#17CulturaLiteratura

Conversa com Julia Cameron

por Ester Macedo

Conheci o trabalho de Julia Cameron no Canadá, quando estava completamente estagnada na escrita da minha tese de doutorado no final de 2009. Um ano e meio depois, já com a tese defendida, e de volta à Brasília, conversando com amigos decidimos seguir a proposta do livro de nos encontrar toda semana para ler e discutir um capítulo de The Artist’s Way (sem tradução para o português). Mas como não conseguimos encontrar uma versão em português, decidi eu mesma ir traduzindo e enviando um capítulo por semana para nossa discussão. Foi uma experiência bastante rica, e foi consenso de todos no grupo que era uma pena esse trabalho não ser mais conhecido por aqui. Essa entrevista é um passo nesse sentido.

Amarello: A fé e a espiritualidade são o centro de seu trabalho, e mesmo para aqueles que não acreditam em Deus, você apresenta a criatividade como prática espiritual. Ao longo de todos esses anos, você notou muitas mudanças nas pessoas com quem trabalha, quanto à atitude delas em relação a Deus, fé, espiritualidade e religião?

Julia Cameron: Me parece que algumas pessoas se tornaram mais mente aberta. Elas estão dispostas a explorar a criatividade como caminho espiritual, e estão mais dispostas a enfrentar a própria resistência.

A: E a sua própria relação com Deus, espiritualidade e religião? No seu trabalho, você demonstra bastante conhecimento em relação a diferentes tradições espirituais. Você tem alguma filiação religiosa? Você sente que sua atitude em relação a Deus, espiritualidade e religião mudou ao longo dos anos?

JC: Eu não pertenço a uma religião organizada, mas já li muito sobre o assunto e tenho um carinho particular pelo uso da própria criatividade como caminho espiritual. Eu recentemente terminei de escrever duas peças, e durante o processo de escrita fiquei muito consciente de que precisei de fé para colocar minhas ideias no papel. Eu rezava toda noite por orientação e inspiração, e muitas vezes me senti guiada quando me voltava ao papel. Existe um livrinho de preces pelo qual tenho um apreço especial: é o Ideias Criativas, de Ernest Holmes. Leio esse livro de preces toda noite, e me vejo concordando com suas ideias. Eu mesma escrevi quatro livros de preces que estão organizados em uma espécie de “buquê” no livro de preces Preces ao Grande Criador. Tenho que admitir, às vezes eu leio minhas próprias preces e penso “Quem escreveu isso?”.

A: Por outro lado, como os líderes de religiões organizadas – por exemplo padres, pastores, rabinos, monges budistas, etc. – reagem em geral ao seu trabalho?

JC: Eu vejo que meu trabalho é amplamente aceito, e muitas religiões diferentes se identificam com suas ideias. Por exemplo: sufis pensam que eu sou sufi, budistas pensam que eu sou budista, cristãos pensam que eu sou cristã.

A: Em seu trabalho, você fala dos bloqueios mais comuns à atividade criativa, que vem em grande parte de um imaginário nocivo sobre o que é ser artista. Ao longo dessas décadas, você tem notado alguma mudança nesse imaginário e na maneira que esses bloqueios se apresentam?

JC: A essa altura, quatro milhões de pessoas já praticaram o The Artist’s Way. Muitos deles continuam a prática das “Páginas Matutinas” e as “Saídas de Artista” anos após sua primeira exposição às ideias. Ontem à noite, quando eu fui ao teatro, fui abordada por uma jovem que me perguntou “Você é a Julia Cameron, não é?” e eu disse que sim, e ela disse “Eu estou fazendo as “Páginas Matutinas” há cinco anos agora, e eu recentemente terminei de escrever um livro. Eu só queria te agradecer pelo seu trabalho – foi um guia para mim”. Ao longo dos últimos vinte anos os mitos e bloqueios me parecem ter permanecido os mesmos. As mesmas ferramentas funcionam tão bem agora quanto há vinte anos atrás.

A: É possível viver da arte? Você recomendaria alguém a abandonar outras profissões (regulares, estáveis) para se dedicar exclusivamente a uma atividade artística? É possível desfrutar dos benefícios da arte mesmo não sendo um artista em tempo integral?

JC: Eu acredito que todas as pessoas são criativas, e que todos podemos nos beneficiar da prática com ferramentas de criatividade. Eu não encorajo pessoas a tomarem grandes passos para os quais não estão prontas. Em vez disso, peço para elas trabalharem fazendo pequenas mudanças. Mudanças grandes muitas vezes começam com mudanças pequenas. Ontem à noite conheci uma jovem que, trabalhando com as ferramentas de The Artist’s Way, havia se mudado de uma vila remota na montanha para uma cidade grande onde as oportunidades para exercer sua criatividade eram infinitas. Muitas pessoas se dão conta de que não precisam largar seus empregos para praticar a criatividade expandida.

A: Uma das ferramentas centrais em seu trabalho são as “Páginas Matutinas”: três páginas escritas a mão com o que vier à cabeça, diariamente, um “dreno mental”, como você diz, para começar bem o dia. Você descreve muitas vezes a importância delas em sua própria vida. Assim como uma rotina de exercícios saudável, algumas pessoas tem dificuldade de manter esse hábito diariamente, ou mesmo com uma rotina bem estabelecida, às vezes ocorrem de pular um dia, ou uma semana ou semanas. Isso acontece com você? Depois que você começou a utilizar as “Páginas Matutinas”, qual foi o máximo de tempo que você ficou sem escrevê-las?

JC: Eu venho escrevendo as Páginas Matutinas consistentemente há uns vinte e cinco anos. Eu nunca passei mais de alguns dias sem escrever as páginas.

A: Muitas pessoas sentem que não podem ser artistas porque já são pais – seus filhos são o trabalho criativo ao qual precisam se dedicar. Quais conexões e desconexões você enxerga entre ser um pai ou uma mãe e a vida de artista?

JC: Aqui eu preciso falar por mim mesma: eu era mãe solteira quando comecei a escrever – e a ensinar – o The Artist’s Way. Eu escrevi, junto com Emma Lively, o livro intitulado The Artist’s Way for Parents. Esse livro detalha ferramentas e técnicas que ajudam pais a fomentar a própria criatividade, e a de seus filhos. A meu ver, não existe um conflito duradouro entre ser pai ou mãe e ser artista. As pessoas me pediram por muitos anos para escrever esse livro, e eu sempre negava, falando “É só trabalhar com o The Artist’s Way”. Então, quando minha própria filha casou e engravidou, eu me vi pensando que talvez precisasse sim existir uma orientação mais aprofundada. Aí então Emma e eu escrevemos o livro.

A: Em um assunto relacionado, alguns membros do grupo estavam se perguntando se seria apropriado trazerem seus filhos adolescentes para os encontros: por um lado, parece um ótimo jeito de estimular seu lado criativo; por outro, crianças e adolescentes não parecem ter tido experiências – ou mesmo bloqueios – o suficiente para precisarem de uma recuperação artística. Você acha que existe uma idade mínima recomendada para a pessoa conseguir se beneficiar do The Artist’s Way?

JC: Eu me vejo assumindo uma postura protetora em relação a pais e adultos. Na minha experiência, eles estão sempre muito dispostos a colocar o foco nas pessoas jovens, negligenciando suas próprias necessidades. Então eu diria que não – não leve os filhos para os encontros. Mas eu acho também que a prática das “Páginas” pela manhã pode beneficiar crianças de doze anos para cima. Adolescentes anseiam por privacidade, e as páginas dão a eles exatamente isso. Eu sugeriria usar as “Páginas Matutinas”, “Saídas de Artista” e caminhadas como ferramentas apropriadas tanto para adolescentes quanto para adultos. Pode ser que eles já tenham se deparado com situações que os bloqueiam. Não se preocupem muito com isso – os deixem encontrar o próprio caminho.

A: Você também diz que nunca se é velho demais para descobrir o próprio artista interior. Você tem ou conhece alguém que tenha experiência trabalhando o The Artist’s Way com idosos?

JC: De novo, a sua pergunta é bastante certeira: o livro no qual estou trabalhando agora com Emma é um livro sobre criatividade na terceira idade. Na minha experiência de professora, aqueles que estão na casa dos sessenta, setenta e oitenta muitas vezes são os que experimentam os avanços mais significativos e alegres.

A: Na introdução do The Artist’s Way você descreve um tempo em que atingiu o fundo do poço, e diz que as ferramentas ali apresentadas ajudaram você a superar aqueles tempos difíceis, em especial sua luta contra o alcoolismo. Você tem ou conhece alguém que tenha experiência trabalhando o The Artist’s Way com pessoas em situações difíceis, como em hospitais ou em centros que lidam com vício, doenças físicas ou mentais, ou conflitos com a lei, por exemplo?

JC: The Artist’s Way é um kit de ferramentas terapêuticas. Eu já ouvi de muitos casos de utilização do livro em centros de reabilitação, centros para idosos, hospitais, prisões e afins. Não tenha dúvida: as ferramentas são um bálsamo eficiente para muitos indivíduos que estão passando por dificuldades.

#17ArteArtes Visuais

Portfólio: Efrain Almeida

por Efrain Almeida

Efrain Almeida em seu estúdio.

“Efrain Almeida faz da escultura uma possibilidade de autoimagem, autoficção, onde o lugar geográfico, o interior do Ceará, passa a se apresentar na madeira característica daquela região, a umburana, deixando, muitas vezes, o lugar atravessar seu corpo, apresentado em autorretratos. Esta arte assumira a primeira pessoa como situação, um lugar que questionara o formalismo autônomo, apresentando problematizações sobre a diferença, a desigualdade.”

“Da mesma forma que Efrain se vincula a expressões de uma dada cultura popular brasileira, também partilha de códigos próprios aos criadores urbanos e eruditos. Por isso, em vez de uma bem encaixada relação entre o local de nascimento e a identidade do artista, poderíamos pensar naquilo que Marc Augé definiu como uma ‘individualidade de síntese’. O sujeito, assim, transitaria entre uma concepção mais geral de cultura e aspectos de sua própria individualidade conquistados numa trajetória de vida.”

“Ampliando o sentimento de sagrado, Efrain Almeida se direciona a uma instância liminar. As obras se posicionam entre o descanso e o vôo, a formação de um desejo e sua execução. Tal qual na constituição de um território sagrado, o espaço projetado não é homogêneo, mas sim pontuado por diferenças. Cada escultura pode criar uma ruptura e um congelamento na imagem do vôo, nas poses do corpo, imagens que só conseguimos apreender de uma só vez. O artista, então, nos dá a possibilidade de fixar o relance e refletir sobre a efemeridade de ‘instantes súbitos que trazem em si a própria morte’, como nas afirmações de Clarice Lispector.”

#17CulturaLiteratura

Pede pros anjos

por Vanessa Agricola

Carneirinho, de Efrain Almeida

Merda, chegou quem não devia. Esse loiro escroto tarado que fica me olhando com cara de tesão. Você acredita que às vezes ele some pro banheiro e meio que demora, daí ele volta e cheira a mão olhando pra minha cara. Juro por Deus. Tudo começou porque ele senta de costas pra rua, e eu virada pra ele, e às vezes nossos olhares se cruzam, sabe? Daí ele entendeu que eu quero dar pra ele, veja bem. Eu grávida. Eu sem um rímel de maquiagem. Eu às nove horas da manhã enchendo a cara de café e tiramisù. Olha lá, a negra bonita que senta na mesa do lado da dele pediu a conta. O cara é um gangorra, já ouviu essa expressão? Ele senta todo mundo levanta. Minha vó Alzira diria que ele não tem uma boa aura. Que gente com aura pesada afasta as pessoas. Não deve ser mentira. Embora minha vó Alzira acreditasse em cada coisa… inclusive anjo da guarda. Qualquer coisa que você fosse contar, tipo, vó, estou pensando em mudar de carreira, ela dizia: pede pros anjos, menina. Mas vó, se eles são anjos eles já não sabem o que a gente precisa? Daí ela tinha outra teoria, que cada um de nós é um deus ou deusa, e que os anjos estão aí para nos obedecer, não o contrário. Eles não podem fazer nada sem o seu consentimento. Se você não pedir, eles não podem te dar… como era fofa… Mas eu só me apego nessas coisas da vó Alzira quando estou na merda. Ajoelho, rezo, peço pelo amor de Deus. Dependendo da merda eu vou até na Juliana, que me limpa os chacras. Quando é uma merda muito grande eu apelo pro xamã. Ele invoca meu animal de poder, os mestres ascencionados, pede para abrirem o portal leste, o portal sul, e ao toque do tambor xamânico me libera os resíduos da memória limitante do meu sistema energético. Sério.

Terreiro de umbanda eu nunca fui, tenho medo. Uma vez fui numa cigana e ela mandou eu pegar uma galinha preta, deus me livre, nunca mais voltei. Morro de medo de macumba. Mas essas macumbas que você compra no mercado, sabe? Banho de sal grosso do pescoço pra baixo, depois chá de rosa branca na banheira, isso tudo eu acho que funciona. A Juliana me ensinou que quando a coisa fica preta, é bom limpar a casa com amônia, mas tem que ser você mesma, e depois queimar uma arruda, e depois acender uns incensos de canela, pela casa toda. Tem que ser um incenso no mínimo em cada canto da casa.

O xamã falou pra ter altar. Você tem altar? Pra mim ele falou que era bom ter um altar de santas e deusas, que no meu caso eu tinha que me cercar do poder sagrado do feminino. Quem sou eu pra contrariar um bruxo. Fui lá e pumba, altar na cabeça. Nunca faço nada. Mas quando o bicho pega, acendo vela, faço a porra toda.

Outra coisa que eu confio muito é tarô. Adoro. Minha vó Alzira achava um troço do pecado. Já astrologia tenho uma relação ambígua, mas quem nunca tomou um pé na bunda e foi parar numa astróloga? Uma vez eu estava muito na merda e fui numa astróloga carioca que me deu uma lição de vida (os cariocas têm muita sabedoria). Ela disse: Calma, garota. Você está nesse emprego que você não gosta, ganhando pouco mas tendo que ajudar a família, com esse namorado chato que não trepa nem sai da moita, mas calma. A vida não vai ser isso o tempo todo.

Essa frase, a vida não vai ser isso o tempo… eu sempre lembro dela. Porque é isso mesmo, a vida muda. É óbvio. Na hora parece que não, que você vai ficar naquele limbo pra sempre, mas a gente sempre se cura, como diria o Legião Urbana. O pra sempre sempre acaba.

Agora, se foi com a mãozinha da Juliana, ou do xamã, do altar, do banho de rosas, da vó Alzira (que Deus a tenha), eu sei lá… Uma vez perguntaram pra Glória Maria qual dos cento e doze cremes e pílulas que ela toma funciona e como ela poderia saber se são tantos. Sabe o que ela respondeu? Aí é que está, eu não faço a menor ideia, por isso eu continuo tomando todos.

A única coisa que deixei de acreditar foi no inferno. Na religião. Qualquer uma. E essa frase o inferno é aqui não me surte nenhum efeito. Coisa de gente infeliz. Imagina que uma pessoa nascida e criada no Brasil pode falar uma bobagem dessa. Ainda se fosse um iraquiano, um sírio…

Vocês viram o cara arrancando a cabeça do James Foley? Menina, me fala o que foi aquilo. E vocês viram que o cara era londrino? Tudo bem, o pai dele era egípcio e morreu num atentado mas… que merda! Que triste, que porra, que puta que pariu! Quando isso vai acabar? E será que eu e você podemos fazer alguma coisa? Será que eu rezo, vovó Alzira? Ei, anjos, parem com essa porra! Essa porra de ISIS! Vou rezar pra você, meu bom Alá, não permita que eles acreditem que é isso o que você quer, seja lá o que você queira!

Isso, minha filha, reza. Nós estamos te ouvindo.

Nós quem?? Quem está falando???

Eles nunca respondem.

Mas não acha que eles existem?

#17CulturaLiteratura

Falso brilhante

por Hermés Galvão

Pretinha, de Efrain Almeida

Não é o que não pode ser, mas talvez não sejam mesmo tão iluminados assim, quando os dias não fogem do lugar comum. Longe dos holofotes, parecem ofuscados pela própria sombra de uma vida real, logo eles, idolatrados. Adormecidos da encarnação que incorporam quando estão em ação, parecem tão, assim, apagados da grande existência que lhes fez existir; talvez nem saibam, ou fingem não querer, ser tudo aquilo que se espera deles – mesmo submersas em seu cotidiano obscuro, mentes brilhantes trazem algo de luz na superfície.

Inconscientes de suas fragilidades, inseguros, pensando cada vez mais para dentro, como se ignorar o lado de fora fosse salvá-los de algum imprevisto cada vez mais provável, os artistas tornam a sua dimensão física algo de frágil que, se não comove, ao menos irrita, e muito, a quem não se vê livre da pretensão de ser apenas aquilo que se imagina deles.

A dor e a delícia de ser muito mais do que um só é a forma sinuosa de existência que encontraram para se livrar da dor e do tédio de sua plateia; vistos da coxia, pela cortina que se cerra, pessoas que não ensaiam uma outra história, um personagem por uma noite que seja, são apenas montes sobre cadeiras numeradas, dados de bilheteria com histeria garantida por temporadas que não tardam a findar.

Do lado de lá, de quem age a troco de aplauso, existe um afã angustiante de viver sempre e sempre viver de modo a ser lembrado para sempre. Pode parecer estranho o que vos digo, mas é o que me acontece agora. Por isso há de respeitar as palavras e as manias, as epifanias que colorem páginas em branco e rascunham livros inteiros com ideias desencontradas que fazem sentido quando sentimos o que lemos e não apenas seguimos linha sobre linha em dinâmica ansiosa rumo ao último capítulo.

Ah, sobre o processo de criar, sobre o que e onde dói, machucado tamanho que cicatriza com boa crítica e fere fundo na ausência eterna de um anonimato que jamais virá – o estrelato é capaz de apagar constelações inteiras por dentro, a fama que vem em velocidade de cometa mata a ferro quente no primeiro apagar dos flashes. Na fragilidade de quem só brilha no escuro, dá-se um big bang nem tão grande assim, capaz de abrir um buraco negro no que se vê de alma. Pois é no dia a dia, na comunhão da rotina sem filtro de filme ou beijo de novela, que a arte se expressa em sua confiança irredutível; não se engana a quem tem a fé inabalável de que o artista vive em outro plano, mora na filosofia.

Não queremos deles que sejam compreendidos por todos. Para o bem, para o mal, ou muito mal, desejamos deles o impensável em nós mesmos. E que não nos venham com crises de meia idade ou classe média, que sejam nos palcos o que são de verdade – na verdade não são nada do que parecem nem lá em cima e tampouco cá embaixo. Estão no meio do caminho entre a terra e o céu que nem os protege tanto assim. Não são deuses, também fingem não serem humanos. Querem ser tudo que se pode estar enquanto viverem aqui em sua estranha e fantasiada forma de vida.

Mas veja bem, porque talvez volte agora a não fazer sentido: por sonhar para dentro, tudo que sai da boca para fora é o que há para ser e fazer. Deve-se criar algo para ser lembrado depois, para que possamos recordar de quem passou em alguma mesa de gamão, em certo ponto entre a pracinha e a varanda do asilo. Porque o tempo não apaga as grandes coisas. E sorte a nossa que nunca saberemos exatamente o que iremos levar para o futuro. Adoráveis as incertezas. Vivemos delas. E são elas que devem fazer pensar no tempo como fator relativo. Para no sétimo dia descansarmos em paz.

#17Editorial

A Mente Confiante

por Shogyo Gustavo Pinto

Assum Preto, de Efrain Almeida

Num dia de sol, os pais levaram o filho pequeno ao parque. Foi a primeira vez que o menino viu crianças descendo no escorrega, e elas riam muito. Ele pediu para ir ao brinquedo. Esperou na fila, e, ao chegar a sua vez, começou a subir os degraus do escorrega. Foi então, a meio caminho, que se deu conta da altura em que se encontrava. E o que antes parecia divertido se tornou perigoso. O breve instante ao estancar foi suficiente para que as crianças atrás dele reclamassem. Não havia como retroceder. Sob pressão crescente, chegou ao alto, e então descortinou o abismo de metal à sua frente. Sentou, e agarrou firme o corrimão quente do sol. Atrás, as crianças gritavam “Vai!”. Adiante, o abismo, e, lá embaixo, tão longe, seus pais. Eles sorriam e repetiam que não tivesse medo, que soltasse as mãos, que ia ser divertido. Em algum momento pronunciaram a palavra que o guiaria por toda a vida: “Confie!”. Súbito, o vento intenso refrescou o dia quente, a velocidade acelerava, e por fim ele nem chegou a tocar o chão. Firmes eram as mãos do pai que o pegou e ergueu de chofre. Ambos riram.

Lentamente o tempo transformou o menino em adolescente. Depois, o mesmo tempo, que antes demorava a passar, precipitou-se qual a descida no escorrega e se fez cada vez mais célere. O jovem precisava trabalhar e, porque confiaram, foi contratado. Recebeu o diploma e perguntou a si mesmo se os alunos acreditariam em um professor recém-formado. Quando os pais se fizeram invisíveis, em meio à noite e sozinho, para poder seguir adiante precisou confiar. Ao se ordenar monge, rasparam-lhe a cabeça e disseram que a chave era Shinjin, a Mente Confiante. Nasceram os filhos, e, na primeira febre, ele tinha de acreditar: “Há de passar!”. O tempo, que antes corria em anos, acelerou em décadas. O outono chegou, a filha completou 18 anos, embarcou para estudar no exterior, e o editor da revista Amarello o convidou para escrever sobre a fé, a Mente Confiante.

Assim foi com ele, e algo semelhante vai sucedendo a todos os seres humanos enquanto a esfera azul gira sobre si mesma e se move (sem consultar seus habitantes) com extraordinária celeridade em torno de uma esfera chamejante. Enquanto isso, aqui no cenário dos fatos que nos dizem respeito, seguem alternando-se infalivelmente claridade e escuridão, frio e calor, marés que sobem e descem. Bebês nascem sabendo chorar, crianças sabem crescer, adolescentes sabem tudo, adultos sabem ter pressa, idosos sabem esperar, e cada um, na hora que é sua, sem saber como, se torna invisível.

O bípede implume não controla o girar da esfera azul, nem o movimento dela em torno da esfera flamejante, nem o movimento das estrelas, tal como não pode impedir a partida daqueles que se tornam invisíveis. Frente ao que não podemos controlar, restam-nos duas alternativas: revoltarmo-nos e sofrermos, ou confiarmos e vivermos contentes.

“Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.”
— Alberto Caeiro

A Mente Confiante tem a lucidez simples que tantas vezes nos falta. É preferível gostar que as coisas que não podemos controlar sejam tal como forem, pois não gostar em nada altera o fato, apenas acrescenta dissabor a quem o vive.

“Bela tigela
Arrumemos flores
Pois não há arroz”
— Matsuo Basho (1644-1694)

Quanto às coisas que podemos controlar, a Mente Confiante nos lembra que, além de empenhar todo esforço possível para as controlarmos, é preciso também gostar que mesmo elas às vezes se rebelem e não se deixem controlar, pois sempre existirão ocasiões em que será assim.

Quem deseja que as coisas aconteçam de outra maneira que não aquela em que acontecem crê saber mais e melhor que o universo qual o rumo que os acontecimentos deveriam seguir. Tal pretensão de sapiência está fadada à frequente frustração, pois a vida flui livre e imprevisível. O sol nasce a leste e se põe a oeste indiferente às nossas opiniões e desejos. Quando o Mestre Dogen Zenji (1200-1253) voltou ao Japão e lhe perguntaram sobre o que aprendera na China, sua resposta foi: “Que os olhos são horizontais e o nariz é vertical.” O bom senso recomenda que a pequenina e frágil criatura concorde com a independência do universo e aprenda a gostar do que acontece, pois não há alternativa ao sucedido.

Sabemos pouco, podemos menos, e ignoramos demais. O que temos diante de nós é desconhecido, desde quando nascemos até quando disserem que morremos. No breve intervalo entre uma coisa e outra, podemos aprender e crescer com tudo o que sucede. Quem aprende usufrui, quem não aprende reclama. Viver exige ousar, e ousar supõe confiar.

Existimos no interior do cosmos e a vida, que é dele, passa por nós, que somos parte de tudo quanto vemos e não vemos.

“Meu cavalo sobre o campo.
Ploc, ploc,
Ah, ah, sou parte da cena!”
— Matsuo Basho (1644-1694)

Nada é alheio no interior do grande organismo universal. A alegria extática de Basho nascia da consciência de ser uno com todos os seres, com o campo, o cavalo, a chuva, o sol, a lua, as formigas. Em tudo e em todos ele se reconhecia, e o quanto lhe sucedesse ele convertia em poesia, tal como também o fazia Kobayashi Issa.

Vou sair.
Divirtam-se fazendo amor,
Moscas da minha cabana.
— Kobayashi Issa (1763-1827)

A precisão do movimento das estrelas no céu, a alternância invariável das marés e a sequência infalível das estações na terra evidenciam uma ordem inerente a tudo. A Mente, no interior da qual somos pensados, confia que cedo ou tarde confiaremos que o mesmo poder que move a vida do cosmos em toda parte move também, com infalível precisão, esta nossa breve e imperfeita existência. Não a move como fatalismo, mas como o dançarino exímio gira com sua amada para mútua alegria. Move-a, tal como os pais dizem ao filho “Confie!” para que o menino largue as mãos que se aferravam e deixe-se fluir na liberdade da existência confiante.

O velho monge agonizava. Em torno e mudos, os seus discípulos. Um pássaro próximo começou a cantar e persistiu tempo suficiente para o monge esboçar o derradeiro sorriso e balbuciar seu último Haikai: “Pequenino pássaro, desculpe. Vou ouvir o final de seu canto no outro mundo.” Sorrindo, um ser humano confiante expirou enquanto o pássaro ainda trinava seu longo, belo e alegre gorjeio.

#17CulturaSociedade

Reflexo

por Helena Cunha Di Ciero

Sentimos o poder da palavra fé logo ao dizê-la: nossa boca se abre como um túnel entre o universo e nosso corpo, formando ali um espaço íntimo e sagrado. Uma espécie de templo. Tão forte quanto um poema, essa palavra de apenas duas letras se basta – e, por outro lado, nos basta e nos acolhe em momentos difíceis, de dor, dúvida e desespero. Trata-se de uma ferramenta interna que utilizamos em busca de esperança e, sendo assim, ambas caminham de mãos dadas: fé e esperança. São estes os alicerces de um outro estado fundamental para nosso desenvolvimento, o da confiança. No dicionário, fé, confiança e credibilidade são sinônimos.

O psicanalista Bion define a fé como uma resposta primordial e profunda de defesa contra o sentimento de catástrofe. É uma experiência emocional, singular. Porém, não se trata de uma fé religiosa – um conjunto de dogmas e doutrinas que constitui um culto. Para o autor, esta fé se torna apreensível quando se representa no pensamento e por meio deste. Se trata da fé na existência de uma realidade verdadeira e última. A fé que move um cientista a ir em busca de algo, mesmo sem dados objetivos.

A beleza da fé é que não precisa de provas nem de sustentar-se em nada racional para existir. Proveniente do grego fides, fidelidade, a fé é. E pronto. O sentido de fé que coloco aqui é uma convicção íntima, um lugar onde não resta dúvida, no qual confio imensamente e onde deposito meu desamparo. E de lá tiro uma outra palavra fundamental para ir adiante: coragem.

É um caminho alternativo que buscamos quando somos frustrados pela realidade. Nesse sentido, ela nos dá uma noção de resistência e também de existência – pois é uma forma de confrontar o presente. Explico: meus exames dizem que estou doente, meu médico também, mas minha fé é maior. É uma fala comum de pacientes nos hospitais, que mostra uma tentativa de encorajamento frente ao medo provocado por estar diante de algo insuportável, como uma doença grave. Eu existo apesar do que está sendo dito, assim eu enfrento de peito aberto o que está por vir. Podemos pensar então como uma forma de desafio do real e, a partir deste sentimento, uma nova realidade pode vir à tona. Nesse sentido, seria a base para mudança. E tampouco são raros os momentos nos quais a fé altera o estado de saúde de alguém. Não falo em milagres, pouco entendo disso. Falo dos fenômenos nos quais as pessoas, apoiadas em suas crenças, modificam um estado que parecia irreversível ou o toleram com mais resignação e menos inquietude.

Sou de origem católica, mas nem um pouco praticante. Sempre me comoveu, porém, a oração do Credo, que começa com a palavra “creio”. O ato de crer em algo, seja lá o que for, nos tira de um lugar comum e nos transporta para o futuro, esperando que algo ali seja mais belo que o hoje. E, nesse ponto, crer ajuda a movimentar-nos. Crer no sentido de confiar. Confiar que além do horizonte exista um outro lugar é confiar em que o movimento trará evolução, que há algo melhor adiante. Nesse lugar da alma é que procuramos uma transformação, uma forma de sonhar e buscar.

A fé não costuma falhar, já dizia Gilberto Gil, e é aliada de nosso trajeto. É ela que move montanhas, que nos ajuda na difícil caminhada da vida. Na peça Alma Imoral, o texto de Nilton Bonder conta que o que fez com que o mar se abrisse foi Deus, comovido com a força do caminhar dos Judeus que fugiam do Egito. Deus, surpreendido pela fé dos fiéis que marchavam, abre o mar. A fé move, comove, clareia, norteia.

Nos momentos de questionamento e medo, testamos nossos recursos pessoais contando com algo interno. Se a realidade responde bem, acredito que minha fé em mim e na força de meu passo foi capaz de uma possível metamorfose daquilo que estava se passando anteriormente.

Uma questão que fica, para mim, como mãe e psicanalista, é como as crianças de hoje, tão viciadas em tecnologia, constroem em si um espaço para que esse sentimento as adentre de forma verdadeira. Se, antigamente, entrávamos em contato com ele quando a realidade nos testava, hoje, com a realidade virtual cada vez mais tomando posse, onde será que a nova geração busca a coragem? Passando de fase nos games? Confiando na força dos dedos ao apertar um botão, em lugar de confiar na força do passo? E, se a realidade é cada vez mais virtual, como é que me diferencio dela a ponto de resgatar em mim um sentimento que possibilite seu enfrentamento? Seria esse lugar da fé somente interno ou externo? Ou seria algo entre esses dois lugares? Uma ponte entre o céu e a terra? Uma terceira margem do rio, talvez? Eu tenho fé que a realidade impera e ensina a partir da experiência, sempre.

#17CulturaSociedade

Desenhando o divino

por Sofia Borges

Capela de Bruder Klaus, por Peter Zumthor

Eu posso não ser uma pessoa religiosa, mas tenho fé. Eu posso não visitar a igreja de minha seita, mas visito capelas, locais sagrados e locais de culto nas cidades nas quais moro e nos países que visito. Dentro desses estabelecimentos acendo velas por aqueles que perdi, e me maravilho com as qualidades extraordinárias dos tetos abobadados, além dos ornamentos e vitrais. A noção de fé engloba tudo, desde a crença em um deus específico e uma ordem religiosa até valores fundamentais de compreensão do nosso lugar no mundo. Independentemente das inclinações religiosas, ou da falta delas, a noção de fé e de como representá-la na arquitetura permanece um desafio universal passado de mão em mão há milhões de anos. Esses espaços, desenhados para evocar a sensação de algo superior, agem como santuários críticos para que consigamos nos agarrar à nossa fé quando testada. Eventos fora de nosso controle, que fazem com que caiamos de joelhos de tanta dor e incredulidade, são os mesmos que nos humanizam. Os locais que procuramos para conseguir refúgio e consolo recebem uma importância ainda maior nesses momentos de turbulência. Oscilando entre o celestial e o artificial, a arquitetura da fé transcende as convenções enquanto explora os limites entre o tempo de uma vida finita e a eternidade.

Tradicionalmente, o processo de construção de um local sagrado era entendido como algo que demorava mais a ser completado do que a própria vida do arquiteto eleito. Do Vaticano à Sagrada Família de Gaudí, alguns dos locais de culto mais icônicos trocaram de mãos diversas vezes ao longo de décadas, até de séculos. A árdua tarefa de se projetar algo que provavelmente não se verá terminado captura o espírito da arquitetura baseada em fé. Os construtores da Catedral de Sevilha (século XVI), a terceira maior do mundo, famosamente aspiravam ser lembrados como homens loucos. Quem mais trabalharia com tanto afinco para criar uma estrutura tão luxuosa e sem precedentes, cuja data de inauguração estava marcada para bem depois de suas mortes? Transitando o limite tênue entre brilhantismo e insanidade, os arquitetos dessas maravilhas sagradas desafiavam a imortalidade ao canalizar a convicção transcendental que os seus espaços, uma vez completos, continuam a inspirar.

A ascensão do modernismo silenciou a exuberância de detalhes e qualidades dos períodos da Renascença, Barroco e Gótico, sem sacrificar o impacto emocional. Essas expressões mais recatadas de divindade são espaços para adoração, admiração e reflexão que se focam menos na representação e nos ornamentos, e mais nos aspectos fenomenológicos encontrados na luz, na materialidade, na escala e na procissão. Temos exemplos de meados do século, desde a Notre Dame du Haut, de Le Corbusier, à Chapelle du Rosaire, de Matisse, que oferecem redutos iluminados, embora formalmente abstratos, para o culto pessoal e coletivo. A capela intimista e humilde de Matisse é um pano de fundo discreto para que suas reinterpretações abstratas e alegres de vitrais iconográficos fiquem em destaque. Além de reduzir a quantidade de ornamentos, muitos dos recentes locais de culto também usam escalas diferentes das de antigamente. A capela celestial Bruder Klaus Field, de Pater Zumthor, dialoga com o potencial que até os menores espaços têm de exaltar e reviver nossa apreciação pelo dia a dia. O micro-santuário, desenhado e construído por fazendeiros rurais, exibe um interior de textura carbonizada banhado em luz – o fantasma da impressão deixada pela estrutura de madeira que foi queimada ao chão.

Se suntuosos e grandiosos, ou a verdadeira essência da simplicidade, todos esses diversos locais sagrados manifestam em nós sentimentos similares de deslumbramento enquanto exploram as qualidades viscerais encontradas no limite entre o nosso mundo e o próximo. Esses cenários sublimes nos acolhem quando nosso mundo está abalado, e permanecem conosco muito depois de termos partido. Misturando o secular e o espiritual, o arquiteto da fé coreografa um ambiente imersivo ao mesmo tempo vazio e cheio. O trabalho do arquiteto de materializar esses conceitos efêmeros, emocionais e misteriosos se torna a expressão definitiva de nosso desejo compartilhado de transcender o tempo de uma vida.

#17ArteArtes VisuaisCidades

Donald e o deserto

por Tomás Biagi Carvalho

Julia Cameron, em seu livro The Artist’s Way, diz que criatividade é fé, e que temos de ser fiéis a essa fé para que estejamos dispostos a compartilhá-la com os outros, para os ajudar e sermos ajudados em troca. Ela propõe um programa de doze semanas para aquele que está com sua criatividade bloqueada, para que se conecte a algo maior, e para que deixe seu Deus trabalhar através você.

Marfa é uma pequena cidade no meio do deserto no velho oeste texano, onde você pode andar cem quilômetros de carro e não encontrar absolutamente ninguém. Lá, devido à vastidão e à superfície plana, entende-se claramente que a terra é redonda, e isso, junto com o espírito independente you can do it texano, cria uma atmosfera muito fortalecedora.

No começo dos anos 1970, Donald Judd estava frustrado com os pequenos espaços expositivos das galerias de Nova York, e com a quantidade de gente que ia para o Soho, onde morava. Em 1971, se muda com a família – e com toda sua produção artística – para Marfa, para construir um dos seus mais ambiciosos projetos até então. “Acho que gosto de menos gente, e mais espaço”, disse. Ao chegar à pequena cidade de 1900 habitantes, comprou dezesseis prédios decadentes, uma base militar desativada inteira e três ranchos, que juntos somam mais de 45 acres. Na antiga base militar, Judd transformou os dois gigantescos hangares principais da propriedade em uma catedral de arte moderna.

Paredes de vidro fazem com que a intensa e plácida luz do sol texano ilumine sua série de caixas de alumínio feita especialmente para o local. O conjunto de cem caixas é hipnotizante. Judd construiu a Fundação Chinatti no deserto, com o intuito de acalmar o excesso de emoção nas artes das gerações anteriores a ele, mas o silêncio ensurdecedor dos hangares e as cores plácidas do deserto refletidas no alumínio têm uma carga emocional muito maior que qualquer tela pintada de vermelho.

Em seu manifesto Specific Object, Donald defende que a arte deve existir por si própria. Ou a obra fala com você quando a observa, ou não. Simples. Para ele, o espaço fazia parte da obra, tanto que fez trabalhos específicos, não só para os galpões em Marfa, mas para outros lugares também. Sua obra completa é formada pelas caixas, o galpão, a luz do deserto e a paisagem de fora.

Contra a instituição museu, Judd não acreditava que seus trabalhos precisavam de placas com títulos, muito menos com explicações. Nas fundações em Marfa, o próprio guia é quem tem a chave de todos os pavilhões, e quem os abre para os visitantes. Judd pensava que a grande arte estava nas atividades domésticas diárias, no convívio com a família e no diálogo constante com seus filhos. Por isso, em todos os cômodos de seus prédios, sejam espaços de trabalho ou de moradia, havia uma cama, onde seus amigos quando o visitavam dormiam rodeados de seus trabalhos. As atividades diárias eram melhores se feitas rodeadas por arte. Por isso, também, a importância de manter tudo como ele deixou – o que as fundações fazem com rigor e maestria. Cada objeto, móvel, obra de arte e vestimenta deixadas por ele estão exatamente onde foram programadas para estar, pois criam uma relação entre as coisas e as pessoas que ali vivem/passam. No museu tem-se uma relação passiva com a arte, mas não ali.

O minimalismo, com sua mensagem direta, não foi apenas um movimento artístico. Diferentemente das religiões, com todos os seus códigos e ruídos, propõe-nos que nos livremos do desnecessário. Tampouco simples – diria aí estar sua importância –, faz-nos aparar arestas e chegarmos ao essencial. As formas puras de seu trabalho, que resultam de uma radical simplificação, dos materiais e das cores, abrem um canal de comunicação direta e sem devaneios com o da fé. A mensagem existe por si só, e você simplesmente acredita, assim como Deus, sem maiores complicações.

Judd não traz sentimento religioso para entender o trabalho. Deus e fé seriam abstrações que distraem de experiências diretas. Mas entendo que seja bastante natural ter esse tipo de reação, e começar a pensar pelo caminho do grande caráter da arquitetura e dos trabalhos.

Fé é simplesmente um sentimento de que “algo maior” está presente. Acredito também que um outro tipo de fé pode ser aplicado ao seu trabalho: a fé que as pessoas podem entender e por meio da qual se conectar a ele, sem referências a objetos existentes ou representações. Judd acreditava que as pessoas conseguem enxergar os trabalhos pelo que são e significam no momento em que são apreciados.

Através da sua proporção meticulosa e síntese da forma, junto com o deserto, com seu espaço e vastidão, Donald Judd me conectou a algo maior.

#17CidadesCulturaSociedade

Deus no céu e o queens na Terra

por André Tassinari

“When we’re free to love anyone we choose
when this world’s big enough for all different views
when we all can worship from our own kind of pew
then we shall be free”


Garth Brooks

Os moradores da região do Queens em Nova York gostam de se gabar de que lá é o lugar com maior diversidade étnica em todo o planeta. Consequentemente, a diversidade religiosa encontrada ali também é muito grande. Mas não costumamos ler nos jornais notícias sobre o Queens em que se fala de vizinhos que jogam bombas no terreno ao lado, ou de habitantes que cometem atentados suicidas, ou de limites territoriais em que pessoas de determinada religião não podem circular. Ao que parece o Queens é um bom exemplo para o mundo: um lugar onde pessoas de diferentes religiões podem conviver de forma pacífica.

Quem são essas pessoas tão diferentes mas que vivem todas no mesmo borough da principal metrópole dos Estados Unidos? Os norte-americanos têm dados detalhados para tudo, então podemos facilmente saber que ali vivem cerca de 2,2 milhões de pessoas (dos 8 milhões da cidade), sendo aproximadamente 28% de origem hispânica, 28% brancos não-hispânicos, 23% asiáticos e 18% negros não-hispânicos.

E quais são as religiões praticadas na região? Infelizmente esse dado não é tão fácil de ser encontrado. Isso porque existe uma lei que proíbe que se pergunte às pessoas sobre sua religião, se a pesquisa for de caráter obrigatório como é o caso do Censo. É um certo exagero dos norte-americanos. Bastava haver um campo em que se pudesse colocar “religião não declarada”, como no Censo brasileiro (no Brasil, pelo Censo de 2010, há 64,6% de católicos, 22,2% de evangélicos – número que vem crescendo, e 8% que se declararam sem religião, sendo as outras religiões pouco representadas).

Existem algumas outras fontes de dados que não o Censo que apresentam números de pessoas por religião, mas, justamente por não ser obrigatório responder, as pesquisas acabam não sendo confiáveis, pois muita gente acaba não declarando sua fé. Já que não conseguimos saber mais sobre as religiões no Queens através de levantamentos demográficos, podemos tentar analisar a partir de dados sobre o tipo e a quantidade de igrejas ou templos que estão presentes ali.

No site da prefeitura há um mapa interativo bem fácil de usar onde se pode encontrar uma série de informações e sua localização, tais como escolas públicas, postos de bombeiros, bibliotecas, etc. Basta escolher um distrito da cidade e clicar no tipo de informação que se deseja visualizar no mapa.

Como exemplo, vamos ver o que existe no distrito número 9 do Queens. Esse distrito tem uma população de cerca de 140 mil pessoas. Como comparação, essa é a população aproximada do distrito de Vila Mariana, em São Paulo, ou do bairro de Copacabana, no Rio. Os habitantes dessa área do Queens são 41% de origem hispânica, 22% asiática, 20% são brancos e 8% negros.

Conseguimos visualizar no mapa a localização de 14 escolas públicas, 3 postos de bombeiro e 2 bibliotecas, entre outros pontos de interesse. Mas novamente não achamos nada sobre religião. Não há a opção de mostrar igrejas ou outros locais de cunho religioso. Vamos ter que ir atrás de outras fontes. Usando o Google Maps como ponto de partida e depois os sites das igrejas/templos para confirmação, conseguimos ter um panorama das entidades religiosas no distrito. Igrejas católicas há pelo menos meia dúzia.

Mesquitas são três. Templos hindus, no mínimo cinco, além de dois templos sikhs (outra religião originária da Índia). Sinagogas são duas. Outras igrejas cristãs existem em mais de uma dezena de denominações: presbiteriana, luterana, batista, metodista, da ressureição, assembleia de deus, adventista, mórmon, episcopal, sung shin (coreana)…

Com tanta variedade, decidi investigar mais a fundo uma dessas religiões, uma que fosse de um universo menos familiar para mim. Me programei para ir ao centro religioso no dia da semana mais importante para essa religião. Nesse dia, os praticantes que moram em cada região se congregam no local de culto para orar e fortalecer o vínculo entre os membros da comunidade. (Por sorte eu tenho um tipo físico que me possibilita passar por um membro dessa comunidade.)

A primeira coisa que me surpreendeu é que não havia mulheres no ambiente de oração, que era liderado por um sacerdote que ficava lá na frente voltado para os fiéis. Alguns fiéis que pareciam ter importância na comunidade também eram responsáveis por algumas orações. As orações eram feitas em uma língua muito difícil de entender, mas de bonita sonoridade. Algumas orações eram apenas frases recitadas, já outras eram entoadas de maneira melódica, quase como uma canção. O volume das orações não era alto, a maioria dos fiéis orava baixinho, como que para si mesmo, ou como uma conversa ao pé do ouvido com deus.

Além das palavras havia também alguns movimentos do corpo que eram parte fundamental das orações, entre os quais uma certa curvatura do corpo para frente. As idades dos homens presentes eram bem variadas, desde bem jovens até anciões. Muitos usavam barba, mas não era obrigatório. Apesar do verão nova-iorquino, a praxe era usar roupas que deixavam poucas partes do corpo descobertas. Um item de vestuário que achei interessante era uma espécie de chapéu sem abas, que parecia que ia cair da cabeça a qualquer momento. Aqui chapéu é sinal de respeito e religiosidade, ao contrário de alguns lugares onde usar chapéu em ambiente fechado é errado.

À medida que os fiéis iam chegando, cada um iniciava suas orações, não precisavam começar todos na mesma hora. Lá pelo meio da missa, digo, sessão, o sacerdote começava a falar de maneira diferente com os fiéis: era a hora das palavras de alguém que é considerado um sábio pelos seguidores, que ouvem atentamente suas orientações e reflexões. Após o fim das orações, os homens iam saindo um a um da sala de culto, e trocavam saudações lá fora, onde também conversavam sobre assuntos da comunidade.

Afinal, que tipo de templo era este que eu visitei? Uma mesquita? Uma sinagoga? Ambas. A descrição acima serve para as duas visitas que fiz, uma a uma mesquita, em uma sexta, e outra, em um sábado, a uma sinagoga.

Até que, no meio de tanta diversidade, deu pra encontrar bastante similaridade.

intensidade e matriz, a palavra propaga, primeiro nas auréolas, depois nos miolos, mas no mesmíssimo instante, intensidade e matriz, confirma a palavra, o instante menos do que a chuva, fina, fina, apenas quietude de água translúcida, olhar de mil cavalos que escorre na janela do quarto, pradaria e descampado. bicho que se sabe extenso, alto, ainda assim os músculos suscetíveis, a crina selvagem, a ferradura antiga, corrompida, descascada. através dela o instante retorna, persiste, é noite, um sopro quente e delicado abre os olhos, intensidade e matriz, nunca antes o silêncio tão música inaudível, a madrugada tão clara, ainda assim a firmeza da voz, timbre vigilante, sabe da vertigem no outro lado da gangorra, sabe da importância da solidez de um braço. entre todo o esquema do insondável, lâminas, partículas, coisas mínimas, papéis esmiuçados, tentativas de recortes. assobiando o fundo persiste mais do que o instante.

#17CulturaSociedade

Guerra pela fé nas estrelas

por Leticia Lima

Há séculos uma batalha vem sendo travada entre céu e terra, entre o sagrado e o profano, entre a fé cega e o testemunho dos olhos. É a guerra entre a religião e a ciência, e, neste conflito, muitas vezes a maior vítima acaba sendo a fé.

Em um universo em que mal compreendemos nossa realidade, e em que existem ainda muitos mistérios a serem revelados, a religião e a ciência inevitavelmente competem pela autoridade maior quando se trata da natureza da realidade. Por vezes, avanços científicos ameaçam a versão religiosa da realidade, e instituições religiosas se sentem ameaçadas. Não é à toa que a Igreja Católica muitas vezes jogou seu peso contra novas e “radicais” teorias, como a de Galileu. E não é à toa que o debate entre evolucionismo e criacionismo ainda ferve em partes do mundo.

Se a religião e a ciência são de fato incompatíveis, ou – como hoje argumentam muitos cientistas –, na verdade, complementares, isso é assunto para outra matéria. O importante é entender que se criou uma divisa no mundo ocidental entre religião e ciência muito difícil de superar. Por isso, ao longo dos anos, instituições laicas tiveram muito cuidado ao manter-se afastadas das possíveis controvérsias em torno do assunto religião.

Assim é o caso da NASA, Agência Espacial Americana, criada em 1958 em meio ao furor da Guerra Fria. A religião, porém, era um aspecto fundamental da sociedade norte-americana nos anos 1950 e 1960; algo que os diferenciava de fato dos comunistas ímpios. Entraves eram inevitáveis.

Em 1968, a tripulação do Apollo 8, os primeiros humanos a orbitar a lua, leram um verso da Bíblia durante uma transmissão ao vivo. Ativistas ateus deram entrada em um processo contra a NASA por infringir a separação entre Igreja e Estado. A Suprema Corte Norte-Americana descartou o processo por falta de competência.

Em julho de 1969, o comandante Buzz Aldrin, da nave Apollo 11, foi o primeiro e único homem a receber comunhão no espaço. Presbiteriano, ele mesmo administrou o sacramento, e em seguida tornou-se o segundo homem a pisar na superfície lunar. Entre este ano e 1972, um total de doze homens caminhariam sobre a lua. A grande maioria deles eram cientistas, homens que acreditavam no avanço da tecnologia e na capacidade do ser humano. Para alguns deles, a experiência no espaço foi também muito espiritual. Dois deles, Jim Irwin, do Apollo 15, e Charlie Duke, do Apollo 16, encontraram Jesus na fria atmosfera espacial.

O astronauta Ed Mitchell foi o sexto homem a pisar na lua, em 5 de fevereiro de 1971. Mitchell foi piloto do módulo lunar da missão Apollo 14, ao lado do comandante Alan Sheppard. De acordo com Mitchell, a experiência despertou-lhe uma consciência maior. Seu livro The Way of the Explorer: An Apollo Astronaut’s Journey Through the Material and Mystical Worlds [“O Caminho do Explorador: A jornada de um astronauta da Apollo através de mundos materiais e místicos”, ainda sem tradução no Brasil], publicado em 1996, gerou muita polêmica. No livro, Mitchell conta que “O que vivenciei durante aqueles dias de viagem de volta para casa não era nada menos do que um senso de conectividade universal”, referindo-se ao que descreveu como uma religação sua com o cosmos. “Na verdade, senti um êxtase de unidade com o espaço”. Mitchell escreveu que nossa ação como viajantes espaciais e a existência do próprio universo não eram acidentais, mas que havia uma lógica inteligente por trás disso. “Percebi que o universo é, de algum modo, consciente”.

Ao voltar à Terra, Mitchell dedicou-se a estudar literatura e práticas místicas, incluindo as religiões hindus e budistas. Obteve suas primeiras experiências transcendentais e, em especial, samadhi, uma palavra sânscrita que descreve um estado de consciência e unidade total. Ele garante que a possibilidade de uma experiência transcendental existe em cada um de nós, inerente a todo organismo vivo. Em 1973, fundou o Instituto de Ciências Noéticas (palavra que vem do grego nous, ou mente) para difundir tais conhecimentos. Diz Mitchell que a experiência de enxergar a Terra de fora ampliou seus horizontes. Passou então a querer buscar respostas espirituais para os fatos materiais da vida, e se tornou um ufologista dedicado. Em seu livro, afirma que muitos dos relatos de óvnis avistados desde o incidente Roswell eram de visitantes de outros planetas. Diz ainda que essas espaçonaves foram “objetos de desinformação pelos governos, de maneira a desviar a atenção dos povos em geral e criar confusão para evitar que a verdade viesse à tona”.

Mitchell é um caso interessante, pois, apesar de não ser o único cosmonauta que relatou uma crença em – ou contato com – extraterrestres, é o mais vocal deles. Talvez uma análise de sua infância possa explicar um pouco a tomada espiritual que teve no espaço, pois, afinal, foi criado muito próximo a Roswell, Novo México, infame local da suposta aterrissagem de uma nave espacial, em 1947. Muitos adeptos das conspirações acreditam até hoje que o incidente foi encoberto pelo governo dos EUA. Entre eles está Mitchell, que possui doutorado em aeronáutica e astronáutica do prestigiado Massachusetts Institute of Technology (MIT) e foi capitão da marinha norte-americana antes de ingressar no programa incipiente da NASA. Esta mente científica brilhante é a mesma que apresenta o mesmo fervor religioso de um fiel na sua crença em óvnis.

A verdade é que a exploração espacial é um ato de fé. A ciência nos deu a capacidade de lançar o homem ao espaço, mas é preciso muita fé para querer ser lançado. Afinal, ninguém pode dar garantias de uma volta segura. O astronauta israelense Ilan Ramon levava consigo uma cópia da tradicional benção judaica Shabbat Kiddush quando a sua nave Columbia explodiu, matando Ilan e seis outros em 2003. Em 2007, o cosmonauta Sheikh Muszaphar Shukor, mulçumano praticante, rezou várias vezes ao dia durante sua estadia de 11 dias na Estação Espacial Internacional – uma façanha nada fácil, uma vez que satélites em órbita passam por diversos pores-do-sol diariamente, mudando também a direção de Meca. Em 1986, o Papa João Paulo II liderou o mundo numa prece pelas vidas perdidas no acidente mais notório da agência espacial norte-americana, a explosão do ônibus espacial Challenger.

São muitas fés: fé na capacidade humana, fé na ciência, fé em Deus, fé em que não estamos sozinhos no universo. No limiar entre o que a ciência explica e o que a fé dita, o espaço realmente é a última fronteira.

#17CulturaSociedade

Kali Yuga

por Thiago Blumenthal

Tempos sombrios os que vivemos, em que a luta da escuridão contra a luz parece intensificar-se a cada round. Há quem diga que a escuridão está por vencer, por ora; os mais pessimistas. E há aqueles que já notam leve vantagem da luz, para utilizar uma imagem da série True Detective, no diálogo entre os agentes Marty e Rust.

Para boa parte dos hindus, não há dúvida: são tempos pra lá de sinistros. Na terminologia das escrituras sagradas e fundadoras do hinduísmo, estamos em pleno auge da era de Kali Yuga, que pode ser traduzida ou como era do demônio Kali ou “era dos vícios”. Para os hindus, o mundo passa por quatro estágios muito bem definidos, sendo Kali Yuga o derradeiro; caos, discórdia, trevas.

O primeiro estágio é Satya Yuga, quando a humanidade e seus deuses (não são poucos, na tradição oriental) estão em perfeita harmonia. Durou mais de um milhão de anos e lamentavelmente chegou ao fim há muito tempo. Depois há um declínio moral e estrutural do mundo, com Treta Yuga (com as encarnações posteriores do deus Vishnu) e com Dvapara Yuga, quando Vishnu ganha uma nova coloração e o intelecto deixa de existir. Krishna retorna ao lar celestial e dá início ao período mais temido pelos hindus, representado pela deusa Kali.

Para um dos gurus mais célebres da Índia, Paramahansa Yogananda, ainda vivemos em Dvapara, o terceiro período. Para o sábio, que viveu entre os séculos XIX e XX, há um erro de interpretação na astronomia da Surya Sidantha, uma espécie de cosmogonia do mito hinduísta. Um otimista ou um matemático fervoroso e obcecado pela posição dos astros no céu? Um revolucionário, tal Cristo para o judaísmo, ou Calvino para o cristianismo? Fato é que sua proposta de leitura dos tempos é pouco aceita dentro da tradição e a praxe é aceitar nossas vidas tão frágeis sob domínio do mal, sob domínio de Kali.

Um dos principais e talvez mais assustadores atributos de Kali é o controle que tem sobre o tempo. Geralmente representada como uma figura negra (daí o seu nome, do sânscrito) ou, em concepções mais recentes, azul, eis uma deusa, dentro do enorme arcabouço mitológico hindu, que sem dúvida se associa à escuridão, em oposição a Shiva. Como Shiva conota a luz criadora do mundo, e Kali lhe é anterior, com a criação do tempo, esta sempre aparece sentada sobre o corpo de Shiva. Temos uma concepção parecida na criação da figura, presente na tradição judaico-cristã (em especial na cristã), de Lúcifer.

Tal qual Shiva, Lúcifer carrega em sua concepção dois polos de um mesmo princípio criador: o da destruição e o da transformação pela luz. Lúcifer é o anjo da manhã, uma imagem pela qual os textos do Novo Testamento têm interessante predileção. O livro Satã, uma biografia, do pesquisador Henry Ansgar Kelly, revela dados da Vulgata que podem assustar até o mais cristão dos leitores; como reagir, quando João, no livro mais misterioso da escatologia cristã, o Apocalipse, refere-se a Jesus como “estrela da manhã” (no original grego e na Vulgata, os termos heosphoros e lucifer respectivamente)? Inúmeros hinos e documentos da tradição católica dão conta da imagem do messias cristão como este anjo da manhã.

Como ter fé em algo em tempos tão tenebrosos? No que os judeus acreditaram quando foram pouco a pouco sendo dizimados, moral e fisicamente, diante da gelada máquina nazista entre as décadas de 1930 e 1940 na Europa? No que devo acreditar, a que ou a quem devo apegar-me no momento de angústia? Enxoto as imagens lúgubres, já dirá Graciliano Ramos, mas elas vão e voltam, sem vergonha. Esforço-me por desviar o pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato. Tento distrair-me olhando a rua.

Sobre a mesa, tenho alguns livros de consulta, com ilustrações das mais assustadoras. Vivemos sob trevas?, reflito. Duas da manhã e o vento sopra forte contra minha janela. E penso em quem tem mais força, se a luz do meu quarto ou a escuridão do céu lá fora.

#17ArquiteturaDesign

Arrumando a casa

por Fernando Viégas

Transformar é a principal ação da arquitetura. Ninguém projeta para tudo ficar como está. Para isso basta não projetar, como estamos cansados de ver.

Temos muito a fazer. Nossas demandas urbanas nos remetem a agendas do século XIX, como saneamento, abastecimento, transporte, ou seja, infraestrutura. São Paulo sempre foi pensada do ponto de vista do escoamento da produção de uma cidade industrial. Nosso desafio agora é desenhar essa infraestrutura articulando-a com a escala local. São oportunidades de reconfiguração de enormes áreas urbanas com novos princípios, adequadas à escala humana. Projetos são precisos.

Se recuarmos um pouco nosso ponto de vista, como fazem os historiadores, é possível perceber os avanços do Brasil desde sua redemocratização. Algumas poucas décadas de continuidade democrática fazem diferença. A transformação é nítida: aumentamos, desde o final da década de 1980, em oito anos a expectativa de vida do brasileiro. O analfabetismo baixou de 20% para 8%. A mortalidade infantil foi reduzida de 58 para 16 por mil habitantes.

No entanto, nossas metrópoles ainda não expressam esses avanços. A imagem da pobreza de um Brasil profundo, concentrada nos rincões esquecidos, hoje migrou para as grandes cidades. A crise urbana que deflagrou as manifestações da sociedade, que ocupou as ruas das cidades brasileiras exigindo o acesso aos benefícios urbanos, “tem a ver com a certeza de que o transporte deveria ser um bem comum (…), assim como a água, a terra, a internet, os códigos, os saberes, a cidade.” A pauta ecológica se mesclou à urgência das transformações urbanas. A sustentabilidade tem que ser abordada na escala infraestrutural, como indica a dramática situação do abastecimento de água potável de São Paulo. Insustentável é a pobreza.

As necessidades de deslocamento, o uso múltiplo das águas, a saúde, a educação não se resolvem sem a ação compartilhada dos três entes federativos: união, estados e municípios. Hoje não temos instituições capazes de gerir o fenômeno das metrópoles. As prefeituras não conseguem administrar nessa escala. É urgente a criação de uma instância metropolitana que articule o território, com verbas compatíveis aos investimentos necessários e com continuidade administrativa de planejamento. Algumas decisões consistem em compromissos impossíveis de serem cumpridos em quatro anos. Não se planeja assim nenhuma grande cidade. Como exemplo, os metrôs de Paris, Cidade do México e Tóquio são providos diretamente por verbas federais.

Ao mesmo tempo, temos conquistas que precisam ser defendidas. Conseguimos formular, nos últimos anos, uma importante equação que conjuga a ocupação periférica informal da cidade com sua geografia. As áreas vazias, lugares possíveis para as famílias mais pobres construírem suas casas na periferia da cidade, estão quase sempre associadas a córregos, onde os riscos de deslizamento e enchentes são frequentes. Surge aí uma oportunidade para enfrentar o problema da habitação precária – vinculando as ações de saneamento, limpeza de rios e nascentes, da montante à jusante, à construção de bairros – da cidade. A questão habitacional não pode mais ser pensada somente como problema quantitativo. São Paulo, situada no “mar de morros”, como cunhou Aziz Ab’ Saber, poderá reencontrar sua geografia que foi solapada pela contaminação e tamponamento de seus rios.

Acredito na desativação do Minhocão, símbolo violento da ditadura militar, que a população ocupou devido à falta de opções de espaços de lazer, mas também porque deseja a vida em espaços públicos. “O desejo coletivo implica imenso prazer em descer à rua, sentir a pulsação multidinária, cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos e aprender um comum que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a inteligência coletiva”. Tirar os carros do elevado representa a revisão do sistema rodoviarista de transporte individual pelo transporte público de massa já em marcha em São Paulo. É quase um milagre, que, se acontecer, nos permitirá vislumbrar uma reversão da indústria do medo, que constrói paulatinamente a morte da cidade com condomínios fechados, praças gradeadas, muros, guaritas e segregação social.

Acho que parte dos paulistanos já percebeu que exercer a cidadania é uma potente ação política. É nisso que acredito. Boto fé.

* Trechos citados: Peter Pál Pelbart Anota aí: eu sou ninguém – Folha de São Paulo, 19/07/2013.

De onde eu venho, Jesus é um homem loiro e de olhos azuis. Caminhando à beira do Rio Jordão, vi que dificilmente ele seria assim. Desde então, tenho procurado Jesus entre os homens da região. Silencioso, observador, moreno, frágil, cheio de vitalidade, qual seria a natureza deste jovem homem? É meu dever levar uma nova imagem de Jesus para o meu povo. Fui às ruas em busca da opinião das pessoas sobre qual desses homens poderia representar um rosto mais fiel para esta figura revolucionária.

#17CulturaSociedade

O vinho e a fé

por Vasco Croft

Domingo. Acordo entre as paredes de granito de uma casa antiga, que está na minha família há muitas gerações, dizem, desde o século XVII. Abro a janela para a manhã chuvosa de setembro. Entre as portadas Bordeaux, estende-se, bucólica, uma familiar paisagem de vinhas, amparada por suaves montanhas ao fundo. Déjà vu recorrente.

Olho de relance para a mesa da sala. Alinha-se uma coleção de umas nove garrafas de formato Borgonha. Por baixo dos reflexos que brilham no vidro escuro surpreende-me a alegre precisão das imagens dos rótulos, geométricas e contemporâneas, em cores variadas. Do lado direito destas, lêem-se 5 letras maiúsculas – Aphros.

A elegância e a nitidez da presença dos objectos contrasta com a consciência na qual surgem, sem desenho que a defina ou margens que a contenham. Que nada sabe sobre si mesma. Consta que os primeiros nasceram da segunda, que nela habita o criador, o produtor, o responsável.

Nasce um sorriso. Em verdade, esta apenas sabe que, em nenhum momento, o mistério que ali se esconde nasceu da sua vontade, intenção ou conhecimento.

Nunca teve a ambição de fazer vinho, e mesmo hoje, com toda a evidência de garrafas cheias, compostas, numeradas, avaliadas pela crítica, e exportadas para um sem número de países, continua a não o fazer.

Um mistério que não se resolverá.

Muitos anos atrás, ao chegar a um restaurante, depara-se-me, recortada na luz da janela debruçada sobre o mar, a silhueta dum velho e querido amigo, monge budista e brasileiro. Iluminam-se-nos os rostos de alegria e espanto, pois chegara a Portugal sem que nos comunicássemos.

Surpresa que era apenas a primeira de várias, que se sucederiam como bonecas russas. Contou-me que viera de propósito àquele lugar para tomar um vinho que apenas ali se podia encontrar. Sabendo-o abstémio, tal como eu era desde que me conhecera, a surpresa vira estupefacção quando ouço: “Vasco, gostaria de aproveitar este acontecimento para te mostrar uma descoberta que mudou a minha vida!”. Chama o sommelier, e encomenda uma garrafa da safra do ano em que nos encontráramos pela primeira vez.

E assim, entre dois ex-abstêmios, se iniciou a conversa que o vinho escolheu para se apresentar àquele que, anos mais tarde, o destino incumbiu de se ocupar duma pequena quinta ao norte de Portugal. Lá, num recanto verde esquecido pelo tempo, entre regatos, ervas, carros de bois, pés descalços e lábios pintados de vinho retinto. Onde um menino de Lisboa aprendeu, em finais dos anos 1960, a vida rude e maravilhosa do campo, ainda em contornos medievais.

Enfim, chegáramos a 2002 e era preciso encontrar uma solução para tornar a quinta sustentável. Vender uvas tornou-se negócio ruinoso, e o Sr. Antônio, o capataz, estava com 80 anos e a precisar de reforma. Fazer um vinho engarrafado para vender localmente, reativando a velha adega, parecia uma solução sensata e de baixo risco, além dum hobby prazeroso.

Esse o plano do produtor, não certamente o do vinho. Desenganem-se todos os que sonham com a pacatez e o romantismo, se algum dia pensarem em dedicar-se à atividade tão estrênua. Além disso, com os planos que o vinho tem para si mesmo, não adianta argumentar. O Aphros, por exemplo, é bem mais cosmopolita do que eu, que jamais pensei assistir ao vinho da minha velha quinta viajar a países como Japão ou Austrália. Ou a ser apreciado por críticos como Jancis Robinson, que formam a opinião internacional. Mas, se bem que alguma visibilidade ou verniz de glamour possam ser úteis atualmente para a sobrevivência duma vinícola, a verdade é que esses, assim como os preços do mercado, são aspectos laterais e largamente aleatórios, que raramente traduzem o espírito dos vinhos. A viticultura dedicada e ligada à terra é uma vocação diferente da que impera no mundo do comércio globalizado que domina os mercados, inundados pelos vinhos comerciais de grandes empresas que usam extensivamente a agroquímica e os processos industriais, e que são servidas por máquinas colossais de vendas e distribuição. A alma do vinho, essa continua sendo guardada por gente humilde e quase anônima, que o continua fazendo porque nasceu para o fazer.

Nascido originalmente como uma bebida sagrada, e companheiro do Homem em sua caminhada, o vinho, tal como a Fé, é um dom e um chamado à autenticidade, que nos convida a beber da fonte da vida. Porque se a Fé é esse lugar no fundo de nós, onde mora a certeza na bondade da existência, o vinho lhe facilita o acesso, com o mistério de nos fazer sentir esse acordo entre nós e todas as coisas.

Porque inseparável do homem e espelho da sua visão de mundo, o vinho caiu com ele nos abismos em que se despenhou, acabando por se tornar um mero produto de consumo. Tão artificialmente manipulado que a maior parte das vezes nada mais resta da denominação de origem com que é propagandeado, nem da vida que nele deveria alimentar os corpos e as almas.

Ao mesmo tempo, um dos maiores fatores de esperança do nosso tempo é justamente o movimento internacional de resgate do vinho, envolvendo produtores, apreciadores, críticos, comerciantes e restauradores. Os vinhos biológicos, biodinâmicos ou naturais são já o futuro, e estão na vanguarda do movimento ecológico, incorporando em gosto e profundidade um ideal de verdade que podemos provar em cada copo, renovando prazerosamente a nossa Fé.

E, por falar na revolução dos vinhos naturais, é essencial mencionar o filme Mondovino – que considero o maior gesto de Fé da história do vinho, realizado por Jonathan Nossiter, brasileiro por adoção, e cineasta que se tornou o herói duma causa até aí por defender. Talvez o primeiro ser humano a levantar-se e acordar o mundo para uma questão ética e existencial muito mais central na nossa cultura do que se imaginava. E não para de me causar espanto como o fez, saindo estrada afora munido apenas com uma câmara de filmar, para mudar para sempre a consciência planetária. Mondovino é a lança cravada no peito do dragão – depois dele, nada mais será como antes.

Muito devo aos meus irmãos brasileiros, tendo aqui referido dois (mas são muitos, muitos mais!), que fazem parte do meu vinho e da minha Fé. Devo-vos também o meu ritmo favorito, sincopado e a contratempo, que, tal como o vinho, nos liberta e faz sorrir, tornando a existência numa brincadeira feliz. E que mais pode ser o samba e o carnaval senão a celebração da Mente Confiante por parte duma nação inteira? A vós ergo a minha taça, com profunda alegria e gratidão.

#17Amarello VisitaArteArtes Visuais

Amarello Visita: Jejo Cornelsen

por Tomás Biagi Carvalho

Você é de Curitiba. Como veio parar em São Paulo?

Nasci em Curitiba e me mudei com a família para o Rio, em 1962. Na década de 1970 nos mudamos para Portugal, onde iniciei meus estudos na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Em 1974, houve a Revolução dos Cravos em Lisboa, e as escolas e universidades fecharam. Com isso, voltei para o Brasil, e fui morar no Rio.
Um ano depois tranquei a matrícula e voltei para a casa dos meus pais em Curitiba. Fui morar na Chácara, nos arredores de São José, onde passei um ano pintando.

Nessa época, comecei a vir com frequência para São Paulo, a trabalho, a convite da Rita Lee, para fazer a capa de seu LP Rita e Roberto, depois Pedro e o Lobo, pela Odeon. E então veio o convite inesperado, da produtora de filmes Studio ZH, para trabalhar com eles e fazer a direção de arte e criação dos personagens do filme Pantanal Alerta Brasil, produzido por Daniel Taubkin e Rita Figueiredo.

Conheci o “Z”, o Zelada, e em seguida o “H”, o Cao Hamburguer, e depois os outros membros da equipe, com os quais me encantei. Vivian Altman, especialista em modelagem, o Renato Theobaldo, o Felipe Tassara, o Bini, o Fernando Coster e Marcelo Durst, um fotógrafo genial.

A casa era um sonho. Abria a geladeira e estava cheia de bonecos. O porão era a oficina do Zelada e do Bini. Tinha uma salinha de pintura, estufa para secar látex e muitos materiais incríveis. Fiquei muito amigo de todos, e ganhei a chave da casa para que, quando viesse do Rio, pudesse ficar aqui. Essa é a casa aonde vim, para morar, depois que a ZH fechou e cada um foi seguir o seu caminho.

Nos conte um pouco do seu background e sobre como você começou a se interessar por arte.

Meu pai é arquiteto e engenheiro. Sempre frequentei, em sua companhia, as obras que executava e projetava. Convivi desde a infância com os materiais de seu ateliê, em casa e fora também. Era uma sensação maravilhosa ver a planta topográfica ser executada em maquetes 3D – manualmente – feitas por artesãos locais, tanto em Curitiba como no Rio e em Lisboa.

A casa em que nasci era modernista, feita pelo meu pai, na década de 1950. A mobília da sala de jantar era do Tenreiro, tinha um biombo do Eames e mesa de apoio do Noguchi. O [artista] Loio Pérsio pintou uma parede da casa, meu pai pintou um painel de azulejos para a fachada. Lembro que o [pintor] Nilo Previdi frequentava a casa. Meu avô tinha uma coleção de pinturas dele, cujo tema recorrente eram cavalos e animais em larga escala – algo estonteante para o olhar de uma criança.

Sempre me interessei por arte. Desde criança, naturalmente. Por dom, gostava de desenhar.

Vi minha primeira exposição de arte no Instituto Calouste Gulbenkian, do Paul Klee – foi impactante. Nessa época, vi Op-Art e Pop-Art, DADA e Bauhaus, Roy Lichtenstein e Andy Warhol, Rauschenberg e Jasper Johns, Claes Oldenburg e outros clássicos da Pop Art. Esse período foi fundamental na minha formação. Em 1976, fui para Londres estudar pintura na Byam Shaw School of Drawing and Painting, onde fiquei até 1979. Lá, mergulhei a fundo na educação clássica da arte e da pintura. As melhores lições e conselhos que poderia dar a alguém, trago de lá. Estude arte pura, estude os grandes mestres do passado. Estude aqueles artistas com quem você sente uma identidade, uma cumplicidade, não somente na pintura mas também em outros meios como a fotografia, o cinema, a escultura, o design e a arquitetura. Pratique desenho à mão livre, sempre. Não existe tempo definido para aprender e ensinar. Observe a natureza como um elemento da vida e de transformação. A luz, as cores, as formas. Dedique seu tempo precioso a construir um lar em seu espaço de conviviabilidade, com trabalho e pessoas. Aprenda a cozinhar e criar as suas próprias receitas. Cuide bem de sua produção artística.

Você é um cara extremamente talentoso e inspirado. Acredita que talento por si só acontece

Talento e inspiração não fazem acontecer nada sem muito trabalho, disciplina, ordem e pesquisa de diferentes fontes.

Descreva seu ambiente de trabalho. Como o local em que você trabalha influencia sua produção?

Meu ambiente de trabalho passou a ser em qualquer lugar. Com pouca coisa e nenhuma necessidade a não ser o próprio material que me proponho usar.

Nos conte um pouco a respeito do seu processo criativo.

Acredito que a espontaneidade e as circunstâncias nos levam a execução de um trabalho. O processo criativo é também intuitivo. A elaboração mental de como executá-lo pode-se expressar através do desenho ou pintura ou escultura. A organização dos materiais, dos instrumentos e do espaço onde o trabalho será desenvolvido é fundamental. No final, o processo de criação da obra transcende o artista.

Existe algum trabalho/projeto com o qual você se sinta mais realizado?

Todo o trabalho é uma realização.

Quem você citaria como suas maiores fontes de inspiração?

As fontes de inspiração são inesperadas. Não têm precedente. Arte, arquitetura, música, dança, cinema. A natureza e suas majestosas criações. O cotidiano da vida, as pessoas com quem me relaciono, os anônimos.
É sempre importante revisitar os velhos mestres. Tenho pesquisado os trabalhos de Donald Judd, Axel Vervoordt, Richard Serra, Noguchi e as pinturas de Baselitz, Pat Steir, Kiefer, Guston, Louise Bourgeois.

O que gostaria de fazer que ainda não fez?

Tenho feito o que gosto a vida inteira! É um privilégio poder rever, organizar e selecionar o meu próprio trabalho, minha própria produção.

#16RenascimentoCulturaLiteratura

Beleza e verdade

por Thiago Blumenthal

Copo, de Felipe Cohen (2004)

E se Keats estivesse enganado? Essa é a pergunta que me fiz ao debruçar-me recentemente sobre sua obra, um dos maiores poetas românticos de sua geração, em contraponto a ideais estéticos em desacordo com o cientificismo de seu tempo ­— primeira metade do século XIX. O poeta inglês, sabemos, celebra um certo espírito renascentista de registro, de mimesis, da natureza, em seu esplendor e beleza, com o modelo clássico servindo de raiz inspiradora a obras arquitetônicas, plásticas, literárias. E políticas. O idealismo das virtudes gregas capturado pelo projeto de longue durée não passou batido por Keats. Mas me pergunto: e se essa concepção, dentro da visão de mundo europeia, heliocêntrica, não corresponde ao conceito mais formal de verdade?

Em seu poema Ode on a Grecian Urn, Keats concretiza, conceitualmente, a convicção absoluta da “verdade da imaginação” e conclui, nos últimos versos, que “‘Beauty is truth, truth beauty’ – that is all/ Ye know on earth, and all ye need to know”. Da coleção de grandes odes do autor, esta acabou por tornar-se uma das mais célebres e citadas, devida e indevidamente, como é próprio da fortuna de toda e qualquer citação. Tomado pela beleza dos mármores do Partenon, entre centauros e lápitas, o poema, dividido em dois grandes blocos temáticos (de um amante que não pode realizar seu desejo — “Bold lover, never, never, canst thou kiss” —, e de um sacrifício ritualístico, tirado da cena de Sacrifício de Listra, de Rafael, alto período do renascimento), busca responder os possíveis limites da arte. Keats disseca o imaginário renascentista e conclui que só pode haver beleza na verdade, como só pode haver verdade no que é belo.

A corte, a música, o rito religioso, ali descritos e consagrados, em contraposição com a realidade factual da urna que guarda essas narrativas, compõem um cenário espaçado entre dois pontos distintos: a beleza da arte e a humanidade mais real (e “verdadeira”), em contato direto ao apreciar e tocar aquele objeto. Onde se tem que um elemento não somente não exclui o outro, mas serve de condição para que ambos existam. Assim nos conta Keats sob a premissa de que, sim, julgamentos estéticos são os árbitros para qualquer verdade. Como Einstein, um renascentista tardio, que afirmou que as únicas teorias físicas que aceitamos são sempre as mais belas. A equação, no entanto, para fechar, se determina por um outro campo: o tempo e a memória.

Da eternidade das obras renascentistas e do legado do período, por séculos a fio, não duvidamos. Keats, Flaubert, Beethoven, o mot juste em todas as artes e expressões de lá para cá une verdade e beleza em sintagmas indissociáveis. Artistas que trilharam o caminho da exatidão para atingir o belo. O meu ponto é que a doutrina renascentista, que nos foi passada por Rafael, Botticelli, Da Vinci, ultrapassa a mera busca pela verdade. É o caráter mais revelatório de todas essas obras que, muito mais do que um processo preso a um determinismo cego, manifesta uma sensibilidade de escolhas, tangível e essencialmente subjetiva, sem qualquer platonismo que, quando exposto, pode revelar-se às avessas ou fora do escopo artístico.

A verdade não é a beleza, tampouco a beleza está na verdade. A inadequação dos versos finais de Keats, como uma amostragem didática de uma fórmula quase científica, corresponde a uma gradação da natureza que não respeita o aspecto do tempo: com a monotonia da evolução, do primeiro ao último verso, e do leitor de então ao contemporâneo, a beleza se perde da verdade e a obra tende a tornar-se histórica, somente histórica. Um verso se torna um aforismo, uma declaração, uma sociologia aberta ansiando por validação. É belo, e talvez seja verdadeiro. De outro modo: é verdadeiro, e talvez seja belo.

#16RenascimentoArteArtes Visuais

Morte e renascimento maia: os murais de Bonampak

por Alberto Rocha Barros

Na abertura de Os Gregos e o Irracional (1951), obra decisiva de E.R. Dodds, durante uma visita ao Museu Britânico, um professor de cultura clássica observa as esculturas do Parthenon quando é abordado por um rapaz que confessa não conseguir admirá-las: parecem-lhe “extremamente racionais”. O professor simpatiza: “Creio que o entendia. O que o rapaz estava dizendo era algo que já havia sido dito antes (…) Para uma geração cuja sensibilidade havia sido treinada nas artes africana e asteca, e através de obras de homens como Modigliani e Henry Moore, a arte dos gregos (…) é mesmo propícia a se mostrar destituída de certa consciência do mistério, e de uma capacidade para penetrar em níveis mais profundos e inconscientes da experiência humana.”

Certamente houve um boom de interesse na arte das civilizações antigas e das culturas tribais, sobretudo na Europa da primeira metade do século XX, quando a arqueologia se desenvolveu cientificamente, sítios foram descobertos e abertos ao público, a etnografia tornou-se mais respeitosa e cautelosa, e o turismo transnacional se estabeleceu. Artistas de várias orientações beberam em fontes não-clássicas: as artes tribais da África e da Oceania, assim como a arte pré-histórica e pré-colombiana, foram, cada qual a seu modo, influências decisivas para pintores e escultores do século passado. E muitos aspectos dessas artes não-clássicas produzem sim certa consciência de mistério: elas parecem falar mais diretamente a um mundo pós-freudiano; são, muitas vezes, desconcertantemente modernas, mais oníricas, emotivas, por vezes, violentas, uncanny.

Ocorre que o intuito do famoso livro de Dodds era questionar um pouco essa impressão de realismo racional frio da arte grega. Assim como podemos olhar mais atentamente para a arte greco-romana e enxergar nela tensões e dimensões insuspeitas de sentimentos complexos e profundos, também podemos encontrar uma majestade de composição quase clássica e um diálogo imediato com nossos hábitos de cultura visual nas artes de povos bastante distantes de nós. Os murais de Bonampak, no México, constituem um perfeito exemplo disso.

Na opinião de muitos, a arte maia é uma das mais belas do Novo Mundo e rivaliza com a grega em sua autoconsciência de esplendor, seu orgulho à flor da pele na ciência de seu impacto visual e planejamento atento que ordena as composições. Há nela também um extremo investimento em adornos curvilíneos e as chamadas pirâmides são site specific: as edificações e planos urbanos são desenhados para dialogar com a paisagem natural e geológica que os rodeia e com as estrelas e fenômenos celestiais que os encobrem. Parte do prazer de visitar os diferentes sítios é essa plasticidade do encontro entre os centros urbanos e seu ambiente natural, bem como a compreensão da racionalidade que os ordena: cada ruína maia tem seu charme particular e se apresenta como uma espécie de obra de arte total.

Bonampak é um sítio relativamente menor, na região centro-leste do estado de Chiapas (México), quase fronteira com a Guatemala, e próximo de outros centros maias poderosíssimos no passado, que viviam em perpétuo estado de batalha pelo domínio cultural da região: a majestosa cidade de Palenque, a belíssima e imponente Toniná e a misteriosa Yaxchilán, mergulhada na floresta densa, onde até hoje vemos serpentes e morcegos passeando pelas ruínas e os rugidos dos macacos bugiu assombram as estruturas templares. Embora os índios Lacandones que habitam a região (e que ainda falam uma língua maia) já conhecessem o sítio, foi apenas em 1946 que três norte-americanos descobriram aquilo pelo qual Bonampak ficou famoso: no interior da chamada Estrutura 1 (ou Templo dos Murais), uma fenda na construção havia deixado entrar água pluvial por séculos, formando uma translúcida crosta de carbonato de cálcio que, afortunadamente, preservou os murais mais belos que temos dos maias, considerados hoje um dos pináculos de sua arte e uma das obras-primas da humanidade.

Um dos elementos mais atraentes desses murais é uma cor de tonalidade rara: o renomado azul maia, criado por volta de 300-400 d.C. através da combinação de elementos orgânicos e inorgânicos: um corante índigo obtido a partir das folhas da planta anileira (de onde se obtém também o anil) e paligorsquite, um mineral argiloso. Esse pigmento azul não era apenas um sinalizador de luxo entre os maias, como o cacau e o jade, mas também uma marca de refinamento estético.

O azul maia é uma tonalidade célebre (como o azul egípcio e o International Klein Blue) e oscila entre o ciano e o esverdeado. Dependendo da quantidade de pigmento utilizado, do suporte onde é pintado e da incidência de luz, é possível obter um leque de sutis variações em seu espectro. Em Bonampak o pigmento está também misturado a azurita, um mineral tão raro quanto caro, obtido no extremo norte do México, a mais de 1.200 km de distância.

O Templo dos Murais é composto por três câmaras pequenas (apenas três pessoas podem entrar por vez) cuja função parece ter sido primordialmente estética: a contemplação das artes que elas guardavam. A primeira sala indica uma rebuscada cerimônia de ascensão ao trono da cidade, à dedicação de um templo e à apresentação de uma criança à corte e ao sacerdócio. A segunda sala apresenta uma sanguinária cena de batalha e sacrifício de cativos. Por fim, a terceira representa novas festividades. É possível identificar claramente um projeto nos murais, isto é, uma concepção artística e um grupo de pintores guiados por essa concepção. Mas os murais nunca foram completados em sua época e a unidade narrativa deles é debatida até hoje. Bonampak teve uma vida relativamente breve (foi ocupada por pouco mais de 200 anos) e testemunhou tanto o ápice da cultura maia quanto seu grande declínio.

Em 1994, o levante zapatista tornou seu acesso extremamente difícil. Em 1996, após complicadas negociações, a universidade de Yale iniciou um projeto de documentação detalhado e científico dos murais. No ano passado, o resultado desse projeto foi publicado: o gigantesco e deslumbrante livro The Spectacle of the Late Maya Court: reflections on the Murals of Bonampak (editado por Mary Miller & Claudia Brittenham: INAH e Texas University Press, 2013).

Os murais estão abertos ao público novamente. Fazia tempo que eu queria vê-los ao vivo. Estive lá em abril deste ano com minha irmã. Estávamos exaustos depois de visitar alguns sítios e passar horas no carro. Quando entramos no Templo dos Murais nossa primeira reação foi dizer um para o outro “não deveríamos estar aqui!”. Rimos. Quais são as chances de essas cores sobreviverem à ação do tempo? Conversamos bastante sobre eles — temos um gosto muito semelhante —, e nunca vou me esquecer desse momento com ela. O azul maia é mais duradouro do que se imagina. Bonampak viveu pouco. Seus murais renasceram.

#16RenascimentoCulturaLiteratura

Ilha, maravilha, utopia, alegoria – notas sobre A Tempestade

por Jerônimo Teixeira

Gravura de Benjamin Smith (1797), inspirada em quadro de George Romney

“Cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo”
Sermão da Sexagésima

“…and the thunder,
That deep and dreadful organ-pipe, pronounced the name of Prosper”

A Tempestade


A expressão foi sequestrada por Aldous Huxley: quando o leitor médio ouve falar, hoje, em “admirável mundo novo” (“brave new world”), de imediato pensa em alguma distopia tecno-eugênica. Mas o admirável mundo novo original seria, na verdade, o Velho Mundo. Seus representantes não viviam em um mundo higienizado e pacificado pelo condicionamento psicobiológico, mas na suja e bagunçada Itália do início do século XVII. Naquela que é a última das peças escritas por William Shakespeare (a rigor, a última que ele terá escrito sozinho, sem um dramaturgo parceiro), cabe à jovem Miranda, criada desde a primeira infância em uma ilha isolada, exaltar em termos elevados a confusa e humilhada entourage do rei de Nápoles:

How beauteous mankind is! O brave new world,
That has such people in’t!

(Como é a bela a humanidade! Oh, admirável mundo novo,
Que tem tais pessoas nele)

Miranda tinha apenas dois anos quando seguiu seu pai, Prospero, duque deposto de Milão, em seu exílio em uma ilha mágica do Mediterrâneo. Lá, teve contato apenas com um pai que, pode-se supor, era austero e emocionalmente frio — e além de tudo um mago de poderes quase ilimitados, capaz até de levantar os mortos —, e com o deformado Caliban, criatura meio anfíbia que tentou estuprá-la. Miranda, aos 14 anos, só conhece, portanto, o superhumano e o sub-humano. Compreende-se que a moça veja tamanha beleza no grupo de nobres que se apresenta diante dela no quinto ato. Huxley apropriou-se de suas palavras com distorção irônica, mas Miranda parece demasiado inocente para a ironia. É uma adolescente de olhos infantis, descobrindo um mundo que está ali desde sempre, mas que para ela resplandece de ineditismo. Prospero responde ao entusiasmo da filha de forma lacônica: “’tis new to thee.” (“É novidade para ti”) — entenda-se: essa gente só é nova (e, por extensão, bela) para a ingênua garota que nada sabe de crimes velhos e feios. Estão ali, afinal, todos os que condenaram pai e filha ao exílio: Antonio, o irmão traidor que usurpou de Prospero o ducado de Milão, e Alonso, o rei de Nápoles, ativo participante da conspiração. Prospero perdoou seus malfeitos — e as razões para tal ato de despreendimento serão talvez o mistério central dessa peça cheia de mistérios —, mas certamente não os esqueceu.

Miranda, é verdade, conhece boa parte dessas tramas sórdidas. O pai lhe contou toda a história logo na segunda cena do primeiro ato, em uma passagem de caráter meio didático (Northrop Frye diz que é uma cena “tecnicamente desajeitada”). Mas a menina já está apaixonada por Ferdinand, filho do rei Alonso, e não tem a disposição de alimentar ressentimentos. Ela obedece aos ditames de seu nome: etimologicamente, “Miranda” está relacionado a “maravilha” (o nome tem, aliás, a mesma raiz latina do “admirável” com que se costuma traduzir “brave” no título da ficção científica de Huxley). Miranda causa admiração — a Ferdinand, e também, obscuramente, a Caliban —, e ela mesma se admira.

Não só Miranda. Nesta peça final, o bardo não mobiliza o indisputável talento para tramar intrigas palacianas e desencontros amorosos que o espectador conheceu em Macbeth ou Sonho de uma Noite de Verão. Há só um fio de enredo aqui, e um resenhista mal-humorado talvez pudesse resumir A Tempestade a um desfile de personagens embasbacados. Miranda maravilha-se com Ferdinand, Ferdinand maravilha-se com Miranda, e o casal maravilha-se com o espetáculo mitológico que Ariel e os espíritos da ilha encenam sob as ordens de Prospero. Alonso e seu séquito encantam-se com os truques de Ariel; até os pinguços Stephano e Trinculo, responsáveis pelos esquetes cômicos da peça, maravilham-se, ou pelo menos se espantam, com o monstro Caliban; e o próprio Caliban mostra-se sensível às maravilhas musicais da ilha, em uma das falas de mais profunda poesia na peça.

Decerto um dos mais indevassáveis personagens de Shakespeare, Prospero não parece se maravilhar com nada. Não poderia mesmo se surpreender com nada: é ele, afinal, o grande titereiro da peça; os seres fantásticos que povoam a ilha, com o elusivo Ariel à frente, são seus comandados. Frye observa que A Tempestade leva ao extremo o expediente da peça dentro da peça que Shakespeare empregara, de forma mais limitada, em Hamlet ou Sonho de uma Noite de Verão. Tudo o que se vê no palco é, em última instância, uma encenação de Prospero, e quando ele pede nosso aplauso, no monólogo final, estamos ouvindo um dramaturgo (o dramaturgo?) que se despede de seu público. Prospero não dá título à peça em que atua, mas A Tempestade é a sua peça. Macbeth não é a peça de Macbeth, nem Rei Lear a peça de Lear — não na mesma extensão.

Poderoso como é, Prospero, porém, não tem o poder de calar os demais personagens. Eis aí, como prova, Caliban, que aprendeu a linguagem articulada para ofender os que o ensinaram. E eis aí Miranda: o arrebatamento da menina não sai invalidado pela reticência do pai. Por um momento, ao menos, o leitor ou espectador deseja ver o mundo como ela vê — deseja acreditar, sem ironia, que a humanidade merece admiração.

II

A Tempestade poderia ser, como tantas peças teatrais do período, uma história de vingança. É para levar adiante um plano de vingança que Prospero faz com que Alonso, Antonio e companhia naufraguem em sua ilha. Por que, então, ele os perdoa? A crueldade com que ele trata Caliban e, às vezes, Ariel — ou até a própria filha, Miranda —, não revelam um homem compassivo. Ele não se comove com a desventura de Alonso e seus homens, náufragos perdidos em uma ilha povoada por ilusões e encantamentos — mas se comove com o fato de que Ariel, criatura não-humana, seja capaz de se comover com o sofrimento humano. Será talvez uma monstruosidade própria do espírito demiúrgico de certos artistas: a representação do sentimento os afeta mais do que o próprio sentimento.

Harold Bloom diz que Caliban é um exemplo do que Freud chamou de “estranho” (unheimlich): a emergência de um traço familiar no que deveria ser completamente desconhecido. O monstro não é humano, mas reconhecemos humanidade nele, e por isso ele nos perturba. Correto. Mas Prospero também é, de forma mais radical, uma encarnação da estranheza freudiana. Sim, ele é um homem, como nós: a fragilidade que ele deixa transpirar depois de abdicar de seus poderes mágicos nos enternece. Mas algo nele permanece além da — passe a palavra meio “clínica”, meio moralista — normalidade. A. D. Nuttall especula sobre um fundo de incesto nas preocupações de Prospero com a virgindade da filha. E vale lembrar que Freud construiu o conceito de “estranheza” a partir de O Homem da Areia, conto de E. T. A. Hoffman que evoca os terrores noturnos do sono e do sonho. Prospero é, a seu modo, um homem da areia. A certa altura da peça, ele faz Alonso e seus cortesãos dormirem. De forma ainda mais perturbadora, no primeiro ato, ele se vale da magia para fazer a filha adormecer.

III

That has such people in’t: exalta-se aqui a humanidade, tal como é, falha, mesquinha, egoísta, e não a humanidade redimida dos utopistas. Mas a ilha é, por excelência, o espaço imaginário da utopia. Eis aí Gonzalo, cortesão do rei Alonso, convertido em socialista utópico avant la lettre logo que chega à ilha. É um dos diálogos mais saborosos de A Tempestade: Gonzalo descreve seu estado (commonwealth) ideal em termos que parecem inspirados pelo retrato idealizado que Montaigne fez dos antropófagos brasileiros, e, a cada passo, sua ingenuidade é ironizada por Antonio e Sebastian.

Gonzalo é um homem bom — aliás, é o homem bom de A Tempestade. Foi ele quem arranjou para que Prospero e a filha tivessem provisões no barco em que foram abandonados em alto-mar (mais importante para a trama, Gonzalo garantiu que Prospero conservasse, no exílio, seus livros de magia). Por contraste, Antonio e Sebastian são rematados canalhas. O primeiro traiu Prospero, seu irmão; o segundo planeja, com ajuda de Antonio, matar o seu próprio irmão, Alonso, para reinar em Nápoles. A rejeição debochada de qualquer ambição utópica como tola e irreal será própria de cínicos como Antonio e Sebastian. E, no entanto, é característico da arte de Shakespeare que os vilões tenham um entendimento profundo da natureza humana. Com agudeza, os dois conspiradores desvendam as contradições da fala de Gonzalo, que se nomeia rei de um Estado ideal no qual todos seriam iguais e portanto dispensariam um soberano.

Shakespeare demonstra, na mesma cena, uma compreensão presciente da psicologia do utopista. Alonso, naquele passo, está desolado, inconsolável, pois imagina que seu filho, Ferdinand, tenha morrido afogado no naufrágio. A certa altura, ele pede que Gonzalo pare de tagarelar sobre sua sociedade ideal, pois aquilo nada significa para ele. No entanto, Gonzalo, o compassivo Gonzalo, segue falando. O utopista só se mostra generoso como o distante homem do futuro; não tem tempo para consolar a dor de quem está próximo e presente. Porque é um homem bom, Gonzalo não dará o passo seguinte exigido pela utopia: não causará dor no presente para construir o mundo do futuro.

IV

Ferdinand, de seu lado da ilha, também imagina que o pai morreu. A bela mas enganadora canção de Ariel consolida seu equívoco:

Full fathom five thy father lies;
Of his bones are coral made;
Those are pearls that were his eyes:
Nothing of him that doth fade
But doth suffer a sea-change
Into something rich and strange.
Sea-nymphs hourly ring his knell
Hark! now I hear them, ding-dong, bell.

Na tradução de Augusto de Campos:

Teu pai repousa em paz a trinta pés:
De seus ossos coral se fez:
Aquelas pérolas que vês
Foram seus olhos uma vez;
Nada que é dele se perdeu,
Metamorfose o reverteu
Em algo estranho e nobre.
Sereias tangem o seu dobre:
Dlin-dlão.
Silêncio! O sino agora,
Dlin-dlão, ora.

Hannah Arendt usou a canção como epígrafe em uma das seções de seu ensaio sobre Walter Benjamin: as metamorfoses marinhas seriam uma ilustração da alegoria barroca que Benjamin estudou em A origem do drama trágico alemão. Pelos milagres da alegoria, “cada personagem, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra coisa”, em um indeterminismo radical que, ao fim, apontava para o alto, para a sacralização do profano. A caveira, alegoria por excelência, pode-se converter no rosto de um anjo, segundo um verso de Lohenstein, um dos obscuros autores alemães seiscentistas examinados por Benjamin.

(Lembrei da citação quando visitei o Hospital de La Caridad, em Sevilha. Em uma de suas paredes, aparece o esqueleto com a foice na mão e um caixão sob o braço, em um aposento no qual estão empilhados emblemas das vãs ambições terrenas: globo terrestre, coroas, espada, livros. É o painel In Ictu Oculi, de Valdés Leal. Olhei demoradamente no fundo das órbitas vazias daquela caveira, e não consegui – provavelmente por uma falha de minha imaginação teológica – imaginá-la convertida em anjo.)

Princípio similar de transformação maravilhosa aparece em um autor barroco mais conhecido (ou, pelo menos, mais conhecido para o falante de português):

“… porque é talvez a virtude dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam, gemendo como pomba, que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em Anjos.”

É o jesuíta Antonio Vieira, em 1633, pregando para escravos em um engenho baiano. Em chave mística, tem-se aqui, mais uma vez, o programa do sofrimento presente que será transfigurado no paraíso futuro — mas não, desta vez, um paraíso terreno: para os pretos, sugere Vieira, o trabalho escravo seria a chave de entrada para o reino de Deus.

Ariel é leve e ligeiro: não será capturado pelos pesados esquemas messiânicos e dialéticos de jesuítas ou marxistas. As caveiras submarinas convertem-se em coral, não em anjos. E o fim, ao gosto do mago que é o mestre de Ariel, não será a redenção, mas a estranheza. Something rich and strange.

V

A restauração será uma modalidade de transformação? Northrop Frye pondera que não existe, ao final da peça, qualquer alteração social. O mordomo Stephano e o bobo Trinculo, que com auxílio de Caliban planejavam matar Prospero e assim tomar a ilha, são punidos, enquanto Antonio e Sebastian, que também participaram de conspirações regicidas, conservam-se em posição de ridicularizar os dois subalternos. Prospero, por mais que pareça estar acima das ambições terrenas, deixa muito claro que seu perdão está condicionado à restituição de seu ducado. Tudo volta a ser como antes, salvo, talvez, para Caliban: não está claro se a ilha, que era dele antes da chegada de Prospero, lhe será restituída. (O monstro decerto seria um sucesso em Milão, exposto à curiosidade pública como o índio que Montaigne certa vez entrevistou.)

A despeito desse figurino conservador, Shakespeare guarda algo para quem gosta de afirmações de igualdade. O contramestre (boatswain) do navio que conduz Alonso e os seus faz parte daquele elenco de personagens “populares” que, nas peças do bardo, sequer ganham nome próprio (o porteiro em Macbeth, o coveiro em Hamlet). No entanto, ele é capaz de afirmar seu valor com a mais altiva — e, na perspectiva dos nobres, desaforada — dignidade. No meio da feroz tempestade que dá título à peça, Gonzalo adverte ao contramestre que não se esqueça de quem está a bordo do navio (ou seja, o rei). O contramestre responde, rápido: “Ninguém que eu ame mais do que a mim mesmo.”

(A fatuidade da advertência de Gonzalo reside no fato de estarem todos, muito literalmente, no mesmo barco. No seu modo figurado, a expressão tornou-se um clichê da conciliação social — e como tal inspira justificado ceticismo. Recorde-se o exemplo célebre do Titanic: pobres e ricos estavam, sim, no mesmo barco, mas os botes salva-vidas serviram, antes de tudo, aos ricos. Não haveria botes no navio do rei e do contramestre. Não fosse a tempestade um encantamento, uma ilusão do mago Prospero, teriam todos, nobres e plebeus, virado coral nas profundezas do mar. O que seria uma estranha forma de justiça social.)

VI

I’ll drown my book” (“afogarei meu livro”), diz Prospero ao renunciar à magia. É um verso estranho, ou pelo menos assim soa ao meu ouvido pouco educado no inglês do período. Caliban, quando conspirava com Trinculo e Stephano para tomar a ilha do velho duque, ameaçava queimar o livro de feitiços e conjuros. Prospero, porém, prefere lançá-lo ao fundo do mar, onde talvez o livro passe pelas metamorfoses submarinas de que fala a bela canção de Ariel. O velho sábio renunciava à magia (como Shakespeare ao teatro?), mas não o faria com um auto-de-fé obscurantista. Se é verdade que Shakespeare colaborou na redação de uma peça chamada Cardenio, hoje perdida, e que portanto teria lido Dom Quixote, podemos presumir que o bardo conhecia o capítulo em que o cura e o barbeiro fazem um grande expurgo na biblioteca do Cavaleiro da Triste Figura.

O testamento de Shakespeare não menciona livros. Fala de vários itens miúdos e famosamente deixa para a viúva (aquela que deu a Joyce a oportunidade de um trocadilho inspirado: “if others have their will Ann hath a way”) a segunda melhor cama de New Place, a casa da família em Stratford. Os chamados “anti-stratfordianos”, defensores das mais malucas teses alternativas para a autoria das peças assinadas por Shakespeare, fazem a festa com esse fato. Então o autor de Hamlet não teria livros em casa? Ora, claro, pois não era de fato um escritor, e sim um mero ator ignorante! Tolice especulativa: Park Honan, autor de uma detalhadíssima biografia de Shakespeare, observa que o testamento, por si só, não quer dizer muito. A biblioteca poderia estar em um inventário em separado. E outros poetas e intelectuais da época deixaram testamentos em que livros não foram discriminados.

(Eu, no entanto, gosto de imaginar que, de fato, Shakespeare morreu em uma casa desprovida de livros. Já estava além dos livros, já podia dispensar toda literatura. Nós, que não somos Shakespeare, temos de acumular volumes e volumes nas prateleiras. E quando chegar a hora, com muita sorte teremos — terei — um exemplar de A Tempestade na cabeceira.)

#16RenascimentoCulturaSociedade

Confiança e cultura

por Eduardo Augusto Pohlmann

Feltros, de Felipe Cohen (2010)

No início da sua magistral série Civilisation, Kenneth Clark elenca algumas condições que ele reputa indispensáveis para a civilização: “confiança na sociedade na qual se vive, crença na sua filosofia, crença nas suas leis, e confiança nas suas próprias faculdades mentais. Vigor, energia, vitalidade: todas as civilizações tiveram um peso de energia por trás delas.”

Sim, é possível haver culturas e épocas que nasçam e se desenvolvam no medo, no desespero, no tédio, até mesmo no que George Steiner chamou de “o grande ennui” que dominou a Europa do século XIX. Mas, para haver civilização, é necessário haver permanência, e para haver permanência, é necessário confiança.

Qual o estágio atual da confiança que depositamos nos valores, obras e símbolos da civilização ocidental? Gostaria de utilizar um exemplo pessoal para instigar o leitor. Quando, na Inglaterra, participei de um evento chamado The Academy, promovido pelo think tank londrino Institute of Ideas, o evento compreendia uma série de palestras e debates sobre clássicos, história e literatura, e seu objetivo declarado era “lembrar-nos de como deveria ser a universidade: um lugar em que o conhecimento é buscado como um fim em si mesmo, e não apenas como um degrau na escada da mobilidade social”. As nossas companhias, durante os três dias de debates sobre artes liberais e humanidades, seriam livros de grandes autores que pensaram sobre grandes temas e pessoas interessadas no assunto – uma rara defesa do prazer da conversação sobre temas perenes. Para participar como bolsista, era necessário responder a uma pergunta: “deveríamos celebrar a morte da alta cultura ocidental?”

Meu espanto começou quando as respostas foram lidas, e continuou nas interlocuções com os demais colegas. Sendo um evento dedicado aos apreciadores da alta cultura, esperava encontrar ali, perdoem-me a analogia forçada, uma espécie de Corte de Urbino, um local em que os valores que informam o cânone ocidental não estariam em questão. Mas o que mais ouvi foi a mesma litania monocórdica que pervade as humanidades: a dúvida quanto aos próprios valores, a crítica do cânone (acusado de contemplar apenas o dead white European male), a erosão da autoridade, aqui e ali defensores das teses mais radicais do multiculturalismo – como a de que toda cultura possui idêntico valor.

Há vários fatores para esse fenômeno, mas eu gostaria de enfatizar um: a relação entre as críticas à cultura ocidental e a sensação de culpa pelos crimes do imperialismo europeu. Atualmente, a admiração pelas grandes obras e homens da cultura ocidental soa aos ouvidos mais sensíveis como uma vergonhosa defesa e legitimação da sua imposição à força sobre outras culturas. Ou, ainda, que ao defendê-la necessariamente o mérito das outras seria totalmente negado. Assim se parte para o movimento inverso: para expiar a culpa pelo passado, se valoriza a cultura estrangeira em detrimento da própria – quando esta não é desprezada por sua infame ligação com o colonialismo, a exploração, a escravidão etc.

Ora, não deveria ser necessário dizer o óbvio: considerar uma cultura superior (e foge ao objetivo do artigo examinar seus traços distintivos) não implica desprezar as outras ou defender que aquela deve ser imposta à força. Se podemos celebrar nosso cosmopolitismo e abertura às contribuições das culturas mais remotas, isso não precisa vir acompanhado do desprezo ao nosso rico e complexo legado cultural. A apreciação estética não condescendente ou paternalista daquelas obras (para citar apenas um exemplo, tome-se a belíssima arquitetura islâmica) que se situam fora do que se convencionou chamar de civilização ocidental pode tranquilamente andar ao lado da confiança nos valores e atitudes que tornaram possíveis as obras da nossa tradição. E convenhamos: quando se tem nomes e obras como as que nós temos, não deveria ser difícil readquirir tal confiança.