Bruna, como surgiu seu interesse em trabalhar com azulejos?
Eu me formei em Arquitetura no Mackenzie e trabalhei cinco anos como arquiteta. Sempre gostei de desenhar módulos geométricos em caderninhos. Carrego cadernos quadriculados de um lado para outro. Cabeça meio de arquiteta.
Há quanto tempo a Lurca existe?
Oficialmente, cinco anos, mas eu já fazia os azulejos há alguns anos. Fazia para mim, para amigos. Com o tempo, os amigos arquitetos – são muitos – começaram a me cobrar um site, queriam mostrar para clientes. Então resolvi abrir a empresa, escolher um nome, fazer o site e tudo mais. No começo, era super pequeno, atendia só com hora marcada.
E por que o nome “Lurca”?
Eu não queria usar meu nome porque também tenho minha linha de painéis exclusivos assinados. Pensei em algumas opções, mas, na hora de registrar, vi que não poderia usar nenhuma, pois não pode ter nada parecido em um campo muito grande. Aí criei 10 nomes malucos. Uma tia me sugeriu enviar para uma numerologista de Curitiba e, na dúvida, enviei. O único que voltou recomendado foi “Lurca” – uma mistura do nome do poeta Lorca, que eu amo, com uma encanação de usar “u” por conta da palavra “azulejos”. Então vi que dava para registrar, o domínio estava disponível e não existia quase nada no Google com esse nome. Tudo se encaixou.
Você faz dois tipos de trabalho. A Lurca e projetos autorais. Qual é a diferença entre eles?
Basicamente, a ideia da Lurca são azulejos como unidades geométricas que podem ser montadas de diversas maneiras. Os azulejos são vendidos em caixas de 1 m², e o cliente pode seguir uma sugestão de montagem nossa ou misturar do jeito que preferir. É bacana, porque é mais acessível que os painéis autorais – tanto para a pessoa que quer fazer um painel gigante na fachada quanto para quem quer usar como revestimento na cozinha ou no banheiro. Já os painéis assinados são interessantes porque eu desenho um painel exclusivo para o lugar, e as peças são manchadas uma a uma; acaba tendo uma conotação mais artística. Agora, estou começando a fazer também painéis menores, como quadros. Mas, no final, vejo que tudo que eu faço tem uma cara parecida. Tenho pastas e pastas de desenhos, sempre geométricos, com padrões parecidos.
Eles também parecem ter uma influência árabe.
Sim, essa nova coleção da Lurca foi inspirada principalmente nos tapetes marroquinos.
Falando em países árabes, sei que você passou um tempo na Turquia. Como foi sua experiência turca?
Eu adoro arquitetura islâmica, e tento sempre viajar para conhecer mais e mais. Antes de me formar, me inscrevi em um programa de estágio que funciona como uma troca: você pode disponibilizar uma vaga e hospedagem e ganha pontos na hora de escolher um lugar. Uma vez por ano, eles abrem as vagas e você escolhe sua preferência de 1 a 10, e consegue a vaga dependendo de quantos pontos você tiver. Eu não tinha ponto nenhum, mas me inscrevi para um estágio em Damasco e, como ninguém quis, eu consegui. Conhecer a Mesquita dos Omíadas em Damasco era um dos meus sonhos. Só que, no final, o pessoal da Síria era super enrolado. Eles me aceitaram, mas atrasaram pra caramba a papelada, e o pessoal daqui não podia me autorizar a ir. Como eu tinha feito tudo certinho, me deram prioridade para o ano seguinte, e, como eles já sabiam da minha preferência, no dia em que saiu a lista me avisaram que tinha aberto uma vaga em Istambul, e eu topei na hora. Não tinha ideia de como era o escritório de arquitetura, ou qualquer palavra em turco. Fui avisada de que iam me pegar no aeroporto, mas ninguém apareceu. Eu combinei de chegar uma semana antes, porque, na época, estava tendo vários atentados curdos, e eu não queria correr o risco de deixar de ver algo – imagina, estou lá e colocam uma bomba na Blue Mosque, e eu fico sem conhecer (risos). Era para eu ficar em um dormitório da Faculdade de Arquitetura, mas tinha que dividir com três gringas e era super longe, então aluguei um quarto em um albergue que tinha bar no térreo, bem hippie. Eu trabalhava no lado asiático, demorava uma hora e meia para chegar entre caminhada, pegar lotação e barco para cruzar o Bósforo, mas era incrível. O escritório ficava em um bairro pequeno, escondido, super charmoso, em uma casa otomana restaurada. E todo dia eu chegava à noite no albergue e jogava gamão. O pessoal lá joga desde criança. Eu achava que sabia jogar, mas, chegando lá, um dos caras que trabalhava no albergue me ensinou direito, e no final eu já estava apostando com os gringos. Mas a história é que, na minha primeira semana em Istambul, fui à Hagia Sophia para conhecer, e tinha uma exposição da Iznik Foundation no mezanino.
Iznik é uma cidadezinha ao sul de Istambul que ficou conhecida por seus azulejos. Os azulejos são, na maioria, florais, em vermelho e azul. Na época, com a rota da seda, a cerâmica chinesa era muito comum, com seus tons de azul. Mas, em Iznik, conseguiram chegar em um vermelho, que é um pigmento difícil para cerâmica, e era inédito na época. Eles exportavam para todo o Império Otomano, e a fórmula deles era um segredo super bem guardado. Tanto que, quando o Império Otomano acabou, o segredo se perdeu. E há vinte anos criaram essa fundação. Juntaram cientistas, historiadores e ceramistas e conseguiram chegar à fórmula original, que inclui também passar uma camada de pó de quartzo antes da última queima, dando um brilho diferente. É lindo.
Nessa exposição na Hagia Sophia, um curador havia convidado artistas e arquitetos para criar um padrão de unidade e fazer azulejo com a mesma técnica dos azulejos de Iznik, mas com desenhos super modernos, e, então, montar painéis repetindo essa unidade, que era o que eu andava fazendo, apesar dos desenhos serem bem diferentes. Demorou ainda cinco anos para eu abrir a Lurca, mas, nesse momento, tive uma sensação muito forte de estar no caminho certo – afinal, qual era a chance de ver essa exposição e estar em Istambul naquela hora? Comprei o catálogo e, chegando em casa, vi que o curador da exposição era o arquiteto do escritório em que eu ia trabalhar. Depois disso, fui para a Síria, conheci a mesquita. Incrível.
Quais são suas particularidades?
Como ela foi uma das primeiras mesquitas, ainda não havia uma arte islâmica característica, então foram feitos mosaicos como os bizantinos, mas super ricos e conservados. Talvez por a mesquita sempre ter sido usada, nunca ter sido abandonada. E também é um lugar de peregrinação xiita, e o Saladino está enterrado lá, então tem gente passando o tempo todo. Damasco tem muita história.
É o berço de tudo, né?
Sim. E a cidade é linda, pequenos corredores que se abrem em pátios, arquitetura bem de cidade muçulmana. Eu não sabia, mas lá tem muita decoração com mármore, alternando faixas de cores diferentes. Eu acho lindo como geralmente a decoração islâmica não tem medo de errar; tem todas as ornamentações e fica lindo. Você coloca uma super azulejaria, com muxarabis, um piso de tal jeito, teto de outro, tudo misturado.
E ainda pintam a parede de vinho…
Total (risos). E ainda fica bonito!
Quais lugares você tem como referência?
Do mundo muçulmano, Turquia, Andaluzia, Síria, Marrocos, Egito, Irã, Rajastão…
Qual é a característica principal de cada um?
Tem uma história na arte islâmica que eles evitam a representação de imagens de pessoas, então geralmente a decoração dos lugares usa geometria, florais ou caligrafia. Na Turquia, tem mais florais. Eles usavam bastante os azulejos para revestir mesquitas inteiras, achavam que dava leveza para os pilares imensos que venciam os grande vãos. Na Síria, muito mármore; no Irã, muita geometria e florais bem femininos. No Marrocos, eles usam muita geometria, usam aqueles azulejos cortados chamados Zellij, como foi usado no Alhambra. Eu fiz um curso em Marrakesh, é uma loucura.
Como são feitos?
Eles fazem peças como azulejos grossos e mal-acabados em fornos redondos a lenha, depois jogam essas peças nesses ateliês super simples para fazer os Zellijs.
Basicamente, eles pegam o azulejo e, usando uma pecinha pronta de algum formato como molde, vão riscando a peça com um palito de madeira molhado no cal. Ele risca de tal jeito a aproveitar a peça ao máximo. No chão, fica uma pedra com um pedaço de metal preso, então esse cara fica agachado e, com uma marreta gigante apoiada no joelho, vai batendo delicadamente para quebrar as peças certinho. Uma por uma.
Que trabalho…
Muito! Fiquei horas para conseguir cortar os pedacinhos. Você pensa, poxa, eles podiam ter modernizado pelo menos alguma das etapas! Mas existe o charme de cada peça ser diferente da outra, um ou outro quebradinho.
E no Brasil, quais são suas referências?
Bom, o Athos Bulcão eu confesso que conheci muito depois de começar a fazer os desenhos. Eu estava no final da faculdade e mostrei os desenhos de alguns azulejos para uma amiga paisagista da minha mãe, que disse “ah, legal, como o Athos”, e eu respondi “Athos quem?” (risos). Não acreditava. Já tinha um cara que tinha feito tudo e de um jeito incrível. Acho o trabalho dele lindo; é bem a ideia da unidade repetida. Dizem que ele muitas vezes deixava os pedreiros instalarem as peças do jeito que quisessem, porque a ideia era ficar aleatório mesmo. Ele foi assistente do Portinari, ajudou no painel da Pampulha.
E teve essa fábrica aqui em São Paulo chamada Osirarte, que produziu boa parte dos painéis mais legais de azulejos, do Portinari, Burle Marx, até o Volpi participou.
Quais são os painéis mais importantes do Brasil?
Eu diria que o Portinari do Ministério da Educação, com o tema marinho, mas, para mim, o Burle Marx é surreal. No sítio dele, no Rio, tem um lugar que ele construiu inteiro revestido de azulejos, bem geométricos, pintados a mão. É de morrer… Tem também o do Athos no Instituto Rio Branco, em Brasília, que adoro.
E no Nordeste?
Recife tem muitos azulejos coloniais. Tem uma história engraçada. Dizem que o Brasil colônia que inventou essa moda de usar azulejo em fachada. Porque achou super prático. Aqui batia muito sol, e os azulejos também protegiam da chuva, da umidade, são fáceis de limpar. E essa moda teria voltado para Portugal, para o colonizador, e, imagina, lá tem azulejo em todas as fachadas…
Mudando um pouco de assunto, me fala sobre seu ambiente de trabalho. Você sempre esteve aqui neste prédio lindo?
Não. Faz dois anos e meio.
E como você acha que o ambiente influencia seu trabalho?
Ah, faz toda a diferença. Ter espaço para montar os painéis no chão. Ter espaço de estoque para a Lurca agilizou toda a produção. E também poder receber as pessoas como em uma loja, mas ter o meu ateliê no fundo, escondido, com um jardim. Poder ter meu forno bem próximo, poder testar as coisas na hora.
E como acontece o processo de produção de uma peça?
Existe um pigmento em pó, chamado de over glass, que é misturado com um veículo como óleo de copaíba, até ter uma textura de pasta de dente. Com essa tinta, pintamos as peças brancas esmaltadas com tela de serigrafia. Isso, então, é queimado a 800 graus, e a tinta adentra a superfície. Já os testes que estão agora no forno são experimentos em alta queima, para usar nos novos painéis assinados. Aí a técnica é diferente; é outro tipo de pigmento que é misturado com água, antes misturada com uma cola em pó. Nesse caso, o esmalte não pode ficar nem muito líquido, nem muito grosso.
E você pretende fazer painéis enormes com isso?
Sim! E estou nessa piração de também misturar latão, mármore, granito, diversos minérios… Já comecei nos painéis pequenos, mas imagina fazer grande? Eu acho que pode ficar incrível…
Você trabalhou a vida inteira para chegar nisso.
É (risos).
Tem algum projeto com o qual você se sente mais realizada?
O primeiro painel grande que fiz foi marcante, no hall de um prédio em Higienópolis. Na hora que montei todas as peças no chão, antes de instalar… Sabe aquelas horas que você sabe que está fazendo o que você quer mesmo? Mas teve um outro que eu gostei muito de fazer, um painel com um escritório de arquitetura chamado Suite Arquitetos. Eles me ligaram e explicaram que estavam fazendo uma loja modelo para a marca Besni, no Capão Redondo, e que teria um grande jardim no fundo do terreno, onde gostariam de revestir a fachada toda de trás com um painel gigante. Eles me disseram que gostariam muito de ter uma participação da comunidade, e sugeriram entrarmos em contato com a Casa do Zezinho. Eu já conhecia essa ONG, sabia que era foda, tinha até já visto palestra da fundadora. Então conversamos com eles, e, durante alguns meses, eu fui lá falar com diversas turmas sobre a história dos azulejos, sobre meu trabalho, e brincamos de desenhar padrões. Eu criei um desenho de painel de forma que esses padrões pudessem se encaixar, e essas peças especiais foram encomendadas para os meninos da turma de mosaico que têm uma pequena empresa e são super talentosos. O resultado ficou lindo, tem uns desenhos maravilhosos. Foi muito bacana ter essa troca e fazer um painel em conjunto.
Quem ou o que são suas maiores inspirações?
Eu diria viagens, museus e livros. Quando viajo, tento ir a alguma biblioteca pública ou de museu. Hoje em dia, falam que podemos encontrar qualquer livro na internet, mas não é verdade. Tem muitos livros que saíram de edição e não se encontra mais. Tem um museu de cerâmica e vidros em Teerã com uma minibiblioteca embaixo – cada livro… Em Istambul, tem uma biblioteca ótima no Museu de Arte Moderna; um monte de livros que, depois, fui dar Google e você não encontra. E, fora isso, vejo muitos sites de antiguidades. Principalmente os ingleses, talvez pelas antigas colônias. Tem livros de tecidos, tapetes e cerâmicas incríveis. Existem alguns que conseguimos ver em museus, mas muita coisa está em coleções privadas. Às vezes, peças que o colecionador vende na própria casa. E hoje em dia fica muito fácil ver tudo isso pelos sites; tecidos de todos os países africanos, umas raridades absurdas.
E o que você não fez que ainda quer fazer?
Bom, eu queria muito fazer painéis em lugares que as pessoas realmente circulassem, sabe? E a minha ideia mais óbvia é o metrô. O metrô já tem essa tradição de usar azulejos de cerâmica, por ser prático. Você vai nos metrôs antigos do mundo inteiro e encontra. São uns mais lindos que os outros.