#33InfânciaCulturaEducaçãoSociedade

Tempo e cotidiano: tempos para viver a infância

por Maria Carmen Silveira Barbosa

Índios do clã Amondawa, tribo que vive fora do tempo.

“A infância é quando ainda não é demasiado tarde.
É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos,
para nos deixarmos encantar.
Quase tudo se adquire nesse tempo em que
aprendemos o próprio sentido do tempo.”


Mia Couto

Se compreendermos que educar é acompanhar, com atenção, os novos em seus começos e em sua imersão no mundo, não há nenhuma dúvida de que os modos como organizamos a vida cotidiana nas instituições educacionais têm grande importância na formação das crianças. No entanto, a valorização do cotidiano e sua compreensão como elemento fundamental de uma pedagogia não têm como se enraizar em concepções de educação que estejam atentas apenas às normas, às transmissões de conteúdos e às avaliações.

Observei que a vida coletiva na educação infantil se estrutura no cotidiano a partir de algumas variáveis como o modo como os espaços são organizados (móveis, decorações e acessórios) ou as materialidades que estão à disposição do grupo (jogos e brinquedos, objetos cotidianos, materiais artísticos, científicos e tecnológicos) e que oferecem as possibilidades para as ações das crianças – individuais e em grupo – e para estabelecer relações de convívio entre adultos e crianças.

Cada integrante de um grupo traz uma experiência cultural, social, emocional diversificada, seja ele um bebê, uma criança pequena ou um professor. Portanto, quando se encontram em um mesmo espaço essas pessoas e suas experiências, há necessidade de tempo para transformar esse espaço em um ambiente – um lugar – onde ocorra o encontro e a construção de uma vida em comum. O tempo é a variável que imprime movimento, energia, ritmo para que as crianças e os professores possam viver, com intensidade, a experiência da vida coletiva no cotidiano. É ele que nos oferece a dimensão de continuidade, de durabilidade, de construção de sentidos para a vida. Mas é também o tempo que irrompe e, em um instante, desvenda outros caminhos, desloca, desvia, flexiona outros modos de ser, ver e fazer.

O tempo é, portanto, um tema fundamental para a organização da escola infantil, pois é uma categoria política que diz respeito não somente à vida das crianças, mas à vida de seus pais e também dos seus professores. O tempo é um articulador da vida; é ele que corta, amarra ou tece a vida: individual e social. É o tempo que nos evidencia que temos um passado comum, uma memória e uma história: que é preciso compreender esse passado, mas também distanciar-se dele para não ficar aprisionado, repetindo-o.

Compartilhar a experiência do passado para, assim, pensar e projetar possibilidades para o futuro. Viver o presente. É o tempo que nos oferece a dimensão de durabilidade, de construção de sentidos para a vida.

Isso nos encaminha para algumas perguntas: de que modo estamos vivendo o tempo nas escolas de educação infantil? Como temos vivido o tempo em nossas vidas como docentes e ensinado as crianças a vivê-lo? Como organizamos o tempo na escola ou como estamos sendo por ele organizados?

TEMPO ACELERADO, TEMPO DO CAPITAL

No final da década de 70, Félix Guatarri escreveu uma importante reflexão sobre a creche. Afirmou que a creche era um espaço de iniciações e que a iniciação fundamental era a da inscrição das crianças num tempo – mas não qualquer tempo: o tempo acelerado do capital. Quando essas palavras foram escritas, talvez não estivesse tão evidente, para todos nós, professores, o impacto que a reconfiguração do tempo e do espaço causaria no mundo contemporâneo. Nos últimos anos, nas escolas de educação infantil – apesar da sua aparente (im)produtividade econômica –, pode-se observar a presença do tempo do capital como uma pedagogia implícita. As manifestações dessa pedagogia podem ser observadas em diversos elementos:

Ausência de tempo – Os professores dizem que falta tempo. Falta tempo para fazer tudo aquilo que desejam e tudo aquilo que deles exigem. Estão angustiados e não têm tempo para escutar as crianças, olhar para cada criança.

Pressa – Essa velocidade se manifesta no modo como a infância vem tendo diminuída sua duração no início deste século e também no modo como as crianças são apressadas para atender aos horários da instituição e para acompanhar o ritmo dos demais colegas.

Fragmentação do tempo – As ações das crianças são reguladas por tempos fixos estabelecidos pelos adultos, sem encadeamentos: nem intelectual, nem corpóreo, isto é, sem sentido pessoal. Em uma rotina de vida sem sentido, as ações não deixam marcas.

Produtividade – A priorização da realização de tarefas que se encerrem com produtos avaliáveis.

A regulação temporal que caracteriza a vida contemporânea com a tríade produção-acumulação-consumo atropela e desapropria o tempo da vida. Para dar conta dessa regulação são construídos nas escolas artefatos como cronogramas, horários, rotinas, que, ao invés de organizar o coletivo, mais o controlam. Um tempo que é visto apenas como tempo cronológico, linear, sequencial. Todo o tempo investido livremente pelas crianças nas coisas que lhes dizem respeito, nas coisas que as afetam, naquilo que as desafia, que as distingue, se não tiver uma produção objetiva, é visto como perder tempo. Portanto, o que encontramos nas escolas infantis é a presença desse tempo característico das relações capitalistas, que brutaliza a vida cotidiana e empobrece a experiência da infância. Um sentido de tempo que apenas passa, cumprindo o ordenamento da produtividade.

E o que fazer com esta realidade? Aceitar?

OUTROS SENTIDOS PARA O TEMPO

Pensar o tempo no cotidiano da educação infantil tendo em vista criar rupturas está vinculado à ideia de romper com a compreensão do tempo linear e com a dinâmica de aceleração imposta pelo sistema capitalista. A aceleração provoca a ausência de sentido naquilo que se realiza cotidianamente na vida, na escola, pois, paradoxalmente, oferece uma sensação de muitas tarefas realizadas, mas de fracasso no sentido da realização docente, e uma derrota no sentido de educação das crianças – a vida basta com produção e consumo.

Um modo de romper com essa realidade é refletir acerca de outras acepções de tempo: como aquelas pensadas pelos gregos, que, além de chronós – o tempo sucessivo do passado–presente–futuro, compreendiam o tempo também como kairós, isto é, o instante, o momento crítico, a oportunidade, que é preciso marcar, ou ainda o tempo como aión, isto é, intensidade, duração. Os antigos mesoamericanos inventaram calendários onde contavam o tempo não apenas como diacronia, mas também como sincronia. Alguns povos amazônicos contemporâneos, como os Krahô, constituíram uma noção de tempo a partir de seu universo simbólico e pensam-no como uma força que produz a vida tanto através do seu escoar como também em alternâncias: nascente/poente, seca/chuva, tempo do sol (rápido) ou da lua (lento), isto é, o tempo como criação. No limite, podemos encontrar o não pensamento de tempo como na nação Amondawa que, apesar de saber contar eventos sequencialmente, não separa o presente dos eventos que aconteceram ou acontecerão em outros momentos. Essa diversidade cultural das compreensões do tempo pode nos ajudar a pensar sua interação com modelos de educação e escola e os modos como são oferecidas às crianças as experiências de infância.

O TEMPO DO COTIDIANO SE CONSTRÓI NA VIDA COLETIVA

Na educação infantil podemos incorporar, nas práticas da vida cotidiana, outros modos de conceber e produzir o tempo, formas que rompam com a lógica temporal dominante. Construir tempo para estar junto e fazer-se presente, isto é, estar com as crianças, atentos, interessados, tranquilos, solícitos, acompanhando, estando junto, perguntando, inventando com elas. Ser presença e guardar espaço para que a criança se torne presença no mundo. Podemos pensar em três práticas pedagógicas, que nasceram nos processos iniciais da educação infantil, mas que hoje estão sendo substituídas por práticas de escolarização: compartilhar a vida, brincar e narrar. Três modos não lineares de viver e contar o tempo.

Uma das ideias mais potentes constituídas pelas pedagogias da educação infantil foi a de caracterizar a escola como um lugar de encontro. A escola como um lugar para o qual as crianças se dirigem, todos os dias, com segurança e tranquilidade para, através do acolhimento e reconhecimento dos demais, aprender a viver – fazer suas iniciações à vida comum. Um ambiente onde as pessoas compartilham as coisas simples e ordinárias do dia a dia e também geram contextos para que o extraordinário possa invadir o cotidiano.

Para constituir encontros na vida cotidiana, é necessário um tempo longo de permanência e, também, a participação de todos na definição dos usos do tempo que se realiza no cotidiano da escola. As novas gerações podem compreender o tempo como um bem precioso, como algo que cada um de nós pode usufruir e usar de modo pessoal. Algo que não pode ser, banalmente, vendido ou comprado, mas sim dividido, compartilhado, usufruído. Aprender a valorizar e a apropriar-se do próprio tempo é oferecer às crianças instrumentos de resistência aos tempos do capital. O tempo é aquilo que nos resta, é a única coisa que ainda nos pertence.

A vida cotidiana é a vida mesma; nela estão em funcionamento os sentidos, capacidades, sentimentos, paixões, ideias, pensamentos. É através das experiências compartilhadas na vida cotidiana que aprendemos muito daquilo que usamos para estar no mundo e conviver com os demais; é com essa bagagem que nos inserimos como copartícipes nos valores e especificidades de nossas culturas. Construir a experiência, narrar a experiência, aprender da experiência. Qual o valor de todo o patrimônio cultural, se a experiência não o vincula mais às crianças? Torna-se necessário captar os elementos sensíveis da vida cotidiana e relacioná-los aos processos sociais, históricos e políticos para que eles façam sentido para as crianças e ofereçam a elas outros olhares e modos de viver.

É a partir das vidas cotidianas que os bebês realizam suas experiências iniciais com os objetos, com os amigos, com as pessoas que os alimentam, com suas brincadeiras e com as histórias que escutam e as músicas que ouvem. São esses pequenos atos, feitos em conjunto, que dão início à construção de um mundo real e à formação de um mundo imaginário, assim como à possibilidade de inventar formas dilatadas da vida, ligando as artes do fazer às artes do viver. Com os adultos e as demais crianças, cada bebê ou criança aprende maneiras de estar e se relacionar com o mundo, criar seu estilo de ser. Cabe aos adultos, em seu papel de acompanhantes mais experientes, ofertar tempo para escutar uma poesia, uma música, uma voz, imagens, ideias que ampliem as sensibilidades infantis. O cotidiano como o lugar do ritual, do repetitivo, mas que escuta o extraordinário que existe no dia a dia. O cotidiano é onde se aprende a ver a beleza das pequenas coisas.

Será no exercício compartilhado da vida coletiva que as crianças irão socializar-se, aprender a conviver, confrontar, discutir, procurar soluções com seus pares e o apoio dos adultos. A democracia, mais que uma forma de governo ou um modo de vida social, é uma estruturação simbólica do ser em comum, de uma vida coletiva, aprendida no cotidiano. Construir tempo para estar junto é fazer-se presente, estar com as crianças, deixar as crianças atentas, interessadas, tranquilas. Instaurar conforto, solicitude, respeito. Valorizar o realizado, escutar o que dizem as palavras e os gestos, escutar os pontos de vista. Não solicitar em excesso, intrusivamente, obliterando ou roubando o tempo de inventar. A vida cotidiana está permeada pela vida política, nas artes do fazer, do agir, das relações entre as pessoas, e por isso também tem uma função ética e política, que é a da relação respeitosa com o outro, da formação da memória, da narrativa e da transmissão da experiência, oferecendo o deleite estético. Constituir uma relação da educação com a democracia que não seja nem iluminista nem instrumental – que pretendem, através de uma preparação em conhecimentos e habilidades, formar sujeitos racionais, autônomos e democratas –, pensando a democracia como ação política, realizada no e por um coletivo, em contextos onde as crianças possam propor inícios, fazer suas pesquisas e investigações num espaço de pluralidade e diferença. Aprender a viver junto é algo que se faz na escola infantil; é tarefa de seus professores. Começa quando as crianças chegam à escola, isto é, quando não estão mais nas suas famílias, mas num espaço de diversidade e heterogeneidade. Compreender isso, estar juntos e compartilhar a cotidianidade desses tempos vividos juntos é um primeiro ato de resistência a um mundo definido previamente. É uma mudança que comporta muitas mudanças.

Texto adaptado do original, publicado em Leitura: Teoria & Prática (v.31, n.61, 2013)

Maria Carmen Silveira Barbosa é doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Originalmente publicado na edição Infância
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#32TravessiaArteArtes VisuaisCulturaSociedade

Pontes sobre abismos

por Aline Motta

Este é um projeto sobre a vida.

Se tudo que fazemos na vida é atravessar abismos, este projeto é sobre pontes. Pontes de palavras e imagens, pontes de busca por entendimento. Pontes sobre o atlântico.

É um projeto que fala sobre a minha família, mas poderia falar também da sua.

A história se desenrola a partir de um segredo. Um segredo de avó para neta. O que, na história de uma vida, deve ser lembrado e o que deve ser esquecido, como curamos traumas pessoais, familiares e coletivos?

Uma vez ouvi, numa palestra do intelectual paulistano José Fernando Peixoto de Azevedo, que “o transe pode ser vivido como uma forma de convívio entre o presente e o passado. Uma presentificação do passado, que se dá como uma conversa que atravessa corpos. Quando você vive uma experiência de transe, você escuta vozes de um passado que voltam, porque reclamam justiça.”

Um segredo comunica algo indizível, mas, se sou eu a portadora dele, devo revelá-lo sob que circunstâncias?

Não é uma coincidência que a família da minha bisavó tenha vindo de Vassouras. A população escravizada da cidade, por conta das lavouras de café, foi a maior da província do Rio de Janeiro e provavelmente a maior do país. Em 1850, a população de Vassouras era totalizada em 28.638 habitantes; entretanto, 19.210 eram escravizados e somente 9.428 eram pessoas livres.

Também não acredito ser coincidência que minha bisavó, Mariana, tenha recebido o mesmo nome de Mariana Crioula, cúmplice de Manuel Congo. Eles foram os líderes de uma das maiores rebeliões de escravos já ocorrida na região, a revolta de Vassouras, ocorrida em 1838. Manuel Congo foi enforcado e não teve o corpo sepultado. Mariana foi poupada. Os demais rebelados voltaram ao cativeiro e, como pena, receberam 650 açoites, parcelados em três anos.

Quem são meus pares? Para quem eu faço arte e para quê?

Quem legitima o trabalho artístico no mundo e no mercado de arte legitima também esse tipo de investigação?

Quem veio dessa violenta “mestiçagem” e procura o seu lugar, a todo tempo se vê em posições de opressão, mas também de privilégio. A pele mais clara nos faz permeáveis a esses diferentes espaços de existência. A partir desse ponto de vista, entre-mundos, o que pode vir à tona quando estamos a procura de nós mesmos?

Texto originalmente publicado na edição Travessia

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#33InfânciaCrônica

Mambucaba: onde mora o medo e a infância

por Vanessa Agricola



Eu vou tentar escrever uma história que eu tenho medo de contar, porque eu tenho medo de não conseguir, e mais medo ainda de conseguir. Medo de a Keyla ler. E a minha mãe. Só que Mambucaba é uma ficção. A vila dos trabalhadores da Usina Nuclear de Angra dos Reis nunca existiu. Nem o Paulo Felipe, nem a Carla Andreia. Serão todos nomes inventados. O local onde foi construída a Usina talvez seja uma coincidência, até porque só tem uma. Mas eu juro que Mambucaba é uma mentira. Até o nome não significa nada; uma abelha, ou uma planta. Eu prefiro acreditar que Mambucaba significa: passagem. A própria infância é um lugar de passagem, fica bonito assim.

Mas eu não sei se eu passei por Mambucaba ou se ainda estou lá, linda e com medo. Às vezes, eu sinto que vou morar para sempre na Rua Pará, 25, fugindo das corujas. Fugindo das ondas. Fugindo das caras que as pessoas faziam para mim e para a Keyla: “Que linda! A cara da mãe dela”. Fugindo de entender as coisas que as pessoas falavam da minha mãe e da Keyla. “Como é que está a sua mãe, ela tá bem? Fala que eu mandei um beijo, ela me conhece.” Fiquei com medo da maledicência. Medo da maldade.

Todos os trabalhadores da Usina Nuclear eram contratados por um determinado período de tempo, menos o meu pai, que se aposentou e continuou prestando serviço. O resto inteiro foi embora de Mambucaba. A minha mãe foi a primeira. Depois, a Andreia foi morar em Jacareí. Depois, a Adriana chegou lá em casa com um batom de moranguinho e uma cara triste. Eu não me acostumei. Acabou a obra de Angra I, foi uma leva; acabou a obra de Angra 2, foi outra. Fiquei com medo da falta. Medo de gostar das pessoas.

Muita gente morreu em Mambucaba. Meu pai foi o último. A primeira foi a Carla Andreia. Eu tinha sete ou oito anos, a Carla Andreia tinha onze ou doze. A gente ouvia a Carla Andreia gritar de dor, ficava um silêncio. A gente ouvia a Carla Andreia gritar de dor, ficava outro silêncio. Mambucaba parece muito aquele filme do Leonardo DiCaprio, A Praia. A história da Carla Andreia foi igualzinha à história do personagem que é mordido por um tubarão. Todos da última quadra ficavam ouvindo a Carla Andreia gritar de dor, e, no silêncio, esperávamos que ela morresse. Ou melhorasse, mas o câncer já tinha se espalhado. Fiquei com medo do câncer.

A mãe do Paulo Felipe também morreu de câncer, só que o Paulo Felipe morava lá na primeira quadra. Minha mãe não se conformava. Ela se cuidava tanto, não era justo. A mãe do Paulo Felipe foi do tipo que já comia comida macrobiótica nos anos oitenta. Durante muito tempo, minha mãe usou o exemplo da mãe do Paulo Felipe para justificar o cigarro. Fiquei com medo de a minha mãe morrer de câncer no pulmão.

Um dia, a Carla Andreia “descansou”. Os adultos de Mambucaba pularam a parte das estrelinhas e vieram com essa expressão mais honesta. Ainda sem prever as mortes da adolescência, todas de acidente de carro. A irmã mais velha da Ló, a Cris, a Tatá Bolão, depois a outra irmã da Ló e o irmão da Carla Andreia, o Paulo; os adultos só disseram que eles morreram. Ninguém de Mambucaba virou uma estrelinha: “Filha, aqui têm muitos espíritos”.

Meu pai engrossava o coro que Mambucaba tinha sido um cemitério de índios (para ajudar a entender as tragédias). Fiquei com pavor de andar em Mambucaba de noite. De dia, eu tinha medo das ondas; a praia era bandeira vermelha de ponta a ponta, e os turistas morriam afogados. Meu pai falava que, além da existência dos espíritos, “tudo que é do mar, um dia ele vem buscar”. Um dia o mar ia acabar engolindo Mambucaba.


Originalmente publicado na edição Infância
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#32TravessiaCulturaSociedade

Aurora

por Helena Cunha Di Ciero

E, de mãos dadas, formaram uma corrente tão poderosa,
tão compacta, que o trânsito teve mesmo de parar
e ficou completamente imobilizado.

Não vou ceder agora à tentação de afirmar que
assisti à materialização de um milagre,
afinal é coisa que deve estar sempre a acontecer,
em algum lugar, ao fim da manhã ou da tarde,
logo depois das aulas, dois adolescentes dão as mãos,
atravessam a rua, bloqueiam a circulação rodoviária de uma cidade.

Mas pensa nisso por um segundo, pensa na força dessa corrente.

Luís Filipe Parrado

Outro dia mesmo era eu sentada no chão do aeroporto jogando truco, pensei, quando encontrei um bando de adolescentes sentados numa típica viagem escolar, nem aí para a hora do Brasil, na calçada, com seus telefones celulares tocando música sertaneja. Sorrindo com leveza, zombando uns dos outros, coloridos pelo viço, pelas tatuagens. “Ei, espere, já fui uma de vocês” – tive vontade de dizer para aquela plateia nada interessada naquela mãe de duas crianças que faziam birra na calçada, exaustas pelas horas de voo. Essa sou eu, constatei.

Foi assim, de repente, que cresci e virei gente grande. Ali no espelho, eu olhei e deixei de ver a adolescente que um dia eu fui. Na verdade, hoje até estranho essa moça que eu vejo nas fotos tão cheia de sonhos, que achava que a vida com ela seria mais doce, menos dura, mais generosa. Tinha algo em mim que achava que a adolescente duraria para sempre, tal qual metal precioso. E tentei mumificar esse ser que um dia eu fui por um tempo, confesso com certo embaraço. Até que, num dado momento, foi preciso fazer uma despedida e assumir que a adulta agora me possuía mais do que nunca. Não foi de propósito; a aurora da minha vida passou e foi embora sem se despedir. Com o final dessa primavera, começou a vida de adulto, sem pedir permissão.

É assim que se dá o crescimento; a gente se adapta finalmente a uma situação e pimba: ela acaba. E as rugas mapeiam esse anúncio sem dó nem piedade. O tempo se impõe, simplesmente.

Fácil verbalizar isso após os trinta, com quilômetros rodados. Mas há uma tristeza nesse discurso, um luto, uma dor e uma perda. Pois bem, para um adolescente, a mesma sensação se presentifica. O momento é outro, mas é também marcado por uma transformação. Contudo, falta repertório, palavras, sobram angústias e sensações.

A adolescência é a passagem do mundo infantil para o adulto; uma ponte, uma travessia. Tudo isso envolve uma adaptação, e toda adaptação é precedida por uma crise. Aquele corpo de criança se vê invadido por pelos, espinhas, partes que crescem desgovernadamente, uma voz que desafina, hormônios que não existiam. Esses novos habitantes daquele espaço tão gracioso do corpo infantil não chegam de forma harmônica.

Esse processo é marcado por uma sensação de estranhamento, de não pertencimento. Já diziam os Titãs: “Eu não caibo mais na roupa que eu cabia, eu não encho mais a casa de alegria, mas quando me olhei achei tão estranho, a minha barba estava desse tamanho”.

Há, ao mesmo tempo, uma excitação com a conquista de mais autonomia e uma tristeza pelas cobranças do mundo da maturidade. Além da dor da perda do lugar privilegiado da criança.

Os pais, que antes eram um lugar de proteção, tornam-se figuras persecutórias por tentarem colocar limites nas realizações de desejos do jovem. O que lembra a estrofe de outra canção: “Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo. São crianças como você, o que você vai ser quando você crescer”.

Nesse período da vida, há um luto das figuras parentais idealizadas. Logo, o lugar de herói fica desocupado e inicia-se uma busca por ídolos e novos modelos de identificação. O jovem está desesperado em busca de formar essa nova identidade.

É como se ele se tornasse estrangeiro num mundo que sempre lhe foi familiar. Por isso, as amizades nessa fase são tão importantes; constroem um muro para proteger aquele Ego frágil em transformação.

Costumo dizer que é como uma Ferrari com motor de Brasília amarela. Lataria linda, mas o interior precisa de cuidados. O corpo de adulto e a mente infantil são parte de um mesmo indivíduo. E essa mente não é capaz de conter aquele novo corpo em desenvolvimento.

De acordo com o psicanalista Marcelo Viñar, a juventude não pode ser definida como realidade cronológica, e sim como um tempo de mutação que marca um antes e um depois. Isso pois a essência da adolescência é o ímpeto, o movimento. Como se captura o vento ou o fogo quando sua marca é a instabilidade?

Cuido de adolescentes há alguns anos no consultório e me sinto bastante privilegiada por receber esses pacientes no momento em que a dança da vida se apresenta para eles. Recebo-os como quem recebe botões de rosa fechados, cheios de esperança, ao mesmo tempo frágeis e cheios de espinhos. E procuro dar-lhes algum contorno. Não é um trabalho fácil, ajudá-los nessa transição. Explicar-lhes que a vida é mesmo contraditória. Que os amores acabam. Falar-lhes sobre leis num país onde elas são constantemente desrespeitadas. Explicar-lhes sobre autoimagem numa cultura de Photoshop. Ajudá-los a compreender que esse corpo que pulsa não pode fazer exatamente aquilo que deseja a despeito de sua intensidade. É que na crise da adolescência, há uma sexualidade aflorando descontroladamente, e torna-se difícil lidar com seus impulsos.

Contudo, acredito que um jovem, quando acolhido e compreendido nesse transbordamento emocional, nos sinaliza um futuro mais colorido e cheio de esperança.

Trabalhar com esses pacientes que vêm com a marca da pressa, da urgência, do efêmero do nosso tempo atual pode ser rejuvenescedor. Convidá-los a um momento de pausa e reflexão é quase um ato revolucionário. Perceber também o quanto essa moçada se alimenta de relações qualitativas, basta haver uma intenção, me faz acreditar num horizonte mais azul. Sim, eles assistem lixo na internet, mas também são capazes de se encantar com um belo poema, um bom filme, quando convidados. Basta estender-lhes a mão nessa passagem.

Devemos ser cuidadosos, como adultos, para continuarmos investindo nos adolescentes, e não com um olhar invejoso do jovem que deixamos de ser. É importante dar credibilidade aos sentimentos dos jovens, tentar compreender suas dores e angústias. Oferecer um amparo nesse momento de tempestade. Essa é a aposta esperançosa.

O aumento dos suicídios na adolescência nos denuncia um vazio. Que vazio é esse? Seria o vazio do nosso olhar? Como adultos? Será que estamos preocupados com o legado que estamos deixando para os jovens, em acolher esses seres em transformação?

Ou será que estamos tão preocupados em perpetuar nossa juventude que nos esquecemos de cuidar de nossos jovens? Será que, ao nos conformarmos com nosso lugar de envelhecimento, não podemos lhes oferecer a proteção que necessitam?

Pensa na força dessa corrente.


Texto originalmente publicado na edição Travessia

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#33InfânciaArteArtes Visuais

A Distant Land

por Mateus Acioli


Originalmente publicado na edição Infância
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#32TravessiaArteMúsica

Conversa Polivox: Josyara

por Pérola Mathias

Em 2018, Josyara lançou o disco Mansa Fúria. Como fio condutor de sua música, a poesia e o violão tomam a frente do disco, que vai se construindo em camadas, texturas e sobreposições orgânicas (sobretudo pelo violão quase virtuose de Josy), somadas a elementos eletrônicos. A baiana, nascida em Juazeiro, morou por muitos anos em Salvador e aportou há mais ou menos três em São Paulo. De lá para cá, acumulou muita estrada carregando o violão nas costas. Em Mansa Fúria, ela canta diversos elementos que compõem seu universo: as vivências, o amor, os gostos e aromas típicos de frutas e temperos, a religiosidade, a família, a solidão.

Ainda em 2014, fui à Casa da Mãe, em Salvador, numa terça-feira, enquanto estava de passagem pela cidade. Além dos músicos cativos que fazem a noite no palco aberto do espaço, como Armandinho, Morotó, Gil Vicente, entre outras figuras mais do que conhecidas dos soteropolitanos, surgia, na frente de todos esses barbados, Josyara, uma menina esbanjando simpatia com seu violão, voz e repertório, que me prenderam do começo ao fim da apresentação.

Na terça-feira seguinte, ainda na cidade, voltei à Casa da Mãe e rolou o repeteco da noite. Josyara estava lá novamente. Sagaz, ela lembrou logo do meu rosto. Eu, encantada, tinha gravado na cabeça seu repertório, que começava com “Severina noite”, de Lula Queiroga, passeava por clássicos do cancioneiro nordestino, mas também pelas canções da própria Josy, como “O que não posso explicar”, além de outras que foram gravadas em seu primeiro disco Uni Versos, de 2012, que a plateia sabia cantar em coro.

Em 2018, quatro anos após as noites na Casa da Mãe, depois de ver Josyara indo e vindo por São Paulo e Salvador, entre muitas apresentações e projetos dos quais participou – como um show com releituras das músicas de Belchior com Giovani Cidreira, que intitularam Coração Selvagem –, veio Mansa Fúria, que pode significar muitas coisas pela contradição explícita no título. Para mim, sua definição é a de música de acalentar corações devastados para seguir em frente.

Como tem sido estar em São Paulo como uma mulher negra, artista, nordestina e lésbica?

Estar em São Paulo é, para mim, aprender a me olhar e me identificar como essa artista, negra, lésbica, que tem todas essas opressões mais visíveis, porque a gente sai de casa, né? Sai do conforto, já começa trabalhando com a saudade, e esse autoentendimento fica muito mais nítido aqui, longe do que a gente entende como um aconchego. Do mesmo modo, a gente vai criando um outro aconchego. São Paulo é um grande passo em como eu me vejo e de como as coisas são: as pessoas olhando meu cabelo e falando dele, minha própria mãe, minha própria avó, que são brancas. Então, tipo, é muito forte isso, não tem como dizer que não existe esse racismo. Por isso que é importante afirmar e mostrar sempre esteticamente a nossa ancestralidade e tudo mais, falar desse assunto. E São Paulo me proporciona esse tipo de visão e de conversa. Como aqui tem muita gente de várias outras cidades, acabo tendo diálogo com diversas pessoas, sobre diversas coisas.

E como você vê sua trajetória musical, desde quando começou em Juazeiro e no interior da Bahia, até ir para Salvador, fazendo ali algumas noites, como as da Casa da Mãe, inserindo-se na cena, passando pelo disco Uni Versos, que você gravou com o apoio da Petrobrás, até o Mansa Fúria?

O que mudou, que para mim é muito forte, é a questão do amadurecimento mesmo. Eu sempre soube que o meu desejo pela música é o que me toma, que eu quero isso, mas ainda ficava muito embaçado em termos de certas posições, posicionamentos comigo e com a minha arte. Eu era muito influenciada por caras que estavam ali perto de mim, amigos músicos ou produtores, como o produtor desse primeiro disco mesmo, que vetou a minha ideia de só usar percussão e colocou bateria, porque na visão dele tinha que ter. Hoje, nenhum produtor fala isso se eu não concordar com ele. Então teve esse amadurecimento do que eu quero e da segurança com meu instrumento; eu tenho consciência de que é ele que rege toda essa construção musical. Sabendo disso, eu estudo melhor, eu conduzo o meu jeito para traduzir melhor a canção. Teve essa coisa progressiva mesmo, que eu espero que sempre floresça: as ideias. É o que eu desejo, na verdade. Mas as coisas vão vir, né, tem surpresas mil. É isso.

E como você se inspira? O que dá material para sua poesia, para sua música?

É a vivência mesmo. É viver. É conhecer as pessoas, ir a algum show que me toque em algum lugar, qualquer que seja: de posição ali, do que está rolando, ou de completa identificação. Acho que é isso, os encontros, mas principalmente a solidão – que é o lugar que mais me faz ter ideias organizadas. Hoje eu estou num processo de querer mais parcerias, mas a solidão, sem dúvida, é que me acalenta para as coisas se assentarem melhor. É basicamente isso. Eu gosto de falar do que eu sinto, com a verdade daquele agora, que, se depois vai mudar, eu já não sei, mas aquilo ali é uma verdade para mim, e eu tento expressar da melhor maneira que eu encontrar na hora.

Fala um pouco do que você acha da relação entre música e política, da situação que a gente vive agora e do seu lugar, de ter se deslocado da sua situação de conforto para ser uma artista.

A arte é um mecanismo de informação e de comunicação incrível, porque ela pega nesse afeto, nessa memória de casa, de alguma coisa, então emociona as pessoas. Quando você emociona uma multidão com sua mensagem, com o que você acredita, que você acha importante ser dito, ou um tipo de acontecimento político – que é o nosso caso agora, que estamos sendo representados por pessoas completamente despreparadas para governar e preconceituosas e odiosas. Então é para informar e despertar sentimentos. Eu acho que a música é muito importante, e a gente tem essa responsabilidade de estar sempre se atualizando, entendendo o contexto da realidade em que a gente vive, para aprender e se informar também. Porque eu estou aqui, é a minha vivência, nesse lugar, nessa bolha, mas, se eu falo algo e isso ultrapassa a bolha, esse retorno vai me fazer refletir em alguma situação também. É importante a gente estar no chão também, andando, consistente, tentando enxergar as coisas e as pessoas.

Quais são seus próximos passos e projetos agora?

Mansa Fúria ainda é recente. Ele ainda vai fazer 1 ano, e a ideia é maturar e aperfeiçoar ele em shows. A gente vai montando o show; em cada um, a gente coloca uma música a mais, arranja ali de um jeitinho, de acordo com o show. Clipes também, a gente está nessa luta de parceiros para poder lançar os clipes de cada canção. Já lançamos dois clipes conjuntos e queremos gravar alguns outros. Mas a criação não para, né? Eu estou me dedicando a criar pensando em um próximo trabalho, mas, querendo ou não, ele vai trazer um tanto de Mansa Fúria também, porque é esse aperfeiçoamento da identidade de um som. Quero uma coisa mais consistente, e esse disco com certeza vai me influenciar para criar as coisas novas.

Texto originalmente publicado na edição Travessia

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#33InfânciaCulturaSociedade

Todos estão surdos?

por Helena Cunha Di Ciero


editora convidada da edição Amarello Infância

Quer me ver nervosa como mãe e psicanalista que sou – que, por sinal, são as duas coisas que eu mais gosto de ser nessa vida –, é quando vejo criança trocando brincadeira por celular. esconde-esconde por vídeo no Youtube, pega-pega por videogame, boneca por gato tom. Quase morro de desgosto quando vejo um grupo de crianças juntas, cada um no seu tablet, isoladas e sem trocarem entre si, acomodadas numa almofada de sofá, num silêncio de desvitalização que mais me assombra do que aquieta. e me sinto profundamente culpada quando me percebo confortável numa cena dessas.

Olho ao redor, “Todos estão surdos?” como diria Roberto Carlos. Ninguém se entristece com crianças abduzidas por uma tela de celular? talvez eu esteja exagerando, mas sinto uma revolta brutal quando percebo que há um absoluto silêncio na sala onde deveria ter ruídos curiosos de vidas pulsantes que acabaram de começar. Como se nessas horas es- tivesse testemunhando um funeral precoce do pedaço mais colorido da vida: a imaginação.

Eu, que sou calma, saio do sério mesmo. Tiro o celular-alucinógeno, aguento birra e gritaria com xingamentos de “sua chata” e, como num passe de mágica, vejo minha sala virar faroeste, crianças batendo portas, correria, bagunça. Ufa! Eles estão vivos!

Claro que não dá para abrir mão da tecnologia, é um contexto no qual estamos inseridos, mas eu tenho a impressão de que cada vez mais ela é usada como sossega-leão para as crianças. tipo uma chupeta eletrônica. tornando secundário a criatividade, algo extremamente vital cujo potencial é transformador.

No meu álbum de retrato interno da minha vida infantil, estão presentes os lugares em que estive, algumas viagens, a pitangueira da casa da minha avó, a piscina azul, minha escola maternal, minha amiga Ju, mas, principalmente: as brincadeiras.

Cansei de fazer festa de casamento para Barbie, decorar a casa do Ken com propagandas de miniatura de re- vista da editora abril, que seriam usa- das como objeto de decoração na sapateira da minha mãe – que virava um loft chique e charmoso. enquanto isso, minha Barbie dava lindas festas na piscina azul que fazia bomba de espuma. eu mesma nunca fui em nenhuma pool party, mas a minha Barbie era a rainha desse evento, que ocorria todo sábado na minha varanda e durava horas.

Pronto, em dois minutos de texto, meu coração ficou cheio de lembranças num domingo triste de chuva e me vi sorrindo comigo mesma enquanto re- vivia um pedaço da minha história navegando pelas minhas memórias. Para isso serve a imaginação, traz um conforto para a gente mesmo, uma sensação de aconchego e acolhimento. O que me leva à seguinte reflexão: do que será que serão feitas as memórias dessa criançada que vive embebida no mundo virtual? Será que suas saudades serão feitas de pixel?

Não sei. Sei que, lá de onde eu venho, brincadeira é coisa séria. Para nós, psicanalistas, o brincar nada mais é do que o trabalho da criança. isto é, brincando ela elabora situações importantes, conflitos emocionais, questões, faz pesquisas sobre seu corpo, aprende a comemorar a vitória de um jogo assim como a resignação necessária para li- dar com as perdas. (Pedaço que é difícil até para os adultos, imagine para as crianças).

De acordo com Winnicott, em seu texto o brincar e a realidade, é através da percepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Portanto, é a partir da brincadeira que a criança se adapta à realidade. É como se o brincar fosse uma forma da criança cuidar de si, de se tratar.

Certa vez, uma paciente contou-me que, quando mudou de país, encontrou no lixo uma casa de Barbie, com a qual brincava para dar conta da saudade que sentia da casa de onde vinha. Claro que isso não era feito de forma intencional, mas, de alguma forma, ela escolheu inconscientemente um objeto para dar conta de uma angústia.

Freud, observando seu sobrinho jogar um carretel, percebeu que nessa brincadeira havia uma comunicação inconsciente; o carretel ia e voltava, assim como a mãe que saía e voltava. e nessa brincadeira havia, portanto, uma elaboração de uma ausência. Melanie Klein foi quem começou a entender que era possível fazer um trabalho psicanalítico com as crianças entendendo o brincar como uma comunicação de questões inconscientes. e começou a trabalhar “ouvindo” as brincadeiras dos pacientes a partir da escuta psicanalítica.

A noiva do caubói era você além das outras três

A brincadeira é território da fantasia e, por isso, deve ter a marca da liberdade para que sentimentos possam ser expressos em sua totalidade. isto é: tanto os bons, quanto ruins. Sua finalidade é dar conta de nosso desamparo. Por isso o nome: brincadeira. Ponto.

Com isso, gostaria de colocar algo que considero crucial: o brincar precisa ser livre. trata-se do lugar do sonho, onde tudo pode acontecer. É possível ser casado com três, ser bedel e também juiz. Não é preciso haver uma coerência, um sentido; este é dado pela própria criança, que é quem governa e faz a constituição do território do brincar: E, pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz.

Não se censura a brincadeira. Nós, adultos, vemos uma criança brincando com uma arma de plástico e nos assustamos: estaríamos incitando a violência? Perguntaria uma tia no almoço de Natal. Pelo contrário, para a criança, a espingarda pode ter outra representação, assim como a espada. Pode ser algo do masculino, e não do ódio. Não adianta olhar para as crianças com nossos olhos de projeção. mui- tas vezes, a agressividade está em nós, que os enxergamos como nossa extensão.

Isso significa que precisamos estar atentos, pois, ao reprimir um afeto, podemos estar prejudicando uma criança. Compreendemos a mulher adulta que pode ficar com raiva do ex e picar as fotos, mas as coitadas das crianças que acabaram de ganhar um irmãozinho não podem quebrar a cabeça da boneca-bebê quando raivosas. Nós, maiores de 18, podemos nos deliciar com um filme do Tarantino se vingando dos nazistas, mas as nossas crias têm que ser essencialmente boas, puras e ingênuas. Que falta de generosidade a nossa. Exigir das crianças algo muito civilizado é, na verdade, a grande violência. Criança dá trabalho, ponto. e, por trabalho, me refiro ao trabalho psíquico.

Mesmo os contos de fadas são repletos de sentimentos hostis, assustadores, angustiantes. de que outra maneira poderíamos apresentar o mundo real se não usássemos esses símbolos para as crianças?

Para lá deste quintal era uma noite que não tem mais fim

Recentemente, revi “a noviça rebelde” com meus filhos e me dei conta de que o filme é, de fato, atemporal e genial ao mesmo tempo, pois é uma maneira muito delicada de apresentar para as crianças o nazismo. assim como a bruxa da branca de Neve é a encarnação da inveja, e o Capitão gancho, a luta contra o tempo, já que o crocodilo tic-tac refere- se à dor do envelhecimento. A grande questão das histórias é que elas possibilitam a reflexão, a partir da famosa moral da história.

Por isso, vale pensar que, quando proíbo uma brincadeira, estou proibindo que a criança reflita sobre algo que a angustia, que elabore um sentimento. Ou seja: estou represando um afeto que pode a in- toxicar no futuro. É que aquilo que é reprimido tende a voltar com muita força, de acordo com Freud (obviamente, excluo aqui brincadeiras que colo- quem a criança em risco).

É também em “Sobre o Narcisismo” que o pai da psicanálise coloca algo muito importante: os pais veem no filho um reflexo de si mesmos e, por isso, esperam de suas crias algo muito puro, bom e sem maldade, algo asséptico. As crianças seriam condenadas, então, à reparação de seu narcisismo perdido, ou seja, têm como obrigação a realização dos desejos que lhe foram negados pela realidade; a menina deve ser a reencarnação do sonho de princesa da mãe, enquanto o filho deve ser o jogador de futebol que o pai não conseguiu ser. Só que criança também é gente, e precisa, acima de tudo, ser compreendida.

Hoje, o que vemos é uma higienização da infância. Crianças devem ser seres puros, iluminados, o lobo mau é lobo bom, e por aí vai. então, essa criança acorda adolescente do sonho da Bela Adormecida, furando o dedo na dura realidade. e se assusta. e sangra.

Contudo, já dizia um certo iluminista que o homem é o lobo do homem. e, às vezes, os adultos agem mais como Saturno, que devora o próprio filho, do que como as fadas-madrinhas, que lhes oferecem o encanto de viver.


Originalmente publicado na edição Infância
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#32TravessiaAmarello Visita

Amarello Visita: Lauro Barcellos

por Willian Silveira

Em direção às águas, o Amarello Visita desta edição vai até a cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, para conhecer o oceanógrafo Lauro Barcellos e os museus marítimos da FURG.

fotos de Camilo Santa Helena

O impacto do azul. Chegar em Rio Grande, cidade localizada em uma península no extremo sul do Rio Grande do Sul, é deparar-se com uma porta que nos é aberta abruptamente. Seja pelo céu, que surge em chocante protagonismo diante das casas baixas de origem portuguesa, seja pelas águas, que habitam a cidade. Não por acaso, portanto, Lauro Barcellos encantou-se com o local aos 17 anos. Da chegada para estudar oceanografia até agora, a cidade que se confunde com as águas passou a confundir-se também com a presença do oceanógrafo, museólogo e diretor do Complexo de Museus da FURG. Na conversa que tivemos, Lauro Barcellos nos ajudou a pensar o Brasil, a cultura náutica, a importância da educação e o papel das novas gerações.

A História nos prova que o acesso à água é um privilégio. Na África, o rio Nilo cria tensão entre Egito, Sudão e Etiópia. No Oriente Médio, o Jordão é um ponto não pacífico entre Israel, Jordânia e Síria. aqui do lado, Chile e Bolívia buscam um acordo pelo acesso ao Pacífico há mais de um século. Com pelo menos 8 mil quilômetros de litoral, como você vê a relação do Brasil com a história da navegação e o mundo náutico?

Nós precisamos melhorar muito essa relação. Até porque não cuidamos devidamente da região costeira. É ali que estão as maiores concentrações humanas. A maior parte da população vive em torno da costa, ocupando as regiões costeiras que são tão sensíveis. É nessas regiões que temos a grande produção de riquezas naturais, principalmente porque nessas áreas a vida marinha se aproxima para se reproduzir e crescer. E também temos nessa região o comércio, toda a economia que se estabelece ao longo da costa brasileira pelos portos, pelas mercadorias, pelas importações e exportações. Elas ocupam o mesmo espaço de onde também retiramos as riquezas naturais para a sobrevivência de muitas comunidades. Então nós temos interesses conflitivos em uma área comum e sensível. Para que isso aconteça de forma harmonizada, respeitosa, e que as futuras gerações possam sobreviver em uma área importante como essa, é preciso que tenhamos conhecimento e boa fiscalização. A quantidade de plástico e dejetos que lançamos ao longo do litoral brasileiro é um absurdo. Temos feito inúmeras campanhas e esforços para que o impacto seja reduzido, mas estamos longe de uma condição ideal.

Estamos em Rio Grande, uma cidade de 200 mil habitantes localizada numa península do extremo sul do Rio Grande do Sul. Basta chegar aqui para perceber que Rio Grande e a água se confundem. Como ambos entraram na sua vida?

Eu morava em uma cidade vizinha e, desde pequeno, meu pai me trazia para visitar o Museu Oceanográfico e andar de bonde. O oceano nos encanta e faz com que fiquemos hipnotizados por essa posição geográfica, pela escala do espaço. O horizonte aqui é impressionante. Os abismos são horizontais, as dimensões são gigantescas. Eu me encantei desde pequeno. Em 1974, fiz vestibular para oceanografia e vim morar aqui. Em seguida, bati na porta do Museu Oceanográfico e me ofereci como voluntário, apresentando-me ao Prof. Eliézer de Carvalho Rios, um apaixonado pela oceanografia e malacologia e a quem eu devo grande parte do que sou hoje. Durante cinco anos, fui voluntário no museu, e aqui estou há 45 anos. Rio Grande é essencialmente um lugar marítimo, onde a maritimidade é respirável em qualquer lugar que se vá. Você dobra uma rua e, no fim dela, tem um barco atracado no cais. Isso é muito encantador. Tenho uma relação de amor com os barcos e, por ser museólogo, com a história. Então minha relação com Rio Grande é geográfica e afetiva. É uma conexão profunda. Todas as relações que acontecem em Rio Grande remetem a essa mentalidade marítima com a qual eu sonhei o CCMAR, o centro de formação profissional para jovens pobres da nossa comunidade. É um projeto importante, pois atende anualmente 350 jovens em diferentes linhas de formação, como construção naval, educação náutica, navegação e outras tantas, que permitem ao jovem sair capacitado para trabalhar. Como eu conheci a realidade desses jovens, imaginei uma escola que servisse para que eles sobrevivessem sem serem graduados na universidade.

Rio Grande abriga um complexo cultural marítimo que conta com os Museus Oceanográfico, Antártico, Náutico, da Ilha da Pólvora e, ainda, o CCMAR. Qual é a história por trás desse grande projeto?

O primeiro museu construído em Rio Grande foi o Oceanográfico, em 1953, pelo Prof. Eliézer de Carvalho Rios e pela vontade de muitas pessoas. Ele tornou-se possível através da Sociedade de Estudos Oceanográficos de Rio Grande, que tinha o objetivo de tornar público um conhecimento de poucos: não se sabia o nome dos peixes, detalhes sobre a vida marinha, não se conheciam as conchas, os moluscos. Tudo isso ficava guardado e ninguém sabia. Claro, já havia no mundo movimentos importantes. Os franceses haviam construído o Museu Oceanográfico de Mônaco. Havia oceanografia nos Estados Unidos e no Japão. Em 1970, portanto, criou-se o curso de Oceanografia na Fundação Universidade de Rio Grande (FURG), mas, até então, ela era privada, tornando-se somente mais tarde uma universidade pública. Hoje, a FURG é uma grande universidade, da qual tenho a honra de fazer parte, primeiro como estudante e agora como funcionário. Esse complexo começou pelo Oceanográfico e, com a FURG, em 1974, passou a receber anexos, como o Museu Antártico, que é uma grande memória do programa antártico brasileiro. Também temos o Ecomuseu da Ilha da Pólvora, que é um lugar lindíssimo, preservado pelo exército, onde construímos esse museu sobre a ecologia local. Depois, temos o Museu Náutico, que faz referência à história náutica desse lugar, e dois centros, o Centro de Recuperação de Animais Marinhos e o Centro de Convívio dos Meninos do Mar, que é o centro de formação profissional para jovens. Tudo isso trata do mesmo assunto de diferentes ângulos, de modo que a nossa contribuição é científica e social, em uma ação da mais alta importância realizada pela FURG.

Quem são os seus ídolos no mar?

Começamos pelo almirante Joseph Conrad, um marinheiro que nos deixou um legado importantíssimo na literatura: “Se quiseres saber a idade da Terra, viva uma tempestade no mar. Aí, saberás quão anciã é a Terra.” Quando estamos no mar e passamos por uma tempestade, percebemos que a Terra é velha, furiosa, poderosa, que quem manda é ela. Essa vaga pretensão que temos, de que nós, seres humanos, porque temos consciência, estamos no comando e no controle, é pura ilusão. Não temos nada sob controle. Nós somos seres que rastejam no fundo de um oceano de ar. Outro homem por quem tenho admiração é o almirante Tamandaré, um rio-grandino, herói nacional e patrono da Marinha do Brasil, que deixou exemplos de respeito ao próximo, generosidade, compromisso e rigor.

Nosso vínculo com o mar é muito antigo. Temos sido éticos nessa relação?

Nossa relação com o mar tem melhorado. As novas gerações estão mais conscientes e informadas do que as do passado. A tecnologia, por exemplo, permitiu que todos saibam os malefícios do plástico. Em 1974, quando eu juntava os pinguins com óleo e os leões marinhos com cabos enrolados no pescoço, ouvi inúmeras vezes que deveria deixar que morressem na praia, pois eram animais marinhos. Hoje, quando aparece um pinguim na praia, as pessoas o trazem para o Centro de Recuperação de Animais Marinhos, onde cuidamos dele e o reconduzimos ao mar. Essa é uma consciência de conservação e preservação que surgiu do movimento ambientalista. Todos nós temos que ser ambientalistas, ou seja, cidadãos conscientes que podem tornar o mundo melhor. Há trinta anos derramavam petróleo, jogavam produtos no mar e ficava por isso mesmo. A legislação ajudou nesse sentido. Não sou ingênuo, mas um sujeito de esperança.

Ao circular por Alemanha, Estados Unidos e Inglaterra para complementar a sua formação, o que percebeu que o Brasil tem de aprender e o que podemos ensinar a esses países?

Primeiramente, precisamos aprimorar os nossos fundamentos sobre os direitos humanos. Reduzir a injustiça social e fazer com que os investimentos na educação sejam mais significativos. Precisamos gastar honestamente no que é correto. Uma nação se consolida através dos seus cidadãos bem formados e bem educados. Eu tenho muita esperança na educação, porque sou um produto dela. Sou uma pessoa que foi muito pobre, e acabei chancelado por instituições que acreditaram em mim. Estudei na universidade pública, que, no início, era paga, e precisei trabalhar para estudar; depois, servi nela, consegui um bom trabalho e hoje retribuo o que me foi ofertado de maneira reconhecida. Então, eu sou o exemplo de que esse percurso é possível, que uma pessoa muito pobre pode estudar bastante, se formar, ser útil e viver com muita satisfação como eu vivo.

Falando de tradição e futuro, como você enxerga o Brasil de hoje e a relação com a cultura e a ciência?

Nós temos, no Brasil, uma quantidade grande de pessoas que possuem clareza suficiente para fazer o que é preciso. Não podemos esquecer a característica própria do Brasil, que é a de ser influenciado por muitas culturas. Somos um país continental. Se formos ao Maranhão, vamos encontrar um mundo marítimo e pessoas com uma cultura impressionante, de beleza, técnica e tecnologia patrimoniais impressionantes na navegação. Aqui em Rio Grande também, e todos falamos português. Isso nos deixa submetidos a um desafio gigantesco, que é cuidar da Amazônia com a sua história aquática, com homens construindo a cultura náutica com suas canoas e embarcações para aquele mundo tão distinto deste. Os barcos aqui têm as proas elevadas porque as ondas são elevadas. Os barcos são construídos tortos para ficarem retos na água, me disse um mestre lá no Maranhão. Essa riqueza toda, de certa forma, está preservada. Temos muitos desafios, mas também muitas pessoas sábias e honestas que fazem um bem muito grande ao cuidar de tudo isso.

Ao chegar da travessia do Atlântico Sul, Amyr Klink conta que, para prolongar o prazer da viagem, esperou por seis horas antes de desembarcar na Praia da Espera. Se pudesse escolher, qual seria a sua Praia da Espera?

Seria em frente ao Albardão, olhando para aquelas linhas retilíneas, com albardas arenosas no horizonte, onde os abismos são horizontais e as paisagens invisíveis. Tive a oportunidade de estar lá, e sempre foi muito emocionante. Tanto que tenho um livro chamado Areias do Albardão, escrito com mais dois amigos, no qual me refiro a esse litoral inspirador, onde o pensamento viaja para muito longe, porque a paisagem é imensa e podemos nos espalhar à vontade – só depende do tamanho da nossa imaginação.


Originalmente publicado na edição Travessia

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#33InfânciaCulturaLiteratura

Infância

por Sofia Nestrovski

Algumas palavras são propriedade da infância: paralelepípedo, inconstitucionalissimamente. Um montão, um tantão, maravilhoso!, e um milhão de milhares. Maravilhão.

A boa educação pertence à infância — andar com um livro em cima da cabeça e a postura ereta. Espichar- se. Os bons modos pertencem à infância — curvar-se diante do espelho e enrubescer. O sonho de um dia dar bom dia aos que passam… crianças são muito sérias; preocupam-se com as coisas. Gostam de Leonardo da Vinci e de Einstein; de palavras com mais de três sílabas (que podem significar qualquer coisa no mundo! Maravilhosas, maravilhosas); gostam de pensar que um dia vão ser gente. Mas mais do que eu e você.

A infância é inimiga da confissão. In-fans, aquele que não fala. Confess-, falar junto, falar para. A raiz dessas duas palavras latinas vem do protoindo-europeu, língua que tem um montão de anos (mais que a nossa vó, mais que a vó da nossa vó, mais que a vó do Einstein), língua que tem tantos anos que talvez nunca nem tenha existido — a raiz dessas palavras no protoindo-europeu é bhā-. Um carneirinho.

Confissão e infância — e a palavra russa Секреt, Sekrét. Ela dá nome ao hábito infantil de criar esconderijos para guardar tesouros pequenos.

Tesouros: as palavras da língua. Segredos: saber caber dentro delas. Tesouros: contar mentiras. Segredos: e nunca revelar nada. Passar correndo por cima do taco solto sobre o buraco na madeira onde se escondem as coisas. Olhar para trás com o canto do olho. E lembrar: tesouro, tesouro! E pensar: um dia, um dia…


Sofia Nestrovski assinou a coluna “Léxico”, do jornal Nexo, de 2017 até o começo de 2019, onde publicou oitenta verbetes sobre palavras e suas origens. É mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo e autora de Viagem em volta de uma ervilha (2019, Veneta, em parceria com Deborah Salles)

#33InfânciaCrônica

Sobre grades, fronteiras e gangorras – ou vem, Rael

por Léo Coutinho


Não sei se a turma da rua queria jogar vôlei ou se a vontade era só aprontar alguma. O fato é que Japa, Júnior, Peão, Peidolfô ou Arrotolfo, eu e outros decidimos pular o portão de uma casa desocupada e usá-lo como rede entre os times da garagem e da calçada.

A casa já tinha sido alugada para diversas atividades. Escola, escritório, puteiro. Mas a maior parte do tempo esteve vazia e sem função, situação que, somada à ociosidade criativa da molecada, acabou em jogo de vôlei.

Corria bem a partida quando um carro estacionou com certa agressividade e dele saltou um casal enfurecido. Eram os donos do imóvel vazio. O time da calçada correu, cada qual para seu prédio. Mas eu e os companheiros que defendíamos o chão da garagem não tínhamos como escapar, com o tiozinho muito bravo gritando junto à grade.

Ele dizia que era invasão, que podia atirar, que ia chamar a polícia, que a gente seria preso. Alguns do meu time se desesperaram. Se não me engano, um chegou a ajoelhar e pedir clemência. Em vão.

Sei lá como funciona a minha cabeça, mas desde moleque tendo a sofrer com ansiedade quando prevejo um problema. Depois que acontece, quando a cagada vira um fato, reconhecível, analisável, relaxo e volto a raciocinar com calma.

E assim, nem aí, eu encarava o dono da casa e sua senhora. Quando enfim ele parou de gritar, se mostrou indignado com a minha cara de relógio sem ponteiros. Então pedi desculpas pela invasão, disse que não havia prejuízo e que não faríamos de novo. E que ele podia usar a chave para deixar a gente sair ou poderíamos pular o portão, como havíamos feito para entrar. Talvez por apego à ordem, ele abriu a grade, deixou a gente sair e xingou mais um pouco. Ainda sugeriu que queria conversar com os nossos pais, mas era tarde. Ficou falando sozinho.

Em seguida, reunida a turma, minha calma virou assunto. Logo o gordo ansioso, o mais mimado, na hora da dura, ficara tranquilo. Como?

Hoje, eu acho que a soma das fraquezas é que produziram uma força. Por ser ansioso, eu sabia que podia dar problema e, de alguma maneira, me preparei, mesmo que inconscientemente. Por ser gordo, correr não era uma opção, ou pelo menos não se considerando que todos corriam mais do que eu. E, principalmente, sendo mimado, filhinho da mamãe, eu sabia que era protegido, que com a polícia não daria nada – ou ainda ficaria pior para o adulto –, e muito menos aquele senhor agrediria meninos brancos, de classe média, usando tênis importados e morando em paróquia “nobre”.

Com a boa notícia que encerrou julho, do brilhante arquiteto e professor de Berkeley Ronald Rael, que instalou gangorras na fronteira entre o México e os EUA, a história da turma da rua foi pescada pelos meus algoritmos.

Rael e sua equipe pensam no brinquedo há dez anos, lembrando que o muro vem sendo construído desde muito antes de Trump, mas que deixaram de falar sobre. Boa gente, o arquiteto enxerga o lado positivo do muro como discurso eleitoral, porque acende o debate.

Esse modo de pensar está no cerne da ideia genial da gangorra: a ação de um lado que provoca uma reação do outro, o equilíbrio que vem do desequilíbrio, o trabalho de um que depende do trabalho do outro, a empatia obrigatória entre as pessoas que nela brincam.

A brincadeira durou pouco, mas não por impedimento dos guardas de fronteira mexicanos ou estadunidenses. Estes não interferiram, e alguns até sorriram. Durou pouco porque era mesmo um evento – muito bem-sucedido –, e a segunda fase é passear com a ideia por aí.

Rael, por favor, venha aqui para o Jardim Paulista, na cidade de São Paulo, Brasil. Aqui, os chamados bairros verdes, que teriam jardins por toda a parte, estão hoje cercados por gradis muito parecidos com o que divide Ciudad Juárez e o Texas. Pelas calçadas, entre os mais de cem mil desabrigados paulistanos, há muitas crianças vendendo pano para a classe média passar, pedindo fraldas e leite em pó. Dentro dos condomínios, outras tantas crianças, todas presas e separadas de seus pais, vigiadas por babás. Seria ótimo ter a gangorra da sua turma para que elas pudessem brincar.


Originalmente publicado na edição Infância
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#33InfânciaArteArtes Visuais

A Criança e os Reis

por Alvaro Seixas


editor de artes plásticas da Amarello Infância

“O autêntico poeta está no
mundo como uma criança:
pode (…) como a criança, gozar
de um inegável bom senso, mas
o governo dos negócios não
poderia lhe ser confiado.”


Georges Bataille
em A literatura e o mal

Pode parecer inusitada a escolha, num texto sobre a infância, da epígrafe de um autor que dedicou grande parte de sua obra a estudar a vida dos malditos como o Marquês de Sade, William Blake e Friedrich Nietzsche, e as associações entre o erotismo, a morte e a religião. Mas essa escolha não é infundada – crianças não são seres imaculados, crianças podem não ser o messias. Se observarmos a história da arte do século XX e XXI, veremos como a figura da criança inspirou de maneiras distintas as obras de uma infinidade de artistas, podendo assumir as facetas de selvagens, líricas, oníricas, perversas, eróticas, assassinas, consumistas, diabólicas e transgêneros.

Quando fui convidado por Tomás para editar a seção de arte desta edição da Amarello e fui apresentado ao tema, a primeira pessoa que me veio em mente, entretanto, não foi Bataille, mas outro francês – o pintor e escultor Jean Dubuffet. Este foi uma figura fundamental para outro artista, atualmente uma celebridade mundial póstuma, Jean-Michel Basquiat, que, de Dubuffet, herdou justamente o desrespeito às regras, às convenções, evocando uma espécie de criança interior que vomita no mundo toda a sua aspereza, toda a sua materialidade, todas as suas convulsões.

Não é à toa que Dubuffet detectou o que chamaria de Art Brut no modo de representar o mundo “artisticamente” de outsiders como loucos, presidiários e, em meio a essas figuras impopulares, as crianças. Esses modos de ver o mundo aparentemente nus e crus teriam muito a agregar à arte do pós-guerra, à necessidade de expurgar os traumas, os constrangimentos com relação à falência da sociedade industrial. A linguagem humana não foi vista como algo límpido e cristalino por Dubuffet, mas sujo, terroso, lamacento, corrompido, tal qual uma mistura de cores feita por uma criança descuidada. As hierarquias precisavam ser quebradas. Na fase matérica desse artista, fica nítida essa ausência de pureza, fazendo com que algumas de suas obras fossem inclusive agredidas fisicamente pelo público ultrajado. Não é admissível que um adulto se comporte como uma criança – diziam os homens sérios com os quais Dubuffet buscava romper de maneira provocadora.

De forma semelhante a Dubuffet, Paul Klee se encaminhou na direção de um fazer pictórico ligado à ancestralidade da técnica, ambíguo e pré-histórico – período que, justamente, pode ser visto como a primeira infância de toda a humanidade, antes do aprendizado da escrita, quando nos comunicávamos por marcas simbólicas universais e espirituais. Essa era misteriosa serviu como modelo de expressividade para a pintura e o desenho. Klee gostava de dizer que desenhar era como “levar uma linha para passear” – nada mais doce, infantil e espertamente displicente. Eis como definir um conceito da melhor maneira sem necessariamente defini-lo nos limites da racionalidade. O humor de Klee pode ser associado ao gosto pelo teatro de bonecos, tendo o artista inclusive fabricado alguns deles artesanalmente, reforçando sempre o valor da dimensão lúdica de sua arte. Seus objetos sempre serviram tanto para expressar verdades profundas quanto para ensinar de maneira didática, rápida e imediata sobre cor, luz e movimento – tendo-os empregado em seus anos de atuação como professor, inclusive da Bauhaus.

Escapando da tradição da superfície e dos materiais da pintura, Brassaï, nos anos 1960, buscou revelar as portas do inconsciente nas paredes do espaço urbano. Em sua série de fotografias, documenta os grafites arranhados nos muros de Paris. São trabalhos anônimos de pessoas que, possivelmente, não tiveram formação artística, o que justamente faz com que as formas visuais de suas ranhuras não sejam tão distantes das desenhadas por uma criança em um papel. As fotos de Brassaï sugerem a cidade como um parque de diversões ou escola de magia perversa; sem regras, um campo aberto ao protesto e à selvageria, ao crime e a símbolos arquetípicos que remetem às vanitas e aos cultos mágicos e/ou satânicos. Quando pedimos para uma criança que foi física ou psicologicamente abusada ou que passou por algum outro trauma que desenhe sua família, algo de aterrorizante poderá surgir. Nesse sentido, a cidade de Brassaï surge como o caderno de esboços dilacerante dos filhos das revoluções industriais, violentados pelas grandes guerras, envergonhados pelos crimes de seus pais.

Em sintonia com Dubuffet, os membros do Grupo CoBrA evocaram as figuras rabiscadas aparentemente de maneira impulsiva pelas crianças, vistas como criadoras de formas nobremente desajeitadas, mas vitais e sinceras. O desequilíbrio plástico dos loucos, figuras violentamente excluídas do bom gosto e das boas maneiras da tradição europeia, também eram louvadas pelo grupo. Surgiram obras coletivas, feitas a quatro, seis ou oito mãos, e alguns murais multicoloridos que parecem ter sido encomendados para decorar um jardim de infância ou pintados pelas próprias crianças. O artista do CoBrA foge como pode da erudição, mas sabe que isso é uma utopia. Sabe que ser criança é o seu paraíso perdido, que essas portas estão eternamente fechadas por Deus, que só resta a barbárie dos adultos, reflexo dos tempos de guerra.

Aqui no Brasil, Alfredo Volpi, inspirado pelos afrescos renascentistas italianos, passando por artistas como Dufy e Utrillo e chegando às raízes populares e sagradas brasileiras, converte a pintura num espaço de inocência e extrema delicadeza. Há algo da simplicidade e do instinto das crianças na ausência de perspectiva e afetividade abençoadamente risível e festiva de suas bandeiras. A infância servia de modelo para inserir a arte brasileira finalmente na vanguarda abstracionista internacional, mesmo que tardiamente. Anos depois, Lygia Pape criaria um mar vivo de crianças – negras e mestiças, em sua maioria. Um tecido metafórico, utópico, espaço ativo da experimentação; um dos momentos mais marcantes da arte sensorial dos anos 1960-1970. Nessa obra, chamada de “Divisor”, a artista evoca o tom celebratório do carnaval, dos desfiles de escola de samba; torna-o enxuto, fazendo-o mais clean para criar uma interlocução com a abstração geométrica internacional. “The Geometry of Hope” (“A Geometria da Esperança”), assim será descrita a arte latino-americana na qual fomos inseridos pela crítica e historiografia internacional.

Crianças e jovens foram tema dos desenhos com insinuações eróticas de Egon Schiele. Sua sexualidade foi explorada pelas linhas sinuosas do desenho expressionista que, por alguns, ainda é tido como meramente machista e criminoso e, por outros, é visto como um valioso precursor das associações entre psicologia e arte. Schiele chegou a ser preso sob acusação de expor pornografia a menores, algo até hoje discutido entre os historiadores. Outras jovens serviriam de modelo para os impulsos eróticos de um artista adulto, Balthus, em suas singulares pinturas, desenhos e fotografias que descrevem cenas de interiores. Meninas, com corpos ainda pouco amadurecidos, são representadas em cenas sugestivas, narcisistas, perversas, por vezes mostrando suas roupas íntimas ou mesmo sua genitália. O artista não tem medo ou vergonha de andar na corda bamba da proibição ao nos apresentar suas fantasias sexuais interditas – ou, melhor, talvez não tenha medo de provocar em nós fantasias sádicas e criminosas. Talvez ele pudesse ter sido mais explícito em sua narrativa artística, mas, para alguns, talvez já tenha sido suficientemente cruel e abusivo no mundo real.

A importância do brincar foi evocada na Pop Art de Claes Oldenburg através da humanização dos produtos de consumo de massa. Vasos sanitários moles que parecem de pele, logotipos da Pepsi derretidos – aos objetos rígidos, é conferida uma cômica e surreal organicidade. Há também a absurda monumentalização de hambúrgueres, colheres, sorvetes – convertidos em esculturas gigantes, muitas delas obras de arte públicas, divertidas e satíricas. Entrar em uma exposição da Pop é como entrar em um grande baú de brinquedos – caros e valiosos para a história da arte. Mais tarde, Jeff Koons elevaria essa estratégia a níveis ainda mais intensos no sistema de valores da arte contemporânea com seus Popeyes, Balões, Embrulhos enormes e brilhosos que assumem o papel de arquétipos extraídos da cultura de massa. A estética da infância tem invadido há algumas décadas o mercado de arte, ajudando artistas, galeristas, colecionadores, curadores e outros personagens a atingirem os preços recordes almejados nas casas de leilão.

Já na fotografia underground de Diane Arbus, a criança expressa sua feiúra desavergonhada ao afirmar-se como uma figura não idealizada, distante dos cânones de beleza dos pôsteres que rechearam o sonho americano e que modelaram não apenas padrões de beleza nos EUA, mas ao redor do globo. Em “Child with Toy Hand Grenade in Central Park” (“Criança com Granada de Mão de Brinquedo no Central Parque”), a artista captura uma série de elementos simbólicos em uma poética da colisão: expõe a ludicidade do brinquedo assimilada à necessidade de fabricar armas e de matar que moverá perpetuamente as engrenagens da potência norte-americana. É importante introjetar na criança, desde a infância, um carinho pelas armas. A vontade de brincar deve se fundir à vontade de matar. A imagem de Arbus dá formas plásticas à lógica do funcionamento da cultura de guerra dos EUA.

“The Radiant Child” (“A Criança Radiante”) foi o artigo assinado por Rene Ricard na revista Artforum para analisar e enaltecer a então novíssima cena artística de Nova York no início dos anos 1980. Keith Haring e Basquiat se apoiavam justamente na tradição de nomes do modernismo que se valeram da arte infantil, como Pierre Alechinsky, Jean Dubuffet e Pablo Picasso, para impulsionar o neoexpressionismo e o graffiti dos EUA daquele momento. De maneira imprudente, malcriada, Haring rabiscava com giz os quadros pretos de aviso e publicidade nos metrôs de Nova York. A criança desrespeitara a lei. Ao ser presa, ria orgulhosa de seu feito. Inundava as paredes e objetos de consumo com seu bebê engatinhando, que virou marca registrada e que estampa até hoje camisetas de lojas multimarcas. O “bebê radioativo” de Haring era o novo paradigma, engatinhando pelo submundo da metrópole em busca da fama. Substituía o modelo apolíneo dos gregos, o Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci e o Satã de Milton elencado pelos românticos. Era o esplendor da infância, contaminada pelas cores flúor, mas também pela AIDS.

Seguindo o legado dos artistas nova-iorquinos dos anos 1960 e 1980 e sua própria tradição japonesa, Takashi Murakami e Yoshitomo Nara mergulham no universo consumista da toy art para novamente evocarem a sexualidade e a perversidade infantis que Schiele e Balthus haviam explorado. Crianças fumantes, vampirescas, assassinas, cuja sexualidade precoce foi produtificada pela indústria dos mangás japoneses, ganham as galerias de arte e, depois, retornam ao panorama do consumo de onde se originaram para dar forma às colaborações de Murakami com a marca de luxo Louis Vuitton. Desse modo, a infantilização serve ao consumo, ao luxo, à distinção das classes, do erudito e do popular. Ter uma bolsa de couro original by Murakami não é o mesmo que ter um item qualquer by Romero Britto. Este é, justamente, outro artista que se valeu de intenso e celebratório colorismo, personagens infantis e algumas doses de polêmica para que suas ilustrações invadissem o mundo do consumo do design de massa. Uma infantilização da arte e do design impossível de ser negada ou apagada, ao menos da história recente.

Em um momento de crise política e de imensa desumanidade no nosso país, é apressado comparar alguns de nossos cruéis e preconceituosos governantes aos loucos ou às crianças, já que essas figuras foram suicidadas, segregadas, ou seus conhecimentos e ensinamentos banalizados por inúmeras sociedades. Nunca o governo dos negócios foi confiado a um “suicidado pela sociedade”, como um Van Gogh ou Artaud, ou a uma “criança radiante”, como Basquiat e Haring. Nos julgamos sábios e sãos por não darmos a faixa presidencial a uma criança esquizofrênica. Somos presunçosos e tolos, pois as imagens de sua imensidão não merecem os negócios escusos de nossa reles nação.


Originalmente publicado na edição Infância
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#33InfânciaAmarello Visita

Amarello Visita: Maria Luiza Jobim


fotos de Leka Mendes e acervo

Há muita casa branca por aí. Algumas, de branco puído, deixadas por quem veio antes. Outras tantas, de alvura ímpar, mantidas por nós mesmos. Há também a casa de Maria Luiza Jobim.

Em tempos de subir muros, a cantora carioca abre portas. Foi assim com o lançamento de Casa Branca, a música que dará título ao seu primeiro álbum solo, e não seria diferente durante a conversa que tivemos para essa edição. Guiada pela memória e pelo coração, maria conta como adornou o lar em que nasceu, no Jardim Botânico, com a mais bonita das cores: a gratidão. Nas próximas páginas, Maria Luiza recorda um passado rico e colorido. Conta-nos sobre o espaço que a infância ocupa em nós e os desafios da maternidade. Além, claro, de falar sobre música e coragem, as principais forças criadoras que transbordam em sua vida.

Quando falamos em infância, o que vem à sua mente? Qual é a sua primeira lembrança da infância?

Eu tive uma infância muito feliz. Na minha casa tinha muito amor, a gente era uma família muito unida e muito musical. Eu tenho muita sorte, realmente, de ter crescido em um ambiente muito artístico. Os ensaios aconteciam na minha casa, no Jardim Botânico, a “casa branca”, e meu pai sempre falava que os shows eram uma extensão desses ensaios, que eram quase que espontâneos. E as crianças participavam, a gente sempre estava cantando junto e, enfim, figuras icônicas e maravilhosas estavam sempre lá em casa. Tenho muitas memórias [risos].

É basicamente essa memória lúdica e artística que permanece?

Totalmente. Muito, muito. O meu pai – depois que eu fui saber disso, tem essa história com o Marcos Valle, que o Marcos Valle foi lá em casa para terminar uma música, eles estavam fazendo um arranjo, e eu estava por perto. E aí o meu pai falou assim, “olha, a gente vai tocar aqui, e vamos ver, se estiver bom, ela vai chegar perto; se não estiver, ela vai ficar lá quietinha”. E aí parece que eles tocaram e eu cheguei perto, sentei, comecei a cantarolar… Então era muito legal. Acho que nos últimos anos da vida do meu pai, ele se dedicou muito à família e a estar com os filhos, e realmente a coisa do trabalho era muito junto com a família. Minha mãe cantava com ele, minha irmã cantava com ele nos shows…

E era como se você participasse, mesmo pequena, do jeito que podia.

É. Eu acho bonitinho, né?

Maria, nesse processo de amadurecimento que a criança tem, de construir uma identidade a partir da infância, você consegue reconhecer o momento no qual percebeu que o seu pai, o Antônio Carlos Jobim, era também o Tom Jobim? No sentido de perceber que o seu pai era um pai compartilhado?

Eu não digo que tenha um momento, mas tem várias histórias que ilustram essa relação. Por exemplo, eu lembro que, quando pequena, ele me levava no cinema, ele me levou para ver Jurassic Park – eu lembro bem disso –, aí sempre que a gente ia no cinema, ele era reconhecido, e isso me incomodava como criança, como filha. Eu queria ser normal. Por que precisavam dessa coisa de falar com meu pai? Aí eu pedi para ele assim, “pai, tá bom, a gente vai no cinema, mas você pode tirar o seu chapéu, por favor?” Porque eu achava que era por causa do chapéu que as pessoas reconheciam ele [risos], como se a fama dele estivesse no chapéu. E aí ele, bonitinho, tirou o chapéu e a gente foi no cinema.

Uma coisa ótima é o título da música ser um nome composto, “Casa Branca”. Porque casa é uma coisa muito elementar, um símbolo que todo mundo conhece, impessoal, mas quando você fala que a casa é branca, então você se apropria desse espaço como quem diz “essa casa é só minha”. Você quer contar um pouco da sua casa branca?

Quando eu fiz a música, eu queria realmente homenagear esse lugar, esse lugar interno e esse universo que eu vivi. E uma coisa que eu fiquei muito feliz, com a reação das pessoas, foi que assim, é claro que eu sei que existe toda uma curiosidade, natural, por ser a história do meu pai, mas eu recebi muitas mensagens, muitas mesmo, falando do quanto que as pessoas lembravam da infância delas, do quanto que aquilo levava elas para o lugar interno. Isso me deixou muito feliz, porque na verdade era disso que eu queria falar. Eu queria falar desse lugar comum, que é o fato de que todo mundo tem sua “casa branca”. A música é uma maneira de celebrar essa vida que eu tive, de agradecer. É uma forma de retribuir todo esse amor que eu tive e dividir com o mundo.

Uma passagem linda na música é quando você canta: “Eram paredes / Que as cores conheço de cor”. Você transmite primeiro essa experiência de “de cor”, no sentido dos gregos, como para dentro do coração. Ou seja, seu pai é um imortal no nosso país mas, ao mesmo tempo, como um bom pai ele se torna imortal também. Vemos as figuras públicas e não temos acesso ao que ficou delas nos filhos. É muito generoso que, do mesmo jeito que ele te honrou no “Samba de Maria Luiza”, você faça uma canção homenageando a sua origem. Sempre houve essa relação de gratidão com o seu pai?

É, com a música dele, sim. Porque tem muito uma coisa que eu, na minha análise, sempre pensei: é que eu só sei ser filha do meu pai. Eu não sei como é ter um pai que não é falado pelo mundo. Eu só posso falar da minha experiência, então, assim, desde que eu nasci, isso é o que acontece na minha vida. Eu sempre tive uma vida um pouco mais exposta. Mas a grandeza da obra dele, como as pessoas recebem, receberam a obra dele, é uma coisa que me enche de orgulho e me deixa muito feliz.

nos últimos anos da vida do meu pai, ele se dedicou muito à família e a estar com os filhos, e realmente a coisa do trabalho era muito junto com a família

No seu primeiro projeto musical, o duo Opala, você cantava em inglês. E isso talvez tenha causado um estranhamento. Como você percebe essa escolha por cantar em inglês ou em português?

Realmente, essa coisa do inglês e do português, as pessoas ficaram muito ligadas a isso. Eu entendo, mas é porque sempre foi uma coisa muito natural para mim. Eu cresci lá (Nova York) e aqui (Rio de Janeiro), então essa é a minha história. Tem muito uma coisa das pessoas esperarem que eu faça as coisas de uma certa maneira. Mas, para mim, sempre foi importante entender quem eu era, quem eu sou na música. Foi muito natural cantar em inglês, compor em inglês, começar realmente o meu trabalho na música, na vida adulta, cantando em inglês. Eu queria fazer isso da mesma maneira que agora, também, eu estou escrevendo minhas músicas em português.

O público talvez tenha entendido como uma tentativa de se diferenciar um pouco do seu pai. Afinal, suas referências também são de fora.

É. Tem muito, claro, muito mesmo. Eu sou uma pessoa que, na adolescência, foi muito da música eletrônica, eu era muito desse rolê. E a música eletrônica me salvou em muitos aspectos. A música eletrônica tem uma coisa muito legal da catarse, porque existe uma coisa catártica de você ir dançar e soltar seus bichos, sabe?

E não tem nada a ver com a bailarina clássica, que queriam enquadrar você…

[risos] Mas aí estão sempre tentando colocar a gente em uma caixinha que a gente não é, né? Eu tive perdas, eu tive muitas questões e questionamentos que eu acho que, durante a adolescência, a música eletrônica me salvou nesse sentido, sabe? Essa coisa de botar embaixo do tapete, de esquecer, não funciona. Temos que encarar as sombras e conversar com a gente para conseguir, muitas vezes, ressignificar as coisas. A música eletrônica era uma espécie de terapia para mim, e é um universo muito rico e interessante. Então o meu trabalho, principalmente o Opala, tem muito de música eletrônica. Música eletrônica, na verdade, é muito mais uma maneira de você abordar a música do que a tal da “bate-estaca” que falam. E agora, esse disco, o Casa Branca, tem muitos elementos eletrônicos também. É uma coisa que está presente.

Você quer dar uma ideia de música eletrônica que tem escutado?

Olha, no momento eu não estou escutando nada… No momento eu estou escutando Mundo Bita! [risos]. Não, eu escuto, sempre escutei, sempre vou escutar… Eu ouvia muito Kraftwerk, eu ouvia música eletrônica dançante pesada, tipo breakbeat, drum ‘n’ bass, dos anos 2000, né? Eu peguei muito a época dos festivais. Eu não era das raves, era dos festivais. E, ah, muitas bandas também com influência eletrônica, como a Björk, o Radiohead. Escutei Daft Punk, muito. Depois o Daft Punk ficou muito pop, muito comercialzão – o que eu acho ótimo também. Mas eu gosto do Daft Punk da época lá do Discovery (2001). Mas, realmente, agora, eu precisaria ver no meu iPod o que que eu estou escutando [risos].

É que não adianta, quando nos tornamos mãe, precisamos descer um degrau de quem a gente é para estar sintonizada no filho.

Exatamente. Eu não posso ficar só ouvindo a minha música, lendo meu livro. Desde que a Antônia nasceu, honestamente, eu não consegui ler um livro. Eu descobri que não existe tempo para ler. Porque eu estou tão cansada, chega determinada hora da noite, que eu quero ligar e ver a coisa mais tosca que tiver na televisão.

Qual foi o impacto da maternidade em você e como ela ressignificou a sua infância?

Eu não sei se a maternidade ressignificou a minha infância, mas ela certamente fez eu me conectar com muitas memórias e querer saber mais da minha história. Virar mãe tem uma coisa de dar muita coragem para a mulher. Então eu acho que tem muito essa coisa de ter força para conseguir mexer nas sombras, nas memórias felizes e tristes. A infância tem sempre essa coisa nostálgica dentro da gente, tem uma coisa de sagrado. Eu acho que a maternidade, mais que tudo, me deu a coragem para poder fazer esse trabalho. Nesse sentido, eu nunca havia feito algo em que eu me expusesse tanto, em que eu me mostrasse com muitas alegrias, com muita gratidão, mas também com alguns vazios. Eu acho que eu consegui fazer isso depois de ser mãe.

E entre os desafios da maternidade, qual foi aquele que você pensou: “por que ninguém me alertou disso antes”?

Acho que os hormônios [risos]. Eu acho que é bem louco. Ah, é a experiência mais maluca que a gente pode viver. Eu tive uma gravidez tranquila, eu estava muito feliz, muito plena de estar grávida, mas depois que nasce, primeiro tem essa oscilação dos hormônios, tem o “baby blues” e, enfim, altos e baixos intensos. E é um momento de muita doação, de só doação. Eu acho que é o momento que você… Não é que você deixe de ser filha, mas você deixa um pouco de ser filha para ser mãe, sabe? Ser filha no sentido de “eu quero”, “eu preciso”, as minhas necessidades, as minhas vontades, e aí “não, espera aí, agora não é você, agora é o outro”, o outro está chamando e o outro está com fome, você tem que estar lá. Você está com sono? Tudo bem, vamos lá, vamos com sono. Vamos com sono, mas vamos! [risos]

Nesse sentido, talvez, o clipe teria também essa coisa de fechar uma porta, de fato, da “casa branca”? Agora é hora de construir a tua casa.

É, sim, poder passar da família de origem para a família que eu construí. A mulher tem muito esse desafio. A gente acaba fazendo mais, porque a gente quer trabalhar, a gente quer ser mulher, a gente quer ser mãe. É bastante coisa. Sempre tive muita vontade de ser mãe, então eu achava que isso ia chegar não muito tarde. Veio bem mais tarde do que eu imaginava, mas está ótimo. Sempre tive vontade de construir uma relação familiar, gosto disso. Eu vim disso. Esse é o meu modelo, é o que eu peguei para mim.

E você nunca sentiu preconceito do pessoal da música eletrônica com esse desejo de construir uma família?

Não na música eletrônica. Eu acho que na música, em geral, e nas artes – não exatamente da família, mas a coisa desse estereótipo de ter uma vida mais boêmia… Não sei. Eu sempre achei que dava. Que cabia.

E deu.

É. Eu acho que está dando, né? Eu estou tentando [risos].

Você canta para sua filha dormir?

Ah, eu canto. Canto tudo. Canto Mundo Bita [risos] – não, eu canto tudo. Gosto muito de escutar Gil com ela, tem uma introdução musical aí. A gente escuta muito meu pai, o “Samba de Maria Luiza”, é claro. Eu canto tudo e ela adora ouvir “Casa Branca”. Quando toca ela fica, tipo, “oh!” [risos].

A gente passa muito para os nossos filhos onde a gente andou, as nossas vivências. Será que a sua filha se reconecta com essa linhagem através da música?

Eu acho que sim. A memória, memória mesmo, é uma coisa muito relativa, né? Seletiva. A gente escolhe o que a gente vai lembrar também, e tem muito a ver com as histórias que são contadas para a gente. Eu acho que a minha mãe foi uma pessoa muito chave nesse aspecto para mim, porque eu vivi só sete anos com meu pai. Sete anos muito vividos e muito intensos, a gente era muito ligado, ele era muito disponível, mas foram só sete anos. Eu tinha só sete anos quando ele partiu. Então ela sempre fez muita questão de lembrar e falar o quanto ele era maravilhoso e o quanto ele era presente. Ela me ajudou a construir essas memórias também, entende?

Ela te devolveu o pai.

Ela me devolveu. E ela sempre falou para mim, “o amor do seu pai te salvou”. Ela também perdeu o pai cedo, e falava “o amor do meu pai me salvou”. E claro que ela, como mãe, tinha angústia de eu ter tido pouco tempo com ele, mas eu acho que ela me dava muito com essa fala.

Você vê como é importante. Como casais separados, a importância de tentar preservar a figura do pai. Pode ser uma grande quebra na estrutura psíquica você poupar uma criança dessa vivência, de ela poder ter uma história para contar de um pai também.

Exatamente, é a mesma coisa. A criança tem o direito de ter essa história. É muito importante essa consciência.

Sempre tive muita vontade de ser mãe, então eu achava que isso ia chegar não muito tarde. Veio bem mais tarde do que eu imaginava, mas está ótimo.

Qual música remete a Maria Luiza adulta à infância? O que você coloca para tocar quando quer voltar e relembrar aqueles momentos?

É engraçado. Meu pai, a gente via muito filme da Disney juntos, e ele amava a música da Pequena Sereia, e ele tirava, “under the sea, under the sea”, no piano e a gente cantava [risos]. Isso é uma coisa que me lembra muito. E ele também amava Bob Marley [risos]. Eu lembro que a gente ouvia no carro dele o cassete de “Jamming”, que era uma música que ele achava genial. Isso me lembra ele. Sempre que toca tem um gosto bom.

Uma das passagens mais lindas de “Casa Branca” é a frase: “o coração em miniatura vê dilúvio em gota d’água”

Todo mundo fala dessa frase!

Isso é a experiência infantil, a de que tudo se transforma. Ela aborda tanto a questão do imaginário quanto da intensidade. A experiência da pequenez está nesse “vê dilúvio em gota d’água”.

É, exatamente. Essa frase específica foi meu parceiro que escreveu, o Lucas Vasconcellos. Ele é fantástico. Eu fiz a música toda com ele – é importante também falar isso, tanto a letra quanto a música. “Casa Branca” é muito imagética, muito sensorial.

O que a gente pode esperar do álbum, Maria?

Ah, então. É o meu primeiro trabalho solo, né, e eu acho que é um trabalho que me mostra em muitos aspectos que eu nunca expus. É… Eu acho que está lindo [risos].


Originalmente publicado na edição Infância
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#32TravessiaArquiteturaArteArtes VisuaisDesign

As Linhas de Desejo

Duas linhas se cruzam e marcam um ponto na escala do território; as mãos continentais do urbanista, o continente como projeto. Brasília “nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse.”

O povo vindo, as máquinas abrindo esplanadas, a envergadura resultante com asas de dimensões sobre-humanas, as distâncias de incalculável caminhar, insolação.

A cidade disposta sobre a terra vermelha. Quais gestos seriam necessários para, como pessoa de tamanho de gente, se apossar dessas extensões?

Hoje, matéria céu, matéria chão, blocos (como aqui se chamam e se apresentam prédios). Quilômetros da massa de árvores e concreto que não ultrapassam a altura de 7 pavimentos, cidade-parque, homogênea, geometria dispersa. Quem aqui mora se exercita ou passeia seu cão pelas largas calçadas que circundam cada quadra do plano piloto. Com blocos elevados do chão, sobre pilotis, já se previa a dita “promenade”; passear livremente em qualquer direção na cidade, deslocar-se como modo de apreciar a arquitetura, como propôs Corbusier, imaginando a liberdade de circulação do homem moderno. Cada caminho único e subjetivo numa cidade permeável.

A paisagem de Brasília se apresenta dinâmica para as velocidades de automóvel. A pé, os elementos distantes se modificam lentamente, e cada descampado pede muitos passos, minutos. Sem os encontros das calçadas de cidades espontâneas, o vazio acolhe buracos de coruja, céu extenso. E cortam os extensos gramados, ora verdes, ora secos, veias de um vermelho escuro. Terra reaberta por pés no movimento diário do chegar e partir pelo caminho mais curto. As linhas de desejo são narrativas de vida real na cidade-abstração. São marcas dos passos das mulheres que chegam de fora nas manhãs tendo percorrido longas distâncias em transportes públicos. Se espalham a partir dos pontos de ônibus: sobem os blocos para servirem os apartamentos, andam até as lavanderias, repartições.

A carne aberta dos caminhos de terra amanhece por todo o plano; é testemunha e guia dos gestos de quem realmente caminha a cidade. Assinalam os lugares de quem ali não tem lugar. Apressando-se para a hora do ponto, a hora do ônibus, toma-se posse da paisagem? Surpresa para o urbanismo moderno, é a premência, e não a “promenade”, que cria e repete os caminhos que marcam a cidade-parque.

***

Há 5 anos, Diego Bresani vem catalogando de forma constante e sistemática as linhas de desejo de Brasília. O processo é lento e analógico (ele usa uma máquina de grande formato 4×5).

Seu desejo ao fazer esses registros é deixar uma importante reflexão sobre o urbanismo da cidade depois de 60 anos de sua construção. O que deu certo? O que deu errado no projeto modernista? Problematizando a lógica da cidade que parece ter sido planejada para automóveis. Entre as largas avenidas planejadas surgem caminhos espontâneos, que não foram planejados. Linhas estreitas, feitas na terra. Abre-se um espaço limpo onde os pedestres preferem passar. São esses caminhos que interessam a ele. O rastro de caminhantes que subvertem a ordem modernista; uma homenagem às pessoas que andam, que ocupam e que ressignificam a cidade a partir de seus desejos.

Ayla Gresta é arquiteta e urbanista pela Universidade de Brasília. Ocupa a cidade através de frentes plurais e interligadas: música, performance e intervenção urbana, e compartilha suas vivências com visitantes em derivas pela cidade patrimônio e viva.

Originalmente publicado na edição Travessia

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#32TravessiaCrônica

Até quando, Daniel?

por Vanessa Agricola

Eu não acredito mais em livre-arbítrio, eu tenho que falar com a Ju, eu tenho que falar do fim do mundo: Naquela ocasião, Miguel, o grande príncipe que protege o seu povo, se levantará. Haverá um tempo de angústia tal como nunca houve. Porém “Todo aquele cujo nome está escrito no livro, será liberto” (Daniel 12:1).

Eu acredito piamente que eu vou estar no livro. Eu, a Ju e o Jean Marcio.

2. Multidões que dormem no pó da terra acordarão: uns para a vida eterna, outros para a vergonha, para o desprezo eterno. O Freddy Krueger não vai estar no livro.

3. Aqueles que são sábios reluzirão como o brilho do céu, e aqueles que conduzem muitos à justiça serão como as estrelas, para todo o sempre. Eu fui parar na nave, a Ju é a filha do Freddy Krueger.

O Jean Marcio é homem, emocionalmente indisponível; ainda não faz sentido, nem pra mim.

4. Mas você, Daniel, feche com um selo as palavras do livro. Muitos irão ali e acolá para aumentarem o conhecimento. Mandei uma foto de morangos, num bowl de açaí, pro Jean Marcio.

Ele respondeu: puta assai.

5. Então eu, Daniel, olhei, e diante de mim estavam dois outros, um na margem de cá do rio e o outro na margem de lá. A gente não está sozinho.

6. Um deles disse ao homem vestido de linho, que estava acima das águas: “Quanto tempo decorrerá antes de se cumprirem essas coisas estupendas?”
Presta atenção que vem uma data.

7. “Haverá um tempo, tempos e meio tempo. Quando o poder do povo santo for finalmente quebrado, todas essas coisas se cumprirão.

Chama um anjo, Ju.

8. Eu ouvi, mas não compreendi, por isso perguntei: “Meu senhor, qual será o resultado disso tudo?”

9. Ele respondeu: “Siga o seu caminho, Daniel, pois as palavras estão seladas e lacradas até o tempo do fim”.

Eu também vou chamar um anjo pra mim, e um pro Jean Marcio, se ele não tiver condições.

10. Muitos serão purificados, alvejados e refinados, mas os ímpios continuarão ímpios. Nenhum dos ímpios levará isto em consideração, mas os sábios sim.

Agora faz as contas.

11. A partir do momento em que for abolido o sacrifício diário e for colocado o sacrilégio terrível, haverá mil e duzentos e noventa dias.

12. Feliz aquele que esperar e alcançar o fim dos mil trezentos e trinta e cinco dias.

Te vejo na nave.

Texto originalmente publicado na edição Travessia

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#32TravessiaCulturaLiteratura

Travessia

por Sofia Nestrovski

“O vento tange papeluchos amarrotados pela plataforma vazia”. Às vezes isso acontece — isso, uma frase onde cada palavra se encaixa. Tange, papeluchos, plataforma: a sequência as acolhe e acomoda. São palavras que ficam satisfeitas juntas, e vivem felizes, isto é, à altura de seus potenciais.

A frase vem da tradução de Tatiana Belinky para o conto “No degrau de ouro…”, da russa Tatiana Tolstaya. É uma tradução cheia de palavras contentes consigo mesmas, como “tzarina das tranças de ouro” ou “a face branca e balofa da solidão”.

A literatura tem dessas: a gente termina um livro e sai com as mãos cheias de palavras vivas. A leitura acaba e elas continuam aqui. Estremecem e inflam dentro de nós quando as encontramos em outros contextos, trazendo mistério e satisfação. Gosto de pensar que cada um leva consigo um acervo oculto de vocabulário colhido. “Apoteose”, “mutabilidade”, “noitibó” — é uma coleção doida e submersa, que só nós conhecemos, e os outros não conseguem ver.

*

“Aquela travessia durou só um instantezinho enorme”, diz um trecho de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. A palavra “travessia”, na origem, era o vento que batia contrário à direção da navegação. É perigosa, “come os navios”, diz um dicionário de português do século XVIII. Pela via do latim transversus, é prima etimológica de “travessão”, o símbolo que corre no fluxo contrário das frases — criando um hiato no centro do sentido — e devora nossos caminhos retos. Guimarães Rosa: “Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada”.

Mas é possível que, às vezes, as palavras que colhemos se tornem ao mesmo tempo veladas e coletivas. Uma espécie de segredo compartilhado. Grande Sertão: Veredas e sua repetição de “travessia” é um bom exemplo disso. Quem já leu o livro talvez tenha percebido que divide com os outros leitores essa mesma sensação — essa mesma efervescência tímida e penetrante que surge quando estamos diante de uma “travessia”, mote da narrativa. Reconhecer a si mesmo e aos outros em volta dessas nove letras é como entrar para uma comunidade invisível. Um círculo de experiências segredadas e partilhadas, onde o centro é ela: sinal de infinito, redondo e redondo, “travessia”.


Texto originalmente publicado na edição Travessia

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#32TravessiaArteArtes Visuais

O Naufrágio

por Thais Graciotti

É puro movimento do arriscar-se, mas também do inacabamento. Do risco do percurso traçado, que é interrompido no meio do mar, desenhando a decepção de uma viagem, surge o desvio como problematizador e disparador de novos problemas.

A construção de um novo território é um trabalho árduo. Necessitamos aceitar os naufrágios. Respirar a água, o sal. Promover uma morte. Um suicídio do próprio corpo organizado, do organismo estratificado, da significação do vivido.

Naufrágio que o levará a um outro espaço, outra forma de vida.
Uma brecha? Uma ruptura? Um crack! Um ziguezague. Movimento.
É necessário aprender com a experiência do naufrágio. Experiência que não se aprende de uma vez por todas. Volta-se a ela. Sangrar o organismo, as identidades, os rostos, e encontrar o sem-nome, o sem-sentido. Não quer o fundo, não o niilismo barato e fácil. Quer lançar um olhar à espreita.

São os caminhos que se abrem em uma experiência para buscar novas formas de dar conta dessa existência. Não são fugas da vida ou da existência, mas vias para nos posicionarmos de outras maneiras nos espaços ainda não ocupados, para resistirmos às linhas de estratificação que delimitam nossa experiência.

Não há nenhuma segurança disso. A prática com a textura intensiva, não há garantias. A aprendizagem se dá a cada vez. Naufragar para aprender. Aprender e naufragar, na leitura, na escrita, no pensar. Estar à espreita e praticar composições. Inclinar-se pelas alegres. Experimentar no mar, contra o muro. Aprender um naufrágio.

As nuvens me distraíram.
Preciso manter o curso tanto quanto possível.
Há a bússola para orientar. E há o leme que dirige o navio. E há os mapas.
O negócio é simples como o abc. Tudo matemático.
Preciso me concentrar.

Introduzo a rota no aparelho de navegação e viro a proa a nordeste. Faço um ziguezague ao longo da linha traçada na carta. O vento agora está exatamente contra. A água que vem com o vento espirra no meu rosto. Me desperta.

Seguro a cana do leme com firmeza. Determinada. Grito por ajuda, ainda que não tenha ninguém para escutar. Grito para ouvir a mim mesma. Sou eu contra o mar. Eu contra mim mesma e contra tudo mais. Minha voz se dilui no oco do barco.

Não posso cair. Desço com cuidado. Não posso escorregar. Não estou presa por nenhum cabo. Paro de novo junto ao mastro. Mas a viagem não terminou. Ainda não. Talvez esteja só começando. Tropeço pelo barco e vou para fora, para o cockpit. Não sei o que devo fazer.

Parou de chover granizo. Uma névoa paira ao redor do veleiro, tenho medo de não conseguir respirar nesta bruma. Não enxergo mais nada.

O barco chocalha. Tenho que me segurar. Tenho que respirar.
O vento, a água, a nuvem, o ilimitado, o inabitado.
A escuridão palpitava sobre tudo isso, e de repente lá estava ela. Algo formidável e veloz, como o súbito estilhaçar de um frasco contendo toda a cólera do mundo. Parecia explodir por todos os lados da embarcação com uma prodigiosa força de choque, provocando um deslocamento de águas, como se um imenso dique tivesse sido rebentado pela ventania.

A lufada de ar que sinto no queixo vinda da tumultuosa tempestade, agora possui a força acumulada de uma avalanche. Fortes rajadas de água trazidas pelas ondas encobrem o barco de popa a proa, e instantaneamente, em meio à sua oscilação regular, começa a dar saltos e mergulhos como se tivesse enlouquecido de medo.

Preciso me concentrar. Sou eu contra o mar. Eu contra as rochas escarpadas que avultam no horizonte em velocidade brutal.

Terra à vista: pavor. A grande batalha ainda está por vir. Só se passa ali perdido.
Os granitos são de uma estatura hedionda. Severa inospitalidade do abismo. É mar alto. A água é profunda. É um labirinto afogado.
O vento da tempestade, naqueles estrangulamentos entre duas rochas, sofre a mesma compressão e adquire a mesma malignidade. É a tempestade no estado de estrangúria. O sopro imenso fica imenso, mas faz-se agudo. É ao mesmo tempo maçã e dardo. Fura e esmaga. Imaginem o furacão fazendo-se vento coado.

Foi então que a crueldade do mar, a sua terrível inexorabilidade se me fez patente. A vida humana tornava-se ali ínfima – a simples vibração da matéria, inarticulada e sem alma. Agarrei-me à amurada de barlavento, perto do ovém, e esgazeei os olhos por sobre o estirão de ondas encristadas a perder-se nos bancos de nevoeiro.

*texto-fragmentos de literatura de viagens e naufrágios:
CONRAD, Joseph. Tufão. Porto Alegre: L&PM, 1997.
LONDON, Jack. O lobo do mar. São Paulo: Nacional, 1983.
HEIJMANS, Toine. No mar. Tradução: Mariângela Guimarães. São Paulo: Cosac Naify, 2015. HUGO, Victor. Os trabalhadores do mar. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
TOURNIER, Michel. Sexta-feira ou os limbos do Pacífico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. MÁRQUEZ, Gabriel García. Relatos de um náufrago. Rio de Janeiro: Record, 1999.
DEFOE, Daniel. As aventuras de Robinson Crusoé. Porto Alegre: LP&M, 1997.

Texto originalmente publicado na edição Travessia

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Amyr Klink: “Eu venho da África”

por Amyr Klink


editor convidado da Amarello Travessia

“Eu venho da África”. Muito planejamento foi necessário para dar essa resposta à curiosa pergunta das primeiras pessoas com as quais tive contato ao chegar no Brasil: dois pescadores que se aproximaram de mim em suas embarcações, movidos pela curiosidade, espantados ao avistar um barco sem vela ou motor surgir do alto mar em direção à costa brasileira.

Levei 100 dias para realizar a travessia do Atlântico Sul, em 1984, saindo de Lüderitz, no Sul da África, até a Bahia. Lembro como se fosse hoje aquela sensação de que essa viagem tinha tudo para dar errado. O frio constante era um problema, a engenharia marítima inédita era um problema, a logística com a comida era um problema. Antes de mim, dois africanos se aventuraram no mesmo percurso, e nenhum sobreviveu. Outro problema. Um sinal de que se está em um desafio é quando os medos e as dúvidas não diminuem à medida que você planeja, mas aumentam. No entanto, somente tamanha insegurança faz com que se planeje uma viagem até a exaustão, e isso faz toda a diferença. Os preparativos com os quais precisei me preocupar eram tantos que não houve tempo para pensar no que eu diria ao chegar – se caso chegasse. acho que as pessoas esperavam que eu tirasse uma bandeira do Brasil como a do Ayrton Senna e tivesse uma frase como a do Neil Armstrong. Mas não, a minha bandeira era minúscula, pouco maior que a palma de uma mão, e a primeira frase que me ocorreu veio sem qualquer preparação, em resposta à impensável pergunta dos pescadores baianos que me abordaram: “Como foi a pescaria?”, eles queriam saber. “Eu venho da África”, respondi.

Experiências no mar têm duas características: são efêmeras e intensas. Algo como a vida. Ao contrário do que esperava, senti uma tristeza ao avistar a praia da Bahia, porque sabia que o percurso estava terminando. Eu havia remado no mínimo 10 horas por dia durante mais de três meses, e agora percebia que não queria que isso simplesmente chegasse ao fim. Então me aproximei da costa e decidi que não iria desembarcar, e o mais difícil foi comunicar isso aos que me esperavam ali, ansiosos. Era como se estivéssemos prestes a desfrutar de coisas diferentes. Eles queriam o feito, exaltar a conquista da travessia; eu queria prolongar o prazer que o percurso me transmitia. Teria sido mais fácil explicar a resistência em descer caso as pessoas pudessem escutar o mesmo que eu naquele momento: o som do vento batendo nos coqueiros. O mar ensina a ficar atento aos sinais. Por isso, não tive dúvida quando atraquei na Praia da Espera. Ancorei e esperei por seis horas antes de desembarcar.

Eu nunca imaginei ou mesmo desejei uma chegada épica. Mas quando as pessoas entenderam do que se tratava, elas resolveram que dariam essa dimensão ao meu percurso. O que é ótimo, claro, mas também sinaliza uma necessidade visível do nosso tempo: a de criar heróis. É compreensível nos depararmos com essas figuras durante a infância, mas, na vida real, em sociedade, cada um de nós deveria ser herói. E isso não é complexo; basta que assumamos as nossas responsabilidades por inteiro. Vejo que, por vezes, perdemos a coragem de fazer e de realizar. Transferimos nosso desejo de viver para os outros. Os outros podem; eu, não. O mundo está em um momento tão delicado e confuso que somente poderemos modificá-lo se cada um de nós assumir um protagonismo verdadeiro.

As pessoas geralmente pensam que a minha grande companhia nessa viagem foi a solidão. Errado. Quando você precisa remar o dia todo, tudo o que não acontece é sentir-se sozinho. Minha maior companhia, na verdade, foi a ignorância. Mas não a ignorância de não querer enxergar – essa é fatal. Minha ignorância era consciente, um respeito diante do desconhecido. Eu sabia que não poderia prever tudo e, por isso mesmo, me preparei ao máximo para o que pudesse acontecer.

Nesse aspecto, vejo que a tecnologia nos auxilia muito. Eu não tinha tecnologia em 1984, e a bússola não me servia, então aprendi astronomia para me guiar pelos astros. Tive de aceitar o desconhecido e minha insignificância para atingir meu objetivo. Essa ignorância me salvou. A tecnologia é uma revolução incrível, sem dúvida, mas ela também acomoda e mata. A era da hiperconectividade nos colocou em um estado de velocidade sem precedentes, com o qual muitas vezes não sabemos lidar. Nele, acabamos facilmente descuidados e acomodados com a realidade. A facilidade com que obtemos as coisas nos faz abrir mão de uma série de habilidades. Todo conhecimento é precioso de alguma forma. Deixá-lo a cargo de outro, seja pessoa, aplicativo ou robô, nos priva do que é mais valioso no ser humano: a autonomia. A tecnologia precisa ser nossa aliada, porque, se estamos no caminho certo, ela nos auxilia enormemente e expande o percurso. Mas, se estamos no errado, ela nos leva cada vez para mais longe da superfície.

Vejo que estamos cada vez mais preocupados com o destino, com onde vamos chegar e o que vamos alcançar com isso, e, assim, esquecemos do principal – a travessia. O percurso é o que nos leva de um lado ao outro da experiência. Se nos desconectamos dele, dos seus perigos e mistérios, acabamos desconectados, também, de sua beleza. Aprendi que, quando focamos unicamente o destino, a chegada pode ser frustrante, e aí é muito fácil nos decepcionarmos com a vida e reclamarmos de tudo. É nos momentos de dificuldade que a criatividade aflora e provamos poder nos superar.

O mar também me permitiu repensar conceitos importantes, como o de liberdade. Penso que a ideia de liberdade dos dias de hoje, no fundo, pode ser uma noção falsa ou impossível. A liberdade que me interessa é muito menos aquela que se parece com uma vastidão de água ilimitada do que aquela que me permite vislumbrar claramente as fronteiras. Porque, quando vivemos em sociedade e eu enxergo apenas a mim, penso somente nos meus interesses, isso é sinal de que eu não estou vendo bem. Isso significa que sou míope. Por outro lado, se reconheço os meus limites, seja a presença de um vizinho, a existência de um pensamento diferente do meu ou a importância do nosso ecossistema, então eu posso existir não sem conflito, mas em diálogo. O conflito existe desde sempre, e o caminho não é tentar erradicá-lo em um instante, mas conciliá-lo constantemente. O maior desafio no mar era estar aberto ao acaso e corrigir as pequenas derrotas do cotidiano. Precisei aceitar muitas vezes que, em alguns dias, eu remava sem saber se estava avançando ou retrocedendo, e isso não poderia ser um problema – caso contrário, eu desistiria. Estar aberto ao inesperado é um aprendizado. as derrotas diárias nos ensinam muito e precisam ser assimiladas continuamente. E se elas parecem complexas e nos tomam muito tempo, nem por isso deixaremos de remar. Porque esse é o percurso, e é para ele que estamos aqui – para apreciar o som do vento batendo nos coqueiros.


Texto originalmente publicado na edição Travessia

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Procuro Errantes

por Deco Adji

Aos interessados, proponho uma caminhada por Paris, a ser realizada em qualquer outra cidade. A proposta de deriva possui algumas instruções e pode ser realizada em um ou mais dias, preferencialmente de forma solitária.

il n’y a pas de pas perdus

Texto originalmente publicado na edição Travessia

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In Progress

por Bruno Cosentino

O termo em inglês work in progress serve, na arte, para se referir à publicação gradual do processo criativo de uma obra. Ou seja, antes que ela tenha sido terminada. Mas quando uma obra está, afinal, terminada? Essa já é uma outra questão. É comum ouvirmos depoimentos de artistas que dizem não saber quando, e que optam por abandoná-la, mesmo julgando-a inacabada. De todo modo, em algum momento, seja ele cercado de ansiedade ou de autoconfiança, o artista põe termo à sua criação, ao que se segue a publicação. Tornar a obra pública é tirá-la do estado de virtualidade em que existia até então e fazer dela coisa entre as coisas no mundo e entre a gente.

A obra de arte existe em dois âmbitos: o do criador e o do público. O artista cria o objeto e, uma vez publicado, sai de cena; a obra passa a ganhar novos sentidos aos olhos do público. Ela não perde o lastro, mas alça voo. Assim, a publicação é um divisor de águas, posto em xeque, no entanto, com a internet, que, pelo fato de permitir publicações real time, conforma um tipo de produção artística e de fruição apressada e sempre ansiosa por novos posts.

Penso na indústria fonográfica. É surpreendente notar que, na época em que se prensavam discos, cantores e compositores, conforme o contrato com as gravadoras, lançavam um novo álbum a cada dois ou três anos. Hoje, quando os artistas detêm os meios de produção — e, é de se supor, poderiam obedecer a um chamado interno de criação, de escala não industrial —, há, contudo, uma profusão de lançamentos, determinada não mais pelas gravadoras, mas por um estado psicossocial difuso ávido por novidades.

Sendo assim, o in progress ganha relevância. Uma canção, por exemplo, até ser gravada em um álbum, pode passar por diversas publicações: o momento da composição (normalmente postado em versão crua, de voz e instrumento), os ensaios para a criação de arranjos com a banda, as gravações, a sessão de fotos para divulgação, a arte gráfica da capa, a gravação do clipe etc. — as várias etapas do processo de feitura da obra podem ser acompanhadas no stories do Instagram ou no feed do Facebook. Acontece de uma canção ou álbum, quando lançados, já não apresentarem novidade aos ouvidos dos fãs. O lançamento, como era antes, perdeu a importância.

Como fazer dessa urgência — que parece ser tão avessa ao tempo subjetivo do labor artístico — um elemento refletido da criação? Essa parece ser a principal pergunta a ser respondida pelo artista hoje. Uma adesão sem crítica incorre no risco de tornar a arte indistinta de todo e qualquer post, que se esgota em segundos e se embaralha na torrente de imagens e mensagens do celular. A arte, ao contrário — e esta é uma de suas principais características —, deve pretender durar no tempo. Criar tradição. Um cânone em construção, aberto aos conflitos: estéticos, econômicos, sociais. Essa é, pois, já outra questão.

Nosso dia passa mergulhado em uma vertigem de estímulos sensoriais. Nossos aparelhos receptivos ultrassaturados não conseguem dar mais conta. Então, como ser um artista hoje se o tempo da criação parece ser roubado por mil ruídos de notificação? Novas formas surgem. Há quem não lance mais álbuns, e sim canções avulsas. Há quem grave clipes ou quem só faça shows (que é, afinal, a principal fonte de renda para os artistas, já que os sites de streaming não lhes pagam mais que centavos por click). Há aqueles que simplesmente abandonaram a vocação, uma vez que não conseguiram ganhar dinheiro com ela. Dessa última, porém, desconfio, porque a verdade é que não se faz arte para ganhar dinheiro.

A falta de concentração e a ansiedade provocadas pelos meios de fruição não se consubstanciam em unidades concretas da experiência subjetiva das pessoas. E o fim da arte — fim, claro, não utilitário — é esse. Algo deve restar no corpo. Ou: será possível adquirirmos experiência quando ela própria é dilacerada no espaço e no tempo? Difícil questão. Mas é com ela que estão à volta os artistas mais engajados politicamente com sua arte. Para alguns, a postura consequente é não coadunar-se com as injunções de seu tempo. Mas: mover-se fora de seu tempo é uma resposta contundente à situação?

As questões por que se dilaceram os artistas com a ausência do público é também parte do processo. Para quem o artista cria? Com a segmentação do mercado, a dissolução dos discursos totalizantes dos meios de comunicação de massa, o consumo da produção artística fica, muitas vezes, restrito aos pares.

O mais comum é que o público das peças de teatro seja composto por atores, atrizes, diretores; os shows de música, por cantores, compositores e instrumentistas; as vernissages, por artistas plásticos; as pré-estreias de filmes, pela gente do cinema. O contágio do público foi minado pelo mercado de nicho, ainda mais afunilado pelo efeito algorítmico das redes sociais. O artista, se quiser fazer parte do mercado como se configura hoje, deve se encaixar na prateleira esperada ou corre o risco de sair de linha. Nada mais limitador para o verdadeiro espírito criativo, sempre insurrecto.

Atrofiado o público, resta aos artistas trabalharem conforme a verdade de sua arte. O processo tende a ser solitário e existencial. A arte muda o artista desde dentro. São indiscerníveis, uma e outra. Dá-se a ver essa transformação nos stories? Não. O artista, no entanto, carece de reconhecimento, de espelhos: os olhos do público. Não é por dinheiro que o grande público interessa ao artista, mas pelo reconhecimento impessoal do seu sentimento ali cristalizado e passado adiante. Aliás, é nesse ponto que o interesse econômico poderia coincidir com a ambição artística: o grande público, ou, em termos de mercado, o público consumidor. Mas a economia de escopo tudo fragmentou, e os reflexos que chegam ao artista são rarefeitos. A vida que salta assim, em canções, pinturas, filmes, é, portanto, solitária, marcada pela grande ausência, mas em círculos menores, fortalecidos de afeto, e mais íntimos, por que não?

Bruno Cosentino é cantor e compositor. Lança no segundo semestre de 2019 seu quarto disco: Bad Bahia

Originalmente publicado na edição Travessia

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Viajar é redescobrir: Mário de Andrade sai de casa e encontra o Brasil

por Willian Silveira

A gente pode lutar com a ignorância e vencê-la.
Pode lutar com a cultura e ser ao menos compreendido,

explicado por ela.
Com os preconceitos dos semicultos não há esperança

de vitória ou compreensão.
Ignorância é pedra: quebra. Cultura é vácuo: aceita.
Semicultura? Essa praga tem a consistência da borracha:

cede mas depois torna a inchar.

O Turista Aprendiz (1976)

A História do Brasil tem muitos começos. Em um deles, o mês é abril e o ano 1924. Nesta data, um grupo de artistas aproveita o prestígio adquirido em evento recente – polêmico para uns e constrangedor para outros –, denominado Semana de 22, e anuncia que sairá em excursão pelo país com um único objetivo: conhecer o Brasil.

Na caravana que partiu de São Paulo em direção a Minas Gerais, chamava atenção o ar vanguardista destilado pela trupe capitaneada pelo escritor e bon vivant Oswald de Andrade – a essa altura, já em insistente campanha ufanista para que o chamassem exclusivamente de Osvaldo. Em sua companhia, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado e o poeta suíço Blaise Cendrars. Por último – não porque menos importante mas porque chegara atrasado para a partida – estava a figura de Mário de Andrade.

***

Estou meio desapontado. Tudo a gente desconhece neste primeiro contato com a viagem, pessoas, corredores, decorações… Além do mais, me sinto muito urbano, chapéu de palha na cabeça, gravata longa embandeirando no vento… Vou pra cabina, abro a mala, tiro o boné… É extraordinário como as convenções gesticulam por nós. E inda falam que o hábito não faz o monge…

***

Se Oswald pode ser considerado o coração do Modernismo brasileiro, Mário é certamente o cérebro do movimento. Diplomado no Conservatório Dramático e Musical da capital paulista, o professor universitário era reconhecido tanto pela sólida formação acadêmica quanto pelo talento para articular com naturalidade temas diversos como literatura, música, etnografia, arquitetura, folclore e artes plásticas. Conta-se, no entanto, que diferentemente dos colegas viajados, o cosmopolitismo em Mário era tão evidente quanto o número de carimbos do seu passaporte. Aos 30 anos, a aventura mais marcante do autor de Pauliceia Desvairada tinha sido sair de casa e ir até o Theatro Municipal de São Paulo.

A anedota tem o seu valor, mas não é fidedigna, claro. Em 1919, cinco anos antes da excursão descrita anteriormente, portanto, e cujo epíteto Oswald divulgaria como “a verdadeira viagem de descobrimento do Brasil”, Mário estivera na cidade de Mariana para encontrar o poeta e amigo Alphonsus de Guimaraens. Ali, o barroco mineiro causara-lhe tamanho impacto que a imersão na singularidade nacional mudaria para sempre a vida do escritor paulista.

7 de maio de 1927. São Paulo. Partida de São Paulo. Comprei pra viagem uma bengala enorme, de cana-da-índia, ora que tolice! Deve ter sido algum receio vago de índio… Sei bem que esta viagem que vamos fazer não tem nada de aventura nem perigo, mas cada um de nós, além da consciência lógica possui uma consciência poética também. As reminiscências de leitura me impulsionaram mais que a verdade, tribos selvagens, jacarés e formigões. E a minha alminha santa imaginou: canhão, revólver, bengala, canivete. E opinou pela bengala.

***

Intelectual de perfil múltiplo e prolífico, a inquietação mental valeu a Mário o posto de agitador cultural das principais revistas da época, como Klaxon, Estética, Terra Roxa, Outras Terras, e um legado de 49 obras. Lembrado em especial pelos simbólicos Pauliceia Desvairada (1922) e Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928), o trabalho folclórico do escritor recebe até hoje atenção limitada. É nele, contudo, que se pode enxergar um pesquisador criativo, motivado a captar e interpretar com originalidade um país de inúmeras camadas.

O melhor exemplo desse esforço investigativo está nas duas viagens realizadas no final dos anos 20 e registradas no livro O Turista Aprendiz – Viagem pelo Amazonas até o Peru, pelo madeira até a Bolívia, e por Marajó até dizer chega. Concluído tardiamente em 1943 e publicado somente em 1976, 31 anos após a morte de Mário, a edição encontra-se esgotada, contribuindo para a sensação inevitável de que o Brasil ainda tem muito a descobrir sobre si mesmo.

***

[7 de junho]. Vitória-régia. Às vezes a água do Amazonas se retira por detrás das embaúbas, e nos rincões do silêncio forma lagoas tão serenas que até o grito dos uapés afunda n’água. Pois é nessas lagoas que as vitórias-régias vivem, calmas, tão calmas, cumprindo o seu destino de flor. Feito bolas de caucho, engruvinhadas, espinhentas as folhas novas chofram do espelho imóvel, porém as adultas mais sábias, abrindo a placa redonda, se apoiam n’água e escondem nela a malvadeza dos espinhos.

Em sua totalidade, O Turista Aprendiz compreende dois itinerários complementares. Na primeira viagem, entre 07 de maio e 15 de agosto de 1927, o escritor conhecerá boa parte da Amazônia, chegando ao Peru e à Bolívia, registrando a época das chuvas e as principais danças folclóricas da região. A segunda, denominada “viagem ao Nordeste”, compreende o período de dezembro de 1928 a fevereiro de 1929. Neste trajeto, sairá do Rio de Janeiro passando por Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba.

Ambas as viagens se tornaram embrião visível para Macunaíma. A chocante história de um herói sem caráter, entendida por muitos como crítica sociológica ao espírito brasileiro, é a tentativa de resgatar a estrutura de rapsódia – Mário faria, então, questão de afastar do livro o termo “romance”, um gênero essencialmente europeu – e gerar um novo formato para a literatura nacional, que buscasse recuar ao primitivismo tropical, ou seja, aos seus mitos fundadores. Ali, na pele do “herói imperfeito”, realiza-se um perfeito panegírico do sincretismo cultural brasileiro.

***

Peixe-boi: O que valeu mesmo a pena foi ver o peixe-boi. Come erva com muita educação, sem fazer bulha nenhuma e só entreabrindo a boca. Se falasse, eu mandava ensinar italiano a ele, e o punha num restaurante obrigatório em São Paulo, pra ensinar aos meus patrícios a comer. Infelizmente não fala não. O peixe-boi é uma baleia que só por desânimo deixou de crescer mais.

***

Por isso, a base do projeto modernista de Mário de Andrade não se restringiu a debater o conteúdo da modernidade – as fábricas, os carros, os cinemas –, mas em perceber como as características locais têm de conviver com as transformações sociais do início do século XX. No centro do seu conceito de brasilidade reside a proposta de que a identidade nacional somente poderá ser compreendida se levado em consideração um país diverso e em transformação. A unidade estaria no processo de absorver o múltiplo.

Neste aspecto, Mário surge como um intelectual bastante peculiar no cenário cultural. A consciência de que a academia somente poderia fazer sentido se em comunhão com a experiência acaba por propor a ressignificação e a expansão das características nacionais. A união de literatura, política, sociologia e livro de viagem faz de O Turista Aprendiz uma provocação para que aprendamos a redescobrir aquilo que entendemos como já descoberto. Neste caso, é um pedido especial, vindo de quem se coloca no centro do país, para que ampliemos o nosso olhar e nos permitamos ser turistas aqui mesmo. Estar atento ao Brasil é um chamado para ser surpreendido.

***
13 [de janeiro]. Passeio a cavalo pela manhã sem sol. Chupar cajus no mocambo, lugar aprazível da propriedade… De noite escuto dois cantadores pernambucanos numa casa de adobe, gente circunscisfláutica, sem gosto de terra, falando bem, bestas. De longe se escuta um zambê noutra casa de empregados. O som do bumbo “zambê” se escuta de longe. Vamos lá. O pessoal dança passos dificílimos. O tambor bate soturno em ritmo estupendo. Estou no meu quarto e inda o zambê rufa no longe. Adormecerei e ele ficará rufando. Pleno século XIX. Plena escravidão. O senhor de engenho. Gente humilhada na pobreza servil. E o samba. Minha comoção é dramática e forte.

***

As descrições de Mário revelam um homem fascinado pelo que encontra. Tanto pelo Brasil que surge dia após dia quanto pelo Brasil que deixa de ser o que lhe contaram. Ao calibrar a sua visão, vemos um país desgarrado dos padrões europeus, desapegado do olhar pautado pelo exotismo absurdo e das amarras do pudor cristão. Aos poucos, a cada antiga novidade, percebemos nascer um país mestiço: mais indígena e africano, mais caboclo e caipira. Vislumbramos a possível descoberta do Brasil – finalmente:

8 [de fevereiro]. Seis horas e me apronto pra partir pro Recife. No café Odilon do Jacaré se despede de mim com o Boi Valeroso, dizendo que me rogava a praga que eu havia de voltar e depois disse que eu devia me casar. Passamos pela “rua” que limita Pernambuco e Paraíba. Estrada agora boa e terra melhora bem nos serrotes. Engenhos, usinas, decauvilles, gente. Pouco antes de 10 horas passamos Goiana onde fotografo duas igrejas velhas. Dois guardas-civis na cidadinha. Prefeitura emproada. Pouco depois cai uma chuva danada que só passa depois de atravessarmos sem ver, no auto fechado, Igaraçu. Depois Olinda. Os bondes vêm com serpentinas me aplaudindo. Recife às 12 horas. Andei procurando um Maracatu que não achamos. Mas pelas vinte e duas horas, caímos todos no frevo do Vassouras. Loucura e formidável porre de éter.

Texto originalmente publicado na edição Travessia

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