“Há alguma coisa de podre lá em cima…”
Tobias Barreto (1839-1889)
“No Brasil, o prestígio pessoal costumava prender-se antes à capacidade de acesso aos altos cargos públicos originada principalmente no grau de relação com os senhores da situação”
Sérgio Buarque de Holanda
Em data recente, o ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, Sr. João Vaccari Neto, introduziu no vocabulário da mídia um novo termo: “pixuleco”. Este designa “propina”, “dinheiro sujo” ou “dinheiro roubado” e foi usado para definir as quantias que foram distribuídas pelo sistema de corrupção que atingiu a Petrobrás. Com essa ou outras designações, a questão da corrupção no seio do Estado brasileiro e seus tentáculos, na forma de redes clientelistas ou nepotistas, atravessam nossa história.
Vale lembrar que a preocupação com o assunto não é nova. Uma longa linhagem de intelectuais, empresários e juristas já se debruçou sobre o tema: de Tobias Barreto a Raimundo Faoro, de Manoel Bonfim a Sérgio Buarque de Holanda. Suas respostas? Com diferentes abordagens, todos investem num mesmo diagnóstico: parte substantiva dos problemas brasileiros reside nas enormes distâncias entre Estado e Sociedade. E, nesse vácuo, se multiplicam as oportunidades de corrupção. O próprio aparelho de Estado se contaminou com tal divisão. Depois de mais de um século de República Federativa do Brasil, as relações entre o poder central e as unidades da Federação resultaram em puro casuísmo. Por seu lado, estados procuram extrair do poder central concessões financeiras desmedidas, fazendo uso de sua liberdade de gestão para aprofundar uma gigantesca dívida fiscal. O governo federal retribui, editando medidas provisórias e remendos tributários e tratando o Orçamento como mera peça de ficção.
Em 1877, num notável discurso dito “em mangas de camisa”, Tobias Barreto comparava os brasileiros, povo e autoridades, a viajantes que se reuniam à noite numa “casa de rancho”, mas que, ao amanhecer, cada qual tomava seu caminho, sem probabilidade de se reencontrar. Em 1905, era a vez de Manoel Bonfim atribuir tal divórcio ao “parasitismo” estabelecido desde o início da colonização. No seu entender, o Estado só tinha um objetivo: garantir o máximo de tributos e extorsões. Quem não tinha outra função ativa, para além de explorar terras e escravos, tratava de “colocar-se”. E Bonfim arrematava, de forma cética: “Não há na sociedade da metrópole uma classe, um órgão, que não participe dessa vida parasitária a que se entregou a nação. Ela apresenta o todo perfeito de um organismo social preso a outro, sugando-o”. De um lado, o Estado vampiro e seus seguidores. E do outro, uma massa esgotada de explorados. Entre eles, mediando tudo, uma rede de “amigos do rei”. Em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre ecoou as mesmas preocupações, lembrando que, em função do familismo político, o rei reinava na América, sem governar. E pior: faminto, o parasitismo econômico procurava estender, do reino às colônias, seus tentáculos absorventes. O grande pensador cunhou a expressão “privatismo senhorial”, para designar o sistema de poder pessoal face à debilidade das instituições estatais.
Oliveira Vianna, por sua vez, chamou atenção para outro caráter da colonização. Caráter que, em resposta às demandas do Estado e dos grupos que dele se beneficiavam, empurraria uma segunda camada, constituída por plebeus, lavradores, “homens honrados, mas de poucas posses”, para o interior. Segundo ele, essa gente ia se fixando obscura e silenciosamente, com seus gados e miúdos, nos campos e matos do hinterland. Era remediada, a princípio. Depois, se tornava abastada. E, engrossando patrimônios e fortunas, acabava por criar zonas de poder local e pessoal; zonas eficazes no comando da política e das terras, zonas capazes de ocupar o espaço de um Estado ausente e quase visto como antagonista e inimigo. Não teria esse o mesmo sentido do “colocar-se”, de que falava Bonfim? Ambas as atitudes traduzem a hostilidade em relação ao poder central e o esvaziamento das possíveis organizações políticas.
Embora Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr, entre 1936 e 1942, tenham se debruçado sobre a questão, apontando as fórmulas pelas quais o Estado ou quem o representa mantém seu domínio sobre as pessoas, o clássico sobre as relações entre Estado e Sociedade só veio mais tarde. Devemos essa reflexão à pena de Raymundo Faoro. Em Os Donos do Poder, publicado pela primeira vez em 1958, o autor gaúcho demonstrou como o país foi governado, desde sempre, por burocratas, fato que, segundo ele, agudizou os problemas estruturais. A instalação portuguesa e sua opção por criar um aparelho de Estado antes mesmo que uma sociedade tomasse forma tornou-nos uma “sociedade imperfeita”. Roberto da Matta foi mais longe ao sublinhar que somos uma sociedade bicéfala: uma parte de nós se enxerga como parte do Estado nacional, com instituições e regras escritas. Outra se vê como sociedade mestiça, desenvolvida marginalmente ou até mesmo contra o Estado – a atual situação de anomia das favelas/comunidades cariocas sendo, em meu entender, um retrato nítido do que previu o antropólogo.
Poderíamos, então, falar em mais de quinhentos anos de vácuo onde se multiplicam as oportunidades de corrupção? Sim. E tudo indica que as poucas e precárias relações entre a Sociedade e o Estado passavam e continuam a passar por uma musculosa rede de clientelismo. Clientelismo ou nepotismo que permitiu a uns adaptar-se e a outros tentar arduamente sobreviver. Nepotismo apoiado em desencontros, localismos e parasitismos. Exclusividade do Estado brasileiro? Não! Durante o Antigo Regime, as redes clientelares faziam parte da estrutura de poder das monarquias europeias, o funcionalismo público na estrutura do Estado significando, então, um “veículo de promoção social” — tema estudado pelo Conselheiro Arno Wehling. À época, reis e senhores tinham que cumprir uma agenda de obrigações paternalistas em relação aos seus súditos, que deveriam corresponder pelo amor e fidelidade pessoal ao serviço da Coroa. Serviço — sublinhe-se — feito de clientelismo e de serviços trocados entre amigos. Como consagrou o político Antonio Carlos Magalhães, já era “dando que se recebia”.
Inúmeros estudos demonstram que o localismo dos interesses, a hostilidade à administração central, a desafeição ao governo e a falta de patriotismo levaram a um cipoal de leis que procurou, desde sempre, encobrir a incompetência de nossos governantes e o proveito de seus protegidos. E que as poucas e precárias relações com o Estado sempre passaram por uma musculosa rede de nepotismo que operava a administração doméstica. Laços pessoais, laços capazes de prosperar no interior do aparelho de Estado se multiplicaram ao longo da história. E foram muitos e muito diversificados.
Comecemos pelos senhores de engenho, no período colonial. Considerados fidalgos, obedecidos e respeitados por muitos, estavam no ápice da hierarquia social, do controle da terra e dos que a trabalhavam — os escravos. No ambiente rural, onde a autoridade pública era fraca, ou mesmo inexistente, a grande propriedade se constituía em centro de poder e riqueza. Seu objetivo não era a racionalidade empresarial, mas a acumulação de escravos e terras, fatores de honraria e poder.
O historiador americano Stuart Schwartz, ao estudar a formação e as práticas das elites coloniais, foi pioneiro em mostrar que as ligações pessoais, os contatos de negócios e os laços familiares entre senhores de engenho e funcionários do governo foram, desde o início da implantação de latifúndios, contra o bom funcionamento da máquina administrativa. Sabe-se que os interesses desses grupos não encontravam apoio para se expressar dentro do sistema político imperial português. Suas petições e pedidos de auxílio esbarravam na inércia administrativa e política, sobrando-lhes atuar no sentido de conseguir, pela corrupção, influenciar a imposição ou não de determinadas leis. Os que tinham, pois, magistrados na família podiam suborná-los ou fraudar certas normas contando com o silêncio e o segredo que envolviam suas ações.
Na Colônia, sabia-se que o Tribunal da Relação era uma instituição corrupta. Mas, numa aparente contradição, os colonizados pulavam em sua defesa sempre que a Coroa agia contra os juízes que pareciam mais venais. Lógico: negócios e débitos de alguns magistrados os tornavam bastante vulneráveis às pressões financeiras. Segundo Schwartz, o “abrasileiramento da burocracia” por meio dos enlaces familiares entre os desembargadores e as elites comprova a mescla entre o exercício da alta magistratura e os interesses privados, não obstante os conflitos de praxe. Os casamentos endogâmicos dentro de um pequeno grupo de famílias permitiam que estas ocupassem postos camerários em rodízio, aumentando sensivelmente sua ação.
Por outro lado, ao longo do século XVII, senhores de engenho no Nordeste haviam ocupado os postos de comando nas Câmaras, e suas ações arbitrárias caíam sob as costas de arrendatários, meeiros e lavradores, interferindo na qualidade do julgamento e das ações que corriam no foro da Relação. Eis por que, quando não se curvava diante dos pedidos de um senhor de engenho mais irritadiço, um ouvidor provavelmente ouviria ser chamado de “galego sujo”, “cabroin” e “judeu”, insultos ilegais, porém correntes.
A justiça que submetia tais senhores de engenho entre outros moradores da América portuguesa era “rapace”. A voracidade de meirinhos, escrivães e juízes prevaricadores era insaciável. A manipulação das alianças familiares para resolver os problemas domésticos era constante, uma vez que os juízes eram caudatários de ordens dadas por potentados locais ou enviadas diretamente da Corte. O autor de Diálogos das grandezas do Brasil, Ambrósio Fernandes Brandão, escrevendo no início do século XVII, observava que uma parte dos acertos já era resolvida internamente, e que litigantes costumavam “meter amigos e parentes de permeio” para consertá-los. Os desembargadores, quando parte do círculo de relações patrimonialistas, eram alvo constante de cartas onde se invocavam favores trocados, sem cerimônias.
As relações do senhor de engenho com o Estado beneficiavam-se da notória venalidade dos seus funcionários. A atitude destes em relação ao Brasil era imediatista. Removidos da Corte normalmente por causa de dificuldades financeiras, dirigiam-se à colônia americana para resolver tal problema no tempo mais exíguo possível. Acreditava-se que no ultramar se enriqueceria tão rapidamente que nem haveria necessidade de levar família; seria pouca a demora nas terras incultas e povoadas de bugres antropófagos. Assim, nada os prendia à América, a não ser o fato de aí estarem para completar determinado número de anos em serviço, ao cabo dos quais retornariam a Portugal, prestigiados e ricos.
O importante era manter-lhes “as mãos bem ocupadas”, como denunciava, em 1728, o padre e escritor Nuno Marques Pereira. Era, pois, sabido que funcionários públicos em todos os escalões preocupavam-se antes de tudo não com a coisa pública nem com o bem comum, mas com os interesses privados, com seu próprio bem. O que na prática significava amealhar recursos ou fortuna à custa do interesse coletivo. Os senhores de engenho alimentavam esta malfadada engrenagem, pois se encontravam sempre carentes de favores, necessitados de crédito ou de julgamentos propícios a causas perdidas. Expressões como “tanger paus” e “azeitar rodas com moedas” para “saltar barrancos que não eram pequenos” eram usadas na Bahia do final dos Setecentos para designar o jogo de reciprocidade entre as autoridades e os senhores de engenho, então em crise. A distribuição de “caixões de açúcar” entre funcionários do Estado era corrente — como demonstrei em Ritos da Vida privada no Brasil. Tais caixões eram usados como um “escudinho contra as inquietações que podem vir de justiças e inspetorias”, afirmava um deles, Luiz Paulino de Oliveira Pinto, em 1818.
Com o brutal declínio das exportações de açúcar frente à produção antilhana, sobrava aos descendentes dos poderosos e decadentes senhores de engenho buscar em ministros e funcionários públicos o apoio que lhes dava, outrora, a rede clientelista de que precisavam. Nesses cargos se encontraram, a partir do século XIX, as segundas e terceiras gerações da açucarocracia. A crise do preço do produto expulsou para a cidade “ioiôs” e “sinhozinhos” que se tornaram médicos, advogados e políticos, “afrancesados, urbanizados e policiados”, como mostrou Freyre. Político de renome, Joaquim Nabuco definiu este arrimo com frase exemplar: o Estado brasileiro era, afinal, “o grande asilo das fortunas desbaratadas”. Faltou prever: ali se fariam novas!
Outro universo em que o nepotismo era regra: o do abastecimento da sociedade colonial. Coube às Câmaras criar uma estrutura de controle e exercer uma política sobre a qualidade, o preço e a aferição de pesos e medidas e o fornecimento de produtos. O comércio de produtos essenciais à alimentação — sal, pescado e carne bovina — era a principal preocupação. As Câmaras também eram responsáveis pela abertura de lojas e vendas, além do cadastramento de comerciantes que quisessem atuar nos núcleos urbanos. Da oferta desses bens em quantidade e a preços razoáveis, dependia a “quietude dos povos”.
Inicialmente afastados dos cargos municipais, os comerciantes setecentistas perceberam a importância destes e procuraram, na medida do possível, assumir o controle das funções camerárias. A ascensão dos homens de negócio aos cargos administrativos era essencial para que conseguissem vantagens e proteção, em contraste com os interesses mais gerais da população. Disso estava ciente o rei de Portugal, ao afirmar “que todos estes procedimentos destas Câmaras são em grande prejuízo do meu Real Serviço, porque, como querem levantar estes contratos em utilidades particulares, podem ser a causa de motins que sejam dificultosos de sossegar”.
Desses conflitos nasceu a necessidade de a Coroa efetivar um controle maior sobre os órgãos municipais, tendo sido o cargo de juiz de fora criado para este fim. Mas tais cuidados não bastaram. Contratos para a exploração do tráfico de escravos, da exploração do pau-brasil ou de pedras preciosas multiplicaram o casamento entre Estado e comércio. Não foram poucos os comerciantes de grosso trato — que tinham negócios envolvendo grandes somas de capital e operavam em vários lugares — que enriqueceram com os negócios coloniais e transitavam na Corte, conseguindo favores e cargos para seus agentes comerciais e parentes. São vários os exemplos da incorporação de ávidos comerciantes aos negócios do Reino, resultando em vantagens para os dois lados, notadamente quando se tratava de arrematação de contratos para compra e venda de escravos ou para cobrança de impostos nas capitanias. Ou ainda, como no caso da Companhia Geral do Comércio para o Estado do Brasil, contratos que associavam companhias estatais aos homens de negócio para importação e venda de sal, vinho, farinha, azeite e corte de pau-brasil ou até impostos sobre a passagem de rios caudalosos ou do capim ingerido por animais.
Os comerciantes estabeleciam uma série de vínculos estratégicos com o Estado, propiciando a expansão dos interesses metropolitanos na Colônia, sobretudo quando se tratava do controle do abastecimento e de endividamento de uma população crescente ou a cobrança de impostos sobre a atividade mercantil. E eles procuraram se organizar para defender seus interesses. No século XVII, foi criada a Mesa do Bem Comum dos Homens de Negócios, representando cinco corporações para atuar na defesa dos interesses e no auxílio mútuo dos mercadores.
Mais tarde, em 1808, quando da vinda da família real portuguesa ao Brasil, os “homens de grosso tratado ou de grossa ventura”, atuaram no sentido de “dar para receber”. Para ficar num exemplo: Elias Antonio Lopes, traficante de escravos, ofereceu sua residência, uma quinta na Boa Vista, ao Regente D. João VI: foi imediatamente agraciado comendador da Ordem Militar de Cristo e nomeado tabelião e escrivão da Vila de Parati. E em 1810, sagrado cavaleiro da Casa Real e agraciado alcaide-mor e senhor perpétuo do da Vila de São José del-Rei. Depois foi nomeado corretor e provedor da Casa de Seguros da Corte. Por fim, responsável pela arrecadação de impostos em várias localidades.
Como bem demonstrou Jurandir Malerba, coube à diligente elite econômica fluminense socorrer os cofres públicos nas urgências, com a instalação e manutenção da máquina administrativa e da corte parasitária e faminta de distinção, que chegou com o Regente português, D. João. Muitos relatos atestam a presteza e boa vontade com que os locais receberam estrangeiros emprestando espontaneamente dinheiro e moradia. Não o fizeram por bondade, mas impelidos por uma mentalidade arcaica, própria do Antigo Regime. Os “grandes” que socorreram o rei buscavam e receberam distinção, honra, prestígio social em forma de nobilitações, títulos, privilégios, isenções, liberdades e franquias, mas igualmente favores com retorno material, como postos na administração e na arrematação de impostos. Elias Lopes não foi o único…
A categoria dos funcionários públicos coloniais é outra que colaborou para as relações siamesas entre Estado e Sociedade. Testemunhos de época sublinham seus aspectos negativos. Eles são descritos como ávidos por dinheiro e preocupando-se mais com seus interesses particulares do que com os do Estado. O Conde da Cunha, por exemplo, vice-rei no Rio de Janeiro, entre 1763 e 1767, pediu para retirar-se do cargo, pois não conseguia fazer frente à cumplicidade entre desembargadores e negociantes de grosso trato da cidade que eram notórios sonegadores de impostos. Com fina ironia, padre Vieira já se queixava, bem antes das demoras das decisões oficiais: “Não há palavra mais equívoca nem advérbio de mais duvidosa significação que o ‘logo’ em matéria de despachos… Há ‘logo’ de dois anos, de quatro, de dez e de toda a vida…”.
A literatura dos séculos XVII e XVIII, em Portugal e no Brasil, deixa entrever um painel pessimista de despotismo e de enriquecimento ilícito. O texto anônimo intitulado Arte de Furtar demonstra que o ofício público tinha um número extenso de títulos arrogantes, prepotentes e concentrados em seus interesses pessoais. Seu autor dedica um capítulo aos “maiores ladrões que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões”. Ou “dos que furtam com unhas disfarçadas”, “com unhas irremediáveis” ou “unhas apressadas”, “com unhas bentas ou unhas militares”, entre outros.
Tal mentalidade estava surpreendentemente disseminada entre os reinóis que se tinham estabelecido no Brasil. Em carta do Rio de Janeiro, de 27 de junho de 1814, Luis Paulino de França Garcez, senhor do Engenho de Aramaré, na Bahia, escrevia a seu sogro, José Cardoso Pinto de Madureira, em Penafiel, Portugal:
“Nessa terra, quem leva 80 mil cruzados vai fazer uma boa figura, e isso, em tendo emprego de ‘ministrice’ ou outro qualquer [emprego] de dependência ou negócios, pode ir lá brilhar [na Corte]. Vossa Senhoria e quase toda a gente daí [de Portugal] não fazem ideia do que é isto cá, para quem não é homem de não poder fazer ‘chupancinhas’.[…] Lá, [em Portugal] dá-se por coisa grande o valor de doze moedas. Aqui, por um insignificante favor se dá a um ministro 3 a 4 mil cruzados. A ‘chupancinha’ aqui é de tarifa!”
E o senhor de engenho concluía, desalentado: “Pobres povos que há tanto anos são esfolados e que, a não ser a riqueza natural de seu país, já não existiriam”.
E mais tarde, em carta de janeiro de 1826, ao “Amigo Menezes”, o patrono da Independência, José Bonifácio não se iludia com as realidades pós-emancipação, denunciando abertamente o “país enxovalhado a tal ponto! E por bandalhos do governo”! Ao criticar as nomeações excessivas e imerecidas de viscondes e barões, ele referia-se à Regência como a “Grã-Pata” acusada “de por tantos ovos”, na forma de “barões de marmelada” e “basbaques”!
Durante o século XIX, os funcionários públicos continuam a se apropriar do Estado. Quando havia recuo nesta posição, eles eram afastados. Veja-se o exemplo estudado por Antonio Candido, em seu Um funcionário da monarquia – ensaio sobre o Segundo Escalão. Sobre o biografado, Antonio Nicolau Tolentino, filho de lavradores que chegou a presidente da província do Rio de Janeiro em 1857, o autor diz: “ser funcionário público dependia de muita coisa. Dos favores, dos protetores, do parentesco e até da habilitação. Quando não havia família, nem padrinhos, nem dinheiro, nem diplomas – o que fazer? […] qual era a proporção do esforço pessoal e do mérito inicialmente desajudado, assim como da competência lentamente adquirida, numa sociedade de prebenda e mercê, onde no fundo trabalhar era feio, o funcionário parecia não trabalhar e frequentemente não trabalhava”.
Na Alfândega, cercada de má fama, onde, aliás, teve início sua carreira, abusos, corrupção e irregularidades diversas proliferavam. Dirigentes do órgão eram responsáveis por redes de contrabando, que Tolentino tentou ingenuamente desbaratar. Os jornais de época apoiavam, invocando as “patifarias” que aí rolavam, na forma de desvio de cargas e roubos de carregamentos. Os notórios culpados nunca eram punidos. A ação saneadora que tentou Tolentino foi retribuída com uma demissão inesperada. Ele deveria ter seguido o dito do grande Talleyrand: “Surtout pas trop de zéle”.
Depois de uma passagem pelo Banco do Brasil, mereceu uma indicação: a de governar a mais importante província do Império, o Rio de Janeiro. Mais uma vez, Tolentino assumiu com a ideia de reparar uma rotina defeituosa. Não quis se limitar a administrar, mas a promover reformas: no controle do ensino, na má conduta do clero, no absenteísmo do funcionalismo público. Mais: propôs uma “reforma do serviço público”, amparada em formação adequada e concursos de seleção. A ideia foi como um tiro no pé, pois o próprio sistema eleitoral dependia de um jogo de favores alimentado por empregos públicos, concessões, empreitadas, apadrinhamentos, etc.
Num regulamento de 3 janeiro de 1858, ao coibir os afastamentos remunerados e as nomeações “por favor”, decretou o fim de sua carreira. Fragilizado e sem apoio dos deputados ou do imperador, D. Pedro II, Tolentino pediu demissão. Os jornais ecoaram o escândalo do funcionário modelo que tentou mudar o sistema. Mas tudo voltou a ser como antes no quartel de Abrantes. O burocrata não aderiu às malícias e conveniências do jogo político e os políticos, por sua vez, consideraram perigosa a sua tentativa de levar a reforma do serviço público adiante.
Já a polícia era alvo de manchetes da imprensa, nos finais do século XIX, início do XX. Violência, arbitrariedades, ações ilegais como roubos, furtos e espancamentos a te estupros eram características marcantes da ação policial nos grandes centros. É entre o advento da Abolição e da República que a Força Pública entra em cena como instrumento de contenção e controle de toda a vida social, vigiando e reprimindo desvios da ordem republicana e representando a faceta do Estado que mais lidava com o povo. A ideologia do trabalho industrial em voga, naquele momento, exigia um controle constante e um combate às figuras do “vadio” do ébrio e do mendigo, desclassificados sociais que colocavam em cheque a ética do trabalho. Além da nova praga: o anarquismo. A polícia representava a instituição através da qual se dava o contato mais frequente do Estado com as camadas mais baixas da população. Se o Estado e a sociedade sempre estiveram divorciados, no caso a relação entre eles assentava-se sobre a violência, a arbitrariedade e o autoritarismo do primeiro em relação ao segundo. A onda higienista que assolava as ideias de elite contava com o apoio dos aparelhos policiais.
A polícia contava ainda com “secretas”, agentes disfarçados a paisana, sempre em busca de vadios, jogadores, cafetões, passadores de moeda falsa ou “contos do vigário”. Mas o convívio com o submundo acabava por contaminar os policiais. Denúncias de embriaguez, insubordinação, desobediência, sedições, agressões e deserções eram comuns. Protegidos pela farda e o distintivo, os agentes da ordem envolviam-se com “casas de meretrizes”, “jogo do bicho”, enfim, tudo o que era considerado “vício moral”. Relatórios de Chefes de Polícia do início do século XX demonstram que o estelionato era uma forma de aumentar parcos salários. Aliás, estes eram dos mais baixos pagos ao funcionalismo público, superior apenas ao pago aos trabalhadores sem qualificação. Entre 1911 e 1912, por exemplo, um soldado ganhava menos do que um jardineiro ou um pedreiro.
Se, por um lado, ganhava-se pouco, procurava-se tirar o máximo proveito da posição de “autoridade policial”. Pelo temor que inspirava, o cargo tirava do distintivo o complemento necessário à sobrevivência. Jornais de época trazem denúncias de extorsões (o “mata-bicho”), de negociações de liberdade e soltura ou fuga de presos. Extorquindo cidadãos através da exploração de seus temores e cometendo crimes de variados tipos, os soldados refletiam a ineficácia ou, ainda, o desinteresse do Estado em organizar suas instituições, fosse pela incapacidade dos governantes, fosse simplesmente pelo fato de que a polícia representava o organismo que tinha como função proteger as elites das perigosas classes subalternas. As sessões livres dos jornais trazem centenas de denúncias contra maus policiais. Arguto observador da sociedade carioca, João do Rio tinha razão ao afirmar que o crime estava na própria organização da polícia.
Como se vê, em nossa história, as relações entre Estado e Sociedade sempre foram fortemente marcadas pelos laços pessoais; laços capazes de prosperar no interior de um Estado unitário, mas anônimo – um anonimato que facilita e, facilitou ao longo dos séculos, “pixulecos”, “ministrices” e “chupancinhas”. Por toda parte, o Estado procurou criar condições de controle de bens, de homens, de sua capacidade produtiva ou cultural, enquanto os cidadãos se motivavam contra os interesses imediatos do Estado – a partir de relações pessoais baseadas na família, em grupos de parentesco com interesses comuns, em núcleos profissionais ou políticos. O descompasso entre a massa da população e do Estado sempre foi o mesmo, onde quer que alcançasse o longo braço de El-Rei, as garras dos funcionários públicos e dos políticos, os dentes da polícia. Mais do que nunca, infelizmente, essa tradição está visível.
E com essa tradição, o Brasil tem jeito? Neste texto, que nasceu sob o signo das fontes históricas e não de complexas arquiteturas teóricas, ouso responder com modéstia: depende de uma formidável mudança nas práticas e mentalidades que enforjam o Estado Brasileiro. O Brasil não é o único país onde tais práticas subsistem, mas cabe, sobretudo, à Sociedade conhecer melhor esta história e fazer a sua parte.
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