As imagens construídas pela humanidade, por seus artistas, desaguam com ímpeto na memória. Segurar a lembrança, deter o encantamento, sentir o deslocamento do olhar por imagens, as quais vislumbrem interpretar o mundo, é recurso ontológico do arquivo. O fio que tece e costura os meandros da expressão humana é imaterial, subjetivo, gira em torno da experiência sensível da apreensão sobre o vasto e indomável território dos sentidos. A estética de modo dual permeia as relações não aparentes e as lógicas iconográficas.
O gesto em arquivar, em domar o tempo, o espaço das coisas criadas a partir da arte, deixa-se espelhar pela força heurística, seja do plano da imanência da consciência (desta construção do saber) em conjunção com a fluidez efêmera do encontro com o visível. Seria o arquivo, portanto, a transposição da existência das coisas propriamente representadas, ou mesmo criação do objeto (da cultura, da linguagem, das imagens elaboradas como ideias)? O arquivo discorda de sua própria hegemonia de ser inconteste, de ser o espaço de um tempo remoto. A discórdia é uma particularidade desmistificadora do estado de existência. A primazia da discórdia, nesse caso, faz-se por inconfidência e insurgência ao criar movimentos de articulação em si num tempo novo, num lugar de destreza com fronteiras porosas.
O que poderia e parece ainda hoje fugir do provável, no sentido de pensar um arquivo de possibilidades infinitas pela ideia da constituição de um volumoso atlas, trata-se, no entanto, de algo real. O inexorável e antológico Atlas Mnemosyne (1924-1929), obra capital (e inacabada) do historiador da arte alemão Aby Warburg (1866-1929), reflete essa busca complexa sobre o pensamento visual. Tal como estendesse o braço para Mnemósina, deusa grega que representa a memória e cujo significado é lembrar-se, o historiador criou algo de princípios e proporções legendárias, ligados diretamente a operar a natureza do arquivo através de pesquisa incessante de imagens da arte e da cultura. Suas articulações por colagens e montagens, ao eleger determinadas obras, visavam principalmente discutir as intermitentes perspectivas de significados e símbolos. Vale lembrar o filósofo alemão Goethe, ao refletir que a viagem estética é também a busca de uma herança. No caso de Aby Warburg, ela se dá sem a determinação da palavra, da expressão verbal, mas com uma profunda viagem pelas imagens.
O método do iconologista era claro. Seu interesse era norteado pela arte da Antiguidade Clássica e do Renascimento Italiano. De tal maneira, por meio da execução de vários painéis (até antes de sua morte, deixou um conjunto de cerca de 63 painéis), Aby Warburg agrupou por temáticas um verdadeiro inventário a partir de ícones da história da arte, fotografias, desenhos, signos ancestrais e reprodução de textos. Enfim, elementos visuais para a compreensão estética e criadora da percepção do homem a respeito do mundo, assim como da mente humana ao desencadear-se por associações imagéticas.
Aby Warburg coloca a complexidade do saber por imagens que dialogam diretamente com a memória (seja individual ou coletiva) como o centro, o lugar onde ocorre o processo de criação e, por conseguinte, o pensamento. Para ele, a imagem da memória tem certa fase de guarda consciente nas representações, que se pode definir como “o modo simbólico do pensamento”.
Entre seus tantos desejos intelectuais de investigação, o Atlas Mnemosyne revela, em seu incansável colecionismo hermenêutico de imagens – por associações, aproximações, semelhanças e diferenças –, narrativas simbólicas pela estética. As reproduções fotográficas das obras reunidas por grupos em painéis configuram certo corpus de alinhamento, no qual perfilam realidades temporais e atemporais na discussão da ciência, religião, astrologia, antropologia, filosofia, sobre magia, atitudes psicológicas, desejos, o dionisíaco… A extensão das leituras visuais é incomensurável, de modo que não há como finalizar tais relações em seu Atlas. Não há margens, barreiras de contenção. Era comum Warburg estabelecer novas configurações, ramificações, rizomas; imagens que trasladavam de um painel a outro. Para o historiador, era justo em novas configurações que os sentidos se oxigenavam e se ampliavam. Assim, cada imagem nunca era fixada definitivamente, pois seria impossível mantê-la em um só contexto.
Espontaneamente, o Atlas Mnemosyne constituía, num sopro poético, a dinâmica das constelações, da espacialidade possível de desfiar novos significados, infinitas repercussões para reflexão. Antiguidade oriental, antiguidade ítalo-meridional-árabe, imagens de planetas, ninfas, Ghirlandaio, Botticelli, Ovídio, Laocoonte se misturam e dialogam entre tantas outras referências. Tentar compreender o Atlas precede também interpretar o pensamento de seu criador através das constantes temáticas em oposição, associações e recorrências. Fernando Checa, historiador da arte, ajuda a sintetizar a tão vasta obra de Aby Warburg. “A finalidade do Atlas foi de explicar, através de um repertório muito amplo de imagens, e outro muito menor de palavras, o processo histórico da criação artística no que hoje denominamos Idade Moderna, sobretudo em seus momentos iniciais do Renascimento na Itália, centrando-se em alguns aspectos essenciais de final do século XV em Florença e procurando seus fundamentos na Antiguidade.”
De tal forma, o arquivo, como meio, reunião e preservação, é também protagonista de algo substancial – isto é, de um tempo que se habita não pelo passado, pela cronologia, mas pelas frestas e lacunas da expressividade artística. São germinados, assim, espaços para a imaginação. Nesse limiar do entre-imagens, que encontra na dialética o arcabouço mais condizente, Aby Warburg concentrava seu olhar na dicotomia ente o eu (a subjetividade) e o viés do fora, o mundo (em sua objetividade). O que o historiador define como “o ato fundamental da civilização humana” nos faz refletir sobre como a criação artística coloca em suspensão símbolos passíveis de ressignificação a cada montagem, entre as cerca de 2 mil imagens depuradas por Warburg.
O arquivo passa a ser, para o pesquisador ou qualquer artista, exercício narrativo, num fluxo de desterritorializar zonas de conforto, cujo tempo e espaço se agarram organicamente. O encanto em ampliar os símbolos, que perscrutamos diante do arquivo, é um dos pontos inquietantes para avançar na compreensão de metáforas e antíteses.
Em Mnemosyne, Warburg relata, pelas imagens, os primórdios da história ocidental, que ele nomeia de “diversidade de sistemas de relações nas quais o homem se encontra envolvido”. Ciente do quão inesgotável é aproximar imagens por suas diferenças ou distinções, ele não almejava sintetizar nem descrever, mas provocar, como situa o próprio Warburg, o encontro de certas relações íntimas e secretas, correlações no saber transversal ad infinitum da relação complexa entre história e imaginário. A aposta, como diria o filósofo Georges Didi-Huberman, inerente ao Atlas de Aby Warburg possuía, dentre suas inclinações, um sentido conotativo e imaginativo em busca de montagens. “O atlas é uma forma visual do saber, uma forma sábia do ver.”
Aby Warburg deixa em seu legado não apenas um profuso arquivamento de imagens, mas sobretudo o acontecimento da hibridez, do poder da montagem por descobertas, um ponto de partida e acolhimento das coisas que se espalham pelo mundo e pela filosofia do sensível. Ideias que, representadas, transcendem a realidade através da imaginação, dos signos e dos significados. Esta foi a magia epistêmica de Aby Warburg: um atlas para ser mais horizonte do que superfície.
Atlas Mnemosyne: busca infinita por arquivar imagens e pensamentos
por Orhan Pamuk