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#1MudançaCulturaLiteratura

Mudança

por Léo Coutinho

Ilustração de Isabela Lotufo

Mudança é a palavra que ganhou as eleições mais importantes do mundo no ano passado. O presidente Barack Obama seria eleito em qualquer parte do globo com bilhões de votos de gente que, quiçá, nem saberia apontar os Estados Unidos no mapa-múndi.

Mudança é mesmo uma palavra muito forte. Tem o poder de despertar o lado progressista do reacionário fundamental, o desenvolvimentista adormecido no conservador absoluto. Porque mesmo quem está de barriga cheia terá apetite diante de um pudim de leite. O problema é a contrapartida; é entregar o doce a quem o desejou e acreditou que receberia.

Por maior que seja a boa vontade de um político, por melhor que seja seu caráter, prometer uma torta de limão a um povo que amargou oito anos de limão puro tem seu lado doloso: se ele não sabe que é muito difícil, não merece o cargo que pretende; se sabe e não conta, procede mal. Por outro lado, se contar tudo, dificilmente será eleito.

Há muitos anos, São Paulo, que é a maior cidade do Hemisfério Sul, teve um prefeito que era banqueiro, não político. Chamava-se Olavo Setúbal. E este senhor, perguntado sobre a questão das enchentes que até hoje afligem os paulistanos, respondeu que o problema só seria resolvido em vinte anos, e com a condição de que os futuros prefeitos trabalhassem direito e em continuidade aos antecessores, investindo um dinheiro que não existia nos cofres públicos. Nunca mais ocupou um cargo político.

Dizer a verdade é muito difícil. Ou, no mínimo, muito arriscado. Mas acredito que nós estamos todos carentes de gente honesta não só na conduta, mas também nas palavras. É cada vez mais raro um artista que produza exatamente o que acredita e consiga alcançar um público razoável. Dentro do negócio de vender arte, tudo deve ser experimentado em pesquisas antes de ser levado adiante. Daí que ficamos com a impressão de pasteurização artística, sentindo a falta de um gênio contemporâneo para chamar de nosso.

Com a política, o mesmo fenômeno nos assola. Aqui no Brasil, entre os políticos de primeiro time – isto é, entre aqueles que podem chegar a Presidente da República –, tecnicamente falando, talvez nenhum esteja tão preparado quanto José Serra, governador do Estado de São Paulo. Porém, mesmo nele, de quem esperávamos ouvir “a palavra” ou o caminho a ser seguido, identificamos a lanterna apontada para o resultado das pesquisas.

Tome como exemplo a Lei Antifumo: é o que existe de mais em voga em termos de administração pública em todo o mundo. Salvo em casos pontuais, ninguém mais poderá ser contra. Porém, a justificativa principal por parte do próprio governo é o apoio de oitenta e tantos por cento da população à proposta. Por outra, se a saúde pública como um todo fosse um princípio do governante, ou um compromisso de seu plano de governo, o mesmo governador teria acatado a Lei Anticoxinha, que quer impor alimentação saudável nas escolas e que foi aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa. No mesmo caminho, com uma canetada igual à que criou a Lei Antifumo, o Palácio dos Bandeirantes proibiria a circulação de veículos queimando óleo diesel com concentração subdesenvolvida de enxofre em todo território paulista. É a vitória do marketing em todas as instâncias. Está refletida na arte, na moda, na arquitetura, na gastronomia, na produção industrial. Com a política não poderia ser diferente. O fenômeno de consumo em massa e a globalização não dão margem de erro para ninguém. Tudo deve ser aceito por todos e em qualquer lugar. De maneira que a exclusividade, seja de uma peça de roupa ou de uma ideia, passa a custar cada vez mais caro.

Resta descobrir como permitir que um artista, um intelectual ou um político viva da mesma maneira que vive um alfaiate, um chefe de cozinha ou um arquiteto. Os primeiros pertencem a um grupo que depende de um público maior para seu trabalho. Quem pretender sobreviver vendendo opinião a um pequeno grupo de pessoas morrerá de fome ou estará condenado à academia. Inverso e proporcionalmente tão grave quanto a morte por inanição é o futuro reservado para a humanidade que prescindir de pensadores independentes.

Os jornais de todo o planeta estão morrendo. Ninguém mais tem tempo e paciência para ler com calma e profundidade na manhã seguinte a mesma notícia que chegou ontem em duas linhas pelo telefone celular. Logo, como alguém já identificou, a opinião está tão desvalorizada que nós aceitamos pagar para enviar mensagens de texto para outra pessoa, mas nem cogitamos desembolsar algum para ler um texto bem escrito e fundamentado e, a partir dele e de outros, formar uma opinião.

Sem opinião, estaremos cada vez mais assumindo nossa vocação para rebanho; estaremos mais parecidos com gado, nos sujeitando aos princípios tangenciais de qualquer profeta mais sem-vergonha do que nós mesmos. E gado, se pudesse escolher mudar seu destino, seria da panela para o forno ou, no máximo, para a grelha. O destino inexorável de quem não tem opinião é arder no fogo.

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Dessa vez, não começou ao mero acaso.

Ao contrário do recurso do clichê com que iniciei meu relato naquela edição de 2013 da Amarello (Qual é o seu legado?), quando mostrei fotografias feitas na Fordlândia (no Pará) e, posteriormente, em Detroit, fruto de uma viagem por impulso anos antes para o Norte do Brasil, fui seduzido a começar esta nova história anunciando que a arte do acaso esteve presente apenas como manifestação inescapável da natureza que circunda a floresta – não como justificativa de falta de intenção.

Sendo agora um pouco mais versado na região da Amazônia, sei bem que nada é assim “tão mais por acaso” depois que você a visita pela primeira vez. Começam a surgir chamados cada vez mais focalizados e audíveis. São como sinais que você captura e reconhece como destinos incontornáveis.

Daquelas ambiguidades sadias ao processo, não lembrava mais qual referência sobre o local era mais marcante: o trabalho de Cildo, “aumentando” a altura do Brasil a partir de sua montanha mais alta, a mítica Yaripo (Pico da Neblina); a capa da revista Realidade de 1971, fotografada por Claudia Andujar, com o célebre retrato de uma criança indígena naquela mesma aldeia; ou algum Globo Repórter que assisti quando era criança, no rescaldo do final da ditadura. Naquele período, intensificava-se a campanha política pelo reconhecimento e demarcação da área indígena yanomami.

Sem acaso qualquer, decidimos que tentaríamos terminar nossa viagem nas aldeias de Ariabú e Maturacá, estado do Amazonas, perto da fronteira com a Venezuela, no pé da montanha mais alta do Brasil. Fazia todo sentido. Nosso plano era subir o Rio Negro a partir de Manaus até a longínqua São Gabriel da Cachoeira e, de lá, alcançar algo a mais. No fundo, alimentados mais pelo ímpeto expedicionário típico dos homens brancos – com todos os problemas que isso pode carregar –, e não pela pesquisa antropológica, visual e política mais madura de Claudia ou Cildo, arriscamos encarnar naquela empreitada uma mistura subjetiva e potencialmente confusa de papéis entre o visitante e o estrangeiro.

Percebemos, acima de tudo, que, dada a proximidade da viagem, não teríamos tempo hábil para planejar e executar a difícil chegada em Ariabú-Maturacá. Destinos incontornáveis, entretanto, movimentam seus pauzinhos. Alguns dias intensos de pesquisa e um curioso encadeamento de interlocutores e telefonemas depois, tínhamos, a princípio, descoberto uma oportunidade de alcançar a aldeia. Nosso recado era o mais despretensioso possível: gostaríamos de ficar entre 3 e 4 dias, éramos oito pessoas, e nosso único interesse era conhecê-los.

[…]

Um corte abrupto no tempo, e estamos em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, município com a maior população de origem indígena do Brasil. Uma chuva forte havia caído na noite anterior, o que me fez dar um sorriso irônico e resignado sobre o dia seguinte. O primeiro capítulo seria vencer um punhado de horas de barro melado e crateras, em algumas seções apenas transitável mediante ajuda de troncos e cordas, dentro de uma boa e velha Toyota Bandeirante – condições que, por óbvio, desceram ao nível do absolutamente incerto depois daquele temporal. Em cima da Toyota, havíamos acoplado uma lancha “voadeira” de alumínio para 10 pessoas, numa amarração de volumes desproporcional que lembrava cenas antigas do Camel Trophy, o motor alugado no porta-malas, um amontoado de mochilas e, claro, suprimento para alguns dias.

Atravessamos a linha do Equador, e uma onça escura nos atravessa segundos depois, para simbolizar mais uma vez que estávamos em território alheio e relembrar que os sons do silêncio amazônico são essencialmente atravessados por rompantes visuais, algumas vezes táteis. De um ponto inóspito na BR-307, abruptamente saltamos para as águas ainda rasas e densamente cobertas pela floresta do Rio Cauaburis. Daquele ponto até a aldeia, a depender do rio e da destreza do nosso piloteiro, o segundo capítulo renderia outras 6 a 8 horas de viagem.

Enfim, chegou a boca da noite para virar a página de uma navegação empreendida no ritmo mais intenso possível, em meio a corredeiras, pedras traiçoeiras e pássaros em revoada, nos forçando a desacelerar os ânimos e o volume do som do motor. A aterrissagem do breu absoluto na última hora rio adentro envolveu e abafou a atuação como visitantes a que nos prestáramos até então para substituí-la, como protagonista, pelo papel de estrangeiros. As cenas finais da chegada, já no Rio Maturacá, renderiam um plano contínuo: os raios de luz de nossas lanternas tateiam cada metro à frente, enquanto rompantes de vozes da floresta ressoam de margem a margem como que para torcer nossa posição ainda mais. Se havia alguma coisa de real naquele instante, era menos o fato de que conseguíamos identificar a presença de alguns animais, sentir o deslocamento da água e, no fim, ouvir vozes bem ao longe e mais o fato de que, acima de tudo, era a floresta, ela sim, que nos ouvia.

Encostamos na margem direita, em pretenso silêncio, numa área íngreme mas plana de terreno; aos poucos, cada um desce, tenta identificar sua própria mochila, começa a subir na terra firme em busca de nossos anfitriões. Há uma certa dificuldade em caminhar pelo mato crescido misturada à exaustão de um longo dia de viagem. Tínhamos, no entanto, alcançado o algo a mais que nossa expedição se propusera. Um sentimento de satisfação amainava a tensão e a dificuldade daqueles últimos passos. Havíamos conseguido!

Deparamos, de repente, com um homem altivo e que nos aborda com a postura de quem já percebera há algum tempo nossa chegada. Antes que exercêssemos nossa vontade ou satisfação, tratou de colocar em seu devido lugar as coisas, em tom grave: “Quem são vocês e o que vieram fazer na nossa terra?” Dali em diante, a narrativa ganharia novos contornos – nosso recado simplesmente não chegara a eles como deveria.

Tomando a liberdade de reservar para bate-papos descontraídos e conversas de bar o charme ou curiosidade de cenas e situações ímpares que vivemos nas 24 horas seguintes à (não) recepção na noite de chegada nas aldeias de Ariabú e Maturacá – até porque, para Rancière, o “real precisa ser ficcionado para ser pensado” e eu gosto de mudar detalhes de entonação a cada interlocutor –, ou porque não quero me estender demais e sofrer com cortes do editor nas minhas fotografias, pulo para a segunda noite na aldeia, depois do cancelamento inesperado da reunião de líderes yanomamis, representantes políticos das duas aldeias, xamãs, caciques e o nosso grupo, cuja única e tensa pauta era discutir a nossa presença lá.

Preparamos o jantar, esticamos nossas redes e conversamos longamente a respeito do encontro que ficara para a manhã do dia seguinte, nosso terceiro dia na aldeia, numa mediação que colocaria a nu o choque que causáramos pela visita onde a ponta de lá não recebeu adequadamente o sinal vindo de cá, transformando-nos em estrangeiros, inesperados, estranhos, nem mesmo donos da fineza em bater à porta antes do anoitecer. Decidiu-se que eu seria o “cabeça” do grupo, fato cobrado pelos yanomami (“Quem é o cabeça de vocês?”), falaria por todos e concentraria as intervenções espontâneas e improvisos de fala em momentos que julgasse necessários. A luz da lua, quando despontava, contribuía para denunciar o jogo misterioso de entrelaçamento entre as nuvens e o pico de arestas marcadamente irregulares da Serra do Padre, num vaivém que parecia ter também dominado o clima de tensão daquelas duas primeiras noites.

Se pudesse escolher um aspecto que se evidenciou e chamou atenção a partir da nossa presença, eu diria que foi a percepção de que uma aldeia indígena (e, no caso, eram duas) contém as mesmas complexidades, contradições, choques geracionais e de pontos de vista que qualquer outra organização em sociedade.

No entanto, concomitante com o desanuviar dessa constatação, nossa condição de estrangeiros não convidados influenciou para que, ao contrário da sorrateira luz da lua da noite anterior, a luz do sol daquela manhã deixasse clara, evidente, e estridente a necessidade de que a coerência e a unidade se impusessem nas quase quatro horas de intensa sabatina que reuniram, de um lado, mais de cinquenta yanomamis de diferentes idades e posições e, de outro, nosso grupo de oito aventureiros, além do experiente piloteiro, que, mesmo conhecendo o local e muitos daqueles índios, também fora colocado, ao nosso lado, na posição de estrangeiro, quiçá invasor, essa mudança de categoria nosso receio maior.

Posso afirmar, com convicção, que aquele encontro foi um dos maiores aprendizados da minha vida, ou, por outro lado, uma verdadeira prova de fogo em que cada um teve de trazer para a mesa seus prévios aprendizados. Um microfone com caixa de som foi trazido para que as falas pudessem ser registradas por todos, com a pitada Lost in Translation que as traduções do português para o yanomami, e vice-versa, adicionava na rodada de entendimentos, explicações e negociações. No final daquele dia, quando a tarde caiu, o sol morreu e de repente escureceu, emergiu um céu estrelado a proteger os cantos noturnos das mulheres como preparativos para a Festa da Pupunha, cujo privilégio de espectadores, e agora visitantes, pudemos experimentar. Estava, no fim, tudo bem. Na cosmologia indígena, totalmente ao contrário da ideia que carregamos intrinsecamente a partir de nossa estrutura como civilização, parece existir apenas uma cultura, e muitas naturezas – a cultura humana.

Em meio a mais um novo ciclo que se reiniciou agora em 2019, com a volta requentada de propostas para a Amazônia nos moldes da ideologia geopolítica e de desenvolvimento regional ambientalmente pouco sustentáveis dos anos 70, características do período da ditadura militar e cuja ineficácia é simbolizada pela célebre fotografia de Claudia de um yanomami convertido em malfadado operário da Odebrecht durante a construção da Perimetral Norte, escrevo este texto no afã de difundir um pensamento para nós, o “Povo das Mercadorias”: antes de divagarmos sobre os índios e sobre o que acreditamos ser melhor para eles, em suas próprias terras ancestrais, devemos exercitar, em primeiro lugar, o dever da escuta. Os sons que atravessam o silêncio amazônico, afinal, são também e principalmente os sons do Povo da Floresta.


Texto originalmente publicado na edição O Estrangeiro

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A inquietude do nu é um dos aspectos mais marcantes no estilo do pintor alemão

O nu é um tema explorado na arte fazem muitos séculos. De fato, a descrição do “corpo sem ornamentos” pode ser percebida desde a antiguidade. Porém, ao pensar o nu na arte moderna e contemporânea, existe um artista plástico que se destaca pela forma peculiar e intensa de sua representação – Lucian Freud. O artista, falecido em 2011, foi reconhecido como um dos maiores pintores figurativos em vida e sua notoriedade é proveniente, em grande parte, da composição inquietante e da vulnerabilidade humana desenvolvida nas suas telas, compostas de corpos nus.

Nascido em Berlim no período entre guerras e refugiado em Londres logo após a subida de Hitler ao poder, em 1934, Lucian Freud passou a maior parte de sua vida na Inglaterra. Neto de Sigmund Freud, fundador da psicanálise, o pintor buscava escapar de qualquer relação direta de sua obra a seu avô. Porém, é difícil não relacionar a forma como Sigmund Freud buscava quebrar a barreira emocional e o sofrimento do paciente à forma com que Lucian despiu seu muso-modelo da censura social e transmitiu através da pintura a verdade crua e animal dos seres humanos, moldados pela sua consciência e pelo seu olhar de pintor.

Enquanto jovem, Freud era um desenhista muito preciso e pintor minucioso. Sua maturidade se desenvolve a partir da década de 60 quando o artista, influenciado pelo então amigo Francis Bacon, adota um estilo de pintura livre e intenso, atingido através da utilização da técnica de impasto e aplicando gradações de cores, similares aos “Old Masters”.

A partir de então, Freud passa a pintar principalmente retratos nus e a trabalhar apenas de seu ateliê, que se torna cenário importante da composição de sua obra e crucial na relação de intimidade entre pintor e modelo, acentuada pela lentidão do seu processo de pintura.

Produzindo em média cinco quadros por ano, cada tela sua podia levar anos para ser concluída. Tal lentidão requeria do modelo uma dedicação e determinação de permanecer na mesma pose perante o pintor por um longo período de tempo, uma tarefa árdua e quase cruel. Dessa mesma forma, Freud desenvolvia uma relação de intimidade com o modelo, criando uma curiosa relação entre o retrato, a pintura, o tempo e o corpo humano.

São corpos distorcidos, sofridos, vivos e desgastados com o tempo, cuja pele e a carne humana estão expostas na cara do observador, tornando a pintura de Freud singular e intensa, e muitas vezes repelente.

Os sujeitos ou os corpos de suas pinturas não são escolhidos de forma arbitrária, são normalmente familiares, amigos, amantes ou pessoas que ele acha interessantes. Suas filhas foram representadas em várias telas, como Naked Girl Laughing (1963) e Large Interior Paddington (1968/69), assim como sua mãe, The Painter’s Mother (1982).

Existe também um foco em corpos prósperos, mulheres grávidas ou gordas. Na busca de captar o real, o pintor se autodenominava um biólogo, isto é, um pintor do corpo humano cuja arte é autobiográfica. Barrigas flácidas, marcas de rosto, bolsa embaixo do olhos, rugas, a imperfeição de seus modelos não passam despercebidos ao seu olhar, ao escrutínio do tempo e das posições que o pintor escolhia para seus modelos em suas telas.

Um grande exemplo disso é a tela Leigh Under the Skylight (1994). Nesta obra de tamanho monumental, Leigh Bowery, um artista performático e amigo do pintor, é retratado nu através de um ângulo baixo e inconvencional. Usando como temática um homem corpulento, grande e impressionante, com suas partes íntimas nitidamente expostas, Freud retrata um nu clássico com uma grosseira textura que é atingida através da pincelada e da luz que o artista projeta na tela.

Além disso, a posição de Leigh nos revela o processo desconfortável e a tarefa árdua pelos quais passou. Nesse retrato, assim como em outros do período mais recente, como em Benefits Supervisor Sleeping (1995), um retrato da gerente Sue Tyller, fica evidente a capacidade do pintor de transcrever em sua tela a sensibilidade, a emoção, assim como a dissipação de tudo o que está envolvido na ocupação de um corpo abundante.

Naked Admirer

Assim como Nietzsche, Freud situa a essência da identidade humana no corpo e não na alma. Ele desnuda seus sujeitos, colocando em evidência a verdade humana nua e crua.

Freud despe o homem da sua armadura social e de seus artifícios psicológicos através de árduas sessões de pintura. Seus retratos mais recentes incluem Queen Elizabeth II (2000/01) e Kate Moss, retratada em Naked Portrait (2002).

O olhar cruel de Freud em seus retratos solidifica seu estilo progressista, transgressor e libertador diante dos cânones de beleza que caracterizam as imagens do corpo humano ao longo da história, assim como estabelece seu poder de emoção e projeção da realidade vista através dos olhos do pintor ao observador.

Dissimilitudes à parte, a inquietude do nu de Lucian Freud reavaliou o corpo humano na mesma profundidade em que seu avô remapeou a mente. Porém, apesar da homogeneização percebida no mundo contemporâneo, o ser humano permanece um mistério a ser desvendado e a nudez, mais um elemento nessa descoberta. A força da personalidade da pincelada nas pinturas de Freud expõe em sua plenitude o frescor da carne humana e as limitações da fisicalidade do ser humano.

Working at night
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A regra deste jogo é adivinhar quais regras existem e, então, colocá-las em ordem cronológica, segundo a legislação brasileira. Por exemplo: proibição do casamento infantil, casamento sem exigência de virgindade, casamento com a pessoa escolhida, proibição do parto com algemas, extinção da pena por estupro caso a vítima se case com o estuprador, pensão alimentícia.

Não sei se ajuda ou atrapalha, mas pingo algumas datas para você pensar: 1603, 2002, 2005, 2013, 2016. Notou que faltou uma? Sinal de que prestou atenção. Se percebeu que um dos exemplos ainda não é lei, ponto para você. Mas se este é um dado que te surpreende, ponto para o jogo. A ideia é essa: provocar e esclarecer o pensamento político.

O nome do jogo é Molho Especial, parte do cardápio da Fast Food da Política, uma organização criada e gerida por mulheres que, sobre as receitas clássicas da teoria dos jogos, quer ampliar e melhorar a noção política da sociedade.

Em 2015, a designer Júlia Carvalho embarcou no Ônibus Hacker, trupe que roda o Brasil instigando curiosidade e participação política. A primeira escala foi numa cidade de quatro mil habitantes. Depois, saltaram para uma de quatrocentos mil. Até que chegaram a Brasília.

Num alumbramento de João de Santo Cristo, Júlia ficou bestificada. Mas não com as luzes de Natal. Era agosto de 2015, auge das manifestações pró e contra o impeachment de Dilma Rousseff, com direito a muro separando os grupos.

O ônibus estacionou e os ativistas abriram os trabalhos. Brasília, capital federal do Brasil, em um aspecto não era diferente das cidades de quatro ou quatrocentos mil habitantes. Em plena Praça dos Três Poderes, os manifestantes revelavam desconhecimento sobre o que se passava nos salões e gabinetes dos prédios ao redor. “Se a Dilma cair o Aécio assume?”

Na lógica de uma designer, se há culpa na incompreensão do que está exposto, ela é daquele que comunica. O princípio da profissão que Júlia escolheu é traduzir qualquer mensagem, para qualquer pessoa, em qualquer lugar.

Olhando para o Congresso Nacional, ela viu nas cúpulas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal as metades de um pão de hambúrguer, que recheou com as torres de gabinetes e, assim, decidiu que a compreensão básica do processo político, fundamental para o debate político, seria universalizada e digerida na velocidade e na dimensão alcançadas pela rede mundial de sanduíches. Nascia a Fast Food da Política.

O cardápio é vasto e lúdico. Três Poderes é um quebra-cabeça que se completa quando Legislativo, Executivo e Judiciário se encaixam com seus respectivos órgãos e atribuições. Três Esferas é um jogo de basquete onde as bolas são os políticos e os cestos são as esferas municipal, estadual e federal. Ganha quem acertar quem está em qual e quais são suas competências. Em Monte Seu Governo, o desafio é colocar as pessoas mais indicadas nos postos correspondentes a fim de alcançar o objetivo escolhido, considerando o perfil político-ideológico de cada um.

Na forma, meu predileto é o Queda do Patriarcado. Inspirado no Jenga, aquele jogo da torre que não pode desabar, a proposta é construir a transformação desejada com atenção às camadas culturais estabelecidas ao longo da história. Claro que você pode ir direto à peça que te incomoda num tapa, demolindo a torre. Mas a história prova que quem fez esta opção acabou perdendo o jogo.

Se abri seu apetite, aceite uma sugestão. Como esta crônica, comece pelo Molho Especial. Indo direto ao Queda do Patriarcado, você corre o risco de achar que a torre não é assim tão feia. O atavismo faz a gente olhar com naturalidade para coisas horríveis. E o Molho Especial, com a sutileza dos temperos simples, é capaz de mudar sua nota. Quer ver?

Até 2002, o casamento podia ser anulado pelo marido caso a não virgindade pré-nupcial fosse comprovada. Só em 2005 foi revogada a possibilidade de extinção da pena de estupro caso a vítima se casasse com o estuprador. O direito de casar com a pessoa escolhida veio em 2013, quando o Judiciário equiparou a união homossexual à heterossexual. Ainda no ano passado, era legal manter algemada uma mulher durante o trabalho de parto.

Em 2017, não há lei que impeça o casamento infantil no Brasil, ao contrário de outros 24 países na América Latina. Segundo a ONU, somos a quarta Nação em quantidade de casamentos precoces, prática que atinge 36% da população feminina brasileira e é responsável por 30% da evasão escolar no mundo. Por aqui, o limite de idade é definido pelo organismo da mulher, não pela lei. Isto é, aceitamos que, se uma menina pode engravidar, também pode se casar.

Entre os homens, a pensão alimentícia chega a ser mais aceita do que entre as mulheres. Não é raro encontrar uma mulher que se negue a processar o pai que descumpre as obrigações legais perante os filhos. Ao passo que, nas cadeias masculinas, os chamados “ladrões de leite” chegam a ser isolados para a proteção da integridade física, assim como os estupradores.

A lei que estabeleceu a pensão alimentícia é parte das ordenações filipinas, baixadas pelos reis Filipe I e Filipe II, datada de 1603. Meu palpite é que 414 anos contribuíram para a digestão social. Mesmo assim, não duvido que, levada hoje a uma comissão especial da Câmara dos Deputados, composta por dezoito homens e uma mulher, acabaria revogada.

Então vamos em frente. E fast. O tempo urge.

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por Vanessa Agricola

Eu choro com o silêncio da Vivi e do Mario*, o silêncio que dividiram juntos, Mario contando: “Quando o sol esquentou, nos olhamos, os mais novos velhos amigos. Perguntei seu nome. Vilma, ela respondeu. Vilma, repeti.”

A Glória e seu Cortejo de Horrores… Na ocasião da polêmica do feminismo versus Fernanda Torres, me irritei demais que a criticassem. Senti a mesma coisa quando chamaram Caetano de pedófilo, agora. Cheguei a me posicionar em defesa da Fernanda, mas por Caetano contive meus impulsos após ter engolido as minhas próprias palavras junto com o mea-culpa.

Eu não entendia. Com quem estávamos falando quando falávamos de feminismo? Porque, aqui em casa, ele queria a barraca azul; ela, a vermelha. Adivinha qual cor de barraca compraram? Ela queria passar a Páscoa em Trancoso; ele, no Rio. Adivinha para onde foram?

Mas é óbvio que o Brasil não é a minha casa. A mulher, no Brasil, não manda em tudo, nem vai para Trancoso. Estamos a falar com um mercado que paga menos, uma sociedade que enxerga a mulher como um buraco, um homem doente que bate no corpo frágil.

Mais alguma coisa na mulher, além do corpo, é mais frágil?

Foi um homem que me falou que é científico (médico de renome, não qualquer um): o homem não consegue pensar em duas coisas ao mesmo tempo.

Tem um lado superior nisso, único: homens conseguem manter hobbies. O futebol de quarta à noite, o pôquer de terça. Pode parecer bobagem, mas o hobby é uma atividade fundamental para desestressar. Como uma meditação. E não, a mulher não consegue manter o compromisso de esvaziar os pensamentos. O baralho com as amigas vai para as cucuias se houver um problema em casa. Se o filho chegar triste da escola, cancela. Se existe alguma tristeza, fica para a semana que vem.

Um homem não cancela o pôquer, ele vai. Desliga a notícia do câncer de próstata do melhor amigo (porque o bichinho não comporta dois pensamentos ao mesmo tempo, como já falamos, e que é científico), e liga o botão: jogar bola.

É motivo de inveja para todas nós, mulheres, aqui na manicure, manicure nova (a Nelma está de licença), das unhas muito compridas. Ela tende a limpar as sobras do esmalte na minha cutícula utilizando as próprias unhas, o que me causa um nojo absoluto e me faz voltar a Mario.

“O matutino campeão de assinaturas foi testemunha do flagelo. Um crítico deveria ter a compaixão de não aparecer na noite do patrocinador, mas aquele não teve. Nenhum tem.”

Mario me faz pensar em mim. A mesa de seis jurados me olhando, a plateia em silêncio, todos assistindo minha apresentação de “Nada Tanto Assim”, do Kid Abelha, no palco.

Só tenho tempo pras manchetes no metrô /
Abri um jornal e escorei o corpo numa cadeira que quase caiu.
E o que acontece nas novelas /
Sentei na cadeira e apertei o botão do controle remoto que levei no bolso.
Alguém me conta no elevador
/

Levantei da cadeira e apertei outro botão, imaginário, do elevador.

No refrão: Eu tenho pressa e tanta coisa me interessa mas nada tanto assim/

Corri no lugar quando cantei “eu tenho pressa”. Em “tanta coisa” gesticulei muito com os dedos. “Me interessa”, apontei para o meu cérebro… Uma exaustão. Para mim, para a plateia, para os jurados.

No fim, era notícia boa que ninguém da minha família estava vendo. A música terminou, o silêncio permaneceu. Meia dúzia de educados bateu palmas, pessoas com coração. O primeiro jurado desligou o botão do microfone e cochichou com o outro. Os dois riram. A família da Bianca foi em peso. Bianca tinha se apresentado um pouco antes, dublou “Pintinho Amarelinho”, do Gugu, trajada com uma fantasia idêntica à do passarinho, que a mãe dela costurou. Fingi ter visto alguém no meio da plateia e dei um tchau. As pessoas que estavam na direção dessa pessoa que não existia trocaram olhares, para quem ela está dando tchau? Joguei um beijo. A voz do jurado interrompeu o delírio:

– Bom, eu ia te dar um sete, mas vou dar um seis.

Ele desligou calmamente o microfone e colocou em cima da mesa. Ligou calmamente o microfone em seguida: – Você não merece, mas vou dar uma justificativa. Você não estava nem olhando para esta banca quando eu ia te dar a nota. Seis.

Os outros jurados também deram seis, sem tecer justificativas. Ninguém falou da roupa, meu vestido vermelho idêntico ao da Paula Toller na capa do disco. Foi a Lu que mandou fazer o vestido. No meu sonho. Na real eu fui de calça jeans porque era rock’n’roll, camiseta branca porque eu não tinha uma vermelha, e o cabelo molhado de New Wave.

Mas foi a Lu, realmente, que me deu a dica de cantar “Nada Tanto Assim”, porque a letra era boa para fazer mímicas; eu podia levar um jornal, um controle remoto…

*Mario Cardoso, personagem principal de A Glória e seu Cortejo de Horrores, esse livraço de Fernanda Torres, que, apesar de masculino, me lembrou do feminismo, do feminino e dos meus fracassos.

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Pensar sobre o humano e seu comportamento coletivo tem sido meu interesse há alguns anos. As relações entre os seres que pensam e se reconhecem estão cada vez mais afastadas do que os fazem iguais, mesmo que diferentes.

Quando escolho uma figura de mulher ou símbolos femininos para fazer perguntas e instigar reflexões, o que me estimula em primeiro é a relação social na qual estão inseridos.

Rosas Púrpura (2012)

As meninas em “Rosa Púrpura”, em rosa e branco, estão ali pela posição de fragilidade, de vulnerabilidade, ao serem colocadas como possível objeto de abuso pela posição que ocupam e pelas roupas que vestem. A mulher de véu, com olhos vedados pela mão do homem, apresenta uma situação de violação. Em grande parte do mundo oriental, o sexo masculino é o que dita as regras do ver, e, nesse mundo, a mulher não é visível.

A mulher que luta no vazio em “Vã” briga por uma igualdade, é inconformada, não aceita regras de castidade, não aceita títulos nem obrigações, luta em pé em cima do ferro já retorcido pela trama de tantas disputas, onde o adversário, de tantos nomes, já não tem rosto.

O corpo no gelo é quase invisível em “A Frio”. Os abafadores de som talvez sejam para não escutar que por ser diferente, se é visto menor. O corpo ali não tem sexo e o que o faz menor? A cor? A ausência de pelo?

Em “Número Repetido”, onde aludo ao torturante trabalho ao qual o chineses são submetidos, ou em “Palomo”, quando tento provocar a reflexão sobre a tortura e o abuso de poder , entre tantos outros trabalhos que fiz, não existe a figura da mulher, não existe o símbolo do feminino visível, mas, de alguma forma, estão ali também, de algum modo frequentam aquela realidade.

Antes de pensar no feminino, me pergunto onde perdemos a capacidade de ver o outro como igual, seres da mesma espécie, onde perdemos o respeito pelo que é humano?

Quando todos calam (2009)

***

As performances de Berna Reale aqui reunidas – estejam elas registradas em vídeo ou fotografia – foram realizadas entre 2011 e 2015, ou seja, antes de dois eventos que escancararam uma há muito preparada mudança de paradigma civilizacional no Ocidente: na Europa, o Brexit; nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump. Esses acontecimentos, como sabemos, são ilustrativos de câmbios e deslocamentos maiores, que envolvem fatores como a geopolítica do Oriente Médio e a chamada “crise de refugiados” na Europa, o crescimento e recrudescimento da extrema-direita em países de tradição esquerdista, o tão discutido conceito da “pós-verdade”, entre outros.

Esse panorama, complexo demais para ser propriamente apresentado (e quanto mais discutido) neste pequeno texto, é aqui lembrado brevemente com o intuito de contextualizar a produção desta artista e apontar como as obras de arte de fato sensíveis ao seu tempo são capazes de não apenas se sintonizar com o zeitgeist, mas até mesmo de antecipá-lo.

Em sua prática, a artista transfigura-se em diversos personagens – fantásticos, estranhos, irônicos – para trazer suas performances à realidade, conferindo ao mundo de todo dia um caráter onírico, transformando-o em um sonho limítrofe ou um pesadelo do qual, mesmo que queiramos, não conseguimos acordar.

Palomo (2012)

Se isso era particularmente claro nas performances de rua realizadas em Belém, esse poder transfigurador se mostrou em toda sua potência nas performances fotográficas realizadas para o projeto “Precisa-se do Presente”. Nele, a artista viajou aos países integrantes do BRICS, onde, por não ter a estrutura necessária para uma produção complexa ou por se deparar com políticas públicas de censura, deu vida a alguns de seus personagens em locais privados e depois, por meio de fotomontagem, inseriu-os em ambientes públicos – sem que o artifício acarretasse qualquer perda ao efeito final.

As obras de Berna Reale parecem ter o dom de retirar seu observador do real, transportá-lo para o universo da fantasia. No entanto, adentrar o universo performativo de Berna Reale significa imediatamente ser expulso de volta à realidade, agora ressignificada: basta o espectador entregar-se à magia da ficção para perceber o mundo que se esconde por trás da arte, para absorver a imagem da barbárie como alegoria da civilização (imagem esta que finalmente, em 2016, perdeu seu caráter especular e tornou-se realidade aos olhos de agentes sociais que até então haviam escolhido não ver).

Com suas performances, suas imagens misteriosas, marchas oníricas rumo a lugar nenhum senão o mesmo, Berna Reale cria uma disrupção da realidade apenas para permitir que, dela, essa mesma realidade irrompa com mais força do que antes. A presença se reafirma pela ruptura, mais potente do que nunca – irrupção esta que significa, também, que sua crítica nunca foi tão necessária.

A Frio
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Em algum momento do século XVII, o padre Guilherme Pompeu de Almeida colocou no papel as seguintes ideias que estavam em sua cabeça:

“João Ramalho, filho do Reino, teve uma filha que se casou com Bartolomeu Camacho; este teve uma filha que se casou com Jerônimo Dias Cortes; este teve outra filha que se casou com Domingos Luiz, o Carvoeiro; este teve uma filha que se casou com João da Costa; este teve uma filha Maria de Lima que se casou com João Pedroso; estes tiveram a filha Ana Lima, casada com o capitão-mor Guilherme Pompeu de Almeida” .

Esse modo de expressar a cadeia de ancestrais mostra estruturas que parecem estranhas aos costumes ocidentais: revela apenas os nomes de homens por quatro gerações, enquanto omite aqueles das mulheres. Nas mesmas gerações, aparece apenas a nomeação “filha”. Apesar do silêncio sobre o nome, a genealogia segue de mãe para filha – e não, como no Ocidente europeu, de pai para filho. Apenas na quinta geração aparece um nome feminino, o de Maria de Lima – e a sequência continua a estrutura feminina, agora com homens e mulheres sendo designados como genitores.

O que levava um paulista do século XVII a pensar assim sobre seus ascendentes? Toda a estranheza, todo o ruído, desaparece quando se conhece o modo de conceber família dos Tupi-Guarani. Para esses povos, a filha era só do pai, pois acreditavam que o útero da mulher era apenas o local onde crescia o feto a partir do sêmen – o que explica a primeira diferença da genealogia, de citar apenas os nomes dos pais.

Já a estrutura que passa de mãe para filha é facilmente inteligível quando se conhece a organização dos grupos. Em todos eles, as mulheres eram as habitantes permanentes da casa. Passada a puberdade, na hora do casamento, os homens eram obrigados a procurar noiva em outra oca – ou, na via inversa, as filhas recebiam um noivo vindo de outra oca. Com isso, as mulheres se tornavam as habitantes permanentes, as mantenedoras da tradição. Avó, filhas, netas ficavam, cada qual com seu noivo vindo de fora e os filhos ainda não casados.

Com as duas informações, se entende muito melhor a genealogia feita pelo padre Guilherme Pompeu de Almeida. Em linguagem técnica da antropologia, trata-se de uma linhagem patrilinear (daí os nomes de homens) mas matrifocal (daqui a descendência pela linha feminina) por quatro gerações. Apenas na quinta aparece uma fusão parcial com o modo ocidental de pensar, com as filhas sendo atribuídas a pai e mãe, como no Ocidente, além de serem nomeadas. Só aqui a mulher que estrutura a sequência deixa de ser invisível.

Esse modo de pensar tupi, uma vez que se conhece sua estrutura, pode ajudar a entender a vida da família de um modo bem menos ortodoxo do que o registro desse viver que aparece nas genealogias paulistanas que a descrevem. O pai do padre, o capitão-mor Guilherme Pompeu de Almeida, embora filho de letrado, casou-se com uma mulher pobre e mestiça. Ao modo dos tupi, mudou-se, em 1630, para a recém-fundada vila de Santana de Parnaíba – a casa de sua mulher. Foi viver ao lado de seu sogro bastante indianizado, cujo apelido era “Terror dos Índios”. Comprou uma área de mineração de ferro abandonada, montou uma pequena oficina e passou a fornecer ferro para os parentes de sua mulher que circulavam pelo sertão, recebendo como pagamento parte das mercadorias que traziam na volta.

Ficou rico depressa e soube investir. Na segunda metade do século, era dono de uma grande manufatura com cinco oficinas especializadas na qual trabalhavam ao menos 200 artesãos, em grande maioria escravos nativos, mas com alguns mestiços e europeus (bem pagos, apesar de formalmente escravos) nas funções mais técnicas. Juntou dinheiro suficiente para financiar negócios de alto coturno e grande amplitude espacial, como a instalação de parentes mineradores em Curitiba, a transferência de cinco mil moradores de uma vila espanhola do atual território da Bolívia para São Paulo (faziam parte do grupo artesãos especializados que construíram os grandes tesouros artísticos e arquitetônicos paulistas da época) e a construção da Colônia de Sacramento, um ponto de contrabando bem em frente a Buenos Aires.

A quase totalidade desses negócios, apesar do volume crescente de dinheiro, era fundada apenas no costume, com os créditos sendo fornecidos e os débitos liquidados sem contratos – o fiado era a forma dominante de investimento de capital no sertão. Nos tempos do capitão, a única forma de registro encontrável para tais negócios eram as menções de dívidas nos inventários e testamentos de pessoas que morriam em meio ao andamento deles ou em esporádicas menções de atas das câmaras municipais. Já o filho letrado tinha o hábito de registrar as transações que fazia em cadernos – e um deles sobreviveu, tornando-se um dos raríssimos registros escritos dos negócios feitos segundo o costume no sertão.

Esses registros são, aparentemente, puro costume ocidental de comprar e vender, mas, se colocados num banco de dados, as referências aos negócios de pai e filho mostram pouca lógica quando cruzadas com uma genealogia construída no molde ocidental, que é patrifocal. Já quando as referências são cruzadas com uma genealogia tupi, construída com as mesmas categorias que definem família que o padre emprega para fazer a sua, todos os investimentos de capital se encaixam. Os créditos de negócio fluíam pelas linhagens matrifocais, pela casa feminina: os maridos das sobrinhas que vinham para ela recebiam bastante, os sobrinhos que casavam fora, bem menos. Em outras palavras, os investimentos de capital acumulado em padrão ocidental eram alocados segundo a lógica de um menor risco de inadimplência no parentesco tupi.

É um singelo exemplo que mostra como os modos de pensar e os costumes tupi operavam, em São Paulo, em camadas bem mais fundas que as formas legais de molde ocidental, inclusive no que se refere ao enriquecimento, à aplicação de capitais e ao financiamento de uma economia cada vez mais mercantil. O fato de que o padre-empresário respeitado por todos vivia com uma índia e tinha um filho com ela era apenas um detalhe.

E, nesta singeleza, o papel central da mulher como estruturadora de toda a vida do grupo – algo que vale para toda a sociedade colonial brasileira e toda a formação posterior do país – é, propriamente falando, a espinha dorsal invisível e ainda desconhecida da formação do Brasil.

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Anaïs Nin (1903-1977)
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O mal-estar no feminismo

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Fora do Brasil há alguns anos, eu nunca deixo de me surpreender com a recente valorização do feminismo pelas internautas brasileiras. Quando eu deixei o país em 2009, pouco se ouvia falar sobre o tema.

Na conclusão do meu bacharelado, por exemplo, apresentei uma monografia sobre a influência do pensamento de Hegel na obra de Simone de Beauvoir, e muita gente se mostrou surpresa com a minha escolha. Na época, em conversa com uma colega, ouvi o seguinte comentário: “mas você acha mesmo que ainda vale a pena discutir aquela escritora?”.

Na Europa, o clima era outro. No Brasil, Simone de Beauvoir só virou polêmica em 2015, por conta de uma questão do ENEM. Aqui, já desde muito tempo se comentava um renascimento do interesse acadêmico em Simone de Beauvoir, especialmente a importância das suas contribuições para a fenomenologia, a moral existencialista e a literatura.

Discutia-se não apenas sua contribuição para o feminismo e seu envolvimento político com movimentos da esquerda francesa, mas, acima de tudo, seu lugar na tradição filosófica ocidental.

Em outra ocasião mais recente, durante uma viagem ao Nordeste do Brasil, participei de um jantar na casa de um professor universitário. À mesa, homens e mulheres conversavam sobre planejamento familiar. Indagada sobre filhos, respondi que, se possível, gostaria de ter uma filha. Causei espanto, nem tanto entre os homens da mesa, mas, principalmente, entre as mulheres. Como se todas à mesa se sentissem obrigadas a defender o ideal de primogenitura masculina.

Hoje, nas redes sociais, essas mesmas mulheres compartilham fotos e citações sobre luta feminista e empoderamento. Mas até que ponto esse interesse pelo feminismo expressa uma preocupação legítima com o bem-estar da mulher na sociedade, e a partir de que momento ele se transforma num sintoma de ansiedade coletiva?

Na década de setenta, a escritora Anaïs Nin concedeu uma série de entrevistas e palestras sobre o processo criativo em relação ao sexo feminino, fazendo questão de destacar a importância da saúde emocional do indivíduo na implementação de mudanças dos costumes sociais. Considerada uma das criadoras do romance memorialista feminino, Nin explicou aos seus leitores como transformou a ideia do diário íntimo numa forma de arte através da qual ela acreditava ter sido capaz de encontrar sua própria voz – não apenas como escritora, mas sobretudo como indivíduo e como mulher.

Havendo atuado como psicanalista e tradutora de Otto Rank para a língua inglesa, Nin descreve, em ensaios e palestras da última década de sua vida, seus diários como uma peça-chave no processo de sua formação pessoal.

Longe de acreditar na infalibilidade de soluções políticas e ideológicas, ou na ideia de que é possível mudar tanto o mundo quanto a natureza humana, ela desenvolveu, através de seus diários, um feminismo de viés psicológico que resgataria o impulso criativo da mulher para que esta passasse a exercer sua vontade sem necessariamente sentir-se dilacerada pela culpa: “eu peço que a mulher assuma responsabilidade pelo seu desenvolvimento. Eu não exonero os agentes que impediram essa evolução, mas eu quero que cada mulher perceba que ela pode ser senhora do seu próprio destino”.

Assim, antes de agir em grupo e reproduzir bordões políticos, cada mulher deveria conhecer a si mesma e aprender a identificar seus problemas e obstáculos individuais. Ora, refrões não são suficientes para nos fortalecer como mulheres e indivíduos.

Dito isto, já na década de setenta, Anaïs Nin percebeu que o movimento feminista corria o risco de entrar em pane caso as mulheres insistissem em encontrar soluções para problemas íntimos e pessoais unicamente através da mobilização coletiva e do ativismo político, disso gerando nova dependência. De acordo com a autora, as influências negativas das lealdades de classe, raça e religião atuariam como obstáculos emocionais para o desenvolvimento da mulher como indivíduo e jamais conseguiriam ser exclusivamente resolvidas mediante a politização.

Em um ensaio chamado Notas sobre o Feminismo, ela ressalta que, enquanto generalização, todo bordão comunica apenas uma inverdade e que, por isso mesmo: “muitas mulheres inteligentes e muitos homens potencialmente colaborativos, sentem-se alienados por generalizações (sic) … a coletividade nem sempre nos empresta força porque ela apenas funciona através de um mínimo denominador comum”.

Assim, apesar de todos os compartilhamentos online de bordões e mensagens feministas, parece-me inacreditável que, em menos de uma década, as mulheres da classe média brasileira tenham superado preconceitos ancestrais. Certamente, algumas dirão que ainda não os superaram, que estão buscando se conhecer melhor e reconhecer os próprios limites. Mas a maioria das mulheres que eu conheço, quando indagadas sobre o feminismo, sentem-se agredidas, como se o exercício do debate ameaçasse a legitimidade de suas crenças.

Ora, em um país como o nosso – em que a cultura do machismo ainda prevalece e que o feminismo se tornou uma ferramenta importante para questionar os valores e costumes que ameaçam a segurança física e a integridade emocional da mulher –, faz-se cada vez mais necessário questionar a adesão repentina ao feminismo como profissão de fé.

Afinal, mudanças drásticas de comportamento, sejam individuais ou coletivas, nem sempre indicam saúde e progresso. Pelo contrário, tais mudanças, exatamente por serem repentinas, escondem motivações ainda desconhecidas. Carecem de fundamentação e correm o risco de serem revertidas com maior facilidade.

Se, por um lado, iniciativas como os projetos “Deixe Ela em Paz”, “Futuras Líderes” (UP[W]IT) e “Leia Mulheres” são fundamentais para desfazer mitos e afirmar o protagonismo de mulheres na nossa sociedade; por outro lado, o entrincheiramento político-ideológico da militância feminista ameaça comprometer o alcance e a estabilidade das conquistas do próprio movimento.

Anaïs Nin explica que esse entrincheiramento ideológico seria caracterizado por uma maneira obsessiva de pensar problemas que poderiam ser resolvidos individualmente caso suas integrantes fossem capazes de enfrentar e adotar uma postura inteligente e responsável sobre suas próprias hostilidades e fracassos pessoais.

Em vez de focar aspectos práticos, econômicos e sociais relativos à situação da mulher, Nin escolheu, durante as suas palestras, dar ênfase à dinâmica dos conflitos interiores e à ideia de que a robustez de todo e qualquer indivíduo reside no exercício da confrontação de si próprio.

Acreditando ser possível libertar-se independentemente das circunstâncias, Nin escreve que sua principal contribuição ao movimento de libertação da mulher teria sido fazer notar, em seu diário, que nenhuma outra opção surtiria efeito mais prolongado do que uma reforma íntima das atitudes e das crenças pessoais de cada uma de nós.

A raiva e o ressentimento que permeiam a linguagem do feminismo cibernético, com suas acusações gratuitas e transferências de responsabilidade pessoal, devem ser combatidas pelo bem das conquistas do próprio movimento. Afinal, como assevera Anaïs Nin, a raiva faz com que exageremos nossos problemas e impede que alcancemos o apoio e o reconhecimento necessários para evoluir e seguir adiante.

Ao contrário do feminismo acadêmico convencional baseado em formulações intelectuais sobre as circunstâncias da mulher na sociedade, os diários de Anaïs Nin nos oferecem uma versão do feminismo guiado tanto pela sua sensibilidade estética quanto pela sua sensibilidade psicológica.

Enquanto, por exemplo, o pensamento feminista de Simone de Beauvoir é marcado por ideias políticas, influenciadas principalmente por Hegel e Marx, as influências que informam o feminismo proposto por Anaïs Nin são outras, como, por exemplo, Freud e Proust. Ao enfatizar o papel da arte e do processo criativo no desenvolvimento psicológico, Anaïs Nin diz-nos: “o que eu mais gostei na psicologia foi a ideia de que o destino é interior e está em nossas mãos. Enquanto nós aguardarmos pela salvação através dos outros, nós jamais desenvolveremos a força que nós precisamos para nos salvarmos a nós mesmos”.

Assim, em sua peroração, Anaïs Nin permite-nos concluir que a liberação da mulher na sociedade envolve não apenas lutas políticas, mas, sobretudo, a superação de obstáculos emocionais particulares.

É justamente este apreço pelas circunstâncias e pelas peculiaridades de cada indivíduo que falta ao discurso de cunho feminista amplamente compartilhado nas redes sociais Brasil afora.

Ora, a mentalidade de grupo por si só não é capaz de fortalecer e libertar o indivíduo dos seus próprios preconceitos e amarras afetivas. Pelo contrário, oprime, aliena e enfraquece a vontade individual. Atira quem mais precisa de ajuda numa passividade e num discurso de vitimização que arriscam perpetuar uma dependência emocional e causar prejuízo a toda uma comunidade.

Na conclusão de Notas sobre o Feminismo, Anaïs Nin assevera que: “o pensamento majoritário é opressivo porque ele inibe o desenvolvimento individual e busca uma fórmula para todos. O crescimento individual empresta maior qualidade à vida em comunidade. Uma mulher desenvolvida saberá como cumprir com as suas obrigações sociais e como agir de maneira efetiva”. Escritas em 1972, essas palavras permanecem tão vitais e desafiadoras quanto elas soaram no momento de sua publicação.

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A canção “Homens Flores”, de Luís Capucho e Marcos Sacramento, que gravei no disco Babies, é uma pequena obra-prima. Ela canta:

os mundos são mais belos
quando olhados pela janela
e as colinas estão repletas de homens fortes
e eu olho pra elas
porque elas são o mundo inteiro
e eu olho pra eles
porque eles são o mundo inteiro
e eu olho pra elas
porque elas são meu terreno
e eu olho pra eles
porque eles são meu terreno
onde eu vou plantar
onde eu vou plantar
flores homens
homens flores
flores homens
homens flores

A letra e a melodia juntas passam uma sensação de profunda leveza, um feito que (não) se explica no mistério que pode ser alcançado pela intuição do compositor quando cria uma canção — um empenho do corpo inteiro, da memória, dos desejos, no passadopresentefuturo, integração cósmica da pessoa no espaço-tempo. Tento penetrar o mistério e entender de que ele é feito; os picos de alegria, onde estão.

A primeira coisa que me vem são os homens nas colinas, uma imagem que me remete à beleza clássica da Grécia Antiga, de exibição e celebração do corpo (me lembro também de Walt Whitman, que cantou a saúde dos corpos servindo de enfermeiro aos feridos da Guerra de Secessão dos Estados Unidos).

Na sequência, já aparece uma surpresa, porque justo depois de “e as colinas estão repletas de homens fortes”, é dito “e eu olho pra elas”. Sempre fiquei sem entender direito, mas o que me vinha, antes, era que se falava de homens como o gênero humano, que inclui os homens e as mulheres. Mas quando fui ao texto, a correção gramatical (que, para a canção, não vale lá grande coisa, pois está regida mais pelas sugestões sensuais do que pelo entendimento racional) me levou às “colinas”, ao “elas” e “eles”, aos “homens fortes”; assim, os homens são mesmo homens do sexo masculino. Mas, no fundo, é a beleza que se insinua no “mal-entendido” sintático que a deixa mais bonita. Depois de homens fortes, quando seria esperado “eles”, se diz “elas”; esse estranhamento faz unir o masculino ao feminino. Reforçado pela sequência de paralelismos, “e eu olho pra elas”, “e eu olho pra eles”, tanto elas como eles passam a ser a mesma coisa, “o mundo inteiro”, “meu terreno”, tornando indistintos os gêneros.

É nesse terreno que o cantor vai plantar os homens flores. Assim como todos nascemos do ventre da mulher, eles vão nascer do ventre da mãe terra. Uma dinâmica de diferenciação (na oposição repetitiva de “elas” e “eles”) e de conciliação dos contrários, que remete à unidade primordial anterior à criação.

E, ao fim, tudo retorna à primeira imagem: ali, nas colinas, onde estão apinhados sob o sol (quem diz do sol é a melodia) os homens flores — resplandecendo.

—

A palavra “misoginia” significa ódio ou aversão às mulheres, mas, seguindo a sugestão de Camille Paglia, ela adquire uma conotação mais complexa, que tem origem no medo das mulheres. Sendo assim, o sentido mais comum atribuído à palavra — o ódio às mulheres — seria, antes, uma consequência do medo. O escritor Jean Delumeau, no livro História do medo no Ocidente, dedica um longo capítulo, denominado “Os agentes de satã”, a três figuras párias da civilização ocidental: o muçulmano, o judeu e a mulher. Ele descreve o processo de diabolização da mulher pelo discurso católico oficial e pela literatura. Se o medo está na origem do ódio às mulheres, outro efeito desse medo pode ser também a adoração religiosa à mulher. Vinicius de Moraes é um exemplo desse último caso.

Percebe-se claramente, nos seus dois primeiros livros, em poemas como “A legião dos úrias”, o terror à mulher implantado pela formação católica do escritor:

(…) dizem os camponeses ouvir os uivos tétricos e distantes
dos cavaleiros úrias que pingam sangue das partes amaldiçoadas.


são os escravos da lua. vieram também de ventres brancos e puros
tiveram também olhos azuis e cachos louros sobre a fronte…
mas um dia a grande princesa os fez enlouquecidos, e eles foram escurecendo
em muitos ventres que eram também brancos mas que eram impuros.

e desde então nas noites claras eles aparecem
sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos
e vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e das mães sozinhas
e das éguas e das vacas que dormem afastadas dos machos fortes (…)


De sua “desconversão”, na obra posterior, podemos tirar os versos mais apaixonados de veneração à mulher, que, embora de carne e osso, guarda a aura da mulher total, da santa Virgem Maria.

Se o medo está na origem, todo homem é misógino. A alteridade feminina se mostra ao homem por demais misteriosa (e ameaçadora). Uma coisa fundamental torna muito diferente a experiência de estar no mundo do homem e da mulher: a maternidade. O fato de poder gerar uma vida dentro de si faz com que a mulher esteja conectada com as forças da natureza de um modo que o homem é incapaz de estar. Mesmo para as mulheres que não são mães, o ciclo menstrual as põe em compasso com o movimento da lua. Não consigo imaginar uma experiência mais telúrica do que sentir crescer um ser humano dentro da barriga — a posição de cócoras utilizada por muitas mulheres no momento de parir faz os pés parecerem raízes fincadas no solo. O grito de dor é grito que invoca toda nossa ancestralidade de bicho.

(O grito da maior dor, a do parto, é o mesmo grito do maior prazer, o do orgasmo. O grito que dá a vida é o mesmo que emitimos quando morremos no momento do prazer extremo, que Georges Bataille chamou de “pequena morte”. Essa similaridade perturbadora também só pode (não) ser compreendida na dimensão mítica

obs.

perdi a razão
querer entrar por onde saí
que quer dizer
essa louca intenção
tudo é circular
morrer morrer morrer
morrer onde nasci
morrer entrar nascer sair
querer entrar por onde saí
morrer entrar nascer sair
querer entrar entrar
de novo sair
perdi a razão
)

O mundo é concreto para as mulheres; acho que daí vem o gosto muito natural pelas coisas, pela aparência, que vai dar no clichê do consumismo. Daí também um tipo de intelectualidade muito diferente da do homem, este mais inclinado ao conceito e à abstração — me lembro da Hannah Arendt dizendo, numa entrevista, que não gostava de ser chamada de filósofa, mas de cientista política; de fato, seus textos têm uma inteligência com sabor de terra. Não à toa, a condição humana, para ela, é o estar entre seus pares, ou seja, a política. É claro, as mulheres têm seu jeito de estar com a cabeça nas nuvens, assim como os homens também têm o seu, mas estes parecem ter mais do que a cabeça, o corpo todo nas nuvens, inábeis para lidar com a beleza diária das coisas práticas, enquanto a mulher parece se relacionar com isso de forma mais espontânea e bem resolvida. E a imaginação feminina vai para outros lugares, não sei bem dizer quais; talvez para uma fantasia de totalidade, porém conectada com o chão.

Assim, o estar no mundo feminino, com sua lógica conciliatória — deveríamos sempre pensar na hipótese de que, se não fossem os homens, não haveria a guerra; uma mulher que sabe e sente e possui o poder de dar a vida não é capaz, enquanto coletivo, de criar a instituição que a extingue. A noção de progresso, calcada numa posição declarada de rivalidade contra a natureza, da criação do artifício, é necessária, masculina, antifeminina — ainda como diz a dissidente feminista (inteligente e controversa) Camille Paglia, o homem quer se separar da mãe e, por isso, sai a vagar e buscar proteção na arquitetura, na arte etc.

—

O homem não deixa a mulher falar porque ela representa o perigo ao modelo masculino de civilização. Ele tem medo dela.

—

Interessante notar que justamente hoje, quando muitos intelectuais estão refletindo sobre a ruína do norte racionalista — que tem seu maior e mais brutal exemplo no utilitarismo capitalista, justificativa inconteste para as maiores atrocidades humanas —, retornando ao frescor da ciência prenhe de fantasia do medievo, o que se deseja é mais irracionalidade. Em outras palavras, mais corpo, intuição, contribuições dos sentidos para as formas de convivência. O corpo é o contradiscurso — ele é do império feminino.
—

Uma amiga, outro dia, no café (quando perguntei se concordava com o que Françoise Dolto dizia, que a sexualidade feminina está culturalmente menos localizada no órgão genital e que isso era resultado de uma sublimação na obra, ou seja, filhos, família etc., o que me tinha parecido um discurso anacrônico com o debate feminista atual), me disse que a própria estrutura do canal da vagina faz o prazer sexual irradiar para dentro do corpo e imantá-lo de um jeito difuso, que a maioria dos homens não entende isso e que, por esse motivo, ela (assim como outras) passou também a buscar satisfação sexual com outras mulheres. Uma outra amiga, para quem pus a mesma questão, me disse que concordava com Dolto, ainda que o lugar do prazer estivesse recolocado nos dias de hoje — o direito ao prazer sem o julgamento moral de origem, notadamente, masculina.

—

Segundo o mito, o andrógino está na origem. Desafiamos os deuses, e Zeus nos separou em homem e mulher. A partir de então, não paramos mais de buscar a metade perdida. Reproduzimos para tentar nos fundir novamente.

—

Meu filho de três anos me disse que queria ser menina porque queria ser igual à mamãe. Outro dia, vendo minha filha, tive o entendimento claro de que nela eu me tornei menina — de verdade, com fundamento biológico.

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Os adolescentes denunciam, atualmente, na clínica psicanalítica, algumas contradições importantes da nossa sociedade atual. Ao trazerem questões a serem valorizadas, algumas merecem que nos debrucemos com mais cuidado.

Explico. Em primeiro lugar, hoje em dia, ser homofóbico é tido como um defeito inadmissível. Existe um respeito por aquilo que é diferente. Ponto para a nova geração. Nos anos 90, ninguém sabia que essa palavra existia, e hoje ela é repetida inúmeras vezes como uma falha que deve ser levada a sério: “Não falo mais com fulano, ele é homofóbico, você acredita? Que absurdo”. Escuto essa frase com frequência no consultório e recebo com animação a geração que está chegando. Talvez o futuro possa ter um horizonte mais tolerante, com mais respeito e mais compreensão.

É também muito rico esse movimento das meninas que lutam pelo feminismo, se questionando sobre ser mulher. Brigam para serem ouvidas na escola, enfrentando, a seu modo, uma sociedade que emoldura e enfraquece as mulheres. Às vezes, elas até exageram, achando que qualquer gentileza é sinal de machismo: “Ele abriu a porta do carro no primeiro encontro, que machismo!”.

Adolescente costuma exagerar no tom, para se fazer ser visto e ouvido, para tentar compreender e ser compreendido. Tudo nessa fase da vida é grande, em CAPS LOCK. Mas, de maneira geral, é bastante esperançoso ver meninas de 13 anos pensando sobre isso durante suas sessões de análise. Parece-me que esse questionamento tem aparecido antes de sentirem-se acuadas no papel de mulher. Percebo que hoje a feminilidade é construída junto dessa reflexão.

Por outro lado, alguns temas merecem mais cautela: a propagação de letras de funk que são absolutamente misóginas é um deles. Essas mesmas meninas que brigam para serem respeitadas pelas suas escolhas sexuais, por outro lado, entoam mantras de funkeiros que são absolutamente desrespeitosos com a figura feminina e até violentos. Às vezes, penso que essas jovens que cantam essas canções não compreendem de fato o que estão propagando. Será que gostariam de ser tratadas pelos parceiros como as personagens que vivem em suas playlists? É só ouvir Mc Jhon Jhon. Mc Princesa ou Baile de Favela para saber do que estou falando. A velha Tati Quebra-Barraco fica no chinelo.

O fato é que o que toca hoje nas ondas do rádio e no YouTube dos funkeiros tem um tom de violência e de desqualificação da mulher. Os tais “proibidões” são a antítese desse discurso feminista; colocam a mulher num contexto que banaliza não apenas a sexualidade, mas também as drogas.

A sexualidade na adolescência é assunto sério. O desabrochar dessa fase marca toda uma relação eu-corpo que dura por toda a vida. A intimidade não pode ser excluída desse período, como se fosse algo sem valor. Não é peça de antiguidade; é um espaço importante da construção do psiquismo, impossível de ser deletado.

Recentemente, assisti ao documentário Hot Girls Wanted, que investiga a entrada de jovens meninas para o mercado pornográfico. Todas por volta de 18 anos, em busca de dias de glória e glamour. “Já que vou transar, por que não filmar? Já que o nude pode vazar, melhor eu mesma me expor, por vontade própria” – afirma uma atriz. São meninas que entram nesse mercado em busca de fama e sucesso às custas de uma exposição violenta, precoce. Uma decisão impulsiva, um acting out em busca de independência.

A maneira como o filme se desenrola é bastante respeitosa. O olhar do diretor não se aproveita do corpo das moças – o que é raro, em geral, pois sempre se tira uma casquinha das atrizes. No caso, embora o documentário fale de sexo, não exibe nudez. O assunto é manuseado com o cuidado necessário – cuidado este que as mesmas atrizes não têm consigo mesmas, muitas vezes descartando o uso de preservativo para ganhar mais. Uma das meninas conta que fez uma cena de sexo e recebeu cem dólares a mais, mas, como teve que comprar a pílula do dia seguinte, lucrou apenas oitenta.

É muito triste para o espectador ver a falta de intimidade dessas meninas consigo mesmas, com seus sentimentos, a falta amor pelo próprio corpo; o olhar por vezes assustado, por vezes opaco, que elas trocam com os parceiros-atores, a violência à qual se submetem.

Fiquei surpresa ao saber que muitas delas se dispõem a um tipo de filmagem de uma categoria chamada Facial, na qual são humilhadas na frente das câmeras, sofrem violência física, fazem sexo forçado até vomitar, dentre outras coisas tão chocantes que considero de mau gosto redigir. Essa categoria do pornô está disponível para quem quiser ver num simples clique. O filme é uma denúncia triste. Vale assistir para refletir sobre o fato de que toda uma geração formará sua sexualidade assistindo vídeos na internet, esbarrando em conteúdos como esses, ouvindo canções repletas de violência e promiscuidade, que podem vir a ser as canções tema de uma noite especial.

O fantasiar, hoje, foi substituído pelo Google; porém, muitas vezes, o conteúdo digital é assustador. A internet oferece possibilidades diversas, sem que o jovem tenha um aparelho digestivo psíquico suficientemente forte.

Devemos pensar cuidadosamente sobre como as mídias podem ser invasivas, sobre o que é informação e o que é lixo eletrônico tóxico, cujos resíduos ficam marcados permanentemente na mente em formação.

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Terça-feira é dia de comprar flores e acender uma vela para Nossa Senhora Aparecida.

Estes eram os únicos motivos que me faziam sair da cama no primeiro mês após o falecimento da minha mãe, numa terça-feira de maio do ano passado.

Era inaceitável, para mim, que uma pessoa de 66 anos, tão amável, fosse embora após 6 meses de tanto sofrimento. Dona Eva, mulher forte, guerreira, de fibra!



Comprar e fotografar flores nunca foi uma novidade para mim, mas, após esse momento, por algum motivo, isso passou a ter outro significado.

Dona Eva sempre gostou de flores, principalmente de “amor-perfeito” – em francês, “Pensée”, que significa “pensamento” e que os amantes davam como presente antes de se ausentarem durante tempo indefinido, como garantia de que o seu amor nunca cairia no esquecimento.

O amor-perfeito está associado ao amor de mãe. É a mensagem simbólica de um amor que não se acaba. É infinito.

Esse hábito virou uma obsessão.

Começaram a ser frequentes as madrugadas no CEAGESP, assim como as madrugadas fotografando essas flores; uma maneira de ocupar minha insônia.

Passei horas atrás de uma câmera 4×5”, fotografando uma única flor, nos mais variados formatos de filmes e polaroides que eu vinha guardando desde 2010.

Mais que uma obsessão, esse hábito se tornou uma maneira de, em cada foto, eu estar conectado em silêncio com minha mãe.

For_Eva, uma sutil brincadeira com forever, algo que não se acaba, infinito.

O tempo passou, e o meu luto se acalmou, mas o hábito de fotografar flores e dedicar à Dona Eva vai continuar por toda a minha vida.

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Início, mansamente incisivo, chamando a atenção para o artigo definido masculino, “o”, para se referir ao “feminino”.

O que significaria um título como “A Feminina”?
Quem entenderia, e comentaria o que a respeito?
Seria o início da história de uma “mulher feminina”?!
O nome de uma loja? A marca de uma nova lingerie?

Uma cultura constrói uma linguagem – uma linguagem reflete uma cultura – em que conceitos e valores, conscientes e inconscientes, se sucedem no discurso, tanto erudito e estruturado quanto cotidiano e coloquial.

Falando, fixamos… Fixando, falamos…
É um contrato… Ele desenha um círculo…

Quebrar esse contrato gera medo, irritação, pode chegar ao ódio, construir ideologias, fazer aflorar revoltas justas, vingar antigas prepotências. Revela o quanto a reversibilidade – ou a irreversibilidade – da linguagem significa arejamento, inclusão, revisão e, portanto, inteligência, e o quanto a rigidez dos seus fraseados gera ilusão, exclusão e preconceito.

Diriam os linguistas de intenções culturalistas:
— Se já cabe nas palavras, um dia caberá nos costumes e valores, transformando os hábitos. Se ainda cabe convicta e veementemente nas palavras, é sinal do quanto a rigidez da tradição se defende das mudanças com as palavras.

Ou seja, as mudanças se mostram nas palavras.
Daí a importância do discurso.
Daí, para quem os tem em alta consideração, a importância dos poetas.
Mas nem todos assim creem. Talvez porque não vejam, talvez porque vejam a partir de pontos de vista cujas história e origem sejam tão alheias que não lhes cabe considerar.

Dentre esses outros – dos que não enxergam as palavras e o frasear como espelhos da cultura, considerando que é possível estudar uma cultura, sua rigidez e suas mudanças, a partir das suas palavras –, dentre esses muitos, podemos arbitrar alguns conjuntos.

(i) Aqueles que consideram “o feminino e o masculino” – notem que não escrevo “a feminina e o masculino” – o produto evolutivo de um processo darwinista milenar, em que o acaso e a determinação interagiram de maneira a criar poderes associados a papéis sociais e papéis associados a poderes. Musculosos machos caçadores, ancestrais e seminais, servindo e protegendo cuidadosas fêmeas maternais receptivas, e vice-versa, num contrato arqueo-antropológico capaz de oferecer as fundações de um certo tipo de discurso para os milênios sucedentes.

(ii) Aqueles que creem firmemente, conforme fixa a Escritura, que “(…) macho e fêmea os criou (…)”, descartando a fé na pretensa ciência evolutiva em nome da religiosa fé criacionista.

(iii) Aqueles que se dedicam a engendrar mil sutilezas, na tentativa de integrar tais abordagens, buscar outras e inovar.

Aqui, no entanto – mesmo atento, respeitoso, e incluindo tais hipóteses –, eu escolho o caminho das palavras. Elas refletem a realidade – ao menos algumas realidades – e podem mudar a realidade – ao menos algumas realidades. Consideremos uma declaração:

Assim como a alimentação humana não é um ato biológico cujo objetivo é a sobrevivência – ela é um ato social cujo objetivo é o compartilhamento e a celebração das relações sociais e do alimento –, também a sexualidade humana não é um ato biológico cujo objetivo é a reprodução – ela é um ato social cujo objetivo é o prazer, incluindo o compartilhamento e a celebração dos corpos.

Pois bem, nesses maravilhosos tempos bicudos, nos quais discutimos intensa e apaixonadamente, há décadas, muito daquilo que imaginamos – ilusoriamente – ter estabilizado por séculos, qualquer tema se torna rapidamente polêmico, gerando disputas e polarizações cujas latitudes vão de estudos acadêmicos e reportagens de improviso a passeatas inflamadas e rupturas de amizades, afetando fortemente as expressões, as relações e, certamente, a literatura, a arte e a educação.

O “feminino” – com sua inexplicavelmente obrigatória contraparte, o “masculino” – não ficaria de fora do elenco dessas discussões centrais. Que seja!
Natural ou cultural?

A resposta, a meu ver, integradora, é “culturalmente natural e naturalmente cultural”, principalmente via discursos, cujas intenções devem ser interpretadas não apenas nas maravilhas que tais antigas falas procuraram evidenciar, mas nos horrores que sempre procuraram ocultar e disfarçar.

Um desses horrores, hoje em evidência transformadora e corajosa, é a opressiva prepotência da tal “estabilidade bem assentada dos papéis sociais dos gêneros”, ao ver de muitos “consolidadora de uma sociocultura contratada, e funcionando muito bem”, com suas barbaridades escondidas.

Do lado analítico, sempre usando as palavras, esse discurso por milênios ocultou a intenção de submissão via opressão, a atribuição dos papéis “chatos”, na milenar exploração, usando o gênero.

Gerou consciência da evidência, gerou revolta, gerou novos discursos, e hoje interdita frases e expressões no curioso mecanismo histórico segundo o qual “o (novo) discurso proíbe o (velho) discurso” e se estende para além “do feminino”, procurando “a feminina” – que, como vimos de saída, ainda não existe na linguagem –, mas já dá sinais como “conceito” e, portanto, existirá.

No entanto, há mais.
Como é usual em tais (r)evoluções, as ousadias vão além!
Entre “a feminina”, “o feminino”, “a masculina” e “o masculino”, o que encontramos?

A masculina e o feminino poderiam se dar bem?
Também a feminina e a masculina?
E que tal a masculina e a masculina?
Ou, quem sabe, o feminino e o feminino?
Ou, até, haveria ainda espaço para o masculino e a feminina?

Consideremos as frases “essa homem é um mulher”, ou “esse mulher é uma homem”, e, até mesmo – que arcaico! –, “esse homem é um homem” e “essa mulher é uma mulher”, ou “esse homem é masculino”, “essa mulher é feminina”, ou “esse homem é feminino”, “essa mulher é masculina”.

Esperta e ágil, a cultura criou novas palavras: masculinizada e afeminado.

Atentem às terminações, masculinizada e afeminado, dando um sentido de “processo”: (…) ela foi se masculinizando, ele foi se afeminando, um dia se encontraram no éden das oposições reversas, e foram felizes para sempre (…)

Descartando as ironias que tangenciam o mau gosto – necessariamente ilustrativo e ilustrativamente necessário –, um dia, faz tempo, a linguagem aconteceu para os humanos de maneira tão estruturada, estruturante e refinada que se tornou “Grande Senhora”, construtora de contratos e cultura, assim como de ardil, cinismo, exclusão, prepotência, mentira, preconceito, opressão e traição.

Os humanos desenvolveram competências especiais – fazer, falar, pensar, sentir – e se tornaram capazes de fraturar essas instâncias “fazendo o que não sentem ou que não pensam”, “sentindo e pensando o que não fazem” e, até mesmo, “fazendo e falando o que pensam e sentem” – que perigo! –, num jogo social e cultural, também sexual, também oral, anal e genital, ético e erótico, prático e político, cuja complexidade simplesmente ri das nossas precárias categorizações e dos nossos ridículos esforços de “fixar nossos costumes”, abrindo mão da única possível maravilha da nossa humana condição: transformar, procurando aprimorar, a cultura via linguagem.

A cognição funciona por categorização, está no meio.
Antes dela, a intuição nasce integrada.
Depois dela, a imaginação planta o futuro.
Quando os humanos descobriram os substantivos – dando nomes, via fala, a pessoas e objetos –, houve um avanço.
Quando os humanos conseguiram elencar tais pessoas e objetos em conjuntos, dando nomes aos conjuntos, isso dependeu de adjetivos, e houve um grande avanço.

No entanto, foi quando os humanos descobriram que todos os adjetivos poderiam, boiando sobre eles, colorir todos os substantivos que se iniciou o grande salto da imaginação. Nasceu a poética.

Então, todas as representações mentais do mundo podiam se superpor umas às outras, e essa intimidade poderia projetar-se sobre o mundo natural, criar mundos culturais e, até mesmo, emular culturalmente os mundos naturais originais. A natureza da cultura e a cultura da natureza nasceram integradas, até que uma cultura as separou.

Nós não conhecemos a história das culturas que não se apartaram da natureza porque nós não apenas as destruímos como também destruímos seus registros e vestígios. Ao que parece, dos poucos registros que ficaram, essas culturas não tinham um sentido de “inclusão” ou de “exclusão”, tais como temos hoje, por não terem suas categorizações tão rígidas. Talvez já tivessem a capacidade de superpor quaisquer adjetivos a quaisquer substantivos, o que lhes conferia suficiente imaginação para criarem o pensamento mágico – na verdade, uma poética. Não se tratava de categorizar uma homem como afeminado ou um mulher como masculinizada, porque os fatos são os fatos, os sentimentos e as ideias são os sentimentos e as ideias, porque as falas são as falas, os desejos os desejos, integrados num potente todo arcaico. Foi o desdobramento, a atualização – no sentido de uma potência virar ato – dessa ancestral integridade que, (i) categorizando, permitiu cognição; (ii) adjetivando, galgou falar das qualidades; e (iii) colorindo certas coisas com qualidades improváveis, criou o imaginário. Daí a poética estar acima da razão – e acima da política, da estética, da ética, da prática e da erótica. Daí a poética se manter pelos milênios, em qualquer que seja o tempo, como a fonte das nossas esperanças mais potentes.

Assim, é pela poética, e não por outra via contratual, que eu aqui escolho ilustrar as infinitas gradações que se estendem do masculino ao feminino, do feminino ao submisso e ao maternal, do masculino ao heroico e provedor – e vice-versa, tergiversa essa conversa… –, fazendo a esse mundo cultural uma pergunta natural: Por que não cabe? Por que não cabem as evidências existentes, as gradações e as sutilezas que individualizam os indivíduos? Por que não cabem as singularidades singulares que constroem a abstração do universal? …O feminino? …Assim tão masculino?!

O que a floresta tem a dizer sobre o que cabe na floresta?
Sobre o que nasce na floresta, vive e morre na floresta?!
E o oceano sobre o oceano? As estrelas sobre o céu?
Por que a dignidade não é devida pela simples evidência da existência?
Por que a dificuldade de respeitar o direito a ser, só porque nasceu e é?
Por que a dificuldade de acolher aquilo que a vida manifesta?
Observando, estudando e meditando, ofereço uma resposta.

É porque os humanos odeiam os humanos por espaço. Porque esse espaço não é só físico. Ele é mental, é social, é cultural. Porque os humanos desejam e almejam as semelhanças que os façam se sentir espelhados e seguros. Porque os humanos temem as diferenças como potencialmente destrutivas das suas identidades tão precárias e medrosas.

No entanto, alguns humanos – que se consideram, a meu ver erroneamente, mais humanos do que outros – apreciam e são capazes de integrar a cultura e a natureza, acolher o que aparece como vida manifesta, e mostram-se afáveis e curiosos antes de apedrejar sem saber quem. Porque alguns humanos aprenderam que ninguém deve ser julgado, condenado ou excluído por ser aquilo que é inerente ao seu ser próprio, aquilo que ele ou ela não poderia deixar de ser: elea, ou elae, se caso for. Aqui, porém, ao dizer “se for o caso”, eu conduzo a presente caminhada ao seu final.

Da mesma forma que devemos acolher, culturalmente, a natureza que se mostra tão evidente, que devemos evitar os preconceitos – e os preceitos, que intencionam, infantilmente, fixar nossos valores além do que a história das mentalidades autoriza –, não devemos permitir que tais (r)evoluções forcem humanos a desejar o que não desejam, a fazer o que não aceitam, ou a ser o que não são.

Cuidado, portanto, com a sombra semelhante que, reversa, via revolta, via deboche, via anarquismo, deseja apenas destilar, como ódio, as velhas mágoas.

Incentivemos nas pessoas a coragem para olhar dentro de si, saber quem são, e achar no mundo seus justos espaços singulares. Evitemos permitir (e, pior ainda, incentivar) que os humanos cometam os mesmos erros, ao reverso, que hoje pretendem denunciar e corrigir.

É verdade, integradora, que os gêneros evoluíram em processos bioquímicos, que a reprodução sexuada, que a mitose, que a meiose, geraram endocrinologias que influem nos psiquismos e nas disposições afetivas e sociais.

É verdade, integradora, que os humanos, via linguagem, criam e contratam – desejando, ou à violenta revelia – culturas que mudam com o tempo, construindo a história das mentalidades.

É verdade, integradora, que as categorias que criamos para pensar e conhecer a natureza são invariavelmente pobres e precárias face à imensa variedade com que a natureza “não dá saltos” mas, ao contrário, é toda feita de gradientes ante os quais a linguagem está sempre aquém.

É verdade, integradora, que não vivemos hoje, como sempre, apenas mais uma época de transição. Estamos diante da transição de uma época. Tal transição redefine “o feminino” e, com o tempo, criará novas palavras refletindo tal conceito.

Esse “Novo Feminino” é uma “Nova Feminina” para a qual nossas palavras são ainda inconsistentes. Tradicionais adjetivos já não cobrem os predicados que hoje surgem, e os que ressurgem dos milênios soterrados, quando as mães lideravam as divisões e criança alguma era esquecida; quando o mênstruo, o sêmen, o gozo e a gravidez, cada qual com a sua lógica, ainda não eram associados; quando os afetos não censuravam os carinhos, nem os corpos discriminavam as carícias. Essas memórias – naturais?! – constituem o alicerce do que veio, a linguagem ampliou as possibilidades culturais

E aqui chegamos a esse assunto atualmente tão falado.

Não há por que apartar o que foi junto nem deixar de unir o fraturado.

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Pélias, o rei usurpador de Iolcos, foi amaldiçoado pela rainha dos deuses, Hera, por não lhe ter oferecido os devidos sacrifícios. Em profecia, ele é advertido de que sua derrocada virá por um homem sem uma sandália e, ao ver Jasão, o filho de seu meio-irmão Esão e legítimo herdeiro ao trono, descalço de um pé, decide enviá-lo a uma missão suicida: resgatar o Velocino de Ouro na ilha de Cólquida, governada pelo rei Aetes, pai de Medeia. Em troca, promete lhe entregar a coroa. Após uma odisseia pelo mediterrâneo, o navio de Jasão, o Argo, se encontra escondido num rio da Cólquida.

Venha, Érato, ó musa, junto a mim, e conte como Jasão trouxe de volta o Velocino de Ouro a Iolcos ajudado pelo amor de Medeia. Você compartilha o poder de Cípris e, através dos seus encantos, é capaz de enfeitiçar donzelas; portanto, a você é atribuído um nome que fala de amor.

Assim, os heróis aguardavam emboscados, flutuando entre grossos caniços, mas Hera e Atena os notaram e, apartadas de Zeus e dos outros imortais, entraram num quarto para deliberar entre si. Hera foi a primeira a interpelar Atena: “Dê-me você primeiro, filha de Zeus, algum conselho. Que fazer? Você seria capaz de elaborar algum estratagema através do qual eles consigam capturar o Velocino de Ouro de Aetes e trazê-lo à Grécia, ou acaso eles serão capazes de enganar o rei com palavras sutis e assim persuadi-lo? Ele é terrivelmente presunçoso. Ainda assim, não devemos recuar ante nenhum desafio”.

Imediatamente, Atena respondeu: “Também eu estava ponderando tais ideias em meu coração, Hera, quando você me perguntou. Mas creio que ainda não concebi um plano para auxiliar a coragem destes heróis, embora tenha considerado muitas possibilidades”.

Então a deusa, pensativa, fixou seus olhos no chão sob seus pés, e imediatamente Hera expôs seus pensamentos: “Venha, vamos falar com Cípris; nós duas iremos a ela e pediremos que mande seu filho disparar sua flecha contra a filha de Aetes, a feiticeira Medeia, encantando-a com amor por Jasão. E creio que através das maquinações dela, ele trará de volta o Velocino de Ouro à Grécia”.

A astúcia desse plano agradou a Atena, que respondeu com palavras gentis: “Hera, meu pai me gerou para ser uma estranha aos dardos do amor e eu não sei nada sobre sortilégios para despertar paixões. Se, porém, a conversa é do seu agrado, certamente eu a seguirei, mas você deve falar quando a encontrarmos”.

Então elas seguiram adiante, chegando ao magnífico palácio de Cípris, que seu marido, o deus manco, construiu para ela quando pela primeira vez a trouxe de junto a Zeus para ser sua mulher. Entrando na corte, elas permaneceram sob o pórtico do quarto onde a deusa preparara o divã de Hefesto. Porém, ele saíra cedo rumo à sua forja e à sua bigorna numa larga caverna em uma ilha flutuante, onde, através do sopro das chamas, forjou muitos artefatos curiosos, e ela estava sentada sozinha, em um assento lapidado de frente para a porta. Os cabelos cobriam seus ombros brancos de um lado ao outro como um manto. Ela os penteava com um pente dourado e estava a ponto de entrelaçar suas longas madeixas, mas, ao ver as deusas à sua frente, parou e convidou-as a entrar, e ergueu-se de seu assento, acomodando-as em divãs. Então, ela mesma se sentou e, com suas mãos, juntou as tranças ainda despenteadas. Sorrindo, dirigiu-se a elas com palavras astutas: “Queridas amigas, que propósito, que ocasião as traz aqui depois de tanto tempo? Por que vieram, outrora visitantes não tão assíduas, soberanas entre os deuses que são?”

Hera replicou: “Você zomba de nós, mas nossos corações estão agitados por calamidades. Pois agora mesmo no rio Fásis o filho de Esão ancorou o seu navio, ele e seus companheiros, em busca do Velocino. E eu o restituirei, ainda que ele tenha de navegar até o inferno para libertar Íxion de suas correntes de bronze, até onde houver força nos meus membros, para que Pélias não zombe por ter escapado a uma maldição – Pélias, que me desonrou ao não oferecer seus sacrifícios. Ademais, eu já queria bem a Jasão antes, desde que na foz do rio Anárus, durante uma enchente, enquanto eu provava a integridade dos homens, ele me encontrou ao retornar de sua caça. Todas as montanhas e os picos escarpados estavam cobertos de neve e, de lá, as torrentes se precipitavam com rugidos. Eu estava disfarçada sob a figura de uma velha decrépita e ele teve piedade de mim; erguendo-me em seus ombros, ele mesmo me carregou através das correntes furiosas. Por isso eu o honro sempre. E quanto a Pélias, ele não pagará a pena por sua profanação, a menos que você queira conceder a Jasão seu retorno”.

Cípris ficou sem palavras e, vendo os rogos de Hera, ela se espantou e, então, respondeu com palavras amistosas: “Deusa terrível! Que jamais se encontre alguém mais vil que Cípris, se eu desdenhar seu ardente desejo em atos ou palavras, seja lá como meus fracos braços puderem lhe servir, e que não haja nenhum favor em retorno”.

Hera mais uma vez falou-lhe com prudência: “Não foi em busca de coragem ou força que viemos. Queremos que, discretamente, você induza seu menino a enfeitiçar a filha de Aetes para que ela se apaixone por Jasão. Se ela o ajudar com seus conselhos, ele conquistará facilmente, creio eu, o Velocino de Ouro e retornará a Iolcos, pois ela é cheia de artimanhas”.

Então, Cípris disse às duas: “Hera e Atena, ele há de obedecer mais a vocês do que a mim. Mesmo sendo o insolente que é, estou certa de que, diante de vocês, alguma vergonha há de despontar em seus olhos. Por mim, ele não tem nenhum respeito e sempre me irrita. E exausta com seu atrevimento, tenho ganas de quebrar suas flechas e seu arco bem diante de seus olhos, pois, na sua irritação, ele me ameaça dizendo que, se eu não mantiver as mãos longe dele enquanto ainda domina seu gênio, terei motivos para me arrepender depois”.

As deusas sorriram e se entreolharam. Mas Cípris falou novamente, vexada em seu coração: “Para os outros, minhas tribulações são motivo de riso, e eu não deveria mesmo contá-las a todo mundo. Eu sozinha já as conheço bem demais… Mas agora, já que é do agrado de vocês duas, tentarei persuadi-lo, e ele não ousará me dizer não”.

Hera tomou sua delicada mão e, sorrindo, gentilmente respondeu: “Faça isso, Citereia, agora mesmo, como você disse. E não se irrite nem brigue com o garoto; ele não a aborrecerá depois”. Ela falou e se ergueu, e Atena a acompanhou. Elas saíram ambas com pressa, e Cípris seguiu seu caminho pelas veredas do Olimpo para encontrar seu filho.

Ela o encontrou no pomar verdejante de Zeus, não só, mas com Ganimedes, a quem Zeus, encantado por sua beleza, um dia trouxe para viver entre os deuses imortais. Eles estavam brincando com dados de ouro, como as crianças da mesma família costumam fazer. O ávido Eros, de pé, já segurava em sua mão esquerda um punhado deles, apertando-os contra seu peito, e nas suas faces frescas já despontava um doce rubor. Já o outro estava encolhido, duro, em silêncio e cabisbaixo, e só lhe restara mais dois dados, que ele lançou um depois do outro, irritado com as gargalhadas de Eros. Perdendo-os imediatamente para o colega, Ganimedes foi embora de mãos vazias, sem notar a aproximação de Cípris…

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Vocês leram nos jornais ou nas redes sociais. O guru mais famoso das celebridades brasileiras foi acusado de assédio. Houve alguma comoção? Houve. Sempre há. Tudo há. Hoje as pessoas se comovem com fotinho de cachorro com cara triste. Mas não tanta, ainda bem, uma vez que o caso não deveria ser novidade. Gurus e líderes religiosos são pegos em seus instintos mais carnais desde a invenção dos deuses, dos totens, da religião. E não me refiro somente ao hinduísmo, mas a outras religiões, do padre que apalpa o pipi do coroinha ao sensei que leva a ocidental encantada pelo budismo ao Burgão Grill no sábado à noite, na Vila Matilde. No caso de líderes hindus, especificamente, sabemos que o seu supereu está sob constante influência do instinto, em uma inversão fantástica com o id.

Há uma história célebre. Quando os Beatles visitaram a Índia, por insistência de George Harrison, Maharishi teria flertado com uma amiga de John, que não gostou nada da história. Nem os outros Beatles (menos George). Há muitas interpretações para a música “Sexy Sadie”, que consta no Álbum Branco, mas uma delas é de que seria uma resposta ao assédio. Verdade, mentira, confesso que não sei. Os especialistas em Beatles podem responder melhor, mas as respostas variam.

O caso recente de Prem Baba não é para deixar ninguém de queixo caído. A primeira coisa que sempre estranhei é que Prem Baba é brasileiro, católico (batizado), de modo que jamais poderia ser hinduísta – a conversão ao hinduísmo tradicional é proibida. Ou se nasce hindu, ou não é hindu. Até no judaísmo a conversão é autorizada, embora complexa – além de cara. E, em geral, no judaísmo mais ortodoxo, a resposta é um sonoro não. Mas não entrarei em detalhes.

Consulto referências e entrevistas de Janderson – vamos chamá-lo assim? –, e ele diz que não se considera hinduísta, mas, antes, que “o conhecimento que transmite é universal”. Ora, cara pálida, com todo o respeito, suas práticas vêm do hinduísmo, sim. Tive contato direto com sua filosofia e a base toda é hinduísta. Essa conversinha de “universal” serve para tudo. “Deus é universal”. Bullshit. Não, Deus não é universal. Até porque no hinduísmo, como todos sabemos, o número de deuses é maior que o de insetos em todo o planeta. Claro que isso é uma saída sutil para um dos maiores tabus do hinduísmo formal: ninguém se torna hinduísta. Ou nasce assim, ou bau-bau. Você pode conhecer seus preceitos, segui-los inclusive, mas jamais será um de nós, por assim dizer.

Como os ditos “judeus messiânicos” (nome detestável, mas assim eles se autodenominam) se dizem judeus: não, eles são cristãos que se apropriam dos ritos e da tradição judaica e hebraica. Mas judeus não são. Pelo contrário, são cristãos. Como Janderson, o Prem Baba, é cristão. Uma vez batizado, bau-bau. A não ser que a pessoa peça que seja excomungada via Vaticano, em um processo burocrático, mas possível. É possível. Uma ex-namorada, inclusive, abrindo um parêntese, fez isso. Ela, que vinha de família libanesa, de cultura islâmica, e foi batizada no cristianismo, namorando um judeu ateu. Enfim, o mundo é um lugar muito esquisito, e daqui pretendo vazar o quanto antes.

Sinto que a espiritualidade é uma necessidade, mais do que uma questão de fé genuína propriamente dita. Conte a um alienígena que acreditamos num Deus que jamais apareceu uma vez sequer, senão através de fenômenos naturais em toda a Bíblia (seja na hebraica-Tanakh ou no Novo Testamento), mandando recadinhos através de um gago quase epiléptico, ou de um revolucionário cabeludo e revoltado que saía quebrando tudo no Templo, e esse alienígena deve nos eliminar com alguma arma a laser em milésimos de segundos.

Nada contra a religiosidade. Não levanto bandeira alguma – a única bandeira que levanto é a da minha mãe –, mas não precisamos ler Freud para saber que precisamos de uma explicação sobrenatural para nossa existência, para nossos sofrimentos e para nossas maiores questões que a filosofia, ao longo de séculos, não deu conta. Inclusive sinto que a antropologia é mais bem-sucedida nesse sentido, ainda que também não satisfaça todos nossos anseios, martírios e interrogações.

De modo que encontrar um guru espiritual, um bem-estar (modo simplório como as pessoas se referem a sentir-se bem em tal culto, serviço ou cerimonial religioso), não é uma questão de fé, mas de necessidade e de medo. Como disse, não precisamos de Freud, basta olharmos para nós mesmos. O medo nos move, o medo nos dirige, e o medo cria a maior ficção da consciência: a de que existimos.

Não é culpa de ninguém. O sofrimento é inato, inescapável; a dor veio, vem ou virá. E uma hora ela chega na voadora. Procuremos Janderson, o Prem Baba. Ou vamos meditar. Falo de práticas orientais que, para uma parcela das pessoas, substituiu as concepções religiosas mais conhecidas do povo brasileiro. A maioria vai à missa aos domingos. Outros, aos cultos semanais de uma igreja protestante; outros ainda guardam o sábado judaico. Mas há gente que busca respostas na filosofia e na teologia oriental, que, inclusive, eu acho muito interessante, mais até do que a ocidental, para não parecer que este texto é só porrada contra essa onda oriental que chegou à Europa e às Américas no século XX, e de modos indiretos, já no século XIX.

Além do judaísmo, o sistema religioso que mais conheço e com que tenho mais contato é o budismo de linha japonesa (shin budista). Diferente do zen budismo, ou do budismo tibetano, vastamente difundidos pelo Ocidente por diferentes razões, o shin budismo não tem meditação. Não despreza a meditação, nem a condena, nada disso. Apenas, para essa escola budista – a mais popular no Japão, mais que o zen –, a meditação não pode fazer muita coisa para nos ajudar. Contudo, o shin budismo (terra pura), no Ocidente, é algo pouco conhecido e bastante restrito. As pessoas em geral querem saber de meditação. Conheço gente que entrou em contato com senseis shin budistas e, ao saberem que não havia meditação, disfarçaram e nunca mais voltaram. Muitos para terem uma vida melhor, mais saudável, menos ansiosa, mais tranquila, mais “em paz”. Entendo.

Eu também quero tudo isso. E busco de outros modos, sigo aquela música do Queens of the Stone Age: “better living through chemistry” (ou, ainda, aquela mais radical, “nicotine, Valium, Vicodin” etc.). Há quem busque paz no sexo, vazio ou com amor, afeto. Outros no álcool. Alguns na missa dominical. Outros nas palavras sábias de um guru. Há quem acenda sua vela no sábado e recite o kiddush. Outros na meditação. Respeito todos esses escapes. Mas permita-me, caro leitor, chamar tudo isso de “escape”.

O que se passa com a meditação, contudo, é que há poucos estudos sérios que comprovem uma estabilidade ou um apaziguamento mental. Pesquisas neurológicas recentes comparam meia hora de meditação a uma hora de exercício físico na academia. O corpo humano é uma máquina, diria minha priminha de seis anos. E o corpo produz substâncias mil que alteram o estado mental da pessoa. Jogar bola pode te deixar em paz.

Isso invalida a meditação? Sim e não. Opinião pessoal de quem estuda o assunto (tanto o da neurologia como o do budismo) e tem contato direto com o budismo: a meditação é excelente, mas precisa ser muito, muito, muito, bem-feita, com orientação, prática ad infinitum e uma disciplina mental que em geral nós, seres humanos, não temos (somos hiperestimulados por fatores internos e externos por centenas de vezes a cada minuto). Um sensei zen budista tem anos e anos de prática e, ainda assim, se lhe for perguntado, ele dirá que não sabe meditar ainda. “Talvez nunca saberei”. Imagine o Enzo que vai ao show de uma banda Mombojó qualquer de noite, já pensando na cerveja artesanal que irá beber ao som do conjunto, indo meditar num espaço zen na Vila Madalena. Esse sujeito não está meditando é nada. Ele está de olhos fechados, acreditando com todas as forças que está “sentindo algo”.

Evidente que cada um faz o que dá na telha, cada um faz o que quer, a vida é de cada um, e eu não pago essa tarde no espaço zen do Enzo. Ele faz o que quer com seu dinheiro, como eu faço o que quero com o meu. Mas meditando ele não está. De uns tempos para cá, inventaram até um nome bonito, americanizado, para isso: “mindfulness”. Que, se for procurar no dicionário de Oxford, vai constar como sinônimo de “wad”. Que, para quem não conhece um pouco de cockney, é o mesmo que “cash”. Money. Dinero. Bufunfa.

Em tempos turbulentos como os nossos, aqui pelo Brasil, essas questões espirituais parecem atingir sentidos políticos. A tendência de transformarmos nossos candidatos diletos em mitos, tal como um Lula, de um lado, ou um Bolsonaro, do lado oposto. Versões politizadas do Janderson Prem Baba. A religião e a política têm esse lado comum: elas conferem uma identidade a um indivíduo que, muitas vezes, não a possui. É preciso identificar-se com algo, fazer parte de um grupo. Como diz no dito, a gente sai do colegial, mas o colegial não sai da gente. Eu não me identifico com nada; sou um misto de origens, perdi meu grupo da adolescência e, para piorar, ainda estou procurando um sentido à vida.

A resposta está aí, vagando pelo ar. Não é possível capturá-la, mas é bom sentir o gostinho. E mostrar aos outros. Porque identidade só depende de um outro que nos reconheça como tal, principalmente em oposição. Sem isso, não sou ninguém. Tudo isso para enfrentar a dura verdade, que precisamos encobrir, que é a de que é isso mesmo, pessoal, não somos ninguém mesmo.

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Sociedades democráticas pressupõem cidadãos educados, isto é, bem-informados e críticos, tanto porque se requer que eles sejam capazes de formar conscientemente suas preferências e escolher entre partidos, programas e candidatos diferentes, quanto porque se supõe que devam fiscalizar minimamente seus representantes e agir na política diretamente, quando necessário.

Nesse contexto, a educação é considerada um direito universal e, consequentemente, um dever do Estado, que deve provê-la gratuitamente e com qualidade a toda a comunidade que governa.

Por essa razão, historicamente, as lutas pela democratização das sociedades ocorreram concomitantemente a campanhas e à promoção de políticas públicas de universalização do ensino. Para se tornar uma democracia, considerava-se absolutamente necessário educar minimamente os cidadãos. Segundo essa mesma lógica, cumpre lembrar que, durante muito tempo, a escolarização foi uma barreira à participação política: não ser escolarizado implicava não estar qualificado para ser cidadão.

O Brasil, marcado por um passado de profundas desigualdades e injustiças, vive ainda, em pleno século XXI, o desafio de garantir esse bem essencial a parte significativa de seu povo. Estima-se, em 2018, que aproximadamente 1,9 milhão de crianças e jovens estejam fora da escola, em geral residentes em locais ermos e em condição de vulnerabilidade social. Ademais, indicadores como a taxa média de anos de estudos, o índice de analfabetismo, o percentual de investimento público por aluno, etc., colocam, ano após ano, o país atrás não apenas das nações desenvolvidas, mas de quase todos os países do mundo subdesenvolvido, inclusive de países efetivamente pobres (não apenas desiguais, como é o nosso caso), e que, portanto, têm menos recursos à disposição para investir nessa área.

Longe de se supor que não houve melhoras, ou de que os vários governos foram igualmente relapsos com a educação brasileira; fato é que nosso país partiu de um patamar absolutamente avesso a esse campo. Muito tardiamente fundamos por aqui instituições de ensino, e elas permaneceram por séculos a fio como um bem reservado aos filhos das elites locais. Afinal, éramos o país dos bacharéis que, irônica e dramaticamente, também se compunha de uma imensidão de escravos, impedidos juridicamente de serem educados. Cabe lembrar que, quando abolimos o Império para substituí-lo por um regime político mais “moderno” e “livre”, 85% da população ainda era de iletrados, sendo considerados, segundo a legislação da época, cidadãos de segunda classe.

Passados mais de cento e vinte anos da fundação da República, muita coisa melhorou, ainda que, por exemplo, o percentual de analfabetos seja assustadoramente alto: 7,2% da população nacional com 15 anos de idade ou mais, o que corresponde a quase 13 milhões de pessoas, colocando, vergonhosamente, o Brasil como o oitavo país com mais iletrados no mundo, num universo de 150 nações analisadas pela Unesco em 2017. E, é bom lembrar, mesmo aqueles que têm acesso ao ensino o fazem, geralmente, em condições precárias (para não falar também dos inúmeros analfabetos funcionais). Via de regra, no Brasil, os professores são muito mal remunerados (lembremos que diversos governos estaduais, de partidos distintos, têm se negado a pagar o piso salarial definido por lei), exercem seu ofício em péssimas condições de trabalho, as escolas têm estrutura física precária e há carência de material didático.

Assim, em relação ao quadro atual, o padrão obscenamente desigual do Brasil (ainda que em proporção diversa da do passado) é reiterado: aos filhos das classes mais abastadas e das classes médias, são garantidas as melhores escolas (por meio do financiamento privado). À ralé brasileira e aos filhos dos trabalhadores regulares, sobra o resto: escolas como essas fotografadas por Guilherme Bergamini, esquecidas do poder público, reféns de violências materiais e simbólicas de toda sorte. Não bastasse tanta imoralidade, os alunos egressos das escolas públicas ainda têm que viver em uma sociedade que, com escárnio, entoa repetidamente o mantra de sua crença na meritocracia: “todos são e serão recompensados proporcionalmente por seu esforço”, reza a lenda.

Por tudo isso, as belas fotos de Bergamini não produzem propriamente espanto, pois não imaginamos cenário radicalmente diverso do retratado. Sabemos, enfim, como o Brasil funciona, e enquanto não estivermos submetidos a essas condições indignas, vamos levando nossas vidas. Ainda que vazias de alunos, podemos muito bem imaginar a que grupos sociais essas ruínas de escolas estão destinadas: aos jovens das periferias, pobres e, em sua maioria, negros.

Mas se essas fotos não nos surpreendem, elas (espera-se) nos indignam. Revolta que aumenta ainda mais quando consideramos as últimas decisões do Estado brasileiro em relação à educação. Basta recordar a PEC do Teto dos Gastos Públicos, proposta de lei enviada pelo presidente Michel Temer e aprovada no Congresso Nacional em 2016, que impede que se aumente o investimento federal pelo prazo de vinte anos, condenando as novas gerações a condições de ensino ainda piores.

Como tal decisão, claramente contrária aos interesses da maioria da população brasileira, pôde ser aprovada? Em primeiro lugar, porque nenhuma sociedade é um bloco homogêneo: se certos interesses são frontalmente contrariados com essa lei, outros são favorecidos, a começar pelos proprietários das instituições privadas de ensino. Mas não apenas eles: certamente as classes mais abastadas do país (inclusive a classe média, que tanto sofre para pagar as escolas particulares de seus filhos) continuarão a ter à sua inteira disposição jovens que, sem qualquer perspectiva de vida, têm que trabalhar em péssimas condições, por baixos salários, com altas jornadas de trabalho, etc. Trabalhar, enfim, como empregadas domésticas, porteiros de suntuosos condomínios, atendentes de telemarketing, etc. E assim os filhos das elites podem se dedicar aos ofícios mais “nobres”, já que o trabalho “sujo” é feito pelos que estão “embaixo”. Além disso, a “PEC da morte”, como ficou conhecida, é também conveniente para os “donos do poder”: governar uma massa precarizada, desinformada e tendencialmente apática e manipulável é sempre mais fácil do que ter que lidar com um grupo de cidadãos mobilizados e interessados no mundo público.

E assim, a roda do Brasil continua a girar: alguns interesses são acomodados, outros negados, e as condições para a perpetuação das injustiças são reproduzidas. E, também assim, a democracia brasileira parece ser um sonho muito distante quando se nota, por um lado, que nossa carência de educação se inicia por sua dimensão mais elementar – a do espaço físico das escolas – e, por outro, que se priva de futuro precisamente aqueles que por ela mais poderiam ser beneficiados: as crianças e os jovens do país.

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por Carlos Andreazza Conteúdo exclusivo para assinantes

Tacita Dean: O esmaecer das coisas

#29 Arquivo Arte

por Tamara Klink Conteúdo exclusivo para assinantes

Transes coletivos e a briga do pessoal

#5 Transe Cultura

por Bruno Pesca Conteúdo exclusivo para assinantes

Gaviões noturnos

#21 Solidão Cultura

por Ananda Rubinstein Conteúdo exclusivo para assinantes

Dois e dois são dois: Luiz Tatit e Bruno Cosentino

#26 Delírio Tropical Arte

O contador de histórias

#13 Qual é o seu legado? Arquitetura

por Simone Rotz Conteúdo exclusivo para assinantes

Paris, solidão e Proust

#21 Solidão Cidades

por Thiago Blumenthal Conteúdo exclusivo para assinantes

Ítaca

#51 O Homem: Amarello 15 anos Literatura

por Alberto Tassinari Conteúdo exclusivo para assinantes

Tensões entre cor e amor: construções sociais nas relações de afeto

Cultura

por Gustavo Freixeda

#30IlusãoCulturaLiteratura

A vida em três fotogramas

1. Espelho

Minha avó era semianalfabeta, mas sabia ler a borra do café. Agasalhava os santos de barro no inverno e discutia questões práticas e aflições familiares com o Sagrado Coração de Jesus que tinha na parede da sala. Pé de pano, chegava nas casas de mansinho, sempre na hora crítica, para trazer sua benção e acalmar os ânimos da nossa alcateia. Maria o nome dela, e tinha o dom das certezas. Eu não. Supuseram-me sempre uma boa leitora. Uma vida entre livros, mansa aprendizagem, mas não sei ler os sinais que, todas as manhãs, vejo no fundo da xícara. E todas as manhãs eu penso nisso tomando café para acordar. Suspeito muito e cada vez mais do que tenho alcançado com o letramento. Quanto mais leio, mais respeito o que permanece estranho. E se essa avó que descrevo for tomada como um ser alienado em fantasias e vítima de seu próprio ilusionismo, eu lançaria a dúvida sobre se existe alguém nesse mundo de palavras que também não o seja. Por hábito e por profissão, tenho as paredes abarrotadas de livros, instrumentos que me levariam, se eu realmente o quisesse, à mais absoluta descrença. Mas mesmo o que não é ficção e que faz pensar não ameaça, antes confirma o mistério que procuro preservar, das pessoas, dos bichos e do mundo. Cultivo, por conta disso, um altar dentro de mim onde pus a imagem daquela avó acendendo velas na escuridão. Ergo esse altar ao mistério, às coisas que não têm nome nem narrativa. E o inominável, fora da linguagem, se me responde, eu nunca percebi. É bom assim. Enquanto houver mistério, a avó estará dentro, sempre por perto.

2. Fantasmas

A sensação que dava era que minha avó já nascera velha, que viera ao mundo assim, já avó. Tanto quanto ficava evidente que a criança que um dia tivera sido, estava nela intacta, como um motor de atitudes e gestos, para o bem e para o mal. Tinha uma caixa de papelão onde guardava, misturados, fotos de família, pedaços de bijuterias quebradas, orações de santinhos e receitas manuscritas em folhas que retirava dos meus cadernos velhos. Eu gostava de sentar com ela na cama, futricar naquelas coisinhas e ler a sua ortografia de criança (sua alfabetização fora precária porque, no tempo propício, ela fugia todos os dias para um acampamento cigano onde ia brincar de circo e regressava no fim da tarde, na mesma hora em que todas as crianças da vila retornavam da escola, só ela que não). Um dia encontrei na caixa uma receita de frango de panela: os ingredientes em forma de lista, sem nenhuma medida e, em vez de indicar o modo de preparo, ela simplesmente anotara: “colocar uma peçinha de prata no meio para o frango ficar macio”, assim com o cê-cedilha mesmo. Era também curioso o tratamento que ela dava às fotos de família: quando nas imagens de grupos houvesse um desafeto seu, ela simplesmente recortava a silhueta da pessoa, e a foto ficava amputada, com um fantasma no meio. Aquilo metia um horror que parecia assombrar a figura desaparecida, de modo que os velórios ficavam povoados desses seres sinistros, parentes estranhados que apareciam para dar os pêsames, mas também para provar (eu concluía, com os meus botões) que estavam vivos e presentes. Por outro lado, mesmo os desafetos (sempre perdoáveis) tinham por ela senão ternura, ao menos respeito; todos, no fundo, o que desejavam era a sua benção. E nisso ela era dadivosa: como uma espécie de emissária, ela desenhava cruzes no ar, rebatizando os seres com seu amor. Sempre tão autêntica e sincera a minha avó em seus juízos. Era afinal uma santa, uma criança danada.

3. Nuvens

Hoje, sei e sinto que nossas leituras do mundo não eram assim tão díspares. Não tenho suas competências, mas fui sendo educada pela poesia, e isso quer dizer que tudo que parece ser a pele do real tem sempre outras camadas, tudo o que conhecemos é sempre outra coisa. O investimento no estado de poesia cria em nós uma vidência libertadora. E a sustentação dos véus do real depende dessa atenção às ausências que a palavra cria – da borra do café aos astros, todos os nomes e narrativas são pactos entre cifras e sentidos. Mesmo a linguagem científico-filosófica é, numa perspectiva que nunca deixa de ser antropológica, igualmente frágil e delirante. Levanto-me, vou à estante e trago para aqui um livro: O Novo Espírito Científico, de Gaston Bachelard (esse título é meu salvo-conduto). Abro-o e deparo com um trecho sublinhado: “Assim, o vento arrasta durante muito tempo, sem arrancá-lo, o animal fabuloso desenhado na nuvem por uma intuição primeira, mas basta que a nossa fantasia se interrompa para que a forma imprevista se apresente como irreconhecível.” Atente-se para isto: não é o vento que faz desaparecer o animal que vemos na nuvem, mas a nossa fantasia que se distrai e vai cuidar de novos ilusionismos. Ausente a fantasia, as nuvens são enigmas à espera de nova forma, nova formulação. Pensava em tudo isso – nessa vidência que a arte propicia aos grandes distraídos que sobrevivem num mundo cansado das promessas da ciência e da tecnologia – e, por uma sincronicidade que sempre acontece quando se está a criar um texto, colhi, na visita que fiz à 33º Bienal de São Paulo, este fragmento de texto ou feixe de luz do artista e curador Waltercio Caldas: “(…) acredito que a arte pode melhorar a qualidade do desconhecido. E nos resta a questão: como alterar as regras em benefício do que ainda não sabemos?” Penso que o novo espírito científico deva estar afinado com essa proposta, que não é propriamente a de decifrar enigmas em favor de um mundo dominado, mas de torná-los mais sugestivos na interação com a nossa capacidade de magicar.
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Abjeto

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Um tesouro esquecido

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Masahisa Fukase e a poética da desintegração

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O fim do fim da História

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diante de homem com h maiúsculo, criação

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Corpo em Transe

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Amor e política são muito parecidos

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A ordem do renascimento

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Utopia e pão

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#30IlusãoArteMúsica

Conversa Polivox: Luís Capucho

por Bruno Cosentino

Quando ouvi Luís Capucho, uma das coisas que logo me chamou a atenção foi que suas canções se pareciam muito umas com as outras. Ele estava dentro de um paradigma que não era o da profusão de cores e ritmos da MPB; parecia fazer em toda sua obra uma única canção contínua, à maneira de um Bob Dylan. As letras eram narrativas como seus livros. Ouvindo “Poema maldito”, por exemplo, aprendi que na canção que conta histórias é melhor que não se varie tanto os acordes para que não se perca o fio da meada — já conduzido com melodias sinuosas e frequentemente próximas da fala. Luís descreve objetos e situações com uma aspereza deslumbrante; quando cantados, porém, se abrem em um mundo de fantasia e delicadezas, com luz e paleta de cor próprias. A criação desse universo mágico passa pelos temas obsessivos, pelo modo (como foi dito) perturbadoramente direto de narrar, por uma visão de mundo rica de subjetividade, mas também pela materialidade de sua voz crua e de seu violão de movimentos limitados — as cordas soltas dos acordes inventados por ele soam erradas aos ouvidos educados —, ambas restrições motoras que lhe foram impingidas pelo coma. Dessa forma, os gatinhos de Pedro, a cadeira que Valfredo lhe deu, sua mãe, os vizinhos de trás, o vale onde mora (bichos, lugares, pessoas, situações ordinárias do cotidiano) se tornam encantados na voz de Luís. Na origem, o afeto agudo do artista com as pessoas e as coisas ao seu redor.

Ao fim da entrevista, em frente ao prédio onde mora em Niterói, Luís apontou, na outra calçada, uma igreja evangélica, ao lado dela, uma batista, e, mais à frente, um centro espírita. Os cultos, disse, aconteciam todos ao mesmo tempo e sempre com música; isso fazia com que ali circulasse uma forte energia espiritual. A amendoeira ao nosso lado, explicou, subia daquele modo, linda, se abrindo em copa larga e com tal inclinação para a rua, por causa disso.

1-

Quando eu saí sequelado do coma, eu estava tão apático, acho que chocado e, também, depois de alguns anos, eu pude ver que aquele um mês de nada, que foi o coma, tinha como que me zerado, entende? Me deixou vazio, sem nada dentro. Então eu reagia a coisas que estivessem acontecendo ali, na hora, em torno da maca, mas eu não tinha mais estofo, nenhum movimento interior, nenhuma vida. Tinha acabado tudo: tédio, melancolia, saudade, angústia, essas coisas que são os sentimentos da gente e que nos tiram do aqui e agora. Isso, radicalmente, durou cerca de um ano, mais ou menos. E muito aos poucos minha vida interior foi se reestabelecendo.

Mas teve duas coisas, naquela época, que me deixaram abalado quando se esclareceram para mim. A primeira foi ainda no hospital, quando me disseram que eu estava com HIV. O meu estômago reagiu na hora, como um molusco que se fecha. Eu senti ele se encolhendo rápido e se petrificando. Foi uma coisa doida. Aí eu chorei muito, e ele se normalizou.

A outra coisa foi quando eu, já em casa, coloquei a fita do Antigo [disco gravado por Luís antes do coma] para ouvir. Eu fiquei chorando um tempão, porque eu sabia que não ia conseguir fazer mais aquilo, daquele jeito. Mas, aí, sem que parecesse para mim mesmo que eu tivesse tomado uma decisão, os anos foram passando, e fui reaprendendo o violão e voltando a musicar letras.

Então, de certa forma, eu não ouvi minha voz nova pela primeira vez, porque ela foi se formando aos poucos. Eu acho também que, com o tempo passando, minha voz continua se tornando nova; é um processo de modificação, talvez, de recuperação, que não acaba nunca. Também estou ficando mais velho, então a voz vai se tornando outra. Mas o que aconteceu naquele dia, no quarto, há pouco saído do hospital, foi que eu ouvi a minha voz antiga pela primeira vez.

Sobre a voz nova, eu saquei mesmo quando comecei a conseguir uns acordes no violão e tentei fazer música. Eu vi que o violão espancado, sem conseguir o dedilhado, e a voz quase monocórdia me abriam a possibilidade de fazer uma música que eu não conseguiria fazer do jeito antigo. Isso me abriu um horizonte, um caminho, que não era o caminho por onde eu vinha me conduzindo, e aí alguns amigos começaram a me dizer que esse jeito novo tinha mais a ver com os meus temas e começaram a gostar mais. Outros não gostaram e pararam de querer me ouvir. Quer dizer, só veio falar comigo quem começou a gostar mais. Quem não curtiu, não me disse nada, mas a gente saca, né?

Demorei um tempo para introjetar minha voz mais lenta e mais grave como sendo minha. Mas logo que as novas músicas começaram a sair e fui entendendo que havia um prazer, um gosto, nelas, uma estética, fui me acomodando à voz sem pensar e fui gostando.

2-

Só a morte vai fazer eu ficar no aqui e agora. O coma foi um pouco isso. Mas, depois que fui restabelecendo meu estofo, não estou mais aqui nem agora. Não consigo parar.

Às vezes, aqui comigo, entro numa de que as coisas estão paradas para mim, que não avanço, que não saio do lugar. Mas não é verdade isso. Até fico buscando uma posição imaginária, um ponto de partida, porque nos é ensinado que é legal você ter um marco, um lugar que você tenha de apoio, um lugar de onde sair, mas não tenho. Não sei quando nem onde estou. Estou perdido. Mesmo que desde 1967 eu tenha preenchido os cabeçalhos dos cadernos escolares com as datas dos dias, isso não foi suficiente para me situar. De onde eu olho, não tenho um panorama. Minha visão é muito dentro de minha bolha. Eu dizia isso na narrativa do Cinema Orly. Não sou um narrador onisciente. Não sei de nada, sou um ignorantão.

O Gilberto Gil tem aquela música que diz que o melhor lugar do mundo é aqui e agora. Eu não fico no melhor lugar. Mas, como já disse, tenho tentado descobrir um lugar de apoio, um momento de apoio. Talvez, sem que eu tivesse me dado conta, minha plataforma, o edifício de onde eu pulo, meu trampolim, sejam as músicas e os livros. Meu patrimônio e meu matrimônio. Meu terreno de ilusão, de mágica. Meu aqui e agora.

3-

Bom, eu acho que a vida tem uma natureza mágica. Que as palavras têm uma natureza mágica. Eu me sinto meio doido com isso, acho que ter um corpo é uma coisa mágica.

Comecei a sentir a magia nas coisas depois que fiquei adolescente e que comecei com o desejo sexual, que é um lance tão forte, sem controle. Antes, quando eu era criança, era como se eu vivesse na lua, com a cabeça sempre nas nuvens, e não via mágica, que é um lance que você começa a ver se você vibra mais tenso e fundo, onde as coisas são mais pesadas e fortes. Aí você pensa, caramba, como é que isso apareceu aqui, forte e grande assim? Da onde isso veio? O que é isso? E tal.

Acho que fazer música e fazer literatura e pintar As Vizinhas de Trás [série de retratos pintados por Luís], que parecem ser coisas de criança, de você poder brincar com as cores, com as palavras e com os acordes do violão, têm a ver com esse mundo da magia, mais forte e denso, pesado, e que, ao ser transposto para a linguagem artística, pode parecer leve, de criança. Brincando assim de fazer arte, as coisas parecem ir perdendo o sentido, se esfumaçando, se espalhando, sumindo como mágica.

4 –

Eu, na verdade, não sei a importância das coisas. Não sei se elas são, extraordinariamente, por acaso. Ou se tem uma finalidade no fato de as coisas existirem. Então, de qualquer modo, acho que seria importante que a gente pudesse ter a vida que a gente quer, ter a possibilidade disso. O Guilherme Arantes colocou numa música que nem tudo é exatamente como a gente quer. Mas é bom, importante, que tenhamos o desejo como possibilidade, que tenhamos como possibilidade as coisas que a gente quer. É importante que a gente possa transformar as coisas do mundo naquilo que a gente quer.

5 –

Acho que a beleza deve ser uma coisa grandiosa, insuportável para o sentimento da gente. Acho que ela faz com que não a suportemos; é algo transbordante e que não cabe na gente. Na verdade, a beleza é um horror, sabe? Algo de que a gente não consegue dar conta.

Sobre minha música ser bonita, acho que é parte da beleza do mundo, sim. E começo a gostar mais delas quando as pessoas gostam também. É parte do mundo mais ordinário, do mundo suportável, e pode num primeiro momento não cair no agrado dos ouvidos mais destreinados na audição delas. Eu mesmo as acharia sem graça, sem beleza, se as ouvisse com a idade de 10 anos. E não sei se gostar quer dizer que são bonitas. Acho que sim. Eu gosto das minhas músicas. E acho que a beleza delas está no caminho melódico, que está a um grau ou uns graus de distância do caminho natural da entoação da fala, se eu falasse suas letras. Acho que o tanto que eu consigo me distanciar da fala, e o tanto que consigo frisar de sentido para as palavras que canto, sem deixar que ele esvoace e se perca na melodia, é o tanto de beleza ou gosto que consigo na minha música.

Eu estou falando da minha música, como e quando ela aparece e se forma para mim. Porque, se eu for imaginá-la executada com outros instrumentos que não apenas minha voz e violão, aí entram outras belezas. Porque se pode inventar outras formas de resolver suas voltas, entende?

6 –

Talvez, principalmente, tenha sido apenas uma mudança de canal, uma mudança na forma como se tornou possível sair o jorro. Depois, eu fui vendo o que era possível ou como eu gostaria de conduzir o lance todo nessa nova forma. Com o passar dos anos, meu corpo vai se readaptando com o uso, a voz vai achando outra vez o jeito antigo de sair. Porque meu corpo não se modificou em nada. Minhas cordas vocais e minha língua e boca não sofreram nenhuma alteração. O lance todo aconteceu nos comandos; é um lance neurológico, então, aos poucos, as sinapses vão se refazendo e permitindo os movimentos que perdi para cantar e tocar.

E continuo cantando minhas músicas do mesmo jeito que antes, sem interpretação. Porque eu acho que a interpretação tem a ver com uma intenção. Então você pode cantar com essa ou aquela intenção. E isso faz uma interpretação ser diferente da outra. Algo como você atuar nas músicas. E eu não canto como um ator. Eu canto de verdade, sou eu mesmo, sem interpretar. E meu modo interior de cantar é igual. No início, parecia sempre uma coisa dramática demais, por conta do esforço, da potência com que eu tinha de mandar a voz. Parecia interpretação, mas não era.

Sobre a composição propriamente, meu violão também vem se modificando. Eu consigo dedilhar outra vez. A mão esquerda é mais sequelada, e não consigo ainda fazer de novo as pestanas com perfeição. Aí eu faço as posições sem as pestanas e aproveito as cordas soltas, vejo como elas funcionam assim. No fim, eu aproveito tanto na voz como no violão o som que vai saindo, para compor. Como eu disse noutra pergunta, o caminho que eu tenho de fazer é diferente, mas a nascente é a mesma.

Eu acho que, se você tem muito recurso técnico, você fica mais crítico, fica indeciso por qual jeito vai fazer, qual caminho vai tomar. E, se você está limitado, sem muita opção, aí a música, quando está para nascer, vem arrebentando tudo, como um vulcão. Um lance sem delicadeza, meio punk. Daí meu primeiro disco, o Lua Singela, ter agradado mais ao pessoal do rock and roll.

Não vou me livrar dessa marca que ganhei com o coma, porque registrei isso no meu primeiro disco e no meu primeiro livro. Talvez, por conta dos meus temas, do conjunto todo da minha expressão artística e, principalmente, do meu clima pouco beligerante e tudo, eu não consiga público que me mantenha produzindo e no mercado. E, aí, serei para sempre um artista da margem. Mas, vocês sabem, no fluxo de um rio, as águas todas são um corpo só e não têm volta. Tudo vai para o mar.

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#30IlusãoArtigo

O gozo de perder: ilusão e poesia com Pessoa

por Roberta Ferraz

Editora convidada da edição Ilusão

Preâmbulo

Soa inevitável, ouvindo a palavra ilusão, que esta escorra deliciosamente para uma outra, num contágio que logo se sugere – poesia. Poderia alargar este rio para o encontro fundo entre ilusão e arte, ilusão e vida, ilusão e consciência, ilusão e sagrado, mas, a mim, como me vem, é mais espessa a musculatura da soma quando, sob a ampla palavra, ancora-se o estro que a levita. Chamo poesia a toda arte da palavra, independentemente das toadas que acione em sua elaboração. Gostar de mais ler e escrever, é algo que, em mim, aconteceu à sombra sem repouso dos livros de Fernando Pessoa. A vertigem álacre que se nos é aberta nesta obra veio-me sob o impacto inelutável com que Pessoa entende, escrevendo, o sentido de seu fascinado labor-labirinto: escrever é emaranhar-se na ilusão, e toda ilusão é já possibilidade de outra visibilidade das coisas, outro lado (oculto?) daquilo que, por ter sido demasiado visto, por força do hábito, quase perdeu a qualidade viva de se poder ver. Desabituando os olhos, acionando o real em toda a sua carga ilusória, galeria de imagens reflexas sem “a imagem autêntica” num fundo, Pessoa sabe que “a literatura consiste num grande esforço para tornar a vida real”.

É de Bernardo Soares, em seu conjunto de frascos vazios – ou o Livro do Desassossego, vulgo LD – a sentença acima. Passeio por essa bíblia ajambrada pela ironia, desde que não pude mais largar mão da loucura leitora, outra coisa que Pessoa alimenta em quem convive com ele e com o LD. De volta às páginas cosidas a esmo e erro, lembremos que o LD é um não livro e que seu autor, o semi-heterônimo B. Soares, é uma metade ou uma quase (semi) voz outra (heterônimo), conforme o epíteto legado pela mão que, sobre a sua, assombra e assina um outro. Lembremos que o LD faz-se do conjunto de papéis desordenados, marcados por mesmo ou semelhante sinal, em margens e rodapés, nas páginas chegadas à morte, num baú imodesto – continente de uma obra aguda em sua dispersão, território em que os textos se nutrem, em autofagia e reação, de si mesmos e de sua vizinhança, aquele coral fantasmático, plurivocal, que conhecemos desdobrado do nome Fernando Pessoa: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, António Mora, Raphael Baldaya, Alexander Search e inúmeros.

Todo este giro abarrocado para quê?

Faço essas graças ao leitor, essas marras de piscadelas, pois é minha maneira de saudar o mestre, antes de trazer trechos seus para já, pondo-me ao pé de conversar com ele, como se nas britadeiras ocupantes da av. Rebouças, em setembro de 2018, há exatos 130 anos do nascimento dele, eu, por força de ser sua leitora, delirasse um rio, o Tejo, sobre as malhas desviadas dos esgotos de São Paulo e assistisse a seres marítimos e barcarolas e cais e pedra e um sotaque cheirando a sardinhas e árvores e grandes tormentas me embalassem, como uma mãe a um filho de areia e distância.

Um cais, aqui, paulista. Ou ainda, saudando-te, Fernando, uma grande estação, a gare da equação tempo-espaço em que somos possíveis um para o outro, onde cada um espera a sua “diligência do abismo”, o seu Uber para lugar nenhum. Contigo, estourou de vez esse manancial de perdição: contigo, afago a descoberta da paixão pelas ambiguidades da ilusão, girando a mola desta maquinaria desejante a que chamamos poesia.


Saudar a ilusão

Sobre a parelha indissolúvel da poesia e ilusão, em Pessoa sobretudo, me veio à memória um trecho em que, já não sabendo bem quem, se Pessoa, ou Bernardo Soares, ou António Mora (a voz que Pessoa emprestou ao filósofo do “neopaganismo” de sua obra), diferenciava, entre as posturas antigas ainda não corrompidas pela malaise do cristianismo (que, para o autor, teria sido a grande cocaína – p.s. leia-se, por favor, com o gozo do espírito esportivo – herdada por todos nós, viciando a maneira como lemos o mundo e fabulamos o real): aquela do epicurista e a do estoico. Se me lembro bem, Pessoa (ou Soares, Mora, outro?), aproximando-se mais da postura dos estoicos, dizia que ao epicurista coube a grandeza efêmera do presente, podendo resultar numa entrega excessiva às sensações, na duração de seu instante; ou também, de forma oposta, na recusa abstinente e descomplicada dos afetos, pois a experiência agora é ainda e já a sombra de uma foice que vem caindo.

Os estoicos, por sua vez, mantinham um jogo mais mental com a própria consciência da finitude e da impossibilidade de conhecimento das coisas. Admitiam que fosse possível haver alguma espécie de conhecimento superior (em grande parte, entendiam-no como destino) em que leis inexoráveis (que para nós só são acessadas via interpretação, ou seja, pluralidade, traduções) regiam o andamento e o curso das vidas. Diante desse pressuposto, os estoicos elaborariam um jogo audaz: sabem que não sabem (que o saber cava-se até uma escala cujo tom não alcançam) e gozam desse saber do que não têm. Há um orgulho interior em ter prazer, entre um bando de gente que acha que sabe ou é possível saber, de saber que não se sabe e que estamos todos sujeitos à ignorância suprema, num impedimento de “conclusão” que a maioria, querendo ou não, desconhece, e assim vive, imersa em promessas “civilizatórias, definidoras e progressistas”: avanço, saúde, conquista, vitória, esclarecimento, verdade e, no topo das vontades à venda, a desilusão como compreensão, enfim, da “natureza das coisas” por meio de qualquer ciência e/ou um qualquer deus.

Não reencontrando o trecho que tentei parafrasear acima para citá-lo aqui, à letra, espero estar corrompendo apenas o que, do que acima disse, diz de mim. Ressalvas feitas, chego ao ponto delongado: abraçar a intimidade entre ilusão e poesia é regozijar-se com as delícias ambíguas de uma figura retórica muito especial: a ironia.

B. Soares deixou-nos uma variada sorte de fragmentos cujo tema pode ser lido como “a grandeza irônica do sujeito”, em que supera a todos os vencedores de todas as vaidades pela delícia de perder. No fragmento 54 (F54), zombando das “seduções de distração” em que nós, bichos mortais, passamos horas “sonhando” com uma espécie de fama ou celebridade, Soares, sem se excluir da fauna sonhadora que somos, diz: “Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos tronos do desconhecido? Mas o caso passa-se no escritório da Rua dos Douradores (…)” e, depois de apresentar-nos um buquê de metáforas de sua indisposição congênita à ação vencedora, e dizendo-se falho até mesmo nelas (“o meu sonho falhou até nas metáforas”), na vaidade de julgar-se lúcido, ironicamente, Soares inverte os termos do tabuleiro e vence-nos a todos, pelo exímio de sua desistência: “Levo eu ao menos, para o imenso possível do abismo de tudo, a glória de minha desilusão como se fosse a de um grande sonho, o esplendor de não crer como um pendão da derrota – pendão contudo nas mãos débeis, mas pendão arrastado entre a lama e o sangue dos fracos, mas erguido ao alto, ao sumirmo-nos nas areias movediças (…). Levo comigo a consciência da derrota como um pendão de vitória”.

Noutro fragmento (F90), encontramos o postulado que é uma espécie de corolário da escrita pessoana: “Reconhecer a realidade como uma forma de ilusão e a ilusão como uma forma de realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil”. É a graça chistosa de um tanto faz para nós todos que tanto fizemos ou julgamos ter feito.

Além de dar corda àquela “estética do artifício” em que Pessoa insistentemente trabalhou, dizendo-se viver “esteticamente em outro”, cultivando sua “artificialidade, flor absurda” (F114), um dos ganhos irônicos com a mobilidade dotada ao par ilusão-real está no aprofundamento do mistério. Sublinhando na linguagem (sem a qual não acessamos nada de nada, mas que, em si, não é mais do que um instrumento reflexivo, uma faca de dois gumes) sua opacidade e seu poder de obscurecimento, ao invés do fácil consenso, da gentil miopia dos espelhos, da forja banalizadora das mesmices, das sínteses, das grandes conclusões, Soares anota: “Assim organizar a nossa vida [para] que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros” (F115). Ou, de maneira mais dramática: “Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade. Nada poderia indignar-me tanto como se no escritório me estranhassem. Quero gozar comigo a ironia de me não estranharem. Quero o cilício de me julgarem igual a eles. Quero a crucificação de não me distinguirem” (F128).

Não é sem vaidade e brio que Soares exalta seu fracasso, sua pequenez, embora lúcida; sua desconhecida e vibrante inutilidade, embora sabida. Ronda a obra pessoana o capitão espectral da consciência de sua genialidade, e Pessoa, sendo o poeta que é, vai saudá-lo na sua forma íntima: fazendo-se texto infinito deste vazio ruminante, assolador de nossa consciência – nós, um bicho da terra tão pequeno, tendo em si “todos os sonhos do mundo”. Como conciliar nossa miséria com nossa delirante grandeza? Em que vírgula dos argumentos estaria aquele trono gramatical em que se sentasse “o real”?


A saúde de uma afirmação trágica

Quero pensar que um dos grandes dilemas da chegada ao terminus da “desilusão” seja o fato de conduzir nossa percepção à ideia de que, com algum alívio triste, enfim foi solucionado o erro de uma ilusão. Sorrio a meia-boca enquanto o penso, escrevendo-o. Já ouvi mais de uma vez o elogio de ter perdido uma ilusão, como se acordasse de uma lastimosa bebedeira e retomasse os meus juízos, de volta ao mundo, reaceita “ao trabalho” com um tapinha camarada nas costas. Que bom que não foi bem assim.

O mais esperado é que, diante da ameaça de uma ilusão, aumentemos o receio, como se estivéssemos dando as mãos a um logro, um golpe ou, no mínimo, algo que nos fizesse perder tempo, pois, ilusão que é, faz troça, engana, não leva a nada. A parte fiscalizadora do mundo lidaria conosco como se, durante um período, ou intervalo de tempo, um estado molemente nocivo, uma espécie de preguiça danosa, tivesse assumido em nós a posse da lucidez, deixando-nos disponíveis a todo tipo de malefício e, principalmente, cegos aos deuses da razão. Associarão a ilusão a um torpor – idiotia, “cabeça nas nuvens”, “mundo da lua”, ou seja, situação em que o sujeito é tomado pelo pathos de um sentimento alienante que o desvincula da massa aceite enquanto prova de fé e evidência do “real”. Ainda que passageiro, tal torpor indica algo de um entorpecimento que não caberia na vida (em) comum, nas necessidades organizáveis de um dia a dia, corrupção da saudável e produtiva dinâmica do sujeito, excluindo dele a lógica de visibilidade, a lógica de reconhecimento dos valores – ou melhor, extirpando dele a condição de leitor do mundo “oficial”, como se seu corpo e sua consciência modulassem as coisas às avessas, o que sempre irritou o curso de uma visão de mundo que se esforça para se levar a sério e converter aqueles que, por qualquer razão, caíram nas garras críticas e poéticas, no limbo do limbo sem fundo, da consciência e da sensação como ilusão. Eis, porém, nela o acaso poético de nos aproximarmos de nossa condição cindida, multiplicada, diversa, como escreve Soares: “Conhecer-se é errar. (…) Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscientemente é o emprego ativo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autônomas, a poesia do crepúsculo da desilusão” (F149).

Ilusão, como vou lendo na poesia que me atravessa, guiada pela mão traquina do ilusionista Pessoa, não é apenas estado de entorpecimento em que “não se vê”, ao certo, o que é o real. Ilusão é estar dentro desse sistema vivente de linguagens, perdidos, eu e tu, mas querendo, dessa crise, dessa possível tragédia, fazer um ato de alegria, escolher a alegria, recusar o embrutecimento pelo medo de não sabermos mesmo nada.

Em tempos em que nós, partícipes do século XXI não faz pouco, ainda consideramos, para a fatalidade geral, que o que um ou outro pensa pode ter mais ou melhor registro de veracidade, convicção e testemunho “do real”, que uma ou outra versão da máscara do mundo (porque mais próxima do meu sonho do espelho e do meu terror noturno) é mais certa e mais justa para um e para outro – esse que amamos desconhecer, altivamente, enquanto achamos que conhecemos; em tempos em que um gesto de dedos imitando um revólver se acha legítimo em convencer as gentes em prol do medo asfixiante; em tempos em que “a verdade”, cadáver da empatia e do pensamento, parece ser (e)legível, circulando múmia indigesta em encouraçadas fake news, perdida (quase) toda ironia…

Em tempos como o nosso, eu saúdo o grande Pã-Pessoa, brindando na ilusão a matéria mesma do que somos, a linguagem com que falamos, os ditames & recalques & sonhos & covardias que vamos, confinados, amainando e regularizando, pela convivência surda, cega e muda. Que venham os xamãs, Walt Whitman, Álvaro de Campos, Hilda Hilst, Ana Cristina César, Llansol, Hadewijch, Octavio Paz, Baudelaire, Roberto Piva, Artaud, Anaïs Nin, Anne Carson, Mário de Sá-Carneiro, Pascoaes e toda a trupe de endiabrados! Quebrem todas as janelas! Evoé, Bartleby!

Bartleby, uma espécie de primo-irmão de Soares e um dos personagens mais sedutores da literatura, respondendo ao patrão de seu escritório, sobre toda e qualquer demanda de ordem prática (desde, por exemplo – invento –, o pedido de pegar um café no cômodo ao lado) dirá, entre selvagem e apático, “acho melhor não”, levando toda percepção de praticidade ao cúmulo do absurdo.

A grande sacada irônica de uma vida desopilada dos convencimentos de que o mundo é um ou outro, bem ou mal, certo ou errado, feio ou bonito, etc., etc., etc., nos é ofertada pela poesia, pela arte, por meio do irônico e pessoanamente estoico gozo de recusar as tais medidas de um mundo que se comporta como “patrão”. Digo de outro modo: estou aqui, no jogo, convosco, visto o hábito de monja louca, por exemplo, ou de carpinteiro sádico, ou de esposa enfadada, ou de engraxate criança, ou de empresário adulto, ou de manobrista de túmulos, ou de peixe fora d’água, ou de escritor desmemoriado, ou deles todos, que seja: independentemente do lugar com que a veste me indica o baile, do prestígio das aparências com que enceno os movimentos do corpo, ao fim e ao cabo, chegamos e chegaremos nus, absolutamente prontos a perder, sem ter entendido quase nada que não tenha sido inventado. Nulo, cômico – tragicômico? Acalenta-nos Soares: “E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanso, humanos, fúteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo. Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram. Mas qual é a razão dessa ilusão, e por que é que há essa ou qualquer, ilusão, ou por que é que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram – isso, por certo, eles mesmos não sabem” (F255).

Reembaralho as visões que desenhei e, mui ironicamente, respondo que sim e não, simultaneamente, às coisas todas, dizendo-lhes e a mim, querida, acho melhor não. Em seguida, dionisiacamente, abraço a virulência das ambiguidades alcançadas, querendo-me a graça mais propensa a esta viagem errática, em que todos somos os ilusos de tantos jogos, virtuosos de ilusões. Temer o labirinto que se oferece em febre? Acho melhor não. Rasurar a loucura do que experimento, talhando uma mordaça que me force a responder ao mundo pela via domesticada dos maniqueísmos? Acho melhor não. De maneira cintilante, sigilosa, escusa, a ilusão pode ser a ferida de um riso irônico libertário, um jeito de corpo de não opor-se à desilusão (afinal, mais uma faceta da ilusão?), mas driblando a violenta demanda de uma identidade que quer para si todos os atributos consideráveis e valorativos de uma excludente “via virtuosa e verdadeira do real”.

Chamo Pessoa, Melville, chamo bruxas fazendo da tecelagem do real um emaranhado viscoso, exótico e íntimo de ilusões. Chamo Drummond, que irônico sabe que “ganhei, perdi meu dia”. Na recusa de uma versão acachapante e doutrinadora, chamo, com Nietzsche, uma “gaia ciência”: quero a atitude alegre de um “saber trágico”, em que a intensidade da alegria possa ser medida conforme a qualidade do saber trágico que ela implica. E chamo Herberto Helder, rindo com ele, que a “ironia não salva, mas ressalva”. Na companhia dxs indisciplinadorxs do desejo, dxs que jogam com as cartas dispostas ao encontro, dxs que desconcertam a banalidade, dxs que cultivam o desconhecerem-se mais de perto (e fingir é conhecer-se) levanto um brinde e um quebranto, evoé, à proliferante ilusão que nos dá corpo ao estranhamento e gozo às maneiras de querermos perder ironicamente.

NOTAS
Os fragmentos citados do LD (F + número) foram retirados da edição organizada por Richard Zenith, publicada pela Companhia das Letras;
Bartleby, o escrivão, de Herman Melville (1853-1856)
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Montanha ao longe

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Montanha ao longe, água corrente, fogo crepitante. Alguém disse que são as três imagens capazes de inebriar o espírito humano.

Na fogueira deste começo de século, a humanidade parece completamente inebriada pela fogueira onde arde a civilização ocidental, onde o quinto museu mais importante do mundo foi reduzido a cinzas e parece servir como exemplo físico do zeitgeist.

Há um sem fim de respostas para como chegamos ao estágio atual, com tantos loucos inebriados, enxergando as realidades mais diversas nas formas do fogo que arde.

Desigualdade social, avanço tecnológico, convivência demais, convivência de menos, individualismo, consumismo, invasão e evasão de privacidade, alimentação e cuidados com a saúde exagerados, em substância ou critério, para mais e para menos, mudanças climáticas, ciclo ou pêndulo histórico, grandes velocidades para tudo. Eu continuo me perguntando: como?

Da nossa necessidade atávica de crer, seja lá como for, surgem, como sempre surgiram, novas ilusões, para as quais sempre há público. Há quem diga que a novidade está na velocidade e na capacidade de aglutinação, além da nossa compreensão orgânica e intelectual. Tendo a concordar.

Desde o Renascimento, quando intelectualidade, pluralidade e humanismo prevaleceram sobre a dureza do período medieval, nos convencemos da infinitude das possibilidades da criação humana, da qual não duvido. Mas, como indica a Idade Média, uma árvore frutífera ou a gestação, talvez o tempo para absorvê-las seja imprescindível.

O Papa Francisco, melhor político em atividade, em viagem à Estônia, publicou a seguinte mensagem no momento em que eu terminava esta crônica:

“Um dos fenômenos que podemos observar nas nossas sociedades tecnocráticas é a perda do sentido da vida, a perda da alegria de viver e, consequentemente, um lento e silencioso amortecimento da capacidade de maravilhar-se, que muitas vezes mergulha as pessoas num cansaço existencial. A consciência de pertencer e lutar pelos outros, de estar enraizado num povo, numa cultura, numa família pode-se ir perdendo pouco a pouco, privando, sobretudo os mais jovens, de raízes a partir das quais possam construir o seu presente e o seu futuro, porque os priva da capacidade de sonhar, arriscar, criar. Colocar toda a confiança no progresso tecnológico como o único meio possível de desenvolvimento pode causar a perda da capacidade de criar vínculos interpessoais, intergeracionais e interculturais. Em resumo, aquele tecido vital que é tão importante para nos sentirmos parte um do outro e participantes dum projeto comum no sentido mais amplo da palavra. Por conseguinte, uma das responsabilidades mais importantes que temos – nós que assumimos uma função social, política, educacional, religiosa – é precisamente a maneira como nos tornamos artesãos de vínculos.”

Logo, devagar com o andor, que o santo é de barro. E o próprio tempo pode ser ilusão.

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