vezes recebemos bilhetes e ilustrações feitos por alunos que assistiram à palestra ou mesmo que leram o livro. Muitos trazem conceitos que extrapolam o que viram ou leram, revelando o que sentiram. A isso se soma a preocupação com o meio ambiente, especificamente com a defesa das baleias. Provas de que meu esforço valeu a pena. Não posso levar todas as crianças para a Antártica, mas a minha maior realização é constatar que, de certa maneira, pude trazer a Antártica para dentro das salas de aula.

E as meninas não pararam por aí. Pegaram gosto e criaram sozinhas o blog onde relatam suas viagens (www.IrmasKlink.com.br/diariodebordo). Atualmente, as três juntas somam sete viagens para a Antártica, entre outras tantas para o continente africano, para o Norte e o Sul do Brasil, e diversas para o Pantanal brasileiro. Criadas desta maneira bastante fora da caixa, elas não se importam de viajar para destinos onde não encontram muita gente. Quanto menos gente, mais a natureza fala diretamente ao coração. Diante de tantas opções de destinos, preferimos ir para lugares que ainda não estejam prontos; aqueles que não são pacotes oferecidos por agências de viagem. Melhores são aqueles que oferecem muitas surpresas pelo caminho.

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Manufatura urgente

por Mana Bernardes

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Os pontos luminosos da educação brasileira

por Caio Dib

Escolas com grades, pichações, falta de merenda, professores desestimulados e com poucos estudantes na sala de aula. Infelizmente, esse ainda é o principal retrato da educação brasileira. A boa notícia é que a imagem carimbada está mudando nos últimos anos, através de iniciativas individuais e de instituições públicas e privadas que não só buscam, mas realizam projetos alternativos, que garantem educação de qualidade e que, principalmente, estão ligados às realidades desses 50 milhões de estudantes.

Em 2013, esse cenário de mudança positiva não era tão claro. E eu queria muito descobrir quais eram as iniciativas que faziam a diferença na educação do Brasil. Saí do meu emprego e da casa em que sempre vivi para iniciar uma viagem de cinco meses de ônibus por 58 cidades do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste. Essa jornada foi chamada de Caindo no Brasil e não seguiu qualquer roteiro determinado por especialistas na área. Foi andando pelas ruas e conversando com moradores das cidades que conheci as melhores pessoas e iniciativas transformadoras na área. Esses projetos encontram-se não só dentro dos muros da escola, mas também em ONGs, quadras, parques, museus ou até mesmo cidades inteiras, onde espaços públicos e privados são usados como extensão das escolas.

“Você tá procurando coisas diferentes em educação, é isso?”
“Isso mesmo!”, eu respondia.
“Então tem que falar com meu tio”.
“Então tem que conhecer uma escola aqui perto”.
“Então precisa ouvir minha história”.

Com esse tipo de conversa, conheci dezenas de escolas públicas e privadas, iniciativas de governos, ONGs e, principalmente, pessoas conhecidas no máximo em âmbito local ou regional. Queria dar luz a essas ações “escondidas” pelo Brasil e divulgar esses projetos.

Uma Casa Grande que fortalece a cultura e a comunicação no Cariri

“Você está plugado na 104,9 e meu nome é Totonho. Eu estou aqui na Fundação Casa Grande há oito anos, e o que me faz estar aqui é a experiência e as oportunidades que temos durante toda a convivência com as outras pessoas.”

A abertura do programa de rádio feita pelo jovem Totonho não seria possível se, em 1992, a Fundação Casa Grande não tivesse sido criada em Nova Olinda, uma cidade de 15 mil habitantes, sendo sua grande maioria em zona rural, no interior do Ceará.

A ONG, conhecida como “Escola de Comunicação da Meninada do Sertão”, ocupa a primeira casa construída na cidade, em 1717. Até o início de 1990, as crianças brincavam de “31 salva todos” – uma espécie de esconde-esconde – e tinham medo da Casa Grande mal-assombrada da rua Jeremias Pereira, quase vizinha à Igreja Matriz. Quase trinta anos depois, as crianças continuam com a mesma brincadeira, mas dentro dos muros da antiga casa “assombrada”, que se tornou um dos principais pontos da cidade.

Conheci o projeto depois de pegar dois ônibus intermunicipais e uma van, que me deixou na beira da estrada que passa por Nova Olinda. Na grande casa azul, aberta a todos, crianças aprendem sobre lendas e cultura da região a partir de brincadeiras populares. Os jovens são profissionalizados aprendendo, com a mão na massa, ao ocuparem posições de produção e direção nas áreas de comunicação e cultura: produzem programas de rádio, vídeos e quadrinhos; fazem a manutenção da DVDteca, da área de arqueologia que resgata a cultura rupestre da região, do único teatro da cidade, entre outras atividades. A ONG também apoia as famílias e os “meninos da Casa Grande”, que já viraram homens e mulheres formados no programa de geração de renda familiar a partir do turismo comunitário.

Os principais responsáveis por essa transformação são Alemberg Quindis e sua esposa Rosiane Limaverde. Apenas com ensino fundamental completo, Alemberg viveu na cidade de Nova Olinda até os nove anos de idade. De volta à cidade, resolveu transformar a Casa Grande em museu e centro cultural, para difundir a cultura material e imaterial do Cariri cearense – famoso pelas peças rupestres e pelas lendas que Alemberg ouvia de Dona Artemísia, uma cabocla da cidade, na infância.

Alemberg também teve muita influência da época em que viveu em Miranorte, uma cidade no atual estado do Tocantins, em uma região sem muitas atrações culturais. O fundador relembrou: “Era uma região que não tinha nada: nem televisão, nem banca de revista. A gente ia comprar revista na cidade vizinha. Mas nesse lugar eu me deparei com o cinema e com um tipo de música diferenciada. Naquela época, a gente escutava coisas de fora, como Bob Dylan. Naquela região era diferente de outras cidades, em que só se tocava música caipira. Isso foi muito importante para a qualidade do nosso repertório. Na Fundação, você nota que as crianças têm um repertório cultural mais selecionado. Isso vem muito dessa época do Tocantins. A base do projeto está justamente na busca da qualidade”.

Com as referências de Alemberg e olhares e ações de todos os meninos e meninas que já passaram pela instituição, a Fundação Casa Grande se tornou uma disseminadora de cultura e comunicação do Cariri cearense e trouxe infinitas possibilidades que mudaram a realidades das pessoas da região e inspiraram outras iniciativas Brasil afora.

E tem muito mais. Durante e depois da viagem pelo Brasil, conheci muita gente envolvida na transformação positiva da educação do país. Tive a oportunidade de conversar com um senhor analfabeto que estava apoiando a filha a se formar no curso de Engenharia de Segurança; uma garota de dezoito anos que formou uma rede de jovens para debater e realizar iniciativas envolvendo educação, comunicação e direitos humanos em periferias de treze estados brasileiros; um projeto milionário que ajudou várias cidades do interior da Bahia a conterem o êxodo rural e estimularem o desenvolvimento comunitário a partir da educação.

Conheci histórias como as de Dayse, maranhense de São Luis, a primeira da comunidade em que vivia a entrar na universidade e que, na época, era monitora de um museu. Quando visitei seu trabalho e a conheci, contei o que buscava e ela disse: “Então você precisa ouvir minha história”. De infância pobre, estudou em uma escola com chão de cimento, merenda insuficiente e trocas de tiros na porta. Oportunidades surgiram, e as políticas de acesso à universidade permitiram que Dayse cursasse História na universidade pública. Em um estágio como professora, Dayse não ouviu seus colegas quando disseram que uma de suas salas era uma “sala problema” e que “não havia o que fazer lá”. Compartilhando sua história, mostrou que aqueles jovens que estudavam em uma escola pública um pouco melhor do que aquela em que havia estudado também poderiam ter acesso a universidades e oportunidades melhores que seus pais e conhecidos.

A educação transforma o país. Conheço algumas dezenas de histórias todos os meses online ou em cafés e eventos, e essas que compartilhei aqui são apenas alguns exemplos disso. Uma revolução silenciosa está acontecendo no nosso país, sendo feita por forças locais e desconhecidas fora de seus raios, e torço para que eu possa divulgar cada vez mais trabalhos e histórias incríveis que mostram essa mudança positiva.

#18RomanceCulturaSociedade

Minha vida é uma novela

por Hermés Galvão

Subestimemos de tudo um pouco da nossa quase nada pop cultura, mas jamais sejamos injustos com as nossas novelas. Esqueçamos de ontem em diante e voltemos no tempo para lembrar de como éramos felizes, e sabíamos, diante da televisão de tubo sem controle remoto. Não cometamos a injustiça de desonrar o passado de glórias do nosso mainstream áudio e visual, tão longe da ficção de hoje, tão distante da produção pós TV aberta que, urgente, devia fechar para balanço e olhar para trás – pois o amanhã é mais duvidoso do que nunca para quem não soube se reinventar. No país onde só tem valido a pena ver de novo tudo que é velho, e o nosso velho era moderno demais para a época, é bom lembrar que era uma vez uma história com roteiro original e enredo sempre magistral: qualquer tema discutido, elenco escalado, tarde da noite ou censura prévia, não havia razão, enterro de ente querido ou discussão com vizinho ou paquera de ocasião que nos fizesse perder um capítulo de novela. Seja ela qual fosse.

A vida e o mundo lá fora passavam na TV e a gente acompanhava, as modas e as manias, os romances que começavam como um beijo técnico e terminavam nas revistas semanais com histórias reais baseadas em fatos surreais – e nem havia foto de paparazzi para ilustrar o fato, o que deixava a história, pelo menos suas nuances, ainda mais colorida pela nossa imaginação. Ficção e realidade caminhavam lado a lado em tênue diferença, quase imperceptível de tão fiel ao fato – e era, aliás sempre foi, preciso dizer que “esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”. Mas era tudo tão verossímil, mesmo quando tudo que se queria no folhetim era morar em outro lugar ou imaginar um país menos irreal que o original.

Misturavam-se a literatura e a mitologia, folclore, fantasia, essa era a receita de sucesso mesmo quando o enredo era um fracasso. Fazia parte do show dar errado, e mesmo assim muito mais da metade do país não mudava o canal. A morte assistida era parte do show e acompanhar uma novela, por pior que fosse, era um pacto de sangue inquebrável. Afinal, faltaria assunto àqueles que não soubessem o paradeiro, o assassino, o suspeito, o amante. Amávamos e odiávamos por inteiro cada capítulo, éramos tão noveleiros quanto os franceses são cinéfilos. Nosso orgulho nacional tinha nível internacional; fomos vistos da China a Portugal, dublados e legendados, traduzidos, adorados. Criamos para sempre personagens que foram morar no eterno; foram-se os cenários, viraram eles lembranças que vagueiam na memória e no inconsciente: tornaram-se todos eles os heróis, vilões e mocinhos que mal tivemos nos livros e no cinema feito em casa.

Formamos nossa identidade cultural na televisão, aprendemos um pio de inglês ao cantar as canções dedicadas a eles, aos pares românticos e aos amores impossíveis. Desenvolvemos através deles a capacidade de imaginar como seria o futuro, mesmo que a curtíssimo prazo. E aquele “a seguir cenas do próximo capítulo” era a deixa para desenharmos a sós, antes de dormir, como seria o dia seguinte na vida paralela que vivíamos ali, diante da pequena tela, quando todo o real à volta perdia a importância e a cor. A imagem e as palavras, a cidade fictícia, o galã e a namoradinha, o Brasil de verdade num faz de conta seriado que partia corações quando o FIM estava próximo. E, logo após a cena final, cabia a nós juntarmos todos os pedaços, as tramas e os dramas para formar uma única história antes de arquivá-la para, então, recomeçar tudo na segunda-feira seguinte, no primeiro capítulo de uma nova história, quando esperanças davam lugar às lembranças. Novas trilhas, novos personagens, novos cenários – para ninguém dizer que a vida não passa na TV.