#14BelezaCulturaLiteratura

Abui

por Vanessa Agricola

Começo essas primeiras palavras numa mesinha aqui fora, na Benjamin Abrahão. São sete da manhã de uma quarta-feira e a padaria ainda está vazia. Quer dizer, estamos eu e Antônio, sentado na minha frente no carrinho, chupando a gola do seu moletom azul. Agora tudo vai pra boca… “Alá!”, ele me grita.

Assim que o olho de volta, ganho uma risadinha. É uma boquinha escancarada, toda banguela, com uma linguinha pra fora. É uma carinha tão fofa, que sou obrigada a me levantar, quase comer suas bochechas, e voltar pra minha cadeira rápido, porque eu tenho coisas pra fazer aqui, Antônio, tenho essa coluna pra acabar. Mas parece que ele não entende: “Alá! Alá!”.

Todo mundo te conta que um filho exige tempo, mas é bem mais do que isso. Um filho exige colo, músculos fortes nos braços, hiperlordose, escoliose, sutiãs cheirando azedo, sono, muito sono, e concentração. Preciso tomar cuidado pra não ficar contemplando ele o tempo todo, não perder de vista a Vanessa que eu era, as coisas que ela fazia, que ela queria, a Vanessa que… “Abu!”

Ganho outra risadinha, que me deixa semi-louca, e reparo no seu moletom azul ensopado de baba. Tento secar com a fralda, mas não adianta. Eu afasto a gola, ele enfia a mão na boca, mais uma de suas cenas. Ainda com dificuldade para controlar sua coordenação motora, a mão lhe escapa, ele grita, depois consegue chupar a mão de volta. Fico boba com a sua persistência. Com a chegada de um casal com uma criança, agora faz força pra se sentar, faz força, faz força, arrisco ajudar mas ele não gosta. Faz um rugidinho de raiva, tipo me deixa, deixa que eu vou conseguir isso sozinho.

“Como ele é esperto”, me diz a garçonete trazendo mais um café. Ele olha pra ela de relance, depois volta pras suas tentativas, sentar, enfiar a mão na boca, chupar o moletom, tudo ao mesmo tempo. “Eu vejo o pai com ele aqui de vez em quando, mas ele não parece o pai não, ele parece contigo”. Depois de três meses vomitando, dezessete quilos a mais, um parto normal sem anestesia, eu acho justo. Antônio é mesmo a minha cara. Tem os mesmos olhos, o mesmo nariz, o mesmo formato de rosto, a mesma boca. Mas a perna é do pai. Igualzinha.

“Auei!”. Essa palavra acho que quer dizer cansei. “Vamos embora, Antônio, vamos no shopping com a mamãe comprar batom”. Passamos quarenta minutos na loja, eu provando todas as nuances de batom vermelho que a MAC conseguiu inventar, ele admirando minhas reações no espelho. A vendedora pasma, “ele não chora?”. Não, “Auei!”, ele só grita. “Abu!”. “Ai, que coisa fofa, posso pegar ele no colo?”. Eu deixo, contrariando todo o risco do vírus disso e daquilo, não consigo dizer não.

Às vezes a gente pondera que uma criança é tão indefesa, que não pode sair de casa, não pode encostar nas pessoas, tudo conversa. Com o Antônio eu sei que uma criança já nasce pronta, já nasce do mundo, já nasce sabendo das coisas. Está certo que por enquanto ele ainda precisa de mim pra tudo, mamar, trocar fralda, tomar banho, etc. etc., e que coisa bonita isso de eu fazer tudo sem me importar.

E pensar que eu nunca me imaginei grávida. Quando soube da notícia, só pensei, puta que pariu, e agora? O que é que eu, este cocô de pessoa, vou fazer com uma criança? Vou ser uma péssima mãe! Eu, essa fulana tão egoísta, que precisa ficar sozinha no mínimo 16 horas, das 24 horas de um dia… A Angelina Jolie já dizia que depois de um filho você melhora como pessoa. Além disso, acho que um filho melhora o jeito como você se enxerga. Todo mundo tem um pouco daquele indivíduo maravilhoso que merece o sorriso de uma criança, um sorriso maior do que o que ela faz pras outras pessoas…

“Abu! Abu!”. Será possível que esse “Abu” quer dizer eu te amo? Abu pra você também, Antônio.

#14BelezaCidades

Marca Beleza

por Saul Taylor

Ninguém sabe sua origem – foi, provavelmente, cunhado por um dos muitos franceses que largaram o bleu-blanc-rouge e vieram morar aqui, na terrinha brasileira –, mas o ditado “Se Paris é a cidade mais bela construída pelos homens, o Rio de Janeiro é a mais linda por Deus” diz muito a um imigrante como eu. Lembro bem do dia em que me convidaram a mudar para o Rio. Foi em 18 de outubro de 2010, três dias depois de meus amigos André, William, Lulu e Tina me levarem à estreia londrina do filme Wasteland, o documentário de Vik Muniz sobre os lixões.

“O que você acha de vir morar no Rio para nos ajudar a mudar a imagem internacional da nossa cidade?” – perguntaram-me. Sem titubear, arrumei as malas em Londres e desempacotei tudo no Arpoador. Os meus amigos londrinos brincavam que eu era o gringo mais sortudo do mundo – afinal, é fácil demais “vender” o paraíso. Eu já conhecia bem o Rio, mas logo descobri que a cidade exige uma reviravolta das noções tradicionais de beleza. Tendo trabalhado em agências de publicidade e em editoras a vida toda, pensava – com certa arrogância – saber o que era belo. Mas estava errado.

O Rio de Janeiro é lindo. Sua beleza chega a intimidar, e é ubíqua, tão ubíqua, de fato, que a palavra beleza se tornou parte da conversa do dia a dia. E aí, tudo bem? Beleza! Nos vemos na praia? Beleza! Garçom, já pedi aquela bebida cinco vezes e até agora não veio; então, vou embora e nunca mais volto aqui! Beleza! Os cariocas se apropriaram da beleza, e aplicam essa “marca” a todos os aspectos da vida.

Em termos de beleza natural, a cidade é um dez perfeito. Existe, porém, uma percepção errônea de que os cariocas são o povo mais bonito do mundo. Turistas que visitam o Rio pela primeira vez se sentem decepcionados com os manequins 42 flácidos e as barrigas 46 caídas à mostra na areia. O Rio é, na verdade, uma massa carnuda de silhuetas e estaturas, um enorme anfiteatro ensaiando todo o drama – a comédia e a tragédia – do corpo humano. Mas quem mergulhar de cabeça nisso logo descobrirá que a beleza carioca vai muito além de tendões ou celulite. Os cariocas têm uma gentileza cintilante, uma aura de calor humano que irradia do coletivo e alegra os dias maravilhosos – mais uma manifestação daquela “marca”, a Beleza.

Depois de três anos no Rio, o que mais me surpreende é que, apesar de passar todos os meus dias cercado desta beleza natural atemorizante, não fiquei indiferente a ela. Pelo contrário, hoje estou mais ciente dela do que logo que cheguei. A beleza é subjetiva, é claro, mas mergulhar diariamente em uma beleza universal limpou meu monitor visual. Há pouco, desembrulhei meus pincéis e comecei a pintar pela primeira vez desde a escola de artes. Descobri que é difícil evitar os clichês quando a paisagem se sente tão à vontade com a própria beleza. E o mesmo se aplica à própria cidade – “vender” o paraíso é mais difícil do que se imagina. Afinal, a beleza cansa, uma ideia muito bem colocada pelo ditado carioca “Quando Deus criou a Terra, passou o sétimo dia descansando em Ipanema”. Praia a qual irei assim que terminar essa história. Beleza?

#14BelezaCulturaLiteratura

Síndrome de Stendhal

por Leticia Lima

Quando o autor francês Stendhal (pseudônimo de Henri-Marie Beyle) viajou à Florença pela primeira vez, em 1817, ficou muito comovido ao visitar a Basílica de Santa Croce, onde estão sepultados Maquiavel, Michelangelo e Galileu, e onde finalmente viu os afrescos de Giotto, experiência que descreveu no livro Nápoles e Florença: uma viagem de Milão a Reggio.

Desde então, houve centenas de relatos de pessoas acometidas dos mesmos sintomas ao visitar as maravilhas renascentistas de Florença, especialmente a Galeria Uffizi. Porém, o estranho fenômeno só recebeu um nome em 1979. A psiquiatra italiana, Dra. Graziella Magherini, cunhou a “Síndrome de Stendhal” para descrever o distúrbio psicossomático que provoca fortes palpitações, tontura, desmaios, confusão mental e até alucinações quando um indivíduo é exposto à arte, particularmente de grande beleza ou em grandes quantidades, em um período curto ou espaço limitado. Hoje, o termo é também usado para descrever estes sintomas em reação a outros tipos de beleza, como paisagens naturais. Após vinte anos de experiência com os pacientes do Hospital Santa Maria Nuova em Florença, a Dra. Magherini passou a notar certas anomalias patológicas em alguns tipos de paciente – alguns estrangeiros que chegavam à cidade, afoitos para ver as obras dos grandes mestres, eram gravemente afetados por misteriosos e repentinos episódios causados ao se depararem com alguma obra de imenso significado pessoal. O resultado dessas observações é um livro revolucionário, que explica a sua metodologia estatística e, principalmente, seus casos mais interessantes, muitos deles turistas estrangeiros que chegam a Florença e se sentem sufocados pela inexorável e inescapável presença da arte e da cultura renascentista.

Kamil era um estudante da Academia de Artes de Praga. Foi à Florença atrás de sua grande paixão: a arte. Ao longo de anos, havia estudado as grandes obras dos mestres italianos, e então iria vê-las pessoalmente. Durante seus primeiros dias na cidade, porém, começou a sentir uma emoção forte, inexplicável, que parecia aumentar, expondo sua vulnerabilidade. Foi aos lugares mais icônicos – a Basílica Santa Croce, o Duomo, a Galeria Uffici. Em seu último dia, decidiu visitar a Chiesa del Carmine, com os afrescos de Masaccio. De repente, sentiu-se um pouco tonto, a cabeça leve demais, e achou que desmaiaria. Não conseguia respirar, sufocado. Saiu correndo da igreja e, acometido por uma grande tontura, deitou-se nas escadas em frente à porta. Só se acalmou fechando os olhos e se imaginando em casa, em Praga.

Kamil foi um de seus casos mais memoráveis, diz a Dra. Magherini. As fortes emoções suscitadas naqueles dias destruíram sua própria identidade, como se ele se desfizesse. Quando finalmente encaminhado aos cuidados da psiquiatra, já não conseguia mais falar. Foram necessários meses de terapia antes que Kamil voltasse a formular frases. Stendhal descrevera uma experiência similar à de Kamil – quando assolado pelos sintomas estranhos em Sibile di Volterrano, ele também saiu correndo da igreja. Foi à Piazza Santa Croce e deitou-se sobre um banco. Só se recuperou ao ler poemas de Ugo Foscolo, que descrevia sua própria reação emotiva à Basílica de Santa Croce.

A partir desses casos, a Dra. Magherini chegou a algumas conclusões surpreendentes sobre o efeito da arte na psique humana. Durante o encontro entre a arte e o espectador, um estranho espelhamento leva a uma ocorrência sublime, estética e enigmática – a arte se torna, subitamente, o recipiente de fortes emoções ou traumas reprimidos, e, ao vê-la, o espectador é atingido pelo seu próprio subconsciente exposto. Conforme explica a Dra. Magherini, todos nós sofremos com algum grau, maior ou menor, de Síndrome de Stendhal – todos reagimos à beleza e à arte de forma visceral. Mas, para a grande maioria de turistas, em Florença ou em outros destinos, viagens intercalam arte com outras atividades, como passeios, idas a restaurantes, compras, lazer etc. Não nos mergulhamos em arte 100%. E são apenas aqueles de natureza mais sensível, mais suscetíveis às emoções, e já sobrecarregados com outros fatores, como o fuso horário, a alienação natural de viajar a um lugar com costumes, idiomas e até comidas estranhas, que sofrem os sintomas mais palpáveis da síndrome. São estes, diz a psiquiatra, que, “quando se deparam com esta cidade, podem sucumbir a uma crise mais complexa”.

Ao menos um em cada dez leitos na ala psiquiátrica do hospital Santa Maria Nuova é ocupado por um turista estrangeiro. A Dra. Magherini identificou 106 na década durante a qual elaborou seu estudo. Em 1986, o jornal americano The Chicago Tribune foi até Florença investigar. Lá, os repórteres conheceram Tom, um americano atarracado de descendência italiana. Foi encontrado falando sozinho e balbuciando em uma estação ferroviária. “Perdi totalmente a noção de onde estava ou quem era. A última coisa de que me lembro é pensar que havia cometido um pecado mortal”, diz. Mais grave foi o caso de Franz, um alemão que sofreu um ataque da síndrome ao contemplar a pintura Bacchus, do mestre Caravaggio. Franz caiu ao chão e se retorceu todo. Teve de ser levado ao hospital de maca. Mais tarde, confessou à Dra. Magherini que “perdeu a cabeça e sentiu uma excitação sexual incontrolável ao olhar o quadro”.

O mais interessante? Franz tinha 71 anos na época.

Assim como sobre Kamil, Tom e outras vítimas da Síndrome de Stendhal, a beleza surtiu um efeito inesperado sobre ele.

#14BelezaArteArtes Visuais

Abjeto

por Marina Lima

Lembro até hoje o dia em que fui ao Rio entrevistar Eduardo Berliner, anos atrás. Era uma manhã de sol, mas a noite anterior vira uma tempestade varrer o bairro de Botafogo, revirando vasos de plantas na calçada e deixando folhas e galhos aplastados contra o asfalto das ruas. Subindo a escada estreita que leva ao ateliê do artista, atulhado de objetos de todo tipo, dei de cara com um dos quadros que ele finalizava então, uma estranha composição que tinha como objeto central uma pilha disforme de areia e garotos mascarados brincando ao redor dela.

Berliner me contou que batera uma foto de uma cena parecida com aquela em frente ao ateliê, quando reformavam uma casa vizinha. Era um estado intermediário dos trabalhos, a casa toda aberta, materiais de construção cavucando as paredes no meio de uma enorme bagunça. Ele disse que era aquilo que atraía seu olhar, essas cenas prosaicas, desprovidas de qualquer grau de interesse ou beleza no sentido convencional da palavra. Todas, no entanto, com o potencial de se tornarem estranhas o suficiente para fisgar e segurar o olhar.

Desde que a arte não precisa mais arrebatar pelo registro de algo belo, tenho a sensação de que artistas já não se esforçam para impressionar pela beleza ou provocar certa estupefação em quem olha para suas imagens. No que se define como a estética do feio, ou talvez do estranhamento, a ordem primordial parece ser a de desfazer certezas e causar um ruído. Ruído no sentido de forçar uma pausa na avalanche de imagens que inundam cada segundo da vida na era digital.

Numa das últimas edições da Bienal de Veneza, lembro como o público passava reto e sem dar muita atenção às obras de beleza indiscutível, como as composições barrocas de Tintoretto, mas se detinha minutos, até horas, diante das atrocidades documentadas pelo artista suíço Thomas Hirschhorn no pavilhão de seu país. Eram fraturas expostas, pele dilacerada, membros decepados, sangue por toda parte em cenários de guerra. Mas aquilo comandava o olhar.

Da mesma forma que Paul McCarthy e seus grotescos rituais de pegada escatológica não deixam de fascinar até hoje quem vê seus filmes. Ou o nojo transmutado em desejo que domina o trabalho de uma artista como Sarah Lucas, que subverte o erotismo ao ponto em que se torna desagradável pensar em sexo. Lucas, McCarthy, Hirschhorn, para não citar Paulo Bruscky, Artur Barrio, Ryan Trecartin, Nan Goldin e tantos outros, estão juntos na base de uma estética do abjeto. Quando o corpo se torna vetor de repulsa, ele parece se revestir de uma aura mais magnética do que a beleza apolínea da arte clássica.

Talvez um embrião desse culto ao grotesco esteja nas representações da morte do romantismo francês. Uma das telas mais fortes de Théodore Géricault, A Balsa da Medusa, tem no canto esquerdo inferior o cadáver de um belo rapaz. Relatos da época atestavam que os náufragos da embarcação comeram os corpos dos mortos para sobreviver. Esse garoto, de uma beleza frágil, está ali na função dupla de objeto sexual – é o único a ter o sexo exposto – e de banquete para os famintos, sua carne fraca entrando em decomposição. É o dado mais escandaloso da pintura e ao mesmo tempo o mais memorável, colocando a repulsa como a maior força da atração.

#14BelezaCidades

A beleza como missão

por Maurício Gomes Candelaro

Beleza é poder. Em razão disso, artistas e recursos foram mobilizados para levantar pirâmides, construir templos, moldar exércitos em terracota e erguer edifícios que tocassem o céu. Talvez fosse para impressionar os deuses. O mais provável é que fosse para evidenciar – a súditos e potenciais inimigos – o domínio e a perenidade de quem mandava. Em Roma, centro de todo o poder no antigo Mediterrâneo, não foi diferente: a velha cidade foi pontilhada de monumentos que invocavam a autoridade imperial. Essa tradição sobreviveu ao declínio do Império e a seu melancólico e trágico fim: a Igreja, que se consolidou como herdeira do poder de Roma, incorporou tal lógica até assenhorear-se quase completamente da produção artística ocidental. Para tanto, algumas questões de ordem teológica precisaram ser enfrentadas.

A Igreja sempre se equilibrou entre dois conceitos aparentemente inconciliáveis a respeito da beleza, o que provocou a alternância de fases de austeridade e de desmedida fantasia. De um lado, alguns religiosos viam nos ensinamentos e no sacrifício de Cristo a negação de qualquer desejo mundano ao prazer estético, devendo a obra de Deus ser celebrada pelo ascetismo e pela renúncia. De outro lado, houve aqueles que identificavam a Igreja como a prolongadora, na Terra, da criação divina. Essa continuação da obra de Deus deveria ser feita, portanto, à altura d’Ele. Tal visão prevaleceu a partir do final da Idade Média e teve, em Roma, o cenário ideal para concretizar-se.

A natureza foi generosa com Roma. O clima ameno, o relevo variado e a abundância de bons materiais para a construção – como o travertino – facilitaram o trabalho de artistas e arquitetos. Os vestígios da antiga civilização romana foram fundamentais para a criação da Roma atual, seja como fonte de inspiração, seja, mais prosaicamente, como estoque aparentemente inesgotável de material para as igrejas e demais construções da cidade. Essa autofagia, ao mesmo tempo em que destruiu, ajudou a conservar muitos elementos das antigas construções, como colunas, pavimentos e esculturas.

A Roma que chegou até nós, com suas cúpulas, pórticos, colunatas e terraços, é, fundamentalmente, a cidade barroca renascida de dois eventos, relacionados entre si, que abalaram profundamente a cidade no século XVI. O primeiro deles, de natureza teológica, foi a negação da autoridade papal pela Reforma Protestante, iniciada por Martinho Lutero em 1517. O segundo, o saque de 1527, quando tropas hostis ao Papa Clemente VII tomaram a cidade, pilharam-na e incendiaram grande parte de seus edifícios. Muitos dos invasores, recém-convertidos às teses reformistas, descontaram em Roma todo o ódio que nutriam contra o Papado e contra os excessos sensuais da Igreja Católica. Em resposta a essas agressões, que interromperam a fervilhante cena artística renascentista local, a cidade foi reconstruída a partir de uma nova concepção estética, em que as contradições do tempo seriam transpostas para a arte. Essa é a Roma de Bernini, Borromini, Caravaggio e Pietro da Cortona, entre tantos outros que emprestaram seu talento para assombrar o mundo.

Há quem acredite que o valor estético da arte religiosa esteja em sua natureza transcendental: o artista daria o melhor de si para celebrar a obra de Deus. Essa tese não se sustenta diante da vaidade indisfarçada dos grandes mestres e da vida pouco cristã que muitos levavam. Provavelmente, viam na Igreja o único mecenas disponível. Na outra ponta desse casamento de interesses, a Igreja Católica recorria ao velho expediente de empregar a beleza como instrumento de projeção de poder. A filha dileta desse casamento de interesses é Roma. Eterna, enquanto dure.

#14BelezaCulturaSociedade

O nu feminino como ideal de beleza

por Rose Klabin

Li e reli. Li novamente vários textos sobre a representação do Nu feminino como ideal de beleza. Tanto na internet quanto fora, encontram-se suficientes referências sobre o assunto, um tanto quanto sedutor, para escrever uma antologia, montar um curso ou até mesmo dedicar uma vida inteira de estudos ao “Belo” e aonde este se manifesta, através das mais diversas interpretações sobre o corpo da mulher.

Debruçada em inúmeros textos baseados no Nu feminino, encontrei-me imersa num universo de leituras e significados da história da arte sobre o tema – da mitologia à religião, passando pelo anatômico, ou ainda como representação da beleza e ideal estético da perfeição, como na Grécia antiga. O Nu, na sua faceta mais mundana, relacionada ao erotismo, até a mais espiritual, como ideal de beleza, sempre foi um tópico de pesquisa recorrente na produção artística. Em outras palavras, o estudo e a representação artística do corpo humano, enquanto reflexo da vida, tiveram lugar praticamente em todas as culturas e sociedades que se sucederam ao longo do tempo.

Falar hoje sobre o papel da nudez da mulher dentro da história é um desafio, pois seu espaço foi concedido por uma sociedade que sempre privilegiou os homens. Durante muito tempo, o corpo feminino como objeto de arte foi representado e reproduzido a partir de um olhar puramente masculino – hoje, colocado em perspectiva, considerado controlador e patriarcal. Com o passar dos tempos, os conceitos sobre a experiência do corpo feminino mudaram na medida em que a mulher assumiu um espaço social menos submisso, acabando por determinar sua imagem de forma mais autoral.

A história da arte no Brasil dos anos 1970 não passa por um movimento feminista tão marcado quanto nos EUA e na Europa na mesma época. Por este motivo, a questão da identidade feminina nas artes plásticas não foi contestada e manifestada de forma tão direta no Brasil quanto nas sociedades que serviram como berço destas inquietações políticas. No entanto, foi graças às repercussões globais desta década que a luta da mulher por uma representação mais livre ganhou notoriedade e consistência – conseguindo a figura da mulher assim inscrever sua marca na história oficial da arte.

Hoje, com isso em vista, podemos facilmente afirmar que a nudez faz parte da nossa paisagem visual e é vastamente utilizada como arma política no universo da arte contemporânea. Muitas vezes ainda considerada pelo viés da obscenidade (tão careta que somos!), a retratação do nu por artistas – tanto homens quanto mulheres – vem como forma de questionar os limites do que é permitido expor e do que se deve esconder.

E, assim, o corpo da mulher – em todos os seus mistérios, simbolizando o ventre que dá origem à vida, a beleza natural e a estética pura do parto mais sangrento, com todas as suas dores e prazeres impressos pela existência, a nudez feminina como objeto de contestação política, da sexualidade e da liberdade (ou falta de) nos tempos em que se insere – seguirá servindo como fonte principal de inspiração para a Arte. Ontem foi, hoje é e ainda amanhã o “Belo” será o que o corpo quiser, sempre.

#14BelezaCulturaSociedade

A beleza que nos faltava

por Eduardo Wolf

Cena dois. Você está percorrendo a Tate Modern (mas também poderia ser o MoMA ou o Stedelijk Museum) com a disposição e a boa vontade necessárias para tudo ver e tudo experimentar em matéria de arte, quando depara-se com a obra do italiano Piero Manzoni. Trata-se de uma latinha de alumínio (48 x 65 x 65 mm) embalada por um papel impresso com os dizeres: Merda d’Artista (título da obra), além da quantidade (30 gramas) e de uma breve apologia (algo como “fresquinha”). O conteúdo, bem, em que pese alguma controvérsia, parece ser evidente.

Opor esses dois cenários assim, sem mais, para demonstrar que a arte contemporânea abandonou de todo uma qualidade que sempre a acompanhou – a aspiração ao belo – parece forçado. É, sem dúvidas, simplista. Mas será tal oposição falsa? Parece que não de todo, e é nesse sentido, embora sem o simplismo de meus exemplos, que o filósofo e escritor britânico Roger Scruton argumenta em seu livro Beauty. Fino em suas análises, menos belicoso do que em outros fronts de atuação do autor, o livro depende, em boa medida, de uma premissa verdadeiramente milenar: a beleza sempre foi vista como um valor, de importância tão central quanto, por exemplo, o verdadeiro e o bom – aquilo que os medievais chamaram de “transcendental”.

Que essa ideia seja herança de nossa matriz civilizatória – a Grécia clássica – não parece questão de disputa: já Plotino, filósofo da antiguidade tardia, concebia o ser, o verdadeiro, o belo e o bom a título de propriedades do divino. Mas, se é para falar em matriz, Platão é nosso nome inescapável. E é em seu célebre Banquete que encontramos aquela soberba exaltação de uma forma de amor (Eros) cujo objeto não é outro que a própria Ideia ou Forma do Belo – não este corpo ou objeto belo, não este belo perecível, relativo, circunstancial, mas o Belo em si, objeto último de um desejo que apenas começaria pelas coisas belas do mundo do aqui e do agora para realizar-se plenamente no conhecimento transcendente – divino – daquele Belo eterno e imutável.

Seria essa concepção de Beleza aquilo mesmo que está em falta à arte de nosso tempo, afastando-a do prazer elevado da contemplação apropriada e do mais pleno sentido de transcendência que, em outros tempos, teria definido o que julgávamos ser a arte em suas formas mais perfeitas? A resposta de Scruton é afirmativa, e nisso não está sozinho (o genial George Steiner o acompanha aqui), o que talvez nos deixe em maus, péssimos lençóis: não bastasse a solidão metafísica de um mundo sem Deus, também estaríamos irremediavelmente aprisionados em um mundo sem Beleza?

#14BelezaDesignEstilo

Yves Saint Laurent: reflexões sobre beleza e gosto

por Everton Barreiro

Yves Saint Laurent (1936-2008), o rapaz esguio de personalidade tímida e reservada, de família afluente, nascido na ensolarada África do Norte, tornou-se um dos maiores criadores da alta costura francesa e da moda internacional. Reconhecido após seu apontamento como substituto de Christian Dior em 1957, onde sobreviveu brevemente, Saint Laurent iniciou sua grande trajetória através de sua própria maison – YSL. Através da criação de suas coleções de alta costura e, principalmente, de sua grife prêt-a-porter conhecida como Rive Gauche, Saint Laurent modificou a maneira como a mulher vestiria moda. Refletindo as mudanças sociais e econômicas pelas quais as mulheres do período posterior à Segunda Guerra Mundial passariam, libertou-as dos valores estéticos burgueses de estilo.

Na moda, Saint Laurent criou uma nova elegância de ar moderno, embora preservando a feminidade, sem a necessidade de “enviar a mulher para a lua”, como Courrèges o fez durante a febre da corrida espacial no auge da Guerra Fria. Colocou a mulher em ternos e tuxedos, sem comprometer sua sensualidade feminina. O criador, que preferia estilo em vez de moda, trouxe, com exotismo, a África negra, o Marrocos e o orientalismo do Ballets Russes para os salões de Paris; enviou sua mulher para as savanas africanas, vestindo-a com o casaco de safári, e tirou inspirações das cores fortes e formas geométricas de Mondrian, de quem colecionou algumas obras de arte. Desenhou também figurinos para dezenas de espetáculos teatrais – uma de suas grandes paixões.

Musas… Em busca da beleza feminina, para construir sua obra, Saint Laurent desenvolveu o gosto por mulheres de personalidade e estilo únicos. Fascinava-se por mulheres negras, com uma predileção particular por negras americanas, considerando seus movimentos corporais incomparáveis, tendo a modelo negra Fidelia como exemplo de sensualidade; mulheres com ar de heroína, como a socialite Marella Agnelli, e de características fortes, como a aristocrata e estilista Jacqueline de Ribes, ou Loulou de la Falaise, com seu gosto e estilo inquestionáveis. Dentre outras, a dama do cinema francês e ícone de uma beleza clássica, a atriz Catherine Deneuve, que possuía uma relação próxima com Saint Laurent.

O conceito apurado de beleza e gosto de YSL manifestou-se não apenas em sua carreira e na fascinação por suas musas. Após seu falecimento, em 2008, seu parceiro de vida e negócios, Pierre Bergé, revelou ao mundo uma coleção de arte e design que havia adquirido com Yves Saint Laurent a partir dos anos 1960. Esta coleção, leiloada pela Christie’s em 2009, compreendia mais de setecentos objetos, representando, em seu conjunto, a história de várias partes do planeta, em períodos variados, expandindo-se desde o século XIII até obras de arte modernas e contemporâneas do fim do século XX. Em sua propriedade de Marrakech, mais conhecida como “casa da felicidade”, Yves Saint Laurent desenhava e criava cenários de interior, incorporando suas obras de arte e mobília de design, tudo em harmonia, misturando épocas e estilos distintos, técnica aprendida com os amigos e colecionadores de antiquário e arte que admirava, o Visconde e a Viscondessa de Noailles.

Pertencentes a essa coleção, mestres da pintura de vários períodos históricos inspiraram Saint Laurent, como o artista holandês do século XVI Frans Hals, o mestre da pintura inglesa do século XVIII Gainsborough, além de Ingres, Henri Matisse e Goya. Entre outros, destaca-se a beleza dos traços masculinos nus da série Académie do pintor do período Romântico francês Théodore Géricault. Nomes da escultura, como o de Brancusi; prataria alemã do século XV; e muitos objetos de mobília da era modernista, com destaque para a década de 1920; nomes como Pierre Chareau, Jean Dunand, as banquetas de pele de leopardo (1928-1929) de Gustave Miklos.

Como destaque, a “poltrona de dragões” (1917-1919), de autoria da arquiteta e designer anglo-irlandesa Eileen Gray, cuja especialidade em manipular verniz e laca em formas de art déco iniciou seu prestígio profissional.

Para Pierre Bergé, essa vasta coleção materializou-se através da ambição que ele e Saint Laurent possuíam pelo conhecimento detalhado da história e da obra de cada artista, e pela “admiração” – como descreve – por esses objetos de arte. Por décadas, essa coleção teria sido mostrada em círculos privados, para amigos que dividiam os mesmos conhecimentos. Após a revelação dessa coleção ao público geral, mostrou-se ao mundo a influência que esse conjunto de obras de arte e design – um reflexo de sua vida – teve no trabalho de alta costura e moda de Saint Laurent: o vestido de Mondrian; as esculturas africanas e a paixão pela África, possivelmente inspirando o criador com sua exuberante coleção africana de 1967; o tributo a Pablo Picasso, em sua coleção de alta costura de 1979. Tal como sua imensa coleção de arte, o trabalho de Yves Saint Laurent ultrapassou fronteiras e continentes.

Essa coleção, leiloada e agora desmembrada, também possuía alguns retratos do estilista: Yves Saint Laurent mis à nu, de 1971, de autoria de Jeanloup Sieff, que expõe o criador de indumentária e de moda completamente despido do traje, exibindo sua silhueta frágil com características fortes, como suas mãos e pés. Nesta ocasião, Yves Saint Laurent posava para a campanha de seu primeiro Eau de Toilette, Pour Homme – com olhar profundo e distante através das lentes de seus óculos, expondo um novo conceito de beleza e elegância masculina: delicada, sensível e enigmática, com sua forte – e ao mesmo tempo frágil – personalidade.

#14BelezaArteCinema

Domingos

por Carlos Andreazza

O ofício de editor, muito menos glamoroso do que supõe o senso comum, às vezes presenteia. Para além do trabalho solitário que, imponderável, não raro se multiplica em leitores, isso que é sempre uma surpresa, sempre um golpe de esperança; para além da satisfação em ver um livro brilhar, o prazer egoístico em observar um desconhecido retirar da prateleira e folhear um objeto que, bem antes da materialidade, terá sido, então apenas texto, só seu, ainda que de passagem, ainda que em trânsito; para além do deleite em de repente sentir que aquela sua aposta vingou, venceu; para além do livro, para além do próprio livro!, existe, suprema, a relação com o autor. Nunca igual. Nem sempre boa. Incondicionalmente sagrada.

Escrevo isso enquanto penso no escritor, dramaturgo e cineasta Domingos Oliveira, artista completo, visceral, romântico na acepção clássica do conceito, homem que viveu e vive no estado da arte, na arte, para a arte, com a arte, de arte – artista, criador orgânico, de quem o ofício de editor me aproximou pouco antes de um outro editor, o monumental Tomás desta Amarello (este sim, de vida glamorosa), sugerir-me que cá escrevesse (prato cheio a um conservador como eu) sobre a beleza de um tempo que passou, tempo pré-utilitarismo, anterior ao advento da urgência (e da depressão e de toda sorte de fobias vanguardistas), quando a fruição, o prazer, o gosto, o simples gosto, decorria de um contato que, se não diria puro, era ao menos livre das cartas marcadas de hoje, das marras-amarras de estilo, das expressões indicativas da norma achatada, da impessoalidade, da obrigatoriedade, da uniformidade, dos minutos contados, dos minutos corridos, dos instantes impostos, dos gozos filtrados, compartilhados, cutucados, da ejaculação de estima que depende da aprovação alheia, da curtição alheia, do que se espera de nós, a publicidade, a felicidade!, do que afinal nos anula: tenho que, preciso de.

E, então: Domingos Oliveira.

Conheça-o, ainda que há uma hora, e saiba – eis a transparência: sua obra é sua vida. Tão simples e tão complexo assim. Aquele ritmo que imprime, que sempre imprimiu, a seus trabalhos, aquele é o ritmo de sua existência, de seus sucessos e de seus fracassos. Aquele é o compasso de seu pensamento, de seu humor, de sua originalidade, de seu fraseado, de sua capacidade de se sacanear, de sua franqueza poética, algo muito próprio a quem se sabe artista – para quem, suponho, tudo seja tão mais fácil e tão mais difícil. Ou não?

Reflita, leitor. Como não? Como negar as dores e os amores de alguém cujos filmes e peças são a própria vida? Como, para alguém cujas fronteiras entre real e ficcional, entre amante e personagem, só servem à linha do horizonte projetado, à dimensão da tela, à profundidade da cena?

E é então o caso de considerar se poderia ser diferente. Haveria – haverá – alternativa para Domingos Oliveira? Conhecerá ele outro caminho?

Não é método. Não é fórmula. Não é gesso. Não é preguiça. Nunca! Muito menos vaidade. Jamais escolha. Antes, bem antes, um destino; sim, um destino artístico, uma condenação artística, dionisíaca, um muro radicalmente independente contra o qual só se pode chocar, contra o qual só se pode deslumbrar.

E não é à toa que, ao pensar em Domingos, agora que o frequento, venha-me à mente a mesma imagem que sempre fiz representar sua obra: uma sala e muitos amigos reunidos, informalmente, banalmente, esta matéria de que é feita a verdade, bebendo, fumando, beijando, rindo, brigando, talvez fodendo, talvez dormindo, talvez até de saco cheio – mas sem qualquer marca de tempo, de compromisso, de dissolução, de atraso, de imposição. De saco cheio porque de saco cheio, valor absoluto, e não porque – angústia! – talvez esteja melhor, mais animado, em outro lugar.

Seria fácil rotulá-lo, graciosamente, como um tipo exótico, alguém do século XIX, quiçá da primeira metade do XX; mas seria covarde. Seria uma leitura urgente, apressada, plenamente medrosa, para algo que, a rigor, envergonha-me tratar como exceção atemporal: Domingos, o artista, vive apenas como quer.

#14BelezaCidades

Lei cidade linda

por André Tassinari

Imagine se existisse uma lei que fizesse com que a cidade ficasse mais bonita?

Que acabasse com todos aqueles outdoors mastodônticos, aquelas propagandas gigantes em laterais de prédios, aqueles horríveis banners e faixas em cada esquina, aqueles ofuscantes painéis luminosos?

Que limitasse os letreiros com o nome de cada estabelecimento comercial ao mínimo necessário, extinguindo a guerra para chamar a atenção dos fregueses?

Uma lei que fosse de tão simples entendimento e fiscalização que teria tudo para ser daquelas (raras) que pegam?

Que quando a gente viesse de Guarulhos, depois de visitar uma daquelas cidades lindas de dar inveja, como Londres ou Paris, mesmo assim nos surpreendêssemos com a beleza da 23 de Maio?

Se nas empenas cegas gigantes do centro da cidade, em vez de publicidade, fossem feitos murais de grafite, arte tão paulistana?

Se a revelação de edifícios deteriorados por trás daquele mar de publicidade fosse um estímulo para a restauração e o cuidado constante?

Se a publicidade nas ruas ficasse restrita a locais como pontos de ônibus e táxi, bancos e lixeiras, relógios e caixas de correio, e o dinheiro arrecadado com ela fosse usado para manter, redesenhar e multiplicar isso tudo?

Se o grande destaque da paisagem urbana não fossem anúncios, mas a arquitetura — a verdadeira marca da intervenção do homem, ao criar uma cidade onde antes só havia mato?

Se essa lei ajudasse a elevar a autoestima dos paulistanos e a acabar com o estigma de cidade feia?

Imagine se existisse uma lei que fizesse com que todos aqueles fios horríveis — de luz, telefone, TV, internet — fossem enterrados, eliminando os postes inconvenientes?

Se essa lei exigisse que a Eletropaulo, empresa que é dona dos postes, enterrasse 250 km de fios por ano?

Se uma campanha online, trazendo à tona o absurdo que são esses #malditosfios, nos alertasse para o fato de que, além da beleza, ganharíamos mais segurança e menos chances de queda de energia nos temporais de verão?

Se nas ruas em que os postes e fios não atrapalham as árvores simplesmente porque elas não existem ali, os postes tornados inúteis fossem trocados por ipês, quaresmeiras e murtas?

Se a conta para pagar todo esse investimento bilionário fosse dividida entre as companhias que usam os fios, os fundos investidores e as isenções fiscais da prefeitura, de modo que o consumidor tivesse um aumento mínimo em suas faturas?

Se com isso o enterramento fosse acelerado e em uma década todos os fios do centro expandido estivessem debaixo da terra, de onde nunca deveriam ter saído?

Imagine se existisse uma lei proibindo viadutos opressivos como o Minhocão?

Se fossem feitos estudos de reurbanização das áreas ao redor dos viadutos de maneira a eliminar sua necessidade e garantir o bom fluxo do trânsito?

Se os moradores da região, depois de anos de Aspirina e Dormonid, pudessem decidir se gostariam que os viadutos fossem derrubados ou transformados em parques suspensos?

Se pelo menos a tranquilidade desviada pelo Exmo. Sr. Paulo Maluf fosse recuperada?

Imagine se existisse uma lei que fizesse com que todas as calçadas da cidade fossem lisas e bem cuidadas?

Se nelas pudessem andar tranquilamente cadeiras de rodas, carrinhos de bebê e pedestres (!), valendo-se afinal de toda a largura da calçada, já que não haveria mais postes?

Se a prefeitura reconhecesse que as calçadas são um local público da cidade e que, portanto, a manutenção deveria ser responsabilidade dela e não de cada dono de imóvel?

Se, com a manutenção concentrada em uma mão só, as calçadas pudessem ter um padrão arquitetônico; por exemplo, o simpático branco e preto com o mapa do estado?

Imagine se existisse uma lei que determinasse que cada quarteirão com vagas Zona Azul precisasse também ter uma Zona Verde?

Que cada Zona Verde ocupasse duas vagas de carros e fosse uma mini-praça com bancos, estacionamento de bicicletas, plantas e até uma pequena árvore?

Que até os motoristas apoiassem que uma parte das 32 mil vagas de Zona Azul fosse assim destinada para melhorar a vida dos pedestres?

Que as Zonas Verdes servissem de convite à reflexão para uma ocupação mais harmoniosa da cidade?

Imagine se existisse uma lei que fizesse com que os rios Tietê e Pinheiros ficassem bonitos e cheirosos?

Se finalmente, depois de sucessivos governos e promessas de limpeza, nossos rios voltassem a contribuir para a qualidade de vida dos habitantes?

Se inventassem uma tecnologia que, ainda que não limpasse totalmente os rios, ao menos clareasse suas águas e eliminasse o mau cheiro?

Se assim fosse possível tomar sol esparramado em suas margens nos fins de semana?

Se houvesse uma ciclovia ao longo do rio, que funcionasse todos os dias, para quem fosse trabalhar?

Se o trânsito das marginais melhorasse por causa disso — assim como o humor daqueles presos em congestionamentos?

Imagine se existisse uma lei proibindo a construção de prédios neoclássicos e casas normandas?

Brincadeira… Essa é invenção da minha cabeça. Mas saiba que é a única! Todas as outras leis imaginadas são projetos reais e viáveis, em diferentes estágios de desenvolvimento, de uma simples ideia a uma negociação avançada entre os envolvidos. E devemos tentar apoiá-los da maneira que for possível — no mínimo votando em políticos que os defendam.

A beleza de uma cidade é das coisas mais democráticas que existe. Faz bem a todos os habitantes indiscriminadamente. Não devemos achar que sempre há coisas mais urgentes a melhorar do que a estética. Uma coisa não exclui a outra. Basta usar a criatividade.

Como a Lei Cidade Limpa — a primeira levantada aqui. Ela já existe e foi uma ousada e eficaz ação liderada pelo prefeito Kassab em 2007, com o apoio da Câmara dos Vereadores a partir de pressão da sociedade, e a despeito de interesses setoriais. Traz esperança de que as coisas podem melhorar, apesar do ceticismo de muitos.

O problema é que antes de poder inspirar as outras iniciativas, para que se tornem realidade, a Lei Cidade Limpa precisa se livrar das ameaças que sofre e que podem enfraquecê-la. Saiba que há um pacote de projetos, aprovado em primeira votação na Câmara, que pode abrir uma série de exceções do interesse de poucos — sendo que um dos grandes trunfos da lei é justamente não ter exceções, o que a tornou simples e efetiva. A sociedade deve pressionar a Câmara e o prefeito para que as mudanças ora propostas não passem na segunda e decisiva votação.

Outra grave ameaça é o afrouxamento da fiscalização por parte da atual prefeitura: em 2013, o número de multas caiu 90% em relação a 2012 — uma queda drástica, que é motivo de alarme. O rigor na fiscalização precisa ser urgentemente restabelecido. Temos que valorizar e defender a lei que mudou a cara de São Paulo, nossa linda cidade feia.

#14BelezaArteArtes Visuais

A arte cíclade

por Alberto Rocha Barros

A duzentos e tantos quilômetros de Atenas, numa bacia do sudoeste do Mediterrâneo conhecida como Mar Egeu, existe um conjunto de diminutas ilhas, que inclui as turísticas Milos, Santorini, Mykonos e Naxos. Os gregos do período clássico batizaram essas ilhotas de “cíclades” (kyklades), por formarem um “círculo” (kyklus) em torno da ilha de Délos, sítio de um importante culto. Hoje, esse arquipélago encarna nossa fantasia perfeita da “romântica ilha grega”: são pequenos estilhaços rochosos, com escarpas ricas em cores minerais variadas, encrustados no azul intenso do Egeu, que se funde com o celebrado céu cobalto-púrpuro do Mediterrâneo. Nessas latitudes, a cisão entre mar e ar é tão tênue que os azuis se cindem em profusas variações, contrastando com os belos penhascos áridos das ilhas.

Há mais ou menos quatro mil anos, nessas ilhas, uma civilização pré-histórica vivia seu auge e nos legou um estatuário do qual se enamoraram arqueólogos e antropólogos, artistas e colecionadores: são estátuas de alva brancura, talhadas em mármore cintilante, que aludem à forma humana com doce suavidade e notas de abstração. Quem contempla esses objetos comumente lhes elogia a “quietude”, o minimalismo, o “modernismo” longilíneo e a elegância resguardada.

As estatuetas dessa cultura inspiraram grandes poetas modernos dos volumes corporais, artistas como Arp, Brancusi e Henry Moore (que tinha três estátuas em sua coleção particular). Um exemplar do Museu da Arte Cíclade, em Atenas, celebrado por suas linhas angulares, foi apelidado de “Modigliani”, reforçando as associações frequentes entre os “ídolos Cíclades” (como, muitas vezes, são conhecidos) e as tradições artísticas do século XX.

Mas essas estátuas guardam ainda muitos mistérios e devemos também tentar olhá-las reinserindo-as em seu contexto arqueológico. Esta arte, antes de tudo, é parte da evidência material do repertório visual de uma cultura da Idade do Bronze do Mediterrâneo. Dois trabalhos revolucionaram o modo de pensar a arqueologia dessa região. Em primeiro lugar, o livro The Emergence of Civilization: The Cyclades and the Agean in the Third Millenium BC (1972; reeditado em 2010), de Colin Renfrew, um dos grandes clássicos da arqueologia moderna, responsável por estabelecer muitos dos parâmetros contemporâneos da discussão sobre a história das ilhas, além de utilizar o “caso Cíclade” para exemplificar certos processos civilizatórios que o autor toma como centrais à compreensão de como culturas tornam-se cada vez mais complexas, especialmente no que diz respeito à organização sócio-econômica, modo de produção agrícola, manipulação simbólica e sofisticação tecnológica.

Em segundo lugar, uma poderosa e respeitosa crítica ao trabalho pioneiro de Renfrew foi elaborada por Cyprian Broodbank e publicada sob o título An Island Archeology of the Early Cyclades (2000). Broodbank, como Renfrew, quer fazer um duplo trabalho: por um lado, o levantamento científico detalhado da evidência arqueológica; por outro, utiliza o “caso Cíclade” para pensar questões mais amplas a respeito das civilizações humanas. Privilegia, porém, variáveis distintas das de Renfrew: Broodbank trata as ilhas Cíclades como um caso de arqueologia insular. Ou seja, “ilhas” são habitats que impõem certos desafios particulares à adaptação humana, como, por exemplo, a necessidade de desenvolver tecnologia náutica e ter a exploração do mar como recurso econômico. Para ele, entender os artefatos cíclades demanda considerá-los como produto de uma cultura ilhota. Renfrew olhou para as ilhas comparando e contrastando-as com outros processos de incremento em complexidade cultural em diversas regiões do globo (Oriente Médio, por exemplo); Broodbank optou por utilizar como modelo de comparação e contraste o caso de outras culturas insulares.

Lado a lado, os livros de Renfrew e Broodbank formam um riquíssimo díptico sobre as ilhas: ambos são textos cientificamente amparados em evidências arqueológicas, sem perder de vista grandes questões humanas como as noções de “cultura” e “civilização”. Esses textos são ótima companhia para uma viagem à região.

Uma consequência do aumento do interesse arqueológico nas Cíclades foi uma série de descobertas que nos obriga a alterar completamente o modo como olhamos seu estatuário. Muitas representam mulheres (com algumas estátuas masculinas e outras, hermafroditas), estão comumente associadas a túmulos e cemitérios e eram originalmente pintadas de maneira nem sempre realista (Picasso teria aprovado!). Boa parte dos pigmentos utilizados não ocorre naturalmente na região e demandara alguma forma de comércio ou viagem para sua obtenção. Além disso, as proporções das estátuas sugerem um cuidadoso planejamento matemático antecipado, fazendo uso até mesmo de um compasso para guiar o escultor.

Tudo isso nos diz que o estatuário Cíclade é resultado de um grande investimento cultural. Sua nova vida como fonte de inspiração para a escultura modernista merece ser respeitada e festejada, mas é também uma aventura buscar compreendê-la em seu contexto original e aceitar seus aspectos enigmáticos ou menos palatáveis.

Arrisco uma chave-de-interpretação. O contexto funerário parece-me central. Imagino ritos paralelos transcorrendo: o adorno do corpo morto e o embelezamento da estátua. Enquanto o corpo do falecido se resfria e se enrijece, o mármore da estátua é “aquecido” e “amolecido” pelas mãos do escultor. A vida perdida de um é conferida (transferida?) à pedra antes tão “fria” e inerte. O corpo mole e frágil se esvai em cinzas; já a estátua dura 4 mil anos.

#14BelezaCulturaSociedade

O que é bonito

por Bruno Cosentino

Me contradigo? Tudo bem,
então me contradigo;
Sou vasto, contenho multidões.


Walt Whitman, em Canção de mim mesmo

O que é bonito pra mim pode não ser pra você. Por isso, a beleza é relativa. Mas não podemos relativizá-la histórica ou culturalmente, porque, se algo é bonito para cada um, não basta a generalização do que é bonito para uma época ou para determinado grupo. O mais certo então é acreditar na singularidade da pessoa, na intuição da beleza, na criança quando diz espontaneamente que algo é bonito, pois é aí que nos encontramos todos numa base comum e misteriosa. O ocidente herdou da cultura clássica a associação da beleza à simetria. Mas as linhas irregulares da natureza, a marca das ondas na areia, um solo de Coltrane, o skyline das montanhas, são todos belos e assimétricos. A beleza pertence a uma ordem superior e insondável. As imperfeições lhe são intrínsecas. O belo pressupõe o feio e o feio, o belo. É a partir da pessoa que podemos tocar o absoluto.

Me foi incumbida a tarefa de escrever sobre a cena de música experimental do Rio de Janeiro, relacionando-a com a estética do feio – ligada à destruição, ao caos, à desordem etc. A partir daí, colocou-se então a hipótese de que essa estética teria pouca aceitação do grande público. O problema central poderia ser sintetizado desta maneira: o feio é incomunicável e o belo é comunicável. Como veremos adiante, não é bem assim.

Por enquanto, tentemos entender um dos componentes da equação. Não raro, muitos artistas afirmam que não se preocupam com o público. É verdade que o artista não deve pensar, a priori, na aceitação de sua obra, mas acontece que é movido por um sentimento que, além de seu, é também compartilhado por muitos. O artista possui o dom e a habilidade técnica de cristalizar sentimentos num objeto e, através dele, transmiti-los às pessoas. Esse é o elo. Como diz Léon Tolstói, a arte é um meio de comunicação que transmite sentimentos entre os homens. Por isso, dá particular atenção ao contágio, ou seja, o quanto a obra de arte consegue reunir as pessoas em torno dos sentimentos que evoca. Poderíamos dizer, então, que a arte se realiza em dois âmbitos: primeiro, o formal, intrínseco ao objeto, que encerra em si relações imbricadas de sentido e potência; e segundo, o grau de comunicação – ou de contágio – com o público. O público é imprescindível; sem ele, a obra não existe, senão virtualmente.

O que é bonito? Segundo Nietzsche, “fisiologicamente, tudo o que é feio enfraquece e aflige o homem. Seu sentimento de potência, sua vontade de potência, sua coragem, seu orgulho – tudo isto decai com o feio, tudo isto se eleva com o belo”. Colocando assim o homem como medida da beleza, mesmo a música que provoque em nós sentimentos de dor, ódio e indignação, é bela quando capaz de afirmar nossa soberania individual – aliás, essa é uma possível utilidade prática da arte: mexer com a gente de tal maneira que nos faça remar contra o senso comum da sociedade e tomar decisões concretas e corajosas para as nossas vidas. Isso é tenso!

A tensão provém do fato da música não operar somente no nível fisiológico ou natural, mas também no cultural. Como nos ensina Lévi-Strauss, se por um lado podemos sentir a música no corpo, no batimento do coração ou no ritmo da respiração, por outro, ela é também a oposição e a combinação de todos os sons percebidos no mundo físico, organizados em um sistema cultural – as escalas musicais, por exemplo. A cultura seria portanto um nível de articulação vital para a comunicação entre artista e público, pois consiste numa base de significações comum, assimilada inconscientemente por todos. A beleza na música residiria justamente na tensão entre os níveis da natureza e da cultura, em um jogo complexo que ora quebra, ora confirma as expectativas do ouvinte.

Alguns artistas da cena experimental do Rio de Janeiro já declararam algumas vezes o desejo de que sua música seja visceral. A improvisação, como prática preponderante, também remete a esse estado, uma vez que incita respostas instintivas aos estímulos musicais no calor da performance. O acesso ao estado pré-racional é parte constituinte da lógica de criação de algumas vanguardas históricas da música erudita; por mais que, paradoxalmente, tenha convivido com sua contraparte, uma extrema racionalização, ambas são resultado do mesmo diagnóstico: uma vontade de cisão do artista com a sociedade, seja através dos instintos ou do intelecto. O fetiche vanguardista do novo e a consequente necessidade de rompimento com o status quo, que ressoa nos desejos dessa turma, passam a ser, na cultura musical do ocidente, associados à desordem, à dissonância, ao caos, à fragmentação, à destruição, ao estranhamento etc., as quais Hugo Friedrich chamou de categorias negativas. O desejo de rompimento pode ter dois efeitos recorrentes: o primeiro é a atitude covarde do indivíduo de abdicar da cultura, desfazendo a tensão intrínseca à criação e voltando-se para si próprio de modo egoísta, artifício que muitas vezes serve para encobrir seu fracasso; o segundo efeito é a própria condição do grande artista, que sente no corpo a dor e a delícia de ser o que é, o conflito de ser uma pessoa fundamentalmente só, mas que produz suas obras num contexto social, cultural e histórico necessariamente coercitivo e uniformizador; para ele, a tensão não cessa nunca, pois é justamente ela que o move – esse é o artista que faz coisas belas!

A música experimental do Rio de Janeiro, representada por bandas e artistas como Chinese Cookie Poets, Duplexx, Rabotnik, Sobre a máquina, Cadu Tenório, Marcos Campello e outros, embora circule num nicho restrito da cidade, alcança cada vez mais notoriedade dentro de outros nichos fora e dentro do Brasil. O público pequeno não se deve somente à associação mais estreita desse tipo de música com as formas caóticas e desordenadas de uma estética do feio, até porque a música experimental também deseja eventualmente o belo. A explicação para o reduzido público parece residir no grau de tensionamento entre a natureza e a cultura. Se imaginamos um eixo e colocamos de um lado a natureza e de outro a cultura, podemos dizer que a cena experimental se encontra mais próxima da natureza, evocando estados pré-racionais, instintivos, viscerais. Esse exacerbamento da natureza não satisfaz as expectativas do público médio, que têm origem no sistema cultural assimilado – aliás, essa também é a explicação para a dificuldade de julgamento sobre o que é bom e o que é mera aleatoriedade na música experimental, já que ela faz exigência da subjetividade do ouvinte. Quando a música está mais para o lado da cultura, o mesmo acontece de modo invertido; ela tende a se tornar estéril e não surpreender ninguém. Em outras palavras, podemos dizer que, quanto maior a tensão entre natureza e cultura, maior será o impacto estético da música sobre o público.

Por que será então que mesmo os melhores da cena experimental carioca ainda não conquistaram um público maior na cidade? Parte da resposta está na educação escolar e familiar insatisfatórias e no descumprimento dos meios de comunicação de seu papel de formadores da cultura. Mas também há outra explicação. Normalmente, a música experimental é também instrumental. O fato dela não conter palavras e/ou narrativas a coloca em posição de desvantagem, por exemplo, ante a canção popular, uma vez que as palavras criam, para além do som, um segundo nível de entendimento e comunicação com as pessoas. A aproximação entre a música experimental e a canção é exemplo de alto tensionamento entre natureza e cultura, encontro da vitalidade com a comunicabilidade, de onde podem surgir resultados estéticos surpreendentes. É a melhor promessa de futuro para a música do Rio de Janeiro.

#14BelezaCulturaLiteratura

Beleza é poder

por Léo Coutinho

Alguém disse que “a política é a Hollywood dos feios”. Quem traz a beleza do berço tem meio caminho andado na vida. Faz amigos, namora, fura fila sem pedir, ganha atenções, favores, até arranja emprego com mais facilidade. É o sistema de cotas natural. A cota da beleza.

Consta que a então modelo Vera Fischer, convidada a atuar num filme, argumentou que mal sabia falar. Ao que o diretor replicou: “Você fica pelada?” Ela confirmou e ele disse: “Então não precisa falar nada”.

A vida para as pessoas bonitas é assim mesmo: fácil. E quanto mais beleza, mais facilidades. A beleza exerce poder sobre os demais, inclusive sobre os que também são bonitos. Aos feios resta resignação, com afastamento ou submissão. Mas, como a vida longe da beleza é menor, e abaixo dela, ainda mais pesada, vale o esforço para conseguir poder de outra maneira. Dinheiro ajuda, mas não resolve. Criar outras formas de beleza, através da arte, também, mas é raro. Poder político é tão forte quanto a beleza física e tem a vantagem de ser relativamente fácil e possível em qualquer fase da vida.

O inconveniente da beleza é a velocidade. O auge vem muito depressa e é incomum ter estrutura emocional para usufruir de seu melhor. Daí em diante pode-se até manter-se belo, mas o apogeu terá passado. É quando o bonito experimenta a condenação do feio: resignação, com afastamento ou submissão. Dizer que o inverso é impossível, isto é, que o feio jamais vai experimentar a sensação de ser bonito, definitivamente não consola.

Para manter o ápice da beleza, a humanidade luta com todas as suas forças, mas tudo o que conseguiu foi amenizar o fardo dos feios. A busca pela preservação da beleza criou métodos e tratamentos capazes de diminuir a feiura da maioria. Chega a criar certa confusão, parecendo uma vulgarização da beleza. Mas a beleza genuína é rara. Nenhum feio arrumadinho rivaliza com resplandecer.

Com dinheiro, criação artística e política é a mesma coisa. Temos milhares de exemplos de gente juntando dinheiro, fazendo arte e política para superar frustrações. Mas, da mesma maneira que o belo verdadeiro, o rico ou o talentoso original também ofusca o impostor. E os políticos verdadeiros são facilmente identificados, principalmente quando no exercício do poder. A maioria deixa-se enganar pela conveniência imediata que o padrão médio proporciona.

#17CulturaSociedade

Reflexo

por Helena Cunha Di Ciero

Sentimos o poder da palavra fé logo ao dizê-la: nossa boca se abre como um túnel entre o universo e nosso corpo, formando ali um espaço íntimo e sagrado. Uma espécie de templo. Tão forte quanto um poema, essa palavra de apenas duas letras se basta – e, por outro lado, nos basta e nos acolhe em momentos difíceis, de dor, dúvida e desespero. Trata-se de uma ferramenta interna que utilizamos em busca de esperança e, sendo assim, ambas caminham de mãos dadas: fé e esperança. São estes os alicerces de um outro estado fundamental para nosso desenvolvimento, o da confiança. No dicionário, fé, confiança e credibilidade são sinônimos.

O psicanalista Bion define a fé como uma resposta primordial e profunda de defesa contra o sentimento de catástrofe. É uma experiência emocional, singular. Porém, não se trata de uma fé religiosa – um conjunto de dogmas e doutrinas que constitui um culto. Para o autor, esta fé se torna apreensível quando se representa no pensamento e por meio deste. Se trata da fé na existência de uma realidade verdadeira e última. A fé que move um cientista a ir em busca de algo, mesmo sem dados objetivos.

A beleza da fé é que não precisa de provas nem de sustentar-se em nada racional para existir. Proveniente do grego fides, fidelidade, a fé é. E pronto. O sentido de fé que coloco aqui é uma convicção íntima, um lugar onde não resta dúvida, no qual confio imensamente e onde deposito meu desamparo. E de lá tiro uma outra palavra fundamental para ir adiante: coragem.

É um caminho alternativo que buscamos quando somos frustrados pela realidade. Nesse sentido, ela nos dá uma noção de resistência e também de existência – pois é uma forma de confrontar o presente. Explico: meus exames dizem que estou doente, meu médico também, mas minha fé é maior. É uma fala comum de pacientes nos hospitais, que mostra uma tentativa de encorajamento frente ao medo provocado por estar diante de algo insuportável, como uma doença grave. Eu existo apesar do que está sendo dito, assim eu enfrento de peito aberto o que está por vir. Podemos pensar então como uma forma de desafio do real e, a partir deste sentimento, uma nova realidade pode vir à tona. Nesse sentido, seria a base para mudança. E tampouco são raros os momentos nos quais a fé altera o estado de saúde de alguém. Não falo em milagres, pouco entendo disso. Falo dos fenômenos nos quais as pessoas, apoiadas em suas crenças, modificam um estado que parecia irreversível ou o toleram com mais resignação e menos inquietude.

Sou de origem católica, mas nem um pouco praticante. Sempre me comoveu, porém, a oração do Credo, que começa com a palavra “creio”. O ato de crer em algo, seja lá o que for, nos tira de um lugar comum e nos transporta para o futuro, esperando que algo ali seja mais belo que o hoje. E, nesse ponto, crer ajuda a movimentar-nos. Crer no sentido de confiar. Confiar que além do horizonte exista um outro lugar é confiar em que o movimento trará evolução, que há algo melhor adiante. Nesse lugar da alma é que procuramos uma transformação, uma forma de sonhar e buscar.

A fé não costuma falhar, já dizia Gilberto Gil, e é aliada de nosso trajeto. É ela que move montanhas, que nos ajuda na difícil caminhada da vida. Na peça Alma Imoral, o texto de Nilton Bonder conta que o que fez com que o mar se abrisse foi Deus, comovido com a força do caminhar dos Judeus que fugiam do Egito. Deus, surpreendido pela fé dos fiéis que marchavam, abre o mar. A fé move, comove, clareia, norteia.

Nos momentos de questionamento e medo, testamos nossos recursos pessoais contando com algo interno. Se a realidade responde bem, acredito que minha fé em mim e na força de meu passo foi capaz de uma possível metamorfose daquilo que estava se passando anteriormente.

Uma questão que fica, para mim, como mãe e psicanalista, é como as crianças de hoje, tão viciadas em tecnologia, constroem em si um espaço para que esse sentimento as adentre de forma verdadeira. Se, antigamente, entrávamos em contato com ele quando a realidade nos testava, hoje, com a realidade virtual cada vez mais tomando posse, onde será que a nova geração busca a coragem? Passando de fase nos games? Confiando na força dos dedos ao apertar um botão, em lugar de confiar na força do passo? E, se a realidade é cada vez mais virtual, como é que me diferencio dela a ponto de resgatar em mim um sentimento que possibilite seu enfrentamento? Seria esse lugar da fé somente interno ou externo? Ou seria algo entre esses dois lugares? Uma ponte entre o céu e a terra? Uma terceira margem do rio, talvez? Eu tenho fé que a realidade impera e ensina a partir da experiência, sempre.

#17CulturaLiteratura

Falso brilhante

por Hermés Galvão

Pretinha, de Efrain Almeida

Não é o que não pode ser, mas talvez não sejam mesmo tão iluminados assim, quando os dias não fogem do lugar comum. Longe dos holofotes, parecem ofuscados pela própria sombra de uma vida real, logo eles, idolatrados. Adormecidos da encarnação que incorporam quando estão em ação, parecem tão, assim, apagados da grande existência que lhes fez existir; talvez nem saibam, ou fingem não querer, ser tudo aquilo que se espera deles – mesmo submersas em seu cotidiano obscuro, mentes brilhantes trazem algo de luz na superfície.

Inconscientes de suas fragilidades, inseguros, pensando cada vez mais para dentro, como se ignorar o lado de fora fosse salvá-los de algum imprevisto cada vez mais provável, os artistas tornam a sua dimensão física algo de frágil que, se não comove, ao menos irrita, e muito, a quem não se vê livre da pretensão de ser apenas aquilo que se imagina deles.

A dor e a delícia de ser muito mais do que um só é a forma sinuosa de existência que encontraram para se livrar da dor e do tédio de sua plateia; vistos da coxia, pela cortina que se cerra, pessoas que não ensaiam uma outra história, um personagem por uma noite que seja, são apenas montes sobre cadeiras numeradas, dados de bilheteria com histeria garantida por temporadas que não tardam a findar.

Do lado de lá, de quem age a troco de aplauso, existe um afã angustiante de viver sempre e sempre viver de modo a ser lembrado para sempre. Pode parecer estranho o que vos digo, mas é o que me acontece agora. Por isso há de respeitar as palavras e as manias, as epifanias que colorem páginas em branco e rascunham livros inteiros com ideias desencontradas que fazem sentido quando sentimos o que lemos e não apenas seguimos linha sobre linha em dinâmica ansiosa rumo ao último capítulo.

Ah, sobre o processo de criar, sobre o que e onde dói, machucado tamanho que cicatriza com boa crítica e fere fundo na ausência eterna de um anonimato que jamais virá – o estrelato é capaz de apagar constelações inteiras por dentro, a fama que vem em velocidade de cometa mata a ferro quente no primeiro apagar dos flashes. Na fragilidade de quem só brilha no escuro, dá-se um big bang nem tão grande assim, capaz de abrir um buraco negro no que se vê de alma. Pois é no dia a dia, na comunhão da rotina sem filtro de filme ou beijo de novela, que a arte se expressa em sua confiança irredutível; não se engana a quem tem a fé inabalável de que o artista vive em outro plano, mora na filosofia.

Não queremos deles que sejam compreendidos por todos. Para o bem, para o mal, ou muito mal, desejamos deles o impensável em nós mesmos. E que não nos venham com crises de meia idade ou classe média, que sejam nos palcos o que são de verdade – na verdade não são nada do que parecem nem lá em cima e tampouco cá embaixo. Estão no meio do caminho entre a terra e o céu que nem os protege tanto assim. Não são deuses, também fingem não serem humanos. Querem ser tudo que se pode estar enquanto viverem aqui em sua estranha e fantasiada forma de vida.

Mas veja bem, porque talvez volte agora a não fazer sentido: por sonhar para dentro, tudo que sai da boca para fora é o que há para ser e fazer. Deve-se criar algo para ser lembrado depois, para que possamos recordar de quem passou em alguma mesa de gamão, em certo ponto entre a pracinha e a varanda do asilo. Porque o tempo não apaga as grandes coisas. E sorte a nossa que nunca saberemos exatamente o que iremos levar para o futuro. Adoráveis as incertezas. Vivemos delas. E são elas que devem fazer pensar no tempo como fator relativo. Para no sétimo dia descansarmos em paz.

#17CulturaLiteratura

Pede pros anjos

por Vanessa Agricola

Carneirinho, de Efrain Almeida

Merda, chegou quem não devia. Esse loiro escroto tarado que fica me olhando com cara de tesão. Você acredita que às vezes ele some pro banheiro e meio que demora, daí ele volta e cheira a mão olhando pra minha cara. Juro por Deus. Tudo começou porque ele senta de costas pra rua, e eu virada pra ele, e às vezes nossos olhares se cruzam, sabe? Daí ele entendeu que eu quero dar pra ele, veja bem. Eu grávida. Eu sem um rímel de maquiagem. Eu às nove horas da manhã enchendo a cara de café e tiramisù. Olha lá, a negra bonita que senta na mesa do lado da dele pediu a conta. O cara é um gangorra, já ouviu essa expressão? Ele senta todo mundo levanta. Minha vó Alzira diria que ele não tem uma boa aura. Que gente com aura pesada afasta as pessoas. Não deve ser mentira. Embora minha vó Alzira acreditasse em cada coisa… inclusive anjo da guarda. Qualquer coisa que você fosse contar, tipo, vó, estou pensando em mudar de carreira, ela dizia: pede pros anjos, menina. Mas vó, se eles são anjos eles já não sabem o que a gente precisa? Daí ela tinha outra teoria, que cada um de nós é um deus ou deusa, e que os anjos estão aí para nos obedecer, não o contrário. Eles não podem fazer nada sem o seu consentimento. Se você não pedir, eles não podem te dar… como era fofa… Mas eu só me apego nessas coisas da vó Alzira quando estou na merda. Ajoelho, rezo, peço pelo amor de Deus. Dependendo da merda eu vou até na Juliana, que me limpa os chacras. Quando é uma merda muito grande eu apelo pro xamã. Ele invoca meu animal de poder, os mestres ascencionados, pede para abrirem o portal leste, o portal sul, e ao toque do tambor xamânico me libera os resíduos da memória limitante do meu sistema energético. Sério.

Terreiro de umbanda eu nunca fui, tenho medo. Uma vez fui numa cigana e ela mandou eu pegar uma galinha preta, deus me livre, nunca mais voltei. Morro de medo de macumba. Mas essas macumbas que você compra no mercado, sabe? Banho de sal grosso do pescoço pra baixo, depois chá de rosa branca na banheira, isso tudo eu acho que funciona. A Juliana me ensinou que quando a coisa fica preta, é bom limpar a casa com amônia, mas tem que ser você mesma, e depois queimar uma arruda, e depois acender uns incensos de canela, pela casa toda. Tem que ser um incenso no mínimo em cada canto da casa.

O xamã falou pra ter altar. Você tem altar? Pra mim ele falou que era bom ter um altar de santas e deusas, que no meu caso eu tinha que me cercar do poder sagrado do feminino. Quem sou eu pra contrariar um bruxo. Fui lá e pumba, altar na cabeça. Nunca faço nada. Mas quando o bicho pega, acendo vela, faço a porra toda.

Outra coisa que eu confio muito é tarô. Adoro. Minha vó Alzira achava um troço do pecado. Já astrologia tenho uma relação ambígua, mas quem nunca tomou um pé na bunda e foi parar numa astróloga? Uma vez eu estava muito na merda e fui numa astróloga carioca que me deu uma lição de vida (os cariocas têm muita sabedoria). Ela disse: Calma, garota. Você está nesse emprego que você não gosta, ganhando pouco mas tendo que ajudar a família, com esse namorado chato que não trepa nem sai da moita, mas calma. A vida não vai ser isso o tempo todo.

Essa frase, a vida não vai ser isso o tempo… eu sempre lembro dela. Porque é isso mesmo, a vida muda. É óbvio. Na hora parece que não, que você vai ficar naquele limbo pra sempre, mas a gente sempre se cura, como diria o Legião Urbana. O pra sempre sempre acaba.

Agora, se foi com a mãozinha da Juliana, ou do xamã, do altar, do banho de rosas, da vó Alzira (que Deus a tenha), eu sei lá… Uma vez perguntaram pra Glória Maria qual dos cento e doze cremes e pílulas que ela toma funciona e como ela poderia saber se são tantos. Sabe o que ela respondeu? Aí é que está, eu não faço a menor ideia, por isso eu continuo tomando todos.

A única coisa que deixei de acreditar foi no inferno. Na religião. Qualquer uma. E essa frase o inferno é aqui não me surte nenhum efeito. Coisa de gente infeliz. Imagina que uma pessoa nascida e criada no Brasil pode falar uma bobagem dessa. Ainda se fosse um iraquiano, um sírio…

Vocês viram o cara arrancando a cabeça do James Foley? Menina, me fala o que foi aquilo. E vocês viram que o cara era londrino? Tudo bem, o pai dele era egípcio e morreu num atentado mas… que merda! Que triste, que porra, que puta que pariu! Quando isso vai acabar? E será que eu e você podemos fazer alguma coisa? Será que eu rezo, vovó Alzira? Ei, anjos, parem com essa porra! Essa porra de ISIS! Vou rezar pra você, meu bom Alá, não permita que eles acreditem que é isso o que você quer, seja lá o que você queira!

Isso, minha filha, reza. Nós estamos te ouvindo.

Nós quem?? Quem está falando???

Eles nunca respondem.

Mas não acha que eles existem?

#17ArteArtes Visuais

Portfólio: Efrain Almeida

por Efrain Almeida

Efrain Almeida em seu estúdio.

“Efrain Almeida faz da escultura uma possibilidade de autoimagem, autoficção, onde o lugar geográfico, o interior do Ceará, passa a se apresentar na madeira característica daquela região, a umburana, deixando, muitas vezes, o lugar atravessar seu corpo, apresentado em autorretratos. Esta arte assumira a primeira pessoa como situação, um lugar que questionara o formalismo autônomo, apresentando problematizações sobre a diferença, a desigualdade.”

“Da mesma forma que Efrain se vincula a expressões de uma dada cultura popular brasileira, também partilha de códigos próprios aos criadores urbanos e eruditos. Por isso, em vez de uma bem encaixada relação entre o local de nascimento e a identidade do artista, poderíamos pensar naquilo que Marc Augé definiu como uma ‘individualidade de síntese’. O sujeito, assim, transitaria entre uma concepção mais geral de cultura e aspectos de sua própria individualidade conquistados numa trajetória de vida.”

“Ampliando o sentimento de sagrado, Efrain Almeida se direciona a uma instância liminar. As obras se posicionam entre o descanso e o vôo, a formação de um desejo e sua execução. Tal qual na constituição de um território sagrado, o espaço projetado não é homogêneo, mas sim pontuado por diferenças. Cada escultura pode criar uma ruptura e um congelamento na imagem do vôo, nas poses do corpo, imagens que só conseguimos apreender de uma só vez. O artista, então, nos dá a possibilidade de fixar o relance e refletir sobre a efemeridade de ‘instantes súbitos que trazem em si a própria morte’, como nas afirmações de Clarice Lispector.”

#17CulturaLiteratura

Conversa com Julia Cameron

por Ester Macedo

Conheci o trabalho de Julia Cameron no Canadá, quando estava completamente estagnada na escrita da minha tese de doutorado no final de 2009. Um ano e meio depois, já com a tese defendida, e de volta à Brasília, conversando com amigos decidimos seguir a proposta do livro de nos encontrar toda semana para ler e discutir um capítulo de The Artist’s Way (sem tradução para o português). Mas como não conseguimos encontrar uma versão em português, decidi eu mesma ir traduzindo e enviando um capítulo por semana para nossa discussão. Foi uma experiência bastante rica, e foi consenso de todos no grupo que era uma pena esse trabalho não ser mais conhecido por aqui. Essa entrevista é um passo nesse sentido.

Amarello: A fé e a espiritualidade são o centro de seu trabalho, e mesmo para aqueles que não acreditam em Deus, você apresenta a criatividade como prática espiritual. Ao longo de todos esses anos, você notou muitas mudanças nas pessoas com quem trabalha, quanto à atitude delas em relação a Deus, fé, espiritualidade e religião?

Julia Cameron: Me parece que algumas pessoas se tornaram mais mente aberta. Elas estão dispostas a explorar a criatividade como caminho espiritual, e estão mais dispostas a enfrentar a própria resistência.

A: E a sua própria relação com Deus, espiritualidade e religião? No seu trabalho, você demonstra bastante conhecimento em relação a diferentes tradições espirituais. Você tem alguma filiação religiosa? Você sente que sua atitude em relação a Deus, espiritualidade e religião mudou ao longo dos anos?

JC: Eu não pertenço a uma religião organizada, mas já li muito sobre o assunto e tenho um carinho particular pelo uso da própria criatividade como caminho espiritual. Eu recentemente terminei de escrever duas peças, e durante o processo de escrita fiquei muito consciente de que precisei de fé para colocar minhas ideias no papel. Eu rezava toda noite por orientação e inspiração, e muitas vezes me senti guiada quando me voltava ao papel. Existe um livrinho de preces pelo qual tenho um apreço especial: é o Ideias Criativas, de Ernest Holmes. Leio esse livro de preces toda noite, e me vejo concordando com suas ideias. Eu mesma escrevi quatro livros de preces que estão organizados em uma espécie de “buquê” no livro de preces Preces ao Grande Criador. Tenho que admitir, às vezes eu leio minhas próprias preces e penso “Quem escreveu isso?”.

A: Por outro lado, como os líderes de religiões organizadas – por exemplo padres, pastores, rabinos, monges budistas, etc. – reagem em geral ao seu trabalho?

JC: Eu vejo que meu trabalho é amplamente aceito, e muitas religiões diferentes se identificam com suas ideias. Por exemplo: sufis pensam que eu sou sufi, budistas pensam que eu sou budista, cristãos pensam que eu sou cristã.

A: Em seu trabalho, você fala dos bloqueios mais comuns à atividade criativa, que vem em grande parte de um imaginário nocivo sobre o que é ser artista. Ao longo dessas décadas, você tem notado alguma mudança nesse imaginário e na maneira que esses bloqueios se apresentam?

JC: A essa altura, quatro milhões de pessoas já praticaram o The Artist’s Way. Muitos deles continuam a prática das “Páginas Matutinas” e as “Saídas de Artista” anos após sua primeira exposição às ideias. Ontem à noite, quando eu fui ao teatro, fui abordada por uma jovem que me perguntou “Você é a Julia Cameron, não é?” e eu disse que sim, e ela disse “Eu estou fazendo as “Páginas Matutinas” há cinco anos agora, e eu recentemente terminei de escrever um livro. Eu só queria te agradecer pelo seu trabalho – foi um guia para mim”. Ao longo dos últimos vinte anos os mitos e bloqueios me parecem ter permanecido os mesmos. As mesmas ferramentas funcionam tão bem agora quanto há vinte anos atrás.

A: É possível viver da arte? Você recomendaria alguém a abandonar outras profissões (regulares, estáveis) para se dedicar exclusivamente a uma atividade artística? É possível desfrutar dos benefícios da arte mesmo não sendo um artista em tempo integral?

JC: Eu acredito que todas as pessoas são criativas, e que todos podemos nos beneficiar da prática com ferramentas de criatividade. Eu não encorajo pessoas a tomarem grandes passos para os quais não estão prontas. Em vez disso, peço para elas trabalharem fazendo pequenas mudanças. Mudanças grandes muitas vezes começam com mudanças pequenas. Ontem à noite conheci uma jovem que, trabalhando com as ferramentas de The Artist’s Way, havia se mudado de uma vila remota na montanha para uma cidade grande onde as oportunidades para exercer sua criatividade eram infinitas. Muitas pessoas se dão conta de que não precisam largar seus empregos para praticar a criatividade expandida.

A: Uma das ferramentas centrais em seu trabalho são as “Páginas Matutinas”: três páginas escritas a mão com o que vier à cabeça, diariamente, um “dreno mental”, como você diz, para começar bem o dia. Você descreve muitas vezes a importância delas em sua própria vida. Assim como uma rotina de exercícios saudável, algumas pessoas tem dificuldade de manter esse hábito diariamente, ou mesmo com uma rotina bem estabelecida, às vezes ocorrem de pular um dia, ou uma semana ou semanas. Isso acontece com você? Depois que você começou a utilizar as “Páginas Matutinas”, qual foi o máximo de tempo que você ficou sem escrevê-las?

JC: Eu venho escrevendo as Páginas Matutinas consistentemente há uns vinte e cinco anos. Eu nunca passei mais de alguns dias sem escrever as páginas.

A: Muitas pessoas sentem que não podem ser artistas porque já são pais – seus filhos são o trabalho criativo ao qual precisam se dedicar. Quais conexões e desconexões você enxerga entre ser um pai ou uma mãe e a vida de artista?

JC: Aqui eu preciso falar por mim mesma: eu era mãe solteira quando comecei a escrever – e a ensinar – o The Artist’s Way. Eu escrevi, junto com Emma Lively, o livro intitulado The Artist’s Way for Parents. Esse livro detalha ferramentas e técnicas que ajudam pais a fomentar a própria criatividade, e a de seus filhos. A meu ver, não existe um conflito duradouro entre ser pai ou mãe e ser artista. As pessoas me pediram por muitos anos para escrever esse livro, e eu sempre negava, falando “É só trabalhar com o The Artist’s Way”. Então, quando minha própria filha casou e engravidou, eu me vi pensando que talvez precisasse sim existir uma orientação mais aprofundada. Aí então Emma e eu escrevemos o livro.

A: Em um assunto relacionado, alguns membros do grupo estavam se perguntando se seria apropriado trazerem seus filhos adolescentes para os encontros: por um lado, parece um ótimo jeito de estimular seu lado criativo; por outro, crianças e adolescentes não parecem ter tido experiências – ou mesmo bloqueios – o suficiente para precisarem de uma recuperação artística. Você acha que existe uma idade mínima recomendada para a pessoa conseguir se beneficiar do The Artist’s Way?

JC: Eu me vejo assumindo uma postura protetora em relação a pais e adultos. Na minha experiência, eles estão sempre muito dispostos a colocar o foco nas pessoas jovens, negligenciando suas próprias necessidades. Então eu diria que não – não leve os filhos para os encontros. Mas eu acho também que a prática das “Páginas” pela manhã pode beneficiar crianças de doze anos para cima. Adolescentes anseiam por privacidade, e as páginas dão a eles exatamente isso. Eu sugeriria usar as “Páginas Matutinas”, “Saídas de Artista” e caminhadas como ferramentas apropriadas tanto para adolescentes quanto para adultos. Pode ser que eles já tenham se deparado com situações que os bloqueiam. Não se preocupem muito com isso – os deixem encontrar o próprio caminho.

A: Você também diz que nunca se é velho demais para descobrir o próprio artista interior. Você tem ou conhece alguém que tenha experiência trabalhando o The Artist’s Way com idosos?

JC: De novo, a sua pergunta é bastante certeira: o livro no qual estou trabalhando agora com Emma é um livro sobre criatividade na terceira idade. Na minha experiência de professora, aqueles que estão na casa dos sessenta, setenta e oitenta muitas vezes são os que experimentam os avanços mais significativos e alegres.

A: Na introdução do The Artist’s Way você descreve um tempo em que atingiu o fundo do poço, e diz que as ferramentas ali apresentadas ajudaram você a superar aqueles tempos difíceis, em especial sua luta contra o alcoolismo. Você tem ou conhece alguém que tenha experiência trabalhando o The Artist’s Way com pessoas em situações difíceis, como em hospitais ou em centros que lidam com vício, doenças físicas ou mentais, ou conflitos com a lei, por exemplo?

JC: The Artist’s Way é um kit de ferramentas terapêuticas. Eu já ouvi de muitos casos de utilização do livro em centros de reabilitação, centros para idosos, hospitais, prisões e afins. Não tenha dúvida: as ferramentas são um bálsamo eficiente para muitos indivíduos que estão passando por dificuldades.

#17CulturaSociedade

Desenhando o divino

por Sofia Borges

Capela de Bruder Klaus, por Peter Zumthor

Eu posso não ser uma pessoa religiosa, mas tenho fé. Eu posso não visitar a igreja de minha seita, mas visito capelas, locais sagrados e locais de culto nas cidades nas quais moro e nos países que visito. Dentro desses estabelecimentos acendo velas por aqueles que perdi, e me maravilho com as qualidades extraordinárias dos tetos abobadados, além dos ornamentos e vitrais. A noção de fé engloba tudo, desde a crença em um deus específico e uma ordem religiosa até valores fundamentais de compreensão do nosso lugar no mundo. Independentemente das inclinações religiosas, ou da falta delas, a noção de fé e de como representá-la na arquitetura permanece um desafio universal passado de mão em mão há milhões de anos. Esses espaços, desenhados para evocar a sensação de algo superior, agem como santuários críticos para que consigamos nos agarrar à nossa fé quando testada. Eventos fora de nosso controle, que fazem com que caiamos de joelhos de tanta dor e incredulidade, são os mesmos que nos humanizam. Os locais que procuramos para conseguir refúgio e consolo recebem uma importância ainda maior nesses momentos de turbulência. Oscilando entre o celestial e o artificial, a arquitetura da fé transcende as convenções enquanto explora os limites entre o tempo de uma vida finita e a eternidade.

Tradicionalmente, o processo de construção de um local sagrado era entendido como algo que demorava mais a ser completado do que a própria vida do arquiteto eleito. Do Vaticano à Sagrada Família de Gaudí, alguns dos locais de culto mais icônicos trocaram de mãos diversas vezes ao longo de décadas, até de séculos. A árdua tarefa de se projetar algo que provavelmente não se verá terminado captura o espírito da arquitetura baseada em fé. Os construtores da Catedral de Sevilha (século XVI), a terceira maior do mundo, famosamente aspiravam ser lembrados como homens loucos. Quem mais trabalharia com tanto afinco para criar uma estrutura tão luxuosa e sem precedentes, cuja data de inauguração estava marcada para bem depois de suas mortes? Transitando o limite tênue entre brilhantismo e insanidade, os arquitetos dessas maravilhas sagradas desafiavam a imortalidade ao canalizar a convicção transcendental que os seus espaços, uma vez completos, continuam a inspirar.

A ascensão do modernismo silenciou a exuberância de detalhes e qualidades dos períodos da Renascença, Barroco e Gótico, sem sacrificar o impacto emocional. Essas expressões mais recatadas de divindade são espaços para adoração, admiração e reflexão que se focam menos na representação e nos ornamentos, e mais nos aspectos fenomenológicos encontrados na luz, na materialidade, na escala e na procissão. Temos exemplos de meados do século, desde a Notre Dame du Haut, de Le Corbusier, à Chapelle du Rosaire, de Matisse, que oferecem redutos iluminados, embora formalmente abstratos, para o culto pessoal e coletivo. A capela intimista e humilde de Matisse é um pano de fundo discreto para que suas reinterpretações abstratas e alegres de vitrais iconográficos fiquem em destaque. Além de reduzir a quantidade de ornamentos, muitos dos recentes locais de culto também usam escalas diferentes das de antigamente. A capela celestial Bruder Klaus Field, de Pater Zumthor, dialoga com o potencial que até os menores espaços têm de exaltar e reviver nossa apreciação pelo dia a dia. O micro-santuário, desenhado e construído por fazendeiros rurais, exibe um interior de textura carbonizada banhado em luz – o fantasma da impressão deixada pela estrutura de madeira que foi queimada ao chão.

Se suntuosos e grandiosos, ou a verdadeira essência da simplicidade, todos esses diversos locais sagrados manifestam em nós sentimentos similares de deslumbramento enquanto exploram as qualidades viscerais encontradas no limite entre o nosso mundo e o próximo. Esses cenários sublimes nos acolhem quando nosso mundo está abalado, e permanecem conosco muito depois de termos partido. Misturando o secular e o espiritual, o arquiteto da fé coreografa um ambiente imersivo ao mesmo tempo vazio e cheio. O trabalho do arquiteto de materializar esses conceitos efêmeros, emocionais e misteriosos se torna a expressão definitiva de nosso desejo compartilhado de transcender o tempo de uma vida.

#17ArteArtes VisuaisCidades

Donald e o deserto

por Tomás Biagi Carvalho

Julia Cameron, em seu livro The Artist’s Way, diz que criatividade é fé, e que temos de ser fiéis a essa fé para que estejamos dispostos a compartilhá-la com os outros, para os ajudar e sermos ajudados em troca. Ela propõe um programa de doze semanas para aquele que está com sua criatividade bloqueada, para que se conecte a algo maior, e para que deixe seu Deus trabalhar através você.

Marfa é uma pequena cidade no meio do deserto no velho oeste texano, onde você pode andar cem quilômetros de carro e não encontrar absolutamente ninguém. Lá, devido à vastidão e à superfície plana, entende-se claramente que a terra é redonda, e isso, junto com o espírito independente you can do it texano, cria uma atmosfera muito fortalecedora.

No começo dos anos 1970, Donald Judd estava frustrado com os pequenos espaços expositivos das galerias de Nova York, e com a quantidade de gente que ia para o Soho, onde morava. Em 1971, se muda com a família – e com toda sua produção artística – para Marfa, para construir um dos seus mais ambiciosos projetos até então. “Acho que gosto de menos gente, e mais espaço”, disse. Ao chegar à pequena cidade de 1900 habitantes, comprou dezesseis prédios decadentes, uma base militar desativada inteira e três ranchos, que juntos somam mais de 45 acres. Na antiga base militar, Judd transformou os dois gigantescos hangares principais da propriedade em uma catedral de arte moderna.

Paredes de vidro fazem com que a intensa e plácida luz do sol texano ilumine sua série de caixas de alumínio feita especialmente para o local. O conjunto de cem caixas é hipnotizante. Judd construiu a Fundação Chinatti no deserto, com o intuito de acalmar o excesso de emoção nas artes das gerações anteriores a ele, mas o silêncio ensurdecedor dos hangares e as cores plácidas do deserto refletidas no alumínio têm uma carga emocional muito maior que qualquer tela pintada de vermelho.

Em seu manifesto Specific Object, Donald defende que a arte deve existir por si própria. Ou a obra fala com você quando a observa, ou não. Simples. Para ele, o espaço fazia parte da obra, tanto que fez trabalhos específicos, não só para os galpões em Marfa, mas para outros lugares também. Sua obra completa é formada pelas caixas, o galpão, a luz do deserto e a paisagem de fora.

Contra a instituição museu, Judd não acreditava que seus trabalhos precisavam de placas com títulos, muito menos com explicações. Nas fundações em Marfa, o próprio guia é quem tem a chave de todos os pavilhões, e quem os abre para os visitantes. Judd pensava que a grande arte estava nas atividades domésticas diárias, no convívio com a família e no diálogo constante com seus filhos. Por isso, em todos os cômodos de seus prédios, sejam espaços de trabalho ou de moradia, havia uma cama, onde seus amigos quando o visitavam dormiam rodeados de seus trabalhos. As atividades diárias eram melhores se feitas rodeadas por arte. Por isso, também, a importância de manter tudo como ele deixou – o que as fundações fazem com rigor e maestria. Cada objeto, móvel, obra de arte e vestimenta deixadas por ele estão exatamente onde foram programadas para estar, pois criam uma relação entre as coisas e as pessoas que ali vivem/passam. No museu tem-se uma relação passiva com a arte, mas não ali.

O minimalismo, com sua mensagem direta, não foi apenas um movimento artístico. Diferentemente das religiões, com todos os seus códigos e ruídos, propõe-nos que nos livremos do desnecessário. Tampouco simples – diria aí estar sua importância –, faz-nos aparar arestas e chegarmos ao essencial. As formas puras de seu trabalho, que resultam de uma radical simplificação, dos materiais e das cores, abrem um canal de comunicação direta e sem devaneios com o da fé. A mensagem existe por si só, e você simplesmente acredita, assim como Deus, sem maiores complicações.

Judd não traz sentimento religioso para entender o trabalho. Deus e fé seriam abstrações que distraem de experiências diretas. Mas entendo que seja bastante natural ter esse tipo de reação, e começar a pensar pelo caminho do grande caráter da arquitetura e dos trabalhos.

Fé é simplesmente um sentimento de que “algo maior” está presente. Acredito também que um outro tipo de fé pode ser aplicado ao seu trabalho: a fé que as pessoas podem entender e por meio da qual se conectar a ele, sem referências a objetos existentes ou representações. Judd acreditava que as pessoas conseguem enxergar os trabalhos pelo que são e significam no momento em que são apreciados.

Através da sua proporção meticulosa e síntese da forma, junto com o deserto, com seu espaço e vastidão, Donald Judd me conectou a algo maior.