É seguindo por uma estrada de terra, no sopé da histórica Serra da Moeda, que adentramos ao universo das cerâmicas do estúdio Saracura Três Potes. Situados dentro de uma reserva ambiental, Jéssica e Beto vêm desenvolvendo uma pesquisa pouco vista quando o assunto é trabalhar o barro. Tendo a memória como fio condutor, nos deparamos com objetos cercados de histórias da nossa terra, de cascas e sementes à latas de sardinhas usadas como fôrmas de bolo. 

Neste Amarello Visita, conversamos sobre os desafios da cerâmica, a visão dos utensílios domésticos como parte da cultura e como a memória pode ser contada no dia a dia de um estúdio rodeado pela natureza. 

Como nasceu o estúdio Saracura?

Quando começamos a namorar, em 2014, frequentávamos uma ONG em Belo Horizonte, que é uma casa grande com quintal, e havia lá uma estrutura básica de ateliê de cerâmica, com um forno elétrico. Nesta ONG, Jéssica, que já tinha um trabalho de cerâmica em processo e frequentava ali desde os quinze anos, sugeriu que fizéssemos juntos o que já havia sido iniciado por ela: os copos lagoinha em cerâmica (copos americanos). Começava ali uma parceria. Tínhamos traçado alguns planos de venda dos copos e produção de outros objetos que poderiam fazer parte de uma marca que ainda não sabíamos bem qual era. Nestes encontros, no quintal da ONG, pensando em quais objetos poderíamos fazer além do copo. Começamos a questionar o utilitário brasileiro em cerâmica, o porquê da maioria deles terem formas influenciadas pela estética oriental e europeia, e quais seriam, de fato, os utilitários originais brasileiros e suas formas. Esbarramos quase sempre no termo “utilitário”: aquilo que sugere ser “útil”. Muitas vezes esses objetos em cerâmica são banalizados por estarem no cotidiano, como utensílios do dia a dia. A sua produção costuma ser mecanizada, sem que haja um questionamento de forma e utilidade. Por esses questionamentos, chegamos aos utensílios dos povos originários e sertanejos. Percebemos que, além da cerâmica, havia formas naturais da vegetação local, como cabaças e coités serrados ao meio e transformados em cuias ou cumbucas. Talvez esses tenham sido os primeiros utensílios domésticos brasileiros. Iniciamos, então, uma pesquisa que intitulamos Cascas do Brasil. O estúdio nasceu dessas inquietações. Ainda no quintal da ONG, começamos a produzir as primeiras cerâmicas dessa série de cascas brasileiras, mas não tínhamos um nome para a nossa parceria. Numa ida a uma padaria no bairro Santa Efigênia, em Belo Horizonte, em algum momento, foi soprado o nome Saracura Três Potes. Não nos lembramos como ele apareceu, em qual contexto, mas, no mesmo momento, tivemos certeza de que seria esse o nome das nossas cerâmicas. Pesquisamos depois a respeito dessa ave e nos surpreendemos do quanto fez sentido tê-la ao nosso lado. Em 2015, mudamo-nos para Brumadinho, onde estamos até hoje.                    

Como é o processo criativo de vocês? 

Começa na observação de objetos que comunicam alguma memória brasileira. Depois, estudamos estes objetos, sua história e sua forma, para, em seguida, fazermos os moldes em gesso deste objeto e reproduzi-lo em cerâmica. O ideal é que ele seja uma transição do original para a cerâmica, mantendo suas marcas originais, sem que seja modelado totalmente por nossas mãos, de modo que o original esteja impresso e possa se comunicar nas cerâmicas propostas. A feitura desses moldes é bastante complexa, pois trabalhamos com formas muito orgânicas, o que nos exige um tempo maior de estudo da forma. Dentro desse processo, é possível estender o termo “utilitário” para outros campos de observação, o que nos coloca diante de uma pesquisa não só do termo e suas origens, mas também no que diz respeito à estética. Nesse caminho, criamos as cerâmicas observando essas questões em relação ao que nos sugere cada forma reproduzida, seus contornos em relação ao acabamento (quando usamos as lixas), que tipo de cor se acomoda melhor naquela forma. Tudo isso é levado para o campo do teste: erro e acerto. E a cada experiência, outras janelas se abrem e novas demandas aparecem, o que não quer dizer que conseguimos atender a todas elas.    

Como funciona o dia a dia no estúdio?

Imaginamos que como qualquer outro ateliê, seguindo o tempo marcado pela argila, sem atalhos, dentro de uma sequência de processos. Temos os nossos planos para o que será feito a cada dia. Atendemos tanto as demandas do trabalho quanto os clientes que aparecem para conhecer as cerâmicas, ou para fazer uma vivência em modelagem. Muitas vezes, saímos para caminhar nos arredores, onde há mata, pra coletar algumas sugestões. E o ateliê, como está conjugado a casa, deixa-nos mais tranquilos em relação ao tempo de trabalho e horas de descanso. 

Qual a relação do trabalho que vocês executam com o ambiente em que vocês estão inseridos? 

Estamos localizados numa reserva ambiental de 14 hectares. Temos mais de 20 mil árvores plantadas nesta área há vinte, trinta anos. Todas elas nativas da mata atlântica. Então, dentro desta área, está boa parte do que é o princípio de nossas pesquisas. Falando assim, parece que está tudo ao nosso alcance, mas não é tão simples. Uma mata é um labirinto em que nada é muito acessível. De todo modo, estar aqui é uma forma de viver dentro do que produzimos, literalmente. A região onde estamos é uma transição entre cerrado e mata atlântica. Encontramos aqui tanto o cerrado de campo sujo quanto a mata de altitude – uma galeria de sugestões para nós. Além do bioma, a vida das pessoas nativas é originalmente sertaneja, permitindo que possamos reproduzir muitas das suas histórias em nosso trabalho. Temos por aqui, por exemplo o senhor Milton, que nos apresentou as fôrmas de brevidade que eram feitas pelo seu pai, Zé Bia, em lata de tinta, para que sua mãe, Zefa, pudesse assar as brevidades em forno à lenha.      

Vocês têm uma pesquisa muito pautada na memória. Qual é a importância de associar histórias a objetos? 

Toda forma conta uma história e carrega uma história. Quando buscamos imprimir identidade às nossas cerâmicas, significa pensar objetos que possam se comunicar de alguma forma com as memórias brasileiras. Nascer no Brasil, provar deste território e construir nele uma trajetória é ter intimidade para reconhecer suas formas primordiais. Em nosso trabalho, é possível que alguém reconheça uma cabaça ou um jatobá. Mas “isso não é um cachimbo”, como afirmaria René Magritte. Ali também não são cabaças ou jatobás, mas memórias. Memórias despertadas pelas formas, que vagam por um território inatingível, tão vasto quanto o território brasileiro. Não ser “um cachimbo”, no mais, desestrutura a noção básica que temos sobre o que é uma peça utilitária.

Vocês me disseram que os moldes das peças, quando começam a se deteriorar, não são mais produzidos. Isso faz com que as peças não existam mais a partir desse momento. Até onde, no trabalho de vocês, a pesquisa ganha mais força que o mercado? 

O princípio de que as coisas são fugazes e efêmeras, oriundas da natureza, desrespeita a ordem de produção em larga escala do mercado. Neste caso, optamos por um ritmo de trabalho coerente com o que propomos, que sugere um outro tempo para as coisas. Não é interessante para a gente, por exemplo, que haja uma supervalorização do que produzimos, no sentido de que tais cerâmicas sejam colocadas como algo sofisticado. As coisas têm fim, da mesma forma que nos é impossível lembrar com perfeição e detalhes do momento de agora. Tudo vai se diluindo aos poucos. Por isso, não fazemos questão de que as cerâmicas sejam embaladas em papeis finos e sofisticados. Todas elas são embaladas em papel comum, reciclados. Vale dizer que também a palavra “sofisticado” pode ter várias interpretações. O que buscamos é que o objeto não tenha mais valor do que a memória, pois toda ela é marcada quando há a nossa participação mais intensa com as coisas que nos oferece o mundo. Viver e costurar memórias é mais importante do que qualquer objeto. Dizemos isso para falar também do mercado, no qual o objeto é mais importante do que a vida, pois é preciso colocá-lo neste lugar para despertar o interesse em consumi-lo. Talvez aí consigamos responder a sua pergunta. Do ponto de vista do mercado, não temos força alguma. A pesquisa é mais forte quando nosso ritmo não está vinculado ao ritmo do capital. Viver esse efêmero é parte da pesquisa. Quando uma peça não puder ser mais reproduzida, ela estará fora do mercado e dentro de um conceito que sugere a valorização do que temos aqui e agora. Muitas pessoas colocam nossas cerâmicas como objetos decorativos, mas nós sugerimos que façam uso delas para que ganhem vida e dignidade, para que possam ser moldadas por outras histórias e ganhem novas memórias – para que elas possam estar sujas de mundo. 

Durante o processo, por que a escolha por trabalhar com o forno a gás e não elétrico, por exemplo?

No início, não tínhamos escolha, porque o único forno à disposição era o forno elétrico da ONG. Depois, a gente conseguiu fazer uma queima em um forno a gás, de uma amiga ceramista, e o resultado era muito melhor. Quando mudamos para Brumadinho, o forno que a gente tinha era um menorzinho, de tambor, a gás também, que quebrava o galho. Queimava pouquíssimas peças, mas funcionava para quem estava começando. Quando ganhamos o prêmio do Museu A Casa do Objeto Brasileiro, em 2016, investimos em um forno um pouco maior. Sempre quisemos ter um forno elétrico para queimar a série Mão e Tempero, que é uma série que tem os copos, as latas de sardinha. E o forno a gás ficaria para a série Cascas do Brasil, para a série Rio, para a série Quintal. Mas o forno elétrico é muito caro, então a gente queimava – sempre queimou – todas as séries no forno a gás. A preferência por ele tem mais a ver com o acabamento, que é conseguido pelo fogo. Nesse processo, ocorre que não temos muita previsão do que vai acontecer, e essa imprevisibilidade é justamente o que nos agrada, especialmente pela variação de cor que conseguimos durante a queima. O forno elétrico, ao contrário, entrega uma queima mais previsível, mais homogênea. A questão da oxigenação na queima a gás, da falta de oxigênio, ou da presença de oxigênio durante a queima, é vital para o nosso trabalho, porque nos permite extrair alguns tons dos óxidos usados como pigmento nos esmaltes das cerâmicas. O resultado é uma cerâmica mais rica e interessante.

Como vocês trabalham a marca Saracura Três Potes? Existe a vontade de alcançar mais clientes e difundir ainda mais a pesquisa e o trabalho de vocês?

Trabalhamos a marca de uma maneira muito tímida, para ser sincero, porque, primeiro, precisamos lidar com as demandas de pesquisa e do ateliê, que exigem uma presença intensa. Segundo, porque somos tímidos mesmo, como pessoas. A nossa principal ferramenta para divulgação hoje é o Instagram – talvez a principal e a única. Temos alguns planos para conseguir difundir mais e melhor o projeto, mas por enquanto eles estão na fila de prioridades. Atualmente, o nosso tempo é basicamente devotado ao ateliê e à manutenção desse espaço, que é muito grande.  

O trabalho de vocês, nesse momento, concentra-se exclusivamente na fabricação de utilitários?

Uma vez uma pessoa visitou o ateliê, olhou para uma das peças e comentou baixinho com a amiga: “isso aqui não serve pra nada!”. Achamos muito bom e demos o nome de objeto inutilitário. O que a gente pode considerar como utilitário, embora sejam formas que não são estáveis, são pouco comuns entre os utilitários tradicionais, o que nos faz gostar ainda mais desse termo inutilitários. A série Rio vem com um outro tipo de proposta. São peças mais escultóricas do que utilitárias, apresentadas como cabeças de peixe. Mas o trabalho hoje tem se concentrado basicamente na fabricação dessas peças inutilitárias ou utilitárias. 

Temos o interesse numa produção de cerâmica que seja o resultado do que propomos como pesquisa. Mas não uma síntese explícita e óbvia, porque a gente percebe que, quando jogamos luz nessas cerâmicas – nessa pesquisa de cascas, memórias e identidades –, projetamos uma sombra. Queremos entrar cada vez mais nessa sombra e ver o que conseguimos extrair dela. A partir disso, temos algumas imagens flutuando que gostaríamos de trazer para dentro do ateliê e colocar em prática, mas isso vai depender da gestão do tempo que teremos no ateliê. Eventualmente, essas imagens se tornarão um novo trabalho, quem sabe uma nova série. Isso demonstra que as pesquisas que temos realizado têm um horizonte de possibilidades muito grande, basta apenas que consigamos caminhar para ver o que está por trás. 

As peças do estúdio passam por um ajuste manual de vocês, ou é sempre uma reprodução de objetos do cotidiano para a cerâmica?

Sempre é uma reprodução de objetos do cotidiano para a cerâmica. Do cotidiano, queremos dizer um cotidiano amplo, não o dia a dia de uma pessoa específica. As peças sempre passam por ajustes manuais. Isso porque a gente lida com formas muito orgânicas e, para poder fazer esses moldes em gesso, precisamos muitas vezes cortar um pedaço da peça, ou preencher uma parte, o que torna o trabalho um tanto escultórico. Uma vez que o molde fica pronto – geralmente um molde pode levar um, dois, até três dias –, passamos a avaliar os ajustes que cada peça necessita. Tiramos alguns excessos, avaliamos qual tipo de acabamento ela pede. Por mais que sejam reproduções em molde, o trabalho manual não para. As formas orgânicas tornam o processo todo mais delicado, da feitura dos moldes em gesso até o acabamento. 

Quais os planos do estúdio para o futuro?

Primeiro e mais básico: que o estúdio consiga pagar as nossas contas. Depois, ter condições de juntar um dinheiro e comprar um terreno para construir uma casa com o ateliê junto. Assim, poderíamos seguir com as nossas pesquisas sem pensar em pagar aluguel, sem ter a preocupação de tocar um ateliê de cerâmica e pensar que a qualquer momento pode precisar sair dali e realizar uma mudança. Um ateliê de cerâmica é muito complexo para ser mudado. São muitas peças delicadas, que não podem quebrar. Muitas ferramentas, um forno que pesa quase uma tonelada, então não é nada fácil. Os planos também incluem dar continuidade às pesquisas e realizar as viagens que são importantes nesse contexto: ir até a Amazônia, até o cerrado goiano, o norte de Minas, o sertão nordestino e o baiano. São tantos lugares no Brasil que se comunicam com o nosso trabalho que é essencial conhecermos a fundo. Além disso, queremos dar a oportunidade para outras pessoas que quiserem aprender cerâmica, principalmente os jovens. Queremos poder ensinar gratuitamente um ofício que pode ser revertido em renda familiar. Falamos isso dentro de um cenário de Brumadinho, que conta com um circuito de ceramistas de mais de vinte ateliês, e poucas pessoas conhecem. A maioria vem aqui por causa do Instituto Inhotim, mas acreditamos que, aos poucos, as pessoas podem começar a vir para conhecer esse circuito e o trabalho importante de tantas pessoas envolvidas. O ateliê nasceu como um espaço de igualdade, onde todos podem se encontrar, independentemente de condição social ou cor. E queremos que permaneça assim para o futuro, isso é muito importante para a gente. 

Um experimentalismo vibrante, uma somatória de formas difíceis de definir e um espírito anárquico — tudo isso espargido sobre peças feitas, em sua grande maioria, com vidro. Há de se pensar, ao menos num primeiro momento, que essa combinação geraria um tipo de arte inacessível, reservado somente àqueles que passaram anos pesarosos debruçados sobre livros canônicos para dominar todo e qualquer preceito teórico. Mas acredite: de inacessível e condescendente, a arte de Fredrik Nielsen não tem nada. Se é que é possível que existam rock stars no mundo das artes plásticas, o artesão do vidro sueco e o seu trabalho perambulam pelos sete mares com uma pinta digna de Bono Vox.

Um indicativo desse apelo popular é o momento que o próprio Nielsen considera como o seu devir artístico, em especial no que diz respeito ao contato com o vidro: a primeira vez que assistiu ao filme Minha Vida de Cachorro, de 1985. 

Contando a história do jovem Ingemar, que vai morar com os tios em Glasriket — capital da fabricação de vidro da Suécia, cujo nome se traduz para “o reino de cristal” —, além de conquistar a admiração mundial e angariar inclusive as indicações aos Oscar de Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado, a obra de Lasse Hallström foi responsável por suscitar naquele jovem espectador um forte sentimento de empatia. Aos créditos finais, Nielsen estava ruminando não só sobre si mesmo, sua família e a pobre cadela Laika. Inaugurando uma atividade que não pararia de acontecer, estava também pensando sobre o vidro, transformado pelo filme em um símbolo de quentura e segurança, duas sensações caras a qualquer um que ainda está para completar 10 anos de idade.  

Still do filme “Minha Vida de Cachorro” (1985), de Lasse Hallström.

A partir daí, a paixão não tirou mais o pé do acelerador e foi a cada ano ganhando mais intensidade. Em um contexto acadêmico, começou a estudar o vidro na Orrefors Glass School e, depois, na Pilchuch Glass School, nos EUA, onde também foi artista residente no Corning Museum of Glass. Mais tarde, voltou à sua terra natal para uma estadia no Royal Institute of Art de Estocolmo. Nessas idas e vindas, adquiriu uma enorme bagagem técnica e teórica, mas, em suas mãos, ela nunca se manifestou com prepotência. Na verdade, foi a partir dela que desenvolveu sua habilidade única de misturar inovação e acolhimento. “Para mim é assim: eu sei exatamente como jogar”, costuma dizer o artista. “Mas opto por não jogar do jeito que eu aprendi.” 

Indo na contramão de vidrarias centenárias, como a Orrefors e a Kosta Boda, Nielsen traça anti-caminhos, transformando uma arte antiga em algo desafiadoramente contemporâneo. Predominantemente experimentais, seu trabalho desafia aquilo que é tido como perfeito. Para atingir um ar de inacabado e abraçar imperfeições, suas peças são muitas vezes revestidas com tinta de carroceria, deixadas para esfriar e depois são reaquecidas com uma tocha e coladas em outras peças. O resultado final desse procedimento é uma explosão de formas e cores, um vidro levado ao limite que nos faz repensar, ou no mínimo questionar, o que entendemos ser o papel da arte no mundo moderno. Ressoam aos berros novos significados para o termo “arte em movimento”, uma vez que as obras — que podem chegar a pesar 50kg — transmitem a mobilidade e a leveza de um organismo vivo.

Munido com uma visão que foge dos ditames da calmaria e da impecabilidade normalmente atribuídas à arte com vidro, o rock star é quem diz que o vidro é o seu “carro de corrida”, o seu “amplificador” — por isso podemos pensar em uma guerra contra a estaticidade, um combate que até então era unilateral. Para Nielsen, o vidro “é o material mais rápido do mundo para escultura” e pode, sim, ser acessível, independentemente de sua forma. Em pleno domínio dos meios dos quais pode lançar mão para atingir os seus propósitos, o sueco bebe de uma variedade de culturas populares: música, vídeos, performance, graffiti — e, com frequência, transforma o próprio processo em um espetáculo, o que ressalta os timbres de sua forte e carismática persona.

Esculturas que gritam, dançam, respiram, ora se camuflam como um louva-a-deus e ora se exibem como um pavão. Com um fazer delicado e cheio de irreverência, elas se curvam não para venerar, mas sim para criar as curvas de sinais de interrogação — e como é belo, e difícil de definir, o poder de questionar.

Jaqueta de couro, óculos escuros, cabelos com gel, carisma e, claro, muita atitude. Bono? Nada disso: Fredrik Nielsen.

O Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo — localizado na Rua Vergueiro, na zona centro-sul da capital paulista — foi criado em 1990 por Sônia Salzstein, que, à época, era diretora da Divisão de Artes Plásticas do CCSP. Bastante consolidado no circuito nacional, o programa segue como um importante dispositivo de estímulo e propagação das artes visuais, pelo qual já passaram centenas de artistas multiplataformas. A cada edição, novos artistas emergentes são selecionados, podendo obter um alcance mais popular. 

A comissão da 32ª edição foi formada por Beatriz Lemos, Renata Felinto e Vânia Leal junto com as curadoras do próprio CCSP, Maria Adelaide Pontes e Sylvia Monasterios. Em parceria, avaliaram 1340 projetos para, no fim, selecionarem somente 20. Os contemplados foram divididos em duas exposições, sendo que a primeira delas aconteceu entre os dias 13 de agosto e 30 de setembro deste ano. A segunda Mostra entrou em ativa no dia 5 de novembro e segue assim até o dia 26 de fevereiro de 2023. 

Conversamos com dois dos artistas selecionados: o carioca Mulambö, nascido e criado na Praia da Vila em Saquarema, e Xadalu Tupã Jekupé, artista mestiço de Alegrete, no Rio Grande do Sul. Ambos também tiveram suas obras publicadas na Amarello Fagulha.

Fazer arte no Brasil de hoje é um ato de resistência maior do que no Brasil de outros momentos?

Mulambö: Eu diria que é um ato de resistência diferente, todo tempo tem sua complexidade e, infelizmente, a história do Brasil é repleta de momentos tenebrosos. Então, não sei se é maior do que em outros tempos, só sei que é o tempo em que eu estou fazendo arte e que, portanto, é a minha vez de resistir e tentar honrar tanto aqueles que lutaram para que eu chegasse aqui quanto aqueles que vão chegar em algum lugar um dia porque eu estou trabalhando agora.

Xadalu Tupã Jekupé: Acho que, para nós, a população que é de comunidade, sempre foi um ato de resistência, porque, desde a invasão colonial, sempre houve essa tentativa de apagamento das comunidades indígenas e depois, mais tarde, das comunidades de quilombo. Então, acredito que, hoje, ser um artista mestiço, um artista indígena, um artista quilombola, é um ato de resistência que percorreu o tempo. Vejo dessa maneira. Claro que com os tensionamentos políticos que acabam refletindo nos tensionamentos sociais acabam dando uma importância ainda maior para o ativismo. 

Qual é a importância de uma exposição como essa, que joga luz sobre o circuito artístico nacional contemporâneo?

XTJ: Para mim foi uma grande alegria poder compor esse elenco de artistas que ocupam diversos lugares do Brasil. Para nós, em questão de circuito nacional, é uma excelente oportunidade de mostrar os temas e tensionamentos da nossa região aqui, a região sul, para São Paulo e para o resto do Brasil. É algo muito difícil, porque quando se fala de indígena no Rio Grande do Sul, as pessoas não entendem que aqui tem população indígena. As pessoas pensam que aqui é terra europeia, porque tem muito descendente de europeu. Vejo como uma grande oportunidade de mostrar o que acontece no Rio Grande do Sul em relação aos povos indígenas.

M: É sempre importante estar atento ao que está sendo produzido agora, ainda mais neste momento pelo qual estamos passando. A galera precisa ouvir também o que a gente que está chegando agora tem a dizer e ter a oportunidade de falar num espaço tão importante como o CCSP é fundamental.

Xadalu, conte um pouco sobre “Tekoa Tenondé: Aldeia do Futuro”, obra presente na exposição.

XTJ: Eu uso sacos de ração — sacos de ráfia, de soja — com um símbolo, lá da região onde nasci, onde minha avó tomou banho e onde existia uma gigante aldeia indígena. Hoje em dia, aqueles contos da região limitam-se somente a uma grande fazenda de lavoura de soja. Então, por isso que tem esse monte de cabeças dos sacos de soja junto com a Grega Campeira. O gaúcho se apossou, se apropriou de grafias indígenas para criar uma cultura gráfica que seriam aquelas figuras geométricas que eles chamam de Grega Campeira, que eles colocam na calça e em outras peças de roupa. E a “Tekoa Tenondé” reflete isso: as antigas aldeias que hoje são lavouras de soja para fazer alimento para gado.

De que maneira ela nos ajuda a olhar pras coisas de um jeito diferente, sob uma nova perspectiva?

XTJ: Ela pega um problema contemporâneo, mas navega com esse problema pela sua origem na história. Quando a gente pega uma situação contemporânea, a gente tem que pegar o ponto de origem que essa situação tem na história.

Mulambö, o que é “O penhor dessa igualdade”, instalação presente na exposição, e de que maneira ela nos ajuda a encurtar distâncias?

“O penhor dessa igualdade” | Instalação

M: A instalação fala um pouco sobre a hipervisibilização do corpo negro como objeto e da invisibilização do corpo negro como sujeito. Utilizando do futebol e da figura do micro-ondas, trabalho um pouco a ideia dos ciclos, das duas faces de um mesmo movimento circular como um pneu — pneu esse que prende e queima, mas que também sustenta e resiste, porque, como diria Raquel Barreto, eles separados são micro-ondas, mas eles juntos são barricadas. Tento encurtar distâncias no meu trabalho através dos materiais que são encontrados no dia a dia e, principalmente, na temática e estética. Falar de futebol, violência e resistência utilizando símbolos e signos que nos são próximos e que talvez, normalmente, estão mais próximos das nossas casas do que dos museus e tudo mais. Mas, se encurta mesmo, isso vai de cada um que se conecta com o trabalho.

O que dizer dos horizontes artísticos do país? Haverá no amanhã dias melhores e mais plurais?

XTJ: Eu acredito que sim. Eu acredito que agora com esses combinados, com essas possibilidades de um novo governo que está mais aberto a escutar a cultura, a escutar os povos indígenas, a escutar o povo pobre, que é o que mais necessita de atenção nesse país, eu acho que se abre um campo para o diálogo e, havendo diálogo, há uma possibilidade de entendimento. Quando não há diálogo, que é o que estava acontecendo antes, não tem como as pessoas se entenderem. Vejo como uma grande possibilidade, principalmente na parte da educação e na cultura, porque a gente sabe, né, a educação e a cultura são os pilares mais importantes de qualquer povo, em qualquer lugar do mundo. Tudo é muito importante, claro, mas eu acho que o âmbito da educação e da cultura é algo que eleva o poder de poder buscar muitas outras coisas.

M: Espero que sim — e estaremos lá trabalhando, festejando e resistindo.

***
Período: 05/11 a 26/02 de 2023
Visitação: Terça a sexta, das 10h às 20h; sábado, domingo e feriados, das 10h às 18h
Onde: Piso Caio Graco – Centro Cultural São Paulo
Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso – São Paulo, SP

Juliana Benfatti, atualmente, vive sua paixão por peças antigas com seu charmoso antiquário localizado na Rua Sampaio Vidal, em São Paulo. Mas o amor, é bem verdade, vem desde que se entende por gente: quando pequena, gostava de dar pitacos na decoração dos pais, convencendo-os a optar por peças mais antigas. Foi dessa vocação sensível que fez sua profissão. Na década de 80, colaborou com os melhores antiquários da cidade de São Paulo e, mais tarde, teve sua loja própria por 12 anos, no bairro de Pinheiros.

Em meio à caldeira da pandemia, quando se viu diante da necessidade incontornável de ficar dentro de casa, Juliana resolveu comprar de vez um apartamento que sempre fez seu coração bater forte, parte do edifício Araucária, imóvel clássico da capital paulista. 

Por ter sido concebido em uma outra época, o apartamento naturalmente evoca muito do frescor que só o antigo pode oferecer e, de um jeito ou de outro, em cada dobra ecoa forte os encantos daquela menina que desde cedo carrega o olhar atento para se inspirar com a mescla de diferentes formas, movimentos, culturas e períodos.

Mas o que ele tem de tão especial? Descubra tomando um cafezinho com a gente e com a Juliana.

Quando e como começou a sua relação com essa casa/apartamento?

O edifício Araucária, construído na década de 1960, pelo Rino Levi, é uma paixão antiga. Eu tinha feito um curso na FAAP e, como meus professores eram arquitetos, eu sabia quem era o Rino Levi. Tinha uma amiga que morava no prédio do outro lado, em frente, na 9 de Julho, que é exatamente igual. São dois prédios gêmeos que ele construiu. E eu adorava esse prédio em que ela morava. Achava muito moderno para a época, com uma coluna no meio de todos os apartamentos. Eu adorava. Então casei, morei em outro lugar e, depois, um dia, andando a pé — porque gosto de caminhar —, eu parei nesse prédio e perguntei se tinha um apartamento para vender… E tinha! Era exatamente o que eu queria, então comprei o apartamento. Deve fazer uns 6 anos, mais ou menos. Como eu morava na Sampaio Vidal, que é a mesma rua onde eu tenho o antiquário, eu fiquei 40 anos morando por lá, o que era muito cômodo. Cheguei a alugar o imóvel algumas vezes e, depois, quando começou a pandemia em 2020, a gente ficou mais em casa e deu tempo de refletir, de saber o que que a gente quer em termos de conforto, de praticidade, de tudo. Daí eu falei: não vou alugar mais! Vou alugar o meu e fazer uma reforma para mudar para o outro. E foi isso que eu fiz. Foi uma época boa, porque ainda tinha material de construção à vontade, depois de 2020 que as fábricas pararam. Hoje em dia, para fazer uma reforma é bem mais difícil, porque tem muito material faltando. Mas, na época, eu fiz de agosto até dezembro. Mudei em dezembro de 2020 e estou lá, feliz. 

Qual você acha que é o valor de morar em um apartamento projetado por Rino Levi? O que a arquitetura te oferece em termos de conforto e bem-estar? 

Eu acho que a arquitetura, um projeto como esse, do Rino Levi, uma pessoa consagrada que sabia o que estava fazendo, atende a necessidade da época. É completamente diferente da época vitoriana, não tem por que ser igual, já que não foi concebido em 1850. É um projeto que foi concebido sob outras necessidades. Imagino que isso tudo que é analisado antes do projeto, e que vai atendendo as necessidades de sua época, merece um respeito, ainda que eu esteja em outra. 

Você fez muitas alterações?

Eu fiz pouca modificação. Só adaptei ao meu estilo de vida, que é o de uma pessoa que vive sozinha. Eu fiz um quarto maior juntando dois, e o terceiro dormitório virou uma saleta de tevê, para jogos. Mas, no geral, foram poucas as modificações, justamente para respeitar o projeto original. Abri a cozinha também, porque eu gosto de cozinhar, para não ficar fechado ali — sou eu mesma que cozinho, né, então tem sentido a cozinha ser aberta para a sala. 

Em termos de design de interiores, essa sua casa é muito diferente da anterior?

O apartamento onde eu morei durante 40 anos tinha uma outra configuração. Foi uma casa que abrigou um filho pequeno, tinha três quartos, e foi se modificando conforme a passagem do tempo. Eu fiz três reformas. Então, ele foi se adaptando a cada época da minha vida e, aqui, neste apartamento, eu comecei do zero, muito de acordo com o momento que eu estou vivendo agora — um momento em que eu quero desfrutar do que eu mais gosto de fazer, que é cozinhar, por isso eu fiz uma cozinha muito especial, calculando tudo que eu precisava e, no processo, reduzindo o que eu tinha. Trouxe exatamente os pratos e as panelas que eu ia usar. Nada em excesso, para ficar tudo do tamanho da minha necessidade. O resto do mobiliário e da disposição também foram pensados em reduzir, em tirar os excessos. Tenho muitos livros, então resgatei uma antiga estante que era de uma mercearia, com as prateleiras todas em mármore, onde coube a maior parte deles. E trouxe mais cinco estantes que podem ser colocadas em qualquer lugar: uma no lavabo, uma na sala de tevê, e duas no meu quarto. Coube tudo que eu precisava. Fiz um sofá super confortável, com poltronas que também são confortáveis, tudo de acordo com esse meu momento, em que eu quero desfrutar dos meus amigos. Aqui eu tenho também na sala de tevê, uma mesa de jogo, que eu tenho amigas que gostam de jogar. Então foi, sim, bem diferente daquilo ao que eu estava acostumada no outro apartamento. 

Como está sendo viver nessa sua outra casa, que, na verdade, acaba sendo uma extensão desse seu novo momento?

Quando a pessoa fica mais velha, ela quer conforto, ela quer amigos — poucos e bons —, por isso eu tenho uma mesa de jantar que cabe oito pessoas. No outro apartamento era uma mesinha que cabia três pessoas. Tem a ver com essa arquitetura modernista, essa coluna no meio da sala, que eu não sei ainda se um dia eu vou fazer umas prateleiras em volta, que ela é muito charmosa, mas, se um dia faltar espaço para livros ela vai ser a única adesão. É o único projeto que eu ainda tenho, porque, com o resto, eu estou super feliz. Super! Ele tem tudo que eu precisava, desse jeito mais “reduzido”. Reduzi roupa, louça, panela, revista, livro. Fiquei com aquilo que eu realmente amo. 

Como você acha que a sua profissão influencia no seu gosto pessoal?

Eu fiz um curso de comunicação na FAAP e tinha noções também de decoração, e eu acho que isso me ajudou de verdade. Foi um curso de três anos, quase um curso superior. E é claro que isso influenciou, e influencia até hoje, no meu gosto pessoal. A gente adquire uma noção importante de espaço e de proporção. Eu entro em uma sala vazia e consigo imaginar como ela vai ficar mobiliada, porque existe essa escala na minha cabeça. Apesar das coisas serem escolhidas mais com o coração, existe um lado super prático que é ver o espaço, ver o que cabe nele, a altura do teto, a visão de uma janela, tudo isso influencia na escolha do mobiliário dentro de uma casa. Então, eu acho que sim, influenciou muito e vai continuar influenciando. Eu fiz decoração nos anos 70, mas, apesar de não fazer mais, há elementos dessa prática que ficam — por exemplo, a noção para saber se o joelho de uma cadeira está grosso ou não, se a perna fina de uma cadeira ou de uma mesa está proporcional ao tampo ou ao assento. Coisas assim. Tudo isso pesa, porque a gente tem uma noção do que é proporção, a gente pensa a lógica de um espaço para, principalmente, entender como ocupá-lo.

Onde você se inspira para criar?

Para a criação, tudo serve de referência e inspiração, seja aqui em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Bahia, em Alto Paraíso. Eu tenho sempre o olho muito atento, é uma coisa natural. Eu percebo coisas que estão meio escondidas. Apesar de elas estarem pouco à vista, eu percebo que elas existem. Com toda essa observação, a gente cria uma noção geral do que está acontecendo no mundo em termos de desenho, arte, mobiliário… Nas viagens para a Europa, para a Índia, para a China, para o Egito, vou com o mesmo olhar daqui, um olhar que está sempre aberto, prestando atenção em tudo o que é belo, porque a beleza fascina. Do mesmo modo que me fascina, eu consigo passar para as pessoas o que me fascinou, me cativou, transmitir para elas por que tudo aquilo poderia interessá-las também. Por trás, tem sempre uma história, um lugar para lembrar — essas memórias visuais ficam registradas na gente. Para mim, é ter o olhar atento na rua, ficar de olho em como as pessoas se vestem atualmente, como as pessoas comem, que tipo de comida elas comem — faço isso especialmente quando eu vou para a China e para a Índia. Comer só comida local, por exemplo, é muito especial, porque é diferente da nossa e traz tanta inspiração. Isso tudo com o colorido da natureza inspira a gente para chegar aqui e criar um monte de coisas. 

Como seu gosto evoluiu com o passar do tempo?

Evoluiu, principalmente, com a maturidade. Fui tirando os excessos, sabe? A gente se encanta mais com coisas mais limpas, mais substanciosas, coisas que falam por si na forma, na cor, no acabamento do material. Em 1970, na casa dos meus pais, os móveis eram todos pé palito em jacarandá e eu sugeri que eles trocassem por uma coisa mais clássica, talvez um sofá de veludo com franja — algo que era muito daquela época. Hoje em dia, a gente quer aqueles móveis que estavam na casa dos pais, né? Existe esse retorno na moda também. A gente vai todo dia aprendendo. Não conheço nenhuma profissão, nenhuma atividade a qual você se dedique, e que você ama, em que você não evolua todos os dias. Você faz isso prestando atenção em um filme, vendo uma matéria, olhando as pessoas na rua… é por aí. Viver, e evoluir, é isso.

A percepção de mundo de muitos dos povos africanos e indígenas entende a humanidade como parte da natureza, sem construir uma relação de superioridade e exploração com as demais espécies e elementos que a compõem. Cada recurso natural é respeitado e cultuado como divindade.

Foto: Marvin Kennedy

De acordo com a cosmogonia Iorubá, Ọlórun, o Deus supremo dos povos Iorubá, criou o aiyé, o mundo material, através de um processo sucessivo de divisões do seu àṣẹ (axé, energia vital). Destas subdivisões, primeiro surgiram os quatro oṣa (elementos), sendo eles a água, a terra, o fogo e o ar. Cada um desses elementos constitui, portanto, uma parte do próprio Ọlórun.

A água é um elemento feminino e representa o poder de gerar vida, a capacidade de fertilizar a terra e a possibilidade de nutrir. Do líquido amniótico ao leite materno, dos rios aos mares,a água simboliza as múltiplas faces do matriarcado.

Ómí Tútú, a água fresca que acalma

Dentro da liturgia do candomblé, há um ritual bastante antigo praticado, inclusive, na Nigéria e no Benin, que consiste em jogar água no solo à frente da moradia, ou ilé (templo), ao entrar ou sair. Esse ritual é conhecido como Ómí Tútú, em tradução livre, “água fresca que acalma”.

As principais motivações para a realização do Ómí Tútú são: esfriar o caminho de quem chega; esfriar o caminho de quem vai; abrir caminhos para uma nova energia mais sensível; mostrar aos convidados que são bem-vindos; mostrar para os convidados que Exu aprova sua visita.

Para além do ato de molhar o solo, o ritual se dá através da evocação, como vemos a seguir:

Original:

Omi tutu
Omi tutu Exu
Omi tutu Onilé
Omi tutu Egungun
Omi tutu Onã
Omi tutu mojubá o!

Tradução:

Água que acalma ou esfria
Água que acalma Exu
Água que acalma a terra
Água que acalma os Ancestrais
Água que acalma os caminhos
Água que acalma, eu te saúdo.

Há um ditado iorubá que diz “Somente a água fresca apazigua o calor da terra”. Pensar este ditado à luz do entendimento da água, enquanto representação do feminino, permite-nos compreender o papel central de articulação protagonizado pelas mulheres dentro das sociedades africanas. A partir desta reflexão, trarei a seguir a figura das duas principais yabás, orixás femininos do panteão Iorubá, que têm nas águas a sua essência. São elas: Oxum e Iemanjá.

Oxum, Senhora dos rios e cachoeiras

Segundo um itan – que são as lendas e estórias dos povos Iorubás -, após a criação do Àiyé, foi convocada uma assembleia para definir o seu destino. Nessa assembleia estavam presentes apenas os Orixás masculinos. A movimentação em torno desta reunião chegou aos ouvidos de Oxum, que indagou o motivo de não ter sido convidada. Oxalá, que liderava a reunião, respondeu que apenas os homens deveriam participar da discussão. Oxum, muito contrariada, estabeleceu que, a partir daquele momento, deixaria de derramar suas águas doces sobre o Àiyé.

As terras se tornaram inférteis, a vegetação padecia seca, mulheres já não podiam gerar e a fome se alastrava rapidamente. Diante da gravidade da situação, o povo no Àiyé buscou Exu, o mensageiro entre a humanidade e os Orixás, pedindo a ele que intercedesse junto às divindades para que as condições de subsistência fossem normalizadas. 

Ao receberem o recado de Exu, os Orixás masculinos voltaram a se reunir para consultar Olodumaré sobre o que estaria acontecendo no Àiyé. Olodumaré questionou, então, se Oxum, que é a própria fertilidade, havia sido convidada a participar das decisões acerca do mundo que agora sofria com as secas. Os oborósnomenclatura Iorubá aos Orixás masculinos – responderam que não. Olodumaré então ensina: sem Oxum e suas águas doces, nada cresce sobre a terra. 

Diante disso, os Orixás buscaram Oxum, convidando-a para que participasse das assembleias junto aos demais Orixás e rogando por sua clemência em devolver ao mundo a fertilidade.

Oxum nos elucida, através deste itan, a forte relação entre água e matriarcado para as sociedades iorubás. A presença feminina nos espaços de poder é o caminho para uma sociedade próspera e harmônica.

Dentro das religiões afro-brasileiras, pertence a Oxum o cuidado com o ventre feminino. É a ela que muitas mulheres recorrem quando encontram dificuldades para gerar filhos, ou quando já os geram e buscam o amparo desta yabá durante a gravidez e o parto. 

Na ritualística de Umbanda, o ato de lavar a cabeça sob as águas de uma cachoeira possibilita a limpeza espiritual e a abertura de caminhos, considerando o curso das águas dos rios como condutor que levará para longe qualquer mazela. Os rios espelham também a face diplomática de Oxum, que, diante dos obstáculos, não busca o conflito, mas elabora a melhor estratégia para contorná-los e seguir seu fluxo natural.


Iemanjá, a mãe dos mares e oceanos

Dia 02 de fevereiro, em Salvador | Foto: Max Haack

Há um itan de Iemanjá que narra o episódio da separação entre ela e seu filho Oxóssi.

Um dia, Oxóssi decidiu que era o momento de seguir em busca de sua liberdade. Ao ver o filho partir, Iemanjá chorou tanto que, primeiramente, o seu pranto e, em seguida, ela mesma transformaram-se nas águas salgadas que formam os mares e oceanos.

No contexto histórico da construção das diásporas africanas, os mares assumem a função de caminho. Foi, através deles, que pessoas africanas submetidas à condição de escravizadas fizeram a travessia para as Américas. Muitas delas não resistiram a esta travessia, sendo, então, absorvidas pelas águas da Kalunga[1] grande, o mar.

Aqueles que chegaram aos territórios colonizados das Américas trouxeram consigo seus valores civilizatórios, dentre eles, suas fés, suas divindades e seus cultos. Através da organização e da resistência destas pessoas, perpetua-se até hoje uma grande devoção por Iemanjá, considerada uma das Orixás mais populares no Brasil.

Conhecida também pelos nomes de Inaê, Janaína, Ogunté, entre outros, Iemanjá move multidões na direção de seus mares durante seus festejos, como é o caso do dia 2 de fevereiro, sobretudo, no estado da Bahia.

Foto: Bruno Acioli

Toda a popularidade de Iemanjá no Brasil, porém, está cercada de tramas sociais complexas, sendo a principal delas o racismo que resultou no embranquecimento dessa orixá. Sua representação mais conhecida imprime a imagem de uma mulher de pele clara e longos cabelos lisos, fenótipo que sabemos não se aplicar às mulheres do continente africano, sobretudo àquelas pertencentes à região onde nasce o culto a Iemanjá. A aceitação de uma divindade africana como importante marco cultural brasileiro tornou-se viável a partir da aproximação de sua aparência ao padrão atribuído ao Deus Cristão, ou seja, o padrão europeu. 

Não apenas Iemanjá foi embranquecida para se popularizar, mas rituais característicos das religiões afro-brasileiras foram apropriados e distanciados de sua origem para que hoje sejam amplamente reproduzidos. Um grande exemplo dessa apropriação é a prática de pular sete ondas na virada do ano. Muitos desconhecem que este é um rito da liturgia de Umbanda e tem por objetivo saudar a senhora dos mares, pedindo a ela proteção e boas novas.

Neste sentido, percebemos a contradição de uma sociedade que lança flores ao mar e pula ondas em 31 de dezembro enquanto produz índices alarmantes de violência contra o povo de axé nos outros 364 dias do ano.

Águas sagradas, purificação, conexão e renascimento

Foto: Arquivo Shutterstock

Embora haja profundas diferenças culturais quando comparamos a relação que os povos africanos estabelecem com a natureza e a relação estabelecida com ela pelos povos europeus, a água como elemento ritualístico não é uma exclusividade das religiosidades afro-brasileiras. Dentro do catolicismo e do protestantismo, por exemplo, a água exerce a função de purificação e renascimento.

O maior exemplo do uso da água em rituais cristãos é o batismo, que é compreendido como um processo de iniciação, uma porta de entrada para a vida em comunhão com a Igreja de Cristo. É preciso passar pelas águas para ser validado como um filho de Deus.

Já nas religiões afro-brasileiras, para além das significações já abordadas neste artigo, a água está presente como elemento base em muitos momentos, como é o caso do ìpàdé, ritual consagrado a Exu, no qual a água tem a função de acalmar e fertilizar as energias de acordo com a necessidade. Outro exemplo é a cerimônia das águas de oxalá, em que a água atua como fonte de purificação da comunidade daquele terreiro.

Como pensar a nossa existência sem a presença das águas? A água é o sangue branco, a grande portadora do axé da vida. A água é a mulher e a força do seu ventre. A água é aquela que nutre, acalma, purifica e refresca a terra, os corpos e os oris[2].

Que os saberes produzidos pelos povos africanos e perpetuados pelas comunidades de terreiro sirvam de referência para toda a sociedade no que diz respeito ao cuidado e a preservação dos recursos naturais. Que a pedagogia dos Orixás, sobretudo, das yabás nos ensine que mesmo aquilo que hoje é abundante, um dia, pode escassear.


[1] Palavra originária do tronco linguístico bantu, que tem significados diversos, tais como “imensidão”, “Deus” e o próprio “mar”. No contexto afro-brasileiro, a palavra “kalunga” ou “calunga” é utilizada para nomear o lugar em que recebe os mortos (cemitério).

[2] “Ori” é uma palavra de origem iorubá e significa “cabeça”.



Nos pântanos de Dithmarschen, na Alemanha, o aumento do nível das águas passa a afetar ainda mais a vida diária das pessoas. Já no sertão brasileiro, o sofrimento se faz presente com secas cada vez maiores e mais duradouras. Ambas as situações, apesar de soarem como diametralmente opostas, são na verdade respostas ambientais, cada qual à sua maneira, a uma mesma circunstância: as mudanças climáticas. Dessas duas extremidades da ferradura, temos a dualidade entre a secura e a profusão, os brasis e as alemanhas, o fluido e o rijo, o físico e o metafísico, o Gênesis e o Apocalipse. Jogando fumaça sobre todas essas bordas, vendando os nossos olhos e permitindo que enxerguemos o que não veríamos com as lentes dos óculos, temos o filme Virar Mar / Meer Werden, do brasilleiro Danilo Carvalho e do alemão Philipp Hartmann. 

Há quem defina como documentário, há quem defina como uma travessia entre a ficção e o documental. No entanto, considerando o quimerismo genético da produção, para abarcar tanto a vertente vérité quanto a vertente onírica, talvez o melhor seja dizer que se trata de uma espinha dorsal documental com filmes dentro de si que muito bebem do imaginário — à semelhança do que faz o cineasta Joshua Oppenheimer, um dos grandes documentaristas da atualidade, em obras como O ato de matar (The act of killing). Ao transitar sem demarcações claras pela pequena cidade alemã que lida com a abundância líquida e o vilarejo cearense que sofre com a sequidão, os realizadores inserem nos vãos dessas realidades brutais algumas seções devaneantes que aumentam o clima de urgência e de fim dos tempos perdurante pela 1h20 de filme, contribuindo para que os recados ambientalistas sejam dados. 

Exemplo evidente disso é a aparição de Jesus — diante do próprio Philipp Hartmann, fazendo aqui as vezes de um técnico de som —, que, no lugar de caminhar sobre a água, afunda humanamente até a cintura. Em resposta a Hartmann, que questiona a sua potestade, Cristo arrebata: “Com tanta poluição causada pelo homem, meu filho, nem mesmo o poder de meu pai consegue fazer com que eu caminhe sobre as águas.”

Nas duas beiradas, conhecemos personagens entregues a uma certa rebeldia, recusando-se a procederem da maneira como dizem que devem proceder. Em Dithmarschen, enquanto deixa de fundo o noticiário que ressoa com um sobressalto que não lhe pertence, um homem segue morando em sua casa de maneira olímpica, mesmo depois de ter recebido a ordem de evacuação. A resistência no Brasil se dá pelas vias da indignação, por pessoas que preferem lutar em prol do açude que salvará suas vidas ao invés de se entregarem à sede, fazendo de tudo para chegarem em quem pode fazer com que a construção aconteça. É assim que as geografias se cruzam não só para lançar bilhetes sobre o estado alarmante do meio ambiente, mas também sobre o corpo social, igualmente afetado e na bica de entrar em colapso: enquanto uns se enchem de água e de solidão, outros se veem esvaziados e forçados a agir.

Os símbolos religiosos são evocados com frequência, mesmo quando não de maneira literal, como é o caso do empoçado Jesus Cristo ou então como a apresentação de uma missa que mostra aos devotos presentes uma animação precária do Jardim do Éden. Amalgamados na beleza e na crueldade da água, as divindades se manifestam nos movimentos incessantes da tormenta, no apoucamento do semiárido, no bater de asas do foguete-garrafa, no tombamento da cachoeira, na calmaria seca sobre a qual o barco descansa. De todos os elementos que constituem o planeta — e constitui nós, seres humanos —, a água é decerto o mais basilar. Não seria um exagero, portanto, como nos mostram Danilo Carvalho e Philipp Hartmann, dizer que a água é a religiosidade mais substancial com a qual podemos ter contato. 

E assistir a este cogitativo Virar Mar / Meer Werden é como ficar de frente para um altar.

Em face de tanta grandiosidade, seja ela raivosa ou misericordiosa, anjos e deuses parecem indecisos: estamos no começo ou estamos no final? Qualquer que seja a resposta, cedo ou tarde viraremos mar. 

Amém.

DesignInterioresMobiliário/objetos

Coleção Água — Amarello Loja

A Água é o tema da nova Coleção da Amarello Loja, apresentando curiosidades, raridades, sabores e objetos genuinamente brasileiros.

A Coleção da Água acompanha o lançamento da Amarello Água – nova edição que fala sobre a jornada pelo mundo líquido que nos cerca, da abundância à escassez. A água nos compõe e compõe o nosso entorno. Sacia nossas sedes, conduz nossos mergulhos, nutre nossas plantas. Dá textura ao ar, dá sentido ao vento, dá corpo às nossas emoções.

As águas são sinais dos tempos, dos movimentos. As do Nilo estão no Tietê, assim como as do Tâmisa estão no Ganges. Os fluxos das águas estão em constante sintonia, organizando todo o planeta.

Fazemos parte de um ecossistema mágico, raro e líquido — que precisamos aprender a observar, amar e preservar. Nessa Coleção, apresentamos processos criativos que falam sobre ciclos e faltas. A água conduz as ideias e os resultados, é um fio condutor dinâmico – e, infelizmente, fragilizado.

Descubra a nossa nova coleção Água aqui. Ou venha ver de perto na nossa loja em São Paulo.

Lindesnes, na Noruega, é conhecida por suas condições climáticas intensas, que podem transitar da calmaria à tormenta várias vezes ao dia. No ponto mais meridional de todo o país, quando ocorre a confluência das correntes marítimas do norte e do sul, fortes tempestades berram com seu aguaceiro; caso contrário, a paz reina (nunca por muito tempo). 

Nesse cenário, emerge uma figura quase cinematográfica que, à uma olhadela rápida, mais parece a baleia encalhada de La Dolce Vita ou então o grande barco de Fitzcarraldo perdido em terra. Ao exame mais minucioso, porém, eis a mais inusitada, e grata, surpresa: nem baleia nem barco, mas, sim, um restaurante.

Inaugurado em 2019 com um projeto que estabelece um diálogo direto com o seu contexto geográfico, concebido pelo badalado escritório de arquitetura Snøhetta, o Under é o primeiro e único restaurante subaquático da Europa. Para além dos cinco metros e meio abaixo da superfície — que vale para apenas uma parte de sua constituição, enquanto a outra está acima do nível da água —, o conceito de coexistência se faz presente em uma proposta intrigante: com o tempo, cada vez mais, a estrutura do restaurante se tornará partícipe do ambiente marinho. Muito embora soe como aquele argumento de marketing pouco realista, a biologia marítima por trás do projeto explica que a rugosidade da casca de concreto age à semelhança de um recife artificial, acolhendo lapas e algas que nela podem habitar.

Há quem diga que, para a humanidade realmente cuidar melhor do meio ambiente, mais pessoas precisam ver, viver e aprender sobre ele — e essa é a ideia central no projeto do Under. 

O cronograma da experiência, sem considerar a trabalhosa viagem até o local, é: primeiro, torcendo para que as borrascas não atrapalhem, você caminha da costa por cima de uma ponte de cerca de 12 metros até a entrada com painéis de madeira do restaurante; ao adentrá-lo, logo cria-se um clima intimista com uma luz que vai gradualmente diminuindo e, uma vez que se chega ao mezanino, você está na companhia de uma janela que apresenta uma majestosa divisão entre ar e mar, bem no limite entre um e outro; e, finalmente, descendo uma grande escadaria, já com as luzes em seu estado mínimo, você se senta em uma mesa cinco metros e meio abaixo do nível do mar, de cara com as maravilhas e os mistérios da vida subaquática.

Um detalhe interessante, digno de nota por dizer muito sobre o que é e o que representa o restaurante, é que, na língua norueguesa, a palavra “under” tem um significado duplo: na mesma medida em que quer dizer “abaixo”, também quer dizer “maravilha”. 

Como metáfora, podemos pensar tanto na experiência quanto no nome como uma grande história de contrastes — entre água e ar, entre o que está acima e o que está abaixo. Com espaço para até 100 pessoas em uma área de cerca de 500 metros quadrados, o Under é o maior restaurante submarino do mundo. Diante dessa eloquência inegável, e dos entornos às vezes calmos e às vezes furiosos, ressalta-se o delicado equilíbrio ecológico entre a terra e o mar, chamando a atenção para a responsabilidade que temos de adotar modelos sustentáveis de consumo.

Se os seres humanos são compostos principalmente de água e que, portanto, queiramos ou não, estamos tremendamente conectados ao ecossistema aquático, estar no Under permite que as pessoas criem um relacionamento mais profundo com todas as formas aquáticas, refletindo sobre a nossa história antiga.

É como o oceanógrafo e documentarista Jacques Cousteau dizia: “O mar, depois que faz valer o seu feitiço, aprisiona aquela pessoa eternamente em sua rede de maravilhas.”

Cultura

Café Amarello: os sabores de São Paulo

A Amarello Barra Funda está localizada na Rua Vitorino Carmilo, 928, em São Paulo.

Gustavo Rozzino é o chef por trás do bistrô TonTon e da trattoria Tontoni, ambos em São Paulo, na região dos Jardins. Tendo passado muitos anos na Europa — em lugares como Montpellier, na França, e Milão, na Itália —, sabe valorizar o que é brasileiro sem deixar de acreditar nas misturas de experiências. Sempre com uma proposta de descomplicar, suas empreitadas aqui e ali buscam os mais diversos públicos e paladares. Sendo assim, com essa alma cigana, não poderia haver alguém mais indicado que Gustavo para pensar nos menus do espaço Amarello Barra Funda, que sempre se transformarão conforme a estação do ano. 

Como uma forma de se reimaginar alguns pratos consagrados pela cultura paulistana, propõe-se — nas palavras do próprio chef — uma “releitura dos ingredientes clássicos”. A ideia é respeitar a essência dessa forte tradição, mas recebendo uma lufada viçosa de ar muito bem-vinda. As opções do cardápio são elaboradas com aquilo que, apesar de o mesmo, foge do padrão de suas composições. Estamos falando de ingredientes como pão de miga, pães artesanais, chocolate belga, café orgânico premiado e muitos outros integrantes do inventário gastronômico de São Paulo que se apresentam aqui com uma pitada de renovação. 

Mudam-se os comos, mas não se mudam os porquês; constroem-se novos caminhos, mas o acolhimento do ponto de chegada é o mesmo.

O caráter transitório e a ânsia por sempre agregar, traços esses tão intrínsecos ao menu e as escolhas que o definem, funcionam como metáforas da própria Barra Funda: a renovação constante que acontece dentro de sua herança cultural; as estações que nunca se assemelham, pois preferem se somar; os sabores de uma São Paulo cuja tradição maior é não ter medo de nunca parar e continuar seguindo em frente em busca do novo. 

“Está sendo uma grande experiência conhecer o bairro de maneira mais profunda nesse momento de renovação”, conta Rozzino. “O espaço Amarello Barra Funda com certeza vai ser abraçado como aquele lugar excelente para ir à tarde, tomar um café, curtir a cidade e um dos pontos mais efervescentes. É mais um pedaço paulistano a ser explorado — e bem nesse quadrilátero onde existem tantos estúdios e ateliês, tanta cultura para gente consumir! É um privilégio.”

E, assim, com um contexto que favorece tanto os encontros que somam quanto o acolhimento do que é familiar, sentimos no paladar uma homenagem autêntica a São Paulo.

Sim, talvez existissem presenças negras poderosas nas telas antes de Sidney Poitier — como o ator, musicista, atleta e ativista social Paul Robeson, que brilhou no começo do século XX em tudo que se meteu a fazer —, mas, até Poitier aparecer, não havia em toda Hollywood um protagonista negro que encabeçasse as produções com as maiores bilheterias, capazes de dar inveja a qualquer James Stewart ou John Wayne. Peguemos o ano de 1967 como referência: com Adivinhe Quem Vem Para Jantar e Ao Mestre, Com Carinho, o ator protagonizou dois dos filmes que mais arrecadaram naquele no ano — além de, claro, estrelar ao lado de Rod Steiger o vencedor do Oscar de Melhor Filme, o clássico No Calor da Noite. A euforia incontida com a qual subiu as escadas para receber a estatueta honorária da Academia, em 2002, deixa claro que, quando falamos seu nome, falamos de alguém cujo impacto ultrapassa gerações e vai além do cinema.

Nas entrevistas que formam a espinha dorsal de O Legado de Sidney Poitier, documentário assinado pelo cineasta Reginald Hudlin, Poitier compartilha suas origens em Cat Island, nas Bahamas. Depois de nascer prematuramente, com apenas sete meses de gestação, seu pai estava prestes a enterrá-lo em uma caixa de sapatos, pronto para acabar com o sofrimento do bebê. Foi sua mãe que, num ato de desespero, o convenceu a mudar de ideia, indo atrás de um vidente, que garantiu ao casal que, apesar das dificuldades iniciais, seu filho mais novo teria um futuro brilhante. “Não esperavam que eu sobrevivesse” é a primeira frase que ouvimos ecoar do ator, que nos deixou em janeiro de 2022, com 94 anos de idade. Saber que deveria ter morrido em seus primeiros meses de vida o levou a viver com entusiasmo.

Advinhe Quem Vem Para Jantar (1967), de Stanley Kramer. Sidney Poitier em cena com Spencer Tracy, Katharine Hepburn e Katharine Houghton.

No filme da Apple TV+, é ele, mais Sidney do que Poitier, que conta a sua própria história. Ao lançar mão de imagens históricas e do forte voice over proporcionado pelo ator — fruto de uma entrevista de mais de sete horas que a produtora do filme, Oprah Winfrey, conduziu com ele em 2012 —, Hudlin faz com que a narrativa seja sobre o homem, e não apenas sobre seus feitos. Por mais impressionantes que sejam os capítulos passados em revista, tudo ganha mais vida e intimidade relatados pela pessoa que os viveu. É guiado pela sua voz, marca registrada da sua carreira — impossível não lembrar dele vociferando “They call me Mr. Tibbs!” —, que temos contato com sua história pré-holofotes, vivendo sem eletricidade nas Bahamas. É assim que descobrimos como, num ambiente em que estava cercado de pessoas negras, aquele pequeno menino cresceu sem se importar com a cor de sua pele; e é assim que nos condoemos ao saber como essa realidade caiu por terra quando, na adolescência, se mudou para os Estados Unidos.

No Calor da Noite (1967), de Norman Jewison. Sidney Poitier em cena com Lee Grant.

A cor de sua pele, é verdade, importava. E importava muito. Contra uma indústria que tinha o costume de bater as portas na cara de quem quer que desafiasse o seu establishment, construiu uma invejável carreira numa Hollywood dominada por brancos. Quebrando todas as barreiras que viu pela frente, viu o início de sua ascenção pelos meados de 1955 e, já em 1964, se tornou o primeiro ator negro a ganhar o Oscar de Melhor Ator por sua atuação em Uma Voz nas Sombras, filme de Ralph Nelson em que Sidney interpreta um trabalhador que por um acaso acaba num convento de freiras convictas de que ele foi enviado ali por Deus para construir uma capela. O auge veio em 1967, com um rol de marcos nunca antes vistos, por qualquer ator ou atriz.

Em ensaio para a Vanity Fair, em 2014. Créditos: Larry Busacca.

Mas há quem questione: afinal, qual foi o público que Sidney Poitier encantou? Greg Tate, crítico cultural que aparece no documentário, diz que “seus filmes não foram feitos para negros”. Sua linha de raciocínio é a de que as narrativas dos filmes que Poitier protagonizava eram feitas para o público branco, muitas vezes atenuando cortes profundos e mastigando demais questões complexas de serem engolidas. No entanto, em linhas gerais, O Legado de Sidney Poitier argumenta que esses filmes foram pioneiros em retratar a humanidade das pessoas negros. Era a revolução possível de então e representava pequenos passos para um futuro mais diversificado. 

De um jeito ou de outro, a verdade é que há filmes que não foram bem recebidos pelo público negro. Em particular, há uma cena do filme Acorrentados, de 1958, que até hoje ressoa com polêmica. Dirigido pelo cultuado diretor Stanley Kramer, acompanhamos a história de dois prisioneiros fugitivos, um negro (Poitier) e outro branco (Tony Curtis), que, acorrentados um ao outro, tentam escapar de seus perseguidores e de suas próprias diferenças. Levanta-se debates realmente corajosos à época, em especial para a indústria conservadora em que o filme acontecia, mas, ao fim dos quase 100 minutos do filme, por motivos que a trama assenta bem aos espectadores, Poitier dá as costas à sua própria liberdade ao pular de um trem para ajudar Tony Curtis. 

Cerimônia dos prêmios Oscar de 1964. Gregory Peck, French actress Annabella, Sidney Poitier e Anne Bancroft.

Embora o documentário explore a recepção polarizadora de Poitier dentro da comunidade negra, especialmente nos já citados Acorrentados e Adivinhe Quem Vem Para Jantar, ele o faz apenas fugazmente. O próprio ator fala sobre sua reação a um artigo do jornalista Clifford Mason intitulado Por que o público branco tanto ama Sidney Poitier?, publicado no The New York Times em 1967. Nele, Mason descreve “a síndrome de Sidney Poitier: um cara legal em um mundo totalmente branco, sem esposa, sem namorada, sem mulher para amar ou beijar, ajudando o homem branco a resolver o problema do homem branco”.

Acorrentados (1958), de Stanley Kramer. Em cena com Tony Curtis.
Em 2009, Sidney Poitier recebe a Medalha Presidencial da Liberdade do então presidente Barack Obama. Créditos: J. Scott Applewhite.

Se há alguma verdade na acusação de que seus personagens eram excessivamente perfeitos para serem seguros para o público liberal branco, o ator e ativista não parece perfeito da maneira como é retratado em O Legado de Sidney Poitier, que faz com que se reconheça, pela força de sua narrativa, por que a sua história da vida foi, e ainda é, tão importante. Desde a invenção do cinema, as imagens degradantes de pessoas negras eram constantes — lembram do seminal O Nascimento De Uma Nação, de D.W. Griffith, até hoje visitado por estudantes de cinema? 

Pois bem, Sidney Poitier destruiu essas representações com páthos, intensidade e uma vontade de transformar. Filme após filme, mudou o curso da história de Hollywood e, a partir daí, mudou também um pouco da história do mundo.

Mais do que nunca, qualquer tipo de produção que respeita o seu próprio tempo é algo valioso, digno de admiração. Imagine só, nos dias de hoje, conseguir pôr em prática a habilidade de ir na contramão do imediatismo que nos convoca, sem tato e a toda hora, para a tela do celular. Sentir na mão um tecido ou uma renda parece um nado corajoso na direção oposta à maré da atualidade, mas cada braçada desse exercício de bravura traz como recompensa um emaranhado composto pelos fios da tranquilidade e, num ritmo apaziguado, a vida se torna palpável — pelo menos por ora. 

Helena e Maria.

Como um contraste necessário ao mundo frenético de hoje, eis Ómana, uma coletividade de pesquisa e design que se movimenta em nome da valorização do artesanato brasileiro, sobretudo do trabalho de mestras rendeiras e bordadeiras que dominam os ofícios mais preciosos. O projeto foi idealizado pela antropóloga e designer Helena Kussik, que desde 2010 está envolvida com pesquisas relacionadas ao fazer manual, tendo especial interesse nas expressões têxteis.

São 3 as vias para a realização do seu objetivo: 1 — o registro, que, muitas vezes, acaba se perdendo por falta de recursos e meios, impedindo a construção de catálogos e inviabilizando o alcance de trabalhos; 2 — a difusão de saberes, pois, a partir da irradiação das habilidades dessas artesãs, a luz da inspiração chega nas próximas mãos e o fazer têxtil é passado adiante; e 3 — a experimentação técnica, que dá fôlego ao design participativo e à criação de produtos únicos, oriundos de vivências distintas.

Com isso em mente, dissecar o nome fica mais fácil: “Ómana”, por incrível que pareça, não é a deusa egípcia da costura ou qualquer coisa que o valha. Na verdade, o nome vem da linguagem popular, em que “ó, mana” é usado nos quatro cantos do Brasil como um despretensioso começo de frase, como um vocativo cheio de respeito informal e até como uma exclamação de surpresa. Pois bem, é fato que o nome não é de deidades advindas de outras culturas. No entanto, há alguns anos, desde que o projeto começou a acontecer, ele pode ser tido como a alcunha conferida às divindades brasileiras do artesanato. 

Que fique a dica para os dicionários:

ó.ma.na: nome feminino

1. Deusas brasileiras da construção têxtil e seus adornos;
2. Espaço de pesquisa e design que visa a valorização dos têxteis artesanais brasileiros, suas histórias, territórios e mestras.

Para entrelaçar ainda mais vivências, Amarello & Ómana se juntam para a feira Coma Bem, Viva Melhor. Os belos propósitos de Helena e seu projeto se traduzem aqui numa luminária em renda renascença e vime, criada pelas rendeiras da Associação de São João do Tigre — Cariri Paraibano. 

Luminário Caju & Junco para a Coleção Coma Bem, Viva Melhor

A renascença é uma renda que se forma pela ligação do lacê, fitilho que serve de base para os pontos da linha e da agulha. Comumente, os desenhos que estampam a renda renascença são de cunho pessoal — arabescos, flores e folhas, que são passados às artesãs por suas bisavós, avós, mães e tias. Aqui, um a um, os pontos constroem um tecido cujos detalhes compõem graciosamente cajus e folhas do cajueiro, num desenho delicado elaborado por Aline Vilhena.

Esse fazer artesanal evoca atributos pacatos, avessos à agitação, como a delicadeza, a paciência e a destreza manual. Rendar, no fim, é um jeito de respirar. É a vida feita à mão.

Da série “Your reservation is confirmed” (2018 – 2019).

Hoje, mais do que nunca, muito se escreve sobre a predominância da perspectiva masculina nos protótipos artísticos de qualquer sociedade, especialmente sobre como isso faz com que se normalize a representação flanqueada da mulher como um tema subjacente, sendo raramente tomada como foco. Não chega a ser necessária uma análise mais detalhada para nos depararmos com imagens de homens fazendo acontecer, no auge do estoicismo, e imagens de mulheres… aparecendo. A noção, afinal, está disseminada por toda a cultura visual que conhecemos — mas, por mais enraizada que esteja a questão, plantar uma nova narrativa é sempre possível e, onde quer que aconteça, representa o ensejo de uma nova semeadura.

“My Tinder Boys”

Prova disso é a artista Yushi Li, nascida na província de Hunan e hoje uma moradora de Londres, que se descreve como uma “mulher chinesa que tira fotos de homens ocidentais nus”. Para a fotógrafa, o interesse em se debruçar sobre a questão dos olhares masculino-femininos e dos corpos de desejo começou com sua série My Tinder Boys(2018). Tirando inspiração de imagens de mulheres posando eroticamente com comida, foi à cata de homens no Tinder para, com eles, parodiar esses registros gastro-eróticos, misturando o modus operandi dos usuários do aplicativo ao seu propósito final de questionamento à dicotomia de gêneros. No processo, começou a investigar mais a fundo a dinâmica de poder inerente às relações do olhar através do trabalho de diferentes teóricos. 

Still do programa “Ways of Seeing”, exibido pela BBC em 1972.

Entre os materiais estudados, o que mais lhe causou impacto foi o clássico programa de 4 episódios da BBC, transformado pouco depois em um livro homônimo, Ways of Seeing (1972), escrito e apresentado pelo crítico de arte John Berger. Para além do objetivo da série, cujo epicentro era a explicação esmiuçada e acessível de conceitos que esclarecem o porquê de nossas experiências visuais nunca serem puras, Berger serviu de base para muitas argumentações feministas surgidas a posteriori — sendo a mais notável de Laura Mulvey, que elaborou forte crítica às representações tradicionais da personagem feminina no cinema. Tal influência se deu devido, em especial, ao segundo episódio de Ways of Seeing, em que, a partir de pinturas de séculos passados, o crítico-teórico demonstra com maestria como as mulheres são cruelmente treinadas para se tornarem o objeto passivo do olhar masculino. 

Essa é uma das chaves para se entender os caminhos que Yushi Li seguiu depois de My Tinder Boys. Por serem provocações que oferecem alternativas ao binarismo, rompendo a ideia do olhar “masculino” ou “feminino”, com essas fotografias coloca-se em cima da mesa não apenas novas maneiras de se olhar para um determinado tema, mas novas maneiras pelas quais esses temas são vistos. É um desafio à representação clássica de homens ativos e mulheres passivas, objetificadas amiúde na história da arte. Em muitas pinturas a óleo europeias, sobretudo as de nus femininos, podemos ver que há uma engessada e irreparável dinâmica de gênero que faz da mulher nua a personificação do desejo erótico do espectador masculino. 

Em Paintings, Dreams and Love (2018 – 2020), Yushi Li pega essa lógica para desconstruí-la e dobrar suas pontas — a série propõe uma releitura, com intensa presença da atualidade, de cenas de pinturas clássicas nas quais, na maioria das vezes, as pessoas do sexo feminino são retratadas em posição de subserviência. Nas imagens da artista, estoura em nossa cara mais do que os papéis trocados: vemos um novo traje de representação corporal, uma camada pubescente que berra erotismo, poder e transformação. Na pintura O pesadelo (1781), de Johann Heinrich Füssli, num plano central temos uma figura feminina deitada com tanta dramaticidade quanta sexualidade, uma fusão que troveja pathos; num plano acima, tomado por sombras, vemos um ímpio (figura herege da Bíblia) e um cavalo, que, presume-se, sejam ilustrativos do sonho que acomete aquela mulher extremamente responsiva a esse mundo onírico masculinizado. Na recriação de Yushi Li, o homem vira a figura feminina, com as mãos quase tocando uma extensão de tomada, e a própria autora vira o ímpio, tomando para si o papel de domínio: mais do que papéis trocados, uma reflexão sobre os olhares que definem as temáticas.

“The_Nightmare”, de Johann Heinrich Füssli (1781)
“The Nightmare Copy”, de Yushi Li

Algo similar acontece com a releitura de A morte de Acteon (séc. XVI), de Ticiano — Yushi Li apropria-se do papel de Diana e caça por si só o homem nu. 

Com O Sonho da Mulher Pescadora (2018), recriação da xilogravura O Sonho da Mulher do Pescador (1814), de Katsushika Hokusai, a fotógrafa mostra toda sua força sem sequer dar as caras. Opta por uma montagem que conta com somente uma figura humana, subtraindo-se fisicamente da representação, mas deixando ali o seu olhar mais presente do que qualquer outro elemento do registro.

Nos famosos ensaios de Ways of Seeing, John Berger escreveu: “Homens olham para mulheres; as mulheres se vêem sendo observadas. Isso determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres, mas também a relação das mulheres consigo mesmas. O inspetor da mulher, contido nela mesma, é masculino: a mulher é sempre fiscalizada. Assim, ela se transforma em um objeto — e, mais particularmente, um objeto para ser visto”.

Ao assumir no seu trabalho um modo ativo, no lugar de simplesmente inverter os papéis de gênero, a fotógrafa intervém nas representações do desejo erótico que conhecemos, colocando o dedo nas feridas tão abertas e espalhadas pelos corpos sociais e pessoais. 

Dentro das próprias regras, Yushi Li encontrou a temática de si mesma.

Quem imaginaria que as vitrolas voltariam a cantar alto com o imponente ressurgimento dos LPs? Quem poderia, então, imaginar que as livrarias megastores perderiam quase todo o seu mega espaço e, após de anos de preterimento, livrarias de bairro veriam mais uma vez a luz do sol? Em movimentos cíclicos, muitas vezes contra intuitivos, a modernidade tecnológica pode agir de maneira curiosa. O fenômeno, talvez, se dê pelo fato de estarmos diante de trocas de marcha rápidas e categóricas, já que elas despertam, naturalmente — e, ao mesmo tempo, paradoxalmente —, um sentimento fortíssimo de nostalgia. Não se negam os avanços, mas também não se refreiam as comichões que nos fazem querer resgatar épocas em que os reinados eram mais duradouros e os pés pareciam se fincar em solos mais estáveis. 

Falando em marchas e frenagens, sabe quem também está voltando com todo o esplendor do seu apogeu? O Expresso do Oriente.

Graças a novos investimentos em cima de linhas ferroviárias de alta velocidade, algo que resultou em mais conexões e serviços aprimorados, nos últimos anos, para surpresa de alguns, os trens tornaram-se o transporte de escolha de um número crescente de viajantes, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Entre os projetos que surgiram para atender a demanda, temos o glorioso relançamento do Expresso do Oriente — não como a linha em atividade Venice-Simplon-Orient-Express, que o homenageia, mas como, de fato, o original. O trem que mudou para sempre as viagens de luxo e virou figura carimbada na cultura pop está sendo ressuscitado pela empresa Accor.

Fora de operação desde 1977, depois de décadas o ícone ferroviário se prepara para reviver suas viagens opulentas, embora ainda sem confirmar itinerários. O trem reformado, como tantas outras manifestações oriundas da nostalgia que se transforma em oportunidade mercadológica, não medirá esforços para misturar épocas, fazendo com que o clima de mais de 100 anos atrás encontre os confortos contemporâneos. Fazendo jus à sua própria mitologia, os 17 vagões, que costumavam formar o que era conhecido como Nostalgie-Istanbul Orient-Express, tiveram uma redescoberta digna de cinema.

Arthur Mettetal, historiador com foco em história econômica e patrimônio industrial, em 2015 começou uma busca para inventariar o que restava do Expresso do Oriente para a SNCF, serviço nacional de trens da França. Durante sua pesquisa, encontrou um vídeo de um trem que se assemelhava ao Nostalgie-Istambul postado anonimamente no YouTube. Depois de analisá-lo minuciosamente à procura de pistas sobre onde afinal ele poderia estar, utilizando-se de uma combinação de Google Maps e outros recursos de 3D, localizou-o na fronteira entre a Bielorrússia e a Polônia.

Mettetal, então, viajou para Varsóvia, com a esperança de encontrar os lendários vagões de uma vez por todas. No fim de sua jornada, que contou também com a presença do vice-presidente do Expresso do Oriente, Guillaume de Saint Lager, descobriu que os vagões, parados naquele ponto ermo há cerca de 10 anos, estavam surpreendentemente bem preservados. Alguns deles, inclusive, ainda tinham os emblemáticos painéis de vidro Lalique. Após dois anos de negociação, o trem acabou sendo escoltado de volta à França.

Para sua respeitosa restauração, Saint Lager e equipe entraram em contato com o arquiteto Maxime D’Angeac, que já disse entender que se trata de um trem além do tempo e da moda. A partir de 2024 — não coincidentemente em tempo para estar funcionando no período dos jogos olímpicos de 2024, cuja sede será Paris —, o Expresso do Oriente estará mais uma vez em atividade.

É uma figura mítica que volta para conduzir viagens necessárias, atravessando barreiras temporais e caminhando por trilhos que contribuem para as definições de nós enquanto produtores de cultura, não somente produtores de tecnologia. 

Vamos a todo vapor.

É interessante pensar nos fatores que fazem com que as amizades surjam e sejam cultivadas. Em uma visão simplista, podemos dizer que, para uma amizade acontecer e ser mantida, basta jogarmos na equação dois espíritos que se dão e o resto há de acontecer naturalmente. Mas sabemos que as duradouras e verdadeiras são raras, quase atos de resistência à rolagem intempestiva dos ciclos da vida, sendo necessário bem mais do que isso para sobreviverem. Os obstáculos, no fim, são muitos, mas Joan Miró e Alexander Calder, ainda que com tanto mar se esforçando para entrar pelos vãos e querendo apagar as chamas do companheirismo, bateram de frente com as circunstâncias adversas e, a partir de suas sensibilidades complementares, mantiveram uma amizade que gerou um dos diálogos artísticos mais interessantes da história.

Alexander Calder e Joan Miró.

Dos nomes que moldaram o cânone da arte no século XX, Miró e Calder estão no panteão, ao lado de Salvador Dalí, René Magritte e mais uma seleta companhia. Na relação entre eles, a despeito de serem dois dos artistas mais talentosos de sua geração, vaidades foram jogadas para escanteio e a admiração mútua abriu espaço para uma influência que era tão forte quanto recíproca. Embora de origens distintas — Miró, de Barcelona, na Espanha; Calder, da Pensilvânia, nos Estados Unidos —, encontraram-se ao acaso em estabelecimentos parisienses, no período entre guerras, e dali adiante não deixaram de ter contato. Assim permaneceram até a morte de Calder em 1976.

Contexto

O estadunidense Alexander Calder e o espanhol Joan Miró se conheceram no ano de 1928, em Paris, nos laivos criativos de uma cidade que acolheu tantos outros artistas importantes, onde ambos tinham ateliês. A gênese do relacionamento, portanto, se deu no calor de um período crucial para o desenvolvimento da arte moderna. 

Durante os anos 1930, o cenário sociopolítico global foi marcado pela tensão e pelo medo provenientes dos conflitos internacionais, que, no final da década, desembocaram na Segunda Guerra. A Espanha acabara de passar por uma guerra civil que deixou o país aos frangalhos e os EUA viviam a maior crise financeira da sua história. Nesse ambiente instável, artistas tiveram papel central na transmissão de ideias culturais e políticas — foi dessa maneira que tanto Calder quanto Miró puderam investigar e expressar os seus eus internos.

Estilos

Miró desenvolveu um registro preciso, seco e brutal, uma tríade que se irradia com formas orgânicas somadas a imagens achatadas. De tão nítidas, suas linhas chegam a arrepiar a nuca de qualquer espectador, propondo uma espécie de encontro com aquilo que não queremos enfrentar, um momento de fascínio que não permite o desviar de olhos mas que suscita as mais fortes palpitações. Munido de um automatismo que leva, inclusive, a leituras de símbolos sexuais, percorreu temáticas ligadas ao mundo onírico e cósmico.

“Dançarina” (1925), por Joan Miró.

Alexander Calder, por sua vez, resgatando as raízes da formação em engenharia, elaborou os seus célebres e altamente influentes móbiles. Ao contrário da impetuosidade advinda das linhas de Miró, o norte-americano nos tira para dançar, fazendo da leveza a grande protagonista do seu palco. Com olhar direcionado aos futuristas e construtivistas, criou objetos incorporando fios e formas abstratas que flutuavam no ar em perfeito equilíbrio — marca registrada de sua prática. Curiosamente, muito embora estejamos falando sobre sensações díspares, os princípios de Calder vão muito de encontro aos do companheiro espanhol, como o uso de cores puras e formas abstratas. Há quem descreva esses móbiles como “uma manifestação viva do trabalho de Miró”.

Alexander Calder ao lado de uma de suas esculturas. Imagem: Bettmann Archive / Getty Images

Trabalho conjunto e a série Constelações

Ao longo da década de 1930, fizeram muitas exposições coletivas. Entre elas, uma ordenada pelo governo republicano espanhol, que demandou que os artistas criassem um conjunto de novas obras para o Pavilhão da Espanha na Feira Mundial de Paris, onde, em 1937, suas obras foram expostas ao lado da Guernica de Picasso.

Alexander Calder no pátio do Pavilhão Espanhol na Exposição Internacional de Paris (1937). Imagem: Christian Herdeg / Hugo Paul Herdeg

Prova maior do alinhamento espiritual dos dois é o conjunto de obras Constelações, realizada simultaneamente — mas separadamente — durante a Segunda Guerra Mundial, sem que qualquer comunicação acontecesse entre eles. Para Calder e Miró, a série representou uma maneira de explorar pensamentos internos, por meio de suas próprias experiências pessoais durante a guerra. Chega a ser tocante captar as tantas similaridades que se evidenciam, ainda que os estados emocionais se distinguem aqui e ali conforme o momento de cada um. A coreografia das produções de Calder encontram um eco ainda mais poderoso na tourada elegante de Miró: a afluência das linhas parece o continuum de uma amizade feita de sonhos, poeira espacial e desejos cadentes, indo cada qual em direção ao seu próprio universo. 

À esquerda, “L’oiseau-migrateur” (1941), de Joan Miró; à direita, “Constellation” (1943), de Alexander Calder.

Relação com o Brasil

A partir de 1948, Alexander Calder começou a frequentar o Brasil, onde criou grandes amizades, como, por exemplo, os fortes laços que criou com o escritor Mário Pedrosa e o arquiteto Henrique Mindlin. Chegou a realizar grandes exposições no prédio do Ministério da Educação e Saúde (MES) e no Museu de Arte de São Paulo (MASP). Joan Miró, apesar de nunca ter aterrissado sobre territórios brasileiros, desenvolveu sua ligação com o Brasil através da amizade que tinha com um poeta, à época jovem, que morava em Barcelona, chamado João Cabral de Melo Neto. Entre os anos de 1948 e 1950, aliás, João Cabral escreveu o livro Joan Miró e, no ano seguinte, o pintor realizou uma série composta por duas xilogravuras e uma estampa exclusiva para a obra.

A mostra Calder + Miró, em cartaz na Casa Roberto Marinho até 20 de novembro, no Rio de Janeiro, conta um pouco sobre a ligação entre eles e suas relações com o Brasil, nos levando em uma fascinante viagem pelos desdobramentos dos dois corpos de trabalho na cena internacional e nacional. 

Que tanto aqui quanto em qualquer outro lugar do mundo essa amizade possa seguir rendendo frutos palpáveis que nada têm de surreais. Se as circunstâncias nem sempre estiveram do lado dos encontros entre Alexander Calder e Joan Miró, a intensidade e o afeto fizeram questão de se sobrepor a elas enquanto ao menos o tempo remava a favor. 

#42ÁguaCulturaSociedade

Eu tenho medo de chuva: desastre natural ou racismo ambiental?

por Pâmela Carvalho

Benjamin Chavis durante um protesto de 1983 contra o despejo de lixo tóxico. Foto de Ricky Stilley.

Eu tinha uns doze anos. Estava passando uma novela de que eu gostava muito, não me esqueço. Estávamos eu, meu irmão e minha irmã – ela, três anos mais velha que eu e ele, com uns cinco anos de idade. Nossos pais estavam retornando do trabalho.

Começou a chover. A chuva começou fininha. Mas depois engrossou. Chuva, vento, raios. Elementos da natureza em seu estado puro. Era muita água que caía do céu. E essa água começou a não escorrer pelos bueiros da Rua Silva Vale. Rapidamente a rua onde eu morava virou um rio. Um rio sem margens. E a água foi tomando todos os espaços. Entre eles, o quintal da minha casa. E depois, a casa por inteiro. 

Quando a água começou a entrar simultaneamente pelo banheiro e pela sala, eu e minha irmã começamos uma maratona de recolher a água com baldes. Foram muitos baldes. Mas não havia baldes que dessem conta da força da água que invadia todos os cômodos. Então decidimos parar de lutar contra a natureza. Concentramo-nos em retirar alimentos, documentos e itens domésticos das partes baixas da casa, colocando-os nos lugares mais altos. Eram três crianças dentro de casa e dentro da água. Em um dado momento, eu e minha irmã percebemos que, como a água estava subindo muito, nosso irmão mais novo estava correndo o risco de, em algum momento, ficar submerso. Ali percebemos que, mesmo estando dentro de nossa casa, corríamos risco. Entregamos nosso irmão para nossa avó, que morava no mesmo terreno, em uma casa mais alta. E retornamos para tentar salvar mais algumas coisas. Nossos pais ficaram presos dentro do ônibus uma vez que a cidade do Rio de Janeiro entrou em estado de calamidade. Muitas horas depois, eles chegaram. Passamos a madrugada e os dias seguintes lavando os cômodos, jogando parte de nossos brinquedos, comidas, itens pessoais e afetos no lixo. E tentando calcular o estrago.

Este episódio me marcou. Ele ocupa um espaço especial nas gavetas de minha memória. Antes dele, eu já tinha passado por algumas experiências desafiadoras com relação à água. Mas essa me colocou de frente para a possibilidade concreta de perder muita coisa. Inclusive a vida de pessoas muito queridas. Depois disso me tornei uma adolescente e posteriormente uma adulta que tem muito medo de chuva. Onde quer que eu esteja, se vejo o tempo nublar, me arrepio de medo. Automaticamente as gavetas de minha memória se abrem e saem delas aquela criança dentro da água vendo seus brinquedos boiando e tentando se acalmar pensando “o jornal diz que isso é um desastre natural”.

Já adulta, morando em uma casa no terceiro andar, tive a sensação de segurança com relação à chuva, pelo menos quando eu estivesse em minha residência. Porém, num dia de tempestade, a água começou a entrar pela telha da cozinha. Entre pegar baldes, potes e panos de chão, a criança de doze anos pulou novamente da gaveta da memória, com todo o seu medo de chuva. Novamente para acalmá-la pensei “Isso é um desastre natural.”

Cresci. Comecei a observar que, enquanto a água invadia a minha casa pelo quintal ou pelo teto, outras pessoas continuavam tendo seus lares secos e bem cuidados. Percebi também que, enquanto morros, encostas e favelas desmoronavam em épocas de chuva, as áreas consideradas nobres da minha cidade em sua grande parte mantinham-se intactas mesmo após os temporais. Percebi que não era todo mundo que tinha medo de chuva. Percebi que talvez os desastres naturais não sejam tão naturais assim.

As perspectivas eurocêntricas de mundo e sociedade separaram homem de natureza colocando o primeiro como superior. Ele deveria dominar a natureza e colocá-la a seu serviço. Isso cria uma série de convulsões socioambientais que trazem severas consequências.

Observando esse quadro em contexto global, o ativista pelos direitos civis das populações negras nos Estados Unidos, Benjamin Chavis, lança mão do termo “racismo ambiental” em 1981, num contexto de observação das relações entre áreas de despejo de resíduos tóxicos com locais majoritariamente ocupados por pessoas negras estadunidenses. 

Em 1993, é publicado o livro “Confronting environmental racism: voices from the grassroots” (“Confrontando o racismo ambiental: vozes do movimento de base”), organizado por Robert D. Bullard, intelectual afroamericano que cunhou o termo justiça ambiental. No livro, Chavis define racismo ambiental como:

“Discriminação racial na elaboração das políticas ambientais, aplicação e regulação de leis, o ataque deliberado às comunidades de cor por meio de instalações de resíduos tóxicos, a sanção oficial de venenos e poluentes cuja presença causa risco de vida para nossas comunidades e a história da exclusão de pessoas de cor da liderança dos movimentos ecologistas.”

De modo global, podemos estranhar algumas questões que são colocadas como norma. Os países do norte do globo terrestre, historicamente tecem relações desiguais com os países do hemisfério sul. Exploração de mão de obra, despejo de resíduos tóxicos, exploração desmedida de recursos naturais, falta de paridade nos espaços de tomada de decisão são algumas das questões que pautam as relações ambientais no âmbito global entre países do norte e do sul. Isto não é natural. É fruto de uma lógica colonial baseada em racismo, desigualdade e escravidão, que se reproduz até o tempo presente.

Quando falamos de Brasil, as relações não são muito diferentes. Concentração de poder e de renda, falta de escuta com a natureza, exploração da vida e mão de obra de populações negras, indígenas, faveladas, ribeirinhas e periferizadas marcam políticas de injustiça e racismo ambiental. Quando a ganância e o racismo se chocam com os limites de uma natureza explorada até sua última gota, emerge o termo “desastre natural” para justificar tragédias anunciadas como as de Mariana e Brumadinho. 

No livro “Os Indígenas e as Justiças no Mundo Ibero-Americano (Sécs. XIV – XIX)”, o intelectual Ailton Krenak contribui com o artigo “O insustentável abraço do progresso ou era uma vez uma floresta no Rio Doce” (2019) e expõe de forma aprofundada as relações de desigualdade ambiental:

“Para maior segurança, ainda difundiram, por todos os meios, que esta região era ocupada pelos bravos e arredios Botocudos, descritos como temíveis canibais. Assim foi justificada a guerra que moveu a Coroa portuguesa contra os povos que formavam a nação dos Botocudos, guerra justa decretada por D. João VI quando chegou com a corte para se estabelecer no Rio de Janeiro em 1808. A vida destes povos nunca mais foi a mesma com a implantação de quartéis nos afluentes do dos rios Doce, São Mateus e Jequitinhonha, formando aldeamentos e postos de controle da movimentação dos índios, que mesmo nas matas eram perseguidos e arregimentados para o trabalho forçado nas novas colônias que avançavam sobre a região.”

A disseminação de ideias racistas sobre populações nativas e negras se perpetua nos dias atuais, sendo utilizada para justificar expropriação de terras e genocídio. Quando olhamos para os números das já citadas tragédias brasileiras percebemos que em 2015, 84,5% das vítimas do rompimento da barragem em Mariana (MG) eram negras. Além das mortes imediatas, a empresa Samarco ainda foi responsável por poluir os rios com rejeitos da mineração e intoxicar peixes e diversos animais do ecossistema com lama tóxica. O povo indígena Krenak da região, bem como a população ribeirinha sentem os impactos do desastre até hoje.

Em 2019, na ocasião do rompimento da Barragem de Brumadinho (MG) 58,8% dos 259 mortos e 70,3% dos 11 desaparecidos também eram pessoas não brancas. A ação, de responsabilidade da Vale, até hoje impacta a população local, em especial o povo Pataxó. A injustiça ambiental nos retira formas de subsistência e nos deixa marcas que resistem ao tempo. Um aspecto fulcral do racismo ambiental é a prevalência do lucro em detrimento da vida. Em especial, de vidas não brancas.

Os episódios narrados por mim no início deste texto ocorreram em casas situadas em favelas, ou bairros periferizados. A casa da Rua Silva Vale (Cavalcanti, Rio de Janeiro) fica às margens de um rio, que foi transformado em valão. Construiu-se uma linha de trem nas margens, aterrou-se grande parte e acreditou-se que o poder público não precisaria fazer um acompanhamento contínuo do fluxo de águas, esgotos e desenvolvimento populacional do território. Rio é vida. Água é vida. E vidas precisam ser cuidadas. A água que entrava na minha casa era a água da chuva, mas era também a água do rio que foi forçado a caber em um lugar que não comportava sua imensidão. Como cantam as rappers Tasha e Tracie, “água não se dobra, ela desliza.”

O relato da água que entra pelo teto também é fruto da falta de investimento em saneamento e moradia digna para moradores e moradoras de favela. O censo de 2010 mostra que das 616.814 casas em favelas do Rio de Janeiro, 78% estariam ligadas à rede geral de esgoto ou águas pluviais; 91% à rede geral de distribuição de água e 96% aos serviços de limpeza. Porém, além de termos um hiato de dados por conta dos boicotes à pesquisa nos últimos anos no Brasil, a realidade mostra que esses dados robustos não condizem totalmente com a realidade das favelas e periferias. O fluxo de esgoto não consiste em apenas “dar a descarga” e se livrar dos dejetos, por mais que essa seja a compreensão do senso comum e que se reflete no censo. O fluxo de água e de esgoto vai muito além disso, e o que vemos nas favelas é que muitas residências ainda não têm acesso a uma rede completa de esgoto, uma vez que esse é muitas vezes despejado em locais inadequados, como valas, rios, fossas, lagos ou mar. O racismo ambiental cria uma esfera de desinformação e pouca acessibilidade aos mecanismos de poder e incidência, ao redor de pessoas não brancas e empobrecidas.

Rio, apelidado de Valão no Parque União (Conjunto de Favelas da Maré – Rio de Janeiro). Acervo pessoal.
Rio, apelidado de Valão no Parque União (Conjunto de Favelas da Maré – Rio de Janeiro). Acervo pessoal.

Por fim, a meu ver, um dos aspectos mais cruéis do racismo ambiental: a sensação de morte ao ter contato com um elemento que, em sua essência, simboliza a vida – a água. Algumas correntes teóricas acreditam que os primeiros sinais de vida em nosso planeta surgiram na água. Enquanto seres humanos, desenvolvemo-nos no período de gestação dentro do ventre da mãe, imersos em água. Mesmo fora do ventre, mais de 70% do corpo humano se mantém sendo água. Em diversas religiões, a água representa o nascimento do indivíduo dentro daquele grupo e cosmogonia. Desde os primeiros vestígios de história da humanidade, água é sinônimo de vida. Que um dia possamos superar as barreiras físicas e subjetivas construídas pelo racismo cultural, reconectar-nos de forma honesta com a natureza e que, em nossas gavetas da memória, possamos perder o medo da chuva.

“Basta conocerla un poco para comprender que el agua está cansada de ser un líquido.”
Peripecias del agua – Julio Cortázar

Um líquido inodoro, insípido e incolor. Ao mesmo tempo, vital. A história da água se confunde com a própria história da vida na Terra. Teriam as primeiras células surgido de uma “sopa primordial”, um líquido altamente concentrado em matéria orgânica que foi aquecido pela radiação solar a ponto de, gradualmente, gerar seres vivos? Ao que tudo indica, no atual estágio das investigações científicas, sim.

Aqueduto do Convento de Cristo

De outro ponto de vista, o do interesse pelo estudo da vida humana em sociedade, a relação entre nossa espécie e a água também se mostra fundamental. Está na raiz das indagações antropológicas o desejo por delimitar quando o ser humano deixou de ser “apenas” um animal natural para tornar-se, também, um animal cultural. O evento que simbolizaria essa passagem, da natureza à cultura, já foi imaginado e teorizado de diversas maneiras, a saber, o início das religiões, a invenção da escrita, a proibição do incesto ou o cercamento de pedaços de terra por privados. É nesse longo processo sócio-civilizatório que se inscreve a história da espécie humana e sua relação com a água: em última instância, a tentativa de dominar, por parte de distintas culturas, aquilo que as produziu.

Desde uma perspectiva sociológica, podemos dizer que as tentativas de controlar os fluxos dessa substância impulsionaram decisivamente diversas áreas do conhecimento, como a engenharia, a arquitetura, a física e a química. Desde tempos imemoriais, a humanidade vem se adaptando a condições hostis. Surgida da água enquanto amontoado de células biológicas, pari passu, o salto em complexidade das primeiras formas de vida social está ligado a lugares úmidos, de acordo com as hipóteses historiográficas mais plausíveis. Nestes lugares férteis, como a região do Levante e da Mesopotâmia, acredita-se, ocorreu a “Revolução Neolítica”, ou seja, a transição do homem caçador-coletor, nômade, para o agricultor sedentário. A fixação geográfica e a consequente produção de excedentes alimentícios permitiram o surgimento de civilizações cada vez mais complexas, aptas a dominar, controlar e adaptar outros habitats em locais propícios para o florescimento de sociedades.

Tal acúmulo de conhecimento sobre as condições do solo, do clima e dos tempos da natureza teve consequências visíveis até os dias de hoje. Sob um olhar mais afiado, é espantosa a imbricação de saberes que foi necessária para a construção de represas e aquedutos, dispositivos antiquíssimos, construídos por diferentes civilizações no intuito de satisfazer necessidades cada vez menos “naturais” e cada vez mais “culturais”. Possivelmente a associação mais imediata para o leitor seja entre a civilização romana e suas construções hídricas: fontes, banhos, cisternas e aquedutos. Em relação a estes últimos, embora esteja consagrada na própria expressão aquæductus – do latim, a composição entre o líquido, aqua, e sua condução, o verbo ducere – há registros indicando que povos da Ásia e da África já haveriam construído complexos sistemas de controle e transporte hídrico anteriormente. 

Deslocando o foco em termos geográficos e temporais, vale a pena um olhar mais apurado ante as civilizações que precederam o mundo greco-latino. Não é possível compreender a paulatina complexificação da organização social e dos conflitos humanos sem contextualizar a abundância hídrica da faixa de terra em que surgiram os grandes impérios da Antiguidade Oriental. Entre os rios Nilo, Tigre e Eufrates, a humanidade produziu o que seriam as “superpotências” do mundo antigo, na região conhecida como o “Crescente Fértil”.  A primeira delas, a civilização egípcia, reinou soberana por mais de dois mil anos e está intrinsecamente ligada à agricultura irrigada às margens do Nilo, que favorecia o plantio do trigo, cevada, linho, papiro, legumes e frutas. Além de recurso produtivo, o rio era utilizado como meio de transporte de mercadorias entre as terras do sul e as regiões pantanosas do norte, bem como controlado e direcionado em seu fluxo de enchentes sazonais por sistemas de diques e canais de irrigação.  A simbiose entre o rio e a sociedade, entre a natureza e a cultura, imortalizou-se nas palavras de Heródoto, o primeiro historiador, para quem “o Egito foi uma dádiva do Nilo”.

Quando a hegemonia egípcia extinguiu-se, entrou em cena outro império no theatrum belli dessa região, que, durante os últimos séculos, acostumou-se a ser percebido como palco de conflitos por outro líquido, praticamente antípoda ao tema deste ensaio. Ainda que haja disputas por fontes de água, a região do Oriente Médio e da Península Arábica são territórios conhecidos por suas reservas de Petróleo, combustível fóssil de pouca valia em seu uso “natural”, porém cobiçado pela dependência “cultural” da espécie humana pós-industrial. Em território iraquiano, durante o século XIX, arqueólogos ingleses e franceses encontraram representações em relevo sob pedra, produzidos por outra imponente civilização antiga, os assírios. Ali se pode identificar um aqueduto, possivelmente construído durante o reinado de Senaqueribe, por volta do século VII a.C., que teria a extensão de 50 km. O Aqueduto de Jerwan precederia em cinco séculos as primeiras obras de engenharia hídrica romanas e alguns de seus mais de dois milhões de pedras foram posteriormente descobertos por novas investigações. Ainda mais fascinante, uma das hipóteses dos historiadores é de que sua função seria levar água até a cidade de Nínive para sustentar, especula-se, os famosos “Jardins Suspensos da Babilônia”.

Se a simbiose da água com o desenvolvimento da vida biológica e social na Terra é um fato verificável por onde quer que se olhe, o futuro não se mostra tão insípido, inodoro e incolor. Retornando nosso périplo histórico e geográfico ao continente americano, na data em que este texto é escrito, já se sabe que o povo chileno recusou a nova proposta de Constituição Nacional, votada por meio de um plebiscito popular, em 4 de setembro de 2022. Os motivos para isso são múltiplos e complexos, cabendo aos politólogos e demais analistas interpretá-los com o devido rigor analítico. 
Entretanto, uma das alterações do texto, propostas pela Assembleia Constituinte, dizia respeito ao status da água. A Carta Magna chilena, herança da sangrenta ditadura militar, não reconhece a água como um bem comum, nem seu uso como um direito humano, sendo a única no mundo que entrega os direitos de propriedade aos privados. Segundo um estudo de 2020, publicado por pesquisadores da Universidad de Las Américas (UDLA), seriam 29 mil os proprietários de direitos sobre a água, sendo que 1% desse total concentraria 79% dos recursos hídricos e mais de 1 milhão de chilenos não teriam acesso a água potável. Conforme escreveu o escritor Julio Cortázar, há que se fazer o possível para que a água esteja contente e volte a encher jarras e copos. Possivelmente disso dependa a sobrevivência da natureza e da cultura humana.

Big Bang Fountain, de Olafur Eliasson.

Ao longo da história ocidental, a água foi muitas vezes representada tanto em alegorias ligadas ao simbolismo judaico-cristão, como nas imagens do batismo ou do dilúvio, por exemplo, quanto em sua integração com a paisagem e a natureza. Entretanto, o uso da água como material presente na obra artística torna-se mais frequente principalmente a partir da segunda metade do século XX. Muitos artistas passam a romper os suportes tradicionais da pintura e da escultura, buscando novas alternativas para a utilização da matéria na arte. Não mais condicionada e subjugada pela forma, a matéria passa a ter um significado mais presente, que é potencializado por operações conceituais.

Uma das primeiras vezes que a água aparece no cenário das grandes exposições internacionais de arte é no trabalho do artista japonês Sadamasa Motonaga, do grupo Gutai, apresentado em 1956 na Bienal de Veneza. Ao longo de uma alameda, o artista pendurou diversas folhas de plástico transparente com água e pigmentos coloridos, que foram presas às copas das árvores. O trabalho estava sujeito às alterações de luz e temperatura do ambiente externo e pendia para baixo pelo peso da água. O trabalho não se articulava através de elementos figurativos, mas sim a partir da experimentação da matéria líquida em conjunção com o plástico oriundo da produção industrial. 

Sadamasa Motonaga na Bienal de Veneza.

A observação dos processos físico-químicos da água aparece com força nos trabalhos da década de 1970 realizados pelo alemão Hans Haacke. No trabalho Kondensationswürfel (“Cubo de condensação”), Haacke acondiciona em uma caixa de acrílico transparente uma pequena quantidade de água, que, conforme a alteração da temperatura, ora se condensa nas paredes do cubo, ora escorre sobre elas. Já no trabalho Rheinwasseraufbereitungsanlage (“Estação de tratamento de água do Reno”), o artista problematizava questões ligadas à ecologia e à entropia. Nesse trabalho, Haacke coletava água poluída do Reno e, através de tratamento químico, conseguia clarificá-la e limpá-la, introduzindo-a num grande aquário onde nadavam peixes. Ao expor a água tratada ao lado da água poluída original, o artista resgata os significados da água como fonte de vida e como material representante da limpeza e da clareza cristalina. 

Um dos artistas que mais utilizou a água como material em seus trabalhos foi o alemão Klaus Rinke. Em várias obras dos anos 1970 e 1980, ele apresentava grandes tonéis devidamente etiquetados com água proveniente de diversos mares e rios. A reunião de água de lugares tão distantes parece conferir uma impressão de totalidade entre os povos e o ambiente que os cerca. O processo de coleta da água também era incorporado à significação do trabalho. Em alguns casos, o artista confeccionou grandes conchas para coletar a água dos rios e mares. Essas conchas eram expostas juntamente com fotos da coleta, ao lado dos tonéis com água. 

Klaus Rinke em “O fluxo dos tempos”.

O interesse fenomenológico pela água também se faz presente nas obras de artistas brasileiros que marcaram as décadas de 1960 e 1970, como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Amélia Toledo, José Resende, entre outros. No final de sua carreira, Lygia Clark desenvolveu seus “Objetos Relacionais”, que consistiam em sacos plásticos com água, ar, areia, bolinhas de isopor e outros materiais que eram aplicados sobre o corpo das pessoas de forma a provocar sensações corporais que libertassem determinados conteúdos inconscientes impossíveis de ser verbalizados. A aplicação desses objetos teria um caráter terapêutico, e a água, assim como os outros materiais, agiria sobre a sexualidade e o inconsciente. A experiência sensorial também está presente no trabalho de Hélio Oiticica. Em um de seus “Penetráveis”, o espectador deve pisar na água, em pedras e em areia, vivenciando corporalmente o trabalho.

Em um trabalho sem título de 1983, José Resende apresenta um tubo de vidro cheio de mercúrio, vaselina líquida e água destilada, flutua dentro de outro tubo, de mesma forma, porém muito maior (da altura de uma pessoa), que contém também vaselina e água. Os líquidos, por suas densidades diferentes, não se misturam e existe entre eles uma nítida linha demarcatória. O tubo maior apresenta-se preso inclinado à parede através de fios plásticos, pendendo para a frente. A tensão a que o trabalho é submetido pela força da gravidade parece representar uma certa ameaça ao vidro e ao derramamento dos líquidos. A presença do ar e de diferentes líquidos transparentes criam um mundo de sutilezas, em que os limites dos materiais são demarcados por linhas de horizonte incertas, confundindo-nos a percepção.

No trabalho de Amélia Toledo, a água como tema e matéria aparece com bastante constância, e as paisagens naturais são parte fundamental de sua poética. O trabalho de Amélia é marcado pela escolha de materiais transparentes e pela criação de situações lúdicas a partir das energias materiais. Na série “Frutos do Mar”, realizada de 1974 a 1982, por exemplo, a artista coleciona conchas e outros materiais de origem marítima, inserindo-os juntamente a conchas confeccionadas em resina transparente e cristais em vidros com água, criando pequenos mundos líricos que fazem referência ao fundo do mar. Em alguns trabalhos, Amélia submergiu no mar peças em resina e vidro por longos períodos, até que eles fossem incorporando cracas e corais, sendo corroídos pelo ambiente marítimo. Em outras obras suas, o que se destaca é o aspecto lúdico, como em “Discos Táteis” e “Bolas Bolhas”, em que líquidos são acondicionados em peças de plástico, os quais podem ser manipulados e ter sua aparência modificada pelo observador.

Amélia Toledo na Galeria Marcelo Guarnieri.

Nas últimas décadas, Laura Vinci vem realizando trabalhos contundentes, em que a água é incorporada em diferentes estados físicos. Na instalação “Mona Lisa”, Laura dispôs sobre o chão uma grande quantidade de bacias de vidro com água aquecida por resistências elétricas de cobre. A água sofre o processo de ebulição, criando uma certa névoa no espaço. A transparência do vapor, da água e do vidro das bacias une visualmente os três elementos, como se o vidro fosse lentamente se tornando imaterial, liquefazendo-se e evaporando pelo espaço. Em outros trabalhos, a artista utiliza o gelo, que envolve tubulações de metal com as quais constrói palavras fazendo uma espécie de poema espacial.

Artistas ligados à chamada Land Art, como Robert Smithson e Nancy Holt, também realizaram trabalhos de grandes dimensões em rios e lagos. O trabalho mais conhecido de Robert Smithson é a “Spiral Jet”, realizada no interior de um lago em Utah, nos EUA. Construindo uma grande espiral com terra e outros materiais no meio do lago, Smithson intervém poeticamente na natureza, proporcionando que o trabalho sofra uma interação entrópica com o ambiente que o cerca. Nancy Holt realizou em 1974 a intervenção Hydra’s Head, em que construiu seis pequenos reservatórios circulares ao longo das margens do rio Niagara, que ocupavam posições correspondentes à constelação Hydra.

Um dos artistas internacionais recentes que mais tem trabalhado com água e com as relações entre a arte, o sublime e a natureza é o dinamarquês Olafur Eliasson. Esse artista realiza instalações em que a natureza é recriada através de um aparato tecnológico artificial. Na exposição “The Mediated Motion”, realizada na Áustria, Eliasson preenche um dos ambientes de um museu de arquitetura modernista com água e plantas aquáticas, criando uma passarela por onde os espectadores devem transitar. Em outro ambiente, a sala é totalmente preenchida por uma névoa vaporosa, e o visitante é obrigado a atravessar o espaço pisando em uma ponte de madeira suspensa. Nesse e em outros trabalhos de Eliasson, observa-se um diálogo entre natureza e civilização, que coloca em atrito a beleza sublime dos elementos naturais com a sua desencantada reconstrução artificial no interior da arquitetura. Entre os trabalhos mais conhecidos de Olafur Eliasson, estão as intervenções que ele realiza com pigmento verde sobre diversos rios. O artista tinge rios dos Estados Unidos, Suécia, Alemanha e outros países com pigmentos não nocivos à natureza utilizados por cientistas para marcar as correntes marítimas. A estranha cor verde fosforescente destes rios, por um lado remete a uma exacerbação das belezas naturais, por outro lado surge aos olhos como extremamente artificial, alertando-nos para questões ambientais.

A artista Néle Azevedo também teve seu trabalho associado a questões ecológicas ao realizar instalações com pequenas esculturas de gelo que derretem no espaço urbano. Em seu projeto “Monumento Mínimo”, Néle interfere delicadamente sobre a cidade, trocando a rigidez e a imponência dos monumentos oficiais pela fluidez efêmera de seus pequenos homens de gelo, que derretem rapidamente frente aos olhos dos observadores, fazendo-nos pensar na efemeridade e no transcorrer da vida.

Corpo e morte são temas recorrentes no trabalho da artista mexicana Teresa Margolles. Como funcionária do instituto médico legal na cidade do México, Margolles tem acesso à água com que se lavam cadáveres, material que utiliza para a realização de suas instalações. Em uma exposição na Alemanha, Margolles ocupa todo o museu com trabalhos relacionados à água. Na primeira sala o espectador encontra um espaço totalmente vazio e vê apenas belas bolhas de sabão produzidas por uma máquina. As bolhas sobrevoam levemente o espaço, às vezes estourando sobre o corpo dos passantes. Apenas ao final o visitante é informado que aquelas bolhas foram produzidas com a água com que se lavaram cadáveres. Em outro ambiente o ar é tomado pelo vapor produzido com a mesma água. O visitante pode também sentar-se inadvertidamente sobre bancos de cimento em cuja confecção a água dos cadáveres foi misturada. A exposição também inclui um vídeo no qual se vê a lavagem dos corpos realizadas no instituto médico legal.

A mesma estratégia de lavagem é utilizada pela artista brasileira Síssi Fonseca, porém em um contexto totalmente diferente. Desde 2003 a artista vem realizando uma série de lavagens em diferentes locais, nas quais utiliza seu próprio corpo como se fosse um pano de chão para lavar os espaços expositivos. Por meio de uma aprofundada pesquisa gestual a artista interage com objetos, com o público e com a arquitetura dos locais, utilizando vários baldes com água. Ao esfregar-se intensamente no chão e nas paredes, Síssi Fonseca limpa as sujeiras reais e metafóricas de galerias, centros culturais e outras instituições artísticas. Suas ações fazem alusões poéticas ao tradicional trabalho cotidiano feminino e ao trabalho de faxineiros e empregadas domésticas – todos estes trabalhos desvalorizados pela sociedade. A água ganha aqui um caráter de purificação e renovação espiritual.

Em todos estes trabalhos, a fluidez, a flutuação, o escorrimento, a forma informe e outras características e processos fenomenológicos da água tornam-se focos de interesse para os artistas, que encontram na matéria líquida um meio de expressão de questões ecológicas, espirituais, sociais, políticas ou puramente formais. Como uma fonte inesgotável de inspiração, a água segue irrigando a criação artística em conteúdos poéticos, potentes e fluidos. 

ArteArtes Visuais

Incorporar para transformar: a arte em escala pública

Amarello Barra Funda recebe obra da artista Gabriela Machado em seu espaço em São Paulo.

A parede como uma tela efêmera e o espaço, seja ele qual for, como a provocação ao devir artístico que pode surgir entre ambos — a isso, damos o nome de Arte Mural. Esse tipo de produção se alicerça em duas potências: incorporar e transformar. A primeira, diz respeito à incorporação atenciosa das características do local; a segunda, refere-se à transformação dos seus arredores em novas possibilidades e oportunidades de contemplação. Quando se somam, temos como resultado uma ode à impermanência e à especificidade, sempre contempladas nas confabulações de um projeto de mural. 

Mural de Diego Rivera em Detroit.
Mural Revolução Mexicana.

Para contarmos com a visão de alguém que recentemente pensou e produziu seu trabalho em uma escala pública, conversamos com Gabriela Machado, artista convidada da Revista Amarello para realizar o projeto do mural no novo espaço Amarello Barra Funda

Acho muito importante que a arte esteja em espaços urbanos, onde as pessoas possam passar por perto, contemplar, trazer para o dia a dia, e ter surpresas.

Gabriela Machado

Gabriela Machado pinta o mural da loja Amarello Barra Funda | Fotos: Derek Fernandes

Um aspecto particular do muralismo, e que faz dele um processo criativo tão especial, é sua ligação profunda à arquitetura, ao urbanismo, à paisagem de onde está e não pode sair, é o que faz com que ele se misture verdadeiramente aos ares que sopram sobre sua presença. Por mais que tente, esse tipo de pintura não acaba em si mesma e, no final das contas, todas as suas partes viram partícipes: a obra interage com o espaço, o espaço interage com a obra; as pessoas se relacionam com os dois, os dois se relacionam com as pessoas. O consumo de arte que vem dessa interlocução é democrático e naturalizado, despertando uma fuga orgânica da arte-avalanche decorrente da publicidade e da arte-Steve-Jobs existente no design dos nossos gadgets.

“Os meus trabalhos não têm um projeto a priori. Meu trabalho se inicia a partir de um esboço. Ele anda sozinho, pela pintura. Quando começo e entendo o espaço, e isso precisa de fato estar no processo da própria pintura, ela se dá pelo andamento dela mesma.”

G. M.

Há, no audiovisual, uma técnica de edição chamada “efeito Kuleshov”, concebida no início do século XX, nos primórdios do cinema. Imagine gravações de um homem fazendo a expressão mais neutra possível e, então, intercale isso com imagens totalmente distintas entre si, cada qual com tema e tom próprios. Se depois da expressão neutra do homem houver um corte para a janela do quarto de uma jovem trocando de roupa, descreveremos esse homem como pervertido; caso depois da mesma expressão neutra cortarmos para um golden retriever esbanjando fofura, teremos do homem uma boa impressão. Os resultados dos estudos de Lev Kuleshov, em suma, foram: o contexto interfere mais nas nossas interpretações do que imaginamos, sendo capaz de mudar totalmente o sentido das partes de um conjunto, ainda que as partes per se não se alterem. Essa lógica também se aplica aos murais.

A escala pública é fundamental, porque você [artista] pode interagir com aquele espaço. O meu trabalho, hoje, vem de uma experiência do dia a dia. Me tornei uma artista que gosta de fazer residências fora do país, justamente para me colocar em situações fora do meu lugar de conforto e criar novos valores, conceitos e olhares para a minha pintura, porque ela vem da vivência do entorno. 

G. M.

Da fugacidade intrínseca à Arte Mural, tira-se uma aura poderosa. Ela não vem ao mundo em busca de qualquer perenidade, muito pelo contrário: pretende, a partir de sua momentaneidade, reverberar com ainda mais força. Estabelece-se, assim, um diálogo com nossas experiências pessoais, com aquela noção comprovada empiricamente de que, por vezes, o que dura menos impacta mais. Em um mundo cada vez mais transitório e difícil de se ter em mãos, a intensidade é uma das maiores formas de poesia. É como os versos de Vinicius de Moraes — “Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”. Cada mural é uma chama eterna em sua própria efemeridade. 

Acho que pelo fato da nossa vida ser corrida e instável, de estarmos totalmente consumidos pelo celular, pelo computador, pelas mídias, a gente deve criar um tempo de contemplação. É indispensável que a gente tenha isso hoje, porque é a forma mais natural de você alimentar a sua mente, de você trazer frescor à sua vida, porque a contemplação faz isso traz o frescor que te coloca em outro lugar. 

G. M.

Exemplo tanto do poder transformador de um contexto quanto da intensidade da Arte Mural é o México do começo do século XX, que vivia um momento conturbado de sua história, andando sobre brasas ditatoriais acesas depois da Revolução. Com Porfírio Diaz no poder, criando um cenário político-social que influenciava a leitura de qualquer arte presente em espaços públicos, o muralismo muniu-se das potências da incorporação e da transformação para se tornar o principal meio de elaborar uma arte popular e engajada. A voz da resistência e da oposição enfim se fazia ouvir. Ao encontrar uma forma bem mais coletiva de ressoar, em especial nos trabalhos de Diego Riva, essas manifestações geraram questionamentos em larga escala por chegar a quem mais importava: as pessoas.  

“Acho que isso [tempo de contemplação] resume tudo quando você fala em pintar um mural em uma escala pública. É muito importante, até para facilitar a contemplação do espectador, porque ele vai passar ali e não vai ter como não olhar aquilo. É uma forma de trazê-lo para perto.

G. M.

Os murais estão conosco, em escala pública, no espaço Amarello Barra Funda e em tantos outros lugares. Contemplemos com intensidade. 

#42ÁguaEditorial

Amarello Água — número 42

A Amarello Água nasce inspirada pela cosmogonia babilônica, ecoando tradições gregas e hebraicas, que entendem a água como nosso primeiro deus. Uma jornada pelo mundo líquido que nos cerca, da abundância à escassez, com Patrícia Furtado como editora convidada e capa de Pedro Perdigão.

Garanta a sua Amarello Água

Desde pequeno escuto minha mãe me contar da dificuldade que foi conseguir lavar minha cabeça quando recém-nascido. Ela dizia que eu parecia ter nascido com pavor de água, afirmação que tendia a se confirmava toda vez que a água escorria pelo meu rosto.

Aos poucos percebi que — seja no mar, no rio ou na piscina — eu facilmente banharia meu corpo, mas demoraria a mergulhar. Poderia até mesmo passar horas dentro da água sem jamais molhar a cabeça.

Uma amiga me contou certa vez que, quando sua mãe estava grávida, a bolsa rompeu e ela engoliu o líquido amniótico. Esse líquido é o fluido que envolve o bebê durante a gestação. Como a maior parte do líquido é composto de água, a bolsa também é conhecida como bolsa das águas. Não sei se esse pode ter sido o meu caso, mas, assim como ela, suspeito que meu trauma da água tem raízes profundas.

Quando me mudei para o Rio de Janeiro e passei a nadar no mar, notei que algo me afligia quando submerso, dando braçadas no sentido Niterói ou Forte de Copacabana. Em um dia de mar límpido, percebi uma tartaruga debaixo do meu corpo. Assim que a vi, lembrei da conversa que tive com minha mãe há anos, e entendi que eu estava resolvendo ali uma questão primordial em minha vida: enfrentar o medo da água, do que está por baixo, do escuro, do desconhecido e do incômodo.

O corpo humano é composto 70% de água. A superfície da Terra é coberta 70% por água. As águas do Nilo estão no Tietê, assim como as do Tâmisa estão no Ganges. Rodeados pelo mesmo líquido, da bolsa amniótica aos mares e oceanos, existe uma sintonia entre a alma humana e a água que nos interliga enquanto espécie.

Ao nadar no mar, descobri que a água é o elemento que liga meu coração ao planeta em que vivemos. Fazemos parte de um ecossistema único, mágico, raro e líquido — um ecossistema que precisamos aprender a observar, amar e preservar como sinal de amor à vida.

Dorival Caymmi | Foto: Evandro Teixeira/AJB

Em entrevista presente no filme “Dorival Caymmi — Um homem de afetos”, de Daniela Broitman, o compositor conta que seu primeiro encanto com o mar veio pela música do mar. De madrugada, em sua cama, ouvia o barulho das ondas quebrando nas pedras de Salvador, observando a variação sonora conforme a maré enchia e esvaziava.

As ondas que quebravam ali, na sua imaginação de menino, definiram mais do que a música de Caymmi. O imaginário formado pela espuma que se ergueu delas, pelo aroma da maresia, pela erosão lenta das pedras, pelas marcas que elas deixaram na areia moldaram a existência do baiano, seu olhar sobre o mundo. Um olhar materializado e traduzido, em poesia e música, no conjunto de composições que ficou conhecido como “canções praieiras”. 

Ali, nesse gênero musical criado e encerrado em si mesmo (não há canções praieiras antes ou depois de Caymmi), o artista entrelaçou filosofia e poética, o documental e o mitológico. Tudo partindo do mar, a grande metáfora da vida — aquele que guarda os mistérios, a bonança das redes cheias de peixes, as tempestades, a morte.          

A memória do mar como beleza e dor remonta à primeira vez que Caymmi o viu, na casa de sua tia e madrinha Maria da Piedade (ou Tia Pipi, como ele chamava), no Rio Vermelho. Ele conta, em relato que pode ser lido na biografia “Dorival Caymmi — O mar e o tempo”, escrita por sua neta Stella Caymmi: “Subi num monturo para alcançar o alto do muro e ver o mar. Escorreguei com peito do pé num caco de vidro, o que me abriu um talho no dedo polegar direito”.  

Aquele universo da praia, dos pescadores e suas mulheres, a riqueza simbólica e imagética presente ali, foi exercendo fascínio crescente conforme Caymmi crescia. Sobretudo a partir de sua experiência em Itapuã, praia paradisíaca afastada do centro de Salvador. Desde a adolescência, o baiano costumava veranear lá, com amigos. Observando aquela vida que corria à beira-mar e mar adentro, compôs a que afirma ser sua primeira canção praieira, “Noite de temporal”. 

Apesar de seu caráter inaugural, “Noite de temporal” já encerra muito do universo que se delinearia melhor nas canções praieiras que viriam. Estão ali o mar como entidade poderosa, merecedora de respeito (“Pescador não vá pra pesca/ Que é noite de temporal”); os dramas vividos na praia (“Pescador se vai pra pesca/ Na noite de temporal/ A mãe se senta na areia/ Esperando ele vortá”); a referência a cantos tradicionais dos pescadores (“Ê lambaê, ê lambaio”); e o violão especialíssimo de Caymmi, que encarna em si o próprio movimento do mar e das cenas litorâneas.

Em “Noite de temporal”, seu violão bate como o mar agitado pelo tempo ruim, marcado no polegar que bate nas cordas graves. Em seguida, ele se desmancha em dedilhado suave, ao sair do fato concreto da tempestade e transportar para o plano do narrador — a voz da sabedoria, que aconselha a não ir pescar, e a voz da serenidade, que conta da angústia da mãe. Por fim, o instrumento volta a emular o mar revolto.

Impressiona a maneira como o violão de Caymmi evoca a atmosfera praieira tanto ou mais do que suas letras. Seu violão não imita o mar, como se fosse uma sonoplastia — ele é o mar. Não por acaso, foi pelo instrumento que o baiano quis apresentar essas músicas, nos anos 1950, em álbuns como “Canções praieiras” (1954) e “Caymmi e seu violão” (1959) — num momento em que o formato voz-e-violão estava longe de ser um padrão, ou de ter a popularidade que teria a partir da década seguinte. 

Em “O vento”, o dedilhado é cheio de ar e movimento, como a brisa marinha. “É doce morrer no mar” tem a suavidade da maré calma que Caymmi canta — apesar de o tema ser a morte, ela é doce. Os ataques do polegar em “Pescaria” acompanham o ritmo dos remos e de todas as ações descritas nos versos (“Cerca o peixe/ Bate o remo/ Puxa corda/ Colhe a rede”). “A lenda do Abaeté” traz nas tensões harmônicas de seus acordes a atmosfera das histórias de assombração associadas à lagoa do Abaeté (“Credo cruz, te desconjuro/ Quem falou de Abaeté”). Em “Milagre”, a mudança de tempo repentina é acompanhada por uma rara modulação, uma mudança de tom tão repentina quanto (“Se sabe que muda o tempo/ Se sabe que o tempo vira/ Aí o tempo virou”). “O mar” é pura contemplação de alguém sentado na areia, na qual o violão parece vir daquele som que o menino Caymmi ouvia em seu quarto.

“O mar” é uma das canções na qual se mostra de forma mais marcante o olhar de Caymmi sobre o mar. A construção dos versos iniciais, que servem de motivo e refrão, merecem um olhar detido. As vogais alongadas (“O maaaaaaaaaaaaar/ Quando queeeeeeeeebra na praia”) cria uma tensão de onda que se forma e que criam a expectativa da conclusão, a quebra da onda. E ela se dá da forma mais surpreendente, porque, para dar conta da beleza do mar, da grandeza imensurável que ele tem a seus olhos, Caymmi não procura palavras especialmente poéticas e precisas, tampouco uma metáfora sofisticada. A impossibilidade da descrição é resolvida, pelo compositor, no adjetivo mais banal: “é bonito”.

A maneira que Caymmi fala sobre o mar reflete esse olhar de quem o vê como algo tão profundo que dispensa que isso seja sublinhado em palavras. Por isso, se seu violão parece pintar com tintas impressionistas o cenário marinho, seus versos são essencialmente concretos, substantivos, descritivos. O narrador não comenta, não conclui nada. Apenas expõe o que testemunha: “A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento/ A jangada voltou só” (“A jangada voltou só”); “No Abaeté tem uma lagoa escura/ Arrodeada de areia branca” (“A lenda do Abaeté”); “Vento que dá na vela/ Vela que leva o barco/ Barco que leva a gente/ Gente que leva o peixe/ Peixe que dá dinheiro” (“O vento”, num conjunto de versos que descreve de maneira extremamente sintética toda a grandeza do ato do trabalho, da conversão da ação humana sobre a natureza em dinheiro, sustento).

Antonio Risério chega a observar, no livro “Caymmi: uma utopia de lugar”, que não há uma única metáfora nas canções praieiras, ou seja, não há abstração. Isso não impede a carga filosófica altíssima presente nesse cancioneiro. “O bem do mar” é um dos maiores atestados dessa concretude caminhando lado a lado da profundidade existencial. A letra afirma, em seu primeiro verso, assumindo a fala de seu personagem central: “O pescador tem dois amor”. Caymmi segue, num desdobramento: “Um bem na terra/ Um bem no mar”. 

O bem da terra, ele canta, é a mulher “que fica na beira da praia quando a gente sai”, “é aquela que chora, mas faz que não chora quando a gente sai”. Enfim, a companheira, o amor que se deposita num outro (“É impossível ser feliz sozinho”, como escreveu Tom Jobim numa canção coincidentemente marinha, “Wave”). 

Já o bem do mar é descrito por Caymmi dentro da mesma dinâmica que denuncia a insuficiência das palavras para falar do que não cabe nelas, em versos que talvez sejam os mais bonitos (como o mar quando quebra na praia) de sua obra: “O bem do mar é o mar, é o mar/ Que carrega com a gente pra gente pescar”. Ou seja, o bem do mar é a própria existência, “que carrega com a gente”. O amor que não depositamos no outro, e sim na vida em si. No mar.

“João Valentão” não costuma ser agrupada entre as canções praieiras, por se referir à chamada fase urbana de Caymmi, de sambas-canções. Mas seu personagem é um pescador, uma típica figura das que povoam as músicas litorâneas do compositor. Feita por Caymmi inspirada num sujeito que conheceu em Itapuã, ela traça o perfil de um homem duro, violento, mas que “tem seu momento na vida”, em que a sensibilidade aflora: “É quando o sol vai quebrando/ Lá pro fim do mundo pra noite chegar / É quando se ouve mais forte/ O ronco das ondas na beira do mar/ É quando o cansaço da lida da vida/ Obriga João se sentar/ É quando a morena se encolhe/ Se chega pro lado querendo agradar”. 

Caymmi conclui “João Valentão” com versos que soam como possível autorretrato, e talvez por isso esteja entre os seus preferidos: “E assim adormece esse homem/ Que nunca precisa dormir pra sonhar/ Porque não há sonho mais lindo do que sua terra/ Não há, não há”. Sua terra que também é seu mar.

Uma canção praieira se destaca em meio às outras, por certa estranheza de sua melodia e mesmo nas escolhas poéticas: “Sargaço mar”. Há nela uma densidade de afogamento que não há, por exemplo, em “É doce morrer no mar”, que a princípio trata do mesmo tema. Mas em “Sargaço mar”, quem morre é o narrador. Nela, Caymmi contempla o próprio fim, no mar: “Quando se for esse fim de som/ Doida canção/ Que não fui eu que fiz/ Verde luz verde cor de arrebentação/ Sargaço mar, sargaço ar/ Deusa do amor, deusa do mar/ Vou me atirar, beber o mar/ Alucinado desesperar/ Querer morrer para viver com Iemanjá/ Iemanjá, odoiá”. Nela, como que ecoam o som das ondas que ele ouvia da cama. Ou se manifesta a derradeira fisgada do corte no pé ante a visão magnífica do oceano. Magnífica não. Bonita, bonita.