Quais são as distâncias que separam Brasil e Moçambique? Poderíamos pensar que são as águas profundas e antigas dos oceanos Atlântico do lado de cá e Índico do lado de lá. Porém, se nos atentarmos melhor, perceberemos que existem muitos outros caminhos que podem ser traçados, ou, melhor dizendo, trançados.
Para esta edição da revista Amarello, que trata especialmente de afetos e resistências indígenas e negras, escolhi falar sobre o trabalho de Juh Almeida, diretora e fotógrafa baiana, residente em São Paulo. Na verdade, acredito que eu tenha sido escolhida porque, ao ver as imagens feitas durante sua estadia em Maputo, Moçambique, em abril de 2019 – resultado de um projeto premiado pela Secretaria de Cultura de Salvador junto com o Centro Cultural Brasil-Moçambique –, fui arrebatada pela profusão de beleza, cores e formas que Juh encontrou por lá.
O intuito do projeto era dar aulas de fotografia para mulheres, mas o que vemos nas imagens são registros do cuidado de mulheres africanas com seus cabelos e tradições. As fotos aqui compartilhadas abordam dois momentos da fotógrafa em Moçambique: o seu encontro com Dona Aurora, retratada nas imagens em preto e branco e dona das tranças que abrem este texto. Uma mulher trabalhadora e atravessada pelas histórias permeadas por diferenças de classe no país, e um dia no salão de beleza da cabelereira Constance Chamboco, situado em Ngalanza, 7ª província de Maputo. As fotos coloridas por tons de rosa e verde água mostram Juh retratando crianças fazendo travessuras, mulheres cuidando de seus cabelos, trocando confidências cotidianas, transparecendo cumplicidade e familiaridade com as lentes. Imagens em que a fotógrafa nos mostra as semelhanças entre Moçambique e Brasil, algo que talvez só pudesse mesmo ter sido captado por uma mulher negra como a Juh.
Ao reparar nas cores, texturas e jeitos de trançar, facilmente poderíamos confundir lá com aqui. A construção das belezas negras passa diretamente pelo afeto, pela diversão, pelo riso solto de Constance e de suas amigas e clientes, todas juntas. É um momento de celebração e encontro – ou melhor, reencontro. De Juh com o continente de seus mais velhos e de estéticas muito antigas que tanto no Brasil como na África se reinventam e se atualizam através das mechas de cabelos repartidos, no pente garfo que encontra e desfaz os nós do crespo prestes a ser entrelaçado por saberes ancestrais. As capulanas coloridas, tecidos tradicionais de Moçambique, adornam os corpos negros; o trançado parece uma costura.
Presenciar os processos de trançar em Maputo e em Salvador sugere uma travessia de saberes, uma permanência de vivências, que, por sua vez, estabelece um laço de identidade, um tipo de processo afetivo de construção da beleza que atravessa o mar e pode ser encontrado aqui. As tranças são, sobretudo, símbolos que não guardam apenas um rico patrimônio estético, mas também têm um sentido político: a experiência negra do trançar e do viver, com seus afetos, maneiras e pensamentos, seja na África, seja no Brasil, é uma experiência de luta e resistência. Estabelecer essas pontes de identidade é fortalecer-se com os dois lados do mar.
Em conversa com a Juh, tive a oportunidade de ler um fragmento do seu diário de viagem, relato que só coroa o que podemos ver nas imagens. Por isso, a convidei para assinar este texto comigo, compartilhando com vocês, leitores, algumas passagens:
Maputo, 26 de abril de 2019
Por Juh Almeida
Som de cabelo sendo penteado por um pente garfo, música baixa no rádio, vozes de mulheres falando como se cantassem, “homem, pega ali minha cerveja”, “trança do lado de cá também”, “você acha mesmo que eu fico bonita com esse penteado?” E foi com essa paisagem sonora que meus pés me levaram para dentro do salão da Constance, na sétima província de Maputo, em Moçambique. Com a licença, entrei, cumprimentei cada uma delas e meu coração confirmou que já nos conhecíamos há muito tempo. Meu corpo de mulher negra, afro-brasileira e diaspórica tremeu ao atravessar o Atlântico e pisar no Índico, e ali, entre as paredes esverdeadas, eu lembrei do mar, e não me sentia mais naufragada, mas como se pisasse em terra segura. Fui arrebatada pela potência e força que emanava daquelas mulheres. Suas histórias escoavam pelos meus pensamentos como lembranças antigas, do verde-água pintado pela própria mão da Constance, mão ligeira que agora ali trançava o cabelo das suas amigas, mãos que seguravam sua filha nos braços, mãos que amarraram como presente uma capulana na minha cintura e que, em um abraço-acalanto, eu pude entender: eu estava em casa.
O nome de Maxwell Alexandre apareceu quase instantaneamente no campo das artes. Em apenas 4 anos, o artista saiu do anonimato para a fama internacional. Literalmente, da Rocinha, a maior e mais populosa favela brasileira, onde nasceu e vive, para um dos museus de arte contemporânea mais prestigiados do mundo, o Palais de Tokyo, em Paris, onde tinha exposição marcada para junho de 2020 (adiada para outubro de 2021 devido à pandemia de Covid-19).
Narrada assim, sua história ganha ares de conto de fadas. Mas a verdade é que, por mais breve que seja, sua ascensão é marcada por determinação e, talvez mais importante do que isso, pelo entendimento lúcido sobre como funciona o circuito das artes. Lugar que, como ele mesmo aponta, é um espaço de privilégios, movido por uma lógica branca e elitista. Não por acaso, sua obra, contundente, fala sobre a cultura da sua comunidade, predominantemente preta e pobre.
Formado em Design pela PUC-Rio, onde foi aluno bolsista, foi lá que teve seu primeiro contato com a arte contemporânea, através das aulas com o artista Eduardo Berliner. Esse encontro foi decisivo para que compreendesse que era este o caminho que perseguia. A partir desse momento, começou a estudar a lógica do campo da arte e entendeu que era preciso operar de forma estratégica. De cara, compreendeu que se intitular “artista” trazia mais prestígio do que “designer”, além de alargar as possibilidades do seu futuro profissional.
Foi em 2017, no evento Carpintaria para Todos, promovido pela galeria Fortes D’Aloia e Gabriel, no Rio de Janeiro, a primeira vez que Maxwell pendurou uma obra sua na parede de uma galeria tradicional do sistema das artes. Nesse dia, as portas estavam abertas a todos que aspiravam um espaço no circuito (e mercado) das artes. Bastava chegar com um trabalho que não ultrapassasse as dimensões da porta de entrada. Maxwell apresentou a obra Tão saudável quanto um carinho (2017) – parte da série Reprovados, que “surgiu para tratar de questões mais ácidas da vivência preta, como o conflito da comunidade com a polícia, a dizimação e encarceramento da população negra, a falência do sistema público de educação”, conforme escreve.
Do evento na Fortes D’Aloia e Gabriel, Maxwell passou a ser artista representado pela galeria A Gentil Carioca, que o levou para a consagrada feira Art Basel. Apadrinhado, partiu para uma residência na Delfina Foundation, em Londres, e outra em Lyon, que resultou na sua primeira individual fora do país, Pardo é papel, no Museu de Arte Contemporânea de Lyon. No retorno ao Brasil, a mostra itinerou por importantes instituições nacionais, como o Museu de Arte do Rio de Janeiro e a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Nesse percurso, fez também sua primeira exposição solo no Reino Unido, na galeria David Zwirner, de Londres.
Sem título, das séries Novo Poder e Pardo é Papel (2019)
Se o primeiro trabalho apresentado ao circuito trazia uma visão mais dura e pesada da periferia – e, é necessário apontar, extremamente realista –, expondo tudo aquilo que fica perversamente velado pelos donos do poder, a série Pardo é papel traz um pouco mais de humor. Nela, a figura do homem preto aparece em meio aos símbolos e marcas que representam o status de poder e de bonança dentro da favela. Danone, Toddynho, Adidas, correntes de ouro, jatinhos, carros conversíveis se misturam ao brasão da polícia, aos uniformes escolares da rede pública de ensino, à laje, à piscina de plástico da marca Capri (cujo desenho padrão se espalha como pano de fundo de muitas das obras), às viaturas de polícia, às armas. É possível identificar representantes da luta social, bem como ícones da cultura popular. Marielle Franco marca presença. E os pretos ascendendo às camadas de poder, também.
Ao pintar corpos pretos sobre o papel pardo, afirma o ato estético também como político. Pardo é a designação utilizada em documentos oficiais, como certidões de nascimento, e pelo Censo do IBGE, por exemplo. Entretanto, hoje em dia, a comunidade preta entende que tal denominação está ligada a um processo de clareamento, e negação, da sua verdadeira cor. O crescimento das discussões e a tomada de consciência da população preta passa também pela construção de uma autoestima que aceita e enaltece suas características e que passa a enxergar, nesse tipo de termo, uma conotação pejorativa.
O personagem de cabelo descolorido que aparece nas pinturas é seu autorretrato. No espaço da pintura, Maxwell compreende que pode manipular as marcas e símbolos que moldam as vidas e ditam os comportamentos. Ao deslocar essa realidade para o plano pictórico, dando-lhes um novo tempo e espaço, seus trabalhos possibilitam o questionamento não apenas dos valores sociais, mas do lugar do preto em nossa sociedade, que por tantos anos negou sua existência. Os títulos de algumas de suas obras fazem essa conexão de forma direta: O mundo é nosso, Se eu fosse vocês olhava pra mim de novo, Até Deus inveja o homem preto, etc.
Detalhe de Pisando no Céu, da série Pardo é Papel (2020)
Detalhe de Megazord Só de Power Ranger Preto, da série Pardo é Papel (2018)
O grande formato de suas pinturas também tem a ver com isso. “Achei pertinente assumir esse formato de pintura monumental, para intensificar o diálogo entre a quantidade de papel articulada e o número de corpos pretos em posições contemporâneas de poder”, escreve em texto publicado no catálogo da exposição Pardo é papel. Para quem teve a oportunidade de ver tais obras ao vivo, fica evidente o contraste criado pela monumentalidade das obras e a fragilidade do material, que acaba tendo rasgos e remendas aparentes, algo que foi pensado propositalmente pelo artista.
Maxwell é membro d’A Noiva, ou a Igreja do Reino da Arte, que reúne artistas de várias áreas e onde acontecem encontros, exposições, trocas de ideia, além de rituais próprios das igrejas, como batismo, peregrinações e festas. É também a partir desse templo, como ele se refere, que tenta levar a arte contemporânea para dentro da comunidade onde vive, na Rocinha. Ali, ele propõe o autoconhecimento e a salvação pela arte. É mais um caminho que traça para aproximar a favela do sistema excludente da arte contemporânea. Em um post em sua conta do Instagram, publicado em 27 de dezembro de 2019, ele escreve sobre um culto de batismo realizado na Igreja: “A Igreja se instalou aqui na favela muito para fazer valer de fato as máximas idealizadas e romantizadas pelo circuito: a Arte democrática, a Arte para salvação do mundo. Isso nunca foi uma verdade aqui, porque a Arte como objeto de valor especulativo e principalmente distinção social tem sido um programa implementado para que os crias daqui não se sintam à vontade de chegar perto, consumir ou entender. Se é que precisa entender, neh (sic)?”
A relação que mantém com a música, como pessoa e em sua produção artística, também faz parte dessa estratégia. Suas maiores referências e pares de trabalho são cantores de rap, sobretudo da geração atual, como Baco Exu do Blues, Djonga e Bk’. O rap é uma inspiração direta para sua pintura e também uma escolha perspicaz de como aproximar a sua comunidade do campo das artes visuais.
Detalhe de Não foi Pedindo Licença que Chegamos Até Aqui, da série Pardo é Papel (2018)
Poucas pessoas têm a coragem de falar sobre o sistema das artes com a franqueza que o faz Maxwell Alexandre. Para ele, nascido na periferia – um lugar aonde a arte não chega porque não há tempo a perder com algo que alimente o espírito e não mate a fome depois de um dia de trabalho –, o entendimento da arte como um lugar de privilégio e de acúmulo de capital simbólico e econômico é claro. Ciente de tudo isso, e uma vez dentro do sistema, seu trabalho vai na direção de provocar e desestabilizar esse cenário. Sua obra aparece em um momento em que a luta contra o racismo tem tomado força e somado vozes. Sua trajetória, sua obra e sua posição jogam essa luz no centro do campo da arte, ao mesmo tempo que apontam, também, para a necessária reflexão sobre a estrutura social como um todo. É preciso olhar atentamente cada pincelada, que, mais do que tinta e domínio técnico (e este está, sim, presente), sinalizam que os pretos não vão mais ficar calados. E nem poderiam. A nós, brancos, cabe, mais do que contemplar, refletir.
Dalila Retocando Meus Dreads, da série Pardo é Papel (2020)
Na narrativa mítica, na orientação espiritual e cotidiana do Tronco Pankararu, há uma visão de uma figura feminina vista como mãe do criador e da criação, a mãe natureza, que compreende e protege os espaços onde há vidas. Todos os seres vivos humanos e não humanos, também as pedras, as águas e espíritos sagrados femininos e masculinos. O entendimento e conhecimentos deixados por nossos antepassados: os saberes tradicionais.
Introdução
Ao constituir essa composição, procuramos buscar elementos a partir de dois contextos. O primeiro momento foi mergulhar no interior das aldeias e, assim, encontrar essências que fazem essa trajetória entre o passado e o presente. O segundo momento foi tecer um olhar acerca do que está conjugado sobre questões indígenas atualmente. O objetivo foi encontrar, a partir dessas reflexões, a importância da presença das mulheres nesses lugares.
A princípio, nosso lugar de fala é o território sagrado do Povo Pankararu. Nesse sentido, podemos dizer que vivemos em uma sociedade matriarcal também, dada a presença de grandes lideranças femininas que atuam nos mais diversos campos, seja na tradição ou em questões de políticas públicas.
Dessa forma, voltando a meio século atrás, ou um século, o convívio na aldeia teve, em diferentes momentos e espaços, várias mulheres que hoje seriam chamadas de lideranças, mas que naquele contexto eram mulheres de notoriedade, portanto figuras emblemáticas, que conduziam as demais pessoas no sentido de orientá-las individualmente e atuavam à frente de atividades coletivas.
O Povo Pankararu tem um histórico de lideranças femininas de bastante destaque em todos os campos. Desde a atuação com os saberes tradicionais e a organização social, de cunho interno, até outros campos diversos e políticos, como a participação em estâncias municipais, estaduais e nacionais, bem como a atuação no movimento indígena no que diz respeito a questões como educação, saúde e outras demandas que acontecem em espaços externos.
As mulheres da Tradição
Conforme os ensinamentos dos mais velhos e mais velhas, que são passados de geração a geração, existem seres sagrados em forma de mulheres, com hábitos de mulheres. Portanto, somos seres divinos na nossa representação e, no mundo dos mistérios espirituais, a essência feminina se faz presente em um mesmo patamar que os seres sagrados masculinos.
Muitas são as mulheres Pankararu que possuem a qualidade de guardiãs e detentoras de saberes tradicionais, que recebem ensinamentos da Mãe Natureza que chamamos de “dom”. São práticas que se traduzem através dos conhecimentos sobre a medicina tradicional em toda a sua diversidade e os procedimentos de cura. As mulheres também são capazes do conhecimento dos rituais e dos cantos de contato com os encantados, além de tantos outros procedimentos ligados a esses costumes.
Nossas mulheres conhecem e podem participar dos processos de cura, podem conduzir e zelar pelos objetos e rituais sagrados que simbolizam a crença, cozinhar a comida sagrada para os rituais e outras atividades. Devido aos saberes que essas mulheres detêm, elas são consideradas sábias, na mesma dimensão dos homens que detêm esses saberes e ocupam esses espaços considerados sagrados.
O encontro do tradicional com a contemporaneidade
Como os tempos vão passando e a história permanece, pensamos na contemporaneidade sob vários aspectos e vertentes, mas sem fugir da valorização e do fortalecimento da cultura Pankararu. As mulheres emblemáticas que, no passado, eram rezadeiras, curandeiras, parteiras, artesãs, chefes da tradição, chefes de família vão atravessando um caminho no tempo em que vão se encontrando com outras mulheres que são caciques, pajés, lideranças políticas, profissionais de saúde e de educação escolar, representantes de organizações de estudantes, de mulheres, associações, etc.
Nesse sentido, a contemporaneidade não tira o espaço do tradicional, mas se soma a este e se torna um conjunto de ações de fortalecimento, de luta por direitos, de valorização aos aspectos da cultura. Podemos encontrar diversas pessoas que protagonizam esse campo, ou esses campos tão diversos, mas que se encontram e se articulam.
Um dos tantos exemplos que trazemos aqui é que o Povo Pankararu é considerado um dos povos que atualmente têm o costume e a valorização do parto feito por parteiras do lugar, hoje chamadas de tradicionais. Esse fenômeno se deve ao fato de termos na história famosos nomes de parteiras, lembrados e seguidos como exemplo até os dias de hoje.
O que fez com que essa tradição continuasse, já que o nosso acesso a bens da modernidade aumentou? Pois então! Não estou falando apenas de mulheres que fazem partos em casa, mas, sobretudo, mulheres que trazem consigo uma boa parte dos saberes diversos citados acima. Por isso inspiram confiança; pela ligação de fé e a relação com o sagrado que possuímos.
O que vem à nossa memória agora é a influência e a participação ativa que algumas mulheres do povo tiveram nos movimentos e atividades coletivas com a institucionalização das políticas públicas para saúde e a educação escolar indígena, embora, em relação à questão da terra, ainda haja uma complexidade de luta maior. A importância dessas poucas mulheres presentes é que, gradativamente, esse quantitativo vai aumentando.
Para o movimento indígena, essa questão é a mais importante, no sentido de que “a luta pela terra é a mãe de todas as lutas”. Na história Pankararu, a luta pelo território não seria diferente. E a participação das mulheres sempre foi efetiva, desde a década de 1930. Por exemplo, na Constituinte de 1988, Quitéria Binga Pankararu, que lutou juntamente com outras lideranças pela regulamentação do território e foi vítima de ameaças, mas faleceu em sua cama. Sua história é um grande exemplo e legado de lutas e conquistas do povo. Ainda hoje nossas lideranças femininas estão ameaçadas, por isso estão sob proteção dos defensores dos direitos humanos.
A luta pela terra por parte das mulheres começa com o zelo pela terra como mãe de todos os seres humanos e não humanos, árvores, vegetais e minerais. A proteção da terra é o que garante nossa sustentabilidade física, cultural e espiritual. É um território sagrado, morada dos nossos ancestrais, local dos espaços e rituais sagrados. Nossas mulheres têm uma identidade com a terra, com a narrativa mítica, por isso sua participação é tão expressiva em todos os contextos sociais, em Pankararu e além do território Pankararu.
As aldeias são os pontos de partida que dimensionam a construção dessas personalidades; a relação de convivência com pessoas mais velhas e o envolvimento nos movimentos internos são estruturas que norteiam essa trajetória. Para além da vivência, se constitui indiretamente uma relação de aprendizado dos saberes passados através das pessoas sábias nos povos. Nesse sentido, é importante mencionar os diferentes espaços de representatividade em que diferentes mulheres atuam, buscando na história, a partir da memória de nossas interlocutoras até a atualidade.
Assim, traçamos uma caminhada aos espaços que essas mulheres ocupam e como suas atitudes marcam suas presenças, traduzindo, através de um contexto momentâneo, o histórico de diversas formas organizativas no estado de Pernambuco e além deste.
Apresentaremos aqui organizações de mulheres e outras instituições de caráter e mistos, que atendem homens e mulheres, e outros coletivos que se destinam a uma população que inclui índios e não-índios. Nesses espaços, as mulheres se destacam na defesa da presença indígena, na busca de seus direitos e no reconhecimento de suas diferenças. A especificidade dessas organizações é que estão ligadas a bases como as organizações de jovens e mulheres e as associações comunitárias, mas elas podem ultrapassar as fronteiras das aldeias e compor conselhos municipais, estaduais e nacionais de diferentes naturezas.
Educação escolar
Embora o protagonismo das líderes mulheres seja secular e inspire essa nova geração pós-anos 1990, há um marco temporal relativo a uma retomada das discussões sobre educação escolar indígena a partir do qual novas reflexões foram fortalecidas diante de alguns dilemas nos lares das professoras que representavam seus povos.
Falaremos sobre a questão de dualidade indígena para além das questões de gênero e sobre a importância das lideranças tradicionais, que se configuram em pajés, caciques e detentores/as de saberes tradicionais, também ligados à espiritualidade, que em certas ocasiões transportam seus papéis diretamente das aldeias para se unir a pessoas consideradas como lideranças políticas. Essa segunda categoria pode ter o perfil da primeira, mas possui uma identidade de entendimento mais técnico sobre os assuntos que se coloca a debater, e até está mais ligada à luta por questões institucionais, como educação escolar, saúde, enfim, contextos administrativos.
As lideranças femininas desse movimento foram constituídas no decorrer de uma luta por direitos relacionada às instituições escolares presentes nos territórios indígenas e aos elementos objetivos e subjetivos relacionados a elas. Nesse caso, ganha visibilidade esse papel de influências e, consequentemente, o fato de estarem em um espaço de poder devido à sua função social própria e às relações que a partir dali são tecidas.
Mesmo antes de 1999, já havia uma mobilização por parte das lideranças indígenas no sentido de refletir sobre “a escola que temos e a escola que queremos”, trazendo à tona a necessidade gritante de uma escola que fortalecesse e valorizasse a cultura daqueles grupos e, principalmente, existisse em prol de um projeto societário e de futuro. Essa mobilização foi intensificada em 1999 por força da legislação vigente, que, naquele contexto, contemplava os ideais do movimento indígena e indigenista e, sobretudo, as necessidades dos povos indígenas.
Ao fazermos menção ao protagonismo das mulheres, poderia se pensar que, naquele contexto, em Pernambuco, o número de mulheres professoras era maior. No caso dos povos indígenas, havia uma característica diferente nessas profissionais, que diz respeito ao perfil. Atender a esse perfil é exatamente ir além do espaço escolar, nas lutas coletivas dos seus povos. Trata-se da relação de convivência com os demais membros da comunidade no que tange ao projeto societário, uma educação escolar articulada com a vida nas aldeias.
No que se refere à educação escolar indígena e o protagonismo das mulheres, temos a estruturação da COPIPE como organização indígena de âmbito estadual. A Comissão de Professores/as Indígenas em Pernambuco (COPIPE), desde sua criação em 2000, é composta pela representação de duas professoras e uma liderança de cada um dos 11 povos que a compõem: Xukuru, Kapinawá, Tuxá, Pipipã, Kambiwá, Pankararu, Entre Serras Pankararu, Pankaiucá, Atikum, Pankará e Truká.
Essa participação mais efetiva de mulheres no campo da educação escolar indígena, em todos os povos e ao mesmo tempo, não se resume aos muros dos prédios escolares nem a ações meramente pedagógicas. Alcança uma dimensão social muito intensa e de caráter crescente, à medida que se interlaça a outras temáticas, a outros sujeitos internos e externos. Ou seja, perpassa o que comumente se trata da instância escolar nas demais sociedades não-indígenas.
Contextualizar a trajetória da educação escolar indígena nesses últimos vinte anos consiste também em observar suas formas de aplicabilidade nas aldeias e pelos mecanismos governamentais. Encontraremos entraves e conquistas, mas uma luta constante através das mulheres mencionadas aqui. A partir de suas reflexões sobre o papel da mulher indígena em seus territórios, elas abrem caminho para outras agentes de transformação e se tornam corresponsáveis pelo formato de organização de mulheres em Pernambuco.
No entanto, não podemos deixar de mencionar a célebre frase do movimento indígena em Pernambuco: “educação indígena se aprende mesmo é na comunidade, e a escola sistematiza esses saberes” – o que nos remete a uma conexão contemporânea entre os saberes da escola e os saberes do Povo.
Saúde
Para os povos indígenas, em suas maneiras de viver antes e depois do contato com o colonizador, houve e ainda há a convivência com seus próprios sistemas de saúde. Tratar da saúde indígena como sistema ou sistemas também é compreender que existe uma rede de elementos relacionados a um complexo envolvimento de saberes, desde o conhecimento das plantas nativas até a comunicação com os espíritos sagrados.
A partir dessa compreensão, vamos pontuar ações em que se destacam mulheres tanto nas práticas de saúde tradicional como na militância pelo direito aos serviços de saúde no âmbito das políticas públicas, bem como na execução e administração destas. Essas figuras femininas possuem conhecimento sobre a manipulação das ervas nas diversas formas de cura e rituais envolvendo outros elementos da natureza. A partir das práticas dessas pessoas em prol da saúde da comunidade, várias são as denominações a elas atribuídas: parteiras, pajés, curandeiras e benzedeiras, entre outras.
Para buscarmos nossas personalidades no âmbito da saúde indígena, que chamamos de medicina tradicional, se faz necessário compreender esta como uma rede saberes que existe há séculos, sendo, por isso, um sistema de saúde que perpassa gerações e gerações e sobrevive até os dias de hoje. Esse sistema de cura tem as mais variadas dimensões, compreendendo a cura das mazelas do corpo, da mente e da alma, o que, obviamente, tem a ver com a forma de vida desses povos.
Considerações
Ao observar e trazer experiências no Povo Pankararu sobre contemporaneidade e atuação de mulheres, podemos afirmar que há um feminismo indígena em curso, protagonizado por lideranças femininas que atuam em diversas áreas sociais e em conjunto com os homens nos blocos de direitos coletivos.
Nessa construção histórica, de ação participativa nas aldeias e de luta dentro do movimento social, barreiras vão se rompendo, e as mulheres vão ganhando acesso ao mundo que subjetivamente se propõe aos homens. Esse movimento de ação contínua nos faz compreender que mulheres indígenas não são apolíticas e que a ação dessas mulheres vem trazendo uma nova onda de feminismo.
A partir dos nossos acompanhamentos e observações, podemos definir feminismo indígena como um conjunto de ações das mulheres indígenas em prol dos direitos coletivos, que refletem, no presente, a trajetória de luta dessas mulheres fortalecidas nas suas espiritualidades, de forma que seus corpos estão para seus territórios como um corpo coletivo dotado de histórias, culturas e memória de seus antepassados. Além disso, na sua especificidade, comunga com a luta de outras mulheres contra violências de qualquer natureza.
Falar de feminismo indígena é falar do heroísmo dessas mulheres que, na condição de seres humanos, a partir do sofrimento e das angústias de seus povos, chamam para si a luta pela causa coletiva. Onde e em quem buscar compreen- são e colaboração para situações tão diferentes de nobreza e de conflitos? A busca na ancestralidade traz respostas para que a força da palavra convoque os homens a conjuntamente conduzirem essas jornadas. Mas também é preciso vencer o pensamento machista, que, infelizmente, ainda é uma mazela dentro dos povos e do movimento indígena.
Resenha de “Tudo Sobre O Amor: Novas Perspectivas”
Este texto é mais um convite do que propriamente uma resenha. É um desafio imenso resenhar as 269 páginas de um livro essencial para pensarmos o amor na contemporaneidade. Em especial, o amor dentro, com e para comunidades negras. Assim, apresentarei brevemente cada um dos capítulos de Tudo sobre o amor para, posteriormente, tecer algumas costuras e reflexões. O livro foi escrito em 2000 e é o primeiro de uma trilogia, da qual também fazem parte Salvação: pessoas negras e amor e Comunhão: a busca feminina pelo amor.
Cabe, também, retomar brevemente a trajetória da autora. bell hooks tem sido uma voz erguida no sentido das lutas das mulheres negras em âmbito mundial. Seu nome de registro é Gloria Jean Watkins, mas a feminista negra adotou o nome de sua avó, Bell Blair Hooks. A grafia em letras minúsculas de seu nome revela um importante aspecto sobre as narrativas evocadas pela escritora: para ela, o conteúdo de sua escrita deve pesar mais do que sua pessoa ou seu nome. Nascida em Hopkinsville, uma cidade ao sul dos Estados Unidos, bell se tornou professora e doutora em Literatura. Sua produção é vasta, já tendo escrito mais de trinta livros, entre eles Ensinando A Transgredir – A Educação Como Prática da Liberdade (2013, Editora Martins Fontes), Olhares Negros: raça e representação (2019, Editora Elefante), Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra (2019, Editora Elefante) e Tudo sobre o amor: novas perspectivas (2021, Editora Elefante), para o qual dedicarei as próximas linhas deste texto. Assim, estruturarei a apresentação em prefácio + 14 pílulas – nem sempre doces – sobre o amor.
PREFÁCIO – Sobre a arte de abrir caminhos
Prefácios me encantam. São a porta de entrada para os livros. Na publicação apresentada aqui, a responsável por abrir caminhos é Silvane Silva, doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora e pesquisadora do CECAFRO/PUC-SP. O prefácio à edição brasileira expõe uma perspectiva essencial para a leitura do livro: o amor é centro, e não margem. Se na canção “Deuses Ateus” o cantor e compositor Djonga afirma que “em tempos de ódio conservador, amar e mudar as coisas é luxo”, Silvane destaca que o desamor tem sido a ordem do dia. Diante disso, falar e praticar amor, em suas diversas formas, pode ser algo revolucionário.
INTRODUÇÃO: “Tocada pelo amor”
Na introdução a Tudo sobre o amor, a autora revela um aspecto que é essencial para a leitura do livro: o amor é necessário em qualquer movimento por justiça social.
hooks também fala sobre uma frase vista por ela em um grafite em Connecticut onde se lia “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. Essa frase inspirou reflexões e um movimento de autoencontro com bell. Algum tempo depois, uma construtora pintou o muro do grafite de branco, restando algumas linhas que tornavam possível – e difícil – inferir a frase. Isso motivou um encontro de bell com o artista, onde refletiram que o desejo público de ser amado pode ser visto como ameaça numa sociedade onde o desamor é a norma.
1. “Clareza: pôr amor em palavras”
No primeiro capítulo da publicação, hooks expõe que somos ensinados a chamar muitas coisas de amor. Isso torna o ato de amar mais difícil. O amor necessita de uma série de elementos; entre eles, afeição, respeito, carinho, comunicação aberta, reconhecimento e compromisso. Segundo a autora: “Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento” (hooks, 2021, p.55).
Amor é ação.
2. “Justiça: lições de amor na infância”
O machismo e o patriarcado são barreiras para o amor:
Um dos mais importantes mitos sociais que precisamos desmascarar se pretendemos nos tornar uma cultura mais amorosa é aquele que ensina os pais que abuso e negligência podem coexistir com o amor. Abuso e negligência anulam o amor. Cuidado e apoio, o oposto do abuso e da humilhação são as bases do amor. Ninguém pode legitimamente se declarar amoroso quando se comporta de maneira abusiva. Porém, em nossa cultura os pais fazem isso o tempo todo. As crianças escutam que são amadas, embora estejam sendo abusadas. (Idem, p. 64)
A punição severa não deve ser vista como ação positiva nos processos educativos. É na infância que temos o primeiro contato com o amor, a partir de nossas famílias. Isso chama atenção para a importância de garantirmos direitos para crianças e adolescentes. O desamor na infância acompanha o indivíduo por toda a sua trajetória, criando celeumas pessoais e coletivas.
3.“Honestidade: seja verdadeira com o amor”
Vivemos em uma sociedade onde a mentira é uma ferramenta para a manutenção do poder. O capitalismo e o consumismo também estimulam a mentira e o desamor.
Para termos uma sociedade pautada no amor, precisamos nos reeducar a partir da prática de emitir e receber verdades. A prática de temer a verdade – acreditando que ela sempre dói – nos afasta do amor.
4. “Compromisso: que o amor seja o amor-próprio”
O amor-próprio deve ser a base da prática amorosa. Os movimentos feministas contribuíram para que mulheres percebessem o poder da autoafirmação positiva. Muitas mulheres consideradas bem-sucedidas se observam em processo de auto-ódio, o que muitas vezes mina suas próprias realizações e seu encontro com o amor-próprio. Necessitamos trazer o amor para perto. A autora observa que:
O amor-próprio não pode florescer em isolamento. Não é uma tarefa fácil amar a si mesmo. Axiomas simples que fazem o amor-próprio soar fácil só tornam as coisas piores. Eles levam muitas pessoas a se perguntarem por que continuam presas a sentimentos de baixa autoestima e auto-ódio se é assim tão fácil se amar. […] Quando vemos o amor como uma combinação de confiança, compromisso, cuidado, respeito, conhecimento e responsabilidade, podemos trabalhar para desenvolver essas qualidades ou, se elas já forem parte de quem somos, podemos aprender a estendê-las a nós mesmos. (Ibidem, p. 94)
5. “Espiritualidade: o amor divino”
A autora percebe que o interesse pela espiritualidade foi cooptado pelo capitalismo e pelo materialismo na sociedade estadunidense. Ir à igreja ou ao templo religioso não tem sido o suficiente para preencher o vazio observado nas sociedades contemporâneas, pois esse vazio vem de dentro, da alma:
O compromisso com a vida espiritual necessariamente significa que abraçamos o princípio eterno de que o amor é tudo, todas as coisas, nosso verdadeiro destino. Apesar da pressão massacrante para nos conformamos à cultura do desamor, nós ainda buscamos conhecer o amor. Essa busca em si é uma manifestação do espírito divino. (Ibidem, p. 115)
6. “Valores: viver segundo uma ética amorosa”
Para despertarmos para o amor, é necessário abrir mão da obsessão pelo poder. É necessário adotar uma ética amorosa, que abarque, inclusive, posicionamentos políticos como a empatia com pessoas que vivem sob sistemas de opressão.
O medo da mudança faz com que muitos de nós entremos num processo de traição contra nós mesmos. A mídia tem papel importante nisso, expondo massivamente imagens de desamor, ódio e violência. Não somos educados a ver o amor.
Nosso espírito percebe quando agimos de forma antiética, e isso torna os caminhos para o amor mais tortuosos. Encarar nossos medos é uma das formas de se aproximar de uma ética amorosa pautada por cuidado, conhecimento, vontade de cooperar e respeito.
7. “Ganância: simplesmente ame”
A sociedade contemporânea tem se baseado na cultura do consumo desenfreado e do individualismo, em que o isolamento e a solidão causam ondas de depressão que acometem parcelas enormes da população mundial. Pessoas são tratadas como objetos. A autora provoca um exercício de viver a partir da simplicidade, o que nos conecta à comunidade e ao amor.
8. “Comunidade: uma comunhão amorosa”
O capitalismo afastou as famílias nucleares de suas famílias estendidas, fragmentando comunidades inteiras. Isso causa uma desordem sentimental e social, uma vez que é nas comunidades que começamos a construir e fortalecer laços de amizade. Esses vínculos nos trazem lições importantes na construção de núcleos familiares e do amor romântico.
O amor que criamos em comunidade nos acompanha pelo resto da vida.
9. “Reciprocidade: o coração do amor”
O amor nos permite adentrar o paraíso. Ainda assim, muitos de nós esperam do lado de fora, incapazes de cruzar o portal, incapazes de deixar para trás todas as coisas que acumulamos e que se interpõem entre nós e o caminho para o amor. Se, durante a maior parte de nossa vida, não fomos guiados no caminho do amor, geralmente não saberemos como começar a amar, o que deveríamos fazer e como deveríamos agir. (Ibidem, p.179)
Uma importante lição sobre o amor: é essencial olhar para nós mesmos. bell hooks estrutura este capítulo a partir de duas experiências amorosas que foram marcantes para ela, e isso nos empurra para um profundo mergulho em nós mesmos e nossos próprios caminhos.
Geralmente, são desenhados papéis dentro dos relacionamentos. Um é responsável por criar e cultivar o amor, enquanto o outro apenas o segue. Isso estabelece um jogo de poder nocivo para o amor. Precisamos rompê-lo, baseando-nos no princípio da reciprocidade.
10. “Romance: o doce amor”
O capítulo nos lança uma afirmação que soa como um soco na boca do estômago: “poucos de nós entram em relacionamentos românticos tendo capacidade de receber amor” (Ibidem, p. 200). Projetamos relacionamentos baseados em nossos traumas familiares e comumente temos dificuldade de olharmos para nós mesmos nos processos de busca pelo amor romântico. Ao longo de nossa vida, é introjetada uma ideia de que o amor necessita apenas de si próprio para existir. Porém, sem construção e investimento, não há amor.
11. “Perda: amar na vida e na morte”
A morte é um tabu em nossa sociedade, gerando uma sensação de medo coletiva baseado em estruturas de poder: “Culturas de dominação cortejam a morte. Por isso a fascinação constante pela violência, a falsa insistência de que é natural os fortes atacarem os fracos, os poderosos atacarem os sem poder. Em nossa cultura, a adoração da morte é tão intensa que se põe como obstáculo ao amor” (Ibidem, p.221).
O medo de parecermos fracos nos faz não olhar para a perda. hooks nos convida a fazer o inverso: olhar para o medo e deixar que ele nos olhe.
12. “Cura: o amor redentor”
Ao longo de nossas trajetórias, o sofrimento é inevitável. Mas está em nossas mãos o poder de decidir o que fazer com essas feridas. A cura é um ato de coletividade e comunhão. Curas individuais são árduas e muito mais propensas a possíveis decepções.
O amor é capaz de redimir. Retomando a frase que a autora destaca do grafite na introdução do livro, “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. E a busca continua porque, apesar de todo o desamor em nosso entorno, o amor é capaz de curar e regenerar. É necessário que comecemos um movimento de fazer as pazes com nós mesmos e com os outros através do amor.
13. “Destino: quando os anjos falam de amor”
Os anjos são aqueles que nos trazem boas notícias, que dão alento ao coração. Na igreja, a autora aprendeu que os anjos são “consoladores sábios nos momentos de solidão”. O amor divino muitas vezes traz conforto em momentos de solidão e os anjos são fortes aliados nesse sentido:
Donos de perspicácia psíquica, da intuição e da sabedoria do coração, eles mantêm a promessa da vida plena por meio da união entre o conhecimento e a responsabilidade. Como guardiães do bem-estar da alma, eles cuidam de nós e conosco; Nossa virada em direção aos anjos evoca nosso anseio de abraçar o crescimento espiritual. Revela nosso desejo coletivo de regressar ao amor. (Ibidem, p.253)
O poeta Lande Onawale escreveu: “O amor é coisa que mói, muximba. E depois o mesmo que faz curar” – frase que pego emprestada para intitular este texto. E o faço porque entendo que Onawale e hooks se encontram, se entrelaçam e se complementam. O amor é aquilo que dói. Requer compromisso e responsabilidade, em especial numa sociedade pautada no desamor e na violência. Mas, ao mesmo tempo, é com e para o amor que podemos alcançar a liberdade.
Nos contam mentiras sobre o amor. A sociedade não nos ensina a amar. E nem nos empodera do gesto revolucionário que é o amor. bell hooks relaciona o amor com os principais problemas da sociedade contemporânea, observando que são as ações que constroem os sentimentos e que ele o atravessa enquanto comunidade. O amor não nasce e cresce sozinho. Amor é construção cotidiana. Amar dá trabalho. Mas saio alimentada de Tudo sobre o amor. bell hooks é mais uma vez vanguarda ao convocar, através de palavras, em tempos de guerra, uma revolução de amor.
Racismo e a tentativa de colonização dos corpos negros
O racismo é uma tecnologia de poder que opera por meio do controle a partir da discriminação sistêmica de grupos étnico-raciais subalternizados e, no Brasil, sempre esteve relacionado com o fenótipo, que é o conjunto de características físicas tais como a textura dos cabelos, o formato dos lábios, do nariz e, sobretudo, a cor da pele.
Um líder Iorubá conta que uma prática comum aos europeus que chegavam aos portos para sequestrar e trazer pessoas africanas em condição de escravizadas para os territórios invadidos (colonizados) era, antes de embarcá-los, obrigá-los a circundar uma árvore a qual chamavam de “árvore do esquecimento”. Assim, suas memórias sobre seu povo, sua família, sua cultura, tudo seria apagado, o que facilitaria o processo de subjugação.
A “árvore do esquecimento” que temos circundado até os dias atuais pode ser compreendida como o processo de apagamento ao qual a população afrodiaspórica tem sido submetida há séculos. Fomos paulatinamente desconectados de nossas origens étnicas, nossas ciências, nossos sistemas espirituais e nossos referenciais estéticos.
O processo racista de controle social atua, entre outras frentes, na destruição da autoestima e da autoimagem que pessoas negras têm sobre si e seus iguais. Temos sido expostos a imagens de homens, mulheres e crianças negras em contextos de violência e resumidos a estereótipos inferiorizantes. Corpos como os nossos são maioria no sistema prisional e nas estatísticas de assassinato. Esses estereótipos são repetidamente exibidos e reforçados nos livros didáticos, nas propagandas, passando pelos filmes e telenovelas exibidos em horário nobre. Dificilmente temos acesso a imagens de pessoas negras ocupando espaços de poder.
Embora sejam muitas as camadas de complexidade em um sistema estruturado no racismo, sempre houve articulação organizada e protagonizada pela população negra. Dos levantes quilombolas ao Black Lives Matter, pessoas africanas e seus descendentes têm se reerguido como morada de potência.
A geração tombamento: um movimento afrofuturista
Lacração ou tombamento são expressões muito utilizadas pela comunidade negra e LGBTQIA+ para reafirmar seu poder, sua beleza e sua ousadia em ser quem são diante de uma sociedade que impõe padrões hegemônicos aos corpos, entendendo como belos, dignos de afeto e respeito os corpos brancos, magros, heterossexuais e cisgênero.
A partir de 2014, devido ao sucesso do hit “Tombei” da rapper curitibana Karol Conká, o movimento protagonizado pela juventude negra dos grandes centros urbanos do Brasil que se empodera através da estética passou a ser conhecido pelo nome “Geração Tombamento”. É importante, porém, ressaltar que o uso das estéticas negras como ferramenta de combate ao racismo está presente em diversos momentos da história e em muitos territórios ao redor do mundo.
Uma das principais inspirações estéticas para a “Geração tombamento” são os Sapeurs ou La Sape (Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes). Os Sapeurs são grupos originários de Kinshasa, na República Democrática do Congo, e Brazzaville, na República do Congo.
A rapper Karol Conká (Divulgação)
O movimento surgiu na década de 1920 como uma forma de resistência ao jugo da colônia Belga. Para eles, vestir-se bem é uma forma de confrontar o ideal de superioridade europeia.
Ativa até hoje, a comunidade La Sape é extremamente respeitada pela população. Seus trajes luxuosos contrastam com a realidade de extrema vulnerabilidade socioeconômica à qual seus países estão submetidos, e é justamente através desse contraste que os Sapeurs expõem sua crítica. Ser um Sapeur é um ato de rebeldia. É dizer para o mundo que luxo, beleza e exuberância são direitos de todos.
Contestar os padrões impostos é um posicionamento político que vem de dentro para fora e do passado para o presente. Neste sentido, podemos afirmar que os movimentos políticos de resgate da autoestima de pessoas negras operam na perspectiva de Sankofa, um valor civilizatório de povos da África Ocidental que consiste em retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Sankofa vai dialogar diretamente com a perspectiva do afrofuturismo, corrente de pensamento na qual a “geração tombamento” muito se inspira.
O conceito de afrofuturismo chegou ao ambiente acadêmico no início da década de 1990 através dos estudos do pesquisador estadunidense Mark Dery. Mark, homem branco, escreveu o artigo “Black to the future”, no qual pretendia investigar a ausência de narrativas negras na cibercultura, nas tecnologias computacionais e nas obras de ficção especulativa. O artigo de Mark e seus desdobramentos, inclusive dentro da comunidade negra, apontavam para um questionamento central: por que é tão difícil para a população negra vislumbrar imagens efetivas de futuro?
O processo de apagamento do referencial cultural das pessoas africanas desterritorializadas e de seus descendentes negou o direito ao passado. Ora, sem imagens positivas de passado, como poderíamos gozar das mesmas possibilidades de projeção de futuro das quais gozam os grupos não racializados?
Ainda na década de 1990, o conceito de afrofuturismo foi apropriado e ressignificado pela comunidade negra dos Estados Unidos e logo se tornou uma corrente crítica de pensamento em toda a diáspora africana, inclusive no Brasil.
A curadora de arte, pesquisadora e atriz estadunidense Ingrid LaFleur define o afrofuturismo como “uma forma de imaginação de futuros possíveis através de uma lente cultural negra”. É através dessa lente-espelho que a juventude negra tem se olhado e encontrado, no presente, trajetórias do passado que pavimentam as possibilidades de futuro.
Somos tombamento, somos Black Power – referências históricas da resistência negra através da estética
Para que fosse possível, no século XXI, a existência do movimento lacração/tombamento, houve uma longa caminhada de lutas pela emancipação, pelos direitos e pela recuperação da autoestima da população negra. A reconstrução dessa autoimagem só é possível através de um processo coletivo de retorno às raízes.
A pedagoga Nilma Lino Gomes discute essa temática em seu livro O Movimento Negro Educador. Ela diz:
“O corpo negro não se separa do sujeito. A discussão sobre regulação e emancipação do corpo negro diz respeito a processos, vivências e saberes produzidos coletivamente
(…)
Há aqui o entendimento de que assim como “somos um corpo no mundo”, somos sujeitos históricos e corpóreos no mundo. A identidade se constrói de forma coletiva, por mais que se anuncie individual.” (Gomes, 2017, p. 94)
Manifestação do partido dos Panteras Negras, 1970. Divulgação.
Earth, Wind & Fire. Banda que traz em sua estética fortes referências africanas e futuristas. Divulgação.
Sapeurs do Congo. Divulgação.
Uma das principais referências no que diz respeito à reivindicação do orgulho negro é o movimento Black Power, que surgiu nos Estados Unidos na década de 1960. Inspirados no “Harlem Renaissance” da década de 1920, o movimento Black Power fomentou a criação de diversos espaços educacionais e culturais independentes para a população negra, além de romper com padrões estéticos impostos pela branquitude, tais como o uso de químicas para o alisamento dos cabelos.
Priscila Carvalho durante participação do Coletivo As Panteras Negras na Marcha das Mulheres Negras do Rio de Janeiro, 2018.
Já no Brasil, um dos maiores símbolos do orgulho negro é o bloco afro Ilê Aiyê. Fundado em Salvador, Bahia, em 1974, o Ilê Aiyê se consolida no auge do renascimento cultural negro que se desenvolvia nas diásporas africanas.
Para além de um bloco, o Ilê é um movimento político de reeducação, conscientização e empoderamento para o povo negro.
Uma das atividades mais conhecidas do bloco Ilê Aiyê é a “Noite da Beleza Negra”, evento no qual é coroada a Deusa do Ébano, a rainha do bloco. O objetivo da coroação da Deusa é exaltar o poder, o talento e a beleza herdada dos ancestrais africanos.
A “Noite da Beleza Negra” tem um importante impacto social, econômico e simbólico na comunidade do bairro da Liberdade, onde fica a sede do bloco. Os impactos atingem também o campo do subjetivo, sobretudo para crianças e jovens negros. Muitas meninas negras passaram a reconhecer a própria beleza através da imagem das Deusas do Ébano. É a reconstrução da autoestima que o racismo fragmentou.
Retomando a perspectiva de Sankofa e do Afrofuturismo, percebemos que “tombamento” é o movimento constante de uma juventude negra que revisita o ontem e ressignifica o hoje para criar o amanhã. É essa juventude que tem ocupado as ruas e disputado os espaços de poder. É essa juventude que tem ditado moda, comportamento, consumo e nichos de mercado. É essa juventude que “lacra” na estética, afronta os padrões e se apresenta como corpos políticos exercendo seu direito de existir em plenitude.
Yemi Alade, cantora nigeriana que apresenta em sua estética referências de reinos e civilizações tradicionais do continente africano numa releitura futurista. Divulgação.
Pesquisadora, crítica e curadora de cinema. É doutora pela Escola de Comunicação da UFRJ e fez estágios de pós-doutorado na UCB e na Unesp. Realizou a curadoria das mostras Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica, A Magia da Mulher Negra e Diretoras Negras no Cinema Brasileiro. Integrou as equipes curatoriais do IX CachoeiraDoc (2020) e do Festival de Cinema de Vitória (2018). Escreve críticas para o site Multiplot!. Ministra cursos e oficinas sobre crítica, cinema negro, afrofuturismo e fabulações.
Escritor de ficção especulativa com foco em fantasia. No momento, passa seus dias pesquisando e escrevendo seu próximo livro: um épico de fantasia centralizado na mitologia afro-brasileira dos Orixás, que será publicado pela Editora Intrínseca em 2021. Seus livros publicados são: Ritos de Passagem (Giostri, 2014), O Caçador Cibernético da Rua 13 (Malê, 2017) e A Cientista Guerreira do Facão Furioso (Malê, 2019).
Kênia — Eu ouvi falar de afrofuturismo pela primeira vez no final de 2012, começo de 2013, e foi uma coisa muito por acaso. Fui escutar um programa de rádio de um camaronês-francês chamado Georges Collinet, em que ele fala sobre música de África, música da Afrodiáspora, música negra de forma geral, e o programa falava muito sobre uma certa ideia de pensar as raízes negras da música eletrônica e várias coisas que a gente ainda associa a uma cultura muito branca, como as raves. Nesse programa, eles mencionaram o techno de Detroit, e o chamaram de afrofuturismo. Eu nunca tinha ouvido falar nesse termo. O programa falou muito rápido sobre o que estavam chamando de afrofuturismo, a ideia desse som eletrônico, meio abstrato, que, ao mesmo tempo, tinha toda uma simbologia, todo um direcionamento para falar de coisas da ficção científica, de fazer música para extraterrestre, música para a Lua. Isso tudo no contexto daqueles jovens do final dos anos 80, começo dos anos 90. Jovens negros, de família de classe trabalhadora, sem muita renda, que viviam em uma cidade que havia sido por muito tempo um grande parque industrial e que, a partir dos anos 70, foi esvaziada, com desemprego e fábricas abandonadas. Então, por um lado, havia aquela cidade que foi supertecnológica e viu a tecnologia tornar-se decadente, e, por outro lado, esses jovens negros sem muita perspectiva de futuro. A música que eles fizeram como resposta a isso é uma música diferente, por exemplo, do universo do hip-hop, em que se fala das questões negras dos Estados Unidos de uma forma muito direta, muito explícita, muito realista. A solução do techno de Detroit foi pensar sobre a situação de uma maneira especulativa, mais voltada para essas ficções do imaginário.
Esse debate foi algo que me atravessou muito. Pensar nessas possibilidades e nesses termos significava entender que, talvez – e acho que esse foi o primeiro estalo – existam formas de falar sobre a experiência negra no mundo, inclusive sobre aspectos traumáticos e complicados, sem passar pelas narrativas naturalistas e realistas. Na época, eu estava no doutorado em Cinema, e me interessou muito pensar como isso poderia se dar em um novo registro formal, saindo da música para o cinema. Foi quando busquei textos sobre o assunto e comecei a pesquisa, que resultou em uma mostra de cinema em 2015, na Caixa Belas Artes de São Paulo. Essa curadoria era a vontade de pensar o afrofuturismo, relacionando o universo da música com o do cinema. Acho que pensar o afrofuturismo é pensar nesses conceitos em evolução, desde quando surge pela primeira vez, naquele texto de 1993, em que o Mark Berry entrevista pessoas negras, até os seus desdobramentos. Eu gosto de começar por um lugar mais simples, para entender, e depois, quando chegamos nos exemplos, eles obviamente se complicam. Mas, para mim, afrofuturismo é esse universo de criação que relaciona a experiência negra – e, quando eu falo de experiência, eu estou falando também de autoria e de reflexão, dentro das obras, da presença negra – com os universos das ficções especulativas, que são bastante variadas em si também e já são todo um grande debate, desde a ficção científica, a fantasia, alguns gêneros dentro do terror, enfim, esse guarda-chuva grande que chamamos de ficção imaginativa. De alguma forma, elas criam outras formas de abordagem em relação ao mundo, distintas do realismo. Eu me interessei muito em pensar esse conceito na sua concepção política, e essa política com seus formatos estéticos variados, como o techno de Detroit. Quando falamos de ficção especulativa a partir de experiências negras, estamos falando também de questionamentos que são diretamente políticos e estéticos.
Fábio — Para mim, até hoje tenho dificuldade de falar e entender como foi a aproximação com esse termo. Na verdade, foi por volta de 2014. Eu não sei se alguém me falou essa palavra ou se eu vi na internet, em algum site de quadrinhos americanos ou videogames. O que eu lembro é que, quando me deparei com a palavra, eu pensei: “o que é afrofuturismo?” Imediatamente, pensei: “o que eu faço com isso, o que eu crio com isso?” Eu já tinha um livro de ficção publicado no mesmo ano, em janeiro de 2014, chamado Ritos de Passagem, que é uma ficção de fantasia, só que, obviamente, inspirado na África, não na Europa. Seria uma África fantástica sem ser a África. Digo que se passa na África por causa dos personagens, das vestimentas, da cultura ali apresentada. Eu estava para descontinuar esse universo do Ritos de Passagem quando surgiu o afrofuturismo, e comecei a criar um segundo universo, inspirado num jogo da série Final Fantasy, que habita um mundo futurista, com tecnologia mágica. Esse universo as pessoas hoje olham e entendem como um “mundo futurista” ou “o futuro da Terra”, mas eu nunca criei literatura baseada no planeta Terra. Quer dizer, toda ficção é baseada na realidade, mas não é uma ficção realista. Nunca fiz uma ficção que se passasse na Terra, e sim em universos alternativos. Iniciei esse universo com a cidade que chamei de Ketu 3, dessa vez inspirado nas mitologias do povo iorubá e na mitologia afro-brasileira dos orixás. Com isso, fiz um mundo alternativo mais próximo do nosso mundo real, no sentido de que as pessoas usam roupas, têm comportamentos e tecnologias semelhantes às nossas – só que é uma tecnologia obviamente fantástica. Quando você fala que um celular, ou qualquer tecnologia, é movida por energia eletromagnética dos ancestrais, e que parte da população tem poderes psíquicos, pessoas que voam, sacerdotisas, mães-de-santo empresárias com poderes paranormais, para mim isso é literatura fantástica, e isso é o que costumo fazer. Só que, quando esse meu segundo livro publicado, O Caçador Cibernético da Rua 13, chegou às livrarias, as pessoas passaram a associar com o afrofuturismo. Até hoje muita gente diz isso. Eu acho curioso. Ritos de Passagem foi publicado em 2014, e O Caçador foi publicado em 2017. Eu vi a primeira manifestação declaradamente afrofuturista no Brasil em 2015, graças à Kênia, na mostra Afrofuturismo do Cine Belas Artes, em São Paulo. Foi a primeira vez que eu ouvi a palavra afrofuturismo em solo brasileiro. Eu achei muito bacana, fiquei bastante inspirado, mas fui trabalhar no meu livro, que estava quase pronto, faltando os últimos trâmites com a editora. Ocorreu de, nesse período, me encomendarem um artigo, em 2016, para falar sobre afrofuturismo. Eu expliquei “gente, eu não sei falar disso”. Mas beleza, me encomendaram. E aí começou a minha tentativa de elaborar o que seria afrofuturismo. Sempre deixei nítido que não sou acadêmico, não sou jornalista, não sou, por exemplo, como a Kênia. A Kênia é uma profissional, analista, que faz análise conceitual, acadêmica. Eu sou só escritor de ficção. Mas tudo bem, já que havia poucas pessoas falando sobre, tentei dar minha contribuição. Nesse sentido, comecei a criar uma série de artigos, e hoje eu vejo que vários desses artigos, pelo menos na minha opinião, visto como o afrofuturismo está se desenvolvendo hoje, estão meio desatualizados. Então foi assim, comecei a criar esses artigos e as pessoas começaram a apontar, “nossa, ele é afrofuturista”. Continuei fazendo artigos, mas sempre deixando nítido: eu não sou especialista no assunto, sou só escritor de ficção, estou aqui só dando uma contribuição, procurem pessoas que saibam mais do que eu. Fui publicando meus livros, e quando lancei o A Cientista Guerreira do Facão Furioso o pessoal continuava comentando como se eu fosse “o mestre afrofuturista”.
As definições que aprendi na época, naquele primeiro artigo de 2016, eram de um movimento de recriar o passado, transformar o presente e projetar um futuro através da nossa própria ótica. Isso, para mim, é a própria definição do afrofuturismo. Na verdade, essas linhas eu criei, botei no artigo, e aí em 2017 me surpreendeu muito ter essa definição citada no livro do Lázaro Ramos, Na Minha Pele. Em 2018, surgiu um convite para ministrar uma oficina sobre escrita afrofuturista. Eu pensei: “eu sou escritor, não sou professor de escrita, como é que vou fazer isso?” Tive que pedir uma ajuda para minha esposa, que já trabalhou na área de educação. Como não gostamos de enganar as pessoas, estudamos o máximo possível sobre afrofuturismo e, na verdade, vimos que não havia muita coisa ainda. É um movimento, pelo menos no nome, muito novo, mesmo que haja quem diga, de forma retroativa, que o afrofuturismo existe desde o Egito Antigo. Eu não concordo com isso, mas eu respeito, entendo esse ponto de vista. Então a gente se ateve muito às definições mais acadêmicas, pegando lá de trás, desde Sun Ra e George Clinton. Fizemos leituras críticas sobre isso, e entendo que contribuímos de alguma forma. Mas hoje, inclusive, fiz um post dizendo que eu estou me retirando do afrofuturismo.
Kênia — Só um comentário rápido: lembrei que Ritos de Passagem é um dos livros que o escritor Waldson Souza analisa na sua dissertação de 2019, sobre literatura afrofuturista no Brasil. Ele analisa três obras, uma da Lu Ain-Zaila, uma do Fábio e uma do Julio Pecly. E aí ele comenta que, de alguma forma, já é possível encontrar elementos que são identificados por uma lente crítica afrofuturista. E eu concordo muito com essa análise. Talvez isso seja uma coisa próxima de algumas questões que o Kabral tem, de que o afrofuturismo é mais do que uma caixinha em que a gente fecha as obras e diz que tem que ter tal e tal característica – porque isso limita muito a criação. Se você limitar tudo que o Fábio faz a afrofuturismo, parece que acabou a conversa aí. Não, isso é o começo da conversa. A ideia é pensar o afrofuturismo como uma lente crítica, uma lente teórica, que tenha alguns repertórios que partem dela e que dialogam com ela, mas que não é um fim em si mesmo. Ao criar uma caixinha e colocar todo o trabalho criativo ali, parece que o artista fica preso. Deixa de ser algo que move a criação e vira algo que quase mata a criação. Eu acho que, se a gente pensa mais nessa ideia de lente crítica e menos na ideia de categoria fechada, não sufocamos tanto as obras. Porque é possível pensar, por exemplo, os livros do Fábio junto com vários outros repertórios, não só com o repertório afrofuturista. O repertório das religiões de matriz africana, o repertório das histórias de super-herói… Acho que tem muita coisa ali que atravessa a criação, que se mistura e possibilita muitas leituras, muitas abordagens. Os conceitos se tornam perigosos quando eles ou são definidos de uma maneira bem louca, ou viram uma prisão.
Fábio — Sim, exatamente. O problema não é o movimento em si, mas é o que as pessoas fazem com isso. E aí eu, como autor, me sinto meio encurralado, no sentido de que se jogou muito isso em cima de mim. Primeiramente, eu não considerei justo, porque tanto você quanto o Waldson, por exemplo, na minha opinião, falam com mais propriedade sobre o tema – e não é questão de me colocar inferior, não é isso, só acho que cada um tem o seu papel. Meu papel é pensar na criação, e não necessariamente analisar. Eu gosto de criar, de fazer, e deixar que outros falem, expliquem o que eu estou fazendo. Pessoas como a Kênia vão explicar muito melhor o que eu estou fazendo, inclusive vão enxergar coisas que eu não enxerguei. Se, dentro da ficção, limitando o afrofuturismo apenas à ficção, como é a minha ideia, isso já me incomoda, isso se torna um problema quando as pessoas expandem para outros cenários, para outras possibilidades que estão fora do meu alcance. Quando as pessoas apontam o afrofuturismo como entendimento da sociedade, de ditar os rumos da sociedade, eu sempre chego e falo “não, eu não tenho como fazer isso, eu não sou cientista político”. Na minha cabeça, apenas crio mundos fantásticos. Eu entendo as implicações que esses mundos podem ter, eu entendo as motivações, o que eu represento ali, entendo quando alguém me diz isso, mas não tenho a pretensão de chegar e falar “eu quis fazer isso”, “eu quis passar essa mensagem”. Eu quero passar várias mensagens, mas não quero dizer que estou passando várias mensagens; quero só fazer, e que as pessoas analisem. Então isso estava me incomodando bastante, porque as pessoas me chamam mais para falar sobre afrofuturismo do que para falar sobre escrita. Se for para falar, eu quero falar sobre escrita, sobre o que eu estou fazendo, sobre o que me inspira a escrever. Também chegou num ponto em que o afrofuturismo começou a tomar rumos que estão fora do meu alcance, como o afroempreendedorismo. Para mim, não tem muito a ver, porque o afrofuturismo está no campo da ficção, e o afroempreendedorismo é algo prático, real, não tem a ver com o fazer ficcional. Eu acabei entendendo, de fato, o que diz a Nnedi Okorafor, uma autora afro-americana de origem nigeriana que nega veementemente ser afrofuturista. Porém, como a Kênia bem diz, a Okorafor criou o africano-futurismo, African futurism, para explicar o que ela faz, e o que ela diz que é o africano-futurismo é o que eu achava que era o afrofuturismo. Aí a Kênia diz que o africano-futurismo nada mais é do que uma vertente do afrofuturismo; não deixa de ser afrofuturismo. Por isso, eu entendo que tudo que eu escrever e fizer, por causa das características da forma como eu escrevo e do que eu escrevo, sempre vai ser considerado afrofuturismo. Tudo bem. Minha questão não é negar que eu seja afrofuturista, que o que eu escrevo seja afrofuturista, mas os rumos que o afrofuturismo está tomando hoje. Eu decidi que pararia de comentar sobre afrofuturismo porque não acompanho mais essa cena. Percebi isso quando vi que estávamos fazendo as oficinas no piloto automático. Entendi que nunca foi uma vontade minha, que eu estava só fazendo e seguindo a demanda. E, quando chegou a pandemia, senti que não tinha vontade de fazer live sobre isso. Até porque não tenho mais o que falar sobre o assunto.
Kênia — Mas acho que isso gera vários pontos, Kabral. De uns dois em dois anos, o afrofuturismo fica na moda. Teve o Pantera Negra, e tudo passou a ser afrofuturismo, surgia gente de tudo quanto é lado falando do assunto, da arquitetura, da música, etc. Aí veio a Beyoncé ano passado com Black Is King, e brotaram vários jornalistas para perguntar sobre afrofuturismo. E muita gente nem tem a preocupação de ler as coisas que você já escreveu, outras entrevistas que você deu, que eu dei ou mesmo o que muita gente tem produzido sobre o assunto. Eu vejo uma contribuição muito grande no que você fez, quando escreveu os textos no blog. Textos que não são acadêmicos e, portanto, são muito acessíveis. Isso é muito bom. E você comentava ou traduzia um trecho, já que muita coisa estava escrita em inglês, como você fez com o texto em que a Okorafor falava sobre africano-futurismo. Essas abordagens nos aproximam do conceito, trazendo ele para um lugar brasileiro. Era um jeito ao mesmo tempo elaborado e acessível, feito para as pessoas entenderem o debate. Isso cumpriu um papel muito importante. Agora começamos a ver dissertações como a do Waldson, sobre afrofuturismo no cinema, na literatura e na música, mas, quando você começou a fazer esse movimento de escrita, não tinha ninguém. Então acho que foi muito importante esse gesto. O problema é uma certa abordagem sobre afrofuturismo que fica, mesmo, muito superficial, como se gente preta usando roupa colorida, de preferência que brilhe, bastasse para significar afrofuturismo. Não, né? Espera aí. Às vezes me parece que há uma superficialidade – e não estou dizendo superficialidade no sentido de que só estudo acadêmico seja profundo e outras formas de abordagem não sejam. Acho que a sua forma de abordagem era muito condizente com a internet sem ser superficial. Tinha estudo ali, tinha vontade, tinha pesquisa. Pegar textos em inglês e fazer um comentário sobre ele, permitindo que um monte de preto que não sabe falar inglês tenha acesso ao debate, relacione e pense o conceito, é um gesto muito necessário. Você não tirava os negócios da sua cabeça e escrevia; sempre teve pesquisa. Então acho que a superficialidade está muito em algumas outras abordagens, que entram nesse modismo. Aí caímos nesse espaço perigoso.
Fábio — Eu entendo, sim, que meus textos acabaram sendo uma linguagem acessível num primeiro momento, mas aí eu vejo que hoje tem uma galera muito mais inserida na internet. Na verdade, o que eu vejo é que eu fiz uns cinco artigos e muitos ali são redundantes. No segundo artigo, faço uma associação com afrocentricidade, e não é necessariamente isso, mas é como eu quis enxergar. E eu comecei a ver que muita gente também está enxergando como quer. Se, ao mesmo tempo, eu falo que tudo bem, porque eu acho que cada um faz o que quiser, também tenho a minha opinião. Da mesma forma que vi que eu estava errado em associar com afrocentricidade, também considero que não tem a ver associar com afroempreendedorismo, com militância negra. Sim, estão interligados; sim, tem uma questão política no afrofuturismo. Eu entendo. E seria leviano falar que a minha obra não é afrofuturista quando todas as minhas obras, absolutamente todas, têm um elenco 100% negro. Não é apenas um mundo de elenco 100% negro, são sempre mundos centrados numa mitologia e espiritualidade de matriz africana. Eu entendo o impacto que isso tem. Eu entendo o recado que isso dá. Então é igualmente leviano você ter uma causa e associar ao afrofuturismo somente por ser conveniente, porque é o nome da moda. Como a Kênia disse, o afrofuturismo estourou no Brasil com o Pantera Negra e, depois, com o Black Is King. A partir disso, vi muita coisa e pensei “não concordo”, mas, ao mesmo tempo que eu não concordo, repito: cada um tem direito de fazer o que quiser. No pouco tempo em que fiz faculdade de Letras, entendi que as palavras têm significados livres, não podemos prender as palavras nos significados. Elas ganham novos significados.
Kênia — Eu fico contente com esses momentos de agitação. E eu acho que, primeiro, é um conceito novo, se a gente for pensar em termos de quando a palavra apareceu – o fazer afrofuturista é muito anterior à palavra –, e tem mesmo definições e usos que são diversos. Ainda tem algo, nesse campo, que me parece possível dialogar. Porque é diferente falar “ficção especulativa negra” e falar “afrofuturismo”, e as imagens que isso convoca. Acho que é um termo que mexe com o imaginário, mexe com as pessoas. Mas se, sei lá, no fim das contas o afroempreendedorismo ganhar, se virar só sinônimo de preto com roupa colorida, beleza. A gente vai continuar usando e pensando esse universo de criação e essas questões e vai chamar de outra coisa. Imagino que o Kabral já escrevesse isso que a gente chama de afrofuturismo antes de todo mundo chamar de afrofuturismo, e vai continuar escrevendo das formas criativas dele, mesmo que o termo seja usado para outras coisas. Eu concordo muito que se agarrar a um conceito e ter que defendê-lo não faz sentido; o conceito é livre, os usos são livres e os entendimentos que cada um faz dele também são. Não vou falar de coisas que eu não sei. Não vou falar de empreendedorismo, não vou falar de assuntos que eu não domine. Não acho que a gente tem que morrer abraçado nos conceitos. Um conceito é rico enquanto ele consegue despertar esse lugar de imaginação, de criação. Se ele já não desperta isso na gente, bom, talvez seja hora de se apaixonar por outras formas de falar. Eu, por exemplo, não sei o que vai ser do afrofuturismo, mas eu sei que, e me anima saber que, você vai continuar escrevendo, pensar no que vai acontecer com Ketu 3 e, depois, se virão outros universos. Isso me interessa mais do que ficar brigando se o afrofuturismo é isso ou aquilo.
Fábio — Eu fui criado naquela escola de grandes histórias, sabe? Histórias longas, livros, séries. Eu tinha intenção de fazer isso com Ritos de Passagem, mas aí, por questões profissionais, questões contratuais e tal, a editora deixava no ar que eu só podia escrever as histórias naquele universo. Aí eu fui para a editora Malê e decidi criar um novo universo, para não ficar preso a ninguém. Quando veio o convite da editora Intrínseca, até falei das histórias de Ketu 3 que eu tinha em mente, mas já não se interessaram. Aí eu falei de uma ideia que estava muito fresca, que surgiu quando eu estava jogando um videogame. É engraçado que a maioria das histórias surge quando estou jogando. Por isso jogo bastante. Quando estou lá, jogando, o ócio criativo é real. Quando eu comentei sobre essa ideia, ainda muito primitiva, eles se interessaram na hora. Agora, pela editora Malê, vai sair um terceiro livro, O Blogueiro Bruxo das Redes Sobrenaturais – para Ketu 3 eu vou sempre fazer esses nomes esdrúxulos, mas vou parar por aí, por enquanto. Não vou matar o universo, mas vou parar por ali. Quando eu estava estudando sobre técnicas narrativas, vi que Ketu 3 é meio que esse universo de episódios, um universo em que eu falo mais sobre questões do cotidiano e questões pessoais dos personagens. Agora, estou experimentando brincar com a noção de saga épica. Ao mesmo tempo que gosto muito de consumir esse gênero, nunca me vi escrevendo nesse estilo. Mas vou fazer uma brincadeira com esse recurso literário, que é a história não só sobre o universo particular do personagem, mas sobre os grandes acontecimentos de um mundo, geralmente sobre salvar ou destruir esse mundo. Então eu estou brincando com esse terceiro universo através de uma saga épica.
Kênia — Daqui a pouco, vai ser mais difícil de acompanhar que o universo da Marvel. Vai ter que sair com tabela, cronograma, como cada universo se relaciona. Mas eu acho maravilhoso. Eu estou curiosíssima com esse novo.
Fábio — Ah, você vai adorar. O que me entristece é reduzirem o movimento a isso ou aquilo. Seria muito triste se o afrofuturismo fosse simplesmente negros na ficção científica ou negros na ficção fantástica. Se é assim, vamos chamar de ficção científica, de ficção fantástica, vamos chamar de ficção especulativa. Não tem por que botar numa caixinha, como se fosse para separar. Trata-se da mesma forma. Há várias camadas nisso tudo, e as pessoas resolvem reduzir a apenas afrofuturismo?
Kênia —Se olharmos o cinema negro atual, finalmente começou a ter maior participação de diretores e diretoras, críticos e críticas, curadores negros. Ainda muito aquém do que é a presença negra na sociedade brasileira, mas exponencialmente maior do que se comparado a cinco anos atrás. É possível ver um momento de efervescência. Por outro lado, tem sempre uma certa briga, que envolve tentar impedir que a arte negra seja aprisionada por questões que são repetições do racismo estrutural. Então, por exemplo, quando o cinema negro vai ser definido, em muitos lugares em que a curadoria é branca, é preciso ficar atento para que não sejam valorizados apenas filmes negros de uma mesma linguagem, que falem de racismo de uma determinada forma, filmes que sejam muito didáticos em relação ao racismo – quase aquele filme que ensina alguma coisa às pessoas brancas. Isso seria não valorizar toda a variedade de filmes negros que existe, e correr o risco de perpetuar essas caixinhas que limitam a criação e a sua diversidade. A ideia de que, se você é negro e faz filme, você tem que fazer um filme que preencha certas características, que fale da violência urbana ou de racismo, me parece muito perigosa e limitante. Pensando naquele texto do Gillespie e da Racquel Gates, que está no site da Abraccine [Reivindicando os Estudos de Filme e Mídia Pretos], gosto muito de falar de representação, porque essa discussão é complicada. A discussão não pode ser só sobre isso, como se – saindo do cinema, mas para voltar a ele – a gente olhasse os livros do Kabral, em que 100% dos personagens são pretos, e considerasse como um fim em si mesmo. Isso é um aspecto dos livros, é o começo de onde as narrativas se desdobram; a partir delas, você tem mais um monte de coisa acontecendo em termos de estrutura narrativa, estrutura formal e escolhas de escrita que os livros desenvolvem. Se você diz que o livro é bom porque todos os personagens são negros e ponto, então você limitou. Essas questões da representação, da representatividade – e é disso que o Gillespie e a Gates vão falar um pouco – , são um ponto de partida, são começos. As questões formais interessam, sem ir para uma essencialidade – o que é um cinema negro, uma literatura negra? Não existe essa essência. As experiências negras são muito variadas. Tentar criar essas caixinhas é algo que limita muito. Limita a possibilidade de criação dos artistas. Acho que tem que ficar atento a essas coisas. Se, num país tão grande e com uma população negra tão numerosa, a gente acaba em uma espécie de consenso estético acerca do
A essa altura da vida (e da morte), quando o destino me concedeu o prazer de olhar para o meu passado com olhos de descoberta e de mirar o futuro sem tantas ansiedades, quando tenho uma certa aceitação das vergonhas e já não levo tão a sério a ideia de que sou especial ou bom, penso que o verso que mais me agrada em toda a extensão e profundidade do cancioneiro pátrio, da nossa música popular, é um que devemos ao gênio de Caetano Veloso: “Eu sou neguinha”.
É claro que preciso explicar melhor esse negócio – por isso, topei escrever o artigo que se segue. Às pupilas que me seguiram até aqui, rogo que não desistam. Não vou decepcioná-las de todo ao fim da curta jornada que nos aguarda.
Começo por dizer que nós, brasileiros, não somos brancos. Não apenas não somos brancos: nós não podemos sequer nos pretender brancos. Um pouco de África, ou mesmo muito, corre em nossas veias sem memórias, quero dizer, em nossas veias cujas memórias são guardadas por entidades inacessíveis às nossas vãs consciências. Mas o que mais me interessa agora não é a questão da cor, senão a questão do gênero que vem inscrita no verso “eu sou neguinha”. Aí é que mora o encanto. Eu realmente tenho dúvidas quanto às armaduras de masculinidade que emolduram aqueles que nasceram com um pênis – coisa que se deu comigo. Duvido das armaduras que nos amordaçam, que nos armam, que nos asfixiam. Eu mesmo, que me sinto gente – e de modo tão apaixonado, embora tímido – posso dizer que me sinta “homem”. Definitivamente, não sou como esses homens aí que tanto se jactam de ser homões. Eu não. O meu gênero não é o mesmo deles. A minha sexualidade não é igual à deles.
Pelo que sei de mim, digo que há tantas sexualidades quanto pessoas na face da Terra. Cada um é uma sexualidade. Cada um tem um jeito masculino e feminino de ser que é único, não é categorizável. Nessa matéria, o que mais me atrai é atirar-me. Deixe-me dizer melhor: o que me atrai é atirar-me “no acaso e amar o transitório” – para fiar-me em outro bom verso, este de Carlos Penna Filho.
No mais, se pararmos para pensar em que consiste o gênero a que chamamos “masculino”, talvez não encontremos grande coisa ali que não seja um invólucro, um sarcófago, um rótulo desprovido de espírito. Ou duvidamos disso agora, ou empenharemos mais e mais as nossas almas a emprestar vida artificial a invólucros ressequidos que não somos nós.
Tomo para mim o que Simone de Beauvoir disse sobre as mulheres: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Bem sei que a frase virou um chavão. Bem sei que os chavões são insuportavelmente insuportáveis. Bem sei que o uso indiscriminado e panfletário dessa frase de efeito – uma frase com defeito – logrou empobrecê-la e reduzi-la a uma palha morta do discurso político. Uma pena. No trecho em que a filósofa rabiscou essas palavras, no começo do livro “O Segundo Sexo”, ela carregava pensamento com ela e pretendia discutir mais o gênero do que o sexo. Ela queria dizer, e de fato disse, que é a cultura, não a biologia, que impõe o padrão de gênero, de tal sorte que a mulher só vira mulher depois de construída assim por força dos valores sociais que moldam a personalidade infantil de um ser em formação. Nas palavras de Simone de Beauvoir, “é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino”.
E por que eu, que sou um suposto homem, tomo para mim uma passagem tão ardentemente feminista? A resposta é simples: porque me ocorre que ela vale também para mim, assim como vale para as mulheres, isto é, vale para mim e para todos os homens do mesmo modo que vale para todas as mulheres. Também homem não se nasce. Também homem, torna-se. É tormentoso e sangrento o método pelo qual a civilização esculpe, com navalhas, formões e cinzéis simbólicos, o feitio do homem másculo sobre um pedaço de madeira virgem chamado criança. E esse processo não é indolor, assim como não é bom.
Ser um ser masculino é arcar com um arquétipo vazio – insisto no vazio – e pesado. Um estereótipo absurdo, porque anacrônico e ultrapassado. “Homem que é homem não chora”, canta Martinho da Vila. Ele tem razão, se o oposto de “homem” for a criança. Mas não tem razão, se o oposto de homem for a mulher. Homem chora quando perde a mãe. Todas as vezes em que perde a mãe. Mulher também. O resto é cultura.
Falemos um pouco mais de cultura. Atribui-se ao masculino uma certa agressividade perfunctória, invasiva, incisiva, que seria parte essencial da experiência humana. Tenho dúvidas. De outra parte, atribui-se ao campo dito feminino virtudes como acolhimento, abrigo, maternidade. Tenho dúvidas também. O masculino leva traços de linhas retas e ângulos arestosos; o feminino tem formas arredondadas, aconchegantes. Não sei não. O masculino encarna força; o feminino, leveza. O masculino governa; o feminino aquiesce. Ora, por favor.
A menos que se lide com essas categorias como polos de uma tensão indivisível, ou seja, a menos que se aceite que o feminino e o masculino não se apresentam sozinhos, mas sempre conjugados, como o yin e o yang, não há mais sentido – se é que um dia houve – em alguém se ver como uma península masculina ou uma baía feminina. Somos sempre as duas formas geográficas.
Eis, em suma, por que duvido da masculinidade que a mim se atribuiu. E mais ainda duvido da masculinidade que se proclama em certos brados tão em voga. A masculinidade – veja que ironia, que contradição – vem se tornando uma afetação gestual. Na onda de autoritarismos que varre o mundo se encena essa apoteose de masculinidade, com pelos como espinhos, com músculos feito aço, com armas e trejeitos alegadamente testosterônicos que, francamente, não passam de teatralizações performáticas e ficcionais.
E olhe que não me refiro apenas ao machismo, esse fator de ordenamento de discursos que nos submete a todos e a todas. Eu não me refiro apenas ao estreitamento linguístico e político do machismo, que, por vezes, pode até ser cavalheiresco sem deixar de ser machista. Eu não me refiro apenas ao machismo que oprime as mulheres e ultraja os homens que, como eu, duvidam desses padrões de masculinidade afetada, essa masculinidade exibicionista e tresloucada. Eu não me refiro, enfim, apenas ao machismo que só pode ser desmontado conforme se desmontem os enunciados peremptórios com os quais ele ergue suas fortificações. O combate ao machismo que se impõe como um grilhão sobre o que é humano (pois o machismo é desumano) só se faz por meio da costura e da descostura das palavras de que ele se serve. O machismo se enfrenta no enfrentamento dos signos. Só assim vamos nos livrando desse machismo que tantas vezes consegue nos transformar em seus agentes inconscientes (o pior do machismo aparece quando nos flagramos falando o machismo – ou pior, quando nos flagramos tendo falado o machismo por tanto tempo e tão bestamente).
Mas, além do machismo, eu quero e devo me referir à caricatura do macho que vem sendo agora convertida em signo político. É constrangedor quando nos damos conta da miséria ridícula das autoridades que “falam” em furos como se com essa palavra, “furos”, pudessem demonstrar sua superioridade fálica sobre as mulheres. Não vejo humanidade nisso. Duvido dessa hombridade funesta, um tanto escatológica. Penso que não quero isso para mim. Sinto que não tenho parte nessa barbárie dessas figuras medonhas que erguem o braço como uma cancela de quartel, que fazem cara de malvados, que se deleitam empunhando coronhas, eles, com sua vaidade ignara e seu desejo adestrado – um aterrador desejo obediente.
O que há de masculino em mim, nesta hora, diz “não”.
Existem duas grandes entidades capazes de uma transformação essencial na realidade que conhecemos, atravessada pela crise pandêmica do coronavírus. A primeira delas, já claramente nomeada no século XX, é a Complexidade. A segunda, vemos nascer hoje aos prantos na sociedade globalizada, a Incerteza, vivida como sinônimo de insegurança. Como entidades míticas, estão presentes desde o começo dos tempos, surgindo a cada Era com seus próprios nomes.
As duas grandes entidades desferem um agudo golpe narcísico no paradigma de masculinidade ainda cristalizado, que se baseia na articulação de Poder e Racionalidade. Esse masculino criou um mundo para sua morada, um conhecimento para sua expansão e uma ideia de vida para gozar de si mesmo. Fez desses dois recursos espada e escudo, martelo e prego, pena e papel. Ferramentas plasmadas nas organizações, na tecnocracia, no intelectualismo, nos poderes instituídos e suas polícias, na relação com a natureza e com dinheiro, resumidas hoje na imagem do homem branco de terno e gravata e seus análogos pós-modernos.
Por cerca de quinhentos anos, esse homem trabalhou intensamente, fazendo dos mundos, conhecimentos e vidas plurais um mundo único, um conhecimento único e uma vida única, ao ponto de ter atraído para si, o que é de toda mitologia ou soberba, sua própria ruína. Açoitadas, Complexidade e Incerteza lançam um adversário ferrenho, a subversão do que o homem buscou como qualidade: Corona simboliza “poder”, símbolo máximo do domínio sobre o mundo material. Vírus vem de virius, que significa “homem” – de onde surgem as palavras virilidade e virtude.
Mas, como herói, esse homem fracassou retumbantemente, e, como Hidra, Complexidade e Incerteza apenas crescem à medida que as armas Poder e Racionalidade contra-atacam cada vez mais violentas.
O Poder não pode senão reduzir a Incerteza ao contorno do nomos, do controle, do visível como matéria, conceito ou informação. Mas incerteza se faz sempre às margens, e assim, quanto mais poder, maior a marginalidade que ele produz. Das bordas da margem, no invisível e desconhecido, acena a Incerteza.
A Racionalidade não pode senão travesti-la de dedução e conjectura, fragmentando a Complexidade, dualizando a realidade – verdadeiro ou falso, risco ou segurança, sucesso ou fracasso. Mas a Complexidade mora justamente no entrecoisas, nos sentidos que atravessam as “partes” cortadas de realidade, e, assim, quanto maior a fragmentação (vide a realidade multitarefas do isolamento social em um contexto familiar), maior a Complexidade.
Nas últimas décadas, este termo passou a significar ohype, como uma hipermetodologia que precisamos para lidar com uma hipernormalidade. Um esforço computacional – “big data” – e uma aceleração da linearidade que levanta voo – “exponencial”. Tudo como era antes, só que complexo. Como se o Tudo e o Todo não tivessem diferença. Por via das dúvidas, no elã quantitativo, ficamos com o Tudo em conotação de materialidade vantajosa, objeto direto do verbo ter. O homem-Tudo.
O problema pandêmico aciona uma atitude quase generalizada de interpretação, especulação e análise de dados de um lado e, de outro, o fechamento completo, negacionismo violento da ciência ou das possibilidades além da razão. Poder e Racionalidade, em ambas versões, fazem juntas o parto da certeza. Os dois lados pressentem a notícia de que sim, o mundo acabou. Para a arrogância reducionista do homem-Tudo, se seu mundo acaba, o mundo acaba e usamos a complexidade para farejar com pressa o que vai emergir – yes, nós temos tendências. Só podemos largar uma certeza por outra, mais atualizada.
“Emergir”, para essa masculinidade, se refere às novidades, padrões “obviamente inusitados”, kickoff da versão mais recente. O homem-Tudo já está expert no “novo normal”. “Antifrágil”, “Ágil”. Pela lente de última geração do Poder e da Racionalidade, a Vida se torna identificada com a estratégia de adaptação, resiliência, edeseja permanência através de suas atualizações.
Proteger-se na crise toma o sentido do isolamento e do acúmulo de recursos, mas ai de quem tocar nas minhas liberdades individuais – uso máscara seu eu quiser, “com quem o senhor pensa que está falando?”. Respondemos ao contexto atual com mudanças que ironicamente servem para resistirmos à transformação. Mudanças resolvem problemas, ao passo que transformações – habitar o que está entre, através e além das formas – deslocam as premissas do mundo.
As duas entidades passam a ser um problema para se resolver – o mundo V.U.C.A. –, e devemos conquistá-las criando uma certeza altamente desenvolvida ou ser derrotados, aniquilados pelo caos destruidor – antes ser engolido pelo caos que se vulnerabilizar.
Complexidade e Incerteza
Torná-las um problema é justamente o que nos obriga a uma direção única na interação com a realidade imposta: resolvê-las, planificando nossos próprios mundos.
A Complexidade, que desobedece a todos os sentidos da palavra plano, não nos coloca problemas – estes vêm de um pensamento inadequado ao seu contexto –, ela coloca a vida. A problemática da complexidade acontece quando, em vez de aceitarmos perder o posto do saber e controlar, insistimos nos sentidos que já temos para aquilo que ainda não se sabe (se oferece). “Tudo” é uma palavra estática. O homem-Tudo não consegue se deslocar para a complexidade.
É necessário outro pensamento para descrevê-la e sustentá-la. Uma linguagem própria para a Incerteza, que aproxime a Complexidade, sem conquistá-la. “Emergir”, nessa linguagem, é como a escuta das lacunas, das fendas nascertezas. Precisamos agora mais de Sentido – uma finalidade, um ir em direção a, disposto a abertura do caminho, contendo em si o sentir, o desvelar – do que de Significado – uma correspondência fixada, nome de coisa, fechado, pretensiosa verdade –, pois o homem-Tudo carece do primeiro e excede no segundo.
O que estamos vivendo como realidade social é flagrante dos limites de um modo de pensar e perceber a realidade. Como entidades sobre-humanas dessa mitologia contemporânea, Complexidade e Incerteza guardam uma benevolência misericordiosa uma vez arrefecido o ímpeto do homem-Tudo por Poder e Racionalidade.
As entidades não pedem necessariamente o fim desse homem, mas sua abertura. Abertura à Vida, que se torna identificada não mais à estratégia e à permanência, mas ao processo e à continuidade. Vida que não temos, mas nos atravessa; à qual não damos ordens, e sim damos passagem. Complexidade ela mesma, sem reduções interpretativas.
Proteger-se, então, como entrar em relação (mesmo que à distância), interdepender e deixar-se atravessar, compartilhar sentido mesmo que incerto. Incerteza deixa de ser insegurança quando nos ancoramos no sentido compartilhado. “O” mundo se dilui, fazendo emergir “os” mundos, e o que os pertence se torna um cosmo maior – o Todo.
Complexidade e Incerteza, escutadas pela masculinidade, falam de outro homem, o homem-Todo, cuja atividade é buscar coerências no lugar de certezas. Coerências em movimento. A orientação a uma verdade única (seja progressista ou conservadora), a um poder único, pode dar lugar à integração, à reflexão que assuma a frágil experiência de ser homem neste tempo. O homem-Todo aprende a descentralizar a si mesmo quando a multiplicidade do mundo se encontra em uma mesma atitude: escuta.
Permanência e Continuidade
A crise não pode ser escutada senão através de sua cacofonia. Poder e Racionalidade não estão dando conta e não podemos permanecer. Estamos impedidos de ser, neste momento, a demanda atendida, o problema resolvido. Não mais respondemos à realidade-problema, e sim integramos a realidade-questão. A crise transborda uma mera reorganização das coisas, um “fazer assim” em vez de “assado”, a busca apressada do “novo normal”. Inferir que há uma mensagem a ser capturada pode mesmo nos impedir de ouvi-la em sua própria voz.
Ouvir. Pois a Incerteza quase nunca é algo que sabemos escutar. Pois o nascimento do homem-Todo não depende tanto da linguagem em que descrevemos esta crise quanto da linguagem em que a escutamos. Incerteza nos fala de transformação, e transformação não é uma solução de problema, mas a abertura à finitude de uma permanência. Incerteza ela mesma, sem interpretação.
A continuidade, no lugar da permanência, não fecha contornos visíveis. É processo, intuída no salto da semente ao ramo e deste ao fruto, sentida na sucessão de identidades que somos ao largo da vida e das gerações no tempo e simbolizada nos ciclos, nas espirais e toroides, mas não pode ser tomada pelo poder nem decifrada pela racionalidade.
Pode ser angustiante conviver com a diligência de não fechar contornos nas questões que vivemos, questões envolvendo identidade, destruição, morte, isolamento, finitude. Mas é justamente nessa atitude que podemos aproximar a Complexidade e quiçá aprender com ela a transferir nossa identidade ao que continua, mas não permanece.
A angústia é a marca de uma maneira de existir que intui seu fim. Esse mito, a partir da pandemia, se encerra com dois pontos, ao que segue o fim do texto e a continuidade do leitor:
O fazer escultórico é sempre uma espécie de dança entre o artista e seus materiais. Em constante negociação, conduzem um bailado ora conflituoso, ora harmônico, até uma decisão mútua em direção ao fim. Nessa dinâmica, seria ingênuo acreditar em qualquer inocência da matéria: uma vez presente, ela não se esquiva de falar, faz questão de ter voz ativa por todo o processo.
Esculpir, portanto, pode ser pensado como uma coreografia que rasga o espaço em movimentos capazes de deixar rastros de naturezas diversas. Em sua série Pilastros, iniciada em 2019, Gabriella Garcia arquiteta estruturas em gesso sobre bases de serralheria. O esqueleto, no entanto, nunca nos é visível. Quem fala, nesta dança, é a massa amorfa e inquieta do gesso, sobre a qual sobrepõem-se camadas de cor.
Dentro da produção da artista, pouco ou nenhuma hierarquia se dá entre suportes e formatos. Assim, seus pilastros são pensados enquanto pinturas na paisagem, cujos tons de rosa, pastel, bege e afins evocam a gradação cromática dos movimentos do sol, do nascer ao poente. A coreografia diária do astro-rei no espaço sideral.
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Em seu sentido original, a palavra coreografar pressupõe organizar os movimentos no espaço. Mas pode designar também um tipo de desenho, um movimento. Em grupo, a Foto de família de Garcia está pronta, cada integrante em sua posição demarcada, preparados para a abertura das cortinas. Em uma dança pontuada pelo gesto — pelas mãos da artista — cada escultura busca seu equilíbrio em um impreciso balé da forma. Edificam-se no espaço, rochosas, maciças e corpulentas. Leves, suaves e etéreas. Pura teatralidade e ilusão.
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Se uma escultura é sempre um campo ampliado de possibilidades de significação, poderíamos ler os trabalhos de Gabriella Garcia como edificações fálicas, erguidas em direção ao alto. Na arquitetura greco-romana, as colunas desempenhavam o papel alegórico da força masculina, simbolizando a força dos deuses que sustentavam os templos. Os pilares eram tomados, então, como vértebras a fortalecer tais estruturas.
Se lidas enquanto colunas, as esculturas de Garcia seriam falhas: tortas, enviesadas, retorcidas. Se está em jogo aqui certo duelo entre abstração e antropomorfia, são obras que recusam definições rasteiras, colocam em cheque qualquer desejo vão de binarização. Seriam falos em desconstrução. Falos sem fala.
Desde a Antiguidade, artistas e preceptistas se preocupam com duas formas de imitação: a icástica (física) e a fantástica (metafísica). Como alternativa à hegemonia da pintura icástica greco-latina, o historiador de arte Jurgis Baltrušaitis (1903-1988) identificou na arte medieval um dos pontos culminantes do fantástico. Não as catedrais, a retidão românica, as ogivas e os vitrais. Mas as iluminuras, as gárgulas, os livros de horas, a planimetria, as anamorfoses, os bestiários, as tanatologias, o mundo às avessas, a carnavalização.
Baseada em premissas metafísicas, a fantasia atravessa ordens distintas de realidade, enaltece a analogia, gira a grande cadeia dos seres e joga com o cosmos, em um louvor às metamorfoses. Não se preocupa em representar a natureza. Preocupa-se em representar o continuum da natureza. Os animais e os minerais, os vegetais e os humanos, os seres animados e os inanimados, o objetivo e o subjetivo: todas as substâncias participam umas das outras e se interpenetram neste drama divino.
A partir dos séculos XVI e XVII, com a ascensão da perspectiva, do ponto cêntrico albertiano e daquilo que Marcel Duchamp definiu como arte retiniana, começa um novo ciclo hegemônico do icástico. O fantástico, denegado, migra para os tratados de alquimia e de magia, os livros de rebus e a hieroglifilia, as empresas e os emblemas, as teofanias heterodoxas, os labirintos de conceitos, os enigmas e os tratados de hermetismo, os gabinetes de curiosidades, as ilustrações naturalistas de uma fauna e de uma flora inexistentes, os relatos dos viajantes.
Nessa mesma época ocorrem dois fatos decisivos: a emergência do racionalismo e a conquista da América. Por isso, alguns autores identificam aqui um paradoxo fundamental. Enquanto a Europa coroa a cisão cartesiana entre sujeito e objeto, alicerce do projeto expansionista, a América se dedica a um movimento de contracolonização. Para tanto, reorganiza os signos flutuantes da fantasia e expande as fronteiras do imaginário, em poderosas operações de anacronismo deliberado (Didi-Huberman).
Na esteira da grande arte dos séculos XX e XXI, brasileira e mundial, a obra de Alex Červený se baseia nestes dois movimentos complementares: navega na contracorrente dessa fratura entre sujeito e objeto e desbrava territórios imaginários livres, potencializados pela herança americana e pelo atavismo de uma fantasia robusta.
Em Todos os Lugares, temos uma curadoria preciosa tanto da variedade formal quanto da riqueza imaginativa de seu universo. A exposição da Casa Triângulo abrange aspectos e fases da obra como um todo. O livro homônimo, publicado pela editora Circuito, concentra-se nas imagens e nas descrições de cidades ao redor do mundo visitadas pelo artista, intenso viajante. São visões complementares sobre o universo visual de Červený. Ambas abordam a multiplicidade de camadas e os caminhos apresentados por esta obra singular e multifacetada.
Os lugares de Červený são entrelugares: espaços de intersecção. O grande campo vivo desses lugares-imagens relacionais é o corpo. Entendido como entidade fantástica, o corpo é orgânico, mas não biológico. É uma esfera animista de animação. O ponto privilegiado onde os seres da physis se reúnem e se dispersam, em movimentos de expansão e contração: o editus e o reditus de que falam os místicos.
Ao enfatizar a figuração e a planimetria metafísica, desprezadas por muitos modernos, a obra de Červený ganha duplamente. Primeiro porque se vê livre para transgredir os pressupostos da ilusão realista e tridimensional. Segundo porque passa a atuar, de saída, em um espaço sem fronteiras, sem bordas e sem limites. Habita a identidade absoluta entre real e imaginário. A partir do místico sufi medieval Ibn ‘Arabī, podemos chamar essa esfera de mundo imaginal (mundus imaginalis).
A variedade de técnicas, suportes e materiais da obra de Červený é admirável e singular na arte contemporânea. Parte da colagem, da assemblage, dos palimpsestos, das esculturas e das intervenções, passa pelos diversos tipos de gravura, incluindo clichê em vidro (cliché verre), técnica francesa rara do século XIX, e chega à pintura, à aquarela, à ilustração (Darwin, Boccaccio, Collodi) e ao desenho propriamente dito.
Nesse sentido, o desenho pode ser visto como fio condutor do pensamento-imagem de Červený, não por acaso um exímio desenhista. Não o desenho entendido apenas como técnica, mas a linha explorada como conceito. Diferente do senso comum, a linearidade não é uma cesura, um corte, uma contenção. A linha é o prolongamento do olhar em direção ao indeterminado e ao inextenso. Em uma palavra: em direção ao infinito.
Essa zona de indiscernibilidade linear se encontra no âmago desta obra. E se manifesta em uma de suas principais matrizes formais: a relação imagem-letra. Se as palavras e as coisas, os signos e seus referentes, a linguagem e o mundo nunca se romperam pela fratura aberta entre sujeito e objeto, um fino fio de ouro de Homero (aurea catena Homeri) conecta letra e natureza, texto e mundo, significantes e imagens, imagens e escrita.
Por isso, corpos se fundem a letras. Letras emolduram o sexo. O umbigo aflora em um R. Um H divide o corpo de um humano. Um pênis é englobado em pleno gozo por um Q. Como queria Derrida, a escrita é anterior à fala porque a letra (gramma) é linguagem. Mas a escritura também é grama: as folhas simples da relva em que pisamos. A natureza é um livro anônimo. O mundo, uma assinatura infinita das coisas.
Esta cosmologia singular de Červený transborda as demarcações constitutivas do texto e da textura, do grâmico e do gráfico, da granulação e da frase, da semântica e da cor. Por isso sua obra consegue operar modulações entre elementos aparentemente tão distantes quanto versos dos Lusíadasde Camões, duas gravuras de Cornelius de Bruyn (c. 1715), Aleppo e Jafa, um panfleto da revolução cultural chinesa e referências a telenovelas, a canções populares, ao cinema, à cultura pop e sobretudo aos signos circenses, um dos esteios e das principais inspirações desta arte do imaginal em estado puro.
Jung definiu a alquimia como a linguagem do inconsciente. Červený define o inconsciente como a linguagem da arte. Por extensão, arte, inconsciente e alquimia têm em comum o fato de serem operações anímicas de pura transferência. Tudo nesses regimes é derivado, deslocado, flutuante. Não há sentido próprio. Há apenas significantes apropriados. A revelação profana da alquimia visual de Červený consiste nisso: uma misteriosa transmutação dos seres, entre a natureza e a linguagem, entre a letra e a figura, do nigredo ao albedo, rumo a uma improvável transfiguração.
Segundo alguns mitos de origem, a criação é antecedida por uma forma circular, que representa a totalidade primordial. Somente quando o mundo é criado, se dá então o seccionamento – a diferenciação entre bem e mal, claro e escuro, céu e terra, masculino e feminino etc. Antes, portanto, está tudo contido nessa unidade redonda. O ovo é, por excelência, o símbolo dessas cosmogonias, mas não somente ele.
No livro Os nagô e a morte, Juana Elbein dos Santos nos conta o mito do nascimento de Exú. Exú é considerado o primeiro nascido, da mãe e do pai primordiais, simbolizados pelas metades inferior e superior de uma cabaça, que recebe o nome de Igbá-odù. Os dois poderes – masculino e feminino – se comunicam e encontram equilíbrio no filho, associado, por isso, ao andrógino. O mito do andrógino tornou-se conhecido no ocidente através do discurso de Aristófanes, em O banquete1, de Platão. Ele nos diz que antes do homem e da mulher existia o andrógino, ser de duas cabeças, quatro braços, quatro pernas, que, devido à sua forma circular, se locomovia velozmente dando cambalhotas. Por isso, os andróginos eram muito fortes e pretenderam desafiar os deuses.
No amor, dizendo acto de o sagrar, apertado o corpo do recém-nascido no ovo solar, há ainda um outro corpo incluído, mas um corpo aquém de ser são ou podre, um repuxo, um magma, substância solta, com pulmões.
Luiza Neto Jorge, “O corpo insurrecto”
Andrógino, de Leonardo da Vinci
Ao saber da afronta, e com o intuito de enfraquecê-los, Zeus cortou-os ao meio – “como os que cortam ovos com cabelo”. O procedimento é rico em detalhes: “torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição” [grifo meu].
(Esse trecho me veio à cabeça quando, certa vez, trocando a fralda do meu filho, vi aquela cicatriz que começava no ânus, percorria o saco escrotal e terminava na pele que envolve a glande do pênis. Fiquei admirado, pois as tais pregas não polidas, assim deixadas por Zeus “para lembrança da [nossa] antiga condição [de andrógino]”, estavam ali, inscritas no corpo dele – eram a evidência irrefutável do antepassado ancestral. Pensei: “então, de fato, fomos um ser único e redondo, separados posteriormente em homem e mulher!”. É claro que o que se passa é o contrário: foi a partir da observação dessa marca de nascença que homens e mulheres trazem no corpo desde o nascimento que a história foi inventada para explicar o inexplicável: a criação. Mas a cicatriz do meu filho, que eu podia ver e cujo relevo podia sentir com os dedos, era por demais forte para me fazer acreditar no contrário – e aí está a pregnância encantada do mito na realidade concreta das coisas e do mundo.)
Em manobra posterior, Zeus muda o sexo dos andróginos “para a frente – pois até então o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras.” Terminado o expediente e separadas as criaturas em homens e mulheres, as partes passaram a buscar para sempre a metade perdida. Essa é a moral da história. Como consequência disso, nutrimos algumas ilusões de retorno a esse um. A primeira se dá pelo sexo – o encaixe do pênis, que se projeta para fora, no buraco da vagina, seu receptáculo, recompõe a unidade originária –, nos corpos unidos de duas cabeças, quatro pernas e quatro braços, e através da despersonalização do gozo. Mas se dá também pela reprodução. E aqui, Platão encontra Exú. Filhos e filhas serão eternos portadores das essências masculina e feminina de pai e mãe e, portanto, necessariamente ligados à ancestralidade andrógina.
(Ainda na barriga redonda da mãe, até a décima segunda semana de gestação, não há determinação dos órgãos sexuais no embrião, cujo desenvolvimento, a partir da mesma estrutura, se dará dali em diante, a depender da produção ou não de hormônios, e resultará no clitóris das meninas e na glande dos meninos, seu análogo. Os bebês, quando nascem, também possuem aparência andrógina — difícil dizer o sexo de um recém-nascido sem os sinais da cultura que o distinguem: brincos, cabelo, lacinhos, roupas, brinquedos etc.)
Assim, o feminino e o masculino se atraem – não se trata de gêneros, sequer de homem e de mulher, mas de energias contrárias postas em tensão em todas as pessoas, independentemente de orientação sexual ou de gênero – como desejo inconsciente de retorno à forma primeira. Impulso que liga os fios do início e do fim, como a descrever um círculo de proteção, uma mandala, ou a posição fetal em que aguardamos o nascimento dentro da barriga da mãe e na qual quedamos desamparados na hora fria da morte – quando, enfim, seremos absorvidos pela terra do planeta redondo.
1 Todas as citações deste texto foram retiradas da edição bilíngue de O banquete, com tradução de José Cavalcante de Souza, pela Editora 34, de 2016.
Carl Gustav Jung (1875 – 1961). (Photo by Hulton Archive/Getty Images)
Há alguns anos, quando não sabia ao certo para onde ir, ouvi de um amigo sobre a tradição de certa tribo africana. Os mais velhos se reúnem com quem está se sentindo perdido e começam a chamá-lo por seu apelido de infância – todos na tribo têm um. Recordam juntos momentos marcantes da vida daquela pessoa, trazendo à tona memórias afetivas de sua história. Quando um não sabe para onde ir, é preciso lembrar de onde veio.
Da mesma forma, quando não sei ainda para onde um texto irá me levar, recorro ao velho hábito de consultar dicionários e buscar pela etimologia das palavras. Foi assim também com o “masculino”, mesmo que hoje seja muito difícil decidir onde buscar definições para este adjetivo que a cada dia se apresenta mais complexo.
Mas.cu.li.no (mɐʃkuˈlinu): adjetivo. 1. relativo ou pertencente a homem; 2. relativo ou pertencente a macho; 3. Botânica: diz-se da flor que possui apenas estames; 4. Gramática: diz-se do gênero gramatical que se opõe ao gênero feminino ou aos gêneros feminino e neutro; e 5. relativo a comportamento ou aparência tradicionalmente associados aos homens.
Mesmo sendo o dicionário de edição recente, suas definições não me satisfizeram. Recorri então às estruturas da psique observadas pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, autor da psicologia analítica, segundo a qual os princípios psicológicos do masculino e do feminino exercem papel fundamental na constituição da natureza humana e no seu processo de desenvolvimento.
Todos nós, humanos, temos presentes em nossas personalidades ambos os aspectos, contrapostos e bem definidos. Da tensão entre esses opostos surge nossa capacidade e potencial de crescimento. Do convívio harmônico das potencialidades do masculino e do feminino emerge nosso potencial criativo, nossa oportunidade de cocriar nossa própria identidade. Um “eu” maior, capaz de reconciliar esse casal invisível do nosso inconsciente pessoal, ampliando nossa consciência e percorrendo o caminho que Jung nomeava individuação, o encontro profundo com nossa essência, única, indivisível.
Jung reconhece as qualidades psicológicas femininas inconscientes que o homem possui, assim como as masculinas possuídas pela mulher. Enquanto o aspecto feminino em nós é o que tem contato com nossas emoções, o que nutre, cuida, acolhe, o aspecto masculino é o da lógica, da racionalidade, é o que estabelece as regras, as leis e a ordem – o código de Hamurabi é um dos conjuntos de leis escritas mais antigos e bem preservados da nossa história, elaborado por volta de 1772 a.C., na Mesopotâmia. Recomendo uma busca pela imagem desse monumento, talhado em pedra, que ora se encontra no Museu do Louvre, em Paris. Ele fala por si só.
Jung atribuía ao princípio feminino nossa capacidade de seguir a vida aceitando mudanças, com confiança, segurança e esperança diante dos encerramentos de ciclos e renascimentos que formam nossos aprendizados. Ao masculino, nossa capacidade de tomar decisões, de ser independente e de nos tornar agressivos e competitivos, mas também responsáveis, provedores, figuras de autoridade. É o princípio que nos guia para separar o bem do mal, o certo do errado, o permitido do proibido, não só ditando disciplina e ordem, mas também criando e colocando limites para nós mesmos e para os outros.
No passado, o conflito mais comum entre esses princípios se dava em nossa cultura, na dificuldade e até mesmo na proibição de que os homens acolhessem e lidassem com seus aspectos femininos e as mulheres o fizessem com seus aspectos masculinos.
Hoje, com uma melhor compreensão sobre a diversidade de gêneros, ainda que engatinhando, já é possível observar e lidar melhor com os potenciais positivos e negativos do feminino e do masculino. Não se pode fazer referência a um sem o outro.
As réguas da masculinidade são o sucesso, o poder, a admiração que uma pessoa provoca – ela busca ser independente, audaciosa, agressiva, capaz de tomar riscos e decisões importantes. Como natural decorrência dessas qualidades, colhemos a violência pessoal e coletiva, a competição desenfreada e sem propósito, o estresse, a obsessão pelo alto desempenho.
Essa masculinidade é constantemente ameaçada pela intimidade, pelo sentir, chorar, pela afetividade característica do feminino. Proibido, ponto de fraqueza, a ausência do feminino torna a pessoa incapaz de se entregar a uma relação verdadeira.
A redução do mundo dos afetos ao sexo permite o jogo da sedução, mas evita o envolvimento, o compromisso, produzindo parceiros-objetos, quaisquer que sejam suas naturezas biológicas, gêneros ou opções sexuais.
A ausência do feminino nos distancia da natureza, dos instintos, da intuição. Perdemos a alegria de viver, a confiança na vida, a oportunidade de lidar com incertezas, com o imponderável. Já a ausência do masculino nos leva a um atoleiro de emoções que nos confunde, nos impede de agir racionalmente, facilmente nos deixando mais melindrados com tudo e todos, reagindo com mais sarcasmo, jogando indiretas ao invés de objetivar a situação ou experiência que vem sendo vivida.
Essa busca não deve ser de um em detrimento do outro, mas sim da presença marcante de um e de outro, em diálogo e não em competição. É preciso ser masculino e feminino para ser humano. Tarefa simples de ser escrita, uma epopeia a ser vivida, muitas vezes conflitante com nossa natureza biológica e cultural. Trabalho para corajosos ou loucos que se aventuram na jornada do autoconhecimento.
Comecei este nosso diálogo no subsolo de minha casa, já que, por conta do confinamento imposto pela Covid-19, minha esposa se estabeleceu no meu escritório e consultório para realizar suas videoconferências de trabalho, o que é a própria síntese do que tento compartilhar agora.
No campo psicofilosófico a que me atenho, veja bem – a que me atenho -, cor, preferência(s) sexual(is), prática(s) (ou não) religiosa(s), dietas, estilos de se vestir ou falar pouco ou praticamente nada importam. Muito pelo contrário, quanto mais diversos, mais ricos, mais elucidativos, mais humanos.
Mesmo assim, me sinto de alguma forma preso, ao escrever, pelas estúpidas amarras a que estamos nos permitindo ser atados. O sofisma já se inicia quando julgamos que possa existir uma forma única possível de agradar a todos.
Portanto, balela! É praticamente o mesmo dilema da porta: eu gosto de abrir portas: do carro, da casa, das salas, do elevador, quer seja para mulheres, homens, trans, homos, héteros, jovens, idosos, atletas, amorfos, pretos, brancos, amarelos, vermelhos ou verdes.
Sinto-me bem explicitando minha reverência ao outro. Faço isso sempre. Muitos gostam; outros, não, se sentem mal, ofendidos ou subjugados. Discordo, mas respeito, porque o que eu penso sobre o outro é irrelevante. O que ele sente é o que existe quando se propõe de fato a uma conexão com o outro. Mas sempre corro o risco de abrir a porta, observando a reação, que definirá se continuarei ou não a abrir portas para este um específico.
Já percebeu o tamanho da minha encrenca? No mundo machista, sou excessivamente gentil, talvez falso ou até mesmo efeminado. No feminista, subjugo a força e a independência das mulheres. Porém nada me impediria de ser eu mesmo.
Voltando ao meu subsolo, vamos recuperar a imagem da minha esposa trabalhando no meu escritório enquanto eu me exilo no subterrâneo de nossa casa. Precisei descer e me trancar nesse pseudoútero para fazer parir essas ideias que queria compartilhar.
Se no passado a singularidade dos modelos de homem, mulher, pai, mãe, masculino, feminino, nos oprimia e amputava, a pluralidade atual mais confunde do que nos orienta. Oscilamos do masculino para o feminino, da norma rígida para a ausência de regras e ordem.
Estamos vivendo uma grande carência de modelos. Modelos de ser humano no século XXI, em busca de mais e melhor integridade, de jogar fora rótulos sob os quais políticos e marqueteiros hoje deitam e rolam, enquanto a natureza e o desenvolvimento humano choram por abandono.
Ser íntegro, ou buscar integridade, é buscar por completude, totalidade, consciente e inconsciente, individual e coletiva, bonita e feia, feminina e masculina. É buscar tornar-se um indivíduo: aquele que não se divide, que não se pode dividir.
Termino agora, já de volta ao meu escritório, em domingo ensolarado, porque preciso preparar o almoço de dia das mães. Em homenagem a elas, quem cozinha aqui em casa, todos os dias, sou eu.
Devo confessar que foi ligeiramente incômodo escutar, pela primeira vez, que eu possuía um rosto masculino. Inicialmente atribuí por impulso esta percepção pela semelhança que tenho com meu pai: trazemos os mesmos olhos indígenas, meio rasgados, o formato oval e alongado da face, a testa profunda. Aos poucos, compreendi que esta característica está adiante da herança paterna. Não tenho a menor dúvida de que meu franzino corpo não evoque qualquer entusiasmo viril, qualquer ímpeto de violência, como é de se esperar da masculinidade; mas reconheço que certa seriedade, forjada no peso dos anos, talvez tenha contribuído para a construção dessa máscara. Este masculino que em mim habita está impregnado em minha superfície: terno e grave ele se ancora, sem brigar com sua dualidade. Ambos os lados mantêm em silêncio acordos tácitos de camaradagem e sobrevivência.
Sinto que meus masculinos e femininos não devam ser acessados como forças opostas em tensão ou como lados complementares, mas como partes fulgurantes que constituem um mesmo corpo. Cada um deve ser apreendido pela sua autonomia e totalidade, distante do antagonismo notório que conhecemos e que os definem ora como luz, ora como sombra.
O que pode uma mulher, enquanto corpo, saber do masculino? Se há algum sentido nesse movimento, ele é feito em parte pela perda, pelo desejo de aproximar do que nos falta. A falta aqui é compreendida não como uma parte negativa inerente a dois pólos coexistentes, mas como o vazio pelo qual percorremos sem saber muito como; pela via do estranhamento da apropriação de um gênero diferente àquele que nos é dominante. O processo de identificação de uma mulher com seu masculino passa também pelo reconhecimento da assimetria da qual somos feitas.
Fora do corpo, o traço másculo torna-se evidente naquilo que é dominado por funções maquínicas, mecânicas e, principalmente, repetitivas. É o traço dotado de retidão, que se apresenta como uma flecha: capaz de grandes esforços em um só fôlego, percorre longos trajetos sem desvios, afinal, não é um corpo maleável, nem flexível. Sua maior virtude é a objetividade.
Tentemos nos desvencilhar desta noção de contrários. Não se deve destituir o masculino de nenhum corpo, de nenhum espaço. Até porque quando digo “o masculino” não me refiro, necessariamente, ao homem. Ao segundo é reservado uma função social, um jeito de ser e estar no mundo. Ocasionalmente, eles coincidem de ocupar o mesmo corpo.
Em seu romance Malina, Ingeborg Bachmann afirma que “de um homem a outro, um corpo de uma mulher precisa perder todos os seus hábitos e readquirir hábitos totalmente novos. Mas o homem prossegue calmamente em seus hábitos; às vezes tem sorte; na maioria das vezes, nenhuma.”. Isso me faz pensar na quantidade dos músculos de uma mulher que são contraídos durante um orgasmo, na relação destes com o jato de alívio do gozo do homem, e seu relaxamento imediato. Imagino como seria se os homens pudessem gozar indefinidamente, sem tempo refratário, na medida expressa do seu prazer. O gozo fálico é em si um coito, firme e pragmático. Já um orgasmo múltiplo, este tem em sua natureza um compilado de interstícios, uma gama de espaços vazios como aqueles a que estamos socialmente acostumadas a preencher dentro de uma relação, sexual ou não.
Na equação naturalmente desequilibrada dos conjuntos, fico me perguntando porque nos parece mais confortável alinhavar a ideia do masculino dentro do feminino do que vice versa; para que um corpo se transforme, ele precisa estar disponível para se metamorfosear, se dissolver e fundir com o seu meio. Deve estar preparado para ganhar, assim como para perder. Quando uma mulher encontra — e assume — o seu masculino, ela invariavelmente começa a perder. Primeiro vê suprimir uma parte de si, para enfim em seu exterior ver subtrair algumas de suas relações, na maioria das vezes as de menor importância.
Penso que é preciso fomentar o masculino de sua instabilidade, dotar o vigor de crises. Não uma crise qualquer, mas da instabilidade crítica de sua própria essência, como a que posso enxergar no estado de um corpo que se lançou no abismo e ainda não aterrissou. Este corpo enquanto permanece em queda livre, mantém sua confiança atávica. Tenta resistir ao vento, apesar da certeza do baque. Rígido, teso e seguro de si toca o chão, para em seguida se esborrachar.
No esfacelamento de sua retidão, na inevitável constatação de sua impotência bélica, eis um retrato da masculinidade que me parece mais interessante. E ele tem a beleza de um homem triste, consciente de seu fracasso.
Eu vivo a 11.000 quilômetros do meu pai. Quando me mudei para Berlim, meu pai se tornou memórias e afetos dispersos em imagens e sonhos, um homem cuja voz, cada vez mais lenta, escuto em ligações de WhatsApp uma vez por mês. Depois de um ano e meio, visitei o Brasil e reencontrei um pai diferente do que havia me despedido, com pele mais murcha, barba branca em expansão irregular pelo rosto, olhos avermelhados e vazios, e espírito mais abatido pelas crises profissionais e existenciais dos últimos anos.
Ad Astra, de James Gray
Como foi que meu pai se tornou esse corpo com pouca vida? Com essa pergunta, embarquei no voo Porto Alegre-Lisboa e comecei a assistir Ad Astra (James Gray, 2019). No filme, o major Roy McBride (Brad Pitt) viaja até Netuno para localizar o astronauta H. Clifford McBride (Tommy Lee Jones), seu pai e líder do Projeto Lima, cuja missão era buscar novas formas de vida no espaço. O projeto fracassou, Clifford está sem contato com a Terra há 30 anos, e cientistas suspeitam que sua estação em Netuno seja a causa de circuitos explosivos que ameaçam o sistema solar.
A ida às estrelas é um percurso físico (pela Lua, por Marte, pelas novas fronteiras humanas na galáxia, por meio da adaptação tecnológica do corpo – Roy é o astronauta que se mantém “calmo, estável”, mesmo em queda livre), com metas objetivas (encontrar Clifford, destruir o Projeto Lima, estabilizar a vida na galáxia), mas também é uma ida ao interior, expediçãosubjetiva na qual Roy se confronta com o homem que se tornou (firme, voltado ao “essencial”, ele rompe com a esposa, Eve (Liv Tyler), para se dedicar apenas à ciência espacial). É, também, uma jornada de desconstrução do pai. Durante a viagem, a imagem do astronauta-pai começa a naufragar, de mártir da expansão interestelar a egocêntrico desequilibrado, preso num projeto frustrado, incapaz de retornar à Terra e colocar os pés no chão da vida pessoal e familiar.
Durante o filme, lembro a frase dita por um amigo, dias antes, em Porto Alegre: “Fazemos terapia porque nossos pais não fizeram”. Teria Freud salvo meu pai? Talvez, se a missão de resgate psicológico envolvesse um freudianismo que enfrentasse os ideais formadores, e depois deformadores, da vida do meu pai: o homem produtivo, bem-sucedido, masculinizado pelos assuntos que pode (deve) falar (futebol, mulheres, talvez política) e pela supressão das fragilidades, dos sinais do feminino, das mensagens enviadas pela subjetividade em busca de ajuda.
A compreensão de Clifford McBride passa pela viagem ao futuro e pelo questionamento do homem heroico, do astronauta norte-americano lançado ao espaço sideral, fugindo do espaço privado, do filho e da mulher, substituindo as frustrações das tarefas pessoais com uma grande tarefa histórica. No caso do meu pai, a compreensão teria que viajar ao passado e ao modelo de formação do homem segundo o germanismo carregado no nosso nome e encenado nas imagens fundadoras da família Kasper (a bisavó captura ratos em armadilhas improvisadas e arranca o rabo dos bichos com a própria mão, bate com cinta nas costas do meu avô e o tranca num quarto escuro por mau comportamento, e meu avô se torna silencioso, nem autoritário nem amoroso, refletido na incapacidade do meu pai de elaborar suas emoções).
Em Berlim, cidade das contradições alemãs, eu penso no meu pai enquanto vejo Frederico, o Grande, marchando eternamente no cavalo de bronze no meio da Unter den Linden. Aqui, pai e filho também habitam as lendas fundadoras. Berlim está devastada, metade da população foi queimada viva ou atirada no rio em guerras religiosas, e a dinastia dos Hohenzollern decide estabilizar e reconstruir a cidade. Dos escombros e da fome, Berlim se reergue como centro da Prússia. O contrato social se internaliza por meio do comportamento e da obediência dos súditos. O pai célebre dos Hohenzollern é Frederico Guilherme I. Ele se torna o Rei Soldado, criador do Estado em que 80% das receitas vão para armas e guarnições. Transformou a Prússia, principal força na unificação da Alemanha moderna, em “um exército com um Estado”. Disse que não olhava para mulheres, apenas para soldados altos: quando encontrava um, queria vê-lo com a farda da Prússia.
Talvez as relações entre pais e filhos passem por planos frustrados e ideais desconstruídos. Em Berlim, o Rei Soldado cria a Prússia militarizada, mas não provoca guerras. Gosta demais do seu exército para induzi-lo à morte. Tenta incutir a masculinidade prussiana no filho único. Mas o filho do Rei Soldado prefere canções a canhões, e garotos a garotas. O pequeno Frederico se esconde embaixo da cama com medo do pai. Quando jovem, reúne os amigos – apenas garotos – para tocar flauta e recitar poesia. O rei invade o quarto, acaba com o recital, joga os poemas no fogo da lareira. Então, o jovem ama (fisicamente) um de seus amigos, e o pai manda executar o amante. Aqui, as tensões psicológicas começam a agir na história: o jovem Frederico se casará por aparência, não terá mais amantes homens, continuará lendo filosofia e poesia (se tornará o Rei Filósofo), mas começará guerras, contra a França, contra a Áustria etc., “escrevendo poemas de noite e liderando batalhões de dia”. Ele havia se tornado rei com ambição e, como se dizia em Berlim, “sem coração”.
Depois da Segunda Guerra Mundial, em decreto de fevereiro de 1947, os países aliados decidiram abolir o nome Prússia, tida como núcleo do “militarismo e da reação na Alemanha”. Hoje, do Estado histórico Prússia-Brandemburgo, resta apenas o nome oficial Brandemburgo, região que circunda Berlim. Mas o que restou da Prússia mental? Como mapear e identificar, como tentar conter ou abolir a Prússia comportamental, a Prússia da vida controlada no relógio, da obediência sem crítica, da etiqueta à mesa sem debate ético na rua, do medo de expressar o que não está nas convenções, mas está na realidade dos nossos corpos, desejos, pensamentos?
Sobrevoando o oceano em direção à Alemanha, com as estrelas acima de mim, eu viajo por esses símbolos e mandamentos de um masculino em declínio, passo pelos astronautas e soldados que viveram suas funções sem viver suas emoções, pela educação inflexível destinada a formar um homem ideal, mas não um homem humanizado, liberado para descobrir e explorar seu universo interior. Então, eu chego de volta ao meu pai, e percebo a distância entre ele e o que ele poderia ter sido, se as missões impostas por seus modelos formadores tivessem sido mais leves e mais livres.
Além da expressiva presença de palco, característica que o manteve em destaque durante duas décadas no prestigiado Royal Ballet, Thiago Soares chama atenção por outra qualidade, desta vez nada relacionada ao corpo ágil, forte e esguio, talhado à perfeição para o balé clássico. Desde o início, em Vila Isabel, quando dançar na rua era umas das tantas atividades para ocupar as tardes, até a dedicação integral e irrestrita exigida em Londres, Thiago exibe uma constante disciplina ao momento presente. A entrega consciente ao agora, traduzida nesta conversa como o mais puro amor ao processo artístico, tem sido o alicerce fundamental na trajetória de uma das mais exitosas carreiras de um bailarino brasileiro no exterior. Responsável por adicionar novas cores e texturas aos movimentos tradicionais do balé, Thiago Soares conversou com a Amarello para falar sobre as dificuldades do início da carreira, o silêncio diante da família, o potencial revolucionário da cultura e os atuais desafios da dança no Brasil.
Thiago, eu gostaria de começar recuperando o seu tempo de infância. Qual é a memória mais viva que você carrega do bairro de Vila Isabel, no Rio?
Poxa, agora você me pegou. Em 2020, depois de ter vivido 20 anos na Europa, você me volta lá para Vila Isabel. Olha, o que me vem à mente é a 28 de Setembro, aquela avenida icônica, e certamente o som de samba da quadra da escola de Vila Isabel. Eu cresci ao som do samba de rua, do samba nas esquinas, nos bares, em um ambiente combinando essa musicalidade com os sons urbanos, das pessoas caminhando e fazendo compras. É algo bem característico.
Em Vila Isabel você começa, junto com o seu irmão, a dançar em um grupo de dança de rua?
Sim, foi em Vila Isabel que eu comecei. O meu irmão dançava nesse grupo de street dance e eu acabei me juntando a ele. É um grupo semiprofissional bastante sério, mas o meu irmão levava na brincadeira.
Como foi a sua experiência no Centro de Dança Rio?
O Centro de Dança Rio era uma escola que, na época, tinha mais ou menos 500 alunos, e entre eles não havia nenhum menino. Tenta imaginar uma escola em que a pessoa está lá para estudar exclusivamente dança, do meio-dia às nove da noite, e só tem meninas. É um sentimento muito estranho, porque você acaba refletindo, tentando entender se está no lugar certo e, se sim, que lugar exatamente é esse.
Como o Thiago Soares de agora reconhece essa experiência do jovem Thiago? Pergunto isso porque a proporção de 500 alunas para um aluno não me parece mera questão estatística, e diz muito sobre o entendimento da dança no Brasil.
É, acho que, olhando para trás, entramos em outro aspecto. Óbvio, existe uma postura cultural em que o balé sempre esteve ligado à ideia de que não era coisa de menino. A escola ficava no Méier, uma região localizada no subúrbio do Rio de Janeiro, em que a maioria das pessoas é de classe trabalhadora. Ali, as famílias não tinham empregadas, então eram os pais que levavam os filhos nas suas atividades antes do trabalho. Qual é a probabilidade de encontrarmos um bairro assim, no Brasil, em que os pais acompanham os filhos homens no balé, naquela época? Estamos falando aqui de 21 anos atrás. Exatamente por não ser algo natural que o fato de eu estar lá, estudando balé no Méier, por minha própria conta, numa escola em que só havia meninas, me colocava num lugar bem fora da curva.
Os seus pais sabiam do envolvimento do seu irmão com a dança de rua. Como eles enxergaram o seu movimento para o balé?
Olha, na verdade, meus pais não tinham nenhuma proximidade com a dança por conta do meu irmão, não. Ele dançava na rua, e nós tivemos uma criação que deixava claro que o que acontecia da porta de casa pra fora era outra história. Então, o meu irmão saía pra noite, bebia, paquerava e também dançava. A minha mãe só foi saber que meu irmão dançava depois que eu era um bailarino profissional, quando mencionei isso em entrevista, porque ele não dançava profissionalmente.
Você contou aos seus pais quando começou no Centro de Dança Rio, aos 16 anos?
Não, não contei. Não por nada, mas, a partir dos meus 14 anos, eu estudava e depois tinha as outras atividades, ir para a rua jogar bola e bola de gude, ir para a festa junina. Eu não cresci numa geração em que contávamos tudo em casa. Minha família ficava atenta se eu estivesse me metendo em alguma furada, usando drogas ou bebendo demais, mas, fora isso, eu era criado na rua. Esse meu contato com a dança foi um processo de autodescoberta, sabe? Lembro que cheguei a comentar alguma coisa em casa, porque precisava de calça de moletom. Na época, não se usava malha, então pedi uma calça de moletom e lembro da minha mãe dizendo: “que calça de moletom o que, garoto, com um calor desses, tá maluco?”. Pensei que era um caminho para contar que dançava, mas a resposta me fez desistir da ideia. Meus pais só vieram a saber da dança quando eu tinha 18 anos.
Chegou a imaginar se isso poderia ter sido um conflito, caso tivesse contado antes de se tornar um bailarino profissional?
Com certeza. Em algum lugar, meu pai sentia que algo estava acontecendo. “Ah, o Thiago deve estar brincando de alguma coisa por aí”, sabe? Eles não captavam completamente que eu estava estudando e me dedicando seriamente. Então, certamente teríamos conflitos, porque sempre ouvíamos o discurso do pai de família pobre: “E aí, como é que vai ser? Quando é que vai ser a hora de trabalhar?”. O meu pai ficava largando essas indiretas, mas eu estava convicto de que, de alguma forma, eu estava no caminho certo.
Até porque, pelo que você conta, a arte jamais surgiria nesse horizonte como uma possibilidade de futuro. No máximo, como um exercício ou um hobby, certo?
Exato e, no fundo, eu sinto saudade disso, sabia? Do sentimento de achar lindo sem ficar planejando. Acho que a arte está num lugar de abandono, e que talvez aqueles foram parte dos melhores momentos que vivi como artista, de só seguir o que está acontecendo, seguir a minha intuição e energia, e desfrutar da conexão que se cria com a arte. No meu caso, essa conexão virou uma sinergia tão forte que mudou o meu futuro. Embarquei com tanta convicção, que isso tudo foi ficando mais sério e o sonho foi se tornando realidade. Mas aconteceu porque eu me deixei levar, não exatamente porque fiquei planejando e pensando “ah, agora vou contar para o meu pai”. O que me interessava era devorar as sapatilhas e as meias e sair dançando. Era algo natural, como quando você se conecta com alguma coisa, vira um pequeno projeto pessoal e começa a dar certo. Pensando hoje, sinto que não dramatizei nada em relação à dança. Eu não quis chamar atenção porque vinha de uma família pobre, com dificuldades, nem porque era um menino hétero naquele lugar que assumiram que não era para mim. A questão é que eu me sentia feliz da vida com a sensação de ser deslumbrado pela arte, de perceber que a dança conversava verdadeiramente comigo. Senti tão intimamente essa relação que segui em frente, convicto.
Estando nesse lugar que você comenta que não era para você, você demorou para contar para os seus amigos? Eu não contei que dançava. Preferia dizer que fazia
teatro, porque, assim, justificava quando precisava sair mais cedo para ensaiar. Você vai criando estratégias. Na minha época, não usávamos o termo “bullying”, porque bullying era a zoação, e ela estava ali sempre, então tinha que aprender a conviver com isso e fazer jogo de cintura. Diante daquela mentalidade machista e suburbana, era melhor falar que eu fazia teatro, do que me dedicar a mudá-la. Até porque estava começando a estudar dança e a me descobrir como bailarino, então era um pacto de silêncio comigo mesmo. Não me interessava fazer notícia como o bailarino do colégio. Esse momento de autodescobrimento e de silêncio era o meu ouro, algo que me fazia sentir especial.
Avançando um pouco na sua carreira, quais são as suas fontes de inspiração como bailarino?
Eu gosto muito de arquitetura, assim como filmes, música e literatura. Na verdade, depende do que estou em busca. Vejo outros dançarinos e coreógrafos, para saber o que meus companheiros estão fazendo, mas, em termos de ter um norte, sinto que sou um artista eclético. Algo que sempre me vem à mente é o interesse por cidades e lugares diferentes. De alguma forma, sempre estou em busca de histórias. No palco, a minha referência passa muito pela figura de Fernando Bujones. Lembro de vê-lo e me projetar nele, de admirá-lo profundamente.
Foram duas décadas em Londres, atuando no Royal Ballet, começando como integrante do corpo de bailarinos até assumir a posição de solista principal de uma das mais importantes companhias de balé do mundo. Olhando com distanciamento, você consegue identificar o que o Ballet procurava em você quando o contratou? O que imaginavam que acrescentaria para a companhia?
Olhando agora, percebo que sou um artista de identidade muito forte e com uma visível persistência. Acho que me deram uma chance porque acreditavam que eu era persistente o suficiente e que, de alguma forma, somando isso a uma expressividade única, valeria a pena o investimento. Lembro do dia em que recebi o contrato do Royal. Ele chegou em um envelope pardo.
Era o seu sonho chegando pelo correio.
Imagino que o de qualquer bailarino. Até pode ser que artistas de dança contemporânea queiram ir pra outro lugar, outras companhias. Mas, se você calça uma sapatilha, veste uma malha e almeja dançar balé clássico, bem, então não há nada mais impactante. Havia o deslumbre de ser, do ponto de vista pessoal, o lugar ideal, porque imaginava que seria possível viver dessa vida de bailarino que conhecemos, que também é um pouco ator, porque o Royal tem essa característica e trabalha com esse repertório. Para mim, era ao mesmo tempo perfeito e surreal. O Royal Ballet foi a faculdade profissional da minha vida, um divisor de águas. Foi a melhor oportunidade que tive de aprender e me desenvolver. Eu não seria o artista que sou se não tivesse recebido essa oportunidade. O Royal Opera Hall é uma fábrica de talentos, uma fábrica de produzir espetáculos e, se você joga direitinho, respeita a tradição, é humilde o suficiente para querer crescer e querer aprender para se tornar uma estrela, ele se torna um lugar fascinante. Primeiro, porque você vai residir em uma cidade de primeiro mundo, pra frente; segundo, porque tem o dinheiro pra fazer produções de 5 milhões de libras. Sem contar o repertório, que é robusto, com artistas do mundo todo. Se tivéssemos que sonhar e inventar um lugar ideal para um artista, inventaríamos novamente o Royal. Ele foi essencial na minha caminhada em me tornar um protagonista
Nesse contexto, você teve a chance de interpretar praticamente todos os grandes protagonistas das peças clássicas. Qual foi o mais desafiador e com qual você mais se identificou?
É engraçada essa sua pergunta porque sempre tive a característica de um bailarino alto e esguio, com muita dinâmica de giros e saltos, todos os elementos evidentes para assumir papéis de príncipe, conde e aqueles protagonistas mais óbvios dos grandes balés tradicionais. Assim eu comecei e fui ganhando chances. A primeira foi como o príncipe da Bela Adormecida, depois eu fiz o Solor, no La Bayadère, em seguida Albrecht, em Giselle, que eram os de mocinho da história. Porém, a partir dos 30 anos, comecei a receber papéis mais dramáticos, como Eugene Onegin (Onegin), e o Rei Leontes (Conto de Inverno, de Shakespeare), todos esses balés em que fui me surpreendendo com a minha própria capacidade dramatúrgica e com o lado mais obscuro da interpretação. Eu desconhecia essa habilidade em mim porque sempre fui muito solar, um bailarino em busca de hope and love, então a idade me deu a chance de acessar esses novos lugares, e perceber que tinha muito talento para eles. Minha carreira foi se tornando mais madura e eu fui amadurecendo nos papéis, nos personagens. Hoje, sinto que esses papéis mais dramáticos viraram a minha marca nos meus últimos anos lá. Acho que um que me acompanhou muito e que muitas pessoas me viram foi Onegin, do John Cranko, que é um papel dos mais importantes de dança das companhias de repertório. E eu acho que um outro é o príncipe Rudolf em Mayerling, que é um balé muito importante na Inglaterra, porque o coreógrafo é o mais importante da casa, o Kenneth MacMillan. Ambos são balés em que o protagonista é vilão, em que a história, superficialmente bonita, bela e plástica, irrompe no drama, na morte, na tragédia. Curiosamente, foram os papéis da minha fase madura que se tornaram a minha assinatura.
Como era a sua rotina em Londres na época da companhia, e a sua relação com a dor?
Era uma vida basicamente de e para o teatro. Acordava, tomava café e ia para o teatro, onde passava o dia inteiro. Às vezes, saía para algumas reuniões e, às vezes, tinha os nossos espetáculos à noite. Sobrando tempo, ia em alguns eventos sociais, algo que é bem importante por lá. Mas era muito uma vida de trabalhador das artes. E, com tanto teatro, vem muita dor, claro. Até no filme que fizeram pra mim na HBO tem um capítulo que se chama Dor, de tão presente que ela é no meu caminho e no dos bailarinos profissionais. Vejo a nova geração, artistas que têm por característica comunicar tudo, o tempo todo, no mundo digital, e me pego pensando que, se alguém quer ter sucesso com dança de alto rendimento, o que significa ter duas profissões em uma — atleta e dançarino —, entendo que isso só vai acontecer se você aceitar amar o seu processo, a sua reabilitação e aprender a lidar com as imperfeições, não apenas com a perfeição. A profissão de bailarino é esse processo tortuoso, aceitar que, talvez, você nunca estará contente o suficiente consigo mesmo. A maior parte da jornada será de dor e desconforto, porque as posições que nós impomos ao nosso corpo ele não foi feito para realizar. Se você não for capaz de aceitar um processo lento, doloroso e de muita dedicação, então esse não é um futuro para você. Por outro lado, há muita satisfação que advém do reconhecimento do público por tudo isso. É uma arte que lhe permite voar sem asas, e você a realiza sem depender de nenhum adereço ou aparato tecnológico. Receber aplausos somente por aquilo que você realmente é, pelas suas habilidades, resulta em um sentimento mágico. Em um mundo em que as máquinas são cada vez mais as estrelas, poder ser reconhecido pela sua capacidade de se mover é algo único. E a dor sempre acompanhará a busca pela perfeição.
Depois de tantos anos fora, você abriu o seu estúdio no Rio de Janeiro. Como tem sido esse retorno e como você enxerga o cenário da dança no Brasil?
Estou bastante feliz. Sinto que não estou completamente inserido no mercado, porque o meu estúdio tem uma pegada bem diferente do que há. Vejo que continuamos muito ricos quando o assunto é talento de bailarinos, de alunos, de professores e coreógrafos. Nós somos extremamente talentosos, e digo isso, até, sem me incluir, apenas analisando os meus colegas que estão aqui, que fazem acontecer e vivem de arte. Mas a indústria da dança talvez pudesse se ajudar mais aqui. Percebo que o artista brasileiro se profissionaliza ao máximo com os sindicatos e as documentações necessárias, porém no seu cotidiano, nas regras e na disciplina pessoal ainda é muito amador. Existe uma vontade de se documentar e ter um papel
para se sentir protegido e respeitado, mas falta o aprendizado dessa disciplina, da seriedade, que é o que o circuito europeu tem bem mais do que nós. Percebo isso mais no Rio. Em São Paulo, a dinâmica me parece um pouco mais clara e organizada. Não falo de forma geral, mas, pela minha experiência, a dança brasileira encara a si própria como algo que existe unicamente para se colocar num palco, juntar plateia, ganhar patrocínio e bilheteria. Eu acredito que a dança pode mais, pode influenciar de forma mais profunda uma sociedade. Sinto que quando descobrirmos as nossas verdadeiras possibilidades, a indústria da dança no Brasil vai se encontrar em um lugar mais legal.
Fala-se muito do esporte como catalizador de uma vida melhor para os jovens, especialmente em uma sociedade desigual como a nossa, mas pouco se escuta da arte, da dança, como tendo esse potencial de entregar uma nova realidade. Qual é o grande desafio que temos na formação de bailarinos de alto nível? O preconceito ainda é uma barreira nesse caminho?
Olha, preconceito é a palavra do mundo, a grande cruz, este grande obstáculo que vem de todas as formas e maneiras. Ainda existe uma mentalidade um pouco antiga e retrógrada que não consegue realmente entender coisas muito básicas, imagina entender que a arte de dançar não tem absolutamente nada a ver com o sexo de alguém. Eu acho que outro obstáculo é essa história de, no Brasil, se seu filho quer fazer balé, bate a preocupação que meu pai teve: “Meu filho quer se dedicar ao balé, mas ele vai trabalhar? Ele vai ganhar dinheiro? Ele vai viver de quê? Ele vai ter aposentadoria?”. Isso tem a ver com a questão anterior. Onde é que a dança está num lugar robusto de uma indústria que se ajuda, que cria empregos, que gera mais oportunidades, que de alguma maneira pressiona o governo? E, ao mesmo tempo, de colocar em ação um governo capaz de enxergar os bem-feitos da dança? Clichê ou não clichê, eu sou um exemplo de que é possível. Nunca me considerei paupérrimo, mas tive inúmeras dificuldades, de pegar ônibus, de comer, e a dança me colocou no lugar que estou hoje, de rodar o mundo e influenciar muitas pessoas. Até meu próprio pai, que nunca tinha entrado num teatro, foi beneficiado, porque a cultura lhe possibilitou novas experiências, aprendeu sobre dança e aprendeu a ver novas realidades. Ele teve acesso às produções, conheceu coreógrafos e pessoas de quem ele nunca imaginaria estar perto, e isso, de alguma maneira, humanizou o meu pai, colocando-o em um lugar de entender melhor inclusive a si mesmo. A minha família toda foi beneficiada à medida que entendeu que novos horizontes são possíveis, a partir do que aconteceu comigo. É impossível negarmos o valor presente nessa mudança de perspectiva.
O potencial da cultura se realiza por completo quando passamos a vê-la não como uma “bolha” voltada exclusivamente ao entretenimento, mas como parte integrada da sociedade, como um pilar educacional.
Com certeza. Se um dia a cultura for tratada como prioridade, como na Alemanha, em que ela é pensada de igual para igual com a saúde e a educação, aí então vamos nos servir dos seus frutos. Essa é a circunstância que devemos almejar.
Qual é o traço distintivo do bailarino brasileiro? O que só ele tem?
Eu acho que é o fato de termos uma cultura popular muito rica. Essa mistura da nossa essência, que tem um DNA da cultura africana, reverbera numa movimentação com mais urgência, com mais suor, mais textura e cores. Uma vez uma coreógrafa falou isso de mim quando estava fazendo uma correção. Eu não estava sendo o mais perfeito do ensaio, mas as cores que eu estava conseguindo trazer estavam dando vida. Foi uma crítica e, ao mesmo tempo, um dos elogios mais interessantes que recebi. Ela disse: “Essa coisa do Brasil, essas cores”. Temos uma textura que vem também dessa liberdade, que é nossa culturalmente, e que levamos para encarar as regras rígidas do balé. Isso é algo único.
Se pudesse definir um legado que gostaria de deixar com a sua trajetória e, agora, com a presença do estúdio em solo brasileiro, qual seria?
Gostaria de deixar a persistência para algo que você ama, algo que conversa com você. Independentemente da sua arte, acho que seria persistência e o amor pelo processo. É isso que falo aos meus alunos, aos meus bailarinos. Se você consegue esse pacto de amar o processo, então você tem a chave para o movimento de estar sempre em busca, sempre em progresso. Até quando errar, vai perceber isso como parte do trabalho. Os resultados, as postagens incríveis, os aplausos, tudo isso é lucro, claro. Mas só será possível se estivermos em busca constante de novos movimentos e novos passos.
O primeiro registro das canções de Luís Capucho, embora só lançado em disco em 2003, aconteceu em um show no Rio de Janeiro em 1995. O álbum, chamado Antigo, apresenta uma das primeiras descrições explícitas do masculino em sua obra. A canção “Amor é sacanagem” afirma:
Felinos têm o desenho do rosto mais belo Que o desenho do rosto dos homens Quanto ao resto do corpo, homens são mais concentrados Quando olho o corpo e o rosto de um gato sei ver Mas quando olho você Com seu corpo concentrado Assim desse modo fico louco, eu sou louco, sou vulgar Sou vulgar no amor O amor é sacanagem Não tem poesia, nem matemática, o amor é magia
A “magia” da transfiguração é elemento fundamental do processo de criação de Luís Capucho. Movido por uma espécie de pulsão do olhar, o compositor tudo transforma por meio dos sentidos, dando relevo à potencial estranheza de todas as coisas. A canção começa com a imagem dos felinos, tão marcados por sua inteligência arisca, sua precisão de movimentos, sua sensualidade espontânea. Ainda que estes tenham o desenho do rosto mais belo, os homens são descritos como “mais concentrados”, em uma caracterização estranha tanto em si como na comparação.
Vejam que, de um lado, o corpo masculino aparece carregado de densidade física e simbólica e, de outro, revela-se o caráter central que a visão da masculinidade ocupa no olhar desejante dessa voz que canta. Declaradamente despido da idealização poética ou da lógica matemática, é por meio dos sentidos aguçados – concentrados – que o real se transfigura. Ou seja, é justamente na vulgaridade (desdobrada entre suas dimensões de banalidade e erotismo) que a magia se realiza.
2.
Além das canções, Luís Capucho também ficou conhecido por seus romances, dentre os quais destaco o Cinema Orly,de 1999. O livro é uma narrativa de evidente caráter autobiográfico, na qual acompanhamos as incursões do narrador-personagem nos cinemas pornográficos do centro do Rio de Janeiro, especialmente o que dá título à obra. Assim, somos apresentados ao espaço e seus frequentadores e assistimos à saga do protagonista em busca de prazer, mas também de um namorado.
A descrição do ambiente comenta os filmes pornográficos que se passam na tela, mas está concentrada no que acontece na contratela, entre as poltronas do cinema. Assim, o sexo eminentemente heterossexual da pornografia (onde homens másculos performam uma sexualidade viril) refrata-se na plateia sob a forma de experiência homoerótica. Nesse jogo de espelhos, evidencia-se o culto narcísico e falocêntrico da masculinidade, que está na medula deste livro e também é tema de destaque nas canções de Luís Capucho.
Já no primeiro parágrafo do texto, o narrador registra seu deslumbre em “ver na tela homens jovens nus com paus grandes, pernas abertas, muito grandes e gostosas, e sacos onde se pressente a umidade e o odor, deixando o nosso peito incandescido e a respiração inflamada”. Em outro momento, afirma: “Antes de beijar um homem, achava que vê-lo nu, aberto, os pelos amaciando a atmosfera, saco e pau escancarados junto ao tufo de pentelhos era encontrar Deus”.
O cinema e o sexo, na tela e na contratela, exibem-se como espetáculo de imagens, cheiros e sensações, que são captados tanto em sua beleza erótica como em sua atmosfera grotesca de suor, penumbra e fumaça, formando um conjunto obsceno em que o horror e a maravilha conjugam-se em vez de se oporem.
3.
O jogo de espelhos entre o que se passa dentro e fora da tela não é o único que se desenvolve no livro de Capucho. Nesse sentido, é fundamental pensar na centralidade do tema da masculinidade para a compreensão de sua obra. Em dado momento de Cinema Orly, afirma-se:
A masculinidade, representada por um caralho, era tudo que eu queria possuir, que eu invejava, que achava bonito, como se eu fosse uma mulher, como se eu fosse uma criança, um anjo, um bicho, uma ave e do que mais gostava era ir ao cinema Orly e, sendo tudo isso, ver minha imagem refletida em sua lagoa, como na história de Narciso, ou de Eros e Psiquê de Fernando Pessoa.
Nessa passagem, ficam evidentes os componentes narcísicos e falocêntricos da representação da masculinidade em Luís Capucho. A centralidade do falo é uma forma de atingir a transfiguração do ser e das coisas, fazendo desse sujeito mulher, criança, bicho, ave e, na projeção almejada, homem, masculino. Não por acaso as citações de Narciso (cujo lago se sobrepõe ao próprio Cinema Orly) ou de “Eros e Psiquê” de Fernando Pessoa, em que um príncipe que sonhava com a princesa descobre, ao final, que “ele mesmo era a princesa que dormia”. O texto de Capucho vai representando, assim, a fruição livre do prazer que conduz o sujeito à sua emancipação, à sua essência.
Já nas páginas finais do livro, o narrador nos conta que, quando criança, observava um rapaz lindo de vinte anos, sobre o qual diz: “Para mim esse rapaz era o símbolo da virilidade adulta e sonhava ansioso que eu completasse vinte anos para, enfim, estar possuído da graça de ser um homem”. E conclui:
Pois o Orly trouxe-me, antes do tempo pensado, essa masculinidade adulta tão esperada, embora não passasse de uma bicha. […] No Orly, não era uma bicha feminina nem masculina. Para mim, esse nada que eu era, a ausência de formação de imagens sensuais no meu espírito era a masculinidade, contribuía para ela meu corpo, minhas roupas, meus pelos, minha voz.
O gênero romance, como nos ensina Lukács, é uma narrativa em que o protagonista atravessa uma jornada em busca de conquistar sua essência. O fragmento acima, posto na parte final do livro, deixa claro que essa masculinidade, definida de modo particular, como um processo a um só tempo interior e exterior, é o ponto de chegada dessa aventura, ainda que as reiteradas incursões no cinema pudessem nos levar a crer, equivocadamente, que o sexo homossexual ou a conquista do namorado eram os objetivos últimos da empreitada.
O livro Cinema Orly é, desse modo, uma representação da homossexualidade masculina mas, sobretudo, da masculinidade homossexual, impulsionada também por um processo de identificação narcísica. Assim, o objeto desejado é também espelho, onde se encaram o desejo de ter e de ser.
4.
O livro Cinema Orly tem uma obra-irmã que liga o Luís Capucho escritor ao compositor de modo mais explícito. Trata-se do disco Cinema Íris de 2012, em referência a outro célebre cinema pornográfico do centro da cidade. A canção-título fala na “moça que faz striptease no cinema íris (…) enquanto homens masturbam-se na neblina do cinema”. Em dado momento, esses homens aparecem assim descritos:
Homens muito gordos, com barrigas enormes Homens maravilhosamente magros e altos Muitos masculinos Muitos femininos Jovens com carisma, com charme Com pernas muito gostosas abertas Aqueles tinham caras de veados Homens com caras cabeludos Homens com caras de bigode Homens com caras travestidos Homens com caras de hospício Homens com caras de mal
A repetição de “homens” aponta para uma multiplicidade adjetiva girando em torno de uma mesma força substantiva. Apesar de opor, em dado momento, os homens “masculinos” aos “femininos” (o que nos dá a dimensão do quanto essa distinção é facilmente compreendida e naturalizada), a canção se empenha no caráter concentrado dos “homens” e na atração que exercem sobre o sujeito.
Descrição muito semelhante aparece em Cinema Orly, reforçando o parentesco entre as duas obras e as duas formas de expressão de Capucho:
Havia homens muito velhos, mancos, com uma das pernas decepadas, muito gordos com barrigas enormes, homens maravilhosamente altos e magros. Muitos masculinos, muitos femininos, jovem com carisma, com charme, com cara de hospício, homens de bigode, de barba, imberbes, antipáticos, nojentos com cara de idiotas, louros, morenos, negros, mulatos, cabeludos, carecas, homens banguelas, fedidos, com nariz grande, homens robustos, mignons etc.
5.
Voltando ao disco Antigo, a canção “Mamãe me adora” faz um curioso jogo edipiano de espalhamentos, em que mais uma vez se exercita o caleidoscópio descritivo de homens. A letra começa com “Mamãe me adora/ profundamente ela me quer/ mais do que quis outros homens que ela também amava/ que ela também devorava”, e se desenvolve na constatação: “eu também sou feliz com homens/ como os que amou mamãe”, para chegar a uma lista extensa de contemplação do masculino: “homens que são cheios de tensão/ como diabos”, “homens que são como aparição/ como nossa senhora”, “homens que são belos e bons, sentados, homens em pé, fortes, feios, gordos, galantes, machos, motoristas, rudes, ruins… delicados, generosos, gentis, bravos, brutos, crespos, lisos, presos, soltos, suaves, sofisticados, simples, soldados, ciganos, pedreiros, patrões”.
Em um arco entre o diabo e a santa, o olhar sobre o masculino se multiplica novamente entre diversos adjetivos, todos unificados e conjugados em uma dimensão essencial – o masculino.
6.
Outras duas canções de Luís Capucho ajudam a pensar o masculino em sua obra, ambas unidas pelo signo da flor.
A primeira delas, “São flores”, afirma: “os rapazes são deuses pra mim/ que tudo são flores/ os caralhos são flores pra mim/ são deuses com flores/ são flores pra mim”. Novamente, observamos o culto falocêntrico que atravessa Cinema Orly , reverberando a citação em que o “caralho” aparece como representação da masculinidade. Outra vez, também, a masculinidade aparece complexificada pela aproximação com uma atmosfera lírica e sagrada, conduzindo à beleza e à contemplação. É notável, no fragmento, o apelo à imagética clássica, que conjuga a natureza e o divino, interseccionada pelos corpos expostos e bem-feitos dos deuses entre flores.
Isso nos leva à canção “Homens flores”, parceria com Marco Sacramento, em que se afirma:
Os mundos são mais belos Quando olhados pela janela E as colinas estão repletas de homens fortes E eu olho pra elas porque elas são o mundo inteiro E eu olho pra eles porque eles são o mundo inteiro E eu olho pra elas porque elas são meu terreno E eu olho pra eles porque eles são meu terreno Onde eu vou plantar Onde eu vou plantar Flores homens Homens flores
A imagem, posta em tela pelo quadro da janela, apresenta colinas repletas de homens fortes, em mais uma pintura verbal de natureza classicista. A arquitetura da composição é igualmente equilibrada, em frases límpidas e inversões de referentes que provocam todo um efeito. O sujeito olha para elas, as colinas, e para eles, os homens, conjugados como síntese do mundo inteiro e como “terreno” onde se podem plantar “flores homens”, “homens flores”.
Aqui, feita a aglutinação entre homem e natureza, os termos “flores” e “homens” são explorados em suas dimensões substantivas e adjetivas, reivindicando o paradoxo do masculino – símbolo de virilidade e beleza, força e delicadeza, estranheza e alumbramento. A masculinidade, posta assim ao espelho (flores homens/ homens flores), funciona como objetividade e transfiguração, visão exterior e revelação interior, unidade e multiplicidade.
O termo patriarcado se refere à cultura influenciada e dominada exclusivamente pelo homem, simbolizado na figura do pai. No mito de criação da igreja católica, Deus criou o homem e, a partir dele, a mulher, gerados com assimetria sexual e distintas atribuições. A função da mulher era fundamental à espécie, através da procriação. A divisão de papéis baseada nas diferenças biológicas era, dessa forma, funcional e justa.
E se Deus ou a natureza havia criado essas diferenças, ninguém poderia ser responsabilizado pela desigualdade.
A biologia masculina proporcionou maior capacidade física e agressividade, destacando o homem como melhor caçador e, por suas destrezas com armas, melhor guerreiro. Como chefe de família, passou a delimitar suas terras, cuidando do plantio, da colheita e da estocagem para a defesa e proteção de seus descendentes. Marca registrada da agricultura antiga, o patriarcado se tornou a base da civilização ocidental de diferentes maneiras, sendo a força responsável pela organização, ordem e produção e, assim, a subsistência. Ditou modelos de masculinidade e feminilidade, fortalecendo um padrão monogâmico, heterossexual e de expressão da individualidade.
E no silêncio da noite, fortaleceu a repressão da sexualidade, trancando a sete chaves os desejos mais íntimos de uma parcela da humanidade.
Os argumentos religiosos do século XIX foram substituídos pelos embasamentos científicos da teoria Darwiniana, que postulou a supremacia da sobrevivência da espécie sobre a autorrealização individual, ressaltando o papel da mulher na procriação e maternidade. Sigmund Freud destacou a ausência do pênis e a busca pela compensação na psicologia do feminino. Posteriormente, a biologia social considerou a maternidade não apenas um papel socialmente designado, mas, também, o que melhor se encaixaria às designações físicas e psicológicas da mulher. Assim, o patriarcado, atendendo a necessidades econômicas, políticas e sociais da civilização, se perpetuou através da história, reforçando a supremacia do masculino.
O progresso visível trazia benefícios a muitos, mas as insatisfações ocultas viriam a provocar grandes prejuízos a todos.
Com a revolução industrial, as mulheres foram obrigadas a trabalhar para sustentar suas famílias, o que lhes possibilitou um status financeiro e o acesso à educação. O modelo de casamento e das leis da era agrícola passou a ser questionado, e as mulheres começaram a se organizar para participar de marcos culturais e políticos, iniciando a luta pelo direito ao voto.
Após as consequências nefastas da Segunda Guerra Mundial, “a regra do pai” passou definitivamente a ser contestada pelas mulheres. Com o advento da pílula anticoncepcional, a gravidez passou a ser uma opção da mulher na obtenção do prazer e no controle da natalidade. Os homens foram favoráveis a essa conquista feminina em favor da sexualidade compartilhada, apoiando, inclusive, a oposição ao patriarcado. Isso pouco adiantou, pois a luta contra a dominação masculina já estava iniciada, incluindo a liberação das leis do divórcio e contra os estereótipos sexuais femininos.
As insatisfeitas se armavam.
Nos anos setenta, a contracultura, o movimento dos direitos civis e antiguerra deram força à criação do Movimento da Liberação da Mulher. O patriarcado desmoronou sem que o homem pudesse perceber o que estava acontecendo. No século XX, as estratégias masculinas de acasalamento foram desconstruídas, assim como o modelo de dinâmica sexual entre homem e mulher. O movimento feminista exigiu uma mudança nas regras de conquista, sem oferecer novas. O sexo casual e a monogamia em série se tornaram direito de todos. O casamento como um sistema designado a uniões permanentes fracassou, e o divórcio se tornou inevitável. “Até que a morte nos separe” era tempo longo demais para se esperar.
A raiva domina. A guerra começa.
A era da tecnologia abriu espaço para o relacionamento virtual: seguro, sem dor e sem contato. Para os que ousaram passar para o mundo real, os aplicativos de encontro determinaram as regras de onde, quando, como e com quem. Os homens se tornaram inseguros; as mulheres, impositivas. Nasceu a identidade de gênero. Mas o patriarcado, ainda que disfarçado, sobreviveu. Na mente e na atitude masculina e lá, muito no interior, da mente da mulher.
Todos estão perdendo: arquétipos do masculino
Carl Jung, renomado psiquiatra e psicólogo suíço, reconheceu o poder psíquico dos arquétipos, os quais residem no nosso inconsciente coletivo. São traços internos comuns a toda a humanidade, cuja forma de expressão é influenciada pela nossa experiência individual e cultural. Diferentes arquétipos estão subjacentes à experiência humana, mas alguns são fundamentais, pois abarcam expressões importantes e comuns ao nosso funcionamento mental e emocional. No universo masculino, três arquétipos se destacam: o soberano, o guerreiro e o sábio.
O arquétipo do soberano traduz o senso de finalidade e direção no mundo, a busca das melhores decisões para viver a vida, a carreira, como administrar o espaço ao redor, seja familiar, profissional ou social. A energia natural expressa é a liderança, a decisão, a maturidade e o poder; há sabedoria compassiva e disponibilidade para ajudar no amadurecimento alheio. A expressão deste arquétipo é quase inexistente no mundo atual.
O arquétipo do guerreiro possui atributos de nobreza, justiça e proteção a algo de grande valor. Um exemplo desse arquétipo está nos samurais, que, sob o comando de um senhor corrupto ou imoral, procuravam um novo mestre. Esse servidor necessitava de um chefe que o controlasse e o enviasse a missões de proteção a pessoas e ao território. Esse arquétipo é hoje melhor representado pela energia masculina que parte para a ação no mundo, define limites, realiza tarefas e alcança objetivos, ou seja, o trabalhador.
O arquétipo mítico do homem sábio tem origem nos magos do mundo antigo e nos brâmanes indianos, cuja grande motivação é a solução de problemas. Domina todos os tipos de pensamento, o racional, o lógico e o criativo, servindo como o conselheiro ou consultor do líder. Há uma atração pelos desafios intelectuais, mas sem muita consideração pelas consequências emocionais. É uma apresentação bastante comum, nos dias de hoje, no mundo financeiro e no desenvolvimento tecnológico.
Como os arquétipos do masculino se relacionam com o mundo atual? A mudança profunda de valores e crenças do mundo moderno e os novos posicionamentos de gênero tornaram o homem atual indefeso. Por procurar respostas fora de si mesmo, ficou ressentido e foi à forra. Desconectou-se de si mesmo e de suas emoções e personificou padrões do masculino que o distanciaram das forças psíquicas em sua totalidade. Resta a este homem olhar-se no espelho e ver com profundidade o que reflete, exercitar plenamente suas capacidades emocionais e reestruturar sua nova imagem perante uma sociedade que busca por igualdades e sofre para se reconstruir.
O trabalho Chiaroscuro nasce em 2019, quando iniciei meus estudos sobre as questões de gênero, e conheci a drag queen brasileira Rita Von Hunty, (Guilherme Terreri), hoje um(a) grande amigo(a) e fonte de inspiração deste trabalho. Rita é conhecida por suas aulas e palestras, uma marxista apaixonada pelo que faz, que acredita na educação, cultura e arte como forças motrizes na construção de um país melhor e mais evoluído.
Foi Rita quem me aproximou da cultura drag queen. Nossas conversas despertaram o meu interesse por essa arte, até que recebi o convite para conhecer um grupo formado por Alexia Twister, Mercedez Vulcão e Thelores, durante os ensaios para uma peça de teatro. Sim, ao contrário do que eu imaginava, elas não estavam fazendo show em uma casa noturna, mas em um palco de teatro revelando seus traumas. Nesse momento, percebi que os nossos mundos artísticos conversavam e que eu precisava retratar e mostrar ao mundo o que eu senti ali como uma mera espectadora. Essa experiência não poderia ser só minha, ela deveria ser registrada pelo meu olhar, para que outras pessoas pudessem sentir o que eu senti vendo aquele espetáculo: orgulho, sim, orgulho de ser humano.
Ali, na plateia, enquanto observava o feminino ser exaltado e elevado à última potência, em dado momento parei de pres- tar atenção e me perdi em pensamentos. Comecei a traçar pararelos entre o que eu via e o que eu sentia, e foi quando tive um flash. Meus olhos passaram não mais a ver, mas a perceber que a alegria de viver está dentro de nós. Soube que a fotografia seria a melhor forma de escrever esta história.
Chiaroscuro é uma série dedicada a exaltar a arte drag brasileira e a mostrar que a sombra que permeia a vida de seus personagens não faz parte desta arte, mas possui luz própria, e esta luz interior foi o que busquei retratar nessas fotos.
Infelizmente, a sombra é algo presente na vida de uma drag queen, uma vez que vivem sempre à margem da sociedade. Por muitos anos, a arte drag precisou se esconder no Brasil, travestida de ilusionismo, existindo sem ser notada, praticando uma invisibilidade que fazia parte do seu cotidiano. Sem permissão de serem vistas montadas pelas ruas, só lhes restava existir não existindo.
Os anos passaram, mudanças aconteceram, mas a intolerância pelo diferente se mantém presente, colocando em questão a própria dignidade dessas pessoas. O presente trabalho visa evidenciar estas artistas, colocando-as no lugar em que merecem, no palco da sociedade e da vida. Colocando-as entre nós.
As fotos que seguem servem de instrumento ao talento de Alexia, Mercedez e Thelores.
Vou começar nossa conversa pensando no intervalo do seu último disco até este que sai agora. Entre 2015 e 2017, você vinha lançando um álbum por ano. Houve aí uma espécie de espera…
Eu queria fazer um disco por ano e eu vinha fazendo, porque era o que eu podia fazer. Quer dizer, é relativamente fácil gravar, e eu sinto que a cada disco eu ando para frente, mato um fantasma. E uma coisa que eu fui percebendo – e que hoje é bem claro para mim – é que gravar um disco, publicá-lo, é sobretudo um processo terapêutico. Então, de fato, tiro coisas de mim e ponho nas canções. Quando ponho para fora, de alguma forma dou uma resolvida nelas. Só que algumas coisas aconteceram aí nesse tempo. Uma foi que eu defendi meu doutorado sobre amor e erotismo nos poemas e canções de Vinicius de Moraes, lá na Letras [da UFRJ]. Outra coisa é que antes eu não tinha trabalho com horário fixo, e agora estou trabalhando no Instituto Moreira Salles há dois anos. E mais: esse disco está gravado há muito tempo. Eu já podia ter lançado, não sei, talvez até um ano depois do anterior, mas foi quando teve a tese, quando um montão de coisas começaram a acontecer, e aí veio a pandemia. É um pouco crise dos 40 também, tudo junto, sabe? E esse foi o motivo pelo qual ficou só para agora, com um intervalo maiorzinho.
Você também lançou um single recentemente, “Canção do amor impossível”, que é lindo. E eu nem sabia que o Bad Bahia já vinha sendo gestado há mais tempo. Fiquei pensando que a divulgação do single e do álbum, embora eles falem de universos muito diversos, também ajuda a revelar a complexidade do seu trabalho, uma unidade multifacetada que as suas músicas abarcam. Fiquei pensando de a gente conversar um pouco sobre isso e um pouco sobre essa experimentação – experimentação não no sentido de um certo “fetiche do novo” vanguardista, mas um impulso que percebo em realizar experiências intensas, em tentar se aproximar/apropriar criativamente de um repertório que é vasto, que vai do Guinga ao Antonio Cicero, do experimental ao cancioneiro popular brasileiro, e, ao mesmo tempo, há uma busca por fazer vibrar sua música de uma forma singular. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso, sobre esse diálogo entre invenção, recomposição, inovação e comunicação na sua música.
Eu gosto muito de experimentação, inclusive a formal, ligada às vanguardas. Agora, para mim, ela vai além disso. Ela acontece a cada vez que você faz uma canção, no sentido de que cada objeto, por sua singularidade, vai ter uma forma só dele, que não sabemos qual será antes de começar a fazer; não tem uma forma predefinida. Mas outra coisa que eu também busco é comunicar. Gosto de estender a mão – uma vez eu li em algum lugar um autor que estabelecia uma distinção entre Matisse e Picasso, dizendo que Picasso fazia uma arte mais do choque ou do confronto e Matisse estendia mais a mão ao público, apesar de ambos serem igualmente vanguardistas. Então, dentro dessas tipologias, eu sou mais o que estende a mão. E realmente gosto de muita coisa diferente. Essa “Canção do amor impossível” é mais antiga ainda do que o Bad Bahia; eu musiquei um poema do Antonio Cicero e chamei o Guinga para tocar. São universos muito diferentes, os dos dois, e gosto de pensar que, no fim das contas, só foi possível juntá-los porque tinha eu ali como ponto de convergência, que gosto tanto de um como de outro. Essas subdivisões, acho que são motivadas mais por questões sociais e antropológicas, de grupo, de cena etc.; elas sempre me interessaram muitíssimo pouco.
Eu queria voltar um pouquinho à letra, ao seu trabalho como letrista e como intérprete. No caso da “Canção do amor impossível”, você faz o trabalho de composição da música para um poema do Antonio Cicero. Já no Bad Bahia, você faz todas as composições, letra e música. Eu queria ouvir você falar um pouco sobre essa questão, sobre seu trabalho como letrista. Eu percebi que no Bad Bahia suas letras se expandem mais em alguns momentos, você tem uma espécie de avanço nesse trabalho de composição – não sei se é falar de enriquecimento, mas de variação, talvez.
Eu acho, sem dúvida, que é o disco em que eu sou melhor letrista – melhor no sentido de recursos poéticos, de liberdade poética, liberdade de associações, de criação de imagens e sons com as palavras. Fiz as canções todas num mesmo período. Você deve ter percebido que elas conversam entre si. Pedaços de letra e questões ficam se repetindo entre elas, tanto que eu as tenho como uma única canção continua, sabe? Como eu fiz umas próximas às outras, ia fazendo às vezes com os mesmos acordes. Então, elas não têm só um traspassamento de letra e temas, mas também a mesma paleta de cores. Isso também foi sem querer, porque não faço as coisas de propósito; não conceituo antes, conceituo durante e depois. Acho que criar conceito antes quebra muito a história, a coisa acaba ficando um pouco amarrada. E também, nessa época, eu estava assistindo a uma aula de poesia portuguesa com o Jorge Fernandes de Silveira lá na Letras, aí eu conheci a Luiza Neto Jorge, que amei de paixão (inclusive, tem um versinho dela lá em uma das canções), e reli poemas do Herberto Helder, o que foi incrível, porque eu estava nessa onda de uma sensualidade mais hermética – tinha enchido o saco de interpretar e encontrar sentido nas coisas e preferia aquilo que não fazia sentido, mas vibrava de um modo misterioso, ou em outros termos, de uma experiência que atingia mais os sentidos e menos a cognição. Muitas coisas desse disco eu não entendo; foi uma coisa de processo de criação, as palavras vão vindo, né? Elas se encaixam, pelo som, vêm vindo, vão soando bem e, às vezes, você nem sabe o que aquilo quer dizer. Acho que, de fato, houve um avanço nesse disco. São minhas melhores canções, apesar de não serem exatamente as de que mais gosto.
Eu ia fazer uma pergunta sobre isso mesmo, sobre essa questão da busca do entendimento, porque tem um verso que fala em “negar a razão, salvar a paixão”. Essa é uma busca que se repete nas canções: tentar entender o outro, encontrar o outro; o outro se perde, você volta a interrogá-lo. Então, fiquei me perguntando: há lugar para a razão nessa busca por entender ou é por outra via que a coisa caminha?
Eu sou muito racional, então acho que sempre tem lugar para a razão – só que uma razão muito embebida de sentimento, de afeto, de mistério. Não é uma razão absoluta, é uma razão que conhece seus limites, mas sempre está presente, a razão sempre está.
Você lê e estudou poesia, fez o doutorado sobre Vinicius de Moraes e trabalha no Instituto Moreira Salles com literatura. E aí eu fiquei observando esse gozo da materialidade das palavras, não só nas letras, mas também na sua dicção; tem um lance na maneira como você entoa as canções que também está relacionado a isso. Eu queria que você falasse um pouco sobre essas linhas enredadas da literatura e da música.
Antes de tudo, eu era melodista. Nunca fui músico, que conhece nota e tal, mas eu fazia melodias de que eu gostava, e fazia letras que detestava. A certa altura, fui fazer aula de ouvinte na Letras; conheci o Eucanaã [Ferraz], que foi a primeira pessoa com quem eu assisti a aulas lá. Achava que a poesia ia me ajudar a fazer letra. Mas, depois, esqueci isso e fui lendo e conhecendo poemas e poetas. Aquilo ficou dentro de mim, e teve uma época em que percebi: “poxa, eu já sou capaz de julgar se um poema é bom ou não”. Porque ler poema é uma coisa muito difícil. Eu já tinha ganhado alguma experiência, lido um tanto de coisa. Mas é tudo muito não planejado. Você vê, fiz um doutorado em poesia brasileira; nunca pensei que pudesse fazer isso. Ainda me acho muito outsider dentro da universidade e da literatura mesmo. O que eu sabia é que queria fazer canção. No meu primeiro disco, eu já sacava que as letras vinham um pouco pelo som. Fui aprendendo a me soltar, a me deixar levar – aí, pronto, fui curtindo muito a materialidade das palavras. Pensando agora, tem um reencontro do melodista primeiro que eu era, com o som das palavras, que sou mais capaz de manejar agora. No meu disco anterior, tem uma canção que se chama “Sou frágil” e numa parte diz “doida de prazer”; eu brinco com a pronúncia, e fica parecendo também “doída de prazer”. Quando eu saco que tem esses duplos sentidos, eu curto. Isso acontece algumas vezes.
Outra coisa que eu ia perguntar é sobre o trabalho com os músicos. Como foi a produção e a gravação dos discos?
Os dois anteriores eu gravei com uma banda que se chama Exército de Bebês, que são quatro músicos incríveis. O primeiro com eles, que foi meu segundo disco, Babies, foi um disco de banda. A gente se reuniu, gravou, ensaiou um pouco e gravou. Eu gosto muito desse disco. O segundo com eles, que é o meu terceiro, aí já teve orquestra de cordas, teve também sopro, porque eu tinha um pouco mais de dinheiro, de um edital da prefeitura do Rio. A gente foi gravar com o Chico Neves, que é um produtor renomado e incrível, que mora perto de Belo Horizonte. A banda toda foi, só que não tinha mais a unidade da banda, ainda que tivesse um pouquinho, mas a gente variou mais os instrumentos. Com o Exército de Bebês, na verdade com todo mundo, é assim, eu gosto de ficar recebendo o som deles; a gente começa a tocar, e eles ficam lá tateando a música, conhecendo, e eu gravo tudo. Aí depois eu ouço em casa e faço a colheita. Monto o quebra-cabeça. O processo com os músicos é esse, ainda que nesse disco eu tenha feito diferente um pouco. Além do Guilherme [Lirio] e do Pedro [Fonte], do Exército de Bebês, chamei o Marcos Lobato, que é uma das pessoas que eu mais amo no mundo – ele tocava n’O Rappa, mas O Rappa acabou, e tem também uma banda chamada Afrika Gumbe, um cara muito bom de swing de música africana, enfim, uma pessoa muito incrível e musical. E a outra é o Marcos Campello, que é um guitarrista que eu amo também e com quem já fiz muita coisa. Ele sempre participa dos meus discos de alguma maneira; a gente gravou muita coisa sozinho também. É muito ligado em música de vanguarda e experimentação. A gente se dá muito bem e eu sou fãzaço dele. O Marcos foi também o produtor musical do disco. Ele alinhavou todos os arranjos de base que eu, Guilherme, Pedro e Lobatinho tínhamos feito. Essa história é até mais longa, esse disco ia ser de voz e violão, mas depois eu conto isso, senão vou ficar falando demais, vai ficar chato.
Agora eu quero ouvir.
É porque eu fiquei com as canções desse disco por muito tempo; elas já estavam prontas. Eu as gravei com voz e violão no celular, ficava ouvindo toda hora, já tinha feito até uma ordem. Mostrei para o Marcos Campello, e ele sugeriu que eu fizesse o disco só com voz e violão. Cheguei a fazer show com ele assim, de improviso. Mas pensei: “não quero gravar voz e violão, porque acho que uma música ou outra não vai ficar legal”. Então decidi gravar com bateria e baixo, e eu tocando violão para manter o clima que estava no início. Só que ficou insuficiente, faltou arranjo. Mostrei as bases para o Campello, e foi ele quem deu um jeito nos arranjos, tocou o sintetizador e a guitarra, tirando uma coisa ali, botando outra coisa lá, regravando alguns baixos para ficar mais numa determinada onda. Ele foi o cara que produziu o disco.
A outra pergunta que eu ia fazer era sobre a capa, que me parece um elemento importante dos seus álbuns. Você vem assim numa sequência de partes de corpos. Tem o seu torso nu no Amarelo, tem o seu rosto metamorfoseado, com os olhos obscurecidos, no Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer, e agora tem essa espécie de fragmento de rosto e de uma garganta – mais oculta do que aparente, explodida, ofuscada. Queria que você falasse um pouco sobre essa imagem.
Desde cedo, eu disse para mim mesmo: “eu quero fazer a capa desse disco”. Eu estava com isso na cabeça, mas não fazia por causa da crise toda. Só que aí a Ana [Rovati], minha amiga com quem sempre tiro as fotos dos meus discos, sabe que eu não gosto de me ver de frente – eu realmente detesto. Então, sempre fazemos alguma coisa para estragar minha cara. Nesse último, eu fiquei muito na dúvida do que fazer. Essa foto que eu usei se parecia um pouco com a capa do primeiro disco, só que eu gostava muito dela, então, um pouco conceitualmente, resolvi a questão, pensei: “vou transformá-la em negativo, porque eu acho legal e porque, de certa forma, esse disco, para mim, é um negativo do primeiro”. Depois, percebi que essa foto quase revela aquilo que está oculto no primeiro, porque no Amarelo corta aqui no pescoço, e no Bad Bahia vem até a boca – quem sabe no próximo eu mostre minha testa? (risos). Essa coisa das partes do corpo talvez venha da vontade de tirar minha cara, embora no primeiro eu tenha tido a intenção de expor o corpo – porque eu tinha muita vergonha, eu tinha uma banda e tinha vergonha até de fazer uma carreira solo, com meu nome na frente; então pensei “vou fazer com meu nome e vou mostrar meu corpo”. No fim das contas, ali não sou eu, né? Isso aprendi. É meu nome, mas não é meu nome. Tudo que está ali é um personagem de mim mesmo, como meu filho disse uma vez – ele fez uma coisa com carrinho e eu disse ”não faz isso”, aí ele falou assim “mas foi o carrinho”, e eu perguntei para ele “mas quem está dirigindo o carrinho?”, e ele respondeu “é o meu outro eu”. Então é isso, nessa exposição impessoal que acontece com a canção, são meus outros eus que estão dando pinta.
Fiquei pensando também sobre a capa: “é uma garganta, que é por onde passa o som, mas um som ainda antes da diferenciação e do fonema” – tem muito disso no disco, não é?
Que bonito isso, poxa, bonito. Aí já me faz até gostar mais da capa, porque é verdade mesmo. Bonito isso que você falou, adorei.
Quero perguntar agora sobre o nome do disco, Bad Bahia. Sobre a paisagem geográfica, afetiva, musical, tem tanta coisa nesse nome…
Posso ser muito sem graça nessa resposta. Quando fiz a primeira música desse disco, ela se chamava “Bad Bahia”, porque logo no início fala assim “eu ria quando me dizia para evitar as bads”. Sempre dou um nome qualquer quando organizo no Google Drive esses arquivos – de muitos álbuns que tenho na cabeça, alguns que já fiz e outros que ainda não fiz. Eu organizo tudo lá em pastinhas e dou um nome para cada pastinha. Escolhi Bad Bahia porque tinha que dar um nome, e logo gostei dele. Eu acho muito bom esse nome, adoro.
Sonoramente é bom.
Sonoramente é bom. E essa é a resposta no fim das contas: gosto do som. Tentando entender depois o nome, percebi que esse disco tem três lugares: São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Isso eu percebi depois, e achei legal.
Há uma espécie de tensão que acompanha a sonoridade da sua voz. Uma espécie de jogo. A palavra não é nem “jogo”, mas uma relação tensa entre essa voz que é suave e que ao mesmo tempo se descasa em algum momento e se torna uma voz que pode ser áspera. E eu fico pensando que isso fala muito do mundo que você criou com as suas canções, da sua “mitologia pessoal” – expressão sua que eu li em algum lugar –, e fala muito sobre isso, sobre esse outro eu.
Minha voz é suave. A certa altura, enjoei dela – não que eu a amasse antes, não tenho muito isso; eu tenho prazer em cantar, isso sim. Mas aí teve um momento em que enjoei da minha voz e fui perdendo o prazer de cantar. Não sei se era o timbre ou o jeito de cantar. Não sei como que começou isso. Então, quando fui convidado a gravar uma canção do Cazuza, pela primeira vez fiz uns vocalises, me soltei mais, era eu mesmo, o que eu gostava, sabia e podia fazer. Enfim, me soltei musicalmente. E gostei dessa liberdade que me dei. Acho que eu ficava muito contido, não me permitindo errar, desafinar. E aí eu fui fazendo isso para sempre, desde o primeiro disco. Tinha uns gritos, tinha até muito grito. Pode ser que seja o desejo de criar um contraste com a minha voz, que é muito melíflua. Eu gosto desses arranhados, eu gosto do ruído. Então, já que eu posso ser tão afinado, fui buscando desafiná-la de um modo de que eu gostasse. Porque eu detesto muita afinação, sabe? Por exemplo, a cantora que eu mais amo no mundo, a Nana Caymmi, semitona bastante. E o que faz ela ser linda, maravilhosa e a maior cantora do mundo é isso. Mas ela semitona lindo! Ninguém desafina como ela. Então, essa separação de afinação e desafinação, para mim, é muito dura. Eu gosto de som, e o som para ser bonito tem que ser belamente desafinado. Eu também frequentei durante um tempo a Audio Rebel, onde rolava uma ceninha de improvisação livre e de música de ruído. Meu ouvido foi deseducado à última potência ali. Para quem cresceu ouvindo bossa nova e canção brasileira em geral, tudo muito afinadinho, afinadinho com dissonância, mas enfim, tudo muito afinadinho, eu me deseduquei bastante, e fiquei com uma alta tolerância à desafinação. Percebi isso em situações em que alguém dizia “ah, aquilo ali tá desafinado”, e eu falava “não, não ouço desafinado, para mim está ótimo”. Fui relativizando afinação e desafinação. Hoje penso mais em termos de que um som soa bem ou não, mais do que se está afinado ou não.
O disco tem muito ruído. Ele começa com ruído e termina com ruído. Tem pigarro, respiração, buzina; isso fala muito do som do disco também.
Desde o meu disco anterior, eu peço para as pessoas que estão gravando o disco deixarem os ruídos, não tirarem depois na edição. E eu peço para gravar com um microfone condensador, que é muito mais sensível, e propositalmente canto muito perto dele. Então, tudo que é ruído da boca e de baba imprime no som. Isso é intencional; eu gosto que isso esteja ali. Porque não gosto nada de som HD. Detesto. Acho que a sujeira está no centro da vida. Se não tiver sujeira, impureza, não fermenta. O Marcos Campello foi também grande responsável pelos ruídos desse disco.
O corpo tem uma presença muito marcante nas suas canções. São muitas experiências do corpo: que transita, dança, goza, sofre. Em muitos momentos, parece que Bad Bahia se banha mais das inquietudes do corpo do que outros discos seus. Em “Ciúmes”, a gente ouve: “cada um tem seu lugar/ no corpo do outro no ninho da pessoa/ eu, que lugar tenho no seu?”. Em Corpos são feitos para encaixar e depois morrer, a carne triste já começava a se insinuar. Agora, ainda mais esse corpo é dúvida, angústia. Tem aquele verso do Bandeira: “Os corpos se entendem, mas as almas não”. O corpo escapa à alma. O corpo de Bad Bahia se dobrou às angústias do espírito? Ou o corpo deste álbum pode resistir de alguma forma ao desencontro?
Não sei (risos). Eu acho que pode – quer dizer, tem que poder. É tanta coisa… O sexo é uma alegria, mas ele pode ser muito triste também. No fim das contas, o sexo nunca é só corpo. Precisa ter algo além de corpo – as pessoas se entendem. É claro que podem só transar sem dramatizar ou querer viver juntas, casar etc. Mas são corpos de pessoas. Não são simplesmente dois pedaços de carne, entende? Dois pedaços de carne não se entendem. No fim das contas, o grande mistério do sexo é que ele é ao mesmo tempo muito profano, baixo, reles, e absoluto, sagrado. Rolam umas energias muito atravessadas. É uma questão muito complicada essa coisa do sexo – a começar que de uma transa pode nascer gente.
O disco tem um tom muito melancólico. Tem uns momentos em que as canções doem. Mas tem um verso que me chamou atenção logo na primeira faixa, que é “melancolia que me resta pra renascer”, quase pensando em uma solução para a superação da bad. Eu fiquei pensando: como a alegria participa desse Bad Bahia?
Eu sou pela alegria, sabe? Sou muito melancólico, sempre fui. Mas descobri que a melancolia é essa moeda de duas faces. E eu escolhi a alegria, apesar de difícil. Atualmente, mesmo, eu estou tendo que fazer muita força, muito esforço, para aderir a ela – digo, como modo de vida, modus operandi, sabe? Eu sou de escorpião. Não entendo muito de signo, mas tenho uma amiga, a Rita, que também é de escorpião, e ela disse que o escorpião é o signo que renasce. Então isso ficou na minha cabeça. É verdade que eu estou querendo renascer sempre.
As letras são muito melancólicas, o corpo muito angustiado, mas em algum momento é como se a sonoridade abrisse um espaço para esse corpo pulsar, para uma certa alegria. Então, às vezes a letra está falando de um desencontro, mas é como se a música ainda tivesse essa possibilidade do renascer.
O canto é sempre alegre. O que é bonito, por exemplo, no blues. Aquilo tudo é só tristeza de amor, só que, quando você canta, é alegria do corpo. Não tem como não ser. O canto transforma a dor. É saúde do corpo. Então, você pode estar cantando a maior bad, só que aquilo ali é seu corpo reagindo em ato, com máxima vitalidade. Talvez venha daí uma espécie de exorcismo.
O disco é muito habitado pelo mundo pequeno do encontro íntimo. Mas tem um mundo que é o lado de fora, que às vezes aparece. Está em “útero mundo estúpido, escuro, desde o fim”, em “Bad Bahia”, e, em “Você não sabe o que eu sofri”, tem bastante mundo, tem miséria, “famílias morrendo de fome”. Que mundo a gente entrevê nesse Bad Bahia? E como, de alguma maneira, esse mundo miserável que a gente está vivendo participa dessa composição?
Eu acho que é menos pontual e mais a miséria do mundo desde sempre. É uma tensão que não cessará nunca entre um hedonismo e as mazelas do mundo que estão à espreita. Eu tendo a ser muito individualista. A política institucional me interessa muito pouco, porque não tenho nenhum alcance. Votar nos governantes é uma democracia insuficiente, na qual não acredito, ainda mais se pensarmos em todo aparato técnico e ideológico que criam as fake news, financiamento de campanhas etc. Mas sou muito político e atuo na micropolítica dos meios onde circulo, onde consigo intervir de alguma forma. Então, é por isso que eu, muito lucidamente, não participo dos grandes debates com intuito de intervir, de ação.
A passagem de uma canção a outra é especialmente significativa no disco. Ou porque desloca a sonoridade em que o público tinha mergulhado na faixa anterior ou porque contribui para a construção de uma certa narrativa costurada entre as faixas. Fiquei pensando como é que seria isso no universo dispersivo da circulação digital, em que a pessoa pode comprar uma faixa só ou ouvir canções, de álbuns distintos, sugeridas por algoritmos.… Como é que você vê isso?
Eu não sei muito como as pessoas ouvem. Mas eu ouço álbum. Ouço o disco do início ao fim. Mas acho que as canções têm autonomia, elas são e podem ser ouvidas separadamente. Apesar disso, eu tento construir uma sequência. Construo menos uma narrativa pelo que está sendo cantado e mais pelo som. Ainda que também misture tudo. Mas acho que as pessoas podem ouvir como quiserem. Não tem problema. Ah, a pessoa está numa festinha e quer colocar aquela música de que ela gosta. É isso aí. Tipo, não vai ser nenhuma desse disco que ela vai colocar na festinha, mas pode colocar de algum outro, menos deprê (risos).
É deprê, mas tem algumas que não são deprê.
Uma, talvez, né?
É. Tem “O grande azul”. Até a “Bad Bahia” eu não acho que seja deprê. Ela é deprê quando a gente mergulha muito. Mas eu acho que ela só cresce. Ela vai te levando de alguma forma. Você vai quase entrando naquele ritual. Crescendo, crescendo, crescendo. Agora, se a pessoa colocar o disco inteiro na festinha não vai rolar.
“O grande azul” é a única que é um axezinho, tem um pouco de sol ali.
Eu tinha notado algumas que parecem solares, mas elas são falsamente solares. Mesmo “O grande azul” é solar e não é. Porque ela termina “sem horizonte”, e aí tem um verso que diz “não sei, mas agora veja onde a gente se achou.” Você lendo, tem a vírgula, mas cantando parece que é “não sei mais agora”, a coisa se altera. É como se o arranjo dissolvesse o tom melancólico, mas ele está lá. Quando você diz que dói, o coro também parece que dissolve a dor, como se tivesse um coletivo que cerca a perda.
Essa música está falando da alegria, que a gente comentou no início. É um verso do Caetano [Veloso]: “apostar na alegria”. E essa música tem muita coisa do Caetano. Esse verso “veja onde a gente se achou” é dele também, da música “Aquele frevo axé”. Nesse disco, eu colei de muita gente. Tem Herberto Helder, Luiza Neto Jorge. Respondendo um pouco àquela pergunta da literatura e da música, não tenho nenhuma relação especial com a literatura. Ela está no mesmo patamar de uma troca de olhares, de uma emoção intensa, de um banho de mar. Aliás, está mesmo em patamar inferior, porque é uma experiência mediada pela leitura. E as experiências de verdade me servem mais para fazer canções do que a leitura propriamente. Da literatura, pego mais as palavras, daqui e dali.
*
Deixa eu só contar uma coisa que percebi com esse disco – porque eu gostei tanto de você, de conversar com você sobre o disco, porque você fez observações que iluminaram muito as canções para mim. Um amigo, o Antônio Sobral, que é artista plástico, foi ver um show meu em que cantei essas músicas só com o violão. Quando o show acabou, ele estava lá fora fumando um cigarro e falou assim, ”ah, eu vi uma bela mulher, eu vi uma mulher linda no palco, de vermelho”. Aí eu pensei “gente, que legal”, porque eu estava de calça jeans e camiseta. E esse papo fez tanto sentido para mim, porque eu gosto muito do mito do andrógino, do Aristófanes, essa coisa do feminino-masculino povoa a minha cabeça, e vejo evidências desse mito o tempo todo. E eu tinha visto recentemente o filme Orlando, da Sally Potter, sobre o livro da Virginia Woolf, com aquela mulher maravilhosa, Tilda Swinton, e lembro de uma cena em que ela está na montanha, já tornada mulher, debaixo de uma árvore de copa enorme, linda, uma senhora poderosa, olhando seus domínios, e tive um sonho em que eu era como ela, e tinha uma sensação de plenitude sexual, era uma plenitude que não existe de verdade, porque no sexo, depois da tensão, vem o repouso, mas era como se o instante da plenitude tivesse congelado e eu tivesse, de uma forma calma, aquele prazer que você só tem no orgasmo, que é o contrário da calma. E essa foi uma sensação muito boa, de saciedade, de serenidade, de plenitude, ou seja, de um retorno à figura do andrógino, redondo, perfeito e completo. E o Antônio falou, então, dessa mulher no palco, e eu logo associei ao meu sonho e descobri que esse disco é, na verdade, essa mulher andrógina. Enfim, queria só contar essa história como um modo de agradecer a você, porque, assim como o Antônio, você também me revelou muito sobre o disco e me ajudou a entendê-lo. Obrigado.
Refletir sobre o lugar do desejo é um gesto que orienta minhas pesquisas desde 2008. Se no santuário queer onde realizei a série Welcome Home (2012) era possível vivenciar outras maneiras de performar as masculinidades, essa não é uma experiência facilmente replicável fora daquele contexto de exceção. Para além desses espaços, as complexidades dos indivíduos não costumam encontrar tanta receptividade. O caldo cultural é infinitamente mais restrito de possibilidades e mostra, de forma evidente, o que acontece como um todo na masculinidade: uma roupa extremamente justa.
A partir do meu envolvimento com o ativismo LGBT+, fui apresentado a diversas questões trazidas pelas mulheres trans, bissexuais e lésbicas — questões essas tão difíceis quanto libertadoras. A exposição a tais discussões contamina a produção pessoal e transforma profundamente os entendimentos e abordagens sobre o desejo.
Uma das lições que aprendi é que o mesmo machismo que tenta castrar as feminilidades também tenta constranger as masculinidades a um espaço de sentidos simplesmente inalcançável, pautado pela busca da potência, da autossuficiência e pelo desprezo por qualquer traço do que entendemos como feminino – a misoginia nossa de cada dia.
O conjunto de imagens apresentado a seguir foi organizado especialmente para esta edição da revista Amarello e busca atualizar esse gesto/desejo em imagens, numa espécie de pensamento em público. O que há no masculino para além do macho, do falo, para além da autodeclaração de potência? Quem cabe aí? Quem efetivamente consegue? O masculino cego diante do espelho, a dúvida ainda entendida como ameaça. Como se repensar sem espaço para o autoquestionamento?
Quero saber sobre as fraturas da masculinidade; o que está partido e segue sem nenhuma pretensão de reparo, o que não tem remendo. Olhar o masculino também como lacuna, como buraco; ver nele a celebração do oco, da falta.
Aqui, a revolução vem da intimidade: é tomar o masculino como descanso – ou, enfim, como uma espécie de trégua.