Saio de casa para caminhar. O frio corta meu rosto e arde meus olhos, mas o sol brilha sobre a neve caída ao chão, criando cristais incandescentes, como que vistos através de um caleidoscópio. Logo me deparo com o primeiro deles, um homem solitário, caminhando lentamente, sua respiração gerando pequenas nuvens de vapor no ar. Alguns passos adiante avisto mais dois, estes andando a passos largos e rindo de alguma piada compartilhada. Continuo em frente, contornando a margem do mar Báltico, admirando a beleza resplendente da cidade que se revela pouco a pouco à medida que o sol esvaece os últimos resquícios da névoa matutina. Ali em frente à sede da prefeitura, um dos recantos mais bonitos da cidade, estão agrupados mais três homens. Parados, em silêncio, admiram a vista. E, quem sabe, aproveitam também um momento precioso de silêncio vindo dos carrinhos de bebê na sua frente.
Não é nada incomum encontrar homens – sozinhos, em duplas ou pequenos grupos – empurrando carrinhos de bebê pelas ruas de Estocolmo. São os chamados “lattepappas”, os “papais com cafés”, e são unidos por uma obsessão nacional: a igualdade de gênero.
Em 2020, o Índice Global de Desigualdade de Gênero elaborado pelo Fórum Econômico Mundial colocou a Suécia em quarto lugar no ranking mundial, com 0,820 pontos e atrás apenas da Islândia, Noruega e Finlândia. O índice varia de 0 (total desigualdade) a 1 (total igualdade). O Brasil, para ter-se ideia, está na 92˚ posição, com 0,69 pontos, atrás de países como a Bósnia-Herzegovina, Burundi e o Cazaquistão. Na América do Sul, o Brasil fica apenas à frente do Paraguai (o índice não apresenta dados para a Guiana). Não podemos esquecer que o índice mede apenas a desigualdade entre os gêneros, sem levar em consideração o desenvolvimento do país, e que isso gera uma certa distorção no ranking – não há dúvida de que a Suécia está longos passos à frente do Brasil, e de grande parte do mundo, neste quesito. Mas por quê?
Swedish Dads, série fotográfica de Johan Bavman
J
Existe uma preocupação nacional com essa desigualdade, e há décadas o Estado elabora políticas especificamente para combatê-la. Essas políticas vão mudando e sendo ajustadas à medida que a percepção de igualdade e de gêneros muda. Um bom exemplo disso é licença-maternidade/paternidade, lei que deu origem aos lattepappas que perambulam pelas cidades com seus filhos. Hoje, na Suécia, o casal (seja heterossexual ou homossexual, casados ou apenas morando juntos) tem direito a 480 dias de licença remunerada quando tem um filho, seja este biológico ou adotado. O nome já diz muito – a lei é conhecida como föräldrarledighet, uma composição de föräldrar, ou pais (palavra neutra e sem gênero, ao contrário do gênero masculino do termo em português) e ledighet, licença. A licença pertence a ambas as partes, e deve ser compartilhada por ambas as partes, mas custou algumas décadas e algumas mudanças na legislação para chegar aqui.
Em 1974, a Suécia se tornou o primeiro país a oferecer a licença-paternidade remunerada aos pais. Eles teriam direito a seis meses de licença-paternidade juntos, receberiam remuneração do Estado em até 90% do valor de seus salários e teriam o direito de decidir como dividir estes seis meses entre eles. Em 1978, a lei aumentou o tempo para 9 meses de licença e, em 1980, para 12 meses (9 com 90% da remuneração e 3 com uma remuneração baseada no salário mínimo). Em 1989, a lei novamente mudou, aumentando o tempo de licença para 12 meses com 90% de remuneração salarial e mais 3 meses de remuneração base. Metade destes 15 meses era reservada para cada parte, ou seja, 7,5 meses para um parceiro e 7,5 para outro. Nos anos 1990, o valor da remuneração baixou para 80% do salário, com um teto após o qual o empregador deveria completar a remuneração feita pelo Estado. O objetivo dessas mudanças foi dar aos pais a oportunidade de ficar mais tempo em casa com seus filhos e, também, diminuir a desigualdade entre homens e mulheres. O Estado pretende que a opção de ter um filho por parte da mulher não prejudique sua vida profissional e que as mulheres possam ter seus empregos e suas carreiras garantidos assim como os homens.
Nas primeiras décadas da lei, as mulheres ainda usavam a maior parte da licença. Seus parceiros optavam por transferir sua metade para que as mães ficassem em casa. A ideia da licença-paternidade entrava na consciência social, mas, na prática, os homens continuavam voltando ao trabalho muito antes das mulheres. O Estado decidiu intervir mais uma vez, mudando a lei para que cada parceiro tenha um período de 90 dias reservados de licença, formando um total de 180 dos 480 dias. Os 300 dias restantes da licença ainda podem ser divididos conforme o casal preferir. Se o pai não usar seus 90 dias, estes serão perdidos; não poderão mais ser transferidos para a mãe ou o outro parceiro. No primeiro ano de vida da criança, os pais podem tirar a licença juntos por um período de apenas 30 dias. Todo o resto deve ser separado. Essa mudança na lei acabou gerando uma mudança de comportamento. Em 1974, a licença-maternidade era 100% utilizada por mulheres. Em 2020, os homens utilizam 27% da licença. Em torno de 80% das crianças na Suécia hoje têm dois pais que trabalham.
Em janeiro de 2018, o Estado sueco criou a Agência de Igualdade de Gêneros para implementar políticas concretas a fim de minimizar a diferença entre os gêneros. Eles definem a igualdade de gêneros como: “homens e mulheres terem os mesmos direitos, responsabilidades e oportunidades em todos os âmbitos da vida” e acreditam que, para obtermos a igualdade de gêneros, não basta termos números iguais de mulheres e homens em cada área da sociedade; precisamos mudar as atitudes, normas, valores e ideais que governam a sociedade.
O que mais me interessa é que sempre acreditei que as leis de um país refletem os valores de sua sociedade. Jamais tinha pensado que, na verdade, as leis também têm o poder de mudar o pensamento da população. Somos todos produtos das nossas sociedades, das nossas famílias, oportunidades, condições socioeconômicas, cultura, religião, etc. Minha experiência na Suécia comprovou isso de forma aguda. Sou brasileira, católica, tradicional, de uma família do Sul do país. Estou beirando os 40 anos de idade. Sou de um lugar e de uma geração bastante patriarcal, de uma família bastante machista. Sou caçula e, embora minha mãe tenha trabalhado durante anos após ser mãe da minha irmã e do meu irmão, na minha memória ela já era uma dona de casa dedicada – arrumando, orientando, cozinhando, comprando coisas para a casa, escolhendo a decoração. Enquanto isso, meu pai trabalhava longas horas em um escritório que exalava masculinidade – sofás de couro, cheiro de charuto, retratos de grandes obras e miniaturas de escavadeiras; um mundo do masculino que me parecia misterioso e distante. Preferia ajudar minha mãe a montar uma mesa perfeita, convidativa, agregadora e demonstrar amor pela família através de grandes almoços no domingo.
Meu marido sueco tirou quatro meses de licença-paternidade quando nossa filha nasceu aqui em Estocolmo em 2018. Foram quatro meses essenciais. Tive um parto complicadíssimo, uma cesárea de emergência que me deixou com dores insuportáveis por meses. Longe da minha família, sem o apoio de empregados domésticos ou babás, fiquei em casa tentando sobreviver ao furacão da maternidade e da vida doméstica. E, por mais que meu marido tentasse limpar, cozinhar, lavar roupa, passar, ir ao supermercado e à farmácia, cuidar do nosso cachorro, servir refeições e outras tarefas de Sísifo, eu o criticava porque ele não fazia nada daquilo ao meu gosto, ao meu patamar. Minhas noções de limpeza eram outras, mais brasileiras que suecas; minhas refeições mais equilibradas, bem servidas; as roupas passadas além de limpas. A casa deveria estar impecável e, com a neném em casa e eu de cama, ela estava de pernas para o ar. Isso me deixou enfurecida. Como ousava aquele homem entrar no meu campinho e deixar de chegar ao meu nível de exigência. Eu sabia melhor, eu fazia melhor, e o lugar dele era fora de casa.
E aí está parte do problema. Meu marido é muito menos machista do que eu e, para ele, também foi difícil entender essa minha obsessão com a casa. Não importa, ele dizia, que está uma bagunça. O importante é que estamos juntos, curtindo nossa filha. Mas eu não conseguia curtir nada com o peso do fracasso da minha “profissão” – a de ser mãe e dona de casa. Essa divisão de gêneros que existe na minha cabeça, onde enxergo as metades em branco e preto, onde a casa e os filhos são meus e o escritório é dele, é produto de como fui criada e fruto da minha personalidade. Essas ideações enraizadas custam a ser mudadas, mas, após alguns anos de Suécia, estou aos poucos me amainando. Já não julgo os pais que vêm à escolinha da minha filha deixar sua prole descabelada e melequenta. Ou não muito. Afinal, estão fazendo o seu melhor para criar uma sociedade onde as mulheres possam ter a oportunidade de ter ambos, família e carreira – coisa que não conseguiremos sem o apoio e sacrifício dos homens e, crucialmente, sem o apoio e o julgamento de outras mulheres. E nisso o Estado sueco está realmente à frente da maioria.
O asfalto estava frio quando Ennis Del Mar desembarcou do caminhão que lhe deu carona e firmou as botas de vaqueiro na estrada. Àquela altura da manhã, a fricção dos pneus e os raios do sol ainda não haviam despertado sobre nenhuma das tantas rodovias que cortam o ermo estado de Wyoming. Ali, no extremo noroeste dos Estados Unidos, em um território esquecido entre as Grandes Planícies e as Montanhas Rochosas, o cimento é a matéria-prima preferida quando se trata de construir estradas e corações masculinos.
Deste início até a primeira conversa entre Del Mar e Jack Twist, acompanhamos uma sequência visualmente simbólica para compreender o que estará em jogo no restante de Brokeback Mountain. Para representar a masculinidade com precisão — ou, ao menos, o que significa ser homem à sombra de John Wayne —, Ang Lee percebeu que não bastaria contar com dois protagonistas talentosos e uma história envolvente. Assim como a natureza na mitologia do Western, que surge como o desafio primitivo a ser domado, seria pre- ciso personificar outro aspecto primitivo, fundador das relações masculinas, o qual seguimos sem domar — o nosso silêncio.
Romper com os arquétipos, como Brokeback faz com a figura do herói americano, é a metodologia adotada para iniciar, se não a mais completa, certamente a mais didática exposição sobre o mundo masculino. Concebida pelo Barbican, em Londres, Masculinities: Liberation through Photography imprime na transparência do título uma proposição ao mesmo tempo política e educativa. Ao passo que apresenta a proposta de ilustrar a pluralidade de manifestações pelas quais a masculinidade pode ser expressa, a exposição também critica o papel opressor da imagem na formação de um ideal de masculinidade dominante.
Street Fashion Jock, de Hal Fischer
Pensada a partir de seis eixos temáticos, Masculinities exibe o trabalho de mais de 50 artistas de todas as partes do mundo, distribuindo-os a partir de propostas como: Rompendo com os arquétipos; A ordem masculina: poder, patriarcado e espaço; Muito perto de casa: família e paternidade; Masculinidades queer; Reivindicando o corpo negro e Mulheres sobre homens: invertendo o olhar masculino. O escopo abrangente contempla o vocabulário visual que vem dos anos 60 até hoje, e tem a virtude de unificar sob uma mesma ótica artistas distintos como Karen Knorr, Catherine Opie e Rotimi Fani-Kayode.
Logo de início, Masculinities inaugura o olhar do público com Self-portrait (1994), de John Coplans, uma sequência de quatro imagens que segue a linha de investigação do fotógrafo inglês, interessado em depurar o envelhecimento do corpo e a fragilidade trazida pela idade. Nas telas de grande proporção, a força dos músculos e o viço da pele são os elementos ausentes diante de um corpo que simula posições do estatuário greco-romano. Harmoniosamente concebidas para exibição em público, as obras clássicas representam a finalidade impossível de tudo aquilo que é submetido ao tempo, ressaltando o injusto lugar que cabe ao corpo flácido e envelhecido na sociedade atual, legado à vergonha e ao esquecimento.
Reconhecido pela técnica apurada na encenação das imagens, o israelense Adi Nes exibe a série Soldiers (1994–2000). Nela, o fotógrafo faz uso da fama militarista de seu país para registrar os soldados em instantes de lazer. Produzidas nos acampamentos do exército, as imagens atacam o conceito de masculinidade como sinônimo de virilidade e heterossexualidade, ao registrar instantes em que a naturalidade se confunde com afetividade e tensão sexual.
A alemã Karen Knorr, por sua vez, aparece com um dos seus trabalhos de maior destaque, realizado nos anos 80. Gentlemen é fruto do período em que Knorr viveu em Londres para estudar fotografia. Durante esse período, conseguiu acesso às fraternidades e aos clubes masculinos, bem como à alta sociedade inglesa, compondo a partir desse material um instigante corpus documental que representa a masculinidade como sinônimo de um poder que opera unicamente com o objetivo de expandir e perpetuar a sua influência na esfera pública.
A abordagem temática da exposição permitiu o diálogo entre linguagens distintas, como no caso do premiado fotógrafo da Magnum, Thomas Dworzak, da performática Catherine Opie e do flaneurismo de Sunil Gupta. Prova de um olhar eminentemente lírico ainda quando em situações extremas, Dworzak exibe Taliban Portraits (2002), um registro que consegue projetar os fundamentalistas islâmicos distantes da imagem de brutalidade e virilidade esperada. Se Dworzak ilustra o realismo desconhecido do grupo terrorista, por outro lado, Opie apresenta Being and Having (1991), uma série de retratos coloridos, em que amigas lésbicas brincam com bigodes falsos, tatuagens e acessórios associados ao estereótipo masculino, denunciando o caráter lúdico e artificial da masculinidade. Nesse conjunto performático, as cenas montadas de Dworzak e Opie ganham a companhia do indiano Sunil Gupta. Radicado no Canadá desde jovem, Gupta explora o reduto gay de Nova York nos anos 70 em Christopher Street. A série registra os primeiros movimentos da comunidade homossexual na esfera pública, produzindo um belo inventário do processo de libertação desses homens e da busca por um novo repertório para realizar as suas identidades na sociedade.
Conhecido por Ravens, potente obra de caráter confessional em que registra o luto pela esposa, Masahisa Fukase apresenta um trabalho de longo prazo. Após ser acometido por uma doença séria, o fotógrafo japonês inicia Family, em que propõe a releitura das fotos de família. Durante duas décadas, Fukase ergue uma memorabilia peculiar, entrelaçada pela ironia de conviver com quem nem sempre gostamos ou desconfiamos não conhecer muito bem. O resultado propõe a refundação da estrutura familiar a partir do embaralhar das posições de poder, justamente no seio da tradicional sociedade oriental.
A dificuldade de ser imigrante e o extravio do desejo que a acentua são os pilares da obra de Rotimi Fani-Kayode. A dupla perda — do país natal e do corpo negro — habita o horizonte do fotógrafo que, aos 12 anos, teve de fugir da guerra civil na Nigéria. Em solo inglês, Fani-Kayode recupera na imagem aquilo que não encontra em vida. Encenados a partir do jogo de luzes, do contraste acentuado e da presença de elementos da cosmologia yoruba, os registros em preto e branco subvertem propositadamente o purismo da linguagem de poder e desejo do universo ocidental, representado em Richard Avedon e Robert Mapplethorpe, para elevá-lo à categoria de ação, reivindicação e gozo.
Não menos importante, a visão feminina encerra Masculinities como a responsável por entregar uma nova perspectiva ao tema. Possível unicamente após os esforços do movimento feminista das últimas décadas, finalmente a masculinidade passou a ser olhada desde fora, vendo-se obrigada a estar no lugar do outro. Transformar o sujeito em objeto é a proposta da artista visual Laurie Anderson em Fully Automated Nikon (Object/Objection/Objectivity), de 1973. Nessa série, Anderson se apropria do desconforto causado pelo assédio masculino e o converte em ação. Ao registrar os homens que lhe dirigiam comentários na rua, a fotógrafa recupera para si o poder do olhar, reenquadrando a objetificação ao expor seus personagens com os olhos borrados, em um claro movimento na direção de apagar as suas identidades e individualidades.
O trabalho que apresento segue minha investigação a partir da edificação de objetos de memória afetiva como forma de revisitar o passado, trazendo-os para o presente atual. Esses objetos, reconfigurados de valores, assumem uma transposição temporal e, a partir desta nova composição, reorganizam-se e acolhem novas formas.
Tensões caras ao meu universo, como o equilíbrio, o acaso, o volume, a sobreposição e o próprio processo de construção, se convergem na imagem que aqui está, e questiono: como pensar os dias atuais a partir dessa investigação?
A composição escultórica criada é única e suscetível à queda por vir, e a fotografia capta essa iminência ao criar uma suspensão no tempo, que nos traz novamente para o presente, mesmo que derradeiro e incerto.
Essa mesma incerteza aparece em questões que se fundem entre realidade e pictoriedade: como estamos em meio a todas as incertezas? A crise sanitária e política vai passar? Como estamos enfrentando o presente? A pilha de roupa vai desmoronar? Como pensamos o passado? Quem espero que vá chegar? Como pensamos o futuro? O copo de vidro vai se estilhaçar?
São perguntas que antecedem as ações-respostas e, por isso, o ato de esperar se torna tão presente. É viver segundo após segundo, e, aqui, a cadeira assume sua imagem mais simbólica, a espera, e as roupas virtuosamente dobradas, a obsessão acumulada pelo tempo.
O que vem acompanhado subjetivamente da imagem – a queda, a pós-queda, a vertigem, o tempo obcecado, a espera certa e a expectativa incerta – surge como reflexos dos dias atuais e nas formas de pensar o presente mesmo quando o fazemos criando projeções de um futuro.
Eu nasci na Hungria e lá vivi até os 14 anos. Em 23 de outubro de 1956, quando a Revolução Húngara eclodiu, eu estava lá. Nesse dia, minha mãe chegou em casa e falou: “Vamos, vamos, porque estão derrubando a estátua de Stalin”. Ela se referia à imensa estátua de Stalin que ficava numa praça muito grande, em Pest, onde eram realizados os grandes desfiles de 1º de maio. A partir daí, a gente decidiu ir embora. No fundo, minha mãe e eu não queríamos ir, mas eu tinha um irmão de 17 anos, e ele sumia por vários dias durante essa época. Meses depois, em novembro, quando a Revolução já tinha sido derrotada, meu irmão nos confessou: “Eu preciso ir embora, porque participei de coisas. Eu tenho medo”. “Bom, você não vai embora sozinho”, respondeu minha mãe, que tinha perdido meu pai em 1945, em um dos últimos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. “Se você for, nós vamos todos”.
Saímos de Budapeste sem saber para onde ir, e nunca imaginei que acabaríamos no Brasil. Primeiro, caminhamos noite adentro em direção à Áustria, até encontrarmos uma aldeia. Lá, minha mãe telefonou para parentes que moravam em Viena, e eles nos acolheram durante algumas semanas. A ideia de então era morar na Alemanha, aproveitar que minha mãe dominava a língua e ficar na Europa. Fomos de trem e chegamos a um campo de refugiados na Baviera, que descobrimos ter servido como campo de concentração anos antes. Ainda estavam lá, inclusive, os lugares das câmaras de gás. Vivemos por semanas nesses grandes barracões de madeira, improvisados no formato de dormitórios com beliches, enquanto minha mãe passava o dia procurando emprego, mandando cartas para todos os lados. Mas, mesmo ela tendo doutorado em Química, a Alemanha de 1957 não estava recuperada, o que significava que conseguir emprego e moradia era um grande desafio. Foi quando percebeu que ficaríamos anos vivendo da ajuda do governo que minha mãe, uma mulher impaciente e decidida, declarou: “Sabe de uma coisa? A Alemanha não tem futuro. Vamos embora”.
Voltamos para Viena ilegalmente, porque era proibido retornar. Tivemos sorte. Lá, nos registramos para vir ao Brasil, onde tínhamos parentes, fruto de um empreendimento do governo brasileiro dos anos 30, que trouxe muitos húngaros para construir uma fábrica de explosivos no interior de São Paulo. Nesse meio-tempo, minha mãe conseguiu um emprego como tradutora no consulado americano de Viena. Ofereceram a ela a oportunidade de irmos para os Estados Unidos. Lembro de quando ela chegou em casa dizendo: “Bom, tem a chance de ir para os Estados Unidos. Vocês escolhem. O que preferem?”. Imagina, eu tinha 15 anos, e meu irmão, 18. No nosso imaginário, o Brasil era uma aventura, com a Amazônia, os índios, as cobras e a selva. “Queremos ir para o Brasil”, dissemos. Naquela época, eu estava convencida de que fomos nós que decidimos. Mas, hoje em dia, acho que minha mãe fez uma pequena encenação. Ela não queria ir para os Estados Unidos, porque lá meu irmão imediatamente seria mobilizado para ser soldado, teria de servir na guerra, porque os Estados Unidos estão sempre envolvidos em uma, e ela queria ir para longe dessa realidade. Até porque o horror da Segunda Guerra ainda estava vivo na nossa família, e perder o marido havia sido o bastante.
Viemos para o Brasil e nunca nos arrependemos. A viagem de navio foi fantástica. Saímos de Gênova e fomos parando. Primeiro em Marseille, depois Portugal, Dakar, Recife, Rio, até chegarmos em Santos. Ali, meu tio estava nos esperando para pegarmos um ônibus em direção a São Paulo. Lembro que foi emocionante ver a estrada velha de Santos, cheia daquelas curvas e aquela vegetação exuberante. Chegando da Europa do pós-guerra, a imagem desse verde em abundância marcou nossa chegada e segue viva em mim até hoje.
Desembarcamos sem nenhum tostão, claro, sem dinheiro para se instalar. Mas o fato de a minha mãe falar línguas sempre abriu portas, e ela logo conseguiu emprego em uma fábrica que tinha laboratórios químicos. Em seguida, fomos encontrar a colônia húngara, onde estavam os padres beneditinos húngaros que fundaram o Colégio Santo Américo, que existe até hoje no Morumbi. Nós os procuramos porque sabíamos de um grupo de escoteiros que era coordenado por eles. Sem saber falar uma palavra de português, não havia condição de frequentarmos a escola, e o grupo serviria como uma forma de socialização. Junto aos escoteiros, fizemos muitos amigos – amizades que duram até hoje, como a da minha amiga e tradutora Edith Elek.
Foi a Edith que me apresentou à Noemi Jaffe, quando ela buscava alguém que tivesse estado em Budapeste durante a Revolução Húngara. Quando a Noemi me telefonou, ela me contou que estava escrevendo um livro sobre a Revolução e gostaria muito de conversar comigo. Bom, eu aceitei, claro, e foi um encontro ótimo, de simpatia mútua. Passamos muitas horas compartilhando histórias. Anos depois, em 2015, recebi um e-mail da Noemi dizendo que o livro estava pronto e me convidando para o lançamento. Na época, eu estava viajando a trabalho, e pedi que minha filha e uma amiga dela fossem no meu lugar. Para minha surpresa, foi somente com a publicação do livro Írisz: As Orquídeas, que descobri que a protagonista da história havia sido inspirada em mim. Recebi o livro com uma linda dedicatória da Noemi, e esse foi um dos presentes mais bonitos que já recebi, algo que me deu uma alegria incomparável. Durante o lançamento, a Noemi teve a sensibilidade de nos convidar, minha filha e eu, para jantarmos em sua casa. Mas aconteceu, então, essa coisa que é São Paulo, que tudo engole, e o convite acabou não se concretizando, e nunca mais nos encontramos.
Passou-se um tempo, e recebi um novo e-mail da Noemi, dessa vez me convidando para participar dessa edição da Amarello. Quando pensei em quem eu queria presentear, rapidamente me surgiu a imagem da Noemi. Eu não tive dúvida de que era o momento certo de retribuir de maneira singela um pouco da alegria que ela me proporcionou com o seu livro. Por isso, escolhi como meu presente desta edição preparar um doce húngaro que remetesse à minha infância.
O Capricho de mulher (Nói szeszély, em húngaro) é um doce que evoca o aroma e os sabores do país que conheci quando pequena. Por ser simples, fácil e de ingredientes baratos, ele se tornou muito popular na Hungria, especialmente pela geleia de damasco, que acrescenta um sabor muito especial. Parece que hoje em dia ele saiu de moda, mas era um verdadeiro sucesso nos anos 50. Sabendo que a família da Noemi também é de origem húngara, imaginei esse doce como uma retribuição. Um presente que nos trouxesse conexão, afeto e, ao mesmo tempo, fosse símbolo de agradecimento.
Editora de Artes Plástica da edição Amarello Presente
“É isto que amamos nos outros: o lugar vazio que eles abrem para que ali cresçam as nossas fantasias. Buscamos, no outro, não a sabedoria do conselho, mas o silêncio da escuta; não a solidez do músculo, mas o colo que acolhe…
Como seria bom se as pessoas fossem vazias como o céu e não tão cheias de palavras, de ordens, de certezas. Só podemos amar as pessoas que se parecem com o céu, onde podemos fazer voar nossas fantasias como se fossem pipas…”
Rubem Alves
O presente chegou tão bem embrulhado que foi difícil abri-lo. Um presente atípico, ofertado numa circunstância permeada pelo medo e pela incerteza.
Quando abracei meu presente, me deparei com um momento novo, estranho até, por me defrontar com uma realidade completamente diferente do que, até então, havia vivido.
Mudei de cidade e casa por tempo indeterminado. O que mais valeu foi usufruir do acalanto de minha mãe, um tocar na alma e um pulsar que há muito não experenciava; deixar para trás uma vida automática para aprender a viver um dia após o outro, tentando não projetar uma visão de futuro. Fui adentrando e percebendo que era uma questão de ajuste.
A desconstrução de um tempo, a construção de outro tempo, a transformação, a reinvenção, a readaptação, tudo mexido e misturado, tornando aquele momento um desejo de finitude quase que real.
Tentei construir um universo que me lembrasse um pouco do que ficou para trás – meu ateliê –, me debrucei, mergulhei e me senti um pouco mais perto do meu âmago.
Foi assim que comecei um trabalho totalmente novo para mim, tendo como universo o ambiente doméstico.
Parti dos objetos da casa de minha mãe, com os quais tenho uma relação quase amorosa, e fui tentando humanizá-los e ressignificá-los.
Trabalhei com diferentes aspectos da casa, com a poética do espaço, ampliando o significado da casa e sempre me perguntando: qual a relação de memória com esse lugar?
Fui criando provocações para mim mesma, atravessando essas possibilidades.
Meu silêncio junto com o silêncio do lugar, o eco da casa, fizeram transformações no meu trabalho; algo novo começou a surgir, como esse tempo presente.
Um fato curioso aconteceu pouco antes da quarentena começar: no dia 13 de março, abri uma exposição intitulada O Possível Para Hoje à Noite, que partiu da multiplicidade de interpretações do presente na plasticidade da instalação apresentada. O sentimento de aversão, a sensação de incerteza do tempo, o obscuro e o nada foram ideias que transitaram no meu imaginário, e, com esse trabalho, materializei “o desejo real”.
Existe uma analogia, a materialidade daquele trabalho e o tempo presente. O fato de não identificarmos, num primeiro olhar, o que é, causa um impacto de dúvida e impotência e cria uma avalanche de incógnitas no espectador.
Esse corpo estranho quase escultórico cria formas abstratas que sugerem contornos figurativos, silhuetas enigmáticas que buscam presentificar-se por uma ambiguidade erótica e soturna.
Qual a poética deste presente? Qual a poética presente neste momento?
O laço do presente, o presente desejado, o estar presente, abdicar do presente, o afeto do presente, o presente da vida, a escolha do presente, o presente incerto, a surpresa do presente, o presente da conquista, o amor como presente, o perdão como presente, a ilusão do presente, o presente coletivo, a expectativa do presente, o presente de se reinventar, o presente hoje, o presente da pausa, o presente com a alma, a dor do não presente, a euforia do presente, as perdas do presente, o presente como escolha, a arte do presente, o urgir do presente, o presente obscuro, a magia do presente, o presente sem presença, o silêncio como presente, ser presente, a cor do presente, o deleite do presente, a loucura do presente, o presente inesperado, a escolha do presente, o presente gratuito, o presente do gesto, o presente exaurido, a negação do presente, o presente frágil, o presente abstrato, o presente indignado, o presente impróprio, o papel do presente… Que presente!
Parece ser este um tempo de cegueira, quando aparentemente só o grito nos resta. Mas que, ainda assim, não chega a ser suficiente. Por serem muitos os berros, já não há mais tantos ouvidos que escutem essas ruidosas verborragias com gosto de sangue. E a comunicação se perde até mesmo entre pessoas com as melhores intenções.
É preciso dar a voz — sabemos. É preciso ouvir — dizem.
São muitos os que sempre falaram livremente em voz ativa; que sempre ditaram demais, na verdade. A pretexto de igualdade, não reconhece-se que o colorido existe; logo aniquilam-se as diferenças. Ou, de outro modo, reduzem-se as cores, limita-se a paleta ao preto e branco, criando altos contrastes intensos.
Cegos não enxergam preto, não enxergam branco.
Do outro lado, são tantos aqueles que, ainda que certamente em maior número, costumeiramente foram obrigados a calar, mas que possuem vozes altivas a serem ouvidas, de bocas que contêm palavras necessárias ao espetro da diversidade que existe. Mas suas vozes não saem desses corpos em tom plácido; pelo contrário, são estridentes; gritos da altura que suas causas pedem, com a força que julgam ser necessária para serem ouvidas. Tão fortes que podem incomodar à mesma altura, que por vezes fazem sangrar ouvidos alheios. Discursos diretos com faca nos dentes.
Mais uma vez, rompe-se a comunicação.
As mãos se agarram forte, e ninguém deve soltá-las. Mas as mãos também apontam, mimetizam poderes e as suas armas, estapeiam as faces das consciências. Com sangue nos olhos, ouvidos cerrados e gritos nas gargantas, pessoas se revelam animais não dóceis, destemidos indomáveis que avançam uns aos outros sem medo dos riscos e feridas próprios do embate com o espelho.
Esquartejam-se os sentidos.
Mas, sutilmente, percebo que há algo de novo no olho do furacão. Apesar da poeira que turva a visão, há mesmo algo à vista. É um ovo com aparência de semente, é um ovo com olho cristalino. Um ovo novo, diferente de todos os ovos, mas que também traz em si toda a ancestralidade desse arquétipo infinito. No fundo, ele é atemporal e só precisa voltar à superfície para ser visto. É como uma pedra retirada do fundo da Terra depois de uma era pregressa, para ser revelada sob o sol e oferecida à paisagem aberta; um elemento a ser exposto à visão de todos.
Em oposição ao ovo cego que não mais eclode, ofereço-lhes o ovo de ver além.
Tinha uns dez anos quando vi O Beijo da Mulher Aranha, filme icônico de Hector Babenco, pela primeira vez na televisão. O filme conta a história de Luis Molina, um gay exuberante interpretado por William Hurt, e do seu companheiro de cela, Valentin Arregui, interpretado por Raúl Juliá. Molina está preso por causa do seu comportamento sexual; Arregui, por conta das suas atividades políticas. Os dois homens estão em uma prisão sinistra de São Paulo durante a ditadura militar. Eles escapam do desespero e da violência cotidiana através de trechos de um filme que Molina nos conta, dia após dia e noite após noite, sobre a trágica história de amor entre uma glamurosa cantora francesa e um soldado nazista, por quem ela morre ao final.
Foto: HB Filmes/Divulgação
Quando criança, só me lembrava de dois momentos do filme, ambos próximos ao fim: em um deles, a aparição da mulher aranha, no outro, os protagonistas encontram finalmente a liberdade em uma praia do além. Não me lembrava que o filme acontecia em São Paulo, e não tinha a menor ideia de que 30 anos mais tarde assistiria a esse mesmo filme sozinha, no meu sofá, prisioneira voluntária do meu próprio apartamento na mesma cidade, e que ficaria encantada ao ver suas ruas animadas, cheias de vida na tela.
Isso me deixou com a sensação estranha da história se repetindo, de que a experiência que estava tendo do meu sofá poderia também ser um filme, uma vertiginosa “mise-en-abîme”. Tento me tranquilizar, pensando que a vida evolui como a espiral de uma concha, passando pelo o mesmo ponto, mas em um nível mais alto. Nós não estamos no mesmo lugar; é somente uma fase parecida e, mesmo que a maioria esteja confinada em casa, não estamos no meio de uma ditadura militar. Ou estamos?
A realidade pode, aliás, ser pior do que a ficção. E, ao olhar o atual circo político brasileiro mais de perto, poderíamos pensar em um filme de Romero, no qual mortos-vivos assaltam cidades, não temos como fugir, e defensores raivosos do atual presidente a.k.a. o chefe dos zumbis atiram em seus opositores políticos quando protestam pelas suas janelas. Enquanto o resto do mundo aplaude e canta para encorajar doutores, ou outros heróis da Covid-19, no Brasil, eles são baleados, e carreatas pedem o fim do confinamento e o retorno dos trabalhadores aos seus postos, bloqueando entradas de hospitais. No fim das contas, o líder deles vai cair, pois não é sério o suficiente para satisfazer as exigências dos marionetistas; ele foi suficiente no início, agora não é mais. Vamos terminar com os militares, que estão, de fato, manipulando as cordas.
Nessas circunstâncias confusas, se pode facilmente perder o contato com a realidade: será que é um pesadelo, um filme ou será que é real mesmo? Melhor tentar não cair no desespero, não imaginar a volta oficial de um regime que nos impediria de beijar quem bem quiser na boca, seja um namorado ou uma namorada, quando eventualmente nos reunirmos, arriscando a liberdade ou a vida para um drinque no Cabaret da Cecília, curtindo uma noite queer no decor vintage desse pequeno aconchego no centro de São Paulo. Em que ano estamos? Será que os alemães estão prestes a deportar e matar milhões de pessoas ou será que é um inimigo invisível que mata tantos? Será que estamos no meio dos anos 1970 em uma ditadura ou estamos no século 21, prontos para afrontar um regime militar legalmente instaurado?
O tempo está borrado, tudo está misturado; dinossauros ainda existem, assim como fascistas e zumbis. Eles são machos, brancos, velhos e raivosos, porque sabem que o reino deles está acabando, portanto ficam mais violentos e loucos.
A situação em que vivemos parece uma rachadura no tempo linear: uma fissura social, político-sanitária, é exatamente onde estamos agora. Talvez seja nessa fenda que a luz finalmente entrará. Talvez esta crise possa trazer uma mudança no paradigma atual e nos ajude a criar um mundo um pouco mais humano. É quase engraçado pensar que esse deslocamento potencial seria induzido por algo tão pequeno que nem podemos ver a olho nu.
Esse é o assunto exato da conversa que tive com o artista Simon Fernandes. Queria visitar o ateliê do Simon há um tempo, mas agendas cheias, viagens e a quarentena decidiram o contrário. O dia da nossa ligação parecia somente um outro dia. Acabou sendo diferente. A tranquilidade e o leve tédio desta quarta-feira ordinária se iluminaram quando nossa conversa começou e as sincronicidades surgiram. Achava que o trabalho de Simon tratava da tecnologia, um assunto um pouco afastado da minha pesquisa sobre o maravilhamento, a alteridade e o sublime; mesmo assim, estava interessada. Contudo, falamos das mesmas coisas, só que com outras palavras ou imagens.
De fato, se as obras de Simon podem parecer frias, sua proposta – através de suas esculturas híbridas, instalações ou pinturas – é uma volta ao afeto e à condição humana, usando a tecnologia para ressaltar esses assuntos. No trabalho dele, uma outra temporalidade surge, na qual metal e luz fria coexistem com elementos baratos, como sacolas de plástico transparentes, em uma mistura despretensiosa de alta e baixa tecnologia e cultura. A pesquisa de Fernandes também aborda a tensão e o movimento permanente entre a matéria e elementos digitais, que não estão tão distantes como podemos inicialmente pensar. Para ele, a imaterialidade acaba se encarnando em nós na forma de sensações, percepções, e voltam sempre para a matéria e o humano.
À medida que a nossa conversa fluía, o encantamento, a genialidade e a magia da vida viraram o foco do nosso papo. Acordamos que, ao final das contas, a arte tem essa capacidade única de deixar visível o laço que existe entre nós e o que nos cerca, desvelando o que normalmente ficaria escondido por um simples deslocamento, reanimando a vida, no senso de trazer sua alma, sua anima, de volta.
Esse exercício poderia antecipar o futuro, explorando os elementos invisíveis do nosso presente. Veiculando a hipótese de Berrardi sobre o pós Covid-19, sugiro que o futuro possa conter a rejeição da tecnologia como trauma vinculado à nossa experiência da quarentena. Simon tem uma outra hipótese e considera que a tecnologia poderia recobrar parte do seu charme inicial e da sua pureza, liberada dos aspectos tóxicos da nossa relação como o digital e sua consumação. Acho animador e escolho adotar essa perspectiva.
Acabamos conversando sobre a arte contemporânea e o que realmente significa. Simon cita outro filósofo italiano, Agamben. O que ele escreveu sobre o contemporâneo resume bem nosso entendimento da situação atual e o papel da arte neste contexto. Nossa habilidade de olhar no retrovisor e através do para-brisa ao mesmo tempo, sem julgamento, percebendo a repetição de padrões e a emergência de novas formas em um lugar onde nada é permanentemente definido e, em vez disso, está em suspensão: isso é o contemporâneo. A capacidade de olhar para o presente com distância.
Como o sugere Agamben, concordamos que talvez estejamos no caminho certo, pensando a arte como A Ferramenta para redesenhar relações de poder. O artista aparece, nesse contexto, como um vetor de algo maior do que ele, um tipo de mensageiro do inconsciente coletivo.
Somos compostos de átomos, e átomos são compostos de energia. Somos energia, a nossa e a que está flutuando a nosso redor. Algumas pessoas conseguem catalisar e traduzir nas suas palavras ou imagens esse tipo de sabedoria atemporal, como xamãs, responsáveis por trazer de volta o afeto como fundamento de nossas vidas. Talvez a arte possa criar esse novo território, sem fronteira definida; um tipo especial de heterotopia, como se fosse uma ilha mágica ou um jardim a se expandir de forma infinita. Isso nos obriga a ter a capacidade de prender a respiração e observar, ficar imóveis e quietos, olhando para nosso passado coletivo e para nosso possível futuro a partir de um tempo presente que pode ser reinventado. Isso é provavelmente o que estamos fazendo, de forma intuitiva, enquanto confinados, experimentando a própria definição do que é o contemporâneo, das sincronicidades e fendas temporais. O que significam a arte, o amor e a vida, e o que esta crise pode nos trazer? Esse é também o motivo de às vezes nos sentirmos presos em um filme. E também o motivo que deixa os dinossauros furiosos e os zumbis assustados, e alguém se perguntando “de qualquer forma, que horas são agora?”
Dado Salem é economista e mestre em Psicologia. É um dos pioneiros da Psicologia Econômica no Brasil. Trabalha há 20 anos com direcionamento de carreiras e famílias empresárias na gestão de questões complexas envolvendo famílias e negócios.
Ronaldo Lemos é advogado, especialista em tecnologia e graduado em Direito por Harvard. Professor da Universidade de Columbia, escreve semanalmente para a Folha de São Paulo.
Dado – Que bom te rever, Ronaldo.
Ronaldo – Muito bom, Dado. Bom ver que você conseguiu um barbeiro aí na quarentena para fazer o cabelo e a barba.
Dado – Fui eu mesmo. (risos)
Ronaldo – Ficou ótimo. Parabéns. (risos)
Dado – Aliás, eu vi que você, numa viagem para a China, foi num barbeiro bacanudo, né? Fez um corte incrível.
Ronaldo – Você não tem ideia. Primeiro o cara fez um corte autoral na minha cabeça. E, depois, ele fez a barba. Quando terminou, ele me agradeceu: “olha, é a primeira vez que eu faço uma barba na minha vida”. Porque ninguém na China tem barba!
Dado – Pô, que legal.
Ronaldo – Ótimo. Excelente.
Dado – Primeiro, eu adorei te ver na Sapucaí! Foi a última vez que a gente se viu, e foi muito incrível porque estava aquela bagunça de escola de samba, festa e multidão, você num canto da sala eu no outro, impossível de um chegar no outro, e tivemos uma troca sincera de olhar.
Ronaldo – Foi importante. Quando eu me lembro do carnaval desse ano, parece que a gente estava em outro planeta, vivendo em outro tempo, em outro lugar, e agora nada daquilo faz sentido. Foi realmente uma ocasião muito especial.
Dado – Foi como se ali a gente tivesse se visto de longe e falado: “Assim que der, precisamos marcar um encontro” – que acabou acontecendo desse jeito. Quando a revista Amarello me ligou dizendo que queria que eu batesse um papo sobre o presente com alguém, na hora me veio você na cabeça.
Ronaldo – O nosso próximo encontro já foi pelo Zoom! Você vê que a gente está muito no espírito do tempo, no zeitgeist.
Dado – Exatamente. Já fomos direto para o digital. Muito impressionante essa mudança. Para mim, foi muito interessante. Eu estava de mudança para o Uruguai com minha família, em busca de uma vida mais tranquila. A gente queria morar em cidade pequena, ter contato com a natureza, acordar de manhã e ir na peixaria, passar no supermercado, cozinhar e, à tarde, trabalhar. Queremos uma vida mais simples, no sentido de custos, para conseguir um equilíbrio do jeito mais simples possível. A pandemia chegou no dia em que voltamos de lá. Tínhamos ido para ver escola, casa, essas coisas. E aí minha vida virou exatamente o que eu queria que fosse lá no Uruguai e que eu não conseguia implementar no Rio de Janeiro com toda aquela estrutura.
Ronaldo – O Uruguai veio até você. (risos)
Dado – Exatamente. Quando vi, estava no Uruguai. Falei para a Tininha, minha mulher, “olha só, que presente, essa coisa horrorosa, a gente vai ter oportunidade para fazer exatamente o que queríamos fazer no Uruguai aqui”. Se de repente não for legal, a gente já nem se dá ao trabalho de ir para lá. Vamos tentar fazer aqui e agora. E aí entramos nessa nova vida imediatamente, foi impressionante.
Ronaldo – Já fui muito ao Uruguai, e a minha memória de Montevidéu é que, quando você chega lá, pensa: “será que é feriado no Uruguai hoje?” – porque a cidade está sempre vazia. Tem uma sensação de feriado perpétuo no ritmo da cidade, que, de fato, é bem mais lento do que São Paulo, por exemplo, ou mesmo o Rio de Janeiro. Eu estou com a mesma sensação que você; não estou com a menor saudade de Congonhas. Nenhuma. Quero ficar o máximo de tempo possível sem ir a Congonhas.
Dado – Para você ter uma ideia, eu moro no Rio há oito anos e, durante sete anos, eu viajei todas as semanas para trabalhar em São Paulo. Quer dizer, três anos e meio eu viajei todas as semanas, e até o ano passado eu estava semana sim, semana não. Não aguentava mais. Falei: “não aguento mais, só vou atender pelo Skype, não vou mais viajar, preciso ajustar minhas contas para isso, preciso enxugar minha vida”. E comecei com esse discurso para a Tininha, até que ela topou. Eu concordo plenamente com você. Só quero ir para Congonhas para viajar para o Nordeste, fazer viagem que eu queira. Não quero viajar a trabalho em hipótese alguma.
Ronaldo – Faz todo sentido. E mesmo isso eu já acho um suplício. Depois desse detox de aeroporto, eu estou me sentindo muito melhor. Porque aeroporto, mesmo para viagem curta, pode ser pesado. Eu tenho achado essa desacelerada incrível, Dado.
Dado – Você é um dos caras mais ativos que eu conheço, no bom sentido. Uma pessoa que sabe usar o tempo criativamente. Sinceramente, Ronaldo, você tem quarenta e poucos anos, e eu nunca vi alguém fazer tanta coisa com essa idade. Coisas relevantes, construtivas. Eu espero que você continue muito ativo, mas conseguindo equilibrar a coisa do aeroporto, pelo menos.
Ronaldo – Você sabe que várias vezes eu penso em bater um papo profissional com você, sempre lembro de você, porque várias vezes eu acho que eu estou fazendo coisa demais, e o meu ritmo é insano. Mesmo na quarentena, estando em casa – e não posso reclamar disso –, eu estou trabalhando mais do que estava trabalhando antes, com um ritmo absurdo. Aí eu sinto que preciso falar com você para organizar minha vida, criar um ciclo, porque, de um certo modo, também é perigoso ficar com a vida tomada. São todos projetos que eu gosto, que eu tenho prazer em fazer e me deixam feliz, mas, ao mesmo tempo, isso reduz o espaço para reflexão, para pausa, o que eu acho que é igualmente valioso, até para a criatividade.
Dado – Então já vou te falar uma coisa. Eu me inspiro muito nos gregos, e eles tinham duas palavras para trabalho. Uma delas era erga, que é no sentido de você se erguer, é um trabalho criativo, construtivo da sua pessoa. E outra era douleia – doulos em grego é escravo, servo, então douleia é um trabalho escravizante, aquele que você faz para viver. Saber navegar dentro dessas duas coisas é muito importante. Quando você diz, “poxa, eu preciso de um tempo para parar e pensar”, você está entrando mais no mundo de erga. Por exemplo, os diálogos de Platão eram esse tipo de trabalho, em que você reflete, você aprende, e aí tem aquele outro trabalho que você diz “agora eu vou pagar conta”, ou “agora eu vou fazer um projeto de implementar algo em que eu acredito”, e você vai e faz. Você tem que ter tempo para refletir para conseguir avaliar “poxa, o que eu vou fazer?”, “a que vou dedicar meu tempo?”, “qual o melhor projeto que eu posso fazer com o tempo que eu tenho?” Uma coisa mais ou menos por aí. Eu fico espantado com as coisas incríveis que você fez. Toda a legislação que regula a internet. Eu não estranho que o teu mundo agora vá ficar superlotado, porque você é “a” pessoa que eu tenho como referência na internet. E o mundo está agora direcionado para isso. Espere que você vai ter muito mais trabalho do que condição de atender, e vai ter que escolher bem o que fazer.
Ronaldo – Por isso que eu preciso da sua ajuda (risos). Eu preciso escolher. Está complicado e é super importante. Gostei dessa divisão do trabalho, das duas coisas. São duas coisas que eu acho interessantes. A minha felicidade está muito ligada à possibilidade de participar de trabalhos de esfera pública. Eu não sou político, não exerço isso como profissão, mas participar desses debates públicos me deixa feliz, e minha felicidade está ligada muito a isso.
Dado – Para mim, está evidente. No dia que eu te conheci, pensei: esse é o tipo de gente que precisamos trabalhando pelo coletivo, porque é um cara competente pra caramba, honesto, dedicado, que fala com todo mundo e de quem todo mundo, de todas as praias, respeita e gosta, e é um cara equilibrado e centrado. Sinceramente, acho que seria um desperdício se você dedicasse seu tempo a uma coisa pessoal, de interesses próprios.
Ronaldo – Não consigo. Impossível (risos). Mas a gente estava falando do presente, do modo de vida, e da questão do trabalho. O trabalho está mudando muito agora, né? Eu gosto muito de um desenho feito pela Ray e o Charles Eames, os designers que fazem aquelas cadeiras muito bonitas, que tem três círculos com uma interseção e sugere “qual lugar você deve trabalhar”. Existe o círculo do interesse pessoal, o do interesse público, do bem comum, e o do interesse do seu cliente. O Charles Eames dizia que, se você conseguir trabalhar na interseção dos três círculos, lá no centrinho, você vai ser feliz – e é verdade. Tem gente que trabalha muito bem no círculo do interesse próprio e do interesse do cliente, mas o interesse público fica descartado; e tem gente que também trabalha só no interesse próprio e no interesse do espaço público, sem que aquilo se converta em um benefício, e que a pessoa consiga viver e prosperar profissionalmente. Sempre que conseguimos trabalhar ali no meio, isso é fonte de felicidade, de criatividade, e assim por diante.
Dado – Eu conheço esse diagrama e acho que você é um cara que, se vivesse no Japão, seria um samurai. Mas não qualquer samurai – o samurai que, com a venda nos olhos, acerta na mosca. Você já ouviu falar? Tem um livro chamado…
Ronaldo – A Arte e o Zen.
Dado – Você acertou na mosca. Você é um exemplo de ser humano porque é a pessoa que vai buscar dentro de si seus talentos e suas paixões para dedicá-los ao coletivo. Isso é a melhor coisa que uma pessoa pode fazer na vida. Demos uma desviada disso na nossa cultura, porque hoje em dia buscamos uma profissão baseada naquilo que é mais rentável, que dá mais dinheiro, e aí a galera vai para o mercado financeiro. A pessoa para de pensar em si, de ir atrás das suas paixões, e assim a sociedade desanda um pouco como um todo.
Ronaldo – Eu entendo. E nem sempre isso é felicidade também, né? Claro que ganhar dinheiro é importante, e eu acho que todo mundo tem que prosperar. Inclusive nesse período de Covid, uma das coisas que me incomodou muito é que só agora muita gente percebeu que prosperidade real só existe se está todo mundo prosperando. Se tem uma pequena parcela de pessoas prosperando e outras regredindo e se descolando, isso não é prosperidade real. E em momentos como esse, de emergência, a conta chega, e a conta chega para todos. Então prosperar é importante. Mas se você só age no sentido de prosperar materialmente, isso não necessariamente implica realização, uma vida que seja, vamos dizer, feliz mesmo.
Dado – Os gregos usam a palavra eudaimonia, que foi traduzida como “felicidade” para nós. Eudaimonia é a vida que é boa para o daimon – o daimon é como se fosse a alma, é o demônio que nos habita, mas que não tinha essa conotação negativa de demônio. Ele pode tanto ser legal com você, se você se relacionar com ele, quanto pode infernizar sua vida, destruir sua vida. Então eudaimonia é a vida que é boa para o daimon, ou seja, é a vida em que você vai se realizar como indivíduo. Geralmente, isso tem uma conexão muito séria com a sociedade, porque você dedica seus talentos ao coletivo, e a sociedade obviamente precisa desses talentos, isto é, as coisas se cruzam. A questão é assim, “poxa, eu tenho esse talento aqui, mas esse talento não dá muito dinheiro”. Na época, quem tinha um talento, mesmo que ele não desse tanto dinheiro, a pessoa dedicava a vida àquilo e vivia feliz, e evidentemente existia um equilíbrio maior na sociedade. Hoje em dia, é uma loucura. É o que você falou, se não está bom para todo mundo, gera um problema enorme.
Ronaldo – O que é importante é as pessoas terem a possibilidade de prosperar, e isso não quer dizer que vai ficar todo mundo bilionário, o que seria até impossível e não sei se seria bom para o mundo. Não existe recurso para isso.
Dado – O mundo não aguenta, Ronaldo. O mundo não aguenta sei lá quantos bilionários. Já não aguenta nem milionários. A Terra acaba antes.
Ronaldo – Esse é o problema. Estamos saindo de uma pandemia podendo voltar a outra situação de emergência, que é a emergência climática. Tem um ensaio interessante que eu li nesse período, falando exatamente sobre isso, que estamos, nesse momento, vivendo um ensaio de uma crise ainda maior, que pode, inclusive, chegar mais cedo do que a gente imagina.
Dado – E amplamente anunciada. Existe um estudo dos anos 70 chamado The Limits to Growth (Os Limites do Crescimento, de Dennis L. Meadows, Donella Meadows e Jorgen Randers), que diz que a Terra vai até um limite, e depois desse limite dá problema. Os cientistas todos já estão batendo nessa tecla há um tempão, mas como é que você faz a sociedade cair na real? Sinceramente… Eu sou otimista em relação ao futuro, mas acho que vamos precisar sofrer muito para essa mudança de comportamento acontecer. Agora temos uma oportunidade enorme para ressignificar tudo e voltar para uma vida mais pé no chão, mais real, mais simples e feliz. Acho que é o momento perfeito para isso, mas esse excesso de consumo e essa ansiedade toda é difícil frear. Até porque o discurso dos governantes de “dependemos disso”, “as pessoas têm que comprar”, “temos que acelerar, senão…” – senão o quê? O mundo não aguenta continuar acelerando. A gente vai ter que se reenquadrar de algum jeito.
Ronaldo – Esse mundo que nós estávamos vivendo até há pouco era um mundo que, ao mesmo tempo, acelerava e estava estagnado, isso é muito louco. Ele vivia duas coisas ao mesmo tempo. Tínhamos uma economia americana vibrante e pulsante, com nível de pleno emprego, juros negativos em vários países da Europa, para fazer o dinheiro circular e não ficar parado no banco, e, ao mesmo tempo, sinais de estagnação muito claros, inclusive do ponto de vista econômico. E do ponto de vista da inovação, que é a minha área, existem as inovações da internet, dos celulares, etc. Mas o impacto disso para a economia, para a produtividade e, principalmente, para a prosperidade, não é um impacto significativo. Ao contrário – é isso que é paradoxal. Temos a sensação de que estamos acelerando no trabalho, nas interações pessoais, mas isso não necessariamente está se traduzindo em progresso e prosperidade. Na década de 80, tinha um economista que falava que a era do computador estava em toda parte, menos nas estatísticas de produtividade, porque a produtividade, desde então, continuava a cair. Quando você olha a produtividade do trabalhador nos Estados Unidos, mesmo com tudo isso que temos hoje, é declinante, o que é uma loucura. Ainda não existiu uma invenção que tivesse o impacto no bem-estar das pessoas como teve, por exemplo, o antibiótico ou a privada. Quase inacreditável. O antibiótico e as privadas promoveram um salto na qualidade das nossas vidas, e, nos últimos 20, 30 anos, ainda não teve nada parecido. Esse paradoxo da aceleração com a estagnação é preocupante. E um ponto muito importante, agora com a Covid, é que estamos passando por um momento que nos permite refletir se, talvez, não estávamos acelerando para o lado errado.
Dado – Acho que temos poucas pessoas pensando no que estamos fazendo, e eu acho que as cabeças dos governantes deveriam estar focadas nisso. Para onde estamos indo? Existe uma ética por trás dessa aceleração toda? Porque, se não existe uma ética ligada a tudo isso, pode ir fácil para o lado do mal. Primeiro se cria, depois se vê se é bom ou não é. Eu ouvi essa frase uma vez em Boston e fiquei preocupado.
Ronaldo – Outra preocupação é uma espécie de convergência para um único ponto, que muita gente chama de singularidade. Acho que uma das missões que temos não é promover a singularidade, mas resistir à singularidade, porque o que precisamos não é uma coisa só; precisamos de multiplicidade. Quando falamos em tecnologia, a tendência é a promoção de convergência para um modelo único. One size fits all. E isso é preocupante, porque, quando você perde o contato com a ética, com os modos de vida que são diferentes em cada lugar, com a cultura, a tecnologia fica divorciada da história – independentemente da história que você viveu, o uso da tecnologia é o mesmo para todos. Se seguirmos por esse caminho, primeiro, a ideia de ética se torna inviável; segundo, você tem uma força de convergência. Devemos promover a tecnologia como princípio, mas não como resultado, e a tecnologia como princípio permitindo a multiplicidade, sem convergir para o mesmo ponto. Por exemplo, eu escrevi um artigo na Folha de SP falando que a escola “home office” deu errado. Pega qualquer pai ou mãe agora nesse período e pergunta se eles estão tendo uma boa experiência com a educação online dos filhos em casa. Zero. Não tem ninguém feliz. Pelo contrário, os pais estão putos, as crianças estão putas da vida. Ficar achando que criança de 6, 7 anos vai ficar na frente do Zoom por três, quatro horas é irreal. Esse experimento deu errado. Essa camada tecnológica que a gente julga universal tem limites. O quanto perdemos abdicando do modelo da escola formal para tentar jogar a escola para dentro de casa? É pesado. É um modelo pior. Temos que fazer essa mesma reflexão em relação ao trabalho, pois a tecnologia modifica o plano da cidade, da vida urbana, uma série de coisas. A cidade inteligente talvez não seja a melhor cidade, entende? A tecnologia tem limites, e precisamos lembrar disso, ela não resolve todos os problemas. Pelo contrário, alguns ela piora muito.
Dado – Fico feliz de ouvir isso, porque tudo que eu ouço por aí é a galera acelerando nessa história com pouca reflexão em cima. Uma pessoa especializada em tecnologia, na minha opinião uma das referências no país nisso, falar isso que você falou, poxa, eu fico mais tranquilo.
Ronaldo – Hoje de manhã, só para você ter uma ideia, teve um seminário do BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, sobre educação, com o ex-Ministro da Educação da Coreia do Sul, a Priscila Cruz, que faz um trabalho genial aqui no Brasil no Todos Pela Educação, a Lucia Dellagnelo e eu debatendo isso. Eu falei para o BID que o homeschooling (modalidade de ensino em que o aluno recebe as lições escolares em casa) falhou, não deu certo. Pode ser que a gente consiga daqui dez ou cinco anos, mas achar que dá para trazer a escola para dentro de casa, esquece. E foi interessante porque as pessoas ficaram tocadas com isso. E, de fato, a tecnologia tem limites, e temos que saber qual o lugar que queremos que ela ocupe na nossa vida. Usar a tecnologia para substituir a religião, a ética, as relações pessoais e uma série de outras coisas é tornar a nossa vida pior. Precisamos tomar muito cuidado com isso.
Dado – Assisti a uma live em que você falou que veio de uma cidade que tinha acesso a TV a cabo e que isso foi fundamental na sua vida, que, se não tivesse tido essa fonte de informação, você não seria quem você é hoje. Hoje, a internet escancara isso para nós, mas obviamente precisamos saber o que buscar. Como podemos aproveitar a internet para levar educação para as pessoas no Brasil?
Ronaldo – A importância da internet e da infraestrutura para a vida das pessoas é fundamental. De fato, eu devo muita coisa da minha vida a isso. Eu nasci numa cidade pequena, no interior de Minas Gerais, que foi escolhida aleatoriamente para ser a primeira cidade do Brasil a ter TV a cabo. Na época, não tinha internet, não tinha nada. Um cabo era um salto informacional. Imagina, uma cidade que só tinha dois canais de televisão e o correio como conexão com o mundo externo, e de repente você tem 150 canais, incluindo CNN, BBC e uma série de coisas. Foi um choque. Não só para mim, mas para várias pessoas da minha geração. Eu posso listar um monte de gente que veio dessa mesma época que eu na cidade e hoje é empresário de tecnologia, investidor em tecnologia. É muito curioso isso. O Manoel Lemos, meu primo, é um dos sócios da Redpoint eVentures, um fundo de investimento em tecnologia no Brasil; o Gustavo Caetano fundou a Samba Tech, que é uma startup conhecida; o Gustavo Debs vendeu agora a Zup, empresa dele, para o Itaú por 400 milhões de reais – são todos de Araguari, e a minha hipótese é exatamente essa: como é que uma cidade de 80 mil habitantes conseguiu dar esse salto? Porque teve acesso…
Uma das brigas que eu tenho, por exemplo, é levar banda larga de excelente qualidade para todas as escolas do Brasil. Se a gente conseguir se mobilizar, 6 bilhões de reais resolvia esse problema. Isso nem é muito dinheiro dentro do orçamento público e do que se gasta no Brasil com besteiras e bobagens – se investissem 6 bilhões do orçamento nisso, seria possível colocar banda larga de primeira qualidade em todas as escolas públicas do Brasil. Eu venho brigando por isso há bastante tempo, com vários parceiros aqui no Brasil. Às vezes avançamos, às vezes voltamos. Isso mudaria a vida das pessoas. Conectividade e infraestrutura é o básico, não tem jeito. Foi por isso que a Ásia deu certo. Passei quatro meses na China no ano passado, fazendo uma série de documentários chamada Expresso Futuro. Gravei oito episódios, fazendo um mergulho no que a China mudou de tecnologia, e como eles deram esse grande salto tecnológico. É realmente chocante, porque, em 40 anos, o país tirou 750 milhões de pessoas da miséria. E não é qualquer miséria; é miséria de não ter o que comer, de comer pedra, capim, muito pesado. E em 40 anos essas pessoas foram trazidas, em grande parte, para a classe média. A China hoje começa a competir, por exemplo, com os Estados Unidos em tecnologia e inovação. Então, como é que saíram da fome para potência tecnológica? Muita gente fala, “ah, porque a China é autoritária, por isso que deu certo”, e não é por isso. É o contrário; se autoritarismo levasse a desenvolvimento, a Coreia do Norte seria uma potência, o Irã, a Arábia Saudita… O que eles fizeram? Eles investiram em infraestrutura educação para todos. A fórmula nem é tão complexa. E isso, para nós, no Brasil, parece simples, mas é chocante. Quando pensamos na maneira como criamos infraestrutura no Brasil, é uma tristeza. Se você é rico, você vai ter infraestrutura; se você não é, não vai ter. E isso vale para tudo. Conectividade na escola – se você é rico, você tem; se não é, não tem. Saneamento básico – se você é rico, você tem; se não é, não tem. Mobilidade urbana, mesma coisa. Acesso à mobilidade nacional, mesma coisa. Eletricidade, mesma coisa. E, lá, o que eles fizeram foi inverter essa equação. Começaram a construir infraestrutura de grande escala para rico e para pobre, para todo mundo. Um exemplo, que eu vi na China, é o trem-bala. Você viaja hoje de trem-bala para qualquer cidade na China; a malha tem mais de 30 mil km; é o melhor jeito que existe de viajar no mundo hoje, totalmente confortável, limpo, trafega a 350 km/h, o trem é moderníssimo – e em todo o trem-bala chinês, só tem um vagão de primeira classe; todos os outros são para a galera, tendo grana ou não. E fizeram a mesma coisa para a educação. O acesso à educação chegou em todo mundo, não só em quem é rico, mas também em quem é pobre. E aí, não tem jeito. Se você tem infraestrutura e educação para todos, o país vai se desenvolver.
Dado – Na minha opinião, falta uma coisa nessa equação. Como é que eles estão em relação à sustentabilidade?
Ronaldo – Esse ponto é importantíssimo. A China pagou um preço muito alto por esse desenvolvimento rápido. A economia chinesa saiu de uma economia agrária e virou uma economia industrial e, agora, estão entrando numa economia de informação. Mas essa economia industrial poluiu o país inteiro, destruiu rios e o lugar onde as pessoas vivem. Em Pequim, por exemplo, durante muitos dos dias do ano você não consegue ver o sol, porque tem uma camada de poluição tão espessa que o sol fica escondido. Como o preço que eles pagaram foi muito alto, nos últimos seis anos houve uma guinada no sentido de economia verde, e hoje, por incrível que pareça, a China está liderando o mundo em economia verde, investindo em carro elétrico, painel solar, mudando as regulamentações ambientais – fábrica que jogava dejeto em rio agora ou é multada, ou é fechada, e tem que cuidar de reciclagem, de economia circular, e assim por diante. Provavelmente vai levar dez, quinze anos para resolver essa questão, mas o que é importante é que eles perceberam isso, até porque a qualidade de vida das pessoas ficou horrorosa por causa da degradação ambiental. Uma cidade como Shenzhen, no Sul da China, por exemplo, tem 15 mil ônibus, todos são elétricos. São Paulo tem 14.500 ônibus, nenhum elétrico. Todo táxi lá é elétrico. Caminhão de lixo elétrico, carro de polícia elétrico… Isso é visível a ponto de você ir às cidades chinesas e tomar um susto por causa do silêncio do tráfego, porque carro elétrico não faz barulho. Para nós, ocidentais, é até perigoso, porque nos acostumamos a nos orientar para atravessar a rua pelo som, e lá você anda e tem cinquenta carros e nenhum barulho. Isso chama muita atenção. Vai resolver o problema de imediato? De jeito nenhum. Mas pelo menos eles deram uma guinada e estão acelerando no sentido de tecnologias e infraestrutura verdes.
O Brasil deveria ser o líder mundial em tecnologia verde. Não existe razão para não sermos. Fomos muito bem com o etanol, e tivemos um papel importante. Mas estagnou, e uma das razões para isso também foi o pré-sal. O pré-sal pode ter seu lado bom, existem mil análises, mas um efeito colateral dele que provavelmente vai ser alto é que ele nos fez desinvestir na economia verde e desestimular o país a lidar com ela, sendo que poderíamos liderar no mundo todo essa discussão.
Dado – Com certeza. Obviamente, um erro estratégico terrível, que vai ter que ser corrigido rapidamente. Quem sabe aproveitamos esse momento e fazemos esse movimento pela consciência, e não pelo sofrimento, como pode ser que aconteça mais adiante.
Ronaldo – Pois é, foi o que aconteceu na China. Eles precisaram sofrer para mudar.
O brasileiro é um povo que quer botar para quebrar no sentido positivo, um povo empreendedor, criativo, indomável, e isso é muito bom. Como você falou, estamos num momento muito aquém do que poderíamos estar para permitir essa criatividade. Estamos buscando botar a culpa no outro, dizer quem é o culpado. E sempre que você pergunta quem é o culpado, você gasta energia que poderia estar investindo para criar caminhos, soluções, e assim por diante. Por isso, quando eu falo em construir infraestrutura para todo mundo, eu realmente acho que, se conseguirmos integrar mais gente na participação na cultura, na criatividade, etc., podemos dar um salto como país. Precisamos aprender a transformar ideias em produtos e serviços. Hoje, o Brasil, como país, sabe muito bem transformar recursos naturais em produtos e serviços derivados deles, mas ainda não conseguimos transformar ideias – sejam ideias culturais, científicas, e assim por diante – em produtos e serviços. E não precisa ser ideia grande; pode ser ideia pequenininha também. Pequenos conhecimentos que as pessoas têm na sua vida cotidiana podem gerar ideias de serviços e produtos novos. Quando conseguirmos fazer isso, acho que nos desenvolveremos muito rápido. Estamos em um momento derrotista, mas vai passar.
Dado – Fico feliz de ouvir sua visão, porque é muito fácil olharmos a realidade com maus olhos. Você olha para o potencial, para o que pode ser. Você vê ali a quantidade de sementes que tem e que estão prontas para brotar, e é só trabalhar bem isso. Eu super concordo com você e acho que temos que brigar menos, apontar menos o dedo um para o outro, tentar nos unir. Como fazer isso? Está todo mundo brigando tanto. Na política também. Sinceramente, acho isso um desperdício de energia. Enquanto estivermos desunidos, essa coisa não rola.
Ronaldo – Concordo. Mas vai passar. A internet teve um papel muito negativo nesse processo, e acabou sendo utilizada para incutir medo e raiva na cabeça de muita gente. Estamos vivendo, no Brasil, nos últimos quatro anos, campanhas massivas de desinformação, e essas campanhas têm por base provocar esses sentimentos muito básicos nas pessoas, como medo, raiva, insegurança. E a pessoa, quando está com medo e raiva, desenvolve uma visão em túnel, só enxerga o que está imediatamente na frente dela e perde a visão periférica. A pessoa que entra nesse estado só se preocupa com coisas muito imediatas, fica paranoica, e começa a responder a estímulos que se relacionam com esses sentimentos muito básicos. Mas eu acho que essa onda de medo e raiva, essa neurose coletiva que a internet ajudou a inocular no nosso país, está começando a regredir.
Dado – Quais são os sinais que você está vendo? Ou existe algum trabalho efetivo sendo feito nessa direção?
Ronaldo – Pior é que não. Ela não regrediu por nenhum antídoto, nenhum remédio. Ela está começando a regredir por um esgotamento das ferramentas que são usadas para promover essa inflamação. Nos últimos quatro, cinco anos, essas campanhas de desinformação, no WhatsApp, nas redes sociais, robôs, etc. realmente conseguiram inflamar as pessoas, e agora já estão começando a perder o efeito. As pessoas já não estão mais tão suscetíveis a esse tipo de inflamação. Não porque elas mudaram, ou porque houve um remédio, mas porque essas ferramentas estão esgotando sua capacidade.
O brasileiro médio, hoje, recebe no WhatsApp todos os dias de 50 a 200 conteúdos novos que são uma mistura de violência com política e com pornografia, justamente para instigar esses sentimentos muito básicos, que deixam a pessoa nervosa ou com medo, e assim por diante. E o que está acontecendo é que, depois de um tempo, esse ecossistema está começando a perder efeito.
Dado – Existe alguma forma de regular isso sem perder a liberdade, que é a beleza, na minha opinião, de toda a internet?
Ronaldo – Nesse momento, eu estou envolvido até o último fio de cabelo no debate sobre o projeto de lei das fake news. E a minha preocupação, Dado, é exatamente a sua. Como é que regula isso sem afetar a liberdade de expressão, que não pode, em hipótese alguma, ser afetada? Eu me posicionei muito forte contra o texto original do projeto, porque estava perigoso para a liberdade de expressão. Na minha visão, o único jeito de combater essas fontes de inflamação não é combater as folhas, mas a raiz, de uma vez só. E como é que se combate desinformação? Com mais informação. Por exemplo, em vez de combater o conteúdo, devemos combater o financiamento oculto a esse conteúdo. Fazer um follow the money. Não podemos punir uma pessoa por falar alguma coisa na internet, mas podemos punir quem oculta patrimônio ou recursos que são usados sem transparência para mover campanhas de desinformação. Falar besteira e desinformação, todo mundo fala, é da natureza humana, é fofoca, etc., e isso não tem nenhum problema. O problema é ir do amador para o profissional. O amador sempre vai existir; agora, o profissional, que coloca dinheiro, que movimenta campanhas com robôs, compra engajamento, monta designs e bunkers com designers para produzir conteúdo violento, pornográfico, o dia todo, para depois propelir isso com grande alcance, às vezes falando para 50, 60 milhões de pessoas, isso depende de dinheiro, porque falar com muita gente sempre é caro, não importa a mídia. É caro se for na televisão, e é caro se for na internet. Falar com 80 milhões de pessoas sempre vai ser caro. Então essas campanhas massivas de desinformação têm muito dinheiro por trás, e o único jeito de combatê-las sem afetar a liberdade de expressão é follow the money, siga o dinheiro. Esse é o único jeito. Agora, qualquer um fala o que quiser. O que não pode é, de forma oculta, você financiar uma rede de laranjas, intermediários e robôs e uma série de coisas e, como resultado disso, espalhar desinformação para 50 milhões de pessoas. No mínimo, você tem que fazer isso de forma transparente, assumindo a responsabilidade. Se não fizer isso, pode ser punido.
Dado – Parabéns, você está trabalhando em cima de uma coisa que é fundamental. Eu não imaginei que tivesse alguém se ocupando disso, e fico muito feliz que seja justamente você.
Ronaldo – Nas últimas duas semanas, estou o tempo inteiro em cima disso. Agora, tem que fazer pressão, porque, para fazerem coisa errada lá no Congresso, não custa nada.
Dado – Fala para nós como podemos pressionar que pressionamos.
Ronaldo – Tem que pedir follow the money. Não mexam com a liberdade de expressão. Quem financia campanhas massivas, com robôs, etc., é que tem que ser punido. Essa é a forma. Precisamos de uma lei simples, que tenha dois parágrafos. A lei original estava com oito páginas. Um mastodonte horroroso. Com esses dois parágrafos, resolvemos o problema, em boa parte.
Viviane Sassen em Visible/Invisible, no Palácio de Versailles
Sou feita de narrativas. Encanta-me o processo de construção, sem uma ordem que exija a materialidade da história, rumo ao ponto final. É pelo caminho que amarro os fios e, muitas vezes, desfaço a trama para recomeços.
Visitando o espaço que habito, andei em busca de uma referência que guardasse em si esse percurso de produção. Como visitante nova em ambiente já conhecido, propus-me a reinventá-lo em novas significações. Ali estava meu cesto de novelos de lã. Vinha de antigas grandezas, velhas matrizes de família, hábito que herdei, em meu projeto de ser tecelã.
Aprendi, em um momento de escolha, que ele valeria como Presente a quem pudesse recebê-lo, se mergulhasse comigo, em estrutura profunda, na polissemia do material a ser transformado em matéria poética. Confesso que, em tempo de ficcionalidade, o ritmo rege esse percurso, a romper latências para um vir a ser.
De tons amarelo mostarda, o novelo continha nuances que me punham em movimento. Apostei na textura da lã, a aguçar o tato de quem o tomasse em suas mãos. Em correspondência, à maneira de Baudelaire, outros sentidos aflorariam sinestesicamente. Havia um desejo incontido de tornar meu interlocutor um ser de poesia, a recompor os fios de suas velhas novas narrativas.
Nesse trabalho de desatar possíveis nós, eu ofereço meu Presente a quem possa descobrir comigo a insólita experiência de destecer, para recompor o material, com vistas a novos desafios e à espera. Ele leva parte do meu acervo, mas ainda há muito de meadas no cesto da minha infância. Caminhar às nascentes dos sentidos, sem chegar à ponta do novelo, é também lição de Kaváfis em sua Ítaca, um convite a fruir o meio de tantas viagens.
O melhor que tenho hoje a oferecer, portanto, partindo da minha CASA para o Outro – para os Outros –, é a certeza de que todo Presente leva a atemporalidade em sua matriz. Em uma perspectiva cubista, diante de tantos ângulos para olhar a cena cotidiana, há, em mim, um convite manifesto para não perdermos a beleza de Troia a Ítaca!
Marisa Giannecchini Gonçalves de Souza é doutora em Semiótica e Estudos Literários (Grego Clássico) pela UNESP – Araraquara
Embora todo mundo utilize os termos “sexo” e “gênero” como semelhantes, eles têm significados bastante diferentes. Na verdade, eles não concordam necessariamente.
O gênero é baseado em normas aceitas culturalmente – atitudes ou comportamentos que são tipicamente atribuídos a homens ou mulheres. Já a identidade do gênero tem a ver com o senso interior de quem nós somos. As pessoas expressam seu gênero, geralmente, por meio da forma como se vestem ou se comportam.
O sexo é determinado na concepção, pelos genes que cada um de nós herda do nosso pai e da nossa mãe. Ele é visível desde o momento da gravidez.
Os cromossomos detêm o sexo. Eles são as pequenas peças do DNA que falam para as nossas células o que fazer. O ser humano tem 23 pares de cromossomos. Um desses pares contém os cromossomos do sexo. Eles chegam de duas formas: X e Y. As mulheres têm dois X. Então, quando elas partilham a metade de seu par com o feto, o cromossomo que oferecem é sempre o X. Os homens, por sua vez, têm cromossomos X e Y. Então, se o pai partilhar o cromossomo X com a criança, será uma menina (XX); se partilhar o cromossomo Y, será um menino (XY). Ou pelo menos esse é o caso mais usual.
Ainda em relação ao sexo, investigadores compreenderam que a biologia pode ser mais complexa que apenas afirmar que é um “menino” ou uma “menina”. Por exemplo, algumas pessoas detêm dois cromossomos X misturados com fragmentos de cromossomo Y. Essas pessoas se desenvolvem com um aspecto masculino, embora a presença dos dois cromossomos X signifique que são fêmeas biologicamente.
Isso fica ainda mais complexo quando a identidade do gênero entra em consideração. Para mais de 99% da população mundial, a identidade do gênero e o sexo biológico estão em consonância. Essas pessoas são denominadas de cisgênero (o prefixo em latim, cis-, significa “do mesmo lado”). No entanto, uma pequena amostra da população experiencia uma incompatibilidade entre sexo e gênero. Algumas dessas pessoas crescem sentindo que não têm o gênero com o qual o resto do mundo as identifica (inclusive seus familiares e médicos). Essa experiência se chama transgênero – termo distinto da orientação sexual, independentemente de a pessoa sentir atração por machos ou fêmeas.
Os transgêneros podem, estranhamente, parecer machos ou fêmeas, mas, por razões que ainda não são claras, eles se sentem do sexo oposto. Alguns podem mesmo sentir que são dos dois gêneros.
Durante a gravidez, fatores genéticos influenciam o desenvolvimento do embrião à medida que ele se torna um feto. Uma pessoa XX (menina) desenvolve, usualmente, os ovários. Uma pessoa XY (menino) desenvolve os testículos. Nos indivíduos com cromossomos XY, existe um gene no braço do cromossomo Y chamado SRY. Esse gene assinala o desenvolvimento dos testículos. Quando o SRY não está presente, os ovários se desenvolvem, e assim surge a anatomia feminina. Se os testículos se desenvolvem, eles irão produzir um hormônio masculino chamado testosterona. Esse hormônio instrui o corpo a desenvolver os genitais masculinos. Ele também dita o desenvolvimento de ossos maiores, uma estrutura do cérebro única dos homens, entre outras características físicas.
A biologia básica por trás de como os cromossomos e os genes ditam a anatomia masculina ou feminina do corpo humano é há muito conhecida. Mas os investigadores continuam pesquisando sobre a complexidade da determinação do sexo humano e ainda estão distantes de saber o que determina realmente o gênero.
“Até que eu saiba, nenhum estudo foi conclusivo sobre de onde a nossa identidade sexual vem” – diz Kristina Olson, da Universidade de Washington em Seattle.
Como psicóloga de desenvolvimento, Olson estuda como as pessoas se desenvolvem e mudam à medida que crescem, da infância ao estado adulto. Algumas pessoas especularam que os genes, o ambiente ou o nível de hormônios podem desempenhar um papel importante na determinação do gênero. Olson, por sua vez, fala: “Eu não conheço nenhum estudo que mostre um ou outro, ou a combinação de hormônios que determina o gênero”.
Por muitos anos, cuidadosos observadores identificaram que crianças em fase inicial começam a expressar fortemente sua preferência por determinados brinquedos, cores e roupas. No mesmo momento, as crianças começam a expressar sua identidade de gênero.
“O que nós sabemos sobre o desenvolvimento típico do gênero é que crianças de 2 ou 3 anos sabem se são meninas ou meninos”, diz Olson.
Na mesma idade, muitas crianças transgênero irão também expressar sua identidade. Porém, nesses casos, será diferente do esperado. Olson fala: “A maioria das pessoas acha chocante que uma criança transgênero possa saber que é de um determinado gênero tão cedo.” No estudo de Olson, fica claro que a identidade de gênero aparece na mesma idade para crianças transgênero e cisgênero.
Minha ideia sobre o Feminino é muito pessoal e delicada, pois faz parte da minha vivência como mulher. Ainda que não tenha nascido mulher, me tornei mulher.
Tenho certo cuidado em não contextualizar de forma errônea o campo lexical da palavra Feminino: feminismo, feminilidade, feminicídio, feromônio, e por aí vai…
Como a maioria das mulheres trans, a tendência ao feminino e o descobrimento do universo feminino são fortes desde criança e marcados por ações positivas e negativas. Sempre sonhei em ser mulher, em viver como mulher. Hoje, sou realizada em um mundo que ainda não vê isso com bons olhos. Mas vivo, e agradeço a Deus por ter conquistado meu lugar ao sol.
Acredito que, sendo uma professora com 23 anos de magistério, só tenho a contribuir, valorizando o universo feminino, que aos poucos vem ganhando um espaço merecido – e tomara que melhore.
Para muita gente, hoje em dia, o universo do feminino não se limita apenas a mulheres heterossexuais. Vejo, já por algum tempo, homens héteros femininos, lésbicas femininas, gays andróginos, travestis e trans. Sinto na pele a dor e a delícia de ser o que é uma trans – sim, uma trans feminina, que adoro ser no meu dia a dia.
Feminino, para alguns, ainda remete ao sexo frágil. Não no meu caso. Para ser quem sou, batalho todo dia, para mostrar que estereótipos negativos são de pessoas de pensamento fraco. Biologicamente, não tenho cromossomos XX, mas, na prática, meu modo de ser mostra o quanto sou feminina.
Adoro ver o lado feminino do ser; todo mundo tem um lado feminino. O melhor de tudo é quando você faz uso da feminilidade, e, quando o resultado dá certo, fico em êxtase. Tão em voga atualmente, o feminismo segue sempre lutando pelos direitos das mulheres e sendo interpretado de várias maneiras.
Particularmente, sou mais o feromônio, usado tantas vezes, de várias formas. A minha fica nos cinco sentidos, literalmente: tato, audição, visão, paladar e olfato. O melhor jargão ou frase de impacto para resumir minha vida: “Aceita que dói menos”.
As pessoas tendem a descrever materiais flexíveis e facilmente transformáveis como o plásticos. A maioria desses materiais é feita de polímeros, geralmente criados a partir de combustíveis fósseis. Mas até mesmo comportamentos podem ser flexíveis e mutáveis. Nesse sentido, eles também podem ser considerados plásticos.
Paul Vasey trabalha na Universidade de Lethbridge, em Alberta, no Canadá. Como psicólogo comparativo, ele estuda os comportamentos dos animais, e percebeu que, em termos de sexo biológico, estes geralmente não são rígidos ou imutáveis. Alguns comportamentos parecem ser plásticos.
Ao fazer comparações entre as espécies, é importante levar em consideração algumas diferenças importantes, Vasey observa. Por exemplo: “Quando você tem uma identidade, você precisa ter um conceito de si mesmo”. Na verdade, a identidade e o gênero estão intimamente conectados nas pessoas. Pode ser quase impossível desligar um do outro.
Porém, com exceção talvez dos grandes primatas, diz Vasey, há muito pouca evidência de um conceito de “si mesmo” nos animais. Isso significa que eles não sabem que estão agindo como machos ou fêmeas. Eles simplesmente manifestam seus comportamentos típicos – e às vezes não típicos – do sexo ao qual pertencem. Apesar disso, há muitos exemplos de condições de intersexualidade no reino animal. Esses sinais de ambos os sexos podem aparecer tanto nos comportamentos como nos traços físicos.
Por exemplo, o livro Biological Exuberance, de 1999, aponta que mais de 50 espécies de peixes de recifes são capazes de inverter seu órgão sexual (ovários que produzem óvulos e testículos que produzem espermatozoides). Isso se chama transexualidade. Ela pode afetar bodiões, garoupas, peixes-papagaio, peixes-anjo e outros. Os peixes que começam a vida como fêmeas, com ovários em pleno funcionamento, podem sofrer uma mudança radical e, voilà, passam a ter um sistema reprodutor masculino. Mesmo com a mudança de sexo, os machos e as fêmeas continuam capazes de se reproduzir.
Diversos tipos de aves, como parulídeos e avestruzes, também podem exibir um mosaico de características masculinas e femininas. As cores, a plumagem, o canto e outras características de um sexo podem aparecer em membros do sexo oposto.
Pesquisadores já documentaram condições de intersexualidade em ursos pardos, negros e polares. Em certas populações, uma pequena percentagem de fêmeas tem genitálias que se assemelham às masculinas. Algumas delas têm filhotes, apesar de parecerem machos. A intersexualidade também apareceu em babuínos, cervos, alces, búfalos e cangurus. Ninguém sabe bem por que, mas, ao menos em alguns casos, poluentes na água – como pesticidas – criaram condições claramente anormais. Por exemplo, biólogos encontraram óvulos nos testículos de alguns jacarés e peixes machos que haviam sido expostos a certos pesticidas.
O que são disruptores endócrinos?
Em alguns experimentos, a exposição a pesticidas chegou a transformar sapos geneticamente machos no que pareciam ser fêmeas. Estas eram capazes de ter uma ninhada saudável – embora sempre composta só por machos (como eram ambos seus pais originalmente). Em outros casos, condições de intersexualidade surgiram em cenários completamente naturais.
Talvez um dos melhores exemplos da plasticidade sexual venha de um novo estudo sobre rãs europeias. Uma única espécie – Rana temporaria – vive nas florestas entre a Espanha e a Noruega. Uma quantidade aproximadamente igual de machos e fêmeas se desenvolve a partir dos girinos na “raça” norte. Porém, na região sul, outra raça dessa espécie somente gera fêmeas. Todas têm ovários, o órgão que produz os óvulos, mas nem todas permanecem fêmeas. Cerca de metade dessas rãs eventualmente perde seus ovários e desenvolve testículos, tornando-se machos também capazes de se reproduzir.
A raça que inicialmente tem ovários depende de estímulos ambientais para desencadear sua mudança de fêmea para macho. Pesquisadores registraram essas diferenças nas rãs na edição de 7 de maio de 2008 do periódico Proceedings of the Royal Society B.
No meu quarto tem um espelho. Eu olho de frente e, em vez de uma, são duzentas, duzentas e vinte imagens. Vejo as vencedoras e as perdedoras, as belas e as cegas, as certezas e o futuro. Vejo quem eu nem reconheceria. Uma senhora de noventa e sete anos tenta pegar um copo d’água, as mãos finas mal alcançam. As mãos finas são as minhas. Vejo ainda uma criança, loira. Espera. O que meu nariz está fazendo na cara dela? Ai, se eu pego essa menina. E de pensar que uma das duzentas, duzentas e vinte, a pior delas, seria capaz de maltratar uma criança.
Lá no fundo estão a enfermeira, a policial, a louca e a assistente social. Todas conversam com a que queria maltratar uma criança. Facilmente a dissuadem. A executiva politicamente correta, bem na frente, aplaude. Eu tenho medo de tanta gente. Eu tenho medo das que duvidam de mim. Eu tenho medo das que me incentivam com segundas intenções. Eu tenho medo de mim. Preciso saber falar tantas línguas que até do código masculino preciso entender (umas quarenta, quarenta e cinco imagens são de homens). Eu olho no espelho todo santo dia e nenhuma delas parece morrer. Pelo contrário, algumas acreditam em espíritos, o que só multiplica a multidão multidisciplinar. Duas ou três rainhas (sendo uma africana), guerreiros, Mata Hari, um médico chinês, camponeses, Cleópatra e uma etrusca sonhadora usando brinco de ouro. Tento buscar a escritora, o guru, o anjo decaído, a centrada, a dançarina, a deusa do prazer. Eu tenho medo de não agradar os que tanto gosto. Sei que todos estão lá e mando mensagens. Um beijo, uma piscada, uma oração, um poema, uma dúvida. À noite, apago a luz e meus sonhos continuam conversando com o bendito especulador. O que me vê. O espelho. O que me dá medo.
Em 2002, a atriz Regina Duarte provocou polêmica ao aparecer no programa eleitoral do então candidato José Serra dizendo que sentia medo diante da possibilidade de ver o Lula lá e o Brasil tragado por um turbulento retrocesso econômico. Assim como ela, a parcela da sociedade que pode distinguir impressão de estabilidade com estabilidade de fato sofria a mesma sensação. Em função de cinco ou seis crises estrangeiras, o Brasil estava economicamente triste, enfermo, mas, diante do quadro internacional, todos seus índices estavam melhorando. Quer dizer, o remédio amargo que é o tripé do Plano Real estava funcionando: câmbio flutuante, metas de inflação e responsabilidade fiscal.
Levando em consideração que o PT votou contra o Plano Real e contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, qualquer um sentiria medo, e notadamente o mercado financeiro, que, apavorado com a iminente vitória da oposição, sacava seus investimentos brasileiros, agravando a situação. Mas então veio a Carta aos Brasileiros, na qual o ora postulante Lula procurava tranquilizar os esclarecidos, assumindo que muito do que dizia não passava de bravatas e que não mexeria na economia.
Cumpriu o que disse, mas daquele jeito que é possível aos bravateiros. Digo, como nunca foi de oposição, mas sempre “do contra”, quando virou situação ele não sabia apontar um norte para o Brasil. Simples: quem é contra tudo, não é a favor de nada. Assim, uma vez lá lhe restou chamar um tucano banqueiro para o Banco Central e determinar que tudo continuasse como antes.
O resultado é sabido e, depois de oito anos, está refletido na estratosférica popularidade do presidente. Quem disser que a economia está ruim vai arranjar briga com o povo brasileiro, que se transformou em classe C, trocou a geladeira, comprou o primeiro carro e até foi dar um passeio de navio. Porém, com estaleiro construído pelo Plano Real, e com o mundo navegando em mar de golfo (para usar figuras náuticas em homenagem a tantos cruzeiros turísticos), o governo poderia ter colaborado na armação de um transatlântico; porém, tudo o que conseguiu foi entregar uma lancha. Branquinha, bonitinha, satisfatória, mas apenas uma lancha, sem autonomia nem capacidade para nos levar adiante.
Para continuar em termos marinheiros, é só olhar para os portos para ver que não vamos longe: um navio que chega em Santos espera, em média, cinco dias para atracar. Por terra, as estradas do país estão se esfarelando, e a malha ferroviária foi comida pelas traças. Os aeroportos mais parecem arenas do escárnio, sem a menor capacidade de acompanhar o crescimento econômico como está. E, por falar em arenas, é bom sempre lembrar que ainda há quem comemore a vinda da Copa do Mundo e das Olimpíadas. A indústria regrediu um século e se contenta com o papel de fornecedor de matéria-prima para o resto do mundo.
Hoje, às vésperas de outra decisão política, se perguntarem à Namoradinha do Brasil se ela continua com medo, imagino que a resposta seja afirmativa, ainda que a raiz tenha mudado. Assim como todos nós, ela deve querer um Brasil maior e melhor, mas não teme um retrocesso econômico para já. Até porque, quando começam a brincar com a democracia, defendendo controle da mídia, osculando ditadores nos sertões e alhures, forjando dossiês, quebrando sigilos financeiros, debochando das leis vigentes, os mais experientes se apavoram e se distraem de medos menores, porque já viram o filme e sabem que ele não é bonito. Ela própria experimentou a patrulha ideológica de muitos colegas, que depois tiveram que se redimir – mas não se redimiram – quando dos escândalos do mensalão, dos dólares da cueca, dos aloprados, dos churrasqueiros.
O mundo gira, e quem antes se fingia de vítima de preconceito agora semeia o medo para impressionar os mais humildes. Como tudo que há de bom por aí é coisa nova, “nunca antes na história deste país” experimentada, o Bolsa Família não é mais filho do Bolsa Escola, e foi inventado pelo governo atual. Assim sendo, pode acabar de uma hora para outra caso o povo não vote em quem o Lula mandar. Mas, afinal, quem tem medo… do lobo mau?
Aos seis anos de idade, ainda não nos vestimos da vida. Nossa pele fresca não aceita o que é tecido por olhos cansados, o que é costurado por linhas retas ou bordado em ponto cruz. As roupas são feitas para sujar, os shorts para molhar, os chapéus para perder e as meias para encardir. Se é para cobrir a pele, banho de esguicho cai como uma luva; banho de piscina, como um cobertor. Só banho de chuveiro que… Bem… fica para depois.
Aos seis anos, a roupa é apenas a expectativa quebrada do presente de Natal. É apenas o que pinica no piquenique. A roupa rouba tempo da criança rouca: tem de colocar cachecol, tem de se encapotar. Mas não é toda roupa que cai mal aos seis anos. A menina desta história, por exemplo, foi inspirada por motivo nobre: entre o jantar e a hora de dormir, resolveu se vestir de princesa. Na falta de uma fada madrinha, se virou com toalhas e panos de prato. Até um lençol pequeno, velhinho dos seus tempos de bebê, virou fazenda de renda. Ela estava de frente para o espelho e ia segurando todos os tecidos juntos longitudinalmente no seu corpo. As camadas iam engordando a saia, que já se parecia com aquelas ilustradas nos livros dos irmãos Grimm. Para segurar? O cinto da mamãe, claro. Deu um pouco de trabalho para colocar, mas ficou lindo. Em cima, sua blusinha de manga bufante, a mesma que odiava na hora das festas. Nem a madrasta, nem a Branca de Neve, nem qualquer outra concorrente da vizinhança viram alguém mais bela do que ela.
A satisfação pelo recém-criado traje a encorajou a mostrar a obra nos salões reais. Bastava descer as escadarias e encontrar o rei, a rainha e o bobo da corte, ou seja, o amigo chato que o pai insistia em levar para jantar (não, pensando bem, acho que os bobos, em sua sã inconsciência, jamais seriam coniventes com atos indelicados). Ela, a herdeira do trono. Ela, tocada pelo condão de sua própria imaginação. Ela que, em estado de graça, após finalmente encontrar algum prazer na vestimenta, flutuava pelos degraus, pé ante pé. Os sons dos talheres e das risadas empilhavam-se pesadamente como as paredes das muralhas. Mas, ainda assim, a corajosa infanta prosseguiu.
Ao vislumbrarem a figura ao pé da escada, os nobres se espantaram, minimizaram as euforias, demonstraram até uma certa admiração. Nem o monarca se furtou de elogiar a plenos pulmões. Na face norte da mesa, foi a vez da rainha pedir: “Uma voltinha, por favor”. Uma voltinha? Claro, por que não? Uma voltinha e… Ó, meu Deus! Som abafado. Reviraram-se os olhos. Reviravolta. Quebrou-se o encantamento. Era a maldição da bruxa que esqueceram de lhe avisar. A voltinha. Depois da pausa, risadas estrondosas, desrespeitosas, e, de princesa mais bela, ela passou à gata borralheira, antes mesmo da meia-noite.
O movimento revelou que sua saia não tinha parte de trás. Nem uma toalha, nem um pano de prato. Nada. Esqueceu do seu verso. O único tecido ali era o da calcinha de algodão com desenho de maçã. A princesa exposta. A princesa deposta em sua inocência. Dura lição aos seis anos. O lado desnudo, despojado, desprotegido pode bem se transformar em motivo de chacota. Ainda ao som dos comentários, os últimos antes de outro assunto qualquer, ela tirou rapidamente os panos e toalhas e se descobriu sozinha. Nua perante a vida, parada e perplexa no reverso de sua devoção.
Muito embora pelados não sejamos iguais, vestidos somos mais diferentes. Mais do que proteger, a roupa serve para distinguir cultura, estilo, estado de espírito, religião, posição social e até política. Como nos antigos clãs ingleses, nos Estados Unidos os membros do partido democrata são identificados pelas gravatas desenhadas, enquanto os republicanos preferem as listradas, chamadas regimentais. Aqui no Brasil, as militâncias dos principais partidos procuram repetir as cores de suas bandeiras nas camisas que vestem no dia a dia: petistas em vermelho, tucanos em azul.
Mas, se no vestir eles nunca combinam, o mesmo não se confirma na hora de despirem-se. Acalme-se o leitor da Amarello: este cronista não tem pendores voyeurísticos, ou pelo menos não em relação a uma classe fisicamente tão pouco atraente. Quero antes é tentar uma metáfora para a transparência, visto que a única unanimidade recente do cenário político nacional é a preferência pelas doações ocultas para campanhas políticas.
O raciocínio mais óbvio que vem com essa notícia é que são todos uns sem-vergonhas, corruptos, bandidos. Porém, como a gente sabe que em qualquer classe haverá pelo menos um membro decente, fica a dúvida de por que a unanimidade ocorre justamente quando é este o assunto.
A verdade, quem dizer que sabe, estará mentindo. No máximo temos palpites, e o meu é óbvio: nem só de ideologia se faz política, e a dose de pragmatismo necessária para enfrentar uma campanha eleitoral dentro do sistema vigente inclui os tortuosos caminhos do caixa dois. É claro que um ou outro candidato a cargo legislativo consegue fazer tudo direito e cumprir a lei, mas, numa campanha majoritária, isso seria impossível. Se alguém acredita que é possível alcançar o segundo turno de uma eleição presidencial gastando menos de cem milhões de reais, como declaram os que chegaram lá, é porque um número tão alto passa a ser abstrato e comportar qualquer coisa, feito prêmio de loteria.
Uma vez diante da realidade de custos financeiros de uma disputa eleitoral, algumas dúvidas suscitam no eleitor: de onde vem/para onde vai essa dinheirama? Comparado ao salário do cargo, o “investimento se justifica”? Quer dizer, dá retorno? Essas são as perguntas mais comuns, que estabelecem a enfermidade, mas não contribuem para o tratamento. O que deveríamos nos perguntar é como fazer para extinguir a doença.
Uma das faces mais conhecidas da nudez é a vizinhança. Muitas das vezes, mal sabemos o nome de um vizinho, mas temos noções sobre seu padrão de vida, hábitos sociais, atividade profissional, preferências alimentares e até frequência sexual, e vice-versa. Isto é: os vizinhos têm as mesmas noções sobre as nossas vidas. Ninguém pode fugir. Pior: quanto mais se tentar fugir, esconder, disfarçar, agachar para não ser percebido, mais a bunda aparece e, com efeito, mais vão reparar. É como ir vestido a uma praia de nudismo.
Não seria esta a chave para a nossa representação parlamentar? Digo: conhecer os políticos como conhecemos os vizinhos, de longe e de perto, com ou sem intimidade, mas acesso fácil garantido na esquina, na banca, praça, padaria ou pela janela? Assim poderíamos acompanhar e fiscalizar o trabalho deles, cobrar ações e propor ideias, aumentando a participação popular na vida política.
É o que querem os defensores do voto distrital, sistema em que os políticos candidatos ao legislativo se conteriam em fazer campanha respeitando os limites do distrito onde moram e são conhecidos, portanto mais sensíveis aos anseios e carências das pessoas. Se quiser saber da Lapa, não pergunte a um moqueiro. Como pregava o governador Franco Montoro, que a história posicionou acima das picuinhas politiqueiras, “ninguém vive na União ou nos estados: as pessoas moram nos municípios”. Numa megalópole como São Paulo, as pessoas vivem em seus bairros, e é deles que podem saber; portanto, é neles e por eles que devem votar.
E alguém há de perguntar: mas o que tem isso com o financiamento de campanhas políticas? Ora, é só fazer a conta: quanto vai custar um café na padaria da esquina, na cidade vizinha e do outro lado do estado. Pior: de tão alto, esse custo só se justifica na hora da colheita dos votos, de modo que representante e representado serão ilustres desconhecidos que só se encontram a cada quatro anos, anulando a participação popular e enfraquecendo a democracia – que, assim como os naturalistas, precisa estar nua para estar plena. Para ela, um boné já é disfarce.
Se a globalização vem afetando, de modo crescente, todas as áreas da vida moderna, na esfera da arte não poderia ser diferente. Hoje, a economia sem fronteiras está para a arte contemporânea assim como o nu, a paisagem e o mito estiveram, um dia, para o neoclassicismo, o impressionismo e a vanguarda.
Sempre vista como a antítese da “coisa banal”, arte era algo que não podia ser pensada apenas para o comércio ou o consumo comuns, mas se até há pouco tempo o envolvimento das empresas com esse mundo era um tanto obscuro, a ascensão de uma cultura cada vez mais movida a commodities mudou completamente esse cenário.
É claro que isso não se deu de uma hora para outra. As empresas atentaram para o fato de que associar sua marca a produtos culturais e produtores de cultura poderia ser um negócio lucrativo. Essa mudança aconteceu em todo o mundo, a começar pelo fato de que museus, que antes eram sustentados com verba pública, passaram a ser patrocinados por empresas privadas. É evidente que isso altera os critérios de seleção da coleção e das exposições e influi no modo como os artistas vão desenvolver seu trabalho. E além disso, aqui e no resto do mundo, as instituições passam a ser também uma opção de entretenimento público, com suas lojas, restaurantes etc.
MUDANÇA CONCEITUAL
Através dos tempos, a arte vem sendo considerada pela maioria dos colecionadores e artistas como um bem de consumo de luxo que está acima das preocupações meramente comerciais, e, até as duas últimas décadas, poucos artistas adotavam diretamente o dinheiro como tema.
Marcel Duchamp foi um dos primeiros artistas a discutir a validade financeira da obra de arte. O artista pagava seu dentista com cheques que desenhava de próprio punho, ou emitia títulos financeiros igualmente produzidos a mão, que seriam descontados para uso do dinheiro num esquema de jogo em cassino.
Outro que abordou o tema do significado da arte foi Yves Klein. Artista conceitual do pós-guerra, Klein expôs, em 1957, pinturas idênticas a preços totalmente diversos para ridicularizar a ideia da arte como algo que pode ser vendido.
Já o influente artista alemão Joseph Beuys criou uma mitologia em torno de si mesmo, lançando o artista no papel de xamã. Extremamente politizado, Beuys acreditava que o artista-xamã seria capaz de amplas transformações sociais. Em seus desenhos, performances e instalações escultóricas, ele utilizou materiais diversos, como banha, feltro, mel, folha de ouro e carcaça de animal. Beuys insistia em apresentar a teoria “Kunst=Kapital” (arte = capital), ou seja, a arte com seu próprio poder de persuasão e valor.
Nos Estados Unidos do pós-guerra, críticos como Clement Greenberg observaram o deslocamento inevitável dos artistas em direção ao comércio e à fama e das crescentes quantias de dinheiro e atenção dadas à arte contemporânea: mesmo a mais contestadora das artes era vendável.
Nos anos 1960, os artistas da Pop Art se aproveitavam do furor consumista e dos valores fúteis da sociedade como inspiração para transformar em arte a banalidade do cotidiano e os artigos de consumo. O maior exemplo de todos foi, sem dúvida, o artista e cineasta norte-americano Andy Warhol, e suas imagens mecanicamente repetidas que ficaram conhecidas mundialmente como sua marca. A importância da contracultura para o design e a embalagem de novos produtos começou a ser percebida ao final da década, mas foi nos anos 1970 que a arte começou a ser vista como negócio pelos próprios artistas, que usavam suas obras para contestar museus, galerias e outras instituições de arte.
No boom do mercado de arte dos anos 1980, os artistas se livraram da obrigação de escolher entre ignorar ou criticar o mercado de arte. Até um objeto industrializado, como um aspirador de pó, podia ser recontextualizado e ir parar nos museus como obra de arte. Foi também por este período que as grandes empresas começaram a perceber a vantagem comercial de se aliarem às artes. O apoio às artes se tornou um instrumento para o desenvolvimento de identidades, tanto corporativas como de mercado.
Só para dar um exemplo, a Philip Morris inovou em suas campanhas de marketing, organizando e patrocinando exposições com obras de Roy Lichtenstein, Jasper Johns e James Rosenquist. E outras empresas, como a Louis Vuitton e a Selfridges, estão entre as principais responsáveis pelo lançamento de uma tendência de marketing que remodelou a arte criada e consumida a partir dos anos 1990.
Já no início da década de 1990, o interesse em patrocinar cultura fazia parte da identidade corporativa, das comunicações de marketing e dos assuntos de interesse público visando lucro e retorno sobre o investimento. As empresas passaram a querer associar suas marcas a projetos que iriam interessar a um público de alto poder aquisitivo. A conclusão é a de que, se uma marca está ligada a outra, este fato promove as duas, o que nem sempre acontece somente com publicidade. Mais do que ser ocasionalmente patrocinadoras, o objetivo das empresas hoje é ser parceira, tanto em relação às instituições de arte quanto aos próprios artistas.
ABSOLUT VODKA: UM ESTUDO DE CASO
O caso da sueca Absolut Vodka, nos Estados Unidos, sob a direção de Michael Roux, ilustra os interesses da política cultural corporativa em estruturar as relações sociais em torno do consumo. Ao aliar o patronato das artes, a publicidade e a promoção do estilo de vida, Roux conseguiu transformar a Absolut Vodka em líder das vodcas importadas nos Estados Unidos nos anos 1980 e início da década de 1990. Segundo Richard W. Lewis, em seu livro Absolut Book – The Absolut Vodka Advertising Story, foi Andy Warhol quem sugeriu, em 1985, o emprego de artistas contemporâneos e suas obras em peças publicitárias da Absolut. Por sua pintura de uma garrafa dessa vodca, Warhol recebeu US$ 65 mil, e a empresa teria os direitos de reprodução da obra por um período de cinco anos. Outros artistas, sugeridos pelo próprio Warhol, como Keith Haring, Ed Ruscha e Armand Arman, deram continuidade ao projeto.
Embora uma corrente de artistas bem-sucedidos pense que, em algum ponto de sua carreira, terá que lidar com as forças influentes do poder corporativo e que o investimento de dinheiro para fazer mais dinheiro é um ethos dominante na sociedade moderna, nem todos os artistas contemporâneos estão engajados na criação de obras diretamente relacionadas com a cultura movida a dinheiro. Alguns criam obras que criticam diretamente o sistema corporativo global da atualidade. Afinal, as inadequações de nossa sociedade eternamente vão estimular projetos, fantasias ou simples investidas na direção de outros modos de interação social.
ARTE RELACIONAL
Se nos anos 1990 a arte se caracterizou principalmente por obras que transformavam a interação social em arena estética, um movimento nasceu para, a um só tempo, estimular a relação entre os espectadores e criticar abertamente uma tendência do ser humano a se isolar em casa na companhia da mídia e não de outras pessoas.
Sem medo, alguns artistas adotaram, em seu fazer artístico, uma abordagem do tipo “faça você mesmo”, que dá origem à arte relacional, tendo como principais representantes artistas como Carey Young, Rikrit Tiravanija e Liam Gillick. Sua obra depende de interação social e requer certa presença por parte do usuário. É como se as relações sociais fossem tratadas como um outro meio de expressão artística a ser acrescentado à fotografia, ao vídeo e às instalações.
O argentino Rikrit Tiravanija é considerado um artista relacional. Sua primeira performance, em parceria com Douglas Gordon, foi o Cinema Liberté: Bar Lounge, um projeto realizado no FRAC Languedoc-Roussillon – um centro de arte contemporânea localizado em Montpellier. A instalação consistiu na construção de uma sala temporária de projeção para vídeos antigos censurados e um bar/cafeteria, por onde o público forçosamente passava a caminho da instalação, sem questionar a função do bar como parte da obra de arte ou a da instalação cumprindo uma função de bar.
Através de sua obra, ele queria que o público questionasse a linha que o separa da produção do artista. Na verdade, desde seu tamanho e formato até suas medidas e seus materiais, “tudo havia sido projetado para ser arte”, nas palavras do curador da exposição. A proposta era derrubar barreiras e convencer que a esfera de atividade da arte podia ser facilmente ampliada.
Escultura, instalação, desenho gráfico, curadoria, crítica de arte e contos. Assim como em Tiravanija, o tema que prevalece na obra de Liam Gillick é o desenvolvimento de relações por meio do ambiente. Suas mostras implicam a participação do público em estruturas coletivas abertas. Desde meados da década de 1990, Gillick ganhou fama por seu trabalho de design tridimensional: telas de projeção e plataformas suspensas montadas junto a textos e formas geométricas pintadas diretamente sobre a parede.
Gillick usava materiais como plexiglas, aço, cabos, madeira tratada e alumínio colorido, derivados da arquitetura corporativa. Em sua prática artística, a obra representa o lugar de uma negociação entre realidade e ficção, narrativa e comentário. Além disso, seus trabalhos representam lugares nos quais se deve renunciar, discutir, projetar imagens, falar, legislar, negociar, pedir conselhos, dirigir, preparar algo, e aí por diante.
Para alguns estudiosos do assunto, as grandes empresas regularmente lançam mão do conceito de inovação para associar seus valores aos dos artistas, até mesmo nos casos em que artistas veem suas próprias inovações como antagônicas ao ethos corporativo.
Apesar de sua natureza controversa e radical, a arte criada com base na crítica social pode ser usada tanto pelos artistas como pelas instituições para angariar capital cultural, a credibilidade ou o prestígio que advém de aspirações teóricas ou políticas mais elevadas, e a aura da rebelião vanguardista ou da seriedade intelectual.
Como alternativa à arte que critica o atual cenário socioeconômico que prevalece na sociedade moderna, o uso da interação do público reabilita a presença orgânica e irrefutável da arte que ameaça tornar-se um jogo vazio de signos e objetos pré-fabricados.
A participação do público na obra de arte, temporariamente acolhido pelo crescimento de um ideal democrático que acata seus pensamentos e ações, e valorizando seu potencial de engajamento criativo, minimiza o conceito do artista-gênio. Nas palavras de Rikrit Taravanija, “parece mais premente inventar relações possíveis com nossos vizinhos no presente do que apostar em amanhãs mais felizes”.
Encarando a abstração econômica que torna irreal a vida cotidiana – ou uma arma absoluta de poder do mercado techno –, artistas reativam formas ao habitá-las, transformando propriedades privadas, direitos autorais, marcas e produtos em formas destinadas a museus e assinaturas.
Se a reapropriação de tais formas é tão relevante hoje, é porque esses símbolos nos levam a considerar a cultura global como uma caixa de ferramentas. Ao invés de nos prostrarmos diante de obras do passado, podemos tirar vantagem delas e trazer à luz essas novas relações.
Ao se modificarem arte e artista, bem como de certo modo o público, pode-se dizer que a cultura corporativa traz duplo benefício para a sociedade global, além, é claro, de representar mais um nicho de mercado para as empresas: a ampliação do papel da arte na sociedade e a participação do artista no lucro gerado pelo produto dessa mesma arte.