#32TravessiaCulturaSociedade

In Progress

por Bruno Cosentino

O termo em inglês work in progress serve, na arte, para se referir à publicação gradual do processo criativo de uma obra. Ou seja, antes que ela tenha sido terminada. Mas quando uma obra está, afinal, terminada? Essa já é uma outra questão. É comum ouvirmos depoimentos de artistas que dizem não saber quando, e que optam por abandoná-la, mesmo julgando-a inacabada. De todo modo, em algum momento, seja ele cercado de ansiedade ou de autoconfiança, o artista põe termo à sua criação, ao que se segue a publicação. Tornar a obra pública é tirá-la do estado de virtualidade em que existia até então e fazer dela coisa entre as coisas no mundo e entre a gente.

A obra de arte existe em dois âmbitos: o do criador e o do público. O artista cria o objeto e, uma vez publicado, sai de cena; a obra passa a ganhar novos sentidos aos olhos do público. Ela não perde o lastro, mas alça voo. Assim, a publicação é um divisor de águas, posto em xeque, no entanto, com a internet, que, pelo fato de permitir publicações real time, conforma um tipo de produção artística e de fruição apressada e sempre ansiosa por novos posts.

Penso na indústria fonográfica. É surpreendente notar que, na época em que se prensavam discos, cantores e compositores, conforme o contrato com as gravadoras, lançavam um novo álbum a cada dois ou três anos. Hoje, quando os artistas detêm os meios de produção — e, é de se supor, poderiam obedecer a um chamado interno de criação, de escala não industrial —, há, contudo, uma profusão de lançamentos, determinada não mais pelas gravadoras, mas por um estado psicossocial difuso ávido por novidades.

Sendo assim, o in progress ganha relevância. Uma canção, por exemplo, até ser gravada em um álbum, pode passar por diversas publicações: o momento da composição (normalmente postado em versão crua, de voz e instrumento), os ensaios para a criação de arranjos com a banda, as gravações, a sessão de fotos para divulgação, a arte gráfica da capa, a gravação do clipe etc. — as várias etapas do processo de feitura da obra podem ser acompanhadas no stories do Instagram ou no feed do Facebook. Acontece de uma canção ou álbum, quando lançados, já não apresentarem novidade aos ouvidos dos fãs. O lançamento, como era antes, perdeu a importância.

Como fazer dessa urgência — que parece ser tão avessa ao tempo subjetivo do labor artístico — um elemento refletido da criação? Essa parece ser a principal pergunta a ser respondida pelo artista hoje. Uma adesão sem crítica incorre no risco de tornar a arte indistinta de todo e qualquer post, que se esgota em segundos e se embaralha na torrente de imagens e mensagens do celular. A arte, ao contrário — e esta é uma de suas principais características —, deve pretender durar no tempo. Criar tradição. Um cânone em construção, aberto aos conflitos: estéticos, econômicos, sociais. Essa é, pois, já outra questão.

Nosso dia passa mergulhado em uma vertigem de estímulos sensoriais. Nossos aparelhos receptivos ultrassaturados não conseguem dar mais conta. Então, como ser um artista hoje se o tempo da criação parece ser roubado por mil ruídos de notificação? Novas formas surgem. Há quem não lance mais álbuns, e sim canções avulsas. Há quem grave clipes ou quem só faça shows (que é, afinal, a principal fonte de renda para os artistas, já que os sites de streaming não lhes pagam mais que centavos por click). Há aqueles que simplesmente abandonaram a vocação, uma vez que não conseguiram ganhar dinheiro com ela. Dessa última, porém, desconfio, porque a verdade é que não se faz arte para ganhar dinheiro.

A falta de concentração e a ansiedade provocadas pelos meios de fruição não se consubstanciam em unidades concretas da experiência subjetiva das pessoas. E o fim da arte — fim, claro, não utilitário — é esse. Algo deve restar no corpo. Ou: será possível adquirirmos experiência quando ela própria é dilacerada no espaço e no tempo? Difícil questão. Mas é com ela que estão à volta os artistas mais engajados politicamente com sua arte. Para alguns, a postura consequente é não coadunar-se com as injunções de seu tempo. Mas: mover-se fora de seu tempo é uma resposta contundente à situação?

As questões por que se dilaceram os artistas com a ausência do público é também parte do processo. Para quem o artista cria? Com a segmentação do mercado, a dissolução dos discursos totalizantes dos meios de comunicação de massa, o consumo da produção artística fica, muitas vezes, restrito aos pares.

O mais comum é que o público das peças de teatro seja composto por atores, atrizes, diretores; os shows de música, por cantores, compositores e instrumentistas; as vernissages, por artistas plásticos; as pré-estreias de filmes, pela gente do cinema. O contágio do público foi minado pelo mercado de nicho, ainda mais afunilado pelo efeito algorítmico das redes sociais. O artista, se quiser fazer parte do mercado como se configura hoje, deve se encaixar na prateleira esperada ou corre o risco de sair de linha. Nada mais limitador para o verdadeiro espírito criativo, sempre insurrecto.

Atrofiado o público, resta aos artistas trabalharem conforme a verdade de sua arte. O processo tende a ser solitário e existencial. A arte muda o artista desde dentro. São indiscerníveis, uma e outra. Dá-se a ver essa transformação nos stories? Não. O artista, no entanto, carece de reconhecimento, de espelhos: os olhos do público. Não é por dinheiro que o grande público interessa ao artista, mas pelo reconhecimento impessoal do seu sentimento ali cristalizado e passado adiante. Aliás, é nesse ponto que o interesse econômico poderia coincidir com a ambição artística: o grande público, ou, em termos de mercado, o público consumidor. Mas a economia de escopo tudo fragmentou, e os reflexos que chegam ao artista são rarefeitos. A vida que salta assim, em canções, pinturas, filmes, é, portanto, solitária, marcada pela grande ausência, mas em círculos menores, fortalecidos de afeto, e mais íntimos, por que não?

Bruno Cosentino é cantor e compositor. Lança no segundo semestre de 2019 seu quarto disco: Bad Bahia

Originalmente publicado na edição Travessia

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#32TravessiaArteArtes Visuais

Procuro Errantes

por Deco Adji

Aos interessados, proponho uma caminhada por Paris, a ser realizada em qualquer outra cidade. A proposta de deriva possui algumas instruções e pode ser realizada em um ou mais dias, preferencialmente de forma solitária.

il n’y a pas de pas perdus

Texto originalmente publicado na edição Travessia

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#31O EstrangeiroCulturaSociedade

Eu vim construir meu barco

por Tamara Klink

Conheci o mar antes de saber o que ele era. Meu pai nos colocava para dormir contando histórias de ondas gigantes, frio polar, tempestades e bichos que nunca tinham visto gente. Sozinha, eu vencia as ondas, uma a uma. Tocava sua espuma branca, sentia frio, o vento construía o oceano no meu lençol.

Eram todas histórias reais. A profissão de navegador levava meu pai para muito longe ou muito perto por longos períodos. Minha mãe nos ensinou a ter orgulho da distância entre nós. “Meu pai não me trouxe para a escola porque está dando uma volta ao mundo”. E o mundo devia ser maior que todos os quarteirões que eu conhecia. Depois de oito meses, ele chegava do trabalho com histórias novas para alimentar nossas horas noturnas sem querer dormir.

Todo projeto dele envolvia nós todos. Brincava de esconde-esconde com minhas irmãs entre a calandra, as costelas, as chapas de alumínio no galpão onde meu pai construía um novo barco. Mudamos de casa para ficar perto do estaleiro. Vendemos nossa casa para comprar um mastro quando o barco foi para a água. A gente sempre soube que os projetos da nossa família valiam mais do que as coisas que a gente poderia querer ter. E estávamos certos de que podíamos acreditar uns nos outros.

Eu tinha oito anos quando minha mãe convenceu meu pai de que já éramos grandes o bastante para navegar com ele. Atravessamos o estreito de Drake comemorando os seis anos da Marininha, e chegamos à Antártica para nunca mais voltar iguais. Aprendi a manter um diário e entendi que minha história, mesmo curta, é poderosa. Conheci os cumes e vales das grandes ondas, as bochechas queimaram no frio, a tempestade estourou as amarras do nosso barco, e vi de perto as baleias jubarte e seus filhotes.

Secretamente, comecei a planejar uma expedição. Em um caderno, e com letra cursiva, listei os objetivos, tracei a rota, desenhei as possibilidades e ensaiei a apresentação. Pronta, num café da manhã, antes de ir para a escola, esperei meu pai acabar de ler o jornal e perguntei:

“Você me empresta o barco para eu ir para a Antártica sozinha?”

Não levou mais de dez segundos para ele responder que não. “Se você quiser viajar sozinha, terá que construir seu próprio barco”.

Anos depois, esse projeto me levaria para longe dele. Faz seis meses que vim para a França estudar arquitetura naval. Ser estrangeiro significa plantar sementes numa terra onde não se tem raiz. Em outro lado do mundo, a vida afronta nossos costumes e manias e denuncia o que é essencial. Troquei café por chá, descobri novos pratos preferidos, memorizei gírias locais, incluí um sotaque no meu nome, morri muitas vezes de saudade e conheci pessoas maravilhosas que perguntam por que eu estou aqui.

“Eu vim para construir meu barco.”

E sei que onda nenhuma fará o medo grande demais e frio nenhum vai me impedir de prosseguir porque eu ensaio cada passo inteira, e costuro, atenta, todos os pontos do meu caminho. As tempestades são previstas na viagem, e a dor da saudade servirá de treinamento. Dessa vez, sou eu que estou longe de casa, colecionando minhas próprias histórias para contar aos que ainda vão descobrir a força que tem amar o mar.


Texto originalmente publicado na edição O Estrangeiro

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#31O EstrangeiroAmarello Visita

Amarello Visita: Heidi Lender

por Tomás Biagi Carvalho

Amarello Visita vai até o Uruguai para conversar com a fundadora da comunidade criativa CAMPO

Heidi Lender nasceu em New Haven, Connecticut, EUA. Depois de trabalhar em grandes revistas americanas, mudou-se para a Índia, onde estudou ioga por 8 anos e, quando voltou para os EUA, abriu seu próprio estúdio em São Francisco. Nessa época, descobriu a fotografia e que, através dela, poderia dar um sentido maior para seu trabalho e para o mundo. Hoje, ela mora no povoado de Garzón, no Uruguai, onde toma conta de uma fazenda de 80 acres e fundou a comunidade criativa CAMPO.

Heidi, nos conte um pouco sobre como você veio parar em Garzón, no Uruguai.

Às vezes, é o lugar que escolhe você. Nesse caso, eu acidentalmente vim parar no pueblo durante uma viagem de dois meses pela América Latina, enquanto dava um intervalo da Índia. Foi em 2009, na semana de Natal em Punta del Este, e não havia um único quarto de hotel disponível pela internet. O único era o hotel do Francis Mallmann, em Garzón. Eu não fazia ideia de quem ele era. Assim que entrei por aquelas portas fiquei apaixonada por esse lugarzinho charmoso no meio do nada. Na véspera de ano-novo ele convidou seis hóspedes do hotel para comer um assado nas sierras, e foi uma noite mágica sob as estrelas com um grupo de ecléticos convidados internacionais (que agora são meus vizinhos). Eu comprei meu terreno no dia seguinte. E, depois de um péssimo término de namoro que me fez acordar para a vida, mudei para cá de vez há cinco anos.

Você vem criando uma comunidade artística em Garzón. De onde surgiu essa ideia e como surgiu o interesse pelo assunto?

No mesmo ano em que descobri Garzón, mergulhei na fotografia. Eu tinha uma carreira como autora e editora de revista e era dona de um estúdio de ioga em São Francisco. Mas, ao criar imagens e fotos, eu me encontrei. O ato de me apossar de minha criatividade e meu eu-criativo nasceu do meu tempo sozinha no Uruguai. No espaço, tempo e beleza que me cerca aqui eu tive a chance de mergulhar no meu interior e descobrir do que eu sou feita. Eu me senti apoiada por meu terreno, de verdade. De certa forma, nunca havia me sentido apoiada antes. O CAMPO nasceu no ano-novo, há três anos, perto do meu aniversário de cinquenta anos. Senti que era hora de compartilhar as coisas que me inspiram com pessoas criativas no mundo todo. E oferecer a elas a mesma oportunidade incrível que eu vivenciei.

E como foi o surgimento do CAMPO Artfest, que atrai artistas do mundo todo para Garzón?

Antes de eu ter um centavo, ou nosso status uruguaio de fundação, eu estava pensando em uma forma de unir nossa comunidade, de compartilhar o que eu acreditava que o CAMPO poderia e iria ser com um público maior e começar a criar um jantar beneficente anual ou outro evento que pudesse crescer e tomar as proporções de uma fiesta imperdível ao longo dos anos. O CAMPO Artfest 2018 foi lançado com aproximadamente quarenta artistas e 2 mil visitantes em um festival expresso de quatro horas, e, honestamente, nos deixou maravilhados. A segunda edição do festival, que ocorreu este ano, teve dois dias de duração e contou com mais de cinquenta artistas internacionais. E foi possível testemunhar as possibilidades do CAMPO – e o que acontece quando você junta uma comunidade criativa internacional. Existe uma quantidade grande de estrangeiros que encontrou uma casa em território uruguaio para recriar suas identidades.

Qual você acha que é o impacto do país na produção dessas pessoas?

A paisagem, os espaços abertos, as pessoas calorosas e receptivas, a simplicidade da vida, sua autenticidade.

Tendo vivido em tantos lugares, você se sente uma estrangeira no mundo?

Ótima pergunta. E sim, eu me sinto uma estrangeira no planeta. Eu cresci como a “esquisita” da família, então sempre me senti confortável, de certa forma, em não pertencer, em ser diferente e, por vezes, ser invisível. O que nem sempre foi uma coisa boa, mas permitiu que eu me sentisse confortável em espaços novos, culturas diferentes e na curiosidade e descoberta do mundo ao meu redor. Eu sou atraída pela possibilidade – ou pela pretensão – do anonimato que é possível sentir ao viver em um país estrangeiro. Mas quanto mais tempo estou morando aqui (esse é o tempo mais longo no qual morei em um mesmo lugar), menos anônima sou, e estou começando a ficar confortável com isso. Construir o CAMPO está tendo esse efeito

No programa de residência artística do CAMPO, além de receber artistas do mundo todo, você recebe também chefs e amantes da culinária. Como você acredita que essas duas artes se conectam?

Seja chef, artista, escritor ou músico, todos eles tocam em algo profundo de nossos sentidos, que oferece uma nova perspectiva, seja um gosto novo, uma nova combinação de sabores, seja uma nova maneira de ver a paisagem e o mundo. O trabalho deles desperta reações viscerais: uma boa pintura e uma boa refeição são ambas mais que isso; são experiências, e essas experiências oferecem uma forma de conexão – seja com algo dentro de nós, seja nos aproximando dos outros, em uma experiência compartilhada.


Como estrangeira, de que maneira você acha que a sua presença em Garzón tem afetado a cidade e a comunidade?

Eu espero que positivamente. Com o CAMPO, estamos injetando uma energia cultural dentro do pueblo, expandindo os horizontes das pessoas no que tange à criatividade e a autoexpressão, compartilhando arte e música de pessoas criativas de todo o mundo com nossos vizinhos. Espero que eles também sejam tocados e inspirados pelo que estamos criando e pelas pessoas que trazemos para a cidade. O CAMPO Artfest dá vida ao vilarejo, tanto para os turistas como para os locais, e no nosso programa de residência encorajamos todos os residentes fortemente a realizarem uma programação junto à comunidade – um ateliê aberto, um workshop rural em uma das escolas, uma palestra ou projeto especial.

Você acredita, de fato, que estamos caminhando para viver numa época em que nosso tempo poderá ser trocado por experiências? Por quê?

Eu acredito que nesse mundo turbulento e bagunçado de hoje há uma grande necessidade de conexão – a si mesmo e aos outros. Então, se essa reconexão for realizada por meio da experiência – como passar um tempo em um lugar como o CAMPO –, e eu acredito que seja, então sim, eu espero que seja para essa direção que estamos caminhando. Nosso objetivo com o CAMPO é conscientizar por meio da expressão criativa. Acordar as pessoas. E esse “acordar” vai reverberar. Precisamos de mais pessoas acordadas no mundo!

Em qual momento da vida você sentiu que rompeu com o que estava vivendo? Como foi?

Minha vida parece ser uma grande ruptura! Estou constantemente me enfiando em novas experiências que me forçam a confrontar os meus medos, ampliar minhas fronteiras e limites – no mundo concreto e também na minha própria percepção. Então, seja me mudando para Paris aos 23 anos e batendo de porta em porta para achar um emprego, ou estudando ioga na Índia, ou me casando e depois me divorciando, sentindo amor e tendo meu coração partido, desistindo da maternidade, me mudando para o Uruguai ou cometendo um monte de erros, tem sido uma quebra atrás da outra, do jeito que eu gosto.

Quem você citaria como suas maiores fontes de inspiração? Por que e de que maneira te influenciou?

Encontrar meu próprio norte, acreditar e ver/aceitar a mim mesma tem sido uma jornada. E eu tive muitos professores pelo caminho, que foram muito inspiradores… Meus pais, claro, em primeiro lugar; minha primeira mentora na W Magazine, a Katherine Betts, que confiou em mim e me inseriu extremamente jovem no mundo da reportagem de moda sem experiência alguma; meu professor de ioga Pattabhi Jois, que me ensinou sobre dedicação, entrega e compromisso e que, se você direcionar sua mente com intenção, você realmente pode realizar qualquer coisa – ele disse: “Pratique, pratique, tudo está vindo”, e é verdade, seja escrevendo, fotografando, sendo uma pessoa bondosa e aberta ou construindo o CAMPO.

O que gostaria de fazer que ainda não fez?

Terminar minha autobiografia, viajar para a Mongólia e para o Butão e um milhão de outros lugares, encontrar um pouco de equilíbrio.

Olhando para trás, hoje você se vê no lugar que imaginava chegar há dez anos?

Sem chance. Talvez, quinze anos atrás, eu pensasse que estaria vivendo na Provença, no Sul da França, uma mãe e escritora. A língua espanhola não estava no meu radar, muito menos o Uruguai. A vida é cheia das melhores surpresas.


Texto originalmente publicado na edição O Estrangeiro

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#31O EstrangeiroCulturaSociedade

Estrangeiro de nós mesmos

por Jorge Caldeira

Nelson Rodrigues certa feita criou um peculiar conceito de Brasil. Narrando uma viagem de carro para São Paulo, foi definitivo como sempre: “Entrando na Dutra por Nova Iguaçu, comecei a sentir uma saudade profunda do Brasil”.

E assim é para muita gente. Tudo o que conhecem do país, tudo o que precisam para representar mentalmente a pátria, todo o espaço de sua vida social e afetiva, encerra-se geralmente num espaço físico muito limitado.

Hoje em dia, não é incomum que a “Nova Iguaçu” interior de parte dessas pessoas nem mesmo atinja as fronteiras de um único município. A zona dos shopping centers e restaurantes muitas vezes é tudo que se constitui “Brasil” para uma parte ponderável da população das grandes cidades. Nesse caso, os bairros da periferia juntam-se ao gigantesco sertão para constituir um inóspito assustador que povoa as mentes das mais extraordinárias fantasias de perigo, selvageria e abandono.

Quem vive essa realidade subjetiva geralmente considera-se estrangeiro na imensidão do território nacional que contrasta com sua ideia fechada de pátria. Apenas o território que se pode atingir seguramente a partir do aeroporto e do carro alugado que leva a uma praia convenientemente deserta às vezes ajuda a compor uma noção positiva do restante do território. Uma ou outra visita a uma fazenda ou sítio completa essa noção.

O aeroporto também é a porta quase única para outra experiência mental. Ele leva magicamente a outra vivência de pátria, aquela do “primeiro mundo”, no qual existe uma certa coincidência entre o território nacional e uma noção de pertencimento comum a uma unidade nacional.

Tal experiência gera dois efeitos. Em primeiro lugar, uma identidade entre o viajante e as pessoas desse tal “primeiro mundo”. Quem gasta dinheiro aí aprende a pensar em si mesmo como parte desse mundo mágico, a se achar o sal da terra, o representante da civilização num ambiente bárbaro. Com isso, reforça as fronteiras imaginárias de seu limitado “Brasil” — acrescentando um dado missionário à sua vida.

O segundo efeito vem daí. Dissociado do brasileiro comum e associado mentalmente ao mundo externo, passa a pensar-se como o colonizador que vai um dia trazer a transformação da pátria toda em primeiro mundo, vai impor o padrão ao sertão pobre, perigoso e pecaminoso.

E esse modo de pensar não se restringe a uma elite. Também a esquerda arcaica reproduz a separação entre brasileiros e estrangeiros – ipsis litteris e às avessas.

Não há quem deixe de ter aprendido na escola a lição: o sentido da colonização foi explorar, e isso se fez através dos latifúndios. Assim se criou uma sociedade de senhores ricos e devassos, exploradores e maltratadores dos escravos. Toda a riqueza ia para fora, deixando uma sociedade de miseráveis que viviam nos sertões na base de uma economia de subsistência.

Quem recita essa cartilha também separa o Brasil em partes que não se tocam. Também cria para si uma missão civilizatória de redentor dos sertões – apenas trocando o sinal entre as partes. Pobres, sertanejos e toda a periferia ganham a aura de reduto do bem. A turma do aeroporto é identificada como o suprassumo da exploração, do mal a ser extinto para se formar finalmente a Nação igualitária. Tudo isso fruto da ação comandada pela elite que se identifica com os pobres, não é preciso insistir.

Apenas recentemente, com o emprego da informática, foi possível mostrar que as bases que sustentaram a visão do Brasil dual não fazem qualquer sentido empírico – este é o tema de meu livro História da Riqueza no Brasil.

A noção corrente que sustentava as duas visões do Brasil fendido vem a ser aquela de economia de subsistência – fraternalmente dividida por historiadores conservadores e marxistas. Em palavras muito simples, essa noção é pouco mais que uma tautologia pela qual se definia que todas as populações nativas mais todos os sertanejos eram incapazes de produzir mais que o estrito mínimo para a subsistência. Em outras palavras, que eram incapazes de produzir riqueza.

Com isso, conservadores e marxistas faziam uma história na qual toda a riqueza – e toda a vida social relevante – ficava concentrada no espaço da exportação. Não é preciso muito esforço para notar que esta é a chamada base material da construção imaginária de uma nação na qual todos são estrangeiros de si mesmos.

Os estudos recentes mostram que isso é uma ficção. Quando digo ficção, penso radicalmente: a narrativa de um desfile feérico de escola de samba possivelmente tem mais a ver com a realidade histórica da economia brasileira que os livros nos quais conservadores e marxistas projetam suas fantasias da pátria fracionada.

Mas essa constatação não tem o condão de reunir magicamente o que há séculos é pensado como coisa separada. O máximo que ela permite é fazer uma descrição da economia brasileira mostrando que, desde o século XVI, o grosso da riqueza nacional é produzido no sertão (no final da era colonial, algo como seis sétimos da riqueza brasileira vinha do mercado interno, a mesma proporção de hoje). Esta é a realidade como vista com as novas descobertas da econometria e da antropologia – ambas filhas da era da informática. O que ela permite é colocar de outra forma a constatação do estrangeirismo de nós mesmos: como fomos capazes de não nos ver como unidade por tanto tempo?

A meu ver, a resposta central está numa única palavra: analfabetismo.

Para relembrar novamente Nelson Rodrigues: ele dizia que o subdesenvolvimento não era acidente, mas uma obra de séculos. Pensando assim, que tal esta obra de séculos portuguesa: por 308 anos, vigorou uma rigorosa proibição de imprimir no Brasil.

Todos os que tentaram contornar a proibição foram presos, processados. Todas as impressoras destruídas.

Para completar a obra: por 310 anos, vigorou a proibição de se instalar universidades no Brasil. Todos os pedidos, mesmo quando os interessados tinham dinheiro, foram negados.

Não era costume ibérico. Na América hispânica, havia gráficas até nas reduções jesuíticas, para imprimir bíblias em nhengatu para leitura dos guaranis. Havia também mais de duas dezenas de universidades, a primeira das quais instalada em 1541. Colônias francesas e inglesas seguiam o mesmo padrão – e até mesmo os holandeses atenuavam as condições culturais em seus domínios.

Os frutos dessa miserável política portuguesa foram amargados a partir da independência – quando apenas algo em torno de 1,5% da população era alfabetizada e circulavam os primeiros impressos. Nos Estados Unidos, eram 60% dos homens, e a circulação do livro Common Sense, de Tom Paine, chegou a 400 mil exemplares, ou perto de 10% da população total.

O relativo bom desempenho da produção de riqueza (as economias do Brasil e dos Estados Unidos eram do mesmo tamanho circa 1800) e o terror literário agora precisam ser explicados juntos. E a explicação conjunta é simples: a economia brasileira cresceu entre analfabetos.

Mas só sabemos disso hoje, quando computadores permitem reconstituir o cenário documental de terra arrasada da era colonial. Somos estrangeiros de nós mesmos porque fomos criados analfabetos de nós mesmos.

Apenas na virada do século XXI, mais precisamente em 1998, o Brasil conseguiu colocar todas as crianças na escola. Mas ainda não conseguiu colocar em letras uma história unificada da pátria. Falta muito para as fronteiras imaginárias se dissolverem.


Texto originalmente publicado na edição O Estrangeiro

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#31O EstrangeiroArteMúsica

Três ou quatro observações sobre o amante da ópera

por Leandro Oliveira

Somos todos estrangeiros na ópera. Essa sensação de deslocamento, um certo torpor de ideias que temos ao acompanhar atores que não entendemos muito bem o que cantam, tudo isso é comum. Pois, contrário ao que possa parecer, a incompreensão não é predicado dos brasileiros: quando neófitos, um alemão que ouve Wagner, um italiano que ouve Donizetti ou um francês que ouve Gounod não entendem naturalmente todas as palavras que estão sendo cantadas. E afinal, o que nos faz mais estrangeiros que a falta de domínio do que a língua nos conta?

Não falo de incomunicabilidade, no entanto. Se é um clichê que a pátria é nossa língua, é por outro lado verdade que nossa língua é uma tecnologia. Essa tecnologia – especialíssima, sofisticadíssima – foi provavelmente criada no caos dos rumores primordiais até alcançar a significação ou identificação de balbucios como “mama” ou “papá” em sujeitos afetivos e seguir assombrosa e variada milênios depois, mesmo para adultos. Mas a língua primordial segue presente: ao final, o sentido extremo e radical é emocional – ele é o que comunica uma pessoa a outra, numa via cheia de tramas, jamais retilíneas.

Neste sentido é que devemos, permanentemente, conquistar por todo tempo a nossa pátria. E um pouco, neste trabalho de Bandeirantes, nos perdemos em discursos complexos em que, num mundo hiperconectado, nos chegam trechos incompletos, frases desconexas, palavras soltas eventualmente desprovidas de sentido ou de contextos semânticos. Uma telenovela. Um alaúde. Um trem. Uma arara. Esse é um elemento curioso na comunicação verbal: as peças podem até fazer sentido, mas a resultante última do significado de suas conexões quase sempre nos escapa. A metáfora de uma baía banguela, as agruras daqueles que falam às nossas costas algo cujo centro entendemos aos poucos, difusamente, estranhamente – são modos a partir dos quais a língua nos desafia.

É sempre assim na arte. E, mais do que tudo, é assim na música, seja ela uma canção, ária, obra instrumental ou ópera. O que se coloca diante de nossos ouvidos pode até ser entendido como algo coeso e significativo – no sentido de cheio de significados –, mas não necessariamente compreenderemos o que quer dizer. O que diz nosso interlocutor, ou o que pretende expressar o compositor, o que consegue comunicar seu intérprete (o meio) e o que canta a música (a mensagem) são coisas completamente diferentes. Um cantor de ópera canta palavras mais ou menos decifráveis, mas desmascaramos seu duplo som – aquele das palavras e da melodia – como que sampleados num Synclavier:

“Isso que ouves não ouves; e isso que queres ouvir é o que tentamos dizer. Mas não entenda, afogue-se nesta trama de sentidos, mergulhe no mar das sonoridades cujas emoções dizem mais que as palavras, pois é nele que elas habitam.”

E, entendendo, seguimos menos estrangeiros, entendendo um pouco mais o que afinal está sendo dito. A ópera é também essa metáfora de cores e sol que, um dia, do seu modo próprio, nos ajuda a desnudar a linguagem em seu sentido mais radical: aquele que lhe está na raiz. Com a ópera, podemos seguir nesse esforço de vida inteira, o de dominar sem dominar a nossa própria linguagem.

Leandro Oliveira é escritor, compositor e maestro. Trabalha como professor do Falando de Música da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.

#31O EstrangeiroCrônica

Você é estrangeiro?

por Freddy Bilyk

editor convidado da edição O Estrangeiro

Aqui vai um pensamento que dificilmente sai da minha cabeça: “você é estrangeiro?” Isso sempre aparece. Foram poucas as vezes em que continuei a conversa. Pense no meu pai, então. Para os meus amigos mais próximos, ele era o “tio” com o sotaque no seu português. E testemunhei que seu inglês e francês também eram carregados. Na hora da pronúncia, a palavra diferente é a indicação de que processo de assimilação está acontecendo. Só que às vezes estanca.

Talvez não exista maior demonstração de afeto para os nativos do que o estrangeiro que se empenha em aprender um dos símbolos máximos da nova cultura, a língua nacional. Assim como o cheiro ou o calor, nunca será como o de um nativo e sempre será diferente. Em dias bons, passa a ser a forma da celebração das nossas diferenças. Mas e nos outros?

É aí que está a chave do castelo: esse é o jogo da sedução do forasteiro para que a aceitação seja rápida e a camuflagem, efetiva no novo habitat. Ele muitas vezes está descoberto. Em alguns casos, é a carta para casa que revela a dificuldade de achar tudo normal. Em outros, é a simples incompatibilidade. Se é assim, por que ficar? Como não ser atacado? A antropofagia não é osmose, mas é lenta. Demora.

Na verdade, nunca acaba.


Texto originalmente publicado na edição O Estrangeiro

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#31O EstrangeiroCrônica

Ninguém pode ser estrangeiro sozinho

por Léo Coutinho

Ninguém pode ser estrangeiro sozinho. Mesmo com esforço, alguém disposto a viajar dez mil milhas, escalar oito quilômetros ou mergulhar trinta mil pés só será estrangeiro se encontrar um semelhante no destino.

Na ausência do próximo, podemos ser exploradores, desbravadores, pioneiros, aventureiros. Nunca estrangeiros. Dada esta condição, com o perdão da redundância, o ser estrangeiro é antes um preconceito do que um conceito.

De modo geral, o homem comum vai com gosto conhecer o estrangeiro. Ele se prepara para olhar com bons olhos, ter novas experiências, entender culturas diversas. Há exceções, como a guerra e as colonizações, mas estas vamos deixar de lado tanto quanto possível.

O inverso, que é quando o estrangeiro vem nos visitar, divide mais os sentimentos. São corriqueiros os rankings dos povos mais simpáticos a receber visitas. Considerando só os sentimentos espontâneos, sem outro motivo que não o das relações pessoais, costumam encabeçar as listas comunidades já habituadas às diferenças, como as cidades grandes e as nações miscigenadas.

Um fenômeno interessante acontece com nações que enfrentaram a diáspora. Quando se encontram, e principalmente quando se organizam em colônias estrangeiras, descobrem e exercitam através de gerações uma solidariedade que não havia no lugar de origem, tratando com ainda mais zelo uns dos outros e fazendo prevalecer a cultura comum sobre qualquer diferença acessória.

Igual a tudo na vida, a dose conta pontos. Ao longo da história, cidades que prosperaram transando cultura e mercadorias com estrangeiros enfrentaram problemas quando a pluralidade deixou de ser uma característica para se transformar na própria identidade. Soluções como a de Nova York, capital do mundo, ou Paris, com o cidadão típico misturado a forasteiros, são raríssimas.

No plano doméstico não é diferente. Vizinhos dispostos à solidariedade incondicional são os mesmos capazes de cometer crime de sangue em caso de desentendimento. A hospitalidade contente tem prazo até para a visita mais querida. O vulgar costuma comparar os hóspedes aos peixes, que, depois de algum tempo fora do lugar, começam a incomodar. Nos ambientes de trabalho compartilhados, cada vez mais comuns nas últimas décadas, vemos colegas afinados, separados por poucos metros, preferindo conversar por meios inventados para encurtar grandes distâncias.

Este último exemplo talvez nos ajude a pensar na humanidade atual. A ocorrência da dor humana do lado de lá do globo nos comove com a mesma naturalidade com que nos acostumamos com a caatinga da miséria debaixo de nossos narizes. Deve ser algo do nosso instinto de sobrevivência.

A pergunta que proponho parte daqui: se a condição de estrangeiro depende de nós, somos todos estrangeiros ou ninguém é. Assim, seremos capazes de um entendimento universal?


Texto originalmente publicado na edição O Estrangeiro

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#31O EstrangeiroCrônica

O Recado de Orthon

por Vanessa Agricola

É difícil falar nisso, porque ninguém acredita em extraterrestres. Eu vou começar dizendo que estamos em um planeta, que nem é dos maiores, e que está entre mais de duzentas bilhões de galáxias. E isso é uma conta matemática, por mais esotérica que eu seja. – É física.

Vou romantizar, mas nem quando as pessoas olham as estrelas elas se dão conta? A Lua enche, esvazia, a maioria nem olha. – Fale sobre o Raul Seixas na adolescência.

Eu vou assumir que escuto vozes agora: – Escreva sobre George Adamski.
Não são ordens, mas eu atendo como se fossem. Preciso ir no supermercado? – Sim.

Fui no supermercado. Comprei arroz, feijão, suplementos para algum tempo sem luz, velas. O tanque está sempre cheio. Água.

Devo avisar minha mãe, irmão e ex-marido? – Não.

Voltei ao supermercado. Comprei mais arroz, feijão, velas, água para eles. Pode ser em 2019. Pode ser até 2026. As latas de atum vencem em 2022. – Sim. Agora fale sobre George Adamski.

OK.

“É interessante que, de todos os astrônomos profissionais, nenhum nunca disse que viu alguma coisa no céu”. Foi para o garçom George Adamski que o primeiro extraterrestre de que se sabe apareceu. Seu nome era Orthon. A data, 1946, logo depois do fim da Segunda Guerra.

“Era pouco mais de meio dia. Vimos uma gigantesca nave prateada, em forma de charuto, sem asas nem acessórios exteriores de nenhuma espécie. Veio em nossa direção, muito lentamente, como se estivesse flutuando. Depois pareceu pairar, ficando imóvel, e exclamou-se, será uma nave do espaço?”

O material em fotos e vídeos de George Adamski é uma das maiores provas que temos. Ele registrou mais de dez vezes a nave-charuto, tirou fotos, fez vídeos, todos considerados fraude, porque eram muitos e de boa qualidade. – Vocês acreditam até que a Jennifer Aniston voltou com o Brad Pitt.

Não existem fotos, nem vídeos, de Orthon. Segundo relatos dos livros, que George Adamski escreveu e que venderam que nem água, Orthon tinha dois metros de altura, era bonito, parecido com um humano, cabelos loiros e olhos azuis, “mas a testa larga”.

– Ele não era um simples garçom. Era um esotérico como você. Não é à toa que vocês veem o que veem.

Orthon convidou Adamski para dar uma volta. Eles entraram na nave pequena (que saiu da nave-charuto e pousou na Terra), e voltaram para dentro da nave-charuto, descrita como algo inacreditável nos livros. Fora a viagem que Adamski fez com Orthon pelo espaço. – Não foram tantas.

“Orthon explicou que era oriundo de Vênus, e que seus concidadãos estariam preocupados com o desenvolvimento de armas nucleares e a incapacidade dos terrestres em promover seu próprio crescimento espiritual.”

– Eu falando sobre os riscos da autodestruição, e eles só lembraram de Vênus.

O recado de Orthon foi sumariamente ignorado, após os cientistas comprovarem que não havia vida em Vênus.

– Vocês acreditam em propaganda de cosméticos.


Texto originalmente publicado na edição O Estrangeiro

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#31O EstrangeiroCulturaSociedade

A Estrangeira

por Juliana de Albuquerque

Criada em Köningsberg — terra de Immanuel Kant —, Hannah Arendt aprendeu a relacionar-se com a cultura alemã como quem aos poucos incorpora algo que jamais fora naturalmente seu. É isto que nos diz o escritor americano Daniel Maier-Katkin em Friendship and Forgiveness: uma biografia de Arendt cujo foco é a análise do seu complicado relacionamento com Martin Heidegger.

Segundo o autor, apesar do lento processo de abertura da sociedade alemã desde os tempos do Iluminismo — acarretando a emancipação tanto de judeus como de mulheres —, Arendt considerava-se alemã tal um peregrino em terra estrangeira. Sentimento que se faz presente em sua correspondência com Martin Heidegger durante a década de 1950: período em que a autora tornava-se cada vez mais popular em seu novo país, os Estados Unidos.

Eis o que escreve Arendt para seu antigo professor e amante: “Eu nunca me considerei uma mulher alemã, e há muito tempo parei de me considerar uma mulher judia. Eu me sinto exatamente como eu sou agora, afinal, a garota do exterior”.

Nessa carta, Arendt se identifica com a personagem do poema Das Mädchen aus der Fremde, escrito por Friedrich Schiller sobre o encontro com uma misteriosa aparição em ambiente rural: “Ela não nasceu por estas bandas. De onde veio, ninguém sabe e todos os seus traços rapidamente desapareceram (…)”.

Heidegger responde ao comentário de Arendt com um poema da sua própria pena: “O estrangeiro é a morada do olhar solitário de onde se inicia o mundo. (…) Estranha de terra estrangeira, possa você viver em iniciação”.

Tanto o livro de Daniel Maier-Katkin como o volume de correspondências entre Hannah Arendt e Martin Heidegger (1925-1975) foram leituras que me ajudaram a enfrentar a solidão no exterior. Deixei o Brasil em 2009 e, durante os meus dois primeiros anos em Israel, agarrei-me às biografias de Arendt — como uma náufraga ao graveto — em busca de uma explicação, qualquer que fosse a resposta, para uma pergunta que não me deixava em paz. Como é que eu poderia sentir-me isolada em meio a tanta gente que compartilhava de uma cultura?

Foi quando notei que a “estrangeirice” não é ônus exclusivo de quem deixa sua terra para recomeçar a vida em outro lugar. Ora, sentir-se estrangeiro é privilégio de todos aqueles que se permitem pensar a condição humana. Heidegger, apesar dos seus excessos, parece-me ter razão ao dizer que o estrangeiro é todo aquele que se arrisca em viver onde começa o nosso questionamento sobre o mundo.

Hoje, reflito sobre os escritores que informam os meus textos e vejo que — não somente Hannah Arendt, mas uma porção de outras personalidades que admiro — também sentiam-se, em suas próprias culturas, como peregrinos em terra estranha.

Goethe, por exemplo, apesar de todo seu sucesso, tinha a impressão de estar alienado dos principais interesses alemães da sua época. Dentre outras coisas, ele criticou os intelectuais de sua terra pela linguagem obscura e retorcida, bem como pelo desapego à empiria. Argumentos presentes tanto em correspondências com o poeta Friedrich Schiller como em conversas com o seu secretário J. P. Eckermann.

Em um dos momentos mais divertidos de suas correspondências com Schiller, Goethe pergunta ao melhor amigo se não poderiam fazer algo para ajudar a Hegel – isto muito antes da publicação da Fenomenologia do Espírito – a melhor expressar as suas próprias ideias: “Ele é realmente um sujeito maravilhoso, mas as suas elocuções são passíveis de objeção”. Ao que Schiller responde: “O que ele não tem, dificilmente será capaz de receber. (…) Essa dificuldade de expressão é uma falha nacional dos alemães”.

Assim, em introdução ao texto de Viagem à Itália, o estudioso Thomas P. Saine escreve: “O desenvolvimento pessoal por que Goethe passou e os insights que ele próprio considerava ter adquirido na Itália começaram, de uma vez por todas, a distingui-lo de outros intelectuais compatriotas. De volta à Alemanha, Goethe começou a sentir-se cada vez mais isolado. A amizade produtiva com Friedrich Schiller, de 1794 a 1805, foi um benefício para ele. Mas, provou ser apenas um episódio no processo do seu afastamento de grande parte da sociedade de Weimar e da vida intelectual alemã”.

Mais tarde, essa mesma sensação de isolamento cultural informaria parte das críticas de Friedrich Nietzsche aos seus conterrâneos. Ele, que sempre admirou a exaltação da vida pelos povos mediterrâneos, diria: “Os alemães são para mim impossíveis (…) Todos os grandes crimes culturais de quatro séculos eles carregam na consciência!” Acreditando descender de nobres poloneses — “considerados franceses entre os eslavos” —, Nietzsche diz que são “estrangeiros” como ele e o poeta Heinrich Heine, de origem judaica, os verdadeiros artistas da língua alemã.

Ora, por mais que duvidemos, torna-se ainda mais difícil discordar de Nietzsche quando nos defrontamos com a clareza de expressão, a profundidade e o humor de outros escritores judeus em língua alemã, tais como Arthur Schnitzler, Sigmund Freud e Stefan Zweig.

Sentir-se estrangeiro em nossa própria terra, época e cultura não é motivo para nos angustiarmos. Quem sabe, certa dose de anacronismo e marginalidade seja necessária para o pleno exercício de nossa criatividade. Esquecemo-nos que os grandes vultos da cultura ocidental foram revolucionários, a começar por Moisés, o primeiro homem a dizer-se peregrino em terra estrangeira (Êxodo 2:22). Afinal, comenta o filósofo italiano Giorgio Agamben: “Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela”.


Texto originalmente publicado na edição O Estrangeiro

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#2NuArteArtes Visuais

O nu em Lucian Freud

por Alessandra Modiano

Leigh under the Skylight

A inquietude do nu é um dos aspectos mais marcantes no estilo do pintor alemão

O nu é um tema explorado na arte fazem muitos séculos. De fato, a descrição do “corpo sem ornamentos” pode ser percebida desde a antiguidade. Porém, ao pensar o nu na arte moderna e contemporânea, existe um artista plástico que se destaca pela forma peculiar e intensa de sua representação – Lucian Freud. O artista, falecido em 2011, foi reconhecido como um dos maiores pintores figurativos em vida e sua notoriedade é proveniente, em grande parte, da composição inquietante e da vulnerabilidade humana desenvolvida nas suas telas, compostas de corpos nus.

Nascido em Berlim no período entre guerras e refugiado em Londres logo após a subida de Hitler ao poder, em 1934, Lucian Freud passou a maior parte de sua vida na Inglaterra. Neto de Sigmund Freud, fundador da psicanálise, o pintor buscava escapar de qualquer relação direta de sua obra a seu avô. Porém, é difícil não relacionar a forma como Sigmund Freud buscava quebrar a barreira emocional e o sofrimento do paciente à forma com que Lucian despiu seu muso-modelo da censura social e transmitiu através da pintura a verdade crua e animal dos seres humanos, moldados pela sua consciência e pelo seu olhar de pintor.

Enquanto jovem, Freud era um desenhista muito preciso e pintor minucioso. Sua maturidade se desenvolve a partir da década de 60 quando o artista, influenciado pelo então amigo Francis Bacon, adota um estilo de pintura livre e intenso, atingido através da utilização da técnica de impasto e aplicando gradações de cores, similares aos “Old Masters”.

A partir de então, Freud passa a pintar principalmente retratos nus e a trabalhar apenas de seu ateliê, que se torna cenário importante da composição de sua obra e crucial na relação de intimidade entre pintor e modelo, acentuada pela lentidão do seu processo de pintura.

Produzindo em média cinco quadros por ano, cada tela sua podia levar anos para ser concluída. Tal lentidão requeria do modelo uma dedicação e determinação de permanecer na mesma pose perante o pintor por um longo período de tempo, uma tarefa árdua e quase cruel. Dessa mesma forma, Freud desenvolvia uma relação de intimidade com o modelo, criando uma curiosa relação entre o retrato, a pintura, o tempo e o corpo humano.

São corpos distorcidos, sofridos, vivos e desgastados com o tempo, cuja pele e a carne humana estão expostas na cara do observador, tornando a pintura de Freud singular e intensa, e muitas vezes repelente.

Os sujeitos ou os corpos de suas pinturas não são escolhidos de forma arbitrária, são normalmente familiares, amigos, amantes ou pessoas que ele acha interessantes. Suas filhas foram representadas em várias telas, como Naked Girl Laughing (1963) e Large Interior Paddington (1968/69), assim como sua mãe, The Painter’s Mother (1982).

Existe também um foco em corpos prósperos, mulheres grávidas ou gordas. Na busca de captar o real, o pintor se autodenominava um biólogo, isto é, um pintor do corpo humano cuja arte é autobiográfica. Barrigas flácidas, marcas de rosto, bolsa embaixo do olhos, rugas, a imperfeição de seus modelos não passam despercebidos ao seu olhar, ao escrutínio do tempo e das posições que o pintor escolhia para seus modelos em suas telas.

Um grande exemplo disso é a tela Leigh Under the Skylight (1994). Nesta obra de tamanho monumental, Leigh Bowery, um artista performático e amigo do pintor, é retratado nu através de um ângulo baixo e inconvencional. Usando como temática um homem corpulento, grande e impressionante, com suas partes íntimas nitidamente expostas, Freud retrata um nu clássico com uma grosseira textura que é atingida através da pincelada e da luz que o artista projeta na tela.

Além disso, a posição de Leigh nos revela o processo desconfortável e a tarefa árdua pelos quais passou. Nesse retrato, assim como em outros do período mais recente, como em Benefits Supervisor Sleeping (1995), um retrato da gerente Sue Tyller, fica evidente a capacidade do pintor de transcrever em sua tela a sensibilidade, a emoção, assim como a dissipação de tudo o que está envolvido na ocupação de um corpo abundante.

Naked Admirer

Assim como Nietzsche, Freud situa a essência da identidade humana no corpo e não na alma. Ele desnuda seus sujeitos, colocando em evidência a verdade humana nua e crua.

Freud despe o homem da sua armadura social e de seus artifícios psicológicos através de árduas sessões de pintura. Seus retratos mais recentes incluem Queen Elizabeth II (2000/01) e Kate Moss, retratada em Naked Portrait (2002).

O olhar cruel de Freud em seus retratos solidifica seu estilo progressista, transgressor e libertador diante dos cânones de beleza que caracterizam as imagens do corpo humano ao longo da história, assim como estabelece seu poder de emoção e projeção da realidade vista através dos olhos do pintor ao observador.

Dissimilitudes à parte, a inquietude do nu de Lucian Freud reavaliou o corpo humano na mesma profundidade em que seu avô remapeou a mente. Porém, apesar da homogeneização percebida no mundo contemporâneo, o ser humano permanece um mistério a ser desvendado e a nudez, mais um elemento nessa descoberta. A força da personalidade da pincelada nas pinturas de Freud expõe em sua plenitude o frescor da carne humana e as limitações da fisicalidade do ser humano.

Working at night
#28O FemininoCulturaLiteratura

Que Mário?

por Vanessa Agricola

Eu choro com o silêncio da Vivi e do Mario*, o silêncio que dividiram juntos, Mario contando: “Quando o sol esquentou, nos olhamos, os mais novos velhos amigos. Perguntei seu nome. Vilma, ela respondeu. Vilma, repeti.”

A Glória e seu Cortejo de Horrores… Na ocasião da polêmica do feminismo versus Fernanda Torres, me irritei demais que a criticassem. Senti a mesma coisa quando chamaram Caetano de pedófilo, agora. Cheguei a me posicionar em defesa da Fernanda, mas por Caetano contive meus impulsos após ter engolido as minhas próprias palavras junto com o mea-culpa.

Eu não entendia. Com quem estávamos falando quando falávamos de feminismo? Porque, aqui em casa, ele queria a barraca azul; ela, a vermelha. Adivinha qual cor de barraca compraram? Ela queria passar a Páscoa em Trancoso; ele, no Rio. Adivinha para onde foram?

Mas é óbvio que o Brasil não é a minha casa. A mulher, no Brasil, não manda em tudo, nem vai para Trancoso. Estamos a falar com um mercado que paga menos, uma sociedade que enxerga a mulher como um buraco, um homem doente que bate no corpo frágil.

Mais alguma coisa na mulher, além do corpo, é mais frágil?

Foi um homem que me falou que é científico (médico de renome, não qualquer um): o homem não consegue pensar em duas coisas ao mesmo tempo.

Tem um lado superior nisso, único: homens conseguem manter hobbies. O futebol de quarta à noite, o pôquer de terça. Pode parecer bobagem, mas o hobby é uma atividade fundamental para desestressar. Como uma meditação. E não, a mulher não consegue manter o compromisso de esvaziar os pensamentos. O baralho com as amigas vai para as cucuias se houver um problema em casa. Se o filho chegar triste da escola, cancela. Se existe alguma tristeza, fica para a semana que vem.

Um homem não cancela o pôquer, ele vai. Desliga a notícia do câncer de próstata do melhor amigo (porque o bichinho não comporta dois pensamentos ao mesmo tempo, como já falamos, e que é científico), e liga o botão: jogar bola.

É motivo de inveja para todas nós, mulheres, aqui na manicure, manicure nova (a Nelma está de licença), das unhas muito compridas. Ela tende a limpar as sobras do esmalte na minha cutícula utilizando as próprias unhas, o que me causa um nojo absoluto e me faz voltar a Mario.

“O matutino campeão de assinaturas foi testemunha do flagelo. Um crítico deveria ter a compaixão de não aparecer na noite do patrocinador, mas aquele não teve. Nenhum tem.”

Mario me faz pensar em mim. A mesa de seis jurados me olhando, a plateia em silêncio, todos assistindo minha apresentação de “Nada Tanto Assim”, do Kid Abelha, no palco.

Só tenho tempo pras manchetes no metrô /
Abri um jornal e escorei o corpo numa cadeira que quase caiu.
E o que acontece nas novelas /
Sentei na cadeira e apertei o botão do controle remoto que levei no bolso.
Alguém me conta no elevador
/

Levantei da cadeira e apertei outro botão, imaginário, do elevador.

No refrão: Eu tenho pressa e tanta coisa me interessa mas nada tanto assim/

Corri no lugar quando cantei “eu tenho pressa”. Em “tanta coisa” gesticulei muito com os dedos. “Me interessa”, apontei para o meu cérebro… Uma exaustão. Para mim, para a plateia, para os jurados.

No fim, era notícia boa que ninguém da minha família estava vendo. A música terminou, o silêncio permaneceu. Meia dúzia de educados bateu palmas, pessoas com coração. O primeiro jurado desligou o botão do microfone e cochichou com o outro. Os dois riram. A família da Bianca foi em peso. Bianca tinha se apresentado um pouco antes, dublou “Pintinho Amarelinho”, do Gugu, trajada com uma fantasia idêntica à do passarinho, que a mãe dela costurou. Fingi ter visto alguém no meio da plateia e dei um tchau. As pessoas que estavam na direção dessa pessoa que não existia trocaram olhares, para quem ela está dando tchau? Joguei um beijo. A voz do jurado interrompeu o delírio:

– Bom, eu ia te dar um sete, mas vou dar um seis.

Ele desligou calmamente o microfone e colocou em cima da mesa. Ligou calmamente o microfone em seguida: – Você não merece, mas vou dar uma justificativa. Você não estava nem olhando para esta banca quando eu ia te dar a nota. Seis.

Os outros jurados também deram seis, sem tecer justificativas. Ninguém falou da roupa, meu vestido vermelho idêntico ao da Paula Toller na capa do disco. Foi a Lu que mandou fazer o vestido. No meu sonho. Na real eu fui de calça jeans porque era rock’n’roll, camiseta branca porque eu não tinha uma vermelha, e o cabelo molhado de New Wave.

Mas foi a Lu, realmente, que me deu a dica de cantar “Nada Tanto Assim”, porque a letra era boa para fazer mímicas; eu podia levar um jornal, um controle remoto…

*Mario Cardoso, personagem principal de A Glória e seu Cortejo de Horrores, esse livraço de Fernanda Torres, que, apesar de masculino, me lembrou do feminismo, do feminino e dos meus fracassos.

Pensar sobre o humano e seu comportamento coletivo tem sido meu interesse há alguns anos. As relações entre os seres que pensam e se reconhecem estão cada vez mais afastadas do que os fazem iguais, mesmo que diferentes.

Quando escolho uma figura de mulher ou símbolos femininos para fazer perguntas e instigar reflexões, o que me estimula em primeiro é a relação social na qual estão inseridos.

Rosas Púrpura (2012)

As meninas em “Rosa Púrpura”, em rosa e branco, estão ali pela posição de fragilidade, de vulnerabilidade, ao serem colocadas como possível objeto de abuso pela posição que ocupam e pelas roupas que vestem. A mulher de véu, com olhos vedados pela mão do homem, apresenta uma situação de violação. Em grande parte do mundo oriental, o sexo masculino é o que dita as regras do ver, e, nesse mundo, a mulher não é visível.

A mulher que luta no vazio em “Vã” briga por uma igualdade, é inconformada, não aceita regras de castidade, não aceita títulos nem obrigações, luta em pé em cima do ferro já retorcido pela trama de tantas disputas, onde o adversário, de tantos nomes, já não tem rosto.

O corpo no gelo é quase invisível em “A Frio”. Os abafadores de som talvez sejam para não escutar que por ser diferente, se é visto menor. O corpo ali não tem sexo e o que o faz menor? A cor? A ausência de pelo?

Em “Número Repetido”, onde aludo ao torturante trabalho ao qual o chineses são submetidos, ou em “Palomo”, quando tento provocar a reflexão sobre a tortura e o abuso de poder , entre tantos outros trabalhos que fiz, não existe a figura da mulher, não existe o símbolo do feminino visível, mas, de alguma forma, estão ali também, de algum modo frequentam aquela realidade.

Antes de pensar no feminino, me pergunto onde perdemos a capacidade de ver o outro como igual, seres da mesma espécie, onde perdemos o respeito pelo que é humano?

Quando todos calam (2009)

***

As performances de Berna Reale aqui reunidas – estejam elas registradas em vídeo ou fotografia – foram realizadas entre 2011 e 2015, ou seja, antes de dois eventos que escancararam uma há muito preparada mudança de paradigma civilizacional no Ocidente: na Europa, o Brexit; nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump. Esses acontecimentos, como sabemos, são ilustrativos de câmbios e deslocamentos maiores, que envolvem fatores como a geopolítica do Oriente Médio e a chamada “crise de refugiados” na Europa, o crescimento e recrudescimento da extrema-direita em países de tradição esquerdista, o tão discutido conceito da “pós-verdade”, entre outros.

Esse panorama, complexo demais para ser propriamente apresentado (e quanto mais discutido) neste pequeno texto, é aqui lembrado brevemente com o intuito de contextualizar a produção desta artista e apontar como as obras de arte de fato sensíveis ao seu tempo são capazes de não apenas se sintonizar com o zeitgeist, mas até mesmo de antecipá-lo.

Em sua prática, a artista transfigura-se em diversos personagens – fantásticos, estranhos, irônicos – para trazer suas performances à realidade, conferindo ao mundo de todo dia um caráter onírico, transformando-o em um sonho limítrofe ou um pesadelo do qual, mesmo que queiramos, não conseguimos acordar.

Palomo (2012)

Se isso era particularmente claro nas performances de rua realizadas em Belém, esse poder transfigurador se mostrou em toda sua potência nas performances fotográficas realizadas para o projeto “Precisa-se do Presente”. Nele, a artista viajou aos países integrantes do BRICS, onde, por não ter a estrutura necessária para uma produção complexa ou por se deparar com políticas públicas de censura, deu vida a alguns de seus personagens em locais privados e depois, por meio de fotomontagem, inseriu-os em ambientes públicos – sem que o artifício acarretasse qualquer perda ao efeito final.

As obras de Berna Reale parecem ter o dom de retirar seu observador do real, transportá-lo para o universo da fantasia. No entanto, adentrar o universo performativo de Berna Reale significa imediatamente ser expulso de volta à realidade, agora ressignificada: basta o espectador entregar-se à magia da ficção para perceber o mundo que se esconde por trás da arte, para absorver a imagem da barbárie como alegoria da civilização (imagem esta que finalmente, em 2016, perdeu seu caráter especular e tornou-se realidade aos olhos de agentes sociais que até então haviam escolhido não ver).

Com suas performances, suas imagens misteriosas, marchas oníricas rumo a lugar nenhum senão o mesmo, Berna Reale cria uma disrupção da realidade apenas para permitir que, dela, essa mesma realidade irrompa com mais força do que antes. A presença se reafirma pela ruptura, mais potente do que nunca – irrupção esta que significa, também, que sua crítica nunca foi tão necessária.

A Frio
#28O FemininoArtigo

Editora Convidada: Helena Cunha di Ciero Mourão

por Helena Cunha Di Ciero

“Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.”

Carlos Drummond de Andrade

Era uma noite linda de sábado, festa grande. O casamento repleto de orquídeas que desciam do teto; noiva feliz, festa cheia, decoração impecável. Entrei no banheiro para tirar os grampos do cabelo, que me incomodavam, e ouvi três mulheres conversarem amigavelmente. Uma era uma moça loira de vestido bordado e joias, que amamentava seu bebê numa cadeira de veludo vermelho no canto do banheiro. As outras duas estavam de uniforme e eram responsáveis pela limpeza – estavam em pé, usavam touca e avental.

O papo estava animado; falavam sobre gravidez, seios doloridos, bebês esfomeados, parto e a solidão da madrugada. Havia uma ternura no diálogo que encobria a diferença social. Eram mães, acima de tudo. Biologicamente programadas para gestar. E falavam com alegria de suas crias, da aventura de cuidar de alguém, dos desafios, trocando experiências com satisfação.

Ver a cena pelo espelho me tocou ao mesmo tempo que me trouxe uma pergunta: em que circunstâncias mulheres tão diferentes falariam de uma situação tão íntima se não tivessem como pano de fundo comum a maternidade? É que as mães se reconhecem pela veia do coração. Há uma identidade partilhada, uma dor e um desamparo: existe alguém que depende de mim.

Antes de ter filho, via minha mãe como uma entidade, um totem, aquela que sabia tudo, a pessoa para quem eu perguntava antes de todo mundo sobre qualquer assunto. Depois, descobri que mães são só pessoas, meninas assustadas, aflitas, inseguras, tentando acertar. Que vão assumindo aos poucos o papel materno, mas não sem angústia.

Foi uma surpresa muito gratificante o grupo de mães que conheci na escola dos meus filhos. Confesso que sempre tive medo e até certo preconceito, mas foi surpreendente a maneira como pude contar com a ajuda dessas mães, a disponibilidade que encontrei nessas mulheres – que viraram minhas amigas e me apoiaram – e a qualidade da relação que construímos. Foi fácil contar com elas nessa fase tão importante da vida dos meus filhos, a primeira infância.

Durante os últimos anos, vivemos nascimentos, mortes, doenças, separações e amores. Trocamos abraços em momentos de celebração e de conquistas das crianças e tivemos um momento em que esse grupo teceu uma rede de coragem para amparar uma de nós que sofria por um bebê que nasceu doente. Todas nos sentíamos impotentes e, portanto, oramos juntas, mesmo com religiões diferentes, doamos sangue, oferecemos abraços e uma taça de vinho para atenuar a dor. Em troca, essa mulher nos ensinou sobre a dignidade de uma mãe que enfrenta a morte de cabeça erguida, protegendo o filho vivo de sua dor. E tem gente que chama escola de educação infantil… Não para os pais.

É que uma criança é criada por uma aldeia, não por uma pessoa, como diz um ditado africano. Eu humildemente acrescento que existem mulheres – “tias”, avós, amigas da mãe – que dão um contorno, ajudando a construção desse ser em desenvolvimento que é a mãe.

A feminilidade se constrói com a ajuda de outras mulheres; é uma espécie de herança transmitida de geração em geração, através de um vínculo delicado e sutil. É a partir da relação com a mãe que as meninas se fazem femininas. Essa relação permeia a feminilidade e é estruturante da relação entre mãe e filha que virá futuramente. Para ser mãe, é necessário o registro da mãe que antecedeu. Esse vínculo é uma referência fundamental para quase todas as relações significativas experimentadas ao longo da vida. Mãe e filha estão ligadas para sempre através de experiências concretas e inconscientes. Não é à toa que somos representadas pelo laço de fita.

Outro dia, minha filha tirou a fralda, e saímos eu, ela e a avó para comprar sua primeira calcinha. Acho que inconscientemente queríamos dizer: seja bem-vinda.

Ao olhar para minha história, o que vejo, antes de grandes transformações, são as amigas. Da escola, da faculdade, minhas tias e primas que me ajudaram nos ciclos da vida. Nós, mulheres, fazemos um coro de amor e coragem que nos sustenta ao longo dessa jornada. Somos como aquelas bonecas russas, as matrioscas: carregamos dentro de nós muitas mulheres que nos ensinaram a crescer.

Não é à toa que as famílias brigam pelas joias da vovó. Elas têm um valor além-material. Representam esse diamante lapidado pelo amor e pela lealdade que nos dá força para trilhar a aventura da vida.

E às invejosas, que não conseguem aproveitar o tamanho desse laço que envolve o feminino, desejo vida longa.

Fora do Brasil há alguns anos, eu nunca deixo de me surpreender com a recente valorização do feminismo pelas internautas brasileiras. Quando eu deixei o país em 2009, pouco se ouvia falar sobre o tema.

Na conclusão do meu bacharelado, por exemplo, apresentei uma monografia sobre a influência do pensamento de Hegel na obra de Simone de Beauvoir, e muita gente se mostrou surpresa com a minha escolha. Na época, em conversa com uma colega, ouvi o seguinte comentário: “mas você acha mesmo que ainda vale a pena discutir aquela escritora?”.

Na Europa, o clima era outro. No Brasil, Simone de Beauvoir só virou polêmica em 2015, por conta de uma questão do ENEM. Aqui, já desde muito tempo se comentava um renascimento do interesse acadêmico em Simone de Beauvoir, especialmente a importância das suas contribuições para a fenomenologia, a moral existencialista e a literatura.

Discutia-se não apenas sua contribuição para o feminismo e seu envolvimento político com movimentos da esquerda francesa, mas, acima de tudo, seu lugar na tradição filosófica ocidental.

Em outra ocasião mais recente, durante uma viagem ao Nordeste do Brasil, participei de um jantar na casa de um professor universitário. À mesa, homens e mulheres conversavam sobre planejamento familiar. Indagada sobre filhos, respondi que, se possível, gostaria de ter uma filha. Causei espanto, nem tanto entre os homens da mesa, mas, principalmente, entre as mulheres. Como se todas à mesa se sentissem obrigadas a defender o ideal de primogenitura masculina.

Hoje, nas redes sociais, essas mesmas mulheres compartilham fotos e citações sobre luta feminista e empoderamento. Mas até que ponto esse interesse pelo feminismo expressa uma preocupação legítima com o bem-estar da mulher na sociedade, e a partir de que momento ele se transforma num sintoma de ansiedade coletiva?

Na década de setenta, a escritora Anaïs Nin concedeu uma série de entrevistas e palestras sobre o processo criativo em relação ao sexo feminino, fazendo questão de destacar a importância da saúde emocional do indivíduo na implementação de mudanças dos costumes sociais. Considerada uma das criadoras do romance memorialista feminino, Nin explicou aos seus leitores como transformou a ideia do diário íntimo numa forma de arte através da qual ela acreditava ter sido capaz de encontrar sua própria voz – não apenas como escritora, mas sobretudo como indivíduo e como mulher.

Havendo atuado como psicanalista e tradutora de Otto Rank para a língua inglesa, Nin descreve, em ensaios e palestras da última década de sua vida, seus diários como uma peça-chave no processo de sua formação pessoal.

Longe de acreditar na infalibilidade de soluções políticas e ideológicas, ou na ideia de que é possível mudar tanto o mundo quanto a natureza humana, ela desenvolveu, através de seus diários, um feminismo de viés psicológico que resgataria o impulso criativo da mulher para que esta passasse a exercer sua vontade sem necessariamente sentir-se dilacerada pela culpa: “eu peço que a mulher assuma responsabilidade pelo seu desenvolvimento. Eu não exonero os agentes que impediram essa evolução, mas eu quero que cada mulher perceba que ela pode ser senhora do seu próprio destino”.

Assim, antes de agir em grupo e reproduzir bordões políticos, cada mulher deveria conhecer a si mesma e aprender a identificar seus problemas e obstáculos individuais. Ora, refrões não são suficientes para nos fortalecer como mulheres e indivíduos.

Dito isto, já na década de setenta, Anaïs Nin percebeu que o movimento feminista corria o risco de entrar em pane caso as mulheres insistissem em encontrar soluções para problemas íntimos e pessoais unicamente através da mobilização coletiva e do ativismo político, disso gerando nova dependência. De acordo com a autora, as influências negativas das lealdades de classe, raça e religião atuariam como obstáculos emocionais para o desenvolvimento da mulher como indivíduo e jamais conseguiriam ser exclusivamente resolvidas mediante a politização.

Em um ensaio chamado Notas sobre o Feminismo, ela ressalta que, enquanto generalização, todo bordão comunica apenas uma inverdade e que, por isso mesmo: “muitas mulheres inteligentes e muitos homens potencialmente colaborativos, sentem-se alienados por generalizações (sic) … a coletividade nem sempre nos empresta força porque ela apenas funciona através de um mínimo denominador comum”.

Assim, apesar de todos os compartilhamentos online de bordões e mensagens feministas, parece-me inacreditável que, em menos de uma década, as mulheres da classe média brasileira tenham superado preconceitos ancestrais. Certamente, algumas dirão que ainda não os superaram, que estão buscando se conhecer melhor e reconhecer os próprios limites. Mas a maioria das mulheres que eu conheço, quando indagadas sobre o feminismo, sentem-se agredidas, como se o exercício do debate ameaçasse a legitimidade de suas crenças.

Ora, em um país como o nosso – em que a cultura do machismo ainda prevalece e que o feminismo se tornou uma ferramenta importante para questionar os valores e costumes que ameaçam a segurança física e a integridade emocional da mulher –, faz-se cada vez mais necessário questionar a adesão repentina ao feminismo como profissão de fé.

Afinal, mudanças drásticas de comportamento, sejam individuais ou coletivas, nem sempre indicam saúde e progresso. Pelo contrário, tais mudanças, exatamente por serem repentinas, escondem motivações ainda desconhecidas. Carecem de fundamentação e correm o risco de serem revertidas com maior facilidade.

Se, por um lado, iniciativas como os projetos “Deixe Ela em Paz”, “Futuras Líderes” (UP[W]IT) e “Leia Mulheres” são fundamentais para desfazer mitos e afirmar o protagonismo de mulheres na nossa sociedade; por outro lado, o entrincheiramento político-ideológico da militância feminista ameaça comprometer o alcance e a estabilidade das conquistas do próprio movimento.

Anaïs Nin explica que esse entrincheiramento ideológico seria caracterizado por uma maneira obsessiva de pensar problemas que poderiam ser resolvidos individualmente caso suas integrantes fossem capazes de enfrentar e adotar uma postura inteligente e responsável sobre suas próprias hostilidades e fracassos pessoais.

Em vez de focar aspectos práticos, econômicos e sociais relativos à situação da mulher, Nin escolheu, durante as suas palestras, dar ênfase à dinâmica dos conflitos interiores e à ideia de que a robustez de todo e qualquer indivíduo reside no exercício da confrontação de si próprio.

Acreditando ser possível libertar-se independentemente das circunstâncias, Nin escreve que sua principal contribuição ao movimento de libertação da mulher teria sido fazer notar, em seu diário, que nenhuma outra opção surtiria efeito mais prolongado do que uma reforma íntima das atitudes e das crenças pessoais de cada uma de nós.

A raiva e o ressentimento que permeiam a linguagem do feminismo cibernético, com suas acusações gratuitas e transferências de responsabilidade pessoal, devem ser combatidas pelo bem das conquistas do próprio movimento. Afinal, como assevera Anaïs Nin, a raiva faz com que exageremos nossos problemas e impede que alcancemos o apoio e o reconhecimento necessários para evoluir e seguir adiante.

Ao contrário do feminismo acadêmico convencional baseado em formulações intelectuais sobre as circunstâncias da mulher na sociedade, os diários de Anaïs Nin nos oferecem uma versão do feminismo guiado tanto pela sua sensibilidade estética quanto pela sua sensibilidade psicológica.

Enquanto, por exemplo, o pensamento feminista de Simone de Beauvoir é marcado por ideias políticas, influenciadas principalmente por Hegel e Marx, as influências que informam o feminismo proposto por Anaïs Nin são outras, como, por exemplo, Freud e Proust. Ao enfatizar o papel da arte e do processo criativo no desenvolvimento psicológico, Anaïs Nin diz-nos: “o que eu mais gostei na psicologia foi a ideia de que o destino é interior e está em nossas mãos. Enquanto nós aguardarmos pela salvação através dos outros, nós jamais desenvolveremos a força que nós precisamos para nos salvarmos a nós mesmos”.

Assim, em sua peroração, Anaïs Nin permite-nos concluir que a liberação da mulher na sociedade envolve não apenas lutas políticas, mas, sobretudo, a superação de obstáculos emocionais particulares.

É justamente este apreço pelas circunstâncias e pelas peculiaridades de cada indivíduo que falta ao discurso de cunho feminista amplamente compartilhado nas redes sociais Brasil afora.

Ora, a mentalidade de grupo por si só não é capaz de fortalecer e libertar o indivíduo dos seus próprios preconceitos e amarras afetivas. Pelo contrário, oprime, aliena e enfraquece a vontade individual. Atira quem mais precisa de ajuda numa passividade e num discurso de vitimização que arriscam perpetuar uma dependência emocional e causar prejuízo a toda uma comunidade.

Na conclusão de Notas sobre o Feminismo, Anaïs Nin assevera que: “o pensamento majoritário é opressivo porque ele inibe o desenvolvimento individual e busca uma fórmula para todos. O crescimento individual empresta maior qualidade à vida em comunidade. Uma mulher desenvolvida saberá como cumprir com as suas obrigações sociais e como agir de maneira efetiva”. Escritas em 1972, essas palavras permanecem tão vitais e desafiadoras quanto elas soaram no momento de sua publicação.

#28O FemininoCulturaSociedade

A regra deste jogo é adivinhar

por Léo Coutinho

A regra deste jogo é adivinhar quais regras existem e, então, colocá-las em ordem cronológica, segundo a legislação brasileira. Por exemplo: proibição do casamento infantil, casamento sem exigência de virgindade, casamento com a pessoa escolhida, proibição do parto com algemas, extinção da pena por estupro caso a vítima se case com o estuprador, pensão alimentícia.

Não sei se ajuda ou atrapalha, mas pingo algumas datas para você pensar: 1603, 2002, 2005, 2013, 2016. Notou que faltou uma? Sinal de que prestou atenção. Se percebeu que um dos exemplos ainda não é lei, ponto para você. Mas se este é um dado que te surpreende, ponto para o jogo. A ideia é essa: provocar e esclarecer o pensamento político.

O nome do jogo é Molho Especial, parte do cardápio da Fast Food da Política, uma organização criada e gerida por mulheres que, sobre as receitas clássicas da teoria dos jogos, quer ampliar e melhorar a noção política da sociedade.

Em 2015, a designer Júlia Carvalho embarcou no Ônibus Hacker, trupe que roda o Brasil instigando curiosidade e participação política. A primeira escala foi numa cidade de quatro mil habitantes. Depois, saltaram para uma de quatrocentos mil. Até que chegaram a Brasília.

Num alumbramento de João de Santo Cristo, Júlia ficou bestificada. Mas não com as luzes de Natal. Era agosto de 2015, auge das manifestações pró e contra o impeachment de Dilma Rousseff, com direito a muro separando os grupos.

O ônibus estacionou e os ativistas abriram os trabalhos. Brasília, capital federal do Brasil, em um aspecto não era diferente das cidades de quatro ou quatrocentos mil habitantes. Em plena Praça dos Três Poderes, os manifestantes revelavam desconhecimento sobre o que se passava nos salões e gabinetes dos prédios ao redor. “Se a Dilma cair o Aécio assume?”

Na lógica de uma designer, se há culpa na incompreensão do que está exposto, ela é daquele que comunica. O princípio da profissão que Júlia escolheu é traduzir qualquer mensagem, para qualquer pessoa, em qualquer lugar.

Olhando para o Congresso Nacional, ela viu nas cúpulas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal as metades de um pão de hambúrguer, que recheou com as torres de gabinetes e, assim, decidiu que a compreensão básica do processo político, fundamental para o debate político, seria universalizada e digerida na velocidade e na dimensão alcançadas pela rede mundial de sanduíches. Nascia a Fast Food da Política.

O cardápio é vasto e lúdico. Três Poderes é um quebra-cabeça que se completa quando Legislativo, Executivo e Judiciário se encaixam com seus respectivos órgãos e atribuições. Três Esferas é um jogo de basquete onde as bolas são os políticos e os cestos são as esferas municipal, estadual e federal. Ganha quem acertar quem está em qual e quais são suas competências. Em Monte Seu Governo, o desafio é colocar as pessoas mais indicadas nos postos correspondentes a fim de alcançar o objetivo escolhido, considerando o perfil político-ideológico de cada um.

Na forma, meu predileto é o Queda do Patriarcado. Inspirado no Jenga, aquele jogo da torre que não pode desabar, a proposta é construir a transformação desejada com atenção às camadas culturais estabelecidas ao longo da história. Claro que você pode ir direto à peça que te incomoda num tapa, demolindo a torre. Mas a história prova que quem fez esta opção acabou perdendo o jogo.

Se abri seu apetite, aceite uma sugestão. Como esta crônica, comece pelo Molho Especial. Indo direto ao Queda do Patriarcado, você corre o risco de achar que a torre não é assim tão feia. O atavismo faz a gente olhar com naturalidade para coisas horríveis. E o Molho Especial, com a sutileza dos temperos simples, é capaz de mudar sua nota. Quer ver?

Até 2002, o casamento podia ser anulado pelo marido caso a não virgindade pré-nupcial fosse comprovada. Só em 2005 foi revogada a possibilidade de extinção da pena de estupro caso a vítima se casasse com o estuprador. O direito de casar com a pessoa escolhida veio em 2013, quando o Judiciário equiparou a união homossexual à heterossexual. Ainda no ano passado, era legal manter algemada uma mulher durante o trabalho de parto.

Em 2017, não há lei que impeça o casamento infantil no Brasil, ao contrário de outros 24 países na América Latina. Segundo a ONU, somos a quarta Nação em quantidade de casamentos precoces, prática que atinge 36% da população feminina brasileira e é responsável por 30% da evasão escolar no mundo. Por aqui, o limite de idade é definido pelo organismo da mulher, não pela lei. Isto é, aceitamos que, se uma menina pode engravidar, também pode se casar.

Entre os homens, a pensão alimentícia chega a ser mais aceita do que entre as mulheres. Não é raro encontrar uma mulher que se negue a processar o pai que descumpre as obrigações legais perante os filhos. Ao passo que, nas cadeias masculinas, os chamados “ladrões de leite” chegam a ser isolados para a proteção da integridade física, assim como os estupradores.

A lei que estabeleceu a pensão alimentícia é parte das ordenações filipinas, baixadas pelos reis Filipe I e Filipe II, datada de 1603. Meu palpite é que 414 anos contribuíram para a digestão social. Mesmo assim, não duvido que, levada hoje a uma comissão especial da Câmara dos Deputados, composta por dezoito homens e uma mulher, acabaria revogada.

Então vamos em frente. E fast. O tempo urge.

#28O FemininoArteMúsica

Homens Flores

por Bruno Cosentino

A canção “Homens Flores”, de Luís Capucho e Marcos Sacramento, que gravei no disco Babies, é uma pequena obra-prima. Ela canta:

os mundos são mais belos
quando olhados pela janela
e as colinas estão repletas de homens fortes
e eu olho pra elas
porque elas são o mundo inteiro
e eu olho pra eles
porque eles são o mundo inteiro
e eu olho pra elas
porque elas são meu terreno
e eu olho pra eles
porque eles são meu terreno
onde eu vou plantar
onde eu vou plantar
flores homens
homens flores
flores homens
homens flores

A letra e a melodia juntas passam uma sensação de profunda leveza, um feito que (não) se explica no mistério que pode ser alcançado pela intuição do compositor quando cria uma canção — um empenho do corpo inteiro, da memória, dos desejos, no passadopresentefuturo, integração cósmica da pessoa no espaço-tempo. Tento penetrar o mistério e entender de que ele é feito; os picos de alegria, onde estão.

A primeira coisa que me vem são os homens nas colinas, uma imagem que me remete à beleza clássica da Grécia Antiga, de exibição e celebração do corpo (me lembro também de Walt Whitman, que cantou a saúde dos corpos servindo de enfermeiro aos feridos da Guerra de Secessão dos Estados Unidos).

Na sequência, já aparece uma surpresa, porque justo depois de “e as colinas estão repletas de homens fortes”, é dito “e eu olho pra elas”. Sempre fiquei sem entender direito, mas o que me vinha, antes, era que se falava de homens como o gênero humano, que inclui os homens e as mulheres. Mas quando fui ao texto, a correção gramatical (que, para a canção, não vale lá grande coisa, pois está regida mais pelas sugestões sensuais do que pelo entendimento racional) me levou às “colinas”, ao “elas” e “eles”, aos “homens fortes”; assim, os homens são mesmo homens do sexo masculino. Mas, no fundo, é a beleza que se insinua no “mal-entendido” sintático que a deixa mais bonita. Depois de homens fortes, quando seria esperado “eles”, se diz “elas”; esse estranhamento faz unir o masculino ao feminino. Reforçado pela sequência de paralelismos, “e eu olho pra elas”, “e eu olho pra eles”, tanto elas como eles passam a ser a mesma coisa, “o mundo inteiro”, “meu terreno”, tornando indistintos os gêneros.

É nesse terreno que o cantor vai plantar os homens flores. Assim como todos nascemos do ventre da mulher, eles vão nascer do ventre da mãe terra. Uma dinâmica de diferenciação (na oposição repetitiva de “elas” e “eles”) e de conciliação dos contrários, que remete à unidade primordial anterior à criação.

E, ao fim, tudo retorna à primeira imagem: ali, nas colinas, onde estão apinhados sob o sol (quem diz do sol é a melodia) os homens flores — resplandecendo.

A palavra “misoginia” significa ódio ou aversão às mulheres, mas, seguindo a sugestão de Camille Paglia, ela adquire uma conotação mais complexa, que tem origem no medo das mulheres. Sendo assim, o sentido mais comum atribuído à palavra — o ódio às mulheres — seria, antes, uma consequência do medo. O escritor Jean Delumeau, no livro História do medo no Ocidente, dedica um longo capítulo, denominado “Os agentes de satã”, a três figuras párias da civilização ocidental: o muçulmano, o judeu e a mulher. Ele descreve o processo de diabolização da mulher pelo discurso católico oficial e pela literatura. Se o medo está na origem do ódio às mulheres, outro efeito desse medo pode ser também a adoração religiosa à mulher. Vinicius de Moraes é um exemplo desse último caso.

Percebe-se claramente, nos seus dois primeiros livros, em poemas como “A legião dos úrias”, o terror à mulher implantado pela formação católica do escritor:

(…) dizem os camponeses ouvir os uivos tétricos e distantes
dos cavaleiros úrias que pingam sangue das partes amaldiçoadas.


são os escravos da lua. vieram também de ventres brancos e puros
tiveram também olhos azuis e cachos louros sobre a fronte…
mas um dia a grande princesa os fez enlouquecidos, e eles foram escurecendo
em muitos ventres que eram também brancos mas que eram impuros.

e desde então nas noites claras eles aparecem
sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos
e vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e das mães sozinhas
e das éguas e das vacas que dormem afastadas dos machos fortes (…)


De sua “desconversão”, na obra posterior, podemos tirar os versos mais apaixonados de veneração à mulher, que, embora de carne e osso, guarda a aura da mulher total, da santa Virgem Maria.

Se o medo está na origem, todo homem é misógino. A alteridade feminina se mostra ao homem por demais misteriosa (e ameaçadora). Uma coisa fundamental torna muito diferente a experiência de estar no mundo do homem e da mulher: a maternidade. O fato de poder gerar uma vida dentro de si faz com que a mulher esteja conectada com as forças da natureza de um modo que o homem é incapaz de estar. Mesmo para as mulheres que não são mães, o ciclo menstrual as põe em compasso com o movimento da lua. Não consigo imaginar uma experiência mais telúrica do que sentir crescer um ser humano dentro da barriga — a posição de cócoras utilizada por muitas mulheres no momento de parir faz os pés parecerem raízes fincadas no solo. O grito de dor é grito que invoca toda nossa ancestralidade de bicho.

(O grito da maior dor, a do parto, é o mesmo grito do maior prazer, o do orgasmo. O grito que dá a vida é o mesmo que emitimos quando morremos no momento do prazer extremo, que Georges Bataille chamou de “pequena morte”. Essa similaridade perturbadora também só pode (não) ser compreendida na dimensão mítica

obs.

perdi a razão
querer entrar por onde saí
que quer dizer
essa louca intenção
tudo é circular
morrer morrer morrer
morrer onde nasci
morrer entrar nascer sair
querer entrar por onde saí
morrer entrar nascer sair
querer entrar entrar
de novo sair
perdi a razão
)

O mundo é concreto para as mulheres; acho que daí vem o gosto muito natural pelas coisas, pela aparência, que vai dar no clichê do consumismo. Daí também um tipo de intelectualidade muito diferente da do homem, este mais inclinado ao conceito e à abstração — me lembro da Hannah Arendt dizendo, numa entrevista, que não gostava de ser chamada de filósofa, mas de cientista política; de fato, seus textos têm uma inteligência com sabor de terra. Não à toa, a condição humana, para ela, é o estar entre seus pares, ou seja, a política. É claro, as mulheres têm seu jeito de estar com a cabeça nas nuvens, assim como os homens também têm o seu, mas estes parecem ter mais do que a cabeça, o corpo todo nas nuvens, inábeis para lidar com a beleza diária das coisas práticas, enquanto a mulher parece se relacionar com isso de forma mais espontânea e bem resolvida. E a imaginação feminina vai para outros lugares, não sei bem dizer quais; talvez para uma fantasia de totalidade, porém conectada com o chão.

Assim, o estar no mundo feminino, com sua lógica conciliatória — deveríamos sempre pensar na hipótese de que, se não fossem os homens, não haveria a guerra; uma mulher que sabe e sente e possui o poder de dar a vida não é capaz, enquanto coletivo, de criar a instituição que a extingue. A noção de progresso, calcada numa posição declarada de rivalidade contra a natureza, da criação do artifício, é necessária, masculina, antifeminina — ainda como diz a dissidente feminista (inteligente e controversa) Camille Paglia, o homem quer se separar da mãe e, por isso, sai a vagar e buscar proteção na arquitetura, na arte etc.

O homem não deixa a mulher falar porque ela representa o perigo ao modelo masculino de civilização. Ele tem medo dela.

Interessante notar que justamente hoje, quando muitos intelectuais estão refletindo sobre a ruína do norte racionalista — que tem seu maior e mais brutal exemplo no utilitarismo capitalista, justificativa inconteste para as maiores atrocidades humanas —, retornando ao frescor da ciência prenhe de fantasia do medievo, o que se deseja é mais irracionalidade. Em outras palavras, mais corpo, intuição, contribuições dos sentidos para as formas de convivência. O corpo é o contradiscurso — ele é do império feminino.

Uma amiga, outro dia, no café (quando perguntei se concordava com o que Françoise Dolto dizia, que a sexualidade feminina está culturalmente menos localizada no órgão genital e que isso era resultado de uma sublimação na obra, ou seja, filhos, família etc., o que me tinha parecido um discurso anacrônico com o debate feminista atual), me disse que a própria estrutura do canal da vagina faz o prazer sexual irradiar para dentro do corpo e imantá-lo de um jeito difuso, que a maioria dos homens não entende isso e que, por esse motivo, ela (assim como outras) passou também a buscar satisfação sexual com outras mulheres. Uma outra amiga, para quem pus a mesma questão, me disse que concordava com Dolto, ainda que o lugar do prazer estivesse recolocado nos dias de hoje — o direito ao prazer sem o julgamento moral de origem, notadamente, masculina.

Segundo o mito, o andrógino está na origem. Desafiamos os deuses, e Zeus nos separou em homem e mulher. A partir de então, não paramos mais de buscar a metade perdida. Reproduzimos para tentar nos fundir novamente.

Meu filho de três anos me disse que queria ser menina porque queria ser igual à mamãe. Outro dia, vendo minha filha, tive o entendimento claro de que nela eu me tornei menina — de verdade, com fundamento biológico.

Em algum momento do século XVII, o padre Guilherme Pompeu de Almeida colocou no papel as seguintes ideias que estavam em sua cabeça:

“João Ramalho, filho do Reino, teve uma filha que se casou com Bartolomeu Camacho; este teve uma filha que se casou com Jerônimo Dias Cortes; este teve outra filha que se casou com Domingos Luiz, o Carvoeiro; este teve uma filha que se casou com João da Costa; este teve uma filha Maria de Lima que se casou com João Pedroso; estes tiveram a filha Ana Lima, casada com o capitão-mor Guilherme Pompeu de Almeida” .

Esse modo de expressar a cadeia de ancestrais mostra estruturas que parecem estranhas aos costumes ocidentais: revela apenas os nomes de homens por quatro gerações, enquanto omite aqueles das mulheres. Nas mesmas gerações, aparece apenas a nomeação “filha”. Apesar do silêncio sobre o nome, a genealogia segue de mãe para filha – e não, como no Ocidente europeu, de pai para filho. Apenas na quinta geração aparece um nome feminino, o de Maria de Lima – e a sequência continua a estrutura feminina, agora com homens e mulheres sendo designados como genitores.

O que levava um paulista do século XVII a pensar assim sobre seus ascendentes? Toda a estranheza, todo o ruído, desaparece quando se conhece o modo de conceber família dos Tupi-Guarani. Para esses povos, a filha era só do pai, pois acreditavam que o útero da mulher era apenas o local onde crescia o feto a partir do sêmen – o que explica a primeira diferença da genealogia, de citar apenas os nomes dos pais.

Já a estrutura que passa de mãe para filha é facilmente inteligível quando se conhece a organização dos grupos. Em todos eles, as mulheres eram as habitantes permanentes da casa. Passada a puberdade, na hora do casamento, os homens eram obrigados a procurar noiva em outra oca – ou, na via inversa, as filhas recebiam um noivo vindo de outra oca. Com isso, as mulheres se tornavam as habitantes permanentes, as mantenedoras da tradição. Avó, filhas, netas ficavam, cada qual com seu noivo vindo de fora e os filhos ainda não casados.

Com as duas informações, se entende muito melhor a genealogia feita pelo padre Guilherme Pompeu de Almeida. Em linguagem técnica da antropologia, trata-se de uma linhagem patrilinear (daí os nomes de homens) mas matrifocal (daqui a descendência pela linha feminina) por quatro gerações. Apenas na quinta aparece uma fusão parcial com o modo ocidental de pensar, com as filhas sendo atribuídas a pai e mãe, como no Ocidente, além de serem nomeadas. Só aqui a mulher que estrutura a sequência deixa de ser invisível.

Esse modo de pensar tupi, uma vez que se conhece sua estrutura, pode ajudar a entender a vida da família de um modo bem menos ortodoxo do que o registro desse viver que aparece nas genealogias paulistanas que a descrevem. O pai do padre, o capitão-mor Guilherme Pompeu de Almeida, embora filho de letrado, casou-se com uma mulher pobre e mestiça. Ao modo dos tupi, mudou-se, em 1630, para a recém-fundada vila de Santana de Parnaíba – a casa de sua mulher. Foi viver ao lado de seu sogro bastante indianizado, cujo apelido era “Terror dos Índios”. Comprou uma área de mineração de ferro abandonada, montou uma pequena oficina e passou a fornecer ferro para os parentes de sua mulher que circulavam pelo sertão, recebendo como pagamento parte das mercadorias que traziam na volta.

Ficou rico depressa e soube investir. Na segunda metade do século, era dono de uma grande manufatura com cinco oficinas especializadas na qual trabalhavam ao menos 200 artesãos, em grande maioria escravos nativos, mas com alguns mestiços e europeus (bem pagos, apesar de formalmente escravos) nas funções mais técnicas. Juntou dinheiro suficiente para financiar negócios de alto coturno e grande amplitude espacial, como a instalação de parentes mineradores em Curitiba, a transferência de cinco mil moradores de uma vila espanhola do atual território da Bolívia para São Paulo (faziam parte do grupo artesãos especializados que construíram os grandes tesouros artísticos e arquitetônicos paulistas da época) e a construção da Colônia de Sacramento, um ponto de contrabando bem em frente a Buenos Aires.

A quase totalidade desses negócios, apesar do volume crescente de dinheiro, era fundada apenas no costume, com os créditos sendo fornecidos e os débitos liquidados sem contratos – o fiado era a forma dominante de investimento de capital no sertão. Nos tempos do capitão, a única forma de registro encontrável para tais negócios eram as menções de dívidas nos inventários e testamentos de pessoas que morriam em meio ao andamento deles ou em esporádicas menções de atas das câmaras municipais. Já o filho letrado tinha o hábito de registrar as transações que fazia em cadernos – e um deles sobreviveu, tornando-se um dos raríssimos registros escritos dos negócios feitos segundo o costume no sertão.

Esses registros são, aparentemente, puro costume ocidental de comprar e vender, mas, se colocados num banco de dados, as referências aos negócios de pai e filho mostram pouca lógica quando cruzadas com uma genealogia construída no molde ocidental, que é patrifocal. Já quando as referências são cruzadas com uma genealogia tupi, construída com as mesmas categorias que definem família que o padre emprega para fazer a sua, todos os investimentos de capital se encaixam. Os créditos de negócio fluíam pelas linhagens matrifocais, pela casa feminina: os maridos das sobrinhas que vinham para ela recebiam bastante, os sobrinhos que casavam fora, bem menos. Em outras palavras, os investimentos de capital acumulado em padrão ocidental eram alocados segundo a lógica de um menor risco de inadimplência no parentesco tupi.

É um singelo exemplo que mostra como os modos de pensar e os costumes tupi operavam, em São Paulo, em camadas bem mais fundas que as formas legais de molde ocidental, inclusive no que se refere ao enriquecimento, à aplicação de capitais e ao financiamento de uma economia cada vez mais mercantil. O fato de que o padre-empresário respeitado por todos vivia com uma índia e tinha um filho com ela era apenas um detalhe.

E, nesta singeleza, o papel central da mulher como estruturadora de toda a vida do grupo – algo que vale para toda a sociedade colonial brasileira e toda a formação posterior do país – é, propriamente falando, a espinha dorsal invisível e ainda desconhecida da formação do Brasil.

#28O FemininoCulturaSociedade

Lixo eletrônico tóxico

por Helena Cunha Di Ciero

Os adolescentes denunciam, atualmente, na clínica psicanalítica, algumas contradições importantes da nossa sociedade atual. Ao trazerem questões a serem valorizadas, algumas merecem que nos debrucemos com mais cuidado.

Explico. Em primeiro lugar, hoje em dia, ser homofóbico é tido como um defeito inadmissível. Existe um respeito por aquilo que é diferente. Ponto para a nova geração. Nos anos 90, ninguém sabia que essa palavra existia, e hoje ela é repetida inúmeras vezes como uma falha que deve ser levada a sério: “Não falo mais com fulano, ele é homofóbico, você acredita? Que absurdo”. Escuto essa frase com frequência no consultório e recebo com animação a geração que está chegando. Talvez o futuro possa ter um horizonte mais tolerante, com mais respeito e mais compreensão.

É também muito rico esse movimento das meninas que lutam pelo feminismo, se questionando sobre ser mulher. Brigam para serem ouvidas na escola, enfrentando, a seu modo, uma sociedade que emoldura e enfraquece as mulheres. Às vezes, elas até exageram, achando que qualquer gentileza é sinal de machismo: “Ele abriu a porta do carro no primeiro encontro, que machismo!”.

Adolescente costuma exagerar no tom, para se fazer ser visto e ouvido, para tentar compreender e ser compreendido. Tudo nessa fase da vida é grande, em CAPS LOCK. Mas, de maneira geral, é bastante esperançoso ver meninas de 13 anos pensando sobre isso durante suas sessões de análise. Parece-me que esse questionamento tem aparecido antes de sentirem-se acuadas no papel de mulher. Percebo que hoje a feminilidade é construída junto dessa reflexão.

Por outro lado, alguns temas merecem mais cautela: a propagação de letras de funk que são absolutamente misóginas é um deles. Essas mesmas meninas que brigam para serem respeitadas pelas suas escolhas sexuais, por outro lado, entoam mantras de funkeiros que são absolutamente desrespeitosos com a figura feminina e até violentos. Às vezes, penso que essas jovens que cantam essas canções não compreendem de fato o que estão propagando. Será que gostariam de ser tratadas pelos parceiros como as personagens que vivem em suas playlists? É só ouvir Mc Jhon Jhon. Mc Princesa ou Baile de Favela para saber do que estou falando. A velha Tati Quebra-Barraco fica no chinelo.

O fato é que o que toca hoje nas ondas do rádio e no YouTube dos funkeiros tem um tom de violência e de desqualificação da mulher. Os tais “proibidões” são a antítese desse discurso feminista; colocam a mulher num contexto que banaliza não apenas a sexualidade, mas também as drogas.

A sexualidade na adolescência é assunto sério. O desabrochar dessa fase marca toda uma relação eu-corpo que dura por toda a vida. A intimidade não pode ser excluída desse período, como se fosse algo sem valor. Não é peça de antiguidade; é um espaço importante da construção do psiquismo, impossível de ser deletado.

Recentemente, assisti ao documentário Hot Girls Wanted, que investiga a entrada de jovens meninas para o mercado pornográfico. Todas por volta de 18 anos, em busca de dias de glória e glamour. “Já que vou transar, por que não filmar? Já que o nude pode vazar, melhor eu mesma me expor, por vontade própria” – afirma uma atriz. São meninas que entram nesse mercado em busca de fama e sucesso às custas de uma exposição violenta, precoce. Uma decisão impulsiva, um acting out em busca de independência.

A maneira como o filme se desenrola é bastante respeitosa. O olhar do diretor não se aproveita do corpo das moças – o que é raro, em geral, pois sempre se tira uma casquinha das atrizes. No caso, embora o documentário fale de sexo, não exibe nudez. O assunto é manuseado com o cuidado necessário – cuidado este que as mesmas atrizes não têm consigo mesmas, muitas vezes descartando o uso de preservativo para ganhar mais. Uma das meninas conta que fez uma cena de sexo e recebeu cem dólares a mais, mas, como teve que comprar a pílula do dia seguinte, lucrou apenas oitenta.

É muito triste para o espectador ver a falta de intimidade dessas meninas consigo mesmas, com seus sentimentos, a falta amor pelo próprio corpo; o olhar por vezes assustado, por vezes opaco, que elas trocam com os parceiros-atores, a violência à qual se submetem.

Fiquei surpresa ao saber que muitas delas se dispõem a um tipo de filmagem de uma categoria chamada Facial, na qual são humilhadas na frente das câmeras, sofrem violência física, fazem sexo forçado até vomitar, dentre outras coisas tão chocantes que considero de mau gosto redigir. Essa categoria do pornô está disponível para quem quiser ver num simples clique. O filme é uma denúncia triste. Vale assistir para refletir sobre o fato de que toda uma geração formará sua sexualidade assistindo vídeos na internet, esbarrando em conteúdos como esses, ouvindo canções repletas de violência e promiscuidade, que podem vir a ser as canções tema de uma noite especial.

O fantasiar, hoje, foi substituído pelo Google; porém, muitas vezes, o conteúdo digital é assustador. A internet oferece possibilidades diversas, sem que o jovem tenha um aparelho digestivo psíquico suficientemente forte.

Devemos pensar cuidadosamente sobre como as mídias podem ser invasivas, sobre o que é informação e o que é lixo eletrônico tóxico, cujos resíduos ficam marcados permanentemente na mente em formação.

Terça-feira é dia de comprar flores e acender uma vela para Nossa Senhora Aparecida.

Estes eram os únicos motivos que me faziam sair da cama no primeiro mês após o falecimento da minha mãe, numa terça-feira de maio do ano passado.

Era inaceitável, para mim, que uma pessoa de 66 anos, tão amável, fosse embora após 6 meses de tanto sofrimento. Dona Eva, mulher forte, guerreira, de fibra!



Comprar e fotografar flores nunca foi uma novidade para mim, mas, após esse momento, por algum motivo, isso passou a ter outro significado.

Dona Eva sempre gostou de flores, principalmente de “amor-perfeito” – em francês, “Pensée”, que significa “pensamento” e que os amantes davam como presente antes de se ausentarem durante tempo indefinido, como garantia de que o seu amor nunca cairia no esquecimento.

O amor-perfeito está associado ao amor de mãe. É a mensagem simbólica de um amor que não se acaba. É infinito.

Esse hábito virou uma obsessão.

Começaram a ser frequentes as madrugadas no CEAGESP, assim como as madrugadas fotografando essas flores; uma maneira de ocupar minha insônia.

Passei horas atrás de uma câmera 4×5”, fotografando uma única flor, nos mais variados formatos de filmes e polaroides que eu vinha guardando desde 2010.

Mais que uma obsessão, esse hábito se tornou uma maneira de, em cada foto, eu estar conectado em silêncio com minha mãe.

For_Eva, uma sutil brincadeira com forever, algo que não se acaba, infinito.

O tempo passou, e o meu luto se acalmou, mas o hábito de fotografar flores e dedicar à Dona Eva vai continuar por toda a minha vida.