#40DemoliçãoCulturaSociedade

Sobre demolição e a antifragilidade da vida

Em uma sociedade cada vez mais complexa e operada pelo caos, fala-se muito de conceitos como equilíbrio e resiliência — duas palavras muito compatíveis com a visão de mundo que construímos em sociedade: uma visão mecânica, simplista e temporalmente limitada. A realidade da vida não é mecânica; ela é multifacetada, dinâmica, imprevisível e antifrágil.

Antifragilidade é um conceito o qual temos dificuldade de alcançar, tanto que foi necessário criar um neologismo para descrevê-lo.

Para Nicholas Taleb, a vida é essencialmente antifrágil, e o conceito de antifragilidade não remete àquilo que resiste, ou que é resiliente — termo emprestado da física para explicar a capacidade que um material tem de mudar de forma e retornar à forma original —, mas àquilo que se fortalece com a adversidade.

Em uma visão antifrágil, aquilo que desafia o sistema pode fazer o sistema evoluir — da mesma forma como um nadador melhora suas habilidades ao enfrentar um rio com correnteza —, e uma espécie adapta-se às condições do ambiente tornando-se algo completamente novo ao longo do tempo, como explica a teoria da evolução.

As coisas construídas pelo ser humano também evoluem, mas isso ocorre por intermédio da fagulha de vida projetada pela consciência e inteligência humana. Um carro, isoladamente, não é antifrágil: ele não se fortalece, nem melhora sua estrutura, quando exposto a um terreno acidentado; ao contrário, ele se desgasta e aos poucos vai perdendo funcionalidade. No entanto, os carros com um todo melhoram a cada nova geração, procurando incluir todas as inovações possíveis para responder aos desafios e necessidades enfrentados para cumprir sua função.

É importante perceber que a vida, sendo um sistema aberto e multidimensional, existe como vida dentro de vida em dimensões cada vez maiores e mais complexas, da bactéria à Gaia como um planeta vivo. Nosso corpo, por exemplo, vive em simbiose com milhares de espécies de bactérias — só no intestino carregamos o equivalente a 10 vezes mais bactérias do que células no corpo.

Quando somos infectados por um micro-organismo patogênico e tomamos um antibiótico, eliminamos tanto a doença quanto a proteção e função simbiótica de muitas dessas bactérias, diminuindo nossa imunidade e causando, no decorrer do tempo, um processo de evolução e resistência desses seres àquela substância — um problema muito sério de saúde pública chamado resistência microbiana. A destruição generalizada desses micro-organismos causada por um antibiótico de amplo espectro salva vidas individuais, mas pode ter consequências arrasadoras a longo prazo para a espécie.

A complexidade da vida envolve relações muito delicadas, intrínsecas, conduzidas por uma força que se ocupa da continuidade de seu próprio desdobramento, sem nenhum apego ou preocupação com uma espécie específica ou um ser individual.

Pertencentes a uma classe que chamamos insetos sociais, as formigas de correição movem-se como um único ser, formado por milhares de formigas. E, como corpo coletivo, o formigueiro sacrifica formigas para atravessar um curso de água e constrói as paredes de um lar temporário com os próprios corpos individuais. Para esse corpo coletivo, os indivíduos não podem existir sem o formigueiro, e assim se perdem indivíduos para que o formigueiro permaneça.

A relação que temos com a natureza é posta, não é opcional; cabe a nós reconhecer a inseparabilidade das coisas. Somos resultado de milhões de anos de evolução da vida que se desdobrou na teia que somos em coexistência. Nesse sentido, tudo é interdependente e tudo dança a mesma melodia, tão silenciosa quanto misteriosa.

Há uma frase de Johann Wolfgang von Goethe que diz algo como:A vida criou a morte para criar ainda mais vida”.

O movimento contínuo de renovação vai muito além do ser humano: ele está no núcleo da vida, em cada célula de nossos corpos. É ele que torna possível a vida complexa, renovando o micro para que o macro continue a prosperar. Um exemplo disso é a apoptose, processo de morte celular programada, que ocorre em benefício do sistema vivo. A palavra apoptose provém do grego “vir abaixo”, sinônimo de demolição. Quando uma célula sofre um dano irreparável ou corre o risco de uma mutação que a desviaria de suas funções esperadas no sistema, ela entra em um processo de autodestruição controlada que permite que o corpo se recicle e mantenha um funcionamento harmônico. Células também morrem por processos não programados, por uma via que chamamos necrose, em que a morte celular prejudica o sistema e coloca em risco seu equilíbrio.

No âmbito da vida, a destruição de algo pode ser tanto aquilo que sustenta e possibilita a existência quanto aquilo que determina seu fim, dando início a outros ciclos de transformação e continuidade. A vida é um sistema aberto, e todo sistema aberto precisa não só de construção. Neste fluxo, o bastão da força vital é passado de um ser para outro ser, de dimensão para dimensão, e circula impulsionado pela roda da morte e do nascimento, como um pulsar do existir.

Quando uma forma de vida complexa se desfaz, a morte de um indivíduo impulsiona uma explosão de vida em inúmeros outros, que pegam o bastão e levam adiante a energia e a transformação, continuando o ciclo.

Desde o início de uma vida humana, no processo de embriogênese, é a destruição que esculpe nossos corpos. As mãos, por exemplo, são formadas a partir de um bloco único de células esculpidas por uma força, ou melhor, informação — aquilo que dá forma, que direciona a apoptose das células em pontos específicos, abrindo os espaços entre os dedos.

A informação não possui energia, não ocupa espaço, não está sujeita às leis da matéria; também não pode ser destruída, nem ao menos faz sentido dizer que foi criada. Apesar disso, ela flui através de tudo, moldando o mundo material e a si mesma, assim como as sequências de DNA constroem as células, que fazem evoluir as informações do próprio DNA ao longo do tempo.

Talvez, da perspectiva da vida, haja apenas transformação.
Não se perdem degraus ao subirmos uma escada; os degraus são a própria possibilidade de sustentação da subida.
O que seria de nós sem as experiências que nos desafiam, que nos tiram de nossa ilusão de controle?
Eu diria que, no todo, a morte impulsiona a vida,
e o caos gira a roda da evolução,
e a informação flui por entre os seres, evoluindo e moldando as várias camadas da existência,
e a demolição é tão preciosa quanto a construção.
Porque o novo nasce do antigo,
e a vida é um contínuo nascer-morrer-evoluir.

#39Yes, nós somos barrocosCulturaLiteratura

Horácio Costa conversa com Roberta Ferraz

Foto de Pedro Stephan

Professor de Literatura Portuguesa da USP, Horácio Costa pesquisa o barroco e suas pervivências poético-culturais. Autor de inúmeras obras de poesia, recebeu o Prêmio Jabuti em 2014 pelo livro Bernini. Atualmente na Cidade do México, onde assumiu a Cátedra José Saramago, na Universidade Nacional Autônoma do México, Horácio conversou com a editora de literatura Roberta Ferraz sobre o tema dessa edição da Amarello.

Roberta Ferraz: Horácio, nosso tema é pensar uma identidade brasileira alicerçada numa sensibilidade barroca, você concorda? O que você acha disso?

Horácio Costa: Sim, olha Roberta: escrevi um ensaio chamado “Sobre a visualidade na poesia brasileira”, que está no meu livro de ensaios Mar Aberto. Nele eu falo da questão da imagética na poesia brasileira desde o barroco e situo a poesia concreta como dentro de uma tradição barroca. Recuso a terminologia ‘neobarroco’; falo que nós sempre fomos barrocos. E uma forma de entender o barroquismo ou a barroquidade da cultura brasileira é que a literatura brasileira nasce barroca e, na poesia brasileira, o apelo à visualidade, ao apelo visual, é muito grande. Eu conheço poucas culturas que tenham um apelo visual tão grande no escrito. Por exemplo, temos Gonçalves Dias que escreve um poema que se chama “A tempestade”, que começa com 1 sílaba, vai até 14 ou 16, em estrofes sucessivas, depois diminui até 1 sílaba novamente: assim ele descreve uma tempestade chovendo no papel. É uma experiência imagética, cinemática quase, que é puramente barroca.

Você se refere a uma questão específica da poesia ou das artes de modo geral, dentro desta questão do barroco?

HC: Estou pensando na poesia, mas acho que dá para generalizar para outras coisas. Por exemplo, o Niemeyer diz que a arquitetura brasileira moderna é barroca, ele afirma primeiro pensar nas curvas, depois na estrutura. Ele se vê como um carioca imbuído da sinuosidade tropical; diante das montanhas do Rio diz “eu não sou linear, penso em volumes que são curvas”, etc. Então chegamos a Brasília, onde há um esquema viário muito ortogonal, muito racional na maior parte da cidade; e, na zona monumental, uma explosão de curvas. Estruturalmente falando, o Palácio da Alvorada é de uma complicação…

Estamos situando o barroco na noção do difícil, de assumir o caminho mais complicado…

Do mais sinuoso… primeiro pensar a forma, depois a estrutura, pensar a estrutura depois de imaginar o impacto visual…

E esses tópicos na cultura popular, pensando a questão de uma identidade barroca?

Eu vejo em tudo uma identidade barroca, porque nós somos muito contraditórios. Em alguns aspectos, somos muito conservadores e hipócritas, muito cheios de retórica pra falar. Há toda uma pervivência e uma sobrevivência de uma modalidade antiga de tratamento, ou seja: você faz a Constituição de 1988 e ainda pede “vênia”, chama um de “excelência”, outro de “meritíssimo”… Na Espanha, por exemplo, que é uma monarquia, o Rei é majestad, a princesa é alteza, mas na Câmara todo mundo é tu. No discurso político você não trata o outro de “Excelência”. Precisamos saber se a pervivência destas formas de tratamento tem a ver com apenas a tentativa de preservação ritual de uma sociedade muito caracterizada por castas – não classes, castas.  Nós vivemos uma espécie de ancien regime. Ou se é de fato uma sociedade barroca. Ou as duas coisas juntas.

Como investigar, avaliar isso?

Os índices que a gente tem, sinais objetivos de barroquismo no Brasil são muitos. Primeiro, o carnaval, que tira todo mundo da sua classe social, leva pra rua, apresenta desfiles que são enormemente multitudinários, coisa de multidões. É o país que tem mais carnaval no mundo e se orgulha disso.

Embora não deixe de ser um evento rigorosamente organizado, planejado, que também ilustra o barroco. Acho importante sublinhar isso, desmanchando uma falsa imagem do barroco como elogio do improviso. Estamos falando de um modo de representação que tem uma arguta organização, apoiado na lógica… Pensar o Brasil enquanto elogio da exuberância selvagem não é barroco.

Não, não é. O barroco é extremamente formal, não tem nada de informalidade, é cheio de código. Como é uma cultura muito forte, você não opta por ser barroco; você é ou não é. É o caldo de cultura que é barroco, então você cresce barroco. Pode até vir a ter movimentos antibarrocos, etc, mas quando tem um sistema jurídico como o brasileiro, que não é demais chamar de infernal… Fizemos uma Constituição de 588 artigos, que é uma das maiores do mundo e é bastante liberal, mas tem tanta contradição, e alíneas e anexos, etc., que dentro dela há pedaços que negam outros.

O barroco fala então da explosão da energia frente a um número extremamente codificado. Mas essa explosão também não é total. Voltando ao carnaval, por exemplo: ele não é libertino. Ele é libertário, não libertino. Porque no Brasil não há lugar pra libertinagem de fato, além do livro do Bandeira. O Brasil é um lugar tão codificado que, até hoje, o sexo é papai-mamãe. O corpo também está codificado. No Brasil, há corpos humanos que são liberados, são lindos, mas o que é que eles fazem, quando você chega ao lugar do sexo? Estou falando como homossexual. É um panorama muito conservador. Tenho experiência grande neste sentido, porque saí do Brasil antes da AIDS, e não é possível acreditar que em 40 ou 50 anos tenha mudado tudo. Não mudou. Nós temos a maior parada GAY do mundo e temos, paralelamente, uma sociedade uniformemente homofóbica. Então, não confere.

E isso é barroco.

Isso é barroco. Essas contradições tão violentas não conferem.

Você diria então que esse nosso barroquismo inerente tem mais uma qualidade crítica, de problematização, do que algo que fale de um esbanjamento mais inclinado à alegria, à saúde?

Estamos falando de um sistema cultural que é em si um poço de contradições. As oposições coincidem. Por exemplo: Filipe IV da Espanha era o rei mais poderoso de seu tempo e estava quebrado financeiramente porque fez guerra contra todo mundo, e a Espanha não conseguiu segurar a barra do seu poder. Esse homem, que era ao mesmo tempo super católico – o bastião do catolicismo – se lanhava, porque tinha muitas amantes, vivia em culpa. Na família, eles casavam entre si, e assim foram se degenerando e nunca ninguém se deu conta de que não dava para, ao mesmo tempo, o filho ser sobrinho do pai e primo da avó; coisas que aconteciam nessa dinastia e são patéticas. Estavam se degenerando. Tudo super ritualizado. E ninguém falava em ciência. Em pleno século XVII, Carlos II foi tratado com feitiçaria. 

Falando da Espanha, lembro-me das festas da Semana Santa na Andaluzia, aquele gestual carregado, um pathos no modo de andar, vestir e carregar os Cristos crucificados… há esse lugar importante também pro barroco que é o lugar da morte, né?

Sim, o lugar da morte, o lugar da festa, o lugar da ópera, o lugar do silêncio, o lugar da autoflagelação, o lugar da orgia… ou seja, são coisas tão contraditórias que acontecem ao mesmo tempo e muitas vezes depende do momento do ano ou da classe social ou do feriado religioso… São códigos não totalmente abertos, porque uma característica do nosso barroco ibérico é a hipocrisia e o silêncio: muitas vezes o mais importante não se diz. Como a palavra está muitas vezes submissa a rituais, formas, esquemas retóricos, não é revelação, é encobrimento, e algo pode ser muito importante ou uma bobagem. Na vida interpessoal, o código do não dizer importa tanto quanto o código do dizer. Para nós de um modo especial.

Como se dá este velar, também ligado ao silêncio e à mortificação, na expressão cultural barroca?

Na cultura moderna, em qualquer lugar, o código do dizer, do revelar, do ser sincero, etc, são seus sinais. O iluminismo é isso: você vai falar e o que você falar te leva a responder pela palavra que você está usando, quem está falando é um sujeito que emite aquela opinião, não se trata de uma opinião de classe, embora possa refleti-la; há um eu falando, emitindo uma opinião. Já nos lugares afetados pelo barroco, de modo geral na América Latina e talvez até peculiarmente no Brasil, há um falar que não diz nada, um falar que sequer permite a inferência. Não se gosta que se infira nada, porque assim você tiraria as pistas possíveis daquilo que se quer dizer. E se isso funciona bem na retórica latina de característica barroca, imagina quando transferido à esfera política: temos a hipocrisia como método.

Haveria neste encobrimento uma estratégia não só de sedução mas também uma isenção da própria responsabilidade pela fala? Não poderíamos pensar este aspecto como uma infantilização?

Mais uma vez entramos na questão política. Nós nos constituímos como cultura na qual os homens héteros acima de não sei quantos mil réis são, no Império do Brasil, os eleitores. Na Monarquia Constitucional havia 25 mil eleitores. Era constitucional, havia eleições respeitadas. Mas o Colégio Eleitoral – que não podemos propriamente chamar deste modo porque não era um Colégio Eleitoral – era de 25 mil varões, casados, maiores de 25 anos, com uma renda acima de tanto. Segundo os historiadores, num universo talvez de 5 milhões de pessoas há 25 mil eleitores, 0.5%. Podemos chamar isso de um sistema constitucional de fato, 100 anos depois da Revolução Francesa? Não. Então sim, a nossa constante é infantilizar a população. Todo mundo te chama de Doutor no Rio de Janeiro. São Paulo já não é bem assim: somos uma cultura dentro da cultura brasileira.

Eu sou arquiteto e havia vivido nos EUA muito tempo, onde fiz meu mestrado e o meu doutorado. Lá, sabemos, é o do it yourself. Você faz a sua estante, monta as coisas, limpa sua casa, etc, a não ser que você seja muito rico. Quando comprei um apartamento no Rio, comecei a fazer tudo. Chegava com meus pacotes e subia com eles. Um dia, o porteiro desse prédio de classe média emergente, falou, escandalizado: “Mas o senhor não quer que a gente ajude?”. Ele se sentia fora do papel dele. Respondi: “Claro que eu quero”. Ficou agradecido e me chamou de doutor. É um país em que o porteiro não é porteiro, ele também carrega os pacotes, etc. É um exemplo pequeno, mas estamos falando de um país com códigos escritos que não conferem na realidade, que é muito mais contraditória do que esses códigos poderiam codificar. O código fala de um desiderato, uma projeção desejosa de realidade segundo o espírito ocidental. Para passar do código à realidade é necessária uma revolução de costumes.

E na sua opinião, o Modernismo tentou escancarar esse código, abrindo suas contradições todas, pensando em Mário e Oswald de Andrade...

Sim, o Modernismo nesse sentido foi uma grande limpeza, mas que ficou aquém porque esses caras tinham uma formação de classe média e eram, em geral, funcionários públicos. Eram indivíduos com medo de perder o seu lugar na sociedade, eles tinham emprego, eram pais de família… Não tem veado nem mulher no Modernismo. A Cecilia Meireles, que é excelente poeta e de quem eu gosto muito, é uma andorinha que não faz verão. Eu acho, por exemplo, que o melhor poema dela, “Romanceiro da Inconfidência”, foi escrito como se por um homem. Quando ela lida com a história se masculiniza. Pretendo escrever mais sobre isso, porque é uma ideia que me interessa: na hora da entrada da história, “o” poeta brasileiro é heterossexual e homem, mesmo que ele seja mulher e mesmo que ele seja veado.

Porque essa é a voz autorizada…

Sim, daí eu nos meus poemas procurar falar da história a partir de uma posição assumidamente gay. Procuro falar da história, cada vez mais, mas o meu ponto de vista não é o da historiografia oficial nem da poesia brasileira que trata da história do Brasil.

Podemos finalizar então pensando o barroco como um problema na elaboração de uma identidade cultural brasileira?

O barroco não é um problema, é uma questão. Eu acho que no nosso sistema de valores e de produção de cultura e de referência, o barroco é uma questão que nos cobre muito bem, nos representa muito bem. De um ponto de vista geral, a historiografia literária sobre o barroco no Brasil é muito pobre em relação ao barroco, fica aquém do barroco na série literária. Primeiro que o barroco brasileiro não é brasileiro, é luso-brasileiro. A dificuldade em lidar com o barroco é que, de fato, fica muito mais simples se você não considerar o barroco. Se você vier com uma ideia de modernização, de progresso, etc., sem considerar o barroco, tudo fica simples. O que é que se faz com esse passado, com o fato de que o primeiro livro de poesia publicado por um brasileiro foi, no começo do século XVIII, muito depois dos hispano-americanos, muito depois mesmo, chamado “Música do Parnaso”, que foi publicado em 4 línguas? Tem poemas em português, espanhol, latim e italiano, porque ele queria mostrar que era um poeta culto. E teve que publicar em Portugal. O que quer dizer esse lugar desse monte de gente que escrevia nas Academias e formou uma sensibilidade que era completamente contraditória, nos séculos XVII e XVIII?  O que disso se manteve e qual a autoridade de um pensar modernizador da história que não dá atenção para esses séculos, nesses dois séculos e meio da formação brasileira?

Não podemos deixar de lado a identidade entre o barroco e o Brasil Colônia, com destaque para o lugar da Igreja, essa longa duração formadora da sociedade brasileira.

Sim, chegamos no século XIX achando que éramos liberais, europeus, temos uma constituição e é como se aquilo tudo ligado ao passado colonial não nos dissesse mais nada, não tivesse formado nosso modo de ser e pensar, e basicamente a relação entre escrita culta e vida popular… Com o barroco, o sonho brasileiro de modernização, que foi acalentado a partir do modernismo, simplesmente não se mantém, porque nós não nos modernizamos. O projeto modernizador no Brasil não foi plenamente moderno. O sexo continua sendo papai-e-mamãe. Ainda te chamam de Doutor. Ainda se pede vênia. Tem uma coisa também da língua também, que é só para os especialistas. Você sabe o que quer dizer vênia? Para navegar na maré brasileira, você precisa ser especialista. Então não me venha dizer que o projeto modernizador de fato responde por uma questão brasileira. De alguma maneira, é uma utopia que nos realizou, e nós agora vivemos numa distopia. Os modernistas de 100 anos atrás foram heróis sim, lidaram com um país burro, oligárquico e fizeram o que puderam. Mas há que ressaltar duas coisas: primeiro, pensaram que o passado podia ser obliterado, que porque mudou a regra ou a forma de vê-la, mudou a realidade. Segundo, quando você compara o Modernismo brasileiro enquanto representação da diversidade da população, ele é pífio. Porque neste universo fundamentalmente de funcionários públicos bem-formados não há mulheres, e disso já dissemos. E mais: a cultura literária brasileira é a única que eu conheço – e quero enfatizar que é a única – que chega ao século XXI só agora formando memória de uma palavra homossexual. Por quê? O que quer isso dizer? Todas as línguas neolatinas têm uma tradição de irreverência e diversidade que vem, ou de antes, como o caso da França do século XVIII com o Marquês de Sade, ou, nas demais línguas, ao longo do século XIX e principalmente os movimentos de Vanguarda contêm discursos de homossexualidade, normalmente masculina. Menos o Brasil. Em Portugal tem, foi difícil, mas tem. Tem no México, cuja sociedade é parecida com a nossa. Então, por que não tem aqui? Fui estudar a correspondência do Mario de Andrade, que era um veado não assumido, e que sofreu bullying do Manoel Bandeira. Isso está na correspondência deles. Por muitos anos, não se pode sequer falar da homossexualidade do Mario de Andrade. Até 15 anos atrás era impossível falar disso. E há também a questão racial, de que somos uma democracia racial e pronto. Onde podemos colocar todas essas questões senão no barroco?

Então o barroco pode ser lido como a chave que diz melhor de nosso conservadorismo estrutural?

HC: Sim, é a coisa que não se fala. Por não falar, você silencia. Isso por um lado, mas por outro lado porque os acadêmicos brasileiros não falaram. Acadêmicos brasileiros por algumas gerações não falaram disso. E compraram por face value que o modernismo tinha sido uma enorme conquista. Não deixou de ser! Não estou jogando pedras no meu telhado… Mas a questão é a seguinte: não cumpriu com a totalidade da verdade. Ficaram na verdade deles. Daí eu penso o seguinte: o Brasil é um país? Um só? Eu vejo o Brasil como um Império sem imperador. Espécie de estado pirandelliano, à procura de um autor, que seja um homem bom, alguém que vai dar jeito, o pai da Pátria, etc. É muito curioso que o líder brasileiro mais respeitado da História seja D. Pedro II… O Império acabou há 130 anos e estava decadente! Há muita questão para pensar o Brasil e eu acho que sem a clave do barroco você não vai para lugar nenhum. Há que pensar no barroco, na continuação do barroco, nas condições do barroco, no que é o homem barroco. O momento é positivo porque a pós-modernidade é um labirinto. Você e eu vivemos um labirinto cotidiano, qualquer um que está dentro da tecnologia e da informática experiencia o labirinto todos os dias. Se o grão do barroco é a ideia de labirinto, o mundo como labirinto, e nos vivemos num mundo labiríntico, então agora só nos falta pensar seriamente no barroco.


HORÁCIO COSTA, nascido em 1954, é poeta, gay, tradutor, professor universitário de Literatura Portuguesa no Departamento de Letras Clássicas da USP desde 2001, ensaísta, viajor e amigo querido. Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela USP, realizou mestrado em Artes pela New York University e doutorado em Filosofia na Yale University. Está agora na Cidade do México onde assume a Cátedra José Saramago na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México, na qual foi professor entre 1987 e 2001 e realiza pesquisa sobre “Livros e autores portugueses na Nova Espanha”, lidando com a presença de Portugal no Império Espanhol durante os séculos da colônia, a partir da circulação letrada.

Pesquisador do barroco e suas pervivências poético-culturais, Horácio é autor de inúmeras obras de poesia, traduzidas para a línguas espanhola, inglesa, francesa, catalã, alemã, sueca, italiana, holandesa, macedônia, romena e búlgara. Seus mais recentes livros de poemas foram: Ravenalas (2008); Ciclópico Olho (2011); Bernini (2013), Ravenalas y otros poemas (Buenos Aires, 2013), 11/12 – Onze Duodécimos (2014), A hora e vez de Candy Darling (2016), Duas ou três coisas airadas (2018) e o último, escrito e lançado durante a pandemia de COVID 19, intitulado São Paulo, 24 de março de 2020 (2021) . Com Bernini foi o vencedor da 56ª edição do Prêmio Jabuti na categoria poesia, em 2014. É um dos organizadores da obra Retratos do Brasil Homossexual. – Fronteiras, Subjetividades e Desejos (São Paulo: Edusp, 2010).

A presente entrevista nasceu de uma parceria entre a Revista Amarello e um grupo de estudos intitulado Desbunde: corpo, cidade, canção. Trata-se de uma pesquisa interuniversitária, coordenada por Eucanaã Ferraz (UFRJ), Guilherme Wisnik (USP), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Rafael Julião (UFRJ) e Washington Drummond (UNEB), que busca compreender as relações que se estabeleceram entre os corpos, as cidades e as canções no Brasil dos anos 1970, mais especificamente por meio do conjunto de manifestações comportamentais, filosóficas, culturais e artísticas associadas à ideia do “desbunde”. As questões foram formuladas pelo grupo, em colaboração com Bruno Cosentino, também pesquisador de canção popular e parceiro frequente da Revista Amarello. Em seguida, foram enviadas a João Paulo Reys, o produtor que vem sendo fundamental para o processo de organização e divulgação da obra de Jorge Mautner, que também contribuiu com suas perguntas e colocações para a entrevista que segue. 

PRA ILUMINAR A CIDADE

Seu primeiro disco se chamou Para iluminar a cidade, de 1972. Vamos então começar conversando sobre as cidades pelas quais você passou e a sua história com elas. Onde você mora agora, Mautner? Como tem sido a sua relação com as cidades em que você vive nos últimos anos? 

Moro no Rio de Janeiro e aqui fiquei durante a quarentena, no meu apartamento. A minha relação com as cidades é relacionada primeiramente, e segundamente (risos), aos seus habitantes. Então, nesse Brasil, seja São Paulo, seja Rio de Janeiro, seja Recife, você encontra os brasileiros que gostam de histórias, gostam de anedotas, é o Brasil que me alimentou, desde pais de santo até ateus geniais. Não há limite. O próprio Brasil, ele é o mais original dos países. 

Você passou a sua infância e a sua adolescência entre o Rio de Janeiro e São Paulo, nas décadas de 1950 e 1960. Como foi crescer nessas duas cidades, nesse período?

Uma coisa é que no Rio tinha o mar e em São Paulo não tinha, mas tinha outras coisas que compensavam o mar. As pessoas. A minha história é… por exemplo… vou contar direito, olha só: do um ano de idade até sete anos de idade… Minha mãe estava paralisada. Então quem cuidou de mim era minha babá, que era mãe de santo. Então, durante cinco, seis dias por semana, ela era minha babá e depois ela me levava pro candomblé, onde eu ficava três dias no candomblé. Então, do um aos sete anos, a minha vida era essa. Eu não só participava das cerimônias; ela me botava no colo, os tambores tocando, e ela dizia assim: “seus pais vieram de um lugar de gente muito ruim, muito cruel, mas aqui você vai encontrar os seus amigos e suas amigas para sempre”. Enquanto os tambores tocavam, eu adormecia no colo dela. Depois da cerimônia, ficávamos mais dois dias lá, nos quais eu brincava com a garotada que era toda de etnia negra, mas eram meus irmãos e a gente brincava o tempo todo. E tinha uma vigilância da minha babá e de outros adultos também nas brincadeiras das crianças. Eu nunca vi coisa mais impressionante, educativa e amorosa. 

Aí encerra essa fase e chega São Paulo. Como foi a experiência de mudança da cidade? 

É o seguinte: meu pai era um gênio, mas ele era jogador. Viciado no jogo, roleta, tudo, ia para o Cassino da Urca. E quando ele teve dinheiro para comprar um apartamento para ele, para minha mãe e, naturalmente, para mim, ele foi para o cassino e torrou tudo. Aí minha mãe ficou… Nós tivemos que mudar do lugar em que nós estávamos, porque o dinheiro tinha ido embora, e fomos morar seis meses no Rio, na pensão de um cara chamado Dr. Frankestein. Acontece que nesse lugar, minha mãe já estava com ódio do meu pai e estava nessa pensão um alemão brasileiro, primeiro violinista do Theatro Municipal de São Paulo, Henri Müller. E minha mãe se apaixonou por ele. Se apaixonaram. Aí, de repente, eu tinha um novo pai e fomos para São Paulo. E em São Paulo tudo acontece. Porque, veja só, o meu padrasto, que era o primeiro violino, ele admitiu a presença do meu pai dentro da nossa casa! Então, tinha minha mãe, o ex-marido e o marido atual, e ela mandava nos dois. Então eu fui educado… Eu podia fazer tudo! Receber pessoas. Ideias avançadas de ambos os lados. Primeiro, do candomblé. Depois, deste meu padrasto genial que me ensinou violino, e o meu pai que era realmente um gênio de literatura, de filosofia e de ciência. 

Nos anos 1960, você esteve nos Estados Unidos. Que cidades você conheceu? Nessas cidades você chegou a viver, a conhecer a cena underground americana?

Primeiro eu morei a maior parte em Nova York. Morei no Village, morei em outro lugar. Eu passei uns cinco, seis, sete anos lá, porque eu fui secretário literário do poeta laureado Robert Lowell, que por sua vez foi também do Ezra Pound e tudo. Em Nova York, eu encontrava com o grupo de brasileiros, entre os quais despontava o Neville de Almeida, cineasta. E era impressionante, porque era bem na Guerra do Vietnã, mas tinha uma barraquinha que era para dar dinheiro para favorecer a vitória dos americanos na guerra, isso em Nova York. Ao lado tinha uma tendinha, sei lá, espírita, e na outra tinha uma tendinha comunista…

De apoio ao vietcongue? 

Exatamente. Na mesma calçada. Do Robert Lowell, eu tenho memórias incríveis e eu me admiro porque ele era fascinado pelo Brasil. Então, ele me pedia para contar histórias do Brasil. E tem uma pessoa, que é amiga dele, que é aquela poeta, Elizabeth Bishop…

Tem uma figura, Jorge, que eu acho que é importante nessa cena underground e bastante nova-iorquina, para ficar na coisa das cidades, que era uma figura que era uma espécie de decano dos undergrounds, porque ele era de uma outra geração, mas foi uma pessoa que você conheceu, que era o Paul Goodman, e se você pudesse falar um pouco das ideias dele… 

Ah, sim. Outro grande. Eram pessoas quase cotidianas, o Robert Lowell e o Paul Goodman. O Paul Goodman foi muito, muito, muito, porque ele se interessava pelo Brasil e todas as ideias dele também estão, de certo modo, na minha obra literária. Me influenciou demais porque ele era à esquerda, né? Enquanto o Robert Lowell era da alta sociedade, que era outro mundo. Mas o Paul Goodman foi genial.

Tem uma outra cidade, que eu sei que você esteve, se você puder dar um pouco do relato, que foi Washington DC, que eu me lembro de uma história, se você puder contar melhor, que era um cara do Peace Corps, que você já conhecia do Brasil e você foi para a casa de um senador. Você se lembra dessa história? Um senador e o filho dele ouvia música negra, você ouviu rock em Washington…

Eu me lembro vagamente, mas é tanta coisa… Eu conheci Albuquerque, conheci o Texas, conheci o Novo México… 

Foi quando você foi morar no Chelsea, não foi?

Foi, exatamente! Aí eu morava no Chelsea Hotel. Não era só um apartamento, eram três. Era de um grande amigo meu, que também faleceu, ele era pintor e paraplégico. E eu sou também massagista. E ele me encontrou assim: eu fui massageá-lo e aí começamos a conversar e nos tornamos amigos, e ele abriu aquele mitológico Hotel Chelsea pro meu pai morar lá e a Ruth também. Então no apartamento ao lado desse. 

Essa figura, cujo nome eu não me recordo, mas depois eu sou capaz de me lembrar, ele era um cara muito rico, não era? Ele era mecenas, apoiava artistas… 

Apoiava artistas… Bill Bomar (William “Bill” Bomar, 1919 – 1991). A terceira cidade principal lá do Texas era dele, Forth Worth. Ele era realmente muito, muito, muito, muito rico. Por exemplo, nós recebíamos as pessoas que vinham do Brasil, veio um grupo italiano, e tinha três quadros de Van Gogh, dois do Gauguin e de outros. A tal nível ele era milionário. E eu era massagista e escritor e então nós ficamos amigos. Eu fazia uma massagem que fazia muito bem para ele. 

Há uma cidade que foi muito importante na sua trajetória. De uma certa maneira, a primeira cidade da contracultura brasileira foi Londres, porque lá estavam os exilados brasileiros, que se reuniam sobretudo em torno das famílias de Gil e Caetano. E a sua presença, Jorge, foi fundamental pelo intenso fluxo de ideias e também pelo mais significativo registro das movimentações do grupo no período, o filme O Demiurgo (1970). Você poderia falar um pouco sobre esse período? 

Quem morava em Londres era um amigo meu, do Colégio Dante Alighieri. Um cara genial, o Arthur de Mello, com a esposa dele, Maria Helena. E eu estava em Nova York e ele mandou um recado: “olha, venha para Londres porque Caetano e Gil, por causa da Ditadura, saíram do Brasil e eles estão aqui quase hóspedes”. E aí eu fui para lá, com a Ruth, e então você imagina… Eu, a Ruth (minha esposa), com Gil e sua esposa na época (Sandra), e Caetano com sua esposa na época (Dedé), e o Arthur de Mello Guimarães com sua esposa. Então, a Londres que eu conheci era essa. Todos eles foram ver o festival da Ilha de Wight. Acontece que eu fui lá, mas só fiquei três horas. Eu não aguentei. Mas minha esposa ficou, Gil ficou, Caetano ficou e o grande amigo meu e grande pensador Claudio Prado teve a iniciativa de chegar para os diretores do festival e dizer: “Olha, chegaram os maiores músicos do Brasil. Eles têm que se apresentar”, e ele nem sabia. Então, ele conseguiu fazer com que Caetano e Gil subissem ao palco e foi um estrondo de sucesso. 

Jorge, e lembrando O Demiurgo, no qual você registra muito aquilo em Londres… aquelas casas, as pessoas, o parque, o porto… Você se lembra um pouco disso? Da feitura do filme em Londres?

Eu pouco focalizei em Londres. Eu ligava só para o Brasil. E a história com o Caetano e Gil, como eles estavam exilados, tinha que ser uma linguagem muito alegórica, com frases subversivas encapuçadas ou mimetizadas ou assim… Gil é o Deus Pã, e Caetano é o Demiurgo, o que é verdade. Então o Arthur de Mello Guimarães participou, minha esposa participou, foi uma coisa incrível. E eu fiz isso com o dinheiro que eu tinha ganho da época de Nova York. Então eu que investi tudo para fazer esse filme. E prontamente o Gil, o Caetano e todos os outros que estavam lá deliraram com a ideia e toparam fazer. 

Seguindo novamente no trajeto das cidades, Jorge, você saiu de Londres e aí, logo que você voltou, no início dos anos 1970, você foi conhecer a Bahia. O que você se lembra desse encontro com a Bahia pós Londres? 

Primeiro que eu já era amigo de Caetano Veloso e de Gilberto Gil e suas esposas. Então, de repente, ao chegar em Salvador, eu disse: “Aqui é o ápice de tudo!”. É isso. E o tempo todo, realmente, é o Brasil em sua negritude máxima, de cultura infinita e principalmente de carinho humano, de compreensão, de risadas… Imagina só… A Bahia… É com Jorge Amado… É uma coisa que eu sou baiano por adoção, né? E realmente os candomblés de lá… Por exemplo, Filhos de Gandhy… Gil e eu, nós fizemos uma passeata enorme dos vários sábios da sociedade então incluindo… Enfim, aí nasceu uma amizade eterna, porque eu os encontrei na casa do Arthur, onde meu pai começou a falar dos números, do zero e tudo… 

Este período da virada dos anos 1960 para 1970, no Brasil, é frequentemente referido pelos historiadores como a época do desbunde. Para você, no seu entendimento, o que foi o desbunde e como foi a sua experiência desse momento?

O desbunde foi a democratização. Eu estava muito bem de tudo. De dinheiro… Houve uma reunião na Venezuela e foi lá que eu conheci o grande poeta Robert Lowell, que logo me nomeou secretário dele e então eu pude ficar muito tempo, aliás, sempre, com artistas, filósofos, e o Neville de Almeida… Nós bolamos fazer o filme, que chama Jardim de Guerra. O Neville de Almeida já morava em Nova York e…

Você falou que o desbunde foi a democratização, mas você pode falar um pouco do que eram as atividades de vocês aqui, durante aquele momento, o que que vocês pensavam, quais eram os valores… O que queria dizer essa ideia do desbunde? 

Eu voltei para o Brasil porque eu já era do partido comunista e eu vim e era secretário literário do Robert Lowell, que foi de Ezra Pound e eu fui dele. Mas eu desisti de ficar nessa beleza de plenitude… Porque eu recebi o recado de que era necessária a minha volta para a democratização. Por isso eu voltei. E a primeira conversa foi com Golbery do Couto e Silva. E o Golbery disse: “escreva como será a democratização”. E saíram os Panfletos da Nova Era, que foram editados pelo jornal de notícias e depois publicados em livro. 

Então, isso que se chama de desbunde, esse movimento cultural, artístico, no seu entendimento aquilo ali foi a democratização. O desbunde era um desmonte da estrutura autoritária. 

Isso.  

Tem uma história que eu sei que você conta bem, que é importante pra você… Em uma época em que o direito de reunião das pessoas era muito limitado por causa da ditadura, o fato de que os eventos culturais e os shows eram oportunidades para que as pessoas se reunissem, se encontrassem. Você pode falar um pouco disso? A realização dos eventos e esse papel duplo…  

A democratização se fez através da música popular. Quando eu vim para o Brasil, e o Golbery pediu para eu escrever como seria, era uma ordem e uma permissão dada para fazer justamente isso. Então coincidia ali a necessidade histórica daquele momento e uma coisa que sempre existiu, que era essa cultura brasileira da umbanda, do candomblé, do frevo, do xaxado, do miudinho.

Eu me lembro de um contato importante que você conta que foi a uma feira no Parque Ibirapuera onde você viu o maracatu…

Ah, sim! Isso foi no quarto centenário. Foi a primeira vez que vieram dos estados do Brasil os grupos musicais característicos desses estados e o maracatu do mestre Capiba. “De São Paulo de Luanda, me trouxeram para cá… eeeee” [cantarolando]. Então, quando eu vi isso, eu vi que São Paulo… E quem me revelou como escritor foi o poeta Paulo Bomfim, cuja maior obra é a saga em poemas dos bandeirantes.

O KAOS, A FILOSOFIA E A ARTE

Você fez a trilogia do Kaos nos anos 1960. Deus da chuva e da morte (1962), Kaos (1964) e Narciso em tarde cinza (1966). Mas essa ideia, do Kaos (com K) acaba atravessando as suas canções, o seu filme O Demiurgo e as suas conversas filosóficas. Qual é a história desse seu conceito de Kaos com K? Ele foi se transformando ao longo do tempo? Hoje é outra coisa, é a mesma coisa? 

Kaos com K, começou sendo o partido político. Kaos. E tinha quatro definições. Kaos de Kristo ama ondas sonoras; Kamaradas anarquistas organizando-se socialmente; Kolofé Axé Oxóssi Saravá; e a última cada um colocava a sua. 

Ou seja, era um conceito que já era aberto…

Exatamente isso! 

Mas Jorge, a dissolução do partido do Kaos e o seu ingresso no partido comunista não significam o encerramento, para você, do Kaos enquanto conceito…

E nem para o partido comunista! Eles adoravam a ideia porque eles queriam sair do realismo socialista. Eles queriam essa ideia do Kaos. 

O Kaos tem alguma coisa a ver com a curtição, com a coisa da contracultura da época dos anos 1960, especialmente 1970? Como o Kaos se materializa no corpo, na canção, na cidade?

Olha, o Kaos é tudo. A imperfeição. Não existe uma formiga igual a outra. É tudo. Não tem a generalização abstrata, então o Kaos tem várias interpretações, como eu disse: K de Kamaradas anarquistas organizando-se socialmente; Kristo ama ondas sonaras; depois vem Kolofé Axé Oxóssi Saravá; e a outra cada um colocaria a sua. Então é nessa dimensão de liberdade, multiplicidade e simultaneidade das coisas. Os opostos não apenas se atraem, eles são enlouquecidamente apaixonados. 

Como o Kaos se relaciona com o mistério?

O mistério é tudo, porque tudo é misterioso. O mistério desvelado revela três mistérios. Três resolvidos produzem quarenta, e assim vai. E o Brasil não oficial, o Brasil do candomblé, da umbanda, da quimbanda, dos indígenas… Esse é o Brasil mais avançado que existe. São mentes iguais à de Einstein. E chega a ser grotesco a falta de escola. Mas eu vou repetir uma coisa importante para mim: a principal coisa foi a seguinte… Quando houve a abolição dos escravos que fizeram tudo, Joaquim Nabuco e os irmãos Rebouças disseram: “Não, isso não é libertação de escravos. Tem que haver a segunda libertação dos escravos”, que inclui reforma agrária e educação. Então, reforma agrária para que todos os escravos brasileiros pudessem comprar uma terrinha, ser gente; e depois da reforma agrária, a educação. Do jardim de infância até o diploma universitário, tudo de graça e da melhor qualidade. Esta é a segunda abolição, apregoada pelos irmãos Rebouças e por Joaquim Nabuco. E para impedir que se desse essa segunda abolição é que o exército derrubou o Império. Enquanto o Brasil não fizer isso, exatamente isso, essa segunda abolição, reforma agrária e estudo do jardim de infância até a universidade grátis para todo o povo brasileiro, se não fizerem isso, o Brasil se perderá. Mas eu acho que isso acontecerá. Talvez imposto pelos estrangeiros que vierem para cá…  Olha só, esse incêndio do Amazonas já criou… Eu sei que tem um tratado de que se continuarem a incendiar a Amazônia, virão a China, a Rússia, a comunidade europeia e os Estados Unidos ocuparem a Amazônia. 

A sua abordagem de temas místicos, religiosos ou míticos é uma mirada, é um olhar político-cultural ou é um olhar existencial-metafísico?

É tudo isso junto. As coisas não são separadas. Isso é uma bobagem cartesiana. É tudo simultâneo e nada é igual a nada. É ao mesmo tempo, é simultaneidade. 

Você também, desde antes, sempre abordou muito fartamente as questões de gênero e de sexualidade na sua obra de modo geral – incluindo as canções, as performances, etc. O Kaos com K também se relaciona com esse debate, da identidade de gênero e da sexualidade? 

Para nós era óbvio ululante que qualquer prática sexual é uma obtenção do prazer… Não tem lero-lero em cima disso. Isso é gozado… (risos) E o Brasil tem o carnaval, tem Jorge Amado, Guimarães Rosa… Tem tantos poetas geniais e eu recomendaria que lessem, de Gilberto Freyre, China Tropical

Quando você começou a escrever literatura, você já compunha canções, apesar de só ter gravado discos mais tarde. Como que foi acontecendo essa sua relação, de um lado com a literatura, do outro com a canção popular?

Nunca houve separação. Uma coisa levava às outras. Os músicos adoravam e adoram histórias de política, histórias de literatura, histórias da mitologia. Só que não chegam a conhecer. Só que quando conhecem são essas conversas que interessam todo mundo até hoje, pessoas desde o Robert Lowell, Gilberto Gil, Caetano, Luiz Melodia, Wally Salomão… É tanta gente que mora dentro de mim, porque a primeira categoria de tudo é o amor. É a solidariedade sem palavras. E é o mais profundo dos mistérios. 

Dos inúmeros livros que você escreveu, gostaríamos de destacar o Fragmentos de sabonete (1976), e o Panfletos da Nova Era (1980), pois nos dois você elabora uma defesa da canção popular brasileira aglutinando tanto a velha guarda – Ismael Silva, Wilson Batista –, quanto os então novos compositores – como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil – ou os ainda novíssimos, como em sua defesa do trabalho de Luiz Melodia. É intenso o debate sobre a canção brasileira no período através de livros e artigos em revistas e jornais de grande circulação. Como você vê essa relação da canção popular com o debate público? A que você atribui essa posição de destaque que a canção tem nos debates midiáticos sobre a cultura daquele momento e ainda de hoje? 

Porque ela, além da letra, transmite a música e permite a quem a ouve ter suas próprias ideias encadeadas com o que a letra está falando. E mais ainda, tudo é música. Por exemplo, Einstein, quando não conseguia resolver um problema, pegava o violino e tocava, dormia e nos sonhos surgia a resposta. Assim que é. Então, a música ao mesmo tempo é um carinho, uma compensação, é o fim das mágoas, a superação delas, reconhecendo-as mas transfiguradas de que alguma coisa vai melhorar. Alguma coisa foi muito importante. Essa divisão das coisas interessa mais ao mercado capitalista, só isso. 

A gente debate a literatura, as canções, a política. E a filosofia? Entra aonde no meio disso? Como você acompanhava o que estava saindo, o que era relevante? 

Eu leio; li muito. Não se pode ler tudo, mas eu li os livros principais da cultura russa, da cultura alemã, da cultura francesa, da cultura portuguesa… e aqui dos grandes autores brasileiros, que estão até, não só na literatura, mas nos batuques, no candomblé, eles estão na umbanda. Então o que dirige o Brasil é isso. Na verdade, o governo e as decisões de cima são frágeis e pálidas intenções, são de uma fraqueza monumental. E o medo de que os escravos… Porque para mim não houve abolição da escravatura, tem que ter a segunda abolição, se não, não é ainda. Ainda é um país de escravos.

O seu primeiro instrumento musical emblemático é o violino, e não uma guitarra elétrica, como foi de muitos. Você começou a contar a sua história com esse instrumento, mas você poderia desenvolver um pouco mais? 

Foi como eu contei. Nós estávamos no Rio de Janeiro. Eu acabara de fazer sete anos e meu pai jogou todo o dinheiro na roleta e perdeu. Minha mãe ficou furiosa porque nós perdemos o apartamentozinho que era alugado e fomos morar na pensão do Dr. Frankenstein. Lá a minha mãe conheceu o meu padrastro, Henri Müller, primeiro viola do Theatro Municipal de São Paulo. A música era totalmente filarmônica e clássica. O violino foi aos sete anos de idade, dentro de casa. Porque ele se casou com a minha mãe e permitiu que meu pai morasse junto. Então era meu pai e meu padrasto na mesa de jantar e minha mãe mandava nos dois. 

E aí outra coisa pela qual você é conhecido, para além do violino, é enquanto performer de música, é o seu canto. E o seu canto tem, como a sua leitura de poesia inclusive, uma dicção muito particular. Qual é a história de Jorge Mautner cantor? Como que isso veio acontecer? Como você desenvolveu esse talento?

Eu tinha verba aberta e ilimitada para comprar livros e discos, e o meu padrasto fazia bico. Além de tocar no Theatro Municipal, ele ia para as rádios acompanhar Aracy de Almeida e tudo. E eu ia com ele. Então eu conheci Aracy de Almeida, Blecaute, Jorge Veiga, toda a turma e íamos às vezes, por exemplo, para Atibaia, ou um lugar desses de excursão… Eu ia junto! Eu fui no colo da Aracy de Almeida. 

A sua literatura e até mesmo a sua discografia, a despeito da sua riqueza e da sua importância, acabaram se colocando um tanto quanto à margem do que seria o mainstream comercial ou até mesmo acadêmico. Talvez por isso, houve certa insistência crítica no uso do termo marginal para se referir a você. Como você lidou, lida com esse rótulo de marginal e a que você atribui essa hipotética marginalidade?  

Na verdade, é um elogio máximo. Um marginal tinha coragem de ser diferente e, no entanto… O marginal é o que está à margem do que a caretice da lei e da ordem pregam e que, às vezes, é usado para tirania. Então eu fico, logicamente, muito: hay gobierno, soy contra

Em contrapartida, essa questão da marginalidade, algumas de suas obras se tornaram um estrondoso sucesso como, por exemplo, especialmente, sua parceria com Nelson Jacobina, “Maracatu atômico”. Quais têm sido os seus sucessos ao longo da sua carreira artística e a que você acha que se deve o fato de essas músicas tornarem-se sucesso? Seriam elas menos marginais? 

Não, não. São intensamente marginais. Elas são proféticas, são atuais. A palavra encaixa mais logicamente a ideia; na música, ela continua dançando. Então a música é a coisa mais atávica do ser humano, porque são as batidas do tambor do coração. Quando você se apaixona tum-dum-dum [imita o som do coração acelerado] e começa por aí… Os piu-pius de pássaros, os assobios de tribos, e isso começa a ter um encantamento próprio. E a música nos leva para a quarta dimensão e para todas as outras dimensões. 

Há duas obras que celebram parcerias importantes na sua vida, que é o show, que depois virou o disco com o Gil, O poeta esfomeado, de 1987, e o disco com Caetano, Eu não peço desculpas, de 2002. Foram parceiros importantes, são obras importantes. O que você tem a dizer sobre esses momentos?

São meus irmãos. São ápices. São momentos de alegria eterna, de esperança e de muita alegria, amor e paixão.

O seu trabalho mais recente, em disco, se chama Não há abismo em que o Brasil caiba (2019). Esse título tenta disputar uma narrativa sobre o Brasil. Como esse disco foi pensado e o que que veio primeiro? As canções ou o título?

Eu não sei te dizer isso, se foram as canções ou se foi o título. Eu acho que não teve separação. Brota naturalmente. Não tem, digamos, uma lógica aguda para definir… Não tem isso. É como o Brasil. É amálgama. É mais do que mistura, é amálgama. 

Você, na sua obra, no seu pensamento, você falou de maneira densa sobre duas coisas: uma coisa da experiência íntima, da autorreflexão, desse tempo; do outro lado, as questões da tecnologia, dos seus avanços, da cibernética, das máquinas. Se olhando para o mundo hoje, o mundo capotado, o mundo que estamos, das telinhas e dos barulhinhos, e de um Donald Trump… essas coisas são compatíveis? A experiência íntima, da reflexão, do autoconhecimento, e ao mesmo tempo esse mundo acelerado da capotagem?

Eu vou te dizer que o mundo da capotagem pode ser o nosso Armagedom, porque as coisas estão totalmente atadas ao interesse monetário. Mas a um nível como nunca se viu. Agora, ao mesmo tempo, nunca houve tamanha liberdade também. O que eu lamento é o fato de não ter leitura. Ela ser substituída por imagens e bombardeios propagandísticos e por tudo, causa um enfraquecimento do espírito humano. Agora, veja bem, essas máquinas de comunicação… Hoje ninguém mais lê livro. Isso é o maior terror.

Mas tem uma questão sobre as máquinas de comunicação, que você já falou, que seria interessante você recuperar, que é quando você falou que, da megacorporação multinacional até a quitanda da esquina, ninguém resiste à sugestão da máquina.

Exato. 

Isso é ruim?

Não é ruim nem bom, porque depende. Se a máquina estiver irradiando algo que seja bom, seja instigante…

Depende da sugestão da máquina então? Porque eu lembro que quando você falou isso, primeiro você falou assim, que por isso todo mundo pensa que sabe – por causa da sugestão da máquina –, mas não sabem, porque não sabem como aquele resultado veio até si…

É isso aí. São várias coisas, muitas vezes opostas. Os opostos se atraem. Tudo o que existe é caos permanente. A ciência, os cientistas comprovaram, um exemplo de caos que eu gosto de dar é o seguinte: um buraco negro engole uma galáxia. O outro buraco negro engole uma galáxia, mas cria uma outra. Qual o motivo? É a mesma coisa que gente tá fazendo aqui. Não é fantástico?

Você tem escrito, composto, pensado, criado algo novo nos últimos tempos? O quê? 

O tempo todo. Às vezes jogo fora. A minha vida é essa: eu fico fazendo arte, em toda hora. Arte no sentido de brincadeira e arte o tempo todo. É intrínseco. Eu agora tô vendo aquela cortina balançando, falando com a gente, mandando um “olha nós aqui”, olha essa árvore que linda! Se entra ali um gatinho, um cachorro, eu enlouqueço. Eu falo com eles.

PRÉ, PÓS E NEO TROPICALISMO

Você começou a compor canções ainda nos anos 1950. Encontra-se com Gil e Caetano no final dos 1960 e começa a lançar discos em 1970. Caetano cita você em Sampa (“seus deuses da chuva”), e em Verdade Tropical ele cita você também como uma referência importante para ele. Você, Jorge Mautner, é um pré-tropicalista, um tropicalista ou um pós-tropicalista? 

Tudo isso. 

Há, para você, alguma diferença entre o que foi o tropicalismo, ser tropicalista e um pós-tropicalismo? 

Não, essa diferença é uma abstração para parecer lógica. Acabou.

Você sempre defendeu a importância de olharmos para as pautas das identidades. Essas questões identitárias parecem, hoje, ter centralizado definitivamente o debate contemporâneo. As coisas aconteceram do jeito que você imaginava?

Sim e não, em parte… Eu diria que 90% sim e está se encaminhando para isso.

No sentido de que houve bastante emancipação? 

Houve, é. E as próprias máquinas, quando elas se tornarem superiores àqueles que as manejam, vão ter esse nosso pensamento mais humano. As máquinas serão mais humanas do que os seres. 

Mas, por outro lado, há também especialmente nesses últimos anos um grande retrocesso, né, por exemplo, com um presidente do Brasil que é abertamente racista e machista.

Aí, realmente…

Isso já estava no campo das suas expectativas? Você imaginava que isso aconteceria?

Temerosamente sim. Sim, porque, veja bem, eu sei que se continuarem a queimar a Amazônia virão as tropas da China comunista, dos Estados Unidos, da Rússia e de toda a comunidade europeia ocuparem a Amazônia como ponto central, vital, para respiração e a vida do planeta. 

Desde os anos 1970, há um encontro entre contracultura e a indústria da cultura e do entretenimento. Do mesmo modo, essas pautas da identidade – as questões da negritude, da defesa do movimento LGBT, do movimento feminista – aparecem hoje mais ainda sob os holofotes das editoras, dos serviços de transmissão de canções, do serviço de audiovisual, do cinema. É uma relação ambígua?

É o sucesso das ideias. É a verdade inserida nessas coisas…  É direto. 

A tese da originalidade do Brasil enquanto amálgama de raças e culturas, que tem um parentesco com as ideias defendidas pelo Gilberto Freyre, a construção imaginária e discursiva desse país miscigenado racial e culturalmente, alegre e liberto sexualmente, essa tese está hoje sob profunda crítica desses mesmos grupos. O investimento seu na ideia do amálgama cultural precisa ser revisto? Você pensa criticamente sobre isso, diferente de como pensava? 

Não, penso cada vez mais aquilo que eu pensava. 

Mas você, hoje, tem um olhar muito mais crítico… Por exemplo, a insistência com a qual você fala da segunda abolição, da importância de resolver a permanência do racismo nas relações brasileiras. Isso, em si, já não é uma relativização daquela ideia muito mais cândida do Brasil enquanto encontro e mistura das raças? Não tem um papel importante para você, no seu pensamento, reconhecer que há um conflito e ele precisa ser lidado? 

Esse conflito precisa ser lidado. A proeminência desse sentido veio para ser decapitado. A coisa mais importante é a segunda abolição dos escravos. O Brasil ainda é o país que tem escravos e bem mal disfarçados. Então tem que ser isso, que é nosso amálgama. Isso tá em Guimarães Rosa, isso tá em todos os lugares. É o Kaos com K….

Mas o fato da mistura, Jorge, ela não afasta a realidade de que, por exemplo, o Brasil vive com uma grande parte da população, esta principalmente negra, sujeita a… 

A maior parte é negra e os índios são esmigalhados e são quase escravos. Ou seja, uma coisa não exclui a outra. Não é pelo fato de que o Brasil é um lugar que culturas e etnias se amalgamaram, isso não deixa de… Olha, o governo não governa. Ele é pequenininho. É tudo blefe. Por exemplo, já na época da escravidão, quando um quilombo se tornava muito forte, eles iam, a capitania, “olha vocês estão muito fortes, vocês têm que se mudar”, e o quilombo se mudava para 400 quilômetros e assim foi feito o Brasil. O único que se recusou foi o Zumbi dos Palmares, embora o pai dele concordou em mudar o quilombo. Mas ele insistiu.

Ou seja, mesmo a sua fé na ideia de amálgama não te impede de perceber que o racismo, por exemplo, é uma realidade grave no Brasil. 

Nossa senhora, claro! É. Aí é a história de poder, né, pura e simples. Imagina, os brancos geniais como Noel Rosa iam ficar com os negros, né? Fazer samba. Os outros que não tem essa… não precisa ser cidadão negro para ter emoções. É a igualdade que nós estamos falando. Egalité, liberté, fraternité. Isso o Brasil puxou raríssima exceção, nenhum país outro se compara ao Brasil, que é um continente e que foi feito assim e tem tudo isso. Agora é rápido, por causa da tecnologia.

O fortalecimento desses debates e também das redes sociais, também deu voz a esses grupos que eram, e ainda são mantidos de maneira subalternizada e que agora se manifestam, por vezes de forma incisiva, sobre os objetos culturais contemporâneos, que passam a ser olhados e julgados por esse prisma. Como você vê as dimensões progressistas ou autoritárias dessas novas manifestações públicas? Parecem em algo com a patrulha dos anos 1960, 1970, ainda que em outros termos, ou são completamente diversas? 

Ambas as coisas. O politicamente correto é politicamente correto. É óbvio, né? Pelo amor de Deus. Somos todos iguais. Não tem ninguém superior ou inferior. Essas categorias são categorias do escravagismo. São pensamentos de Adolfo Hitler… 

Ou seja, as pessoas que pertencem a grupos que são discriminados às vezes violentamente no Brasil, elas acompanharem criticamente o que é produzido e denunciarem o racismo, o machismo, você considera isso…?

Isso é mais do que certo. Isso é mais do que urgente. Isso vai resultar nas conclusões que eu cheguei de pacificação, digamos, de vida humana, de consideração ao próximo seja ele anão, gigante, negro, mulato, índio, sei lá. 

Todo tipo de gente…

É claro. E também os animais. Isso se estende… É um processo de inteligência lógica. O que se faz… Agora, o problema que eu vejo é o perigo da humanidade, é o que você tá vendo hoje… O coronavírus é uma tecnologia que serviu para eleger o Trump. O Zuckerberg – é montanha de açúcar o nome dele –, essa gente… E depois outra coisa, a coisa mais aterrorizante. Vou te dizer o que aconteceu: ninguém mais lê livros. 

Ficou célebre sua afirmação de que “Ou o mundo se brasilifica, ou vira nazista”. Nos últimos anos, estamos assistindo à emergência de um Brasil muito mais autoritário, violento e conservador do que esse Brasil que você defende. Como você vê essa tensão entre esse Brasil que você acredita, tem fé e ama, e esse Brasil que está se revelando, que é escroto, machista, autoritário, violento… 

É uma guerra aberta, declarada e clarissimamente identificada. Não tem nem entrelinha. Aí é claríssimo. Se eles não fizeram a reforma agrária e não deram educação, do jardim de infância até a universidade de graça para todos… 

Você pensa na morte? Você tem medo da morte? 

Olha, claro que eu tenho medo da morte. Não gostaria de morrer. Mas é inevitável. Você se rende aos fatos. A velhice torna você mais fraco, mais cansado. Já é um encaminhamento para isso. Mas haverá uma época em que os seres humanos vão viver mil anos, dois mil anos… 

Você falou mais cedo, enquanto a gente conversava, sobre como a sua cabeça e o fato de criar poeticamente, para você, é uma coisa ininterrupta. Nesse seu imparável fluxo de consciência e criação e pensamento, a morte entra? Ela habita seus pensamentos, seus sonhos?  

A morte sempre está presente. Se existe o nascimento, existe a morte. Em tudo. Para as hortaliças. Em tudo, tudo, tudo. Os astros. Um buraco negro engole uma galáxia. Matou a galáxia. O outro buraco negro engole uma galáxia, mas fabrica uma outra. Essa é uma pista. (Risos). 

Gostaria que você contasse a lembrança emocionalmente mais marcante da sua vida. 

Ah, meu Deus! Meu pai. Minha mãe. Meu padrasto. Minha babá, Lúcia, que era mãe de santo. Os meus amigos, minhas amigas. É difícil, hein, porque para a pessoa sensível todos os momentos são marcantes. Eu não posso dizer é esse, é aquilo. Não. É tudo. Não dá para diferenciar desse jeito. Isso é um equívoco. É tudo, mesmo porque por mais que você faça as coisas pensando e preparando, tem sempre o inesperado. E o inesperado ele é muito forte. Então sempre tem alguma coisa inesperada. 

#39Yes, nós somos barrocosCulturaSociedade

Carnaval, a epopeia da comunidade serrana – Diálogos com a obra Serra, Serrinha, Serrano: O império do samba

por Priscila Carvalho

Em 23 de Março de 1947, na casa de Tia Eulália, situada à rua Balaiada, em Madureira, fora fundada uma das principais agremiações do carnaval carioca, o Império Serrano. A busca incessante por espaços onde a democracia, a liberdade e a coletividade fossem respeitados foi a motivação para que Sebastião de Oliveira, o Molequinho, e Elói Antero Dias, o Mano Elói, construíssem ali, naquele momento, as diretrizes que acompanham até hoje este então menino de 47. 

“Uma escola de samba” é o slogan do Império Serrano. Essa frase simples, porém, poderosa como a coroa imperial, traduz o empenho da comunidade em ensinar a arte do samba para os herdeiros do legado deixado por grandes mestres, tais como os já citados Mano Elói, Molequinho, Tia Eulália e outros tantos, como Vó Maria Joana, Tia Maria do Jongo, Silas de Oliveira, Wilson das Neves, Beto Sem Braço, Mano Décio e Dona Ivone Lara.

O antropólogo Roberto da Matta define o Carnaval como um ritual de inversão, uma alternância entre o cotidiano e o extraordinário. É na perspectiva dessa alternância, ou melhor, na concomitância entre estas duas realidades que Rachel e Suetônio Valença observaram e acompanharam de perto a trajetória do Império Serrano em todas as suas nuances: do dia a dia ao apogeu na avenida. Tais observações deram origem ao livro Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba, publicado originalmente em 1981 e reeditado em 2017.

Rachel Valença esclarece que não escreve do lugar de pesquisadora. Sua escrita se dá a partir das experiências de uma imperiana apaixonada. Tão apaixonada que foi ritmista da bateria da escola, atuou como diretora cultural e como vice-presidente da agremiação. Sua posição durante a construção da obra foi o de coletora de grandes histórias e amplificadora das vozes de personagens importantes. Subvertendo a ordem do cânone acadêmico, quem ensina é o samba.

Exuberância e suntuosidade, marcas estéticas do reizinho de Madureira

Suntuosidade, grandeza, exuberância e até uma certa pompa são marcadores estéticos importantes quando contemplamos uma majestade como o Império Serrano. 

Roger Bastide (1945) descreve a arte barroca no Brasil como “mais do que uma arte para decorar igrejas, mas, antes de tudo, uma maneira de viver”. Vemos muito desse viver barroco nas narrativas desenvolvidas pela escola para a avenida, porém, também a testemunhamos no dia a dia, na devoção quase religiosa desta comunidade pelo seu território e pelo seu pavilhão.

A grandeza alinhada à riqueza de detalhes, característica da arte barroca, se faz presente no visual e na sonoridade da Sinfônica do Samba, como é conhecida a bateria imperiana. 

O músico Edgar do Agogô ampliou o instrumento de origem africana, que tem originalmente duas bocas, acrescentando mais duas, criando assim o Agogô de quatro bocas. Esta alteração trouxe a cadencia que se tornou a identidade sonora da escola.  

(Edgar do agogô – criador do agogô de 4 bocas)

Serra dos meus sonhos dourados, samba de Carlinhos Bem-Te-Vi é uma poesia de amor e exaltação, que carrega elementos clássicos da literatura barroca, tais como o cultismo, ou seja, a exploração das sensações e emoções. 

Rachel e Suetônio Valença fizeram importantes observações sobre a estética e as narrativas de epopeia presentes nas letras de Silas de Oliveira no capítulo A suntuosidade me acenava.

“Quero sentir nas asas do infinito
Minha imaginação
Eu e meu amigo Orfeu
Sedentos de orgia e desvario
Cantaremos em sonho
Os cinco bailes da história do Rio”

Cinco bailes da história do Rio, samba de 1965, reúne os mecanismos necessários para trazer ao público toda a exuberância pretendida pelos compositores. Além de um samba imponente, o desfile de 1965 levou para a avenida uma arte até então inédita: as alas coreografadas, com a pioneira ala Sente o Drama.

“Ao erguer a minha taça
Com euforia
Brindei aquela linda valsa
Já no amanhecer do dia
A suntuosidade me acenava
E alegremente sorria”

Aos verdadeiros heróis da liberdade

Ruptura com padrões autoritários, resistência e luta por direitos são características estruturantes para a construção da identidade do Império Serrano. Tais características estão fortemente presentes, também, nas histórias de suas grandes estrelas.

Silas de Oliveira, nascido em uma família evangélica, precisou se afastar dos pais religiosos para que pudesse se dedicar à sua arte, o samba. Outra história de luta por igualdade é a de Dona Ivone Lara, a mulher pioneira na assinatura de um samba enredo, tendo composto junto à Bacalhau e Silas de Oliveira o antológico samba Os cinco bailes da história do Rio.

Um incontestável marco no que diz respeito ao enfrentamento e ao posicionamento político no Império Serrano é o samba de 1969, Heróis da liberdade

Passava noite e vinha dia
O sangue do negro corria
Dia a dia

De lamento em lamento
De agonia em agonia
Ele pedia o fim da tirania

Lá em Vila Rica
Junto ao largo da Bica
Local da opressão
A fiel maçonaria com sabedoria
Deu sua decisão, lalala

Com flores e alegria
Veio a abolição
A independência laureada em seu brasão

Ao longe, soldados e tambores
Alunos e professores
Acompanhados de clarim
Cantavam assim

Já raiou a liberdade
A liberdade já raiou

Essa brisa que a juventude afaga
Essa chama
Que o ódio não apaga pelo universo
É a evolução em sua legítima razão

Samba, meu samba
Tem a sua primazia
Em gozar de felicidade
Samba, meu samba
Leva essa homenagem
Aos heróis da liberdade, oh

Liberdade senhor

Durante seu depoimento para o documentário Menino de 47 – A resistência do samba, Rachel Valença descreve Heróis da Liberdade como o marco do fim de uma era. Composição de Manoel Ferreira, Silas de Oliveira e Mano Décio, o samba foi o último de Silas e Décio a levar a escola para a avenida.

Para além da sua incontestável importância para a história da agremiação, Heróis da Liberdade traz ao protagonismo os verdadeiros heróis do Brasil, heróis estes negligenciados por aquela que conhecemos como a História oficial. Em plena Ditadura Militar, a escola, com sabedoria e coragem, levou para a avenida um grito por democracia.

Atualmente, ao final de todas as edições do Samba na Serrinha, evento que ocorre no centro Cultural Casa do Jongo, localizado à rua Compositor Silas de Oliveira, em Madureira, Heróis da Liberdade é entoado enquanto todos os presentes se dão as mãos numa grande roda. É como se o samba tomasse os moldes de uma oração.

Foto de Cris Vicente

Não me pergunte para que samba eu vou. Eu vou para o Império Serrano sim, senhor

Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba é uma obra que revisita com emoção, cuidado e respeito a história do Império Serrano e das pessoas que fazem com que a alviverde de Madureira permaneça viva e dando frutos.  

Sua leitura nos envolve em uma viagem pelas origens da comunidade da Serrinha, origem essa que fala também sobre a construção social, política e geográfica dos subúrbios do Rio de Janeiro, reconhecendo as bases africanas que geraram, pariram e nutrem até hoje, dentre outras tantas coisas, muito do que temos de mais precioso em termos arte neste país, inclusive o samba, filho do Jongo.

O livro é também um tributo à fé do imperiano. Fé aos Orixás, expressa desde os jantares para os cachorros, passando pela fé em São Jorge, padroeiro da escola, chegando à fé devotada ao próprio Império e nas suas glórias. 

Como moradora de Madureira e vizinha do morro da Serrinha, posso dizer que viver aqui é respirar poesia e sonhar melodias, é honrar os bambas e é, acima de tudo, se emocionar ao ver nas crianças e jovens de hoje a continuação dos sonhos germinados lá em 1947. 

“A minha história já fala por mim
Sou resistência, orgulho sem fim
Tem poesia no ar, você já sabe quem sou
Pelo toque do agogô”

Minha pesquisa em artes se dá entre festas drag, escolas de samba e arte contemporânea. Sou um corpo que vive em constante trânsito entre a Amazônia e o Sudeste, cruzando referências globais e locais para refletir sobre a identidade brasileira e o cenário político contemporâneo. Sou bixa, preta e ativista pelos direitos da população LGBTQIA+, uma das primeiras artistas drag-themônia coroada na festa Noite Suja, na cidade de Belém, em 2014. Atualmente, trabalhando na direção e criação do documentário Themônias, para o edital da revista ZUM, do Instituto Moreira Salles. A produção conta um pouco das ações sociais e artísticas desse coletivo, que há quase oito anos vem transgredindo os conceitos artísticos sobre gênero, sexualidade, comportamento e arte drag na Amazônia.

Sou um(a) corpo(a) alienígena às normas comportamentais do Sudeste, da branquitude acadêmica e dos processos de embranquecimento. Já atravessei muitas fases até me afirmar politicamente como bixa preta. Entendo a importância de ter iniciado minha carreira artística nas escolas de samba de Belém, de não negar as referências visuais, cores, performatividades e sonoridades que aprendi com as deusas do samba e do axé. Há alguns anos, venho pensando na ideia de festa como potência estética, como lugar de encontro e afirmação política. Em 2022, completo nove anos ativos e ininterruptos no carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, atuando desde 2018 como destaque em carros alegóricos. Atualmente, desfilo pela escola de samba Grande Rio e busco em referências como Piná e Jorge Lafond uma investigação sobre a memória de corpos(as) pretas e performáticas em carros alegóricos.

O meio acadêmico busca sempre se auto referenciar tendo ainda o homem branco como protagonista. A estrutura museal também é uma herança do colonialismo, o cubo branco exalta o clássico europeu, a arte conceitual e o minimalismo. Existe ainda hoje uma tentativa de separar arte “erudita” e arte “popular”, reforçando aspectos do racismo estrutural. As instituições impõem determinados cânones em detrimento de outros e tentam formalizar, inclusive operando em nosso próprio comportamento social enquanto artistas. Sendo do campo da performance, eu quero justamente o inverso: pensando um hibridismo das linguagens, reunindo imagens que cruzam a moda com a dança contemporânea, a África e o Brasil, meu corpo se expande entre paisagens, estampas, figurinos, alegorias e saturações cromáticas. O excesso se torna uma afirmação consciente, a estética brega paraense é uma crítica direta às drag queens que querem construir uma imagem de supermodelos magras, caras e padronizadas. A ironia como recurso constante para não cair nos clichês estereotipados que tentam esvaziar e reduzir a produção artística afro-brasileira e amazônica. 

As referências da cena drag e club kid, estranhas à cena formal da performance art, provocam desconfortos, ganham formas infinitas, transgridem a própria percepção do corpo humano para um lugar da ficção; expande-se pelo tridimensional trazendo ideias sensoriais sobre cor, colagem e cotidiano. Em uma sociedade cristã de sexualidade reprimida, binária e cisgênera, acredito que minha obra vem transicionando as próprias percepções de humanidade na mesma medida que minha percepção de gênero vai se tornando cada vez mais fluida e não-binária. Desejo que o corpo colonial desapareça e dê lugar a outras formas ainda estranhas e não identificadas, donas de seus desejos, suas lutas e suas subjetividades.

Alice e o chá através do espelho (2014) | Paulo Evander Castro
Neon (2020) | Shai Andrade
Sereia (2019) | Allyster Fagundes
Foto de Caio Lirio
#39Yes, nós somos barrocosCulturaSociedade

Madureira, território barroco: escolas de samba e lugar de fala

por Mauro Sérgio Farias

Foto: Marcelo Brandt registra o carnaval da Portela

Depois de quase dois anos de pandemia, em meio a uma espiral de mortes por Covid-19 e muitos problemas econômicos, parece que 2019 foi há vinte anos. Ainda assim, quem acompanha mais fielmente o universo das escolas de samba do Rio de Janeiro certamente vai se lembrar do carnaval daquele ano, quando a Estação Primeira de Mangueira sagrou-se a grande campeã. O enredo, que homenageava lutadores sociais negligenciados pela nossa historiografia, como líderes indígenas, quilombolas e ativistas sociais, como a vereadora Marielle Franco, ganhou certa projeção fora do público habitual da festa. O desfile desfrutou de grande popularidade junto a uma significativa parcela da militância de esquerda, notadamente aquela mais próxima da intelectualidade forjada nos cursos de humanas das universidades públicas. O samba extrapolou os ambientes estritamente ligados ao carnaval e passou a ser entoado em manifestações e comícios com entusiasmo, podendo ser ouvido inclusive na voz de gente que nunca pisou em uma quadra de escola de samba.

A crítica levada à avenida tinha indiscutíveis méritos. Além de ser muito oportuna politicamente, foi construída com uma plástica inspirada e embalada por um samba que era uma verdadeira obra-prima musical. Rendeu um campeonato justíssimo e um maravilhoso hino de resistência.

Contudo, a justa vitória da Verde e Rosa e a popularização de seu samba-enredo ajudaram a cristalizar no imaginário coletivo a ideia de que o carnaval só é político se cantar a nossa luta contra a opressão em verso e prosa. Para muita gente, se o desfile não denunciar nossas mazelas estruturais da forma mais explícita, literalmente desenhando a tragédia de nosso passado escravocrata, ele não é engajado o suficiente. Como veremos mais adiante, essa é uma visão reducionista e simplificadora, que nem passa perto de dimensionar o quanto de resistência está embutida no ato de uma escola de samba desfilar, ou mesmo no fato de ela existir.

Assim como foram em outros tempos os Quilombos e as irmandades religiosas, as escolas de samba se constituíram como estratégia de sobrevivência de descendentes de africanos escravizados. Não à toa, os principais núcleos de irradiação do samba no Rio de Janeiro se formaram concomitantemente a um violento processo de segregação, quando, no começo do século XX, grandes contingentes de negros pobres foram expulsos do centro da cidade. As reformas urbanas do prefeito Pereira Passos, um projeto abertamente francófilo, higienista e excludente, forçaram esses grupos a ocuparem os morros e o entorno das paradas da estrada de ferro, constituindo as favelas e os subúrbios da cidade.

Dessa forma, as escolas de samba representam resistência no sentido mais essencial do termo. São espaços de socialização, ajuda mútua, lazer e expressão cultural de várias comunidades formadas a partir de resistentes, de sobreviventes da exclusão, da indiferença e do racismo. E, mais importante de tudo, elas constituem um espaço de preservação e de divulgação de saberes e práticas culturais de descendentes de africanos escravizados na diáspora. Elas são a afirmação viva e concreta da resistência e da identidade de um território. E é de um desses territórios, resistentes, aquilombados e representativos de uma herança cultural afro-brasileira, que parte a modesta reflexão que desenvolvemos aqui. Esse lugar surgiu a partir de ex-escravos oriundos das fazendas do interior do estado do Rio de Janeiro e de comunidades expulsas do centro da capital pela reforma urbana para a região em torno da estação ferroviária de Rio das Pedras. A iniciativa formou, na zona norte da cidade, o bairro que, posteriormente, veio a ser conhecido como Oswaldo Cruz.

A região formada por Oswaldo Cruz e pelos bairros vizinhos, como Madureira e Turiaçu, hoje constitui um pujante centro econômico, cujo comércio popular recebe visitantes de toda a cidade, principalmente nas lojas de atacado e de artigos religiosos. O tradicional Mercadão de Madureira é referência nesse tipo de comércio, sendo fácil encontrar quem cruze a cidade inteira em busca da diversidade e dos preços atrativos encontrados em suas lojas. Cortada por duas linhas de trem que dão acesso rápido ao centro da cidade, a localidade já é parte indissociável da cultura do Rio de Janeiro, tão célebre quanto muitos bairros nobres da cidade. Assim como Ipanema e Copacabana, a região já recebeu inclusive uma merecida homenagem musical que marcou seu nome na história da música popular brasileira. Composta pelo sambista Arlindo Cruz, a canção Meu Lugar, cujo refrão é tão simplesmente o nome do bairro de Madureira, é indispensável em qualquer playlist de samba que se preze.

Por sinal, a localidade também é berço da quase centenária Portela, histórica agremiação carnavalesca, reconhecida por sua trajetória de resistência e pela sua rica produção artística. O historiador, escritor e compositor Nei Lopes, profundo conhecedor do universo do samba carioca e da cultura afro-brasileira, nos dá uma ideia do quão importante é essa conexão entre as escolas de samba e seus territórios. Em seu Dicionário da Hinterlândia Carioca, no verbete sobre Oswaldo Cruz, ele faz questão de mencionar a Portela como a sua “mais importante expressão cultural”. Longe de ser um exagero, tal afirmação reflete o grau de importância da escola na vida da região em que ela está inserida.

O primeiro grande líder da agremiação também foi uma importante liderança comunitária da localidade. Seu nome era Paulo Benjamin de Oliveira, mas ele ficou eternizado como Paulo da Portela, o que, por si só, já dá uma boa ideia de seu envolvimento umbilical com a escola que ajudou a fundar. Paulo foi um batalhador incansável pelo reconhecimento das manifestações culturais de sua comunidade como legítimas e respeitáveis. Ele inclusive negociou, junto ao poder público, o aval para as festas e as apresentações carnavalescas da Portela e de outras agremiações, constituindo-se uma liderança reconhecida por todo o mundo do samba. O líder portelense empenhou-se pessoalmente no sentido de afastar os estigmas que sempre rondaram as manifestações culturais populares, como a feiúra e a marginalidade, incentivando os sambistas a se vestirem e se portarem com elegância e altivez. Era conhecido o seu lema segundo o qual sambistas deviam estar com “pés e pescoços ocupados”, o que se traduzia no cuidado em usar gravatas e bons calçados. Um esforço consciente em distanciar-se dos pés descalços que caracterizavam os negros escravizados.

Viver e circular pela localidade formada por Oswaldo Cruz, Madureira e bairros adjacentes é testemunhar cotidianamente a centralidade da escola de samba na vida comunitária. É topar com o legado de Paulo da Portela em cada esquina. É vivenciar, de forma concreta, conceitos aparentemente abstratos, como resistência e aquilombamento. Tudo isso está lá, visível nas mais variadas manifestações culturais do povo preto, que encontraram naquela região terreno fértil para crescer e se popularizar. Espaços como o Quilombo Urbano Agbara Dudu, o Jongo da Serrinha, o Baile Charme sob o viaduto Negrão de Lima, a Feira das Yabás, O Império Serrano, a Portela e incontáveis rodas de samba. Cada uma dessas manifestações é um galho nesse enorme baobá de resistência e ancestralidade.

Não seria exagerado afirmar que ter passado minha infância e adolescência imerso naquela atmosfera cultural constituiu minhas vivências, valores, preferências culturais e convicções ideológicas. Me fez ser quem sou, em suma. À primeira vista, se eu dissesse que Oswaldo Cruz é meu lugar de fala, talvez soasse como um trocadilho, uma subversão do conceito popularizado pela escritora Djamila Ribeiro, que estaria sendo utilizado em um contexto mais literal. No entanto, diante do impacto dessa vivência em minha forma de ser, de pensar e de agir enquanto preto, sambista e suburbano, posso tranquilamente dizer que levo Oswaldo Cruz na mente, na alma e na pele. Oswaldo Cruz, Madureira e a Portela são meus lugares de fala, não só enquanto origem geográfica, mas como fonte originária dos valores que defendo e das práticas culturais que perpetuo.

Integrar o Departamento Cultural da Azul e Branco me convida diariamente ao desafio de me debruçar sobre a história dessa escola e dessa localidade, que sempre me foram referenciais afetivos, e vê-los também como fontes de saberes ancestrais. Assim, eu posso, a partir deles, olhar para o futuro de nossa gente e de nossa cultura, guardando a prática, vinda de África, de aprender com o legado daqueles que vieram antes de nós. Como já cantou um de nossos grandes poetas, o eterno mestre Paulinho da Viola, “quando eu penso no futuro, não esqueço meu passado”. Esse passado rico de ensinamento e esse futuro repleto de possibilidades podem ser vivenciados cotidianamente em Oswaldo Cruz, Madureira e na Portela, meus lugares de fala.

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Retóricas visuais da Memeflix brasileira

por Giselle Beiguelman

Foi-se o tempo em que a visualidade da política se concentrava nas máquinas de propaganda do Estado e em campanhas de “santinhos” impressos, fotos e vídeos dos candidatos em comícios, carregando criancinhas em favelas, tomando café em bares da periferia e inaugurando obras. Hoje estamos diante de um novo arco de produção simbólica, que inclui a tomada das telas de TV no horário nobre, infiltrações ativistas na primeira página dos jornais e muitos memes.

Poucos momentos explicitaram tão bem essa nova condição como os que antecederam a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 7 de abril de 2018. No tempo-espaço do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo (SP), onde Lula ficou por 48 horas, a foto do ex-presidente carregado pela multidão, depois de um discurso histórico de 54 minutos, viralizou. De autoria de um até então desconhecido jovem de dezoito anos, Francisco Proner, foi compartilhada incontáveis vezes no Instagram e no Facebook e estampou o noticiário de veículos tradicionais, como o The Guardian e o The New York Times, sobrepondo-se às narrativas oficiais sobre o caso. 

Nesse movimento de passagem de tela a tela, elas vão se convertendo em múltiplas derivadas e podem implicar uma ruptura com o sistema de representações vigente e seus mecanismos de organização simbólica.”

O fenômeno de recontextualização dessa imagem está longe de ser um fato isolado e responde a uma lógica de apropriações que é característica das formas como se encadeiam os jogos políticos estéticos nas redes, da esquerda à direita. Não se trata aqui de abrir uma discussão sobre a história da apropriação na arte contemporânea desde a pop art. Tampouco de explorar as práticas do sampler e do remix, que pautam a cultura eletrônica e digital desde os anos 1970, e as particularidades das estéticas dos bancos de dados, tão fulcrais no contexto da net art. O foco aqui são as imagens que saem de uma mídia para outra, da tv às interfaces das redes sociais. Nesse movimento de passagem de tela a tela, elas vão se convertendo em múltiplas derivadas e podem implicar uma ruptura com o sistema de representações vigente e seus mecanismos de organização simbólica. 

Quando essas rupturas acontecem, desestabilizam a ordenação interna dos meios de comunicação de massa, e esse é um dos traços mais interessantes da ecologia midiática atual. A invasão do triplex do Guarujá (SP) pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ocorrida no dia 16 de abril de 2018, explicita essa relação. Na ocasião, trinta pessoas ocuparam por três horas o apartamento atribuído ao ex-presidente Lula, que o levou a ser condenado a doze anos de prisão. Mais do que funcionar como plano de tomada do apartamento, a ocupação-relâmpago do triplex foi porta-voz dos argumentos contrários à sua condenação. 

Os veículos de divulgação do protesto, contudo, não se resumiram às redes sociais, cada vez mais confinadas a bolhas, algoritmicamente dirigidas, e nas quais os grupos tendem a falar entre si e para si. O protesto invadiu a pauta dos principais noticiários da TV e teve sua mensagem estampada na primeira página dos jornais mais relevantes do país. “Se é do Lula, é nosso. Se não é, por que prendeu?” Essa era a mensagem que os manifestantes carregavam nas suas faixas e que se infiltrou nos veículos midiáticos tradicionais.

 Nesse contexto, a ação política torna-se happening e a regra do jogo passa a ser a consciência de estar “dentro” de uma futura imagem. Como assinala a pesquisadora Esther Hamburger, essas infiltrações midiáticas “ocorrem em ações políticas performáticas que antecipam, e até certo ponto provocam, a reverberação de imagens que inundam circuitos transnacionais, usualmente preenchidos por conteúdos produzidos por corporações especializadas na produção de notícias”. 

Algo que já estava enunciado com bastante força nas ações Zumbi Somos Nós (2007), do grupo Frente 3 de Fevereiro, mas que se torna socialmente transversal nas manifestações de junho de 2013. Afinal, como não lembrar que um de seus momentos mais marcantes foi a travessia da ponte Octávio Frias de Oliveira, em São Paulo, no dia 17 daquele mês? Roteiro até então incomum nos protestos, a ponte estaiada é o cenário que se entrevê ao fundo em vários programas jornalísticos da Rede Globo. Foi, por isso, o local escolhido pelos manifestantes para gritar palavras de ordem contra a emissora e pressioná-la a mudar o tom sobre os protestos contra o aumento de tarifas públicas. As declarações da jornalista Patrícia Poeta, no Jornal Nacional daquela noite, em defesa da cobertura até então realizada, inseria indiretamente os manifestantes no quadro e consumava o sentido da ponte ocupada, como imagem e dispositivo político. 

Os registros do performático desfile de moda dos estudantes secundaristas na ocupação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), em maio de 2016, em protesto contra a corrupção na compra da merenda escolar, evidenciam, nesse contexto, uma transformação radical em curso. Ela diz respeito aos meios de ver e dar visibilidade aos conflitos e às reivindicações, sem deixar de iluminar a diversidade dos corpos e sua dissidência dos padrões normativos. 

No limite extremo desses processos, ocorre uma inversão dos procedimentos que marcaram as relações entre arte, política e mídia nos anos 1970, durante a ditadura, quando as artes politizavam as mídias esteticamente. As infiltrações em jornais feitas por Cildo Meireles (1970), Paulo Bruscky e Daniel Santiago (a partir de 1974), ou no noticiário, como fez o grupo 3nós3, na intervenção urbana Ensacamento (1979), são alguns exemplos desse tipo de artivismo. Em ações como a “Alesp Fashion Week”, dispara-se outro vetor: é a política que ganha, via mídia, dimensões estéticas. 

É verdade que a relação entre imagem e política não é nova. Central nos totalitarismos dos anos 1930, constituiu o pilar de sustentação da sociedade do espetáculo conceituada por Guy Debord. Contudo, a associação entre imagem e política agora é de outra ordem. Mais que lugar e meio de transmissão de ideias e linguagens, a imagem é o próprio campo das tensões políticas. 

É na imagem, e não a partir dela, que os embates se projetam socialmente. Na explosão de fotos, vídeos e muitos memes que desembocam rapidamente nas redes, a imagem se converte em um dos territórios de disputa mais importantes da atualidade. Bolsonaro e seus apoiadores introjetaram rapidamente essa dinâmica, um dos ingredientes mais importantes de sua receita de sucesso rumo ao Palácio do Planalto, calibrados pelas redes sociais. Que o digam os manifestantes bolsonaristas gritando “Facebook, Facebook, WhatsApp, WhatsApp!!!” na Esplanada dos Ministérios, no dia 1o de janeiro de 2019. 

Não é de agora que as redes sociais se tornaram lugares relevantes nos processos políticos, e isso está longe de ser uma exclusividade dos apoiadores do presidente Bolsonaro”

Não é de agora que as redes sociais se tornaram lugares relevantes nos processos políticos, e isso está longe de ser uma exclusividade dos apoiadores do presidente Bolsonaro. Muito se falou sobre a importância das redes sociais em movimentos como a Primavera Árabe, o 15-M espanhol e o Occupy Wall Street, que aconteceram em 2011, e as Manifestações de Junho de 2013 no Brasil. No calor da hora, chegou-se a identificar a Primavera Árabe como a primeira revolução feita pelo Twitter. Pode-se dizer que há exagero nessas colocações, mas não há exagero algum em afirmar que, sem os recursos do Facebook e do Twitter, essas manifestações não ocorreriam da forma como ocorreram. Sua capacidade de divulgação global, alcance social e disseminação está diretamente relacionada a essas redes sociais. 

Discorri sobre essas questões em outras publicações, mas enfatizo aqui que o caso da chegada de Bolsonaro à presidência desloca o eixo dessas análises. No seu espectro, como veremos, as redes sociais são o espaço primordial de construção e realização da política. Nessa perspectiva, a saudação inédita em qualquer posse presidencial, levada a cabo pela militância bolsonarista para recepcionar a imprensa, em Brasília, naquele dia, fazia jus ao estilo do novo titular do posto, Jair Messias Bolsonaro, e indicava um redirecionamento das relações entre a internet e as ruas. Nas suas redes sociais, o presidente deixa claro que elas não foram apenas meios de acesso ao poder. Mais que veículos de comunicação pessoal, as redes são seu principal canal institucional e o lugar de construção de sua imagem. Imagem que é a linguagem pela qual está sendo escrita a história oficial de seu governo. 

Com mais de 35 milhões de seguidores, distribuídos entre suas contas no Twitter, Facebook e Instagram, o 38o presidente da República é um dos principais líderes mundiais nas redes. E isso é resultado de um trabalho milimétrico e militante, labutado entre teclados, câmeras e muitas, muitas lives, nas quais ganhou força um regime visual que faz toda a diferença nas regras do jogo político que o presidente Bolsonaro protagoniza. Durante a campanha presidencial, suas imagens atravessaram os mais diversos ambientes: de gabinetes a salas de estar, passando pela cozinha, a churrasqueira da casa, o caixa automático e até seu leito na UTI quando ele esteve hospitalizado. 

Em conjunto, os registros da campanha constituem um legado ímpar de imagens precárias, por vezes fora de foco, feitas com câmeras mal posicionadas, iluminação descuidada e ângulos distorcidos. Nos vídeos, ao fundo, frequentemente apareciam, de um lado, uma menorá, o candelabro judaico que é também parte da liturgia evangélica, e, do outro, uma moringa de barro, símbolo tão singelo da cultura nacional. Sobre a mesa, objetos variados: papéis com anotações, notas fiscais, livros de e/ ou sobre o político britânico Winston Churchill, tratados antimarxistas e celulares diversos. O importante era transmitir uma certa ideia de desarrumação geral, com cara de cenário improvisado, para naturalizar a cena e ganhar ares de informalidade e espontaneidade. 

Retoma-se aí a estética amadora consolidada pela apropriação da linguagem do vídeo caseiro que explodiu com o YouTube e que surge como estratégia de aproximação do “mundo real”. Essa estética pretende se contrapor ao imaginário tecnicamente perfeito do padrão de qualidade hollywoodiano (ou da Rede Globo), pela supressão de mediações. Como se a imagem produzida fosse um decalque do real, sem nenhuma interferência dos meios que a produzem e de quem os instrumentaliza. É nessa idealizada contraposição que reside a eficácia da estética amadora.

Às vésperas do primeiro turno, o então candidato falou de casa com seus seguidores na avenida Paulista. Com sombra no rosto, contra a luz, em um vídeo gravado em pé no jardim, tentando ver as imagens que lhe mostravam em outro celular, Bolsonaro levou seus eleitores ao delírio. Ao longo de toda a campanha eleitoral, diante das (próprias) câmeras, o candidato Bolsonaro ria, ficava sério, desafiava “a mídia”, preparava o pão com leite condensado do seu café da manhã, ia ao açougue e fazia churrasco. Aparecia no barbeiro, posava com a filha, descansava no sofá e compartilhava mimos recebidos de seguidores anônimos. De camiseta esportiva, shorts, e mesmo de terno e gravata, já no posto de presidente, ele não fala com seu eleitor, ele o exprime. E, ao exprimi-lo, como mostrou o semiólogo Roland Barthes (1915–80) décadas atrás, transforma-o em um herói, convidando o eleitor a eleger-se a si próprio.

Essa frequência vibratória não se desfez com a eleição. Pelo contrário. Da vitória no primeiro turno em diante, ela só cresceu. Em um dos seus picos de audiência, Bolsonaro quebrou todos os protocolos, postando a primeira foto oficial como presidente no seu perfil pessoal no Instagram. Seguiram a postagem mais de 1 milhão de likes. Não que isso seja um acontecimento incomum. As respostas às postagens de Bolsonaro são sempre acompanhadas de vários milhares de likes e aplausos aos seus feitos.

Trata-se de um verdadeiro ritual mobilizatório, uma estratégia de comunicação intensa que mais parece uma campanha eleitoral sem-fim. Mesmo depois de a administração das redes do presidente e de seus ministros passar a ser subordinada à Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República, deixando de veicular imagens da sua intimidade doméstica para incorporar o padrão da foto oficial, mas sem perder o elã motivacional, que fundamenta sua retórica visual. 

É justamente esse elã motivacional que afasta sua retórica visual do midialivrismo. Apesar de o presidente creditar sua vitória à independência dos grandes conglomerados de comunicação, uma prerrogativa de coletivos e redes como Jornalistas Livres e Mídia Ninja, sua visualidade amadora em nada dialoga com o midialivrismo. Nas práticas como a do Mídia Ninja, por exemplo, a tônica recai em um novo cinema insurgente, como chamou Ivana Bentes, e não em uma estética amadora. Prevalece aí uma “dramaturgia do grito”, forjada no corpo a corpo com o presente, em que a câmera se torna parte “de um animal-cinético, que filma enquanto combate e foge”. Uma câmera colada à respiração de quem produz a imagem de dentro dos acontecimentos, “em regime de urgência e precariedade”. 

Foi Barthes quem primeiro definiu o campo de uma retórica das imagens em texto que data de 1964, situando sua interpretação a partir do inventário de seus conotadores (o conjunto de associações que se acrescentam ao sentido original de uma palavra). Expande-se, com base nessa compreensão, o entendimento da retórica para além do discurso verbal, permitindo que se incorporem à análise “as convenções pelas quais [o discurso] é criado nos artefatos visuais e nos processos pelos quais influenciam os espectadores”. Nessa interpretação, as imagens transcendem o seu valor estético e funcionam como elementos simbólicos constitutivos de um sistema de comunicação, possibilitando que sejam pensadas no âmbito da experiência cultural e entendidas como constructo resultante de um trabalho coletivo. 

“Como uma prática”, escreveu o filósofo Arthur C. Danto (1924–2013), “a retórica tem a função de induzir o público a tomar determinada atitude em relação ao assunto de um discurso, isto é, de fazer com que as pessoas vejam a matéria sob determinado ângulo.” E esse ângulo, no caso do presidente, é estratégico. Sua retórica visual opera como um fator compensatório, que supre tudo aquilo que sua oratória não entrega. Não espanta que tenha se tornado um protagonista na torrente de memes e projeções nas fachadas de prédios de várias cidades que marcaram a pandemia do coronavírus no Brasil. 

Imagem característica da internet, os memes são imagens feitas para serem compartilhadas. Irônicos, expressam uma cultura de consumo rápido, que adere a temas do momento. Os mais disseminados são os que trazem imagens acompanhadas de textos curtos em letras garrafais, tecnicamente chamados de image-macro. Agregadores de linguagem, constituem o que Jacques Rancière chamou de “frase-imagem”. Um formato em que o texto não funciona como complemento explicativo da imagem nem a imagem ilustra o texto, mas os dois elementos se encadeiam para produzir um terceiro sentido. 

O termo “meme” foi cunhado muito antes do advento da internet, pelo biólogo inglês Richard Dawkins, em “O gene egoísta” (1976)”

O termo “meme” foi cunhado muito antes do advento da internet, pelo biólogo inglês Richard Dawkins, em “O gene egoísta” (1976). Alguns dos atributos que ele associou aos memes, especialmente quanto à forma de propagação e ao poder de contestação, explicam a popularização do conceito. Mais citada que lida, na teoria de Dawkins o meme é uma unidade replicadora que se alastra por imitação, sempre sujeito à mutação e à mistura, e que funciona como resistência crítica. Isso porque nos dá o poder “de nos revoltarmos contra nossos criadores” e de “nos rebelar contra a tirania dos replicadores [os genes] egoístas”. 

Foi nos anos 2000 que o termo ganhou força e a compreensão que temos dele na atualidade, explodindo nas redes sociais, pelo fluxo de compartilhamento, no Twitter, no Facebook e no Instagram. Nesse contexto, os memes expandiram-se, incluindo não só o mundo pop, como também o da publicidade e o da política, instituindo outra forma de comunicação visual, desvinculada do universo evolucionista de Dawkins. Para além das piadas com celebridades, torcidas de futebol, novelas e afins, os memes transformaram-se em uma espécie de comentário à queima-roupa de todos os acontecimentos cotidianos, constituindo um noticiário paralelo, baseado em imagens. Se antigamente valia o slogan: “Aconteceu, virou Manchete”, associado à primeira revista homônima do grupo Bloch, hoje o correto seria dizer: “Aconteceu, virou meme”. 

Migrantes e fluidos, compostos dos resíduos que saem de uma mídia para a outra, da TV às interfaces das redes sociais, os memes são instâncias midiáticas de alta circulação que produzem o apagamento dos seus rastros nos processos de deslocamento e apropriação contínua. De baixa resolução, bastardos e sem assinatura, são imagens pobres, no sentido dado por Hito Steyerl à expressão, que podem atuar como um contraponto aos sistemas de representação dominantes. 

Contudo, na atualização das mesmas imagens que são utilizadas recorrentemente, muitas vezes por grupos antagônicos, com novas legendas, revela-se uma contração do repertório visual que é criado nas redes. Conjugada ao imediatismo, à concisão e à volatilidade dos memes, essa repetição expressa, também, a impossibilidade de discussão e reflexão que impera no modelo atual de redes sociais. Isso ganha maior relevância na medida em que os memes passam a ser um instrumento político e cada vez mais usado nas campanhas eleitorais. 

A eleição presidencial dos Estados Unidos de 2016 deu a medida desse impacto. A produção de memes esteve presente desde as primárias do Partido Democrata, em fevereiro de 2016, em apoio ao candidato de esquerda Bernie Sanders contra Hillary Clinton, e marcou a disputa entre Hillary e Trump até o final do pleito. Não por acaso, a eleição entrou para a história da internet como a Grande Guerra dos Memes de 2016. No Brasil, foi ao longo do processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff que o uso de memes tomou o debate político nacional e vem assumindo protagonismo cada vez maior. 

Os memes dominaram a arena política de tal forma que o presidente Michel Temer chegou a proibir, em maio de 2017, o uso de sua imagem fora de contextos jornalísticos e de divulgação de ações presidenciais. Notificações foram enviadas a alguns sites e páginas humorísticas. O efeito foi bombástico e reverso. Em vez de serem controlados, imediatamente multiplicaram-se os memes com a figura do presidente. Reportagens nacionais e internacionais maximizaram os efeitos, culminando com o “troco” do Partido dos Trabalhadores (PT), que na época resolveu liberar todas as suas fotos disponíveis no Flickr para esse fim. O veto foi uma tentativa de reagir à forma como as redes se pronunciaram a respeito da delação da empresa jbs, que implicava o presidente Temer na Operação Lava Jato. O governo recuou nessa tentativa de controle, mas, para além desse fato pontual, ficava claro que estávamos diante de um novo contexto, não só da história da política, como também das imagens. 

Pesquisadores como a israelense Limor Shifman e, no Brasil, Viktor Chagas destacam que os memes da internet são um gênero midiático que assume múltiplas formas, mas que são sempre marcados pelo humor, com potencial para subverter as mídias tradicionais, e que se desenvolvem em razão de sua dimensão social nas redes. Outros teóricos, como os holandeses Geert Lovink e Marc Tuters, chamam atenção para sua capacidade de quebrar os limites do politicamente correto, indo muito além do que as mídias de massa poderiam suportar. Nesse flanco, abrem espaço para uma nova geração de imagens de ódio que têm se tornado recorrentes nas redes sociais. Nelas, conteúdos racistas, antissemitas, anti-islâmicos e homofóbicos são comuns. Da direita à esquerda, os memes ganham importância e seu formato de frase-imagem contamina o espectro estético da política e interfere no debate contemporâneo. 

Caso emblemático desse fenômeno ocorreu em janeiro de 2018, via post no Facebook feito pela deputada federal Cristiane Brasil. Indicada ao Ministério do Trabalho, Brasil decidiu gravar um vídeo no qual se defendia, a bordo de uma lancha, acompanhada de amigos marombados, em trajes de banho, visivelmente alcoolizados, da acusação de ter respondido a ações trabalhistas. O argumento, um tanto quanto nonsense para quem seria o titular da pasta do Trabalho, é que “todo mundo tem ações trabalhistas”. A explosão de memes que se seguiu à divulgação do vídeo acabou por abortar sua trajetória rumo à Esplanada dos Ministérios. 

Um dos bordões mais conhecidos da internet para abrir o compartilhamento de um meme sobre o Brasil é: “Regras: não há regras”. Se existia alguma dúvida sobre a precisão da frase, o vídeo a desfez para sempre. O affair Cristiane Brasil, no entanto, era só um prenúncio de outras séries inusitadas, como a batalha verbal entre os ministros do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que virou até um poema, com uma versão “interpretada” por Maria Bethânia (“ Gilmar, pessoa horrível”) e um funk (“MC Gilmar e MC Barroso”). 

Internacionalmente conhecido como um centro produtor e irradiador de memes, o Brasil tornou-se, com o coronavírus, não apenas símbolo da pior política de gestão da pandemia, mas uma verdadeira Memeflix. Não seria imponderável pensar que quem contará a história da nossa “coronavida” são os memes. Difícil lembrar todas as surpresas que vivemos ao longo desse período. Da adaptação ao isolamento social às declarações do presidente Bolsonaro, os memes fizeram a crônica de todos os momentos em uma espécie de jornalismo visual em tempo real. Nele, o cotidiano, os novos costumes e a intensidade dos reveses políticos do país foram registrados, acrescentando novas camadas à pandemia das imagens vivida a reboque do confinamento pandêmico.”


Ensaio originalmente publicado no livro Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera, de Giselle Beiguelman, pela Ubu Editora.
As notas de rodapé presentes no original foram suprimidas sem prejuízo ao conteúdo da obra. 

A atriz Adriana Esteves como Carminha, em Avenida Brasil (2012)

Uma das manifestações culturais brasileiras mais festejadas são as telenovelas, um produto nacional que evidencia uma face positiva do país ao serem exportadas para mais de 170 nações do planeta.! Barrocas e antropofágicas por natureza apresentam tramas seriadas envolventes, vários núcleos imbricados, tragédia e comédia mescladas, dramaturgos talentosos e atores que transmitem credibilidade, beleza e expressão. A TV Globo é a grande produtora, seguida de longe (na maioria das décadas de atuação) pelas outras emissoras, não menos esforçadas em apresentar suas criações. Assim, tentarei mostrar alguns momentos desta trajetória que marcou um público tão fiel quanto crítico. 

No ano de 1950, a televisão brasileira nasce como TV Tupi, pelo empreendimento visionário de Assis Chateaubriand, com apenas um aparelho de transmissão. Os técnicos e profissionais vinham do rádio e todos aprenderam empiricamente a como lidar com o novo meio eletrônico. É importante esclarecer que a tradição das radionovelas vem das narrativas folhetinescas dos jornais do século XIX, que acirravam a imaginação do público em torno do leitor. O público televisual, surpreendentemente, não se importava com a imagem aparente no monitor, cheia de interferências, chuviscos, linhas distorcidas, falhas, sem nitidez e muitos improvisos. Algumas produções foram memoráveis, apesar de algum som de galope se atrasar ou uma parede despencar de vez em quando. As cenas eram filmadas com a câmera grande, pesada, centralizada e imóvel como sendo a plateia do teatro. 

O governo Juscelino Kubitschek, na década de 1960, trouxe um grande impulso à mídia eletrônica e impressa como parte do processo de “popularização” do novo meio televisual, tornando-o economicamente acessível. Foi nesse período que a TV Excelsior e a Record surgiram. Também houve a introdução do videoteipe, tecnologia que possibilitava inovações como: a gravação e a apresentação em lugares diferentes ao mesmo tempo; a saída para cenas externas, que traziam mais verossimilhança à trama; e, principalmente, o fim dos improvisos, todos podiam estar bem preparados. Desta forma, a grade de programação se estabilizou e deu lugar à telenovela. Direito de Nascer (1964), de autoria de Thalma de Oliveira e Teixeira Filho, causou a primeira comoção nacional, e foi inspirada na radionovela cubana de Félix Caignet. O último capítulo foi transmitido no Ginásio do Ibirapuera (SP) e no Maracanãzinho (RJ) para milhares de pessoas mobilizadas.! Como não recordar Albertinho Limonta, Isabel Cristina e Mamãe Dolores, para quem os assistiu um dia? 

Não podemos esquecer o Golpe Militar de 1964, que redirecionou o país e gerou a mudança dos meios de comunicação. Em 1965, foi criada a Embratel que ampliou a transmissão simultânea dos programas em todo o território nacional. Bem como a inauguração da TV Globo, com o aporte do capital estrangeiro do grupo Time-Life, causando um estremecimento nas outras emissoras e evidenciando a hegemonia do eixo Rio-São Paulo.

Até então, permaneciam os textos adaptados de produções cubanas ou mexicanas, contudo, em 1968, surge uma telenovela renovadora de toda a dramaturgia de heróis maniqueístas e fórmulas esgotadas.! Beto Rockfeller, lançada pela TV Tupi (SP), concebida por Cassiano Gabus Mendes, Bráulio Pedroso e Lima Duarte, revolucionou a televisão e os lares brasileiros. E como aconteceu isso?

Voltando um pouco ao Barroco (séc. XVI), uma das características desse período foi a humanização dos personagens sacros impostos pela Igreja. O talento por trás desse processo foi o pintor Caravaggio, que utilizou como modelos os seus vizinhos, as prostitutas, o açougueiro ou o carroceiro da esquina para figurar os mártires da saga católica. Ele também criou uma forma de pintar mais próxima do natural, com mais contraste e drama, conhecida como “claro-escuro”. Traçando um paralelo com as telenovelas, tínhamos tramas “externas” à nossa cultura e em Beto Rockfeller foram adaptadas ao meio urbano da nossa classe média. O ator Luiz Gustavo protagonizou o anti-herói simpático e malandro, junto à Débora Duarte e Bete Mendes que ora sofriam, ora acertavam, ora erravam, projetando rapazes e moças comuns, humanizando a interpretação com naturalidade. Ainda nesse período, a Globo alojava Janete Clair, que não somente emplacou dezesseis telenovelas na emissora, como teve audiências altíssimas, na década de 1970, como Irmãos Coragem (1970), Selva de Pedra (1973), Pecado Capital (1975) ou O Astro (1978). Sucessos justificados da autora, que sabia apelar ao gosto popular ao mostrar núcleos de todas as classes sociais com autenticidade e dramas legítimos da alma humana entre o Bem e o Mal – elementos representados pelo período Barroco com o contraste drástico entre as cores claras (o Bem) e as escuras (o Mal).

As cores chegam aos monitores na década de 1970. O Bem-Amado (1973), de Dias Gomes, era uma sátira inteligente que criticava o regime militar através de coronéis do sertão baiano, que cometiam qualquer tramoia para permanecer no poder. E inaugura a fase das exportações da emissora. Só fica a dúvida de como traduzem o vocabulário peculiar de Odorico Paraguassú, quando diz: “depoismente”! Barroquíssimo!

Nesse período, ainda, foi implantado o “padrão Globo de qualidade” e a ampliação da Rede Globo no Brasil. Outro produto exportado é Gabriela (1976), de Walter George Durst. Baseada no romance de Jorge Amado, exaltava a cultura baiana com a morenice e a sensualidade de Sônia Braga. 

Sônia Braga em Gabriela, novela adaptada do romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.

Mesmo com tantos percalços, a década se encerra com a consagração do, recentemente falecido, Gilberto Braga. Escrava Isaura (1976) foi a novela que atravessou a Cortina de Ferro e chegou à África e à Ásia! Já Dancin’ Days (1978) foi uma febre que lançou itens de moda assinados por Marília Carneiro, como as meias Lurex com sandálias de salto alto. A trama era a rivalidade das irmãs pelo amor de Marisa, filha de Júlia e criada por Yolanda, resultando em que um sucesso absoluto em mais dearrebatou mais de 80 países. Memorável!

No ano de 1981, Sílvio Santos ganhou a concessão do Sistema Brasileiro de Televisão. Em 1982, passou a produzir obras adaptadas de telenovelas mexicanas, e recentemente, se tornou a quarta maior produtora de telenovelas da América Latina. Em 1983, surge a TV Manchete. Já a Globo simboliza o fim da Ditadura Militar e o início da Nova República com Roque Santeiro (1985), telenovela censurada anos antes, que foi reescrita por Dias Gomes, Aguinaldo Silva e Marcílio Moraes, e foi comprada por dezenas de países. A revista Veja, em 2016, a considerou a terceira melhor telenovela do Brasil. Quem não se apaixonou pelos personagens Viúva Porcina (Regina Duarte) e Sinhozinho Malta (Lima Duarte) exageradamente barrocos?

Porém, a instituição das maiores vilãs de todos os tempos foi introduzida por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, com a criação de Vale Tudo (1988), considerada a segunda melhor produção seriada do país, pela mesma revista Veja. Odete Roitman, que arquitetava as piores maldades, e Maria de Fátima, que além de roubar sua mãe, a renegava com todas as forças, são odiadas por todos até hoje. O assassinato de Roitman tomou a primeira página de jornais no dia de seu último capítulo, quando seria revelada a autoria do crime guardada como segredo de investigação do FBI.! 

Mas, nem tudo foram flores para a Globo… O verdadeiro tombo pela audiência foi com o lançamento de Pantanal (1990), de Benedito Ruy Barbosa na década seguinte, pela TV Manchete. Essa foi eleita a quarta melhor telenovela pela Veja (2016). A narrativa cinematográfica com longas tomadas da região pantaneira, ritmo lento e contemplativo, cenas de nudez e erotismo na natureza com afeto e vinculadas à trama amorosa, formaram a receita para a liderança da emissora mais nova. O fenômeno foi a coincidência com o Ano Internacional do Meio Ambiente, inaugurando a exaltação da consciência ecológica e do turismo na região Centro-Oeste. Juma Marruá virou um mito ao se transformar em onça pintada no imaginário do país.!

Todavia, a Globo, rapidamente, toma a frente com a inauguração do complexo cenográfico Projac (1995), onde passou a realizar toda a sorte de obras seriadas. Foi a década de introdução da tecnologia digital e da sofisticação das produções. Ao final da década e ao longo da seguinte, tivemos uma trilogia única: Terra Nostra (1999) e Esperança (2002), de Benedito Ruy Barbosa, e Passione (2010), de Silvio de Abreu. Obras de muito sucesso ao retratarem o desenvolvimento da colonização italiana aqui e as relações culturais entre os dois países: Brasil e Itália. Assim como Caminho das Índias (2009), de Glória Perez, contemplou a influência indiana no território nacional, e também teve ótimo desempenho na exportação.

E a produção mais bem-sucedida aqui e no exterior: Avenida Brasil (2012), de João Emanuel Carneiro. Considerada pela revista Forbes um fenômeno da televisão mundial, foi dublada para 19 idiomas. Todo o enredo gira em torno da vingança de Rita/Nina, que foi abandonada no lixão, um mundo nunca antes revelado na ficção televisual, pela madrasta Carminha. Na mesma novela, a classe dos emergentes foi retratada em todas as nuances. Espirais de relacionamentos enredam os personagens até o final, rendendo prêmios de melhores atores aos protagonistas pelas suas interpretações. E Carminha passa à galeria das vilãs adoradas por todos. Uma vilã multifacetada, manipuladora, mega-ambiciosa e ultrabarroca.!

Mas, ao considerar a última década, com o incremento das mídias digitais, a implementação dos streamings e lives, da onda de séries e da pandemia, que perdura há 2 anos, percebemos mudanças significativas na televisão aberta. Sem dúvida a concorrência por lazer está muito maior… A queda dos níveis de audiência foi vertiginosa, caindo até 50%, porém longe de ser uma ameaça às telenovelas.! É uma reviravolta semelhante ao surgimento do rádio em relação ao teatro, ou da própria televisão em relação ao rádio. O teatro continua firme, assim como o rádio e a televisão continuarão convivendo com os meios digitais. O custo de novas tecnologias, a extensão do nosso território e o poder aquisitivo da população… Ao pesar esses fatores, concluímos que as telenovelas abrangem grande parte do país, promovem uma troca riquíssima em termos de classes e cultura entre elas e, assim, lideram a preferência do público. 

Os “baixos índices de audiência” abrangem centenas de milhares de telespectadores, que revelam o potencial de amplitude do poder televisual, em comparação a outras mídias ou manifestações culturais, conforme alerta Arlindo Machado em seu livro A televisão levada a sério (2014)

Se analisarmos as pontuações, a Globo ainda representa aproximadamente o dobro do IBOPE diário da Record, com suas narrativas bíblicas, que, por sua vez, indica aproximadamente o dobro do SBT, com as adaptações mexicanas, salvo raras exceções, como as transmissões de jogos de futebol.

Dessa forma, o Brasil tem liderado a categoria seriada ao longo das décadas, fato que não descarta flutuações e trocas de posicionamento nos rankings de audiência ou mesmo de mídias. A inventividade brasileira tem sido prestigiada e celebrada ao mostrar tão bem a classe média, os sertões, o Pantanal, as imigrações, a vida no lixão ou a classe emergente em todo o mundo. E tudo isso, graças a nossa barroquice institucionalizada.

A ideia principal do trabalho que tenho feito sobre as florestas brasileiras – Amazônia e Mata Atlântica – é a de criar um diálogo com os artistas europeus que vieram ao Brasil para retratar pela primeira vez a exuberância da floresta tropical.

Fico imaginando a emoção e a surpresa desses artistas viajantes ao se depararem com uma floresta tão grandiosa, diversificada e diferente do que estavam acostumados a ver. É esse sentimento que tento resgatar, fazendo um trabalho, exatamente dois séculos depois, com uma tecnologia atual – a fotografia digital. Busco recriar uma volta no tempo, para transmitir a sensação de descoberta desses locais sublimes. A minha inspiração se deu muito a partir dos trabalhos de Debret (Forêt vierge sur les rives du Paraíba, 1834; Vallée dans la Serra do Mar, 1834), Rugendas (Forêt du Brésil, vers 1829: Forêt vierge près de Mangueritipa, 1835), Hércules Florence, Martius e, principalmente, do desenhista, cientista e arqueólogo francês conde Charles Othon Frédéric Jean-Baptiste de Clarac, de 1816. Este último, por incrível que pareça, fez o primeiro registro da floresta brasileira (La Forêt Vierge du Brésil), e para mim, sem dúvida alguma, a imagem mais espetacular e bela feita até hoje de uma floresta tropical. Creio até ser impossível que alguém um dia possa fazer uma imagem de floresta tão maravilhosa como esta.

O fazer deste ensaio fotográfico para mim é extremamente prazeroso, pois passar o dia todo caminhando no meio da floresta é uma forma de se reconectar com a natureza, algo ainda mais importante para mim, que sou uma pessoa urbana, tendo vivido sempre em grandes cidades. E nessas inúmeras caminhadas, tive muitos momentos emocionantes: um deles foi quando me deparei com uma recém descoberta Figueira-brava centenária, uma árvore gigantesca com raízes tabulares, formando um desenho maravilhoso. Essas árvores possuem uma energia incrível, elas impõem e merecem respeito, pois são como deuses da floresta – devem ser reverenciadas e contempladas. 

Espero que com estas imagens eu consiga também emocionar as pessoas, e que de alguma forma esses sentimentos ajudem na melhor conscientização sobre a importância de mantermos estas florestas de pé.

“Busco recriar uma volta no tempo, para transmitir a sensação de descoberta desses locais sublimes.”


A viagem de Cássio Vasconcellos

Por Daniela Bousso

A obra de Cássio Vasconcellos caracteriza-se como um trabalho de ultrapassagem das fronteiras entre fotografia e outros meios, e insere-se em um campo pós-disciplinar de operações artísticas. O artista enceta o  experimental como ponto de partida e designa um território de atuação que reúne técnica e subliminaridade. O seu modo de experimentar as imagens consiste em uma reorganização do imprevisível numa minuciosa trama de relatos. Na mediação imposta pela revisão constante, eis que surge o resguardo de um patrimônio vivo que subjaz em franca releitura, com a persistência da técnica aliada ao universo do fantástico. Ao inspirar-se nas imagens pictóricas produzidas pelos artistas viajantes que estiveram no Brasil no início do século XIX, visita florestas da Amazonia, a mata Atlântica de São Paulo e do Rio de Janeiro e produz uma série de tomadas in loco. Esta é uma escolha, uma maneira de produzir uma ecologia cultural, de reconstruir um sistema de identidades e criar novas imagens, recuperando parte da sua ancestralidade: o seu tataravô era Ludwig Riedel, o botânico que foi diretor da Seção de Botânica do Museu Nacional do Rio de Janeiro e integrou a expedição Langsdorff na década de 1820. 

Uma minuciosa pesquisa antecedeu as tomadas fotográficas que constituem a série “Viagem Pitoresca pelo Brasil”,  baseada, entre outras,  na obra “La foret vierge du Brésil”, de autoria do Conde de Clarac.  Nesta série absolutamente planejada, ele opera vários processos de transformação da imagem: ao fotografar, a matéria-prima é captada para acertar o processo posteriormente. Planejamento, seleção, interferência e seleção final, são etapas que respondem perfeitamente ao seu repertório atual e o seu desejo é remeter-nos à mesma sensação de emoção que os pintores viajantes como Rugendas, Taunay, Debret, Hercules Florence, Martius e Clarac tiveram ao visitar o Brasil. 

Para chegar a estas imagens, o artista percorreu caminhos arriscados, que ultrapassaram o que deve ser feito – em teoria – com o meio fotográfico e com o digital, este é o campo pós-disciplinar de sua ação. 

Ao retomar a imagem, ele produz a impressão de um gesto litográfico: desenha no computador folha por folha, a luz, são horas a fio desenhando – um processo digital artesanal onde a ação do dispositivo é completada manualmente – como nos primórdios da fotografia, quando os fotógrafos desenhavam sobre o papel fotográfico para ajustar contornos, cores.

Nesta reencenação da obra de Clarac, Cássio evoca a nossa consciência sobre a crise ecológica, sobre as questões de transbordamento do mundo atual. Ao reorientar o seu processo fotográfico, ao mesmo tempo em que se renova, produz ficção e fabulações. Por meio destas florestas, ele nos conduz a uma ecologia cultural a respeito do possível apagamento de um universo intocado, quiçá, por suposto em risco de dissipação, matéria de interrogação suspensa.


Barroco: substantivo masculino
1. Pérola de formato anômalo, caprichoso.
2. História da Arte: na pintura, escultura, arquitetura e artes decorativas, estilo, com elementos do alto Renascimento e do Maneirismo e ligado à estética da Contrarreforma, nascido em Roma c.1600 e cujas características básicas são o dinamismo do movimento com o triunfo da linha curva e (esp. na escultura e pintura) a busca da captação das reações emocionais humanas [Cedo internacionalizado, o estilo ganhou traços específicos em cada país.].

Dinamismo. Movimento. Triunfo da Curva. Captação das reações emocionais humanas. Contraste. Sagrado-Profano. Características do barroco enquanto estilo inserido na História da Arte brasileira e mundial, mas que em 2021 podem ganhar outros contornos. É preciso aquecer o barroco. É necessário estabelecer conexões entre a história da arte estudada nas universidades e a história da arte que é feita nas favelas, quebradas e periferias. O barroco está aqui. Desfragmentado, renomeado, mais preto, mais vivo. Ouso aqui pensar o barroco do meu lugar. De uma mulher negra e favelada, que pensa e escreve arte desde a favela. 

Do  Dinamismo:

Podemos entender que dinamismo é por essência a junção de forças que geram movimento. É esta uma das características do estilo barroco. Assim como era também uma das características de Dona Orosina Vieira. Vista por alguns historiadores como a primeira moradora do Conjunto de Favelas da Maré (Rio de Janeiro), Orosina construiu residência no Morro do Timbau (primeira favela da Maré), com madeiras sobre a área que ainda era mangue. 


Dona Orosina Vieira, considerada como uma das primeiras moradoras do Conjunto de Favelas da Maré.

No mesmo contexto, surgiram outras casas e núcleos familiares, intensificando o fluxo populacional da região, que hoje abriga mais de 140 mil pessoas. De uma casa sob o manguezal para um dos maiores conjuntos de favelas do país, o dinamismo foi palavra chave a partir da construção de mulheres e famílias essencialmente negras. O dinamismo estético apresentado no barroco também pode ser visto em estéticas faveladas. A pulsão do movimento é constante, desde a arquitetura, passando pelas gambiarras territoriais e desembocando em uma série de tendências que, como ondas, influenciam a sociedade como um todo. Biquíni de fita, alongamentos de unhas, descoloração de cabelos, “falhas” na sobrancelha não nos deixam mentir. A favela constrói uma visualidade dinâmica.

Do Movimento:

No livro “Cabeças da Periferia: Taisa Machado e a Ciência do Rebolado”, a atriz, pesquisadora e escritora conta que:

[…]eu tava no baile, e tinha um show de um MC que eu não vou lembrar  nome, e tinha uma dançarina com ele. Era um momento muito louco, era 2013, pegando fogo, e tinha um evento enorme no Complexo do Lins. Eu ia naquele baile todo sábado, e todo sábado devia ter umas 15 mil pessoas. Naquele dia tinha até mais gente, tinham duplicado o baile. […] Nessa noite tinha o tal do show desse MC com a dançarina. Ela era a famosa gostosa. Sabe quando você joga no Google “gostosa”? Aparece a foto de uma mulher tipo aquela. E ela tava de burca. Não uma burca ortodoxa, mas uma burca de show de funk, uma burcazinha que tapava só a cara. E dançando ela deu uma surra de bunda num cara. Surra de bunda é quando a mulher apoia os pés no ombro do cara e fica batendo com a bunda no rosto dele. Ela dançou pra caramba e os bandidos ficaram tão felizes com o show daquela mulher, que foram todos pra frente do palco. Eu tava lá na frente também. […] Eu não sei como me narrar nesse momento, mas com certeza eu tô trabalhando pra me narrar como eu narro essa mulher do baile.”

O causo narrado pela pesquisadora nos apresenta uma série de camadas. A favela. O baile. A dança. A burca. A surra de bunda. Todas elas permeadas e costuradas pelo movimento. Enquanto escrevo esse texto, observo as crianças correndo na minha rua, aqui no Parque União. Ao mesmo tempo ouço o som na rua paralela à minha. É sexta-feira, dia de baile do PU. As motos cruzam a favela, aceleradas na mesma via em que andam os pedestres, uma vez que por aqui calçada é raridade. Dizem que favelas como Nova Holanda e Parque União não dormem. Eu diria que não são apenas as duas. Diria que as favelas de forma geral não dormem. O indo e vindo infinito faz com que o movimento seja palavra essencial para pensar favela. Esse cotidiano insone e vivo reflete a necessidade de movimento de territórios, onde a inventividade se impôs como condição para a manutenção da vida.

Uma dançarina de funk de burca estabelece uma relação estética quase impensável. Mas esta relação se materializa quando falamos de barroco. Especialmente do barroco relido e revisto desde a favela. A conversa entre sagrado e profano ganha outro tom com o causo de Taisa. E é esse tom que me interessa.

Do Triunfo das Curvas:

Outra marca do barroco são as curvas, que sinalizam também o movimento, a dúvida, a fluidez. Porém, vivemos uma sociedade que por muitas vezes elege a linha reta. A firmeza, a dureza, a falta de flexibilidade e de “recheio”. O oco e reto. Assim, aqueles que apresentam a curva em suas ideias, corpos e modos de viver, acabam por ser marginalizados. Numa linguagem contemporânea a palavra “curva” virou sinônimo para falar de corpos (especialmente de mulheres) que fogem do padrão magro. Esses corpos muitas vezes são exotizados ou rejeitados. A sociedade brasileira ainda renega a curva.

Corpo-curva (Acervo pessoal da autora)

Em contrapartida, observo uma outra epistemologia da curva se formando em favelas e periferias, assim como em espaços LGBTQIA+. Formas outras de ver o mundo e de se relacionar com os corpos-curvas. Entendo aqui o corpo como plataforma de viver e de produzir arte. E as favelas são pioneiras no processo de fazer do corpo uma tela.

As unhas têm sido utilizadas como forma de demonstração de poder, autoestima e de afirmação ao longo da história da humanidade. No Egito Antigo – cabe lembrar que o Egito está situado em África –, o uso de unhas de marfim sinalizava status social, além da beleza estética. No Brasil contemporâneo, as extensões em materiais conhecidos como “acrigel” ou “fibra de vidro” marcam uma linguagem visual própria. Nesse quesito, a cantora Alcione aparece como uma referência destes corpos-plataforma artística, que permitem que os desejos, histórias e cores se apresentem como visualidade. Em programa de TV, Alcione relatou que “O povo lá em casa diz que gosto de um balangandã, de um colorido, é aquela raiz africana que a gente tem. Por isso essas unhas”. Alcione reforça a relação – não óbvia – que levanto aqui. O barroco tem muito a aprender com os balangandãs, com as “raízes africanas” e com as estéticas faveladas.

Cantora Alcione e suas unhas.

Da Captação das reações emocionais humanas:

O livro “O afrofunk e a ciência do rebolado” traz ainda uma reflexão sobre “o artista que se desenvolve na guerra”, a partir da mesma história citada por Taisa anteriormente. A dançarina de burca não interrompeu sua performance nem durante as rajadas de tiro disparadas durante o baile. A autora afirma que “Não tinha nada melhor do que o que aquela mulher tava fazendo na nossa cara, no meio de 15 mil pessoas.” A observação de Taisa, assim como o olhar de muitas e muitos favelados age como este captador das reações emocionais humanas. Estamos falando aqui de uma barroquice favelada ou de uma favela barroca, pensando que esses espaços não devem ser romantizados. Mas a proposta é que se veja também a favela como lugar de liberdade. Liberdade inclusive para ser barroca. É nessa liberdade que residem as emoções humanas, sentidas, vistas e vividas em intensidade por aqui. 

Esta ousadia conceitual de pensar o barroco a partir da favela – e vice-versa – vem de um desejo de nos provocar enquanto sociedade.  Vem da ânsia de ver mais favela na história da arte clássica. De rever os padrões de identidade nacional e os dogmas da Academia. Por isso, esse texto é um desejo. Desejo aqui um barroco com balangandã. Um barroco da gambiarra, que se constrói a partir de rolos de fio de “gatos” de luz. Um barroco forjado no movimento de expansão das favelas. Um barroco de curvas de mulheres lindas e pretas tomando sol na laje. Um barroco cada vez mais quente. Cada vez mais vivo.

#39Yes, nós somos barrocosCulturaSociedade

Mirar o Brasil para além do sincretismo: o vasto horizonte de palavras e práticas

por Celso Francisco Gayoso

O Barroco brasileiro enquanto experiência estética tem na coexistência de elementos sagrados e profanos uma de suas características, a isso é atribuída a marca sincrética. Contudo, é importante frisar que foram indígenas catequizados e escravizados de África os artistas que, mais diretamente contribuíram para a singularidade do barroco colonial brasileiro. Apropriações estéticas e epistêmicas, foi assim, do assenhoramento desses saberes e práticas afroameríndias que se constituiu a expressão artística “genuinamente” brasileira.  É durante esse mesmo barroco que ocorrem um sem-número de experiências culturais e políticas: lundus, emboladas, congadas, dança do Chorado, catiras, as irmandades pretas, os quilombos.

De antemão, é preciso salientar que o sincretismo não é de uso exclusivo do campo das religiosidades, mas que estende-se genericamente ao campo da cultura.  Dito isto, faz-se necessário também revisitar o termo. A ideia de construção societária do Brasil sob o signo do sincretismo foi responsável pela naturalização de um conjuntos de violências simbólicas e, sobretudo, físicas. A marca colonial decalca indelevelmente corpos, saberes e mentes. Mãe Stella de Oxóssi, na década de 1980, estabeleceu uma ruptura com essa terminologia ao afirmar que o sincretismo não é mais necessário, reivindicando o protagonismo do candomblé, rompendo suas ligações compulsórias com o catolicismo. Em Afrografias da Memória, Leda Maria Martins, ao observar alguns folguedos de origem de povos sequestrados em África, chama a atenção para a insuficiência do sincretismo na apreensão dos elementos culturais moventes dos reinados negros e congadas. Importante frisar que tratam-se de duas mulheres pretas pensadoras falando sobre um mesmo fenômeno. É a partir dessas considerações que o sincretismo se bota numa encruzilhada, que faz o termo qualificar não apenas processos de domesticação, como problematização que enredam revides, contudo é preciso ir para além do termo. 

Notem que a ideia de sincretismo estabelece uma tentativa de nomear fenômenos tão distintos a partir de fora, sem permitir efetivamente que aqueles que os realizam possam dizer por si mesmos o nome de seus saberes e práticas. Mais do que um vocábulo designativo, é preciso compreender essas cosmo percepções que ocorrem no vasto território brasileiro, em suas complexidades e singularidades. É preciso desprender-se da sanha eurocentrada, colonial, oficial e pretensamente universal de dar nome a tudo, há coisas que sequer nome têm. 

Se há algo a ser dito, é que as diversas matrizes culturais do contexto brasileiro operam numa tríade ética/poética/estética mesmo sem conhecer esses conceitos tão ocidentais. Assim, vale ampliar o repertório de vocábulos, fazer uso do pretoguês de Lélia Gonzales, das oralituras de Leda Maria Martins, dos quartos de despejo de Carolina Maria de Jesus, do retorno à casa de Nêgo Bispo, de aquilombar-se como propõe Beatriz Nascimento, da reza de Doninha do Tanque Novo, das ervas da Jurema. O sincretismo cada vez se mostra insuficiente para apreender a complexidade dessas experiências que vão muito além da religiosidade, ou do plano da cultura e transcendem à existência desses corpos que foram historicamente invisibilizados, juntamente com seus afetos, memórias e saberes. 

Bel Santos Mayer, num exercício de chamamento a esses afetos-memórias-saberes, propõe uma retomada das ideias de colo, casa e quilombo como instâncias de mediação necessárias para fruição das complexidades dessas experiências. É nesse exercício meticuloso de observação-acolhimento de vários entes (vivos e não-vivos), que constituem uma prática que se é possível avançar para além da visualidade apresentada, daquilo que o olho consegue apenas enxergar. Os povos originários do Brasil e os sequestrados de África sempre souberam da importância do estar em comum, da comunidade, e diferentemente da subjetividade europeia, que atribui a si a condição de sujeito e tudo que lhe é diferente, o estatuto de objeto; ancestrais, a vegetação, as águas, os bichos, tudo isso é preciso para o funcionamento de uma comunidade. 

De tempos em tempos, expressões de pretensão totalizante tornam-se populares e estabelecem a agenda de discussão, especialmente no campo das artes, para além dos espaços acadêmicos. O mais recente talvez seja o tal “Brasil profundo”, termo raso que, geralmente é atribuído aos lugares em que o brasileiro sudestino (no masculino mesmo) desconhece e se espanta ao ver e ter que reconhecer sua potencialidade estética; na incapacidade de apreender a miríade complexa dessas tramas culturais, reduzem-nas a um termo que parece simpático, mas que, por meio de um ardil linguístico, operam uma lógica em que os dominantes obtém dos dominados o consentimento para sua dominação.

Há momentos em que é preciso descansar as palavras, deixar nossas outras sabenças falarem, inclusive aquelas que desconhecem o vocabulário formal. A Totonha de Marcelino Freire diz: “Pra mim, a melhor sabedoria é o olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tem linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?”. Também isso de entender parece uma empreitada colonial entre a fruição estética e a vivência cotidiana. O Brasil para além dos centros não prescinde de compreensão ou nomenclatura, tampouco de ser entendido. Esse Brasil existe e é potente à revelia da tentativa de classificação, assim sempre foi e assim permanece, acapoeirando seus modos de pensar e fazer, deixemos para lá quem não quer ser perturbado, no querer apenas existir na potência de ser. 

Fotos de Beatriz Oliveira Pires
#39Yes, nós somos barrocosAmarello Visita

Amarello Visita: Quadra da Mangueira

Wesley Assumpção, também conhecido como Mestre Wesley, é o mestre de bateria do Grêmio Recreativo Escola Primeira de Mangueira. Oriundo da comunidade, começou desde cedo a desenvolver sua linguagem musical ao participar do “Mangueira do Amanhã”, projeto social fundado pela cantora Alcione, e como integrante do grupo de percussão Funk’n’Lata. Recentemente, o músico teve a sua trajetória levada às telas no filme “Mangueira em 2 tempos”, de Ana Maria Magalhães. 

O senhor poderia contar um pouco da sua história para quem não lhe conhece? Quem é o Mestre Wesley?

O Mestre Wesley é um rapaz, hoje, de 42 anos, nascido e criado no morro da Mangueira. Veio de uma família muito complicada, porque morar numa comunidade significa fazer um esforço para sair do caminho da criminalidade, e isso é muito difícil. E, na minha época, era mais difícil ainda, porque tinha a criminalidade dentro de casa. Meu pai era traficante do morro da Mangueira e, ao mesmo tempo, presidente da bateria da Mangueira. Então, quando eu cheguei na Mangueira, em 1987, vim através dele, porque ele queria que um dos filhos não entrasse no caminho da criminalidade e escolhesse alguma coisa na vida para se tornar uma pessoa do bem, uma pessoa positiva, uma pessoa que daqui pra frente poderia ser orgulho para alguém da família. E essa pessoa fui eu. Vim para a bateria da Escola quando era muito novo. No mesmo ano, a Alcione fundou a Mangueira do Amanhã, onde eu também me inscrevi e nela permaneci por muitos anos. Foi nela que me formei professor, diretor de bateria e, hoje, mestre de bateria. Sou alguém que lutou por muita coisa. Perdi meu pai no ano seguinte,  em 1988, morrendo como indigente, sem ser enterrado. Quando isso aconteceu, a família toda pensou que o filho mais velho iria se revoltar

para tentar vingar a morte do pai, e foi totalmente diferente desde o momento em que ele me trouxe para o mundo do carnaval – porque ele achava que eu tinha que viver alguma coisa dentro desse ambiente, dentro da música –, e hoje eu sou orgulho para a família. Hoje eu sou um cara que dá palestras sobre percussão para o Brasil inteiro.

Fizeram um filme sobre a minha história. Quando eu fui na pré-estreia do filme e me percebi contando a história que eu vivi, isso não tem preço, porque você passa a agregar algo na vida das pessoas. Hoje, tenho um projeto aqui de escolinha para a comunidade, mas perdi a metade dos alunos, porque é difícil você pegar uma criança e trazer para dentro da quadra para tocar porque eles não querem mais isso. Na minha época, não. Eu vinha para cá e ficava igual maluco, queria aprender. Hoje, se você não incentivar as crianças, eles não vêm para a aula. Antigamente, a Mangueira não tinha os cursos que tem hoje. Única Escola do Brasil que tem um projeto social para as crianças da comunidade. E você vai olhar os projetos e se tiver 10 crianças da comunidade, isso é muito. Se esse oportunidade existisse na minha época, eu teria me formado um maestro no Villa-Lobos, um músico profissional do Theatro Municipal, da Orquestra Sinfônica Brasileira. Eu fui lutando contra a barreira, contra a resistência, para chegar onde eu cheguei. Quando eu junto as crianças pra falar sobre percussão nas aulas de bateria, eu comento como é importante a bateria na vida de um ser humano. A Mangueira me levou pra conhecer o mundo, por que você não pode? Costumo dizer para eles o seguinte: “Se você não acreditar em você, ninguém vai acreditar”.

Pensando a música na Mangueira, como ela chegou na sua vida? Em que momento o senhor se lembra que pensou “Eu acho que a minha pegada é a música”? 

Em 1988, quando eu perco meu pai. Foi um baque na família. São três filhos. Eu, meu irmão e minha irmã. E logo que eu perdi meu pai, como eu era o filho mais velho, eu precisava sustentar a família, porque meu pai era traficante, mas não deixou legado nenhum. O máximo que ele deixou foi uma casa. Meu pai era muito difícil, minha mãe não podia botar a cara na janela que ele batia nela. Então ela não podia sair de casa. Como eu era o mais velho, eu vinha pra dentro da quadra, ficava olhando os ensaios. Eu desfilei e estreei na bateria, a gente tocando, na Mangueira bicampeã do carnaval, com meu pai ainda presente na bateria. No ano seguinte, aconteceu o que aconteceu e eu tinha que dar um jeito de levar um sustento para dentro de casa. Botei na minha cabeça que eu tinha que dar um jeito da música ser esse sustento. Aconteceu muita coisa ruim? Muita barreira? Aconteceu. Mas é o que eu falo: nunca desista de você. E eu falava “Deus, se eu te fiz alguma coisa de errado, o senhor vai me punir. E se eu não fiz, eu vou até o final e eu tenho certeza que uma hora o senhor vai me abençoar”. Quando eu tinha uns 10, 11 anos, comecei a participar da Mangueira do Amanhã. De repente, a Alcione monta um grupo de 30 ritmistas para tocar, durante três meses no Teatro Carlos Gomes, fazendo uma apresentação durante o show dela. Só os melhores, os mais destacados da Mangueira do Amanhã, e eu fazia parte disso. Aí tinha uma salariozinho. No final do ano, ela mandou cada um escolher dois presentes. Eu escolhi uma bicicleta e um videogame. Então ali as coisas começaram a caminhar e, meados de 1993, 1994, a escola principal me chama para virar um repique bossa do grupo de elite da bateria principal. Aí é onde eu começo a viajar o Brasil inteiro com a Mangueira, com a bateria, fazendo apresentações. O dinheiro começou a ser melhor do que quando eu iniciei, menor de idade. Então eu começo a ganhar dinheiro com a Mangueira viajando. E tinha um show da Mangueira, que em um momento entravam Dona Zica, Dona Neuma, Delegado, Mocinha e eu fazia o menino da Mangueira. Eu entrava com um pandeiro, no meio desses artistas todos, com a música da Mangueira. “O menino da Mangueira, recebeu pelo natal, um pandeiro…” [cantarolando]… Além de eu fazer parte desse papel que era o menino da Mangueira, eu fazia parte do repique. Então eu ganhava dois cachês. Eu chegava em casa e “Mãe, tá aí o sustento da família pro mês”. Foi aí que percebi que podia me sustentar e viver com música. De 1996 para 1997, o Ivo Meireles junto com o Alcir Explosão – que foi nosso mestre aqui e perdeu a vida para o tráfico – disseram: “O que tu acha da gente montar surdo, caixa, repique, tamborim, ganzá, botar baixo, guitarra e sopro?” Daí surge o Funk’n’Lata, e em 1998 faço a minha primeira viagem internacional, durante a Copa do Munda da França.  

Você tinha quantos anos? 

Eu tinha 17 para 18. Hoje, eu olhando as fotos – eu tenho essas fotos guardadas – eu falo “Caraca! Eu tava na Copa do Mundo de 1998! Eu toquei dentro do estádio da França, eu fui para Paris!” Eu fui para vários lugares do mundo com 17, 18 anos. Então ali a minha vida começa a andar. Quando eu volto da turnê internacional, eu volto com bastante dinheiro. Eu reformo a casa da minha mãe, dou uma estabilidade pra ela, mas eu tenho uma dor no meu peito, o meu irmão do meio vira traficante. Entra pra vida do crime, porque ele me vê, músico, voltando cheio de roupa importada, e o que que ele faz? Não vou ser igual meu irmão, mas quero ter o que o meu irmão tem. Com 12 anos meu irmão entra para o tráfico e não tem como tirar. Hoje ele é empresário, vive bem e tem orgulho do que faz, mas ficou três anos e sete meses preso. Hoje a família tá estabilizada. Perdi a minha mãe com essa pandemia. Tem um ano e seis meses. Mas o Funk’n’Lata ajudou a me estabilizar. Quando volto da turnê, recebo o convite  para virar o primeiro mestre de bateria da Mangueira do Amanhã, onde eu fico como mestre principal até 2003. Em 2006, o Russo me chama para ser diretor da escola principal e fico até 2010, quando o Ivo me chama para tocar na banda dele e eu me afasto da Mangueira como ritmista porque abriu outros leques, outros ares e eu vou conhecer outras formações musicais diferentes. Quando o Ivo assume presidente da Mangueira, ele me chama para o o carnaval de 2012, que foi o do Cacique de Ramos. Ele precisava de alguém para dirigir o carrinho de pagode junto com ninguém menos que Alcione, Jorge Aragão, Xandi de Pilares, Duda Nobre e Sombrinha e Luizito, quena época era nosso intérprete. A responsabilidade era muito grande e, após o desfile, entendi que eu estava pronto para qualquer desafio que me dessem dentro da Mangueira. Em seguida me afastei da Escola e em 2018, quando já havia desistido de um dia ser mestre da bateria da Mangueira, até pela minha idade avançada, o presidente me liga e pergunta quais os planos que eu tenho pra bateria.“Não entendi qual a pergunta do senhor”, eu falei.  “Porque eu vou trocar e eu tô pensando em você, mas eu preciso saber a proposta que você tem para a bateria. Vamos almoçar?” Eu fiquei a segunda-feira inteira sem dormir, só pensando no que eu ia falar para o presidente. Como eu desfilo aqui desde 1987, conheço todos os problemas que temos. Eu tenho tudo anotado e guardado em uma pasta. Quando chego no restaurante, eu jogo a pasta na mesa. “O projeto da bateria é esse aqui! Tem que mexer aqui, fazer isso, consertar aquilo, etc”. O presidente me anuncia mestre da bateria e eu sofro uma grande rejeição da comunidade e dos músicos, pelo tempo que fiquei afastado. A bateria chegou a rachar para fazer boicote para me tirar. Estávamos há 18 anos sem tirar nota máxima na bateria. Isso me mobilizou muito, recebi como um desafio pessoal. Eu começo a fazer um trabalho de formiguinha. Mexo no andamento, recuando ele. Mexo nas afinações, no desenho dos tamborins, altero a educação musical. Passo um pouco da minha experiência, de que quem ganha a nota é sempre a Escola, nunca você. Eu fui para a Marquês de Sapucaí com metade da bateria contra mim. Até que chega o carnaval, eu pego o megafone e falo para eles: “Ó, quem tá aqui não é o Wesley, é o comandante do barco, a nota não é minha, a nota é de vocês. Então pensem bem no que vocês vão fazer depois daquele portão ali, porque vocês não tão me sacaneando, vocês tão sacaneando a agremiação Mangueira. Então vocês têm que respeitar primeiramente a Estação Primeira de Mangueira, não a mim. Mas se vocês quiserem sacanear é um direito de vocês. Pensem bem no que vocês vão fazer porque o que eu tinha que fazer por vocês eu já fiz. O que eu tinha que fazer pela Mangueira eu já fiz, foi chegar até aqui com vocês.” E a gente entrou naquela avenida. Quando chega quarta-feira de cinza, a Mangueira tá indo muito bem nas notas. Na hora do quesito bateria, acaba a luz dentro da quadra e cai um toró d’água que fica por aqui na canela. E detalhe: acaba a luz na penúltima nota de bateria. Como é que eu vou ver a nota? Não tinha telefone com televisão digital. Um desespero danado. Eu já tinha escutado a primeira e a segunda nota, que foi 10, precisava de mais duas para tirar a nota máxima depois de 18 anos e dar o campeonato. Aí passou um menino, com telefone com televisão digital. Tomei o telefone da mão dele, já tinham dado a terceira nota 10, faltava o último jurado. Aí eu tô com o telefone dele na mão, tem uma poça de lama na minha frente, eu parado, com o telefone dele na mão, “quesito bateria, último julgador… Estação Primeira de Mangueira… – o maior silêncio – 10!”. Quando ele dá o 10, eu entrego o telefone pro menino e me jogo na poça de lama, da água da chuva, sabe? Pra tu tirar aquele peso das costas, de tudo o que você passou. 

Você pode falar um pouquinho sobre as especificidades de cada instrumento? Porque as vezes as pessoas acham que todos os repiques vão fazer a mesma coisa, que todos os surdos vão fazer a mesma coisa, sendo que cada instrumento desempenha um papel diferente e ainda tem o trabalho do mestre de bateria que pode colocar um molho mais diferente ainda. O senhor pode contar um pouquinho sobre isso?

Para explicar a diferença dos instrumentos eu vou dar o exemplo da Mangueira. Os surdos, aqui, todos eles tocam iguais. O único surdo diferente que tem na Mangueira – porque a Mangueira é a única bateria do mundo que não tem primeira, segunda e terceira, só tem um único surdo, que é o surdo de primeira – é um surdo que a gente chama de surdo-mor, que ele dá umas viradas no contratempo. Agora, as caixas tocam todas iguais, repique tocam todos iguais, timbal a mesma coisa, tamborim a mesma coisa, ganzá a mesma coisa. A única diferença é o repique show. O que é o repique show? Repique show é o repique guia que dá o andamento das bossas, da paradinha do samba enredo. Ele é que conduz a bateria toda. É uma brincadeira de pergunta e resposta. Tudo o que o repique pergunta, a bateria tem que responder. Então essa é a diferença do repique – a gente costuma dizer repique show, tem gente que diz repique bossa, outras escolas dizem que é repique principal. Então ele é destacado da bateria porque ele é que dá o andamento de tudo o que vai acontecer dentro de uma bateria. Ele que dá andamento se a bateria for correr; ele que dá o andamento se a bateria for pra trás; é ele que faz as perguntas da bossa e a bateria responde. Tudo acontece relacionado a ele.

O senhor falou uma coisa muito importante, que a quadra da Mangueira foi feita onde era um terreiro. A Mangueira tem uma tradição muito forte com o território, com a favela, é uma escola que tem uma história de negritude muito grande. Como entender a relação da Escola com essa ancestralidade? 

Eu não presenciei o nascimento da Mangueira no terreiro porque sou muito novo. Mas a história que dizem é que a Mangueira foi feita dentro de um terreiro de macumba, onde tinha muita mãe de santo, onde estavam as mães lavadeiras, onde os gatos serviam de couro para os tambores. Então tudo isso era num terreiro. Até que o nosso gênio, Angenor de Oliveira, nosso querido Cartola, tem a ideia de colocar o nome da nossa escola de Mangueira e tem a linda imaginação de colocar a nossa escola em verde e rosa. Costumo dizer que o Cartola, para mim, é um cara que tinha que ter uma estátua na entrada da quadra, do tamanho da quadra, porque hoje a Mangueira é o que é graças a ele. O Elmo, que foi nosso presidente na década de 1990, sempre fala: “A nossa escola é guerreira por isso, porque foi fundada dentro do terreiro das mães lavadeiras, dentro do espaço de uma gente de luta.” A Mangueira nasceu em 1928 nesse ambiente, quando as pessoas ali pegaram um tamborim, um surdo, um repique e resolveram montar uma escola de samba. O primeiro desfile oficial aconteceu em 1932, quando a escola ganhou o primeiro campeonato.

Você comentou que grava todos os ensaios para escutar quando chegar em casa. Do momento em que assume a bateria até incluir as inovações e as modificações a partir dos problemas que surgem, como funciona o seu processo criativo? Por exemplo, uma coisa que me chama muita atenção é o naipe de pratos, que mistura o que muitas pessoas consideram um instrumento dito erudito com o samba. O senhor pode falar um pouco sobre isso? 

O carnavalesco apresenta a sinopse, os compositores fazem o samba e depois levam para a quadra para as eliminatórias. Ali acontece o processo de afinar. Costumam ser quatro ou cinco sambas que se destacam entre 30, 40 sambas. Em 2022, foram 51 para escolher um. É a partir dessa seleção preliminar que começo a pensar em alguma coisa. Quando chegamos a três sambas, já consigo imaginar o que Escola vai levar para a avenida.  Em 2019, por exemplo, escolheram o samba da Marielle e eu era contra porque esse samba não tinha refrão, não tinha segunda. Era um samba que, nas eliminatórias, arrastava o tempo inteiro, a bateria não conseguia tocar ele, era um samba horroroso. Fui para casa contrariado e passei o domingo todo escutando a música. Em algum momento percebi que na parte  “Salve os caboclos de julho, quem foi de aço nos anos de chumbo…” [cantarolando] era possível inserir uma marcha. Estava dando quatro compassos exatos. Liguei para o carnavalesco para contar isso e iniciei a montagem desse processo. Tudo precisa funcionar dentro da letra e da melodia do samba, até porque a Mangueira não tem característica de fazer bossas exuberantes, com nove, 12, 14 compassos – como outras escolas fazem – porque a gente não tem surdo de resposta. Mandei vir uns dez atabaques, que pegamos emprestados do Candomblé e comecei a construir a marcha. Em seguida, percebi que eles não estavam dando vazão e resolvi colocar o timbal, que funciona mais com a Mangueira e com a arquibancada. Os timbales entraram como se fosse um ataque: : “tchum, Mangueira!”. O carnavalesco foi à loucura quando viu. Vou para a quadra e começo a passar para o ritmista, naipe por naipe. Boto um surdo num canto, caixa pro outro, repique pro outro, tamborim vai para um lado, ganzá vai pro outro. Ficamos um mês só nesse trabalho dos naipes antes de reunir a bateria toda, chamar um cantor e um cavaco. Vamos construindo as partes até chegar no todo que vai estar na Marquês de Sapucaí. 

O carnaval de 2020 foi o último que pudemos levar para a avenida antes da pandemia. Vínhamos do tema da Marielle e fomos para um outro samba muito denso, que gosto muito, mas não consigo sambar: “A verdade vos farás livres (…) / Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher / Moleque pelintra no buraco quente / Meu nome é Jesus da gente…”. É uma das coisas mais fortes que já ouvi na vida. Como aconteceu o processo desse samba? 

Muito parecido com o que se deu em 2019. Mas , na verdade, demorei pra entender a sinopse e o enredo desse samba. Achei ele muito perigoso, porque, como diz o ditado “O carnaval é da carne”. Você falar de Jesus, Jesus moleque, Jesus trans, eu acho muito pesado, mas eu respeito a opinião do carnavalesco. Ele queria contar um Jesus diferente, mas eu achei muito pesado, tanto que nosso instrumento tem um menino Jesus negro na favela, com um helicóptero no fundo, e ele com a mão furada, como se tivesse sido baleado na mão com a roupa do colégio. Eu só pensava o que eu podia fazer nesse samba. Quando encontrei a parte do “Favela, pega a visão”, logo lembrei que, como favelado, foi o Funk’n’Lata que me levou para conhecer a Europa  com 17, 18 anos. Então resolvi colocar um funk ali, e me parece que é a única parte do desfile que o público curte um pouco, porque o resto do samba a arquibancada toda fica parada querendo entender o que a Mangueira está passando na quadra. A Mangueira foi muito criticada por causa desse enredo.  No último carro, em que apresentamos um negro de cabelo louro, pra mim é uma das imagens mais fortes já feitas em todos os carnavais. Quando começa o desfile, eu vejo a arquibancada muito silenciosa, calada, porque as pessoas queriam entender o que a escola ia passar. E a própria escola e os seus integrantes estavam meio frios. Quando chegamos na dispersão, eu falei para todo mundo: “Vamos fazer de tudo pra gente tirar a nossa nota lá, porque a tendência é a gente não voltar, não, porque foi muito ruim”. E a quarta-feira de cinzas provou isso. A Mangueira ficou em sexto e voltou no dia das campeãs porque as notas da bateria seguraram. Tiramos quatro notas 10. Conseguimos salvar a Escola. 

Nessa edição da Amarello, estamos falando muito do Barroco, a partir de um ideia de que o movimento artístico está presente em algo da identidade brasileira, nos seus contrastes, cor e diversidade. O samba-enredo de 2020 tem muito desse jogo de luz e sombra, algo que as pessoas não estão acostumadas, a misturar  carnaval com temas sociais delicados da nossa sociedade. Como o carnaval pode contribuir para pensarmos – e repensarmos –  a identidade brasileira?  

Olha, eu acho que o nosso carnaval vem manchado desde a Ditadura. Se você aparecesse na rua com um tamborim, com uma lata, tu era preso. Então, não podia ter samba de terreiro, não podia ter samba em roda, que todo mundo ia preso. Eu acho que a discriminação já vem lá de trás. Então, o que que a Mangueira faz? A Mangueira tem um projeto social pra gente mostrar o contrário disso. Nesse projeto, eu dou aulas de percussão para pessoas de dentro e de fora da comunidade. Sempre que tenho a oportunidade, procuro mostrar um pouco da nossa cultura e falar sobre a cultura da favela, seja no Brasil ou fora dele. Recife tem favela? Tem. Fortaleza tem favela? Tem. Mas favela de lá não é igual a nossa aqui, que tem fuzis para tudo quanto é lado. Eu falo da favela porque é nela que eu vivo. As pessoas me dizem: “Eu acho que já tá na hora de você ir embora da comunidade”. Eu não vou, e sabe por que? Porque eu vou perder a minha raiz. É a partir dessa minha realidade que eu ensino meus filhos o que é o certo e o errado, não é saindo da comunidade que as coisas vão melhorar. Precisamos aprender a ter respeito pela decisão das pessoas. Para nosso país mudar, tem que mudar muita coisa. Tem que mudar educação, tem que mudar saúde, tem que mudar governo. Para mudar o país, a primeira coisa que tem que mudar é o sistema, e o sistema é muito difícil de lidar. Nós fazemos a nossa parte nessa mudança. O projeto social que falei já recebeu o Pelé, o Bill Clinton. O Philippe Coutinho saiu daqui. Muita gente saiu do projeto social da Mangueira. A Mangueira entende esse sentimento do Barroco, porque tem a proposta de mostrar pras pessoas que a gente consegue, se a gente se unir, a gente consegue sim criar uma nova realidade. Se o Brasil for um pouquinho mais unido, principalmente os negros, é possível ter esperança. Pra gente tentar mostrar alguma coisa, primeiro temos que mudar entre nós, cada um de nós. 

Mestre, muito obrigada! 

Diretamente da capital mexicana, onde ministra a cátedra José Saramago, na Universidade Autônoma da Cidade do México, o poeta e professor Horácio Costa nos apresenta três poemas inéditos, exclusivos para a edição Barroco da Amarello.

COMPLEXO DE WUNDERKIND

Deixe a vida me levar, disse
Zeca Pagodinho, ou terá dito: levar eu,
é a mesma coisa pois, a mesma
entrega ou certo providencialismo
e se o for, ora, há um extrato bem
católico e mesmo cristão: que nos
leve a torrente bem lavados pela
encosta do monte, Alpes ou vulcão:
que de água se trate ou lava
do momento, que venga el toro,
a vida, que recusa não-aceitações
ou parciais muxoxos: só vale
se for entrega, se não se exigir
recibo, assim é que ela gosta?

Sim: esta a resposta. Se houver êxtase,
melhor, se demasia, ainda +.
Este o princípio dos dervixes
que giram como os planetas, sempre
tão comportados em suas previsíveis
moções que significam o tempo e
conversam com a viagem da luz.

Quem entende esta mecânica básica,
não nos importe a idade, é Wunderkind,
menino, menina ou menine
prodígio ou mozartiano inventor
de musicais harmonias: observe-se
o seu piruetar frente ao teclado
e a dança do rabicho de seus cabelos
presos com uma fita de veludo carmim:
músico ou Pan? Enquanto nos fascina
séculos afora.

Mas que tal condição não se alicerce
em hábito ou indisciplina contumaz:
sem o senso do risco que se toma,
torna-se a entrega à vida mero
Complexo de Wunderkind. Pagar-se
é possível, é do arbítrio de cada
quem e válido a cada hora, mas
nesse caso normalmente o preço
é da criança a morte.

Cidade do México, 16 X 21

LE SOIN DE SOI-MÊME 

O corpo foi inventado no século XVII 
quando deixou de pertencer a Deus. 
O corpo não apenas tem 400 anos: 
é criança, engatinha, conversa consigo 
tatibitate, repete fluxos e frases 
até desinventá-los, e reage: 
o corpo lava-se e lava a alma, 
exulta e sofre, e à erosão programática 
do real filho de Deus: o Estado. 

E pensa que pode ser mais ele mesmo 
se antes que à sua servidão cuidar de si: 
tais as armadilhas da história e da fé 
cega faca amolada: inverter os botões: 
se o avesso é fora tudo mudará, se eu 
propuser, o delírio se retroalimenta 
como um cão que a si se persegue 
em círculos, e pára quando exausto 
não se reconhece no espelho e late. 

Autômato de si, por irromper apenas 
pensa o corpo poder não esperar. 
Fora do tempo: enxuto como se 
não lhe molhasse a água ou a noite 
se detivesse ou o dia ou a hora. 
Lava a cara, menina suja, mantém 
colada no palato a hóstia, trabalha 
e fala, fala e trabalha. Não há vida 
fora dele, mas história há e sempre. 

CDMX 27 X 21

CUM DEDERIT DILECTIS SUIS SOMNUM

Pois ele dá aos seus diletos o sono
e mais do que isto: também o gosto
por escrever poemas aos borbotões
e com títulos em línguas estrangeiras

assim como uma frase que soe em latim
só que contrária ao engomado semissolene
de uma missa idem; o sono a todos, mas xi,
não o ventre: só às diletas, ça fait bien

une différence. Mas e eu com isso de frutos
semissagrados? Metanarrativas com as quais
faço eu fazemos nós o que quisermos,
inclusive desenvolver a proclividade

de escrever de poliamor homossexual
em textos experimentais como o presente,
onde se adaptam as ditas Escrituras a uma pauta
a elas posterior e de realidades cotidianas:

quando a palavra do Senhor e a minha
disputam em cabecinhas retroformatadas
o programa da poliescritura que não dispensa
nem necessita das irmãs gêmeas hermenêutica

e patrística para uma leitura econômica:
direta ao agora, no qual entreteça-se
o texto herdado e o por herdar-se.
Afinal, por que pensar o amor sempre

como concessão e não conquista? Se
dileto sou e formos, o sono dá-me
Senhor, mas não para dormir o seu
sonho, e daqui para a frente o nosso.

CDMX 30 X 21

Foto de Ana Rovati
#38O RostoArteCulturaMúsica

Conversa Polivox: Jards Macalé

Por Pérola Mathias, Bruno Cosentino, Rafael Julião e Acauam Oliveira

Pérola Mathias – Eu sou Pérola, a gente faz a revista Polivox, sobre canção contemporânea. Eu trabalho como crítica, sou socióloga, pesquisei a trajetória do Arto Lindsay, pesquiso música experimental. Na Polivox, comigo, além do Bruno [Cosentino], tem o Rafael [Julião], que também é formado em Letras, estudou o livro Verdade Tropical, autobiografia de Caetano Veloso, estudou Cazuza, é pesquisador de canção; a Paula Carvalho, que é jornalista e socióloga, trabalhou muito tempo como jornalista musical e pesquisou o começo do rap em São Paulo; e o Acauam Oliveira, que é crítico cultural, formado em Letras, pesquisou os Racionais MCs e a questão da canção contemporânea também.

Jards Macalé – Que bom. Estamos abertos; é um leque bom para conversar.

Pérola Mathias – Para a gente começar a conversa, queria que você contasse um pouco como foi a concepção do Besta Fera, seu último disco.

Jards Macalé – Eu queria gravar um disco de músicas inéditas, um disco inédito como um todo. Então, como o Thomas Harres, que toca bateria, músico fantástico, estava na minha banda, nós fizemos uma banda. A gente estava conversando, e ele propôs. Conhecia muito o pessoal, o Kiko, o Romulo Fróes, o Rodrigo Campos. A mim coube a Ava, porque eu já conhecia Ava desde a barriga da mãe dela. Tivemos uma reunião em São Paulo na casa do Kiko – estava o Guilherme Held também, que é um guitarrista excepcional, inclusive morou algum tempo com Lenny Gordin, que é um guitarrista fantástico, fez parte do meu primeiro disco, o Jards Macalé, aquele trio, eu, o Lenny e o Tuti Moreno na bateria. E começamos a conversar sobre. Então eu propus a eles que a gente viesse para Penedo, no sítio onde estou, que herdei da minha mãe, como eu sempre faço quando vou fazer algum trabalho novo, ou mesmo quando quero pensar um pouco. No meio do mato, the fool on the hill, em cima do morro, para pensar as coisas. E aí eu convidei o Thomas e o Kiko Dinucci para virem para Penedo para a gente pensar, passar uma semana aqui, ou alguns dias, ficar conversando, ficar criando. E viemos. E começamos a fazer algumas músicas de improviso. Eu arranjei uma bateria, que o Thomas Harres nem usou – aqui no meio do mato é difícil encontrar uma bateria, mas encontrei uma bateria legal, e ele nem usou, quem usou fui eu, de brincadeira, tocando na beira da piscina, fazendo barulho. E o Kiko, com violão. Ficamos tocando, tocando, tocando, nascendo ideias aleatoriamente, e fomos fazendo, montando as músicas, sem a ideia do Besta Fera em si, do conteúdo do disco, da alma do disco. Ficamos fazendo música aleatoriamente. Foi saindo. Saiu “Vampiro de Copacabana”, e algumas músicas eu já tinha, inéditas de muito tempo, como a própria “Besta fera”, que é de um poema do Gregório de Matos, “Aos vícios”. Eu peguei uma célula, que eu fico pegando células de poemas. Se o poema é muito longo, eu sintetizo, não tenho nenhum pudor, eu vou logo sintetizando. Se fizer sentido, fez sentido. “Aos vícios” eu já tinha composto há algum tempo, o que deu o nome de “Besta fera”, essa célula que eu musiquei. Com o Capinam eu já tinha “Pacto de sangue”. E aí foi havendo uma direção. Eu tinha uma outra música também já composta, fiz a música “Limites”, com a Ava, que era um poema extenso, também sintetizei, e de Ezra Pound teve “Trevas”. “Trevas” deu o tom do disco. Nós estamos vivendo um momento de trevas, não só no Brasil como no mundo. Então, toda aquela questão confusa, política daquele momento lá embaixo, mais a situação do Brasil, com um governo totalmente despreparado, eu diria até louco, doentio mentalmente… Aí, fizemos com o Romulo e o Rodrigo Campos um samba meio enredo, meio samba-exaltação, enaltecendo a bomba atômica, que é a única coisa que faz com que as pessoas ainda não joguem uma bomba atômica em cima da outra. Um fica com medo de o outro apertar – quem aperta o botão primeiro? Então a gente fez uma ode à bomba atômica, que é uma sacanagem terrível. E por aí foi. Eu tinha a música “Obstáculos”, que eu já havia feito também, aproveitando o poema de um amigo de Hélio Oiticica, Renault, amigo da Estação Primeira de Mangueira, enfim, detonamos um processo criativo. Esse processo criativo foi indicando a direção do disco. E aí, na hora em que a gente disse “oba, vamos entrar”, na hora em que íamos nos preparar para entrar no estúdio, eu tive um piripaque terrível e fui acabar numa UTI totalmente entubado, o diabo a quatro. Passei dez dias inconsciente e retornei. Fui tratado; foi uma coisa difícil, a UTI. Eu desejo tudo aos meus inimigos, menos uma UTI. É preferível morrer antes do que padecer naquele negócio. É um inferno, os outros doentes em volta, gemendo, gritando, um negócio terrível. E você mendigando a atenção de alguns enfermeiros, coitados, que estão lá totalmente loucos com aquela história toda. Foi uma broncopneumonia braba. Fiquei entre a vida e morte. Graças a Deus, a Rejane [Zilles] estava ao meu lado, não saiu dali, me dando todo o apoio, desde papinha a carinho, beijinhos sem ter fim. Enfim, eu voltei à tona, vim para Penedo, para o sítio, me organizei de novo, reaprendi a andar, reaprendi a falar – porque você fica totalmente neutralizado, os músculos vão para as cucuias. Um mês numa cama de hospital, você perde a noção não só de tempo como a noção de si mesmo, suas reações são totalmente enfraquecidas. Então, assim que me recuperei, retomei os trabalhos com o pessoal, e fomos para o estúdio, o Red Bull, e fizemos os arranjos ali no calor da batalha – como eu sempre faço, aliás, nos meus trabalhos –, todos dando ideias, a gente ia somando as ideias, depurando, até que se tornasse uma música, ou letra, ou sem letra, as ideias de arranjos, todos contribuindo e tal. E aí saiu o Besta Fera. Eu diria totalmente contemporâneo, pelo tratamento que foi dado, e o Brasil não muda, será possível? A gente fez uma besta fera antes, eu já fiz várias bestas feras, e não adiantou nada – quer dizer, adiantou: agora caminhamos, caminhamos, caminhamos e caímos na besta fera de 2018 em diante. Aí não tem jeito, besta fera para lá, besta fera para cá, fomos acabar em Las Vegas, por indicação do Grammy. Aliás, o Grammy me deve um Grammy. Aqui acaba minha saga do Besta Fera. Pronto.

Acauam Oliveira – Jards, eu queria puxar esse gancho da relação entre o Besta Fera de agora com as bestas feras de antigamente, porque já faz quase 50 anos que você canta que há um mal secreto pairando no ar, que há um abismo na porta principal, todo aquele clima – conceituado como morbidez romântica – que você e o Wally Salomão criaram, e aí você resolve incluir no show do Besta Fera a “Gotham City”, fazendo essa ponte entre os primeiros anos da sua trajetória artística, dos festivais, e aquele período da ditadura civil-militar. Agora, passados anos e anos, em 2019 você canta que não via que “o mundo está podre porque estava cego de amor”, “não ouça aquele ditado, pois a esperança há tempos se foi” e “chegamos no limite da água mais funda”. Queria que você falasse um pouco sobre isso, comparando aquele momento da década de 1970, aquela linha dura, com agora. O que você acha que se repete e o que você acha que mudou em relação a esses dois momentos, tanto em relação ao Brasil como em relação a você, Jards?

Jards Macalé – Eu acho que, se for para falar de mim, acho que eu melhorei. Agora, o Brasil piorou bastante. Dentro daquele quadro de 1964, 1965, já tinha um quadro meio desalentador. Por exemplo, “Soluços”, que eu fiz com 15 anos de idade e só gravei com 22 anos, por incrível que pareça, é a música mais pedida atualmente pelo público jovem. É engraçado isso. “Soluços”, “Movimento dos barcos”, com Capinam, que sempre foi um poeta muito claro nas posições políticas e na poesia dele, sempre tentando um caminho novo, um olhar de poeta, mas sempre na contemporaneidade. Esse disquinho era um compacto duplo, tinha 4 músicas, duas de um lado e duas do outro. Tinha uma também com Duda, Carlos Eduardo Machado, outro parceiro meu, professor de Literatura atualmente lá em Minas [Gerais], na universidade. Era a “Só morto (Burning night)”, que diz tudo sobre o que está acontecendo hoje: “nessa manhã de louco, o olho do morto reflete o fosso, nessa manhã de louco, todo mistério é pouco”. Enfim, “esse som tão forte, um som de morte, esse som tão forte de morte, esse som…” e tal. Então já tinha um prenúncio de olhar o mundo com uma visão, eu não diria pessimista, mas uma visão realista. O tempo passa e, de repente, eu caio no Festival Internacional da Canção com “Gotham City”, minha e de Capinam, que dizia claramente que nós estávamos sob uma pressão terrível, ditatorial, e qual seria a saída, qual é a saída? O abismo está na porta principal, mas e a saída? “Não se fala mais de amor em Gotham City”, que é a simbologia de qualquer cidade do mundo megalópole, mas o sistema seria o mesmo de perseguição. “Gotham City” é de 1969, o AI-5 é de 1968. “Gotham City” já é o comentário imediato sobre o AI-5. “Perseguiam bruxas no telhado em Gotham City no dia da independência nacional, cuidado, olha o morcego”. Eu comecei a recantar “Gotham City” porque eu via um morcego na porta principal, claramente, desde o início. Aliás, desde antes, mas aí se concretizou. Quando um cara chega e homenageia o maior torturador do país, o Ustra, com a maior desfaçatez, em plena Câmara dos Deputados, é porque o morcego chegou na porta principal. Quando foi ver, criou o abismo que a gente está vivendo até agora. Então eu retomei a canção por isso, e incluí uma poesia na apresentação de “Gothan City” nos shows. Eu fui vaiadíssimo no Maracanãzinho inteiro, as pessoas se levantaram com o dedo assim, estava numa arena em Roma e os leões atrás de mim. Aí eu disse: “bom, vamos conversar”. E as roupas, as guitarras elétricas, estava uma confusão se guitarra ou violão, ou isso ou aquilo, qual seria o instrumento brasileiro. E aí eu convidei o grupo Os Brasões, que tocava com a Gal Costa, e convidei o nosso orquestrador…

Pérola Mathias – Duprat?

Jards Macalé – É, meu querido Rogério Duprat. Que não fez por menos. Teve uma hora na orquestra, escrito, que ele disse assim: “cada um toca o que quiser”, no meio da orquestração. Foi uma zona maravilhosa. Bom, eu pedi para o público, atualmente, que me deixasse cantar a canção todinha e que me vaiasse no final. Você sabe que o público adora vaiar tanto quanto adora aplaudir, e eu sei disso. Então eu sabia que as vaias iam ser bacanas e pedi para me vaiarem no final. Aí comecei a tocar a música, todo mundo ouvindo. O que não ouviram no Maracanãzinho, os públicos agora ouvem muito claramente, um silêncio profundo, e no final dou uma dica para me vaiar, aí começa uma vaia aqui, uma vaia ali, outros começam a aplaudir. De repente, os teatros vaiando em uníssono, isso me dá um prazer, de ouvir essa vaia ao vivo e a cores. E o melhor é que as vaias vão se transformando aos poucos em aplausos e, de repente, está aquele aplauso e vaia, de pé. Estão começando a entender o recado. Aí o Besta Fera chega nessa hora, em que abriram o armário da burrice, da incompetência, da loucura no pior sentido, abriram o armário e saíram todos os imbecis para fora. E eu não me recuso a falar para os imbecis. Aliás, eu faço questão de falar com os imbecis. O que me dá grandes problemas, “pequenos problemas, grandes discussões”. Mas é sempre necessário falar. Quando o imbecil é imbecil demais, aí eu viro e vou tratar de outra coisa mais interessante.

Rafael Julião – Algo que me chamou muito a atenção no Besta Fera, que é um disco muito cinematográfico, na verdade, é que você fez um disco de terror, se é possível inventar essa categoria.

Jards Macalé – Que bom, é bom saber disso.

Rafael Julião – É um disco de terror. Tem vampiro, tem besta fera, tem treva, tem névoa. Aliás, todo o seu trabalho…

Jards Macalé – Tem peixes. A música do Rodrigo Campos, em que sai algo de dentro do mar.

Rafael Julião – Toda essa concepção me dá a sensação de que, até na sua forma de interagir com o público – você citou a coisa da vaia, mas tem outras formas de interação que você faz –, parece que seu trabalho é muito atravessado pelo universo do cinema, pelo universo do teatro; isso está no seu canto, na sua forma de compor, na sua forma de se apresentar, enfim, você inclusive fez muitas trilhas sonoras para o cinema. Eu queria que você pensasse um pouco com a gente sobre a importância do teatro e do cinema na sua formação como artista e se ainda é importante hoje, se ela produz esse efeito de disco de terror, de disco-filme no seu trabalho atual.

Jards Macalé – Maravilhoso. Você sacou uma coisa que eu não tinha olhado direito. Disco-filme é proposital; eu gosto de montar meus discos como se fosse cinema. Cinema é muito importante para mim, desde criancinha. E o disco-teatro, que, aliás, estou pensando aqui no Paulo José. [Se emociona ao lembrar da morte dias antes do ator Paulo José.] No meu primeiro trabalho profissional como músico, fui convidado por Dori Caymmi para trabalhar como violonista, só instrumentista, no Teatro de Arena de São Paulo – na época era Arena canta Zumbi [Arena conta Zumbi, 1965]. Eu nunca sei se é canta ou conta, tanto faz. Arena canta Zumbi é mais bonitinho. E eu ficava tocando violão naquele palco, e aqueles atores todos, Paulo José, Dina Sfat, Maria Gladys, Milton Gonçalves, Melanie, enfim, todos aqueles atores dando sopa naquele palco, com suas várias interpretações; eles transmudavam, cada um fazia vários personagens, aquele coisa do Augusto Boal, Guarnieri e tal, e eu ficava tocando violão e vendo aquele pessoal se transmudar em vários personagens, povoavam aquele palco, uma verdadeira multidão. Eram 8 ou 10, mas eram mil. E eu ficava atento a essa coisa, não só à parte musical. A parte musical eu fazia normalmente, acompanhava tudo direitinho. Tinha uma coisa interessante, porque – até hoje a Maria Gladys ri dessa história – eu usava, por exemplo, um lá menor para dar o tom, aí ela entrava numa 5ª acima, sempre. Aí eu experimentei dar uma 5ª acima, e ela deu uma 5ª acima; ela ouvia sempre uma 5ª acima o tom. Eu digo, bom, então só tem um jeito: eu dou o tom, lá menor, e pulo para a 5ª acima quando ela entrar. Ficavam essas coisas engraçadas. O grupo sempre foi engraçado. Na primeira vez que fui a São Paulo, eu e Caetano ficamos hospedados na casa do Paulo José e da Dina Sfat, lá na [avenida] São João, não me lembro bem. O contato com esse pessoal sempre me deu muita coisa, do teatro e do ator. E, no cinema, eu sempre fui apaixonado por cinema. Minha avó me levava ao cinema, no Cineac, que era um cinema 24 horas no Rio de Janeiro, tinha até alguns filmes mudos, tinha Radamés Gnattali ao piano acompanhando algumas coisas de cinema, tinha outros instrumentos, uma flauta, um violoncelo, que acompanhavam filmes mudos. Eu não sou tão antigo de filme mudo, mas tinha um rito de cinema que eles faziam a ligação. E eu ficava lá por horas; minha avó ia fazer a unha, o cabelo, não sei o que lá, e me botava no cinema. Eu ficava ali assistindo a tudo, absolutamente tudo. E aquela tela, para mim, era mágica, uma coisa completamente… Sei lá, era um sonho. Até que Nelson Pereira dos Santos me convidou para fazer o Amuleto de Ogum [1974]. Ele foi me convidar para a trilha sonora e, lá pelas tantas, me colocou como ator no filme, um ceguinho repentista que contava a história do filme. Aí eu entrei direto, não só para fazer a trilha sonora, a direção musical geral, mas como ator também. Adorei ser ator. O meu problema com cinema é que demora muito. Mas esse demorar muito também é um ganho de sabedoria muito grande em relação a construir um filme, desde o pensamento primeiro até o resultado final. Aproveitei o máximo que pude a questão de montagem de cinema. Estive com grandes montadores, [Severino] Dadá, por exemplo, que é um montador incrível, [Raimundo] Higino, tinha uns caras aqui barra pesada de montagem. O próprio Nelson dirigindo a montagem, discutindo ali, eu tinha que fazer trilha sonora e ficava ali também, eu, Nelson e o Dadá pensando a montagem do filme. Quando é que eu ia ligar em música uma determinada cena, a outra, e não sei o quê. Eu sei que, a partir daí, comecei a fazer meus discos como se fosse uma montagem mesmo. Tanto que Aprender a nadar [1974], que é dessa época, é uma montagem cinematográfica. E é uma montagem de rádio também, tem muita coisa de rádio, porque eu sempre amei o rádio. Toda a minha geração foi criada ouvindo a Rádio Nacional, em torno das décadas de 1940 a 1960, principalmente a década de 1950, a Rádio Nacional era o auge, era a TV Globo da época. Aliás, a TV Globo pegou todos aqueles radioatores geniais e botou os atores… Quem poderia imaginar que o primo rico e o primo pobre teriam aquela cara? A cara daqueles atores, você ouvia só a voz, e de repente eles ganhavam uma cara. Tudo isso me alimentou muito, e me alimenta até agora. Ontem mesmo vi um filme genial do Cesinha Oiticica, que é sobrinho do Hélio Oiticica e fez um filme ele. Eu mesmo, que sempre fui amigo do Hélio Oiticica, amicíssimo mesmo, a gente era cúmplice, vi coisas que o sobrinho desencavou que eu não conhecia. Por exemplo, algumas imagens, alguns pensamentos, depoimentos do Hélio. E artes plásticas também. Sempre me fortaleceu muito o estado de invenção das artes plásticas, Lygia Clark, Hélio, Roberto Magalhães, Rubens Gerschman, enfim, uma patota que tinha ali, que eu ficava de olho, de ouvido e olho em pé, se isso existe. E é isso. Fora a música, que eu via todos os ensaios dos meus amigos e não amigos. Eu ia assistir ensaio dos Cariocas, ensaio do Tamba Trio, do Luiz Eça, da Orquestra Tabajara, da qual eu fui copista, Severino Araújo. Eu ficava rolando por ali. E fiz amizade, finalmente, com Grande Otelo, aí a coisa pegou.

Paula Carvalho – Jards, estava lendo ontem suas colunas na Folha de São Paulo falando da Empresa Brasileira de Som. Fiquei pensando nessa ideia de uma empresa brasileira de som, uma empresa que ia acabar com o problema da dívida internacional exportando música brasileira. Você acha que essa ideia faria sentido hoje em dia, no auge do liberalismo?

Jards Macalé – É um delírio ambulatório, como dizia Hélio Oiticica. Não sei, porque as ferramentas mudaram muito. Eu acho que se centralizasse… Porque tem o ECAD aí também. Está todo mundo tentando transformar em leis toda essa coisa que a internet abriu; é outra ferramenta, uma coisa totalmente nova, então as pessoas não sabem como colocar as leis que regiam o mercado de música, o mercado dessa coisa toda de disco, como transformar isso, onde você compartilha tudo e qualquer coisa, onde o autor se dilui. É difícil. Eu não sei se caberia, a essa altura do campeonato. Realmente, não sei mais. Isso não vai se definir tão cedo, porque é uma liberdade totalmente caótica – da liberdade eu gosto, do caos, por incrível que pareça, eu não gosto muito – e prejudica todo mudo. A liberdade, não, “viva a liberdade!”. Mas essa coisa toda desse caos jurídico, prejudica. Eu, por exemplo, estou recebendo US$ 0,02 por cada vez que toca não sei onde. Cada um tem um regulamento. Se eu tocar um milhão de vezes, eu recebo, talvez, quem sabe, R$ 226,00? Está todo mundo muito apaixonado e muito deslumbrado com essa história de estar nas redes. O pessoal esquece que os conteúdos somos nós. Eu devia ser pago por frequentar Facebook, Twitter, Instagram, deviam me pagar, eu sou o conteúdo dessa gente. Agora, está todo mundo tão deslumbrado que se esquece, começa a contar os segredos de liquidificador, está uma bagunça generalizada. É engraçado, mas, ao mesmo tempo, é trágico.

Pérola Mathias – Eu estava lendo uma entrevista sua de 1972, que saiu na revista Bondinho, e você fala de como percebeu o ritmo de produção, essa loucura de ensaio e criação e gravar, porque, quando você foi para Londres, chegou lá e o ritmo era outro, tinha tempo para estudar, para treinar o violão, para criar e não precisava lançar imediatamente. E eu fiquei pensando num paralelo com esse momento de agora, que tem que postar, nem que seja alguma coisa antiga, nas redes sociais. Você tem que estar sendo visto o tempo todo, porque os algoritmos têm que estar ali. E, querendo ou não, você passou os anos 1980, lançou alguns discos, mas foi uma década também bem pesada, depois veio os 1990, você lançou de novo, depois lança já em 2019 o Besta Fera. Queria que você falasse um pouco, primeiro, sobre essa questão da velocidade de produção, como mudou a sua percepção como artista, desse momento em que tinha a loucura das gravadoras no Brasil, depois esse tempo para perceber isso em Londres, e o tempo de agora, das redes. E, junto com isso, uma segunda pergunta, que é uma questão de poder ser independente, de ter essa possibilidade agora, porque ali tinha uma questão das gravadoras serem um funil, e um funil voltado mais para o dinheiro do que para o talento ou o conteúdo que eles iam vender. Eles queriam uma resposta imediata, e hoje tem essa margem de risco, mas depende da sua atuação ali diante dessas redes. Então queria que você falasse um pouco desses dois momentos.

Jards Macalé – Bom, naquela época, eu particularmente, ou melhor, minha geração estava dentro desse quadro de gravadora, a coisa era: fazer música, lutar para que essa música fosse gravada, registrada, e depois lutar para que ela fosse divulgada. E tinha um método das gravadoras fazerem isso. Eles escalavam algumas músicas, e dependia também da amizade dos autores de música com os produtores de disco. Era um atravessamento generalizado. Dependendo da influência de cada um, talvez, quem sabe, pudesse gravar. Uma vez gravada, você tinha que lutar para que os divulgadores divulgassem, e eles tinham suas escolhas pessoais. Se você não fosse escolhido pela gravadora, se não puxasse um saquinho daquele, você não existia. Não só isso, tinha alguns também que tinham uma coisa artística bacana, que ficavam ligados na música mesmo, e também os ligados na música sacavam mais ou menos de mercado, onde essa música poderia estourar ou não, o tipo de sensibilidade que ia detonar. Mas era um ambiente muito fechado, apadrinhado. E tinha outro fator, que é o seguinte: o pessoal vivia duro, então você ou pedia adiantamento, ou já dava sua música como uma garantia da grana que eles pudessem lhe dar como adiantamento. Enfim, era um bolo. Quando eu vi aquilo, eu disse: “não quero isso”. Mesmo porque, logo no início do meu trabalho – eu não chamo de carreira, eu chamo de correria –, logo no início da minha correria, eu caí nas mãos justamente do Teatro de Arena. Naquela época, tinha o Teatro de Arena, o Teatro Oficina, que também era tudo experimento, o Cinema Novo, a Bossa Nova, que naquele momento era um experimento dentro da música chamada popular brasileira – eu não gosto desse popular, eu gosto de MB, música brasileira, e olhe lá. Música é música, e nem brasileira, música é música. E as artes plásticas experimentais, na mão do Hélio Oiticica, da Lygia Clark, desse pessoal que eu já falei, Antônio Emanuel, Rubens [Gerchman], Roberto Magalhães. Era um momento de experimentação. Justamente a experimentação que não cabia dentro daquele quadro que eles achavam que eram as quatro linhas do mercado brasileiro. Fechava assim: “essa música, o povo não vai entender”, “essa música, não sei o que lá”, “essa música, imagina”, fechava o campo. Em vez de abrir o campo para novas experiências, novas experimentações etc., eles fechavam o campo dentro daquela coisa. Tanto que só depois começaram a sacar que aquela geração e aquela experimentação podiam, no futuro, vingar como mercado – mas, antes de nos botarem como mercado, eu, [Luiz] Melodia, Sérgio Sampaio, Tom Zé, Itamar Assumpção, eles abriram um canal – onde já se viu? – de malditos. Fomos tachados de malditos. Eu achei o máximo. Sou Baudelaire, sou Rimbaud, é nessa que eu vou. Está rindo, mas é trágico. Tudo bem. E mais ainda, fizeram uma coisa muito mais louca: um selo chamado Pirata – os piratas que eles combateram violentamente depois, os piratas mesmo, que entraram no mercado pirateando produtos deles à vontade. Aí eles viraram e foram combater os piratas, e deixaram os malditos em paz. Eu não gravei no disco pirata, aliás, fiquei até triste naquela época – “o Itamar está gravando, Melodia está gravando, Tom Zé está gravando, Sérgio Sampaio está gravando, está todo mundo gravando”, todos os malditos músicos gravando, e eu fiquei pensando: “será que eu sou o pior dos malditos?”. Era. O pior em posição política mesmo, o pior em posição de combate ao óbvio, o pior em defesa de abrir o meu armário e sair frontalmente contra, escrevendo esses artigos aí, enfim, botei o meu cu na reta, não quis saber. O resultado disso tudo culminou com [o show] O banquete dos mendigos [1973], quando o levei ao Palácio do Planalto. O Ministro da Justiça, Petrônio Portela, me recebeu e fui ao Golbery do Couto e Silva entregar os direitos humanos na mão da Casa Civil do governo Geisel. Aí nego não me perdoou. Tanto a esquerda quanto a direita me botaram na geladeira durante 11 anos. Daí esses buracos, a dificuldade de, como maldito, gravar algumas coisas. Em 1979, lança-se [o disco] O banquete dos mendigos. Passei 11 anos na geladeira por causa dessa atitude, acusado de estar me vendendo à ditadura, entregando os colegas. Maluquice. Eu estava com O banquete, estava com os direitos humanos, estava com a ONU debaixo do braço. Se estavam falando em abertura, que ia abrir, “olha aqui, então, abre!”. Essa era a história. Aí passaram 11 anos. Até que o namorado de uma grande amiga minha – ele era riquíssimo, um dos donos do Ponto Frio Bonzão, adorava jazz, adorava música –, uma vez, na casa dele, me perguntou por que eu não gravava. Eu expliquei isso que eu estou falando para vocês. E ele me disse: “então, quanto é que custa um disco?”, eu disse: “não sei”, e ele disse: “vá ver e me diz”. Aí, eu fui até o Dudu, o técnico de som da Polygram, grande amigo meu, que estava guardando as fitas originais d’O banquete dos mendigos, da Rádio Transamérica. Pedi pra ele guardar no cofre, ele guardou durante esses anos todos, até que eu perguntei para ele, que me disse “é tanto”. Convidei meu amigo Naná Vasconcelos, e também o Roberto Guima, um menino que estava começando, clarinetista maravilhoso, que era aluno do Paulo Moura, fantástico, e eu ali, violão, voz, percussão, Naná e Roberto Guima numa faixa com seu super clarinete. E gravamos isso ao vivo. Eu economizei tudo. Gravei em três dias, eu e Naná, eram duas semanas, deu para a gente ouvir, falar e conversar, deu para mixar tudo direitinho como a gente queria, e o disco ficou pronto em três semanas. Na hora em que o Dudu me disse assim: “custa tanto”, eu peguei o negócio e dei para o cara: “custa tanto”. Ele olhou e disse: “passa lá no escritório amanhã”. Quando eu passei, a secretária dele: “seu Walter pediu pra lhe entregar isso”. Eu peguei o cheque, entreguei para o Dudu. Pronto, acabou, fizemos. A partir daí, eu comecei a gravar mais regulamente. Fui gravar na Atração, do meu amigo Wilson Souto, fizemos um disco lindo chamando O que faço é música, e por aí foi. Aí comecei a gravar quase que de dois em dois anos. Mas antes, quando essa história aconteceu, houve também uma coisa fantástica. Quem me convidou para a Som Livre na época – aliás, o nome Som Livre é meu, diga-se de passagem. Você lembra que em um dos artigos eu escrevo assim: “som livre é meu, dá cá o meu”? Numa entrevista de jornal perguntaram o que era aquilo de “Gotham City”, e eu não sabia explicar aquele negócio, era uma atitude, “som livre”. Aí escreveram: “o som livre de Macalé”. Editaram minha explicação de som livre. “Som livre é som livre, cada um faz o seu, cada um faz a sua assinatura, cada um inventa o que quiser, é som livre”. Não é que oito meses depois dessa reportagem, me aparece a Globo com o selo Som Livre. E o símbolo gráfico da Som Livre era um passarinho dentro da gaiola com a porta aberta.

Acauam Oliveira – Em relação a essa questão do maldito, quase uma marca que imprimiram, me parece que hoje em dia está cada vez mais claro para todo mundo que isso é muito mais uma desculpa esfarrapada das gravadoras, ou para produzir com menos cuidado, ou para investir menos na divulgação, qualquer coisa nesse sentido, para deixar ali meio de lado, investir em outros… Enfim, sejam quais forem as razões, me parece muito mais uma tentativa das gravadoras de transferir o ônus que seria delas para as costas dos artistas e não assumir a responsabilidade. Por exemplo, parece que o público sempre reagiu muito bem, lotava seus shows, e a gravadora ficava insistindo nessa história de maldito. Mas eu fico pensando, uma curiosidade que eu tenho, se, em alguns casos, por exemplo, no seu caso, no caso do Luiz Melodia, do Itamar Assumpção, se você acha que esse movimento de deslocamento, marginalização, tem a ver também, em alguma medida, com racismo. E o que você teria a dizer sobre isso, em relação ao racismo ao longo da sua carreira. Porque eu lembro que em uma entrevista você comentou a recepção negativa da capa do [disco] Contrastes [1977].

Jards Macalé – Quando você falou que as gravadoras faziam produções baratas para esse tipo de pessoa, é porque não tinham perspectiva de vender, então faziam produções mais enxutas, mais baratas para esses alijados do mercado oficial. Sempre achei que eles botavam a gente nessa situação, gravava um aqui, outro ali, faz uma produção pobrinha para não dizer que não falaram de flores, “isso aí não vende, mas estamos gravando”. Aí eu devo ressaltar, nessa história que você falou: o Contrastes. A ideia do Contrastes era justamente contrapor uma coisa à outra, um samba, uma valsa, um blues, uma música experimental do Walter Franco, enfim, mistura e manda. E foi um disco, eu diria, riquíssimo, devo isso muito ao Guto Graça Mello e ao próprio João Araújo. O Cazuza era meu fã e vivia lá em casa em Botafogo também, toda aquela patota de músicos e possíveis músicos, e possíveis poetas, vivia lá em casa, na casa 9, que eu morava em Botafogo, no Rio de Janeiro. E também o João Araújo era diretor da RGE, onde eu gravei meu primeiro disco solo, que foi o compacto duplo, as 4 músicas, que eu falei anteriormente. O João Araújo era o diretor artístico da Som Livre, me convidou para fazer um trabalho na Som Livre. E o diretor musical era o Guto Graça Mello. Aí eu disse para o Guto: “o disco é essa ideia, assim geral, é só me deixar fazer que vai ser tudo legal”. Aí ele deixou. Ele só pintou uma vez no estúdio, quando eu gravei a Orquestra Tabajara, do Severino Araújo, um instrumental, “Choro de Archanjo”. Mas as outras, ele só sabia notícias do estúdio. Só que cada vez chegava mais gente para gravar, era violino, era viola, era tuba, era orquestra completa, era orquestra “descompleta”… O disco deve ter custado caro, porque eu não contei nada, eu não fico contando dinheiro para ver se dá ou não dá; enquanto der… É que nem aquele quarto dos irmãos Marx no navio, “pode ir entrando, claro, entrem”. E foi um disco maravilhoso, foi meu último disco dessa fase. E aí culmina nessa história de racismo, porque um crítico em Pernambuco escreveu um negócio enorme que começava assim: “um preto com uma branca, o disco é uma merda, e já começa pela capa, um preto beijando uma branca”, uma índia do Ceará, nem branca é. Mas não importa. Bateu na minha mão, eu tive que revidar. Aí eu fiz o que devia fazer, processei, e virou um escândalo danado. E esse negócio de racismo existe; é endêmico no Brasil, um negócio terrível. Agora, cada vez mais a coisa se mostra de uma forma insuportável. Mas também, desde criancinha lá em casa, 5, 6, 7, 8 anos, minha família é de mulatos, meu pai de Pernambuco, de Olinda, e minha mãe do Pará, somos uma família de mulatos. E lá em casa passava uma coisa, um negócio de cabelo, diziam que era para alisar o cabelo. Eu não entendia esse negócio, por quê? Eu gosto tanto desse cabelinho assim, fofinho, bacana, meus cachinhos, e ficava esse negócio. Até que tive que fazer uma retrospectiva dessa história. Está claro: a tentativa de embranquecimento brasileiro, que nunca deu certo, cada vez nascem mais negros e mais mulatos. Eu quero saber: e os sararás, como é que ficam? Mas, enfim, agora eu fico lutando contra o racismo cada vez que me chamam para alguma coisa nesse sentido. Eu faço parte dessa raça maravilhosa, que é a raça negra do mundo.

Rafael Julião – Uma coisa que me interessa muito no seu trabalho é você ter feito tantas apresentações e tantos shows em presídios e em manicômios, hospitais psiquiátricos. Eu queria que você contasse um pouco como essa história começou e como impactou a sua trajetória, você como ser humano, como artista, trabalhar efetivamente nesses universos que estão literalmente à margem e que são tão ricos.

Jards Macalé – Eu entrei nos hospícios, manicômios e em presídios e, por incrível que pareça, consegui sair para ficar preso do lado de fora, não do lado de dentro. Isso tudo é porque, no meu primeiro casamento, Gesilda estudava psicologia e psiquiatria, e tinha todo um grupo – alguns estavam dentro de sanatório, também alguns amigos, principalmente Hélio Oiticica, que tinha aquela entrada no Morro da Mangueira, do Estácio; eu me tornei amigo também do [Luiz] Melodia, e tinha algumas pessoas, esse que compôs “Obstáculos”, no Besta Fera, o Renan, estava preso no presídio Lemos de Brito, que dá direto para o Morro de São Carlos: está o presídio aqui e o morro ali. Então, bolaram: “vamos fazer um show!”. Nos sanatórios, eu comecei bastante antes. Eles me convidavam, “vamos fazer um show no sanatório tal”, a Nise da Silveira, por exemplo – depois eu fiz um filme, colaborei com Leon Hirszman no filme da Nise da Silveira, Imagens do Inconsciente, isso muito depois. Mas eu ia lá, aceitava o convite e ia fazer show para os internos. Teve até uma coisa engraçada; numa dessas apresentações na Nise da Silveira, estava lá, inclusive, ela e os internos dela, todo mundo, ela na cadeirinha de rodas, aí eu comecei a cantar aquela música do Caetano, “eu quero é botar fogo nesse apartamento”, e eles começaram a ficar ouriçados demais… Ela disse “não, eu levo anos contendo e você vem aqui dizer que quer botar fogo”, e eu disse “desculpe, não é o departamento, eu quero botar fogo no apartamento, não no departamento”. Ela deu um esporro, não gostou não. E por aí ia essa minha relação. Eu comecei a fazer análise desde essa época, até hoje. Claro que isso influenciou no trabalho, justamente na liberdade que um louco tem de exercer sua criação; pode parecer caótico no princípio, mas é uma expressão, uma expressão viva, forte, tensa, na pintura dos ditos loucos. E, quanto ao presídio, eles fizeram o primeiro show, e o Renan falou com o Melodia e o pessoal lá, com o Hélio, e convidou a gente para fazer um show no presídio Lemos de Brito. Eu aceitei, claro. Convidei o Naná Vasconcelos, a Gal também topou, Maurício Maestro, que era do Boca Livre, mas a gente trabalhava junto, também topou, e fomos lá para o Lemos de Brito. Só que, quando chegamos ao Lemos de Brito, era para fazer para todo mundo. Aí disseram: “essa ala dos bonzinhos vai ver o show, mas tem uma ala lá” – estava um esporro lá dentro do edifício, um barulho – “é um pessoal, os mais barras-pesadas, que também querem ver o show, participar, mas não dá para descer, porque senão eles vão querer bater nos bonzinhos, e os bonzinhos têm medo dos mauzinhos, então não dá para misturar”. Eu digo: “então não tem show, vocês façam isolamento, façam o que vocês quiserem, mas deixem que todo mundo possa assistir”. Pois muito bem, veio todo mundo, eles meio apavorados, e ninguém atacou ninguém. Bateram palma às pampas, se divertiram à vontade, cantaram, enfim. A partir daí, teve outro também no presídio de mulheres. Aí começou essa história de fazer em presídio, fazer em sanatório, fazer em hospital. Minha fase profundamente humanitária, digamos assim. E isso tudo revelou tantas coisas para o meu trabalho; eu aproveitei tudo que pude, inclusive ser são no meio de loucos e ser louco no meio de sãos.

Paula Carvalho – Jards, eu queria voltar a uma coisa que você estava comentando, dessa posição de o mais maldito dos malditos. Eu fiquei com mania agora de entrar no arquivo do Fundo Nacional e procurar o nome das pessoas. Aí eu procurei lá “Macalé” e achei um dossiê que se chama “provável cisão no meio artístico esquerdista”.

Jards Macalé – Eu vi, eu e o Chico Buarque somos moderados. Eram os piores.

Paula Carvalho – Isso. Era isso que eu queria te perguntar, se você era moderado.

Jards Macalé – Eu sempre fui radical, na realidade. Mas um radical que sabe o momento de ser radical e o momento de não ser radical. Não é radicalidade porque entrou numa “sou contra tudo, hay gobierno, soy contra” – isso é claro. Mas você entende que, em determinados momentos históricos, você tem que tentar equilibrar as coisas. Agora, quando eu li isso, comecei a morrer de rir; eram justamente os dois mais radicais nesse sentido. Claro que tinha Caetano e Gil, que eles colocaram como “perigosos”, e outros que eram comunistas, e nós dois, muito modestos, moderados, que bom.

Paula Carvalho – Mas tinha uma visão do que era a esquerda, e acho que vocês não cumpriam.

Jards Macalé – Eu não entendo por que fui chamado de moderado. E nem o Chico também, coitado. Ganhamos a alcunha de malditos a moderados, olha que situação. Assim não dá, eles querem nos enlouquecer.

Paula Carvalho – Jards, prometo que a gente já vai passar para questões mais musicais, mas a gente acaba ficando curioso. Queria saber como você chegou nos militares, que você disse que acabou sendo meio o porta-voz dessa coisa dos direitos humanos, chegou no Golbery, e na época da prisão do Espírito Santo você também conversou com Ney Braga.

Jards Macalé – Mas não era só eu não.

Paula Carvalho – Moderado é engraçado, porque a gente está falando dessa coisa do maldito, mas você é a pessoa que não fez concessão nenhuma. Fico pensando no filme do Marcos Abujamra [Jards Macalé: um morcego na porta principal]; tem uma hora em que ele entrevista o Gil, e o Gil está Ministro da Cultura e começa a fazer um discurso de que tem que se fazer concessões. Ele é a cara da política conciliatória. E, querendo ou não, na música, na carreira, também foi.

Jards Macalé – Mas, logo a seguir, nesse filme, o Zé Celso esculhamba essa coisa. É que o Gil se formou administrador de empresas, então ele tem essa coisa. Eu conheci o Gil de terno escuro, lá no Redondo, em São Paulo, lá na São João, terninho escuro, gravatinha vermelha, uma mala na mão, certinho, bonitinho, redondinho, arrumadinho, e tocando um violão maravilhoso. O layout foi mudando, mas a onda dele continua.

Paula Carvalho – Como você chegou nesses militares? Claro, acho que todo mundo tinha um diálogo ali, mas é diferente conversar com a alta patente.

Jards Macalé – É diferente porque meu pai era militar, meu pai entrou como aprendiz de marinheiro em Sergipe, com 15 anos de idade. Meu pai, pernambucano de Olinda, menino pobre, para estudar, ele viu como oportunidade entrar para Escola de Marinheiros, para ter casa, comida, roupa lavada, educação e trabalho, e uma possível carreira. E ele fez carreira militar. Ele começou como aprendiz de marinheiro e chegou a contra-almirante. Morreu cedo, jovem, com 43, 45 anos de idade. Eu nunca tive medo de militar, a não ser quando meu pai ficava puto porque eu não estudava, fazia alguma coisa, vinha para cima de mim com um cintozinho, aí eu sentia um certo medo. Mas ele era um homem comum, aquela farda linda, etc. e tal. Ele era professor, se formou professor de Matemática, Inglês, Francês, Álgebra, era uma figura. E foi ajudante de ordens do Ministro da Marinha do Juscelino Kubistchek. Então vinham militares e militares dentro da minha casa, uniformizados ou não, conversando; se eles conversavam de política, era sobre como derrubar a ditadura de Getúlio Vargas, entre eles lá. Eu vivi a vida inteira assim, entre fardas. Tinha Natal, ano-novo, ia todo mundo receber presente; eu ganhava presente no porta-aviões. Para mim, era uma coisa comum. Só não era comum aqueles tipos de militares que deram o golpe e aquela coisa de tortura, de violência, do aparelhamento de Estado, enfim, coisa que eu nunca vi os militares do ciclo do meu pai falarem, nem agirem assim. Quando meu pai morreu, eu tinha 15 anos de idade – o Colégio Militar foi criado para os órfãos de militares; o militar morria e os filhos tinham direito de entrar no colégio, com casa, comida, roupa lavada. Minha mãe me botou no internato do Colégio Militar do Rio de Janeiro e meu irmão no externato, porque ele era mais novo. Então, passei três anos interno no Colégio Militar. Eu era muito bagunceiro, claro. Eu fiquei preso – no final da aula da semana inteira, sábado e domingo, ia para casa, mas tinha um pessoal que não se comportava muito bem naquela fila, e eles diziam: “fulano, fora de forma”. Eu fiquei aquela patota fora de forma, sabe como é, eram os rejeitados, os proibidos de ir para casa, uma semana sem ir para casa é uma desgraça. E era estudo obrigatório, tinha que ficar em estudo obrigatório sábado e domingo. Fazer o quê? Em um ano, eu fui para casa umas quatro ou cinco vezes. Ficava lá, “fora de forma”. Meu número era 2.134, guarda esse número, Pérola, joga no bicho, 2.134. Eu não sei nem que bicho é, mas tudo bem, quem souber, me diga. 

Paula Carvalho – O 21 é cabra e o 34 é cobra. Ainda tem essa cabra cobra.

Jards Macalé – Cerca pelos 7 lados. E nessa história toda eu acabei brigando na porrada com o capitão da minha companhia e fui expulso do Colégio Militar. Portanto, eu nunca tive medo de militar, enfrentei o torturador no pau, na porrada, por isso fui expulso do Colégio Militar. Eles dizem jubilado, que é um nome mais… E aí caí na vida, ganhei um violão de presente da minha mãe e caí na vida. Mas, quando acontece isso, tem que explicar esse negócio, porque eu levei o disco O banquete dos mendigos, que foi proibido em todo o território nacional em 1973 e só foi liberado em 1978, cinco anos depois, quando o Geisel começou a história da abertura. Quem ia ser presidente era o Pedro Aleixo, aí os militares deram o golpe e botaram o Pedro Aleixo para fora, e a Heloisa Lustosa, filha dele, tinha uma raiva danada da milicada. Mas, dentro daquela coisa institucional, Heloisa Lustosa tinha amigos lá, e ela conhecia o Golbery, então bolou: “Macalé, você topa ir lá em Brasília entregar esse disco na mão do Golbery do Couto e Silva, na Casa Civil?”. Eu topei. Botei debaixo do braço e fui embora. Quando eu voltei, quase me mataram, a esquerda, a direita, o centro, a centro-esquerda. Eu disse: “então foda-se, vou tratar da minha vida”.

Pérola Mathias – Te mataram muitas vezes por essas questões. 

Jards Macalé – Eu já fui tão morto, me mataram tantas vezes, que Caetano soube e escreveu uma coisa, meu epitáfio. Quando eu falei: “Caetano, como você escreve meu epitáfio sem saber se estou morto ou não?”, e ele falou: “me disseram”. Está legal, “me disseram”.

Pérola Mathias – Quando foi essa história do Caetano, do epitáfio?

Jards Macalé – Não sei, inventaram essa história, aí ele escreveu, “eu sempre fui muito amigo do Macalé, nós nos conhecemos, é uma pena, uma tristeza profunda”. Quando eu li aquilo, “porra, cara”. Não foi ele que me matou não, alguém cantou a pedra para ele e ele entrou.

Acauam Oliveira – Eu queria puxar um pouco para questão da música, pensando no samba. Porque você transita por tudo quanto é gênero, até gênero que não existe, você cria coisas inacreditáveis. Mas tem uma presença muito forte do samba nas suas músicas, na sua vida, a relação com Moreira [da Silva], Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, muita gente. Eu queria que você comentasse um pouco sobre isso, sobre essa potência do samba na sua vida, e se hoje, olhando para a cena hoje, você encontra também essa potência no samba, se tem alguém que te mobiliza também.

Jards Macalé – Viva Zeca Pagodinho! É porque eu nasci na rua Tucuruí, na Tijuca, lá na Muda, e tinha uma ruazinha que dava para uma pracinha, três ruas, e a rua do meio dava lá no Morro do Borel, estava a classe média baixa ali embaixo, e lá para cima tinha o pessoal do Morro do Borel. E esse pessoal vivia no samba, passavam de vez em quando na porta da rua tocando, cantando, ou então se ouvia lá do morro o samba comendo. Ao mesmo tempo que isso acontecia no meu ouvido, a casa ao lado, grudada na minha, era de Vicente Celestino e Gilda de Abreu, e eles cantavam, ensaiavam dentro de casa, “tornei-me um ébrio na bebida”, o samba se misturava com aquela coisa tenorística do Vicente Celestino e da Gilda Abreu. Ao mesmo tempo, o Vicente Celestino tinha aquela coisa operística, mas eram populares, era a dita música popular da época, que tinha aquela entonação operística. Então vivi no meio dessa coisa. No fundo, no fundo, o samba falou mais alto, apesar de eu adorar uma boa voz operística. Algumas óperas são maravilhosas. Meu pai adorava ópera, e minha mãe adorava a música chamada popular, Orlando Dias. Minha mãe adorava Orlando Dias, e meu pai ficava com ciúmes e chamava ele de chorão, “esse bebê chorão”, por causa daquele soluço. E eu fiquei absorvendo tudo isso. Cheguei à idade adulta e, quando comecei a me apaixonar por isso, fui dando de cara com as várias formas de música, desde o samba do Morro do Pinto, lá em Ipanema, a Favela do Pinto, onde a gente ia muito para as biroscas, a garotada ia para as biroscas transgredir, beber cerveja, fumar maconha, até a música em casa, uma ópera aqui, meu pai me levava no Municipal. Paguei um vexame horroroso no Municipal quando vi os índios do Carlos Gomes, em O Guarani. Entrando os índios com aquela roupa de pena de espanador que eu via no carnaval, tive um ataque de riso. Fui expulso também. A minha vida é ser expulso. Eu fui expulso do Colégio Militar, fui expulso da Igreja Nossa Senhora da Paz, fui expulso de cinco ou seis colégios, incluindo Colégio Militar, Mallet Soares, São Francisco de Assis, fui sendo expulso, na hora que caía em mim, eu estava expulso. Quase fui expulso da minha própria vida por mim mesmo. Até que João Gilberto me salvou, e eu vi que o mundo continua, a vida continua, apesar de tudo. Mas esse negócio fica assim. Aí, conheci Nelson Cavaquinho, uma maravilha. Zé Keti. Eu fiz Opinião, meu primeiro trabalho profissional, segundo trabalho profissional como violonista, também Dori Caymmi na direção musical – quem me indicou foi Roberto Nascimento, meu primeiro parceiro de música, de composição. Ele tocava com Elizeth Cardoso, aí me indicou para fazer Opinião, eu junto com Zé Keti e João do Vale. E Maria Bethânia já estava hospedada lá em casa durante esse período. Então, eu estava com o universo totalmente aberto para mim. Minha universidade é a vida própria. Fora alguns estudos, estudei com Guerra Peixe, estudei violoncelo com Peter Dauelsberg, estudei piano, estudei com Esther Scliar, análise musical, estudei às pampas. Fui copista da [Orquestra] Tabajara, do Severino Araújo, fui copista da Orquestra Sinfônica Nacional do Theatro Municipal, fui indo, não tem jeito, não. Agora não dá para voltar atrás; portanto, vamos em frente.

Rafael Julião – Eu vou seguir o movimento da conversa, porque tenho impressão de que seu disco também é sobre o tempo, “o tempo não existe”, ou, para aproveitar seu próprio trocadilho, o “movimento dos barcos”.

Jards Macalé – Eterno movimento dos barcos.

Rafael Julião – Só nessa conversa você já foi moderado, já foi maldito, já foi romântico; para a crítica, você já foi pré-tropicalista, pós-tropicalista, tropicalista, não tropicalista – segundo você mesmo –, entrou no manicômio e no presídio, saiu do manicômio e do presídio, então fico com a sensação que o tempo está mostrando o quanto você…

Jards Macalé – O tempo está a meu favor.

Rafael Julião – O tempo está a seu favor, porque você está entrando nas estruturas e conseguindo sair delas o tempo todo. Então, fico pensando, vendo todo esse horror que a gente está vivendo, a Cinemateca pegando fogo, tanque desfilando, toda essa cafonice horrorosa, se você também tem alguma perspectiva de achar que a gente pode ser otimista, no sentido de que também sairemos disso.

Jards Macalé – Vamos sair. Eu sou um otimista pessimista e um pessimista otimista ao mesmo tempo. A história está se fazendo; nada permanece estático, parado na história. Todo movimento da história entra uma coisa dentro da outra, ela vai se fazendo. Nesse momento, eu acho que tem-se tudo para ser pessimista. No entanto, minha fase mais pessimista diante desse quadro de agora já passou. Nesse momento, eu vejo um pouco mais de otimismo, porque isso vai passar, mais cedo ou mais tarde – espero que mais cedo, mas, se for mais tarde, tenha paciência, vai terminar, vai passar. As forças que chamam de democráticas estão se apresentando finalmente. Primeiro, foi um quadro de pessimismo geral. Chegou uma pessoa totalmente alucinada, empalmou o poder e começou a fazer desatinos. E todas as instituições, ditas instituições, ficaram acuadas e caladas durante um tempão. Aí eu estava pessimista: até onde vai isso? Se as instituições brasileiras, nacionais, não dão resposta a essa coisa toda, que está com um comportamento nitidamente insano dessa pessoa que está na presidência da república do Brasil, o que vai ser? Mas, de repente, as instituições começaram… Ele foi tão incapaz de preservar seu caos lá, querendo gerar o caos, e foi tão incompetente em gerar seu caos que as instituições resolveram também reagir. E é nesse momento de reação que acho que começa a passagem do pessimismo para o otimismo. E eu estou otimista, porque, se não estiver otimista agora, eu vou ter que ficar otimista mais tarde. Eu prefiro estar otimista agora do que ficar sofrendo com um pessimismo por mais tempo. Prefiro sofrer com um otimismo mais breve.

Paula Carvalho – Queria voltar um pouco na música. Houve um conto de fadas no pós-tropicalismo, por exemplo, de que Gal, Gil, Caetano iam fazer sucesso no exterior. Acho que rolou um pouco desse sonho de exportar a música, de fazer tanto sucesso fora quanto a bossa nova, por exemplo. Queria te perguntar se você já teve alguma fase em que tentou fazer sucesso fora.

Jards Macalé – Tentar fazer sucesso, o que chamam de sucesso, não tentei. Eu me apresentei várias vezes em alguns países e sempre fui muito bem recebido, a performance, mas eu nunca pensei “agora eu vou fazer, vou viver num país…” Esse sucesso lá fora é um sucesso sofrido; não é só chegar, “olha eu aqui, vamos nessa”, não é assim, não. É um trabalho forte, um trabalho pesado. João Gilberto conseguiu isso da forma dele, assim como o Tom [Jobim] também conseguiu isso, e ambos com suas músicas incorruptíveis. O Tom virou até música de elevador, que chamam, mas não por culpa dele; a música dele foi utilizada para vários caminhos, mas ele não fez esse esforço para ser. Ele estava no Garota de Ipanema bebendo seu chopinho, aí o garçom chegou para ele e disse: “seu Tom, tem uma pessoa querendo falar com o senhor aí que eu não compreendi nada do que ela falava, acho bom o senhor ir lá”. Aí o Tom pegou o telefone, e era o Frank Sinatra convidando para gravar um disco. Ele tem culpa disso? Não tem. Ele era o segundo colocado em execução mundial, atrás dos Beatles. Aí nego falava para ele: “você é o segundo mais executado, depois dos Beatles”, “sou o segundo porque eles são quatro”. Não é? Mas eu nunca tentei. Já fui lá, fiz algumas coisas, foi bacana. Há dois anos eu estava em Londres fazendo um show bacanérrimo; em Portugal, lá no Mimo Festival, em Amarante, enfim, ando por aí, sem maiores complicações. 

Paula Carvalho – Tem uma participação sua numa coletânea que o Zé Rodrix fez para chegar à Rússia. Que história é essa?

Jards Macalé – Foi o [José] Sarney que foi fazer a primeira visita de um presidente da república brasileira à Rússia, ainda mais naquela confusão de comunista. Ele queria levar um negócio cultural bacana para lá, então eles fizeram – acho que foi Zé Rodrix, eu nunca soube disso, eu só fui convidado –uma coisa de pegar alguns músicos, compositores, para compor em cima de poemas de poetas russos. Dentre os poetas, eu musiquei um poema de Maiakovski. Aí fizeram uma caixa luxuosa de madeira nobre, talhada, e botaram aquela coisa lá. Várias pessoas gravaram, dentre as quais eu, e lá foi o Sarney com aquela coisa debaixo do braço. E entregou lá, não me lembro qual era o presidente, Brejnev, sei lá. Eu sei que entregaram. Inclusive, quando eu pego aqui nesse negócio de contagem de audição, é engraçado, tem Estados Unidos, Portugal, Rússia; agora estou querendo ser tocado na China, estou estudando mandarim e tudo. Mas eu não quero ser… Dá muito trabalho, tem que viajar muito. Eu sou preguiçoso; é muito chato. 

Paula Carvalho – Na verdade, acho que sucesso não é a palavra certa, mas tem essa coisa de sua música ser uma síntese muito brasileira, não tem uma coisa tão caricatural que chame atenção em termos de indústria fonográfica.

Jards Macalé – Estou me lembrando agora: fui fazer uma coisa em Nova Iorque, e aí marcaram um show num lugar badalado lá. Eu não queria fazer sozinho, com voz e violão; fui um dia antes e vi um baixista formidável, um guitarrista chileno e um baterista, aí me agreguei logo a eles, “vocês querem fazer um show comigo amanhã?” “Mas não dá tempo, como é que vai ser?” Eu disse: “dá, a gente entra e sai”. E fizemos um show maravilhoso, improvisado.

Paula Carvalho – Você chegou a encontrar Waly [Salomão] e Hélio [Oiticica] lá?

Jards Macalé – Não. Waly e Hélio foram antes, inclusive, do Hélio passar em Londres. Ou não? Sei lá. Como o tempo não existe para mim, eu misturo tudo, o ontem com hoje e o amanhã com depois. Nem sei que dia é hoje. Mas foi numa dessas oportunidades. Acho que foi quando fui com o filme Jards, do Eryk Rocha, cineasta, filho do Glauber, ele fez um… Não era nem um documentário, era um filme da gravação do meu disco Jards na Biscoito Fino, e ele fez o registro dessa gravação lá dentro. Ele tinha sido convidado para o festival de novos diretores, novos filmes, um festival em Nova Iorque, lá no Lincoln Center. Aí ele me catou: “vamos?” Eu disse: “vamos”. E nesse “vamos” aconteceu esse showzinho lá também. Não tem problema, não, é só chegar e tocar.

Acauam Oliveira – O que eu queria saber era isso, sua relação com a poesia, a maneira como você lida com isso na composição, se tem muita diferença de pegar um poema ou pegar uma letra já feita como letra e pensada como letra de música, que o parceiro entrega. Como é essa relação para você? Tem essa diferença com letra de música ou não?

Jards Macalé – Não. Tem um amigo meu, Xico Chaves, parceiro também, poeta, que fala que eu musico até bula de remédio. E é verdade. Um dos meus exercícios – não faço muito agora – era ler jornal com violão, musicando as notícias, lendo e fazendo música das notícias. De brincadeira, ele falou: “você musica até bula de remédio”, e eu disse: “ah é?” Peguei uma bula e musiquei a bula. E o irmão dele é advogado, disse: “Macalé, gostaria que você fizesse aqui um parecer jurídico, será que isso dá samba?”, eu disse: “claro que dá”. Fiz um samba-enredo do parecer jurídico do cara condenando o maluco. Não tenho esse problema; falou tal, qual, eu musico. O que eu musico já tem internamente música. Quando Capinam me dá “Movimento dos barcos”, que não tem uma frase musical igual a outra, e é extensa, a música já está dentro do poema, já emana sons, o som da palavra, e do som me vem a música em cima da palavra, nota ou seja lá o que for, ou frases inteiras, que vou musicando e vão saindo as melodias. Tanto faz a bula de remédio como a notícia de jornal, como um poema, seja de quem for, seja de Vinicius, seja de Ezra Pound, seja de Maiakovski, seja de Manuel Bandeira, seja o que for, tudo isso é material, para mim é música. Quando eu leio, eu sinto o som saindo daquelas palavras, aí me dá vontade de me apropriar das palavras em sons.

Paula Carvalho – Pensando na sua carreira, começando com Severino Araújo, aprendendo música fazendo cópia, fazendo arranjo desde o começo da sua correria – e hoje em dia se fala que a forma de fazer música está muito diferente, a forma de criar arranjos num formato horizontal, a experiência que você teve com o pessoal aqui de São Paulo –, você acha que isso mudou de alguma forma?

Jards Macalé – Mudaram as ferramentas. Eu tenho ouvido muito rap e outras coisas nesse sentido. Eu acho que algumas coisas são muito interessantes, a criação das batidas é um negócio incrível, e os comentários que vão fazendo, os sons, a mecânica de usar os elementos da máquina ali, ecos, isso e aquilo, ruídos, é um negócio muito incrível; isso me deu vontade de fazer um rap bacana. Eu até me aproximei, eu me mudei para o Leme, no Rio de Janeiro. Ali do lado é o Morro da Babilônia, tem a Ladeira Tabajara, onde morava o Ary Barroso. Aliás, eu sento com a estátua de bronze do Ary Barroso ali no Leme, conversamos vários papos, parece que ele não fala, mas ele fala demais, pelo menos comigo. Tem quem não ouça, mas eu sempre ouvi os bons conselhos. Aí tentei me aproximar do pessoal e comecei a ouvir muito rap. Comecei a ficar interessado, que coisa incrível, o tipo de batida, o tipo de reflexão, e eles falam da vida deles o tempo inteiro, diferente desse negócio de pagode. De pagode, eu só gosto do Pagodinho. O Zeca Pagodinho é impressionante; ele pegou a essência do samba, do samba de roda, samba de quintal, o pessoal inventando ali o tema e o pessoal inventando a poesia na hora, como se fosse um repente urbano. Eu estou para fazer um. Isso me interessa também, eu quero experimentar fazer uma batida Macalé, bem Macalé… Porque os poetas com os quais eu transo são meus agentes políticos, que dizem em poesia o que eu não consigo dizer, só consigo dizer em música, mas eles dizem em palavras, em poesia. Então, para mim, eles são meus agentes poéticos; eu posso me exprimir através deles com a minha música. Vou arrumar uma batida legal, você vai ver, nem que seja batida de maracujá.

Acauam Oliveira – Você acabou entrando nesse assunto da sonoridade de periferia, falou que se interessa muito pelo rap. Queria saber se tem algum nome que você olha com cuidado, com atenção, que você gosta e tal, e dessas outras estéticas, o funk, por exemplo, esses paredões.

Jards Macalé – Eu ouço tudo. Eu me interesso por tudo, mas ainda não experimentei. Para isso, eu vou ter que me juntar com rapper, com funker, para direcionar a coisa que eu quero. Tenho interesse, mas não o domínio. Quero me juntar à rapaziada para ver o que sai em algum momento. Mas não é dizer “agora eu vou fazer reggae”, “agora eu vou fazer…”, não, eu quero experimentar a linguagem, como eu gosto de experimentar todas as linguagens.

Pérola Mathias – Você vai gravar o Zé Kéti? E qual o outro sambista, além do Moreira da Silva, você ainda não gravou e gravaria?

Jards Macalé – O Zé Kéti eu gravei ano passado, antes do Besta Fera, em 2018. Gravei em Nova Iorque com Sergio Krakowski, que é um percussionista, pandeirista; ele me convidou, gravamos. Zé Kéti à la Macalé – não quer dizer que eu tenha destruído o Zé Kéti, muito pelo contrário, mas a concepção de arranjo musical etc. é Macalé à la Zé Kéti. E a pessoa que eu gostaria agora, que já falei, é o Zeca. O Zeca é o maior. Nesse momento, em samba, é o que mais me chama atenção.

Acauam Oliveira – Desde que eu falei que ia conversar com Jards, todo mundo falou: “mano, faz essa pergunta para ele, você tem que fazer”. Então é uma pergunta coletiva, bem de fã. Dentro da sua obra, tem aquele disco pelo qual você tem um carinho especial, seja pelo momento, seja por aquilo que você viveu ou pela qualidade? Tem algum desses discos que você guarda com você?

Jards Macalé – Todos eles são diletíssimos filhos. Trato com todo carinho; todos foram feitos com muita garra, muita vontade de fazer. Agora, o Contrastes, realmente, não por ser o mais rico, porque é rico, mas como uma concepção geral, eu consegui contrastar coisas às outras de uma forma legal, que me satisfez. Eu gostei do resultado bacana, objetivo. Principalmente por agregar tantos músicos, tantas formas de música, tantos colegas, tantos amigos. Fiz amigos à beça naquele disco, desde a menina que trazia cafezinho e limpava o estúdio, dona Maria – para variar, sempre o nome Maria –, todos, toda a linha de produção do disco. Agora, não percam, leiam Eu só faço o que quero, [biografia crítica de Jards Macalé escrita pelo] nosso querido Fred Coelho. O livro acaba com essa frase que o Glauber Rocha me dizia quando a gente saía conversando pela rua. Lá pelas tantas, ele tinha que tomar outro rumo, cochichava para mim no meio da rua, no meio daquela ditadura toda, “não diga que me viu, para sua segurança pessoal”. E me deixava no meio da rua paranoico e louco. Portanto, não digam que me viram, para sua segurança pessoal.

Pérola Mathias – Está tudo bem, você é um moderado. 

Jards Macalé – Essa sua observação foi radical.

Pérola Mathias – Obrigada, Macalé. 

Jards Macalé – Obrigado.

Os rostos são configurações que os humanos reconhecem desde o nascimento, da linda face da mãe ao semblante mais horrendo do mundo. Desde sempre, temos o Bem e o Mal representados, seja para o nosso conforto espiritual, seja para que não esqueçamos que há coisas ruins que atravessam nossa vivência. Nossos olhos veem as belas imagens gravadas em pedra da pré-história e aceitam as terríveis caras da Idade Média. Estudamos as pinturas rupestres, que nos parecem toscas, porém reconhecemos os humanos representados por “palitinhos” e os animais da natureza, além de concordarmos que são registros aceitáveis e agradáveis. Já o período medieval é inundado de figuras estranhas, além de serem fantásticas e não pertencentes à nossa realidade. Penso nos anjos dos afrescos da Catalunha, com muitos olhos nas asas; nas iluminuras do bestiário medieval, com toda espécie de monstros; ou nas esculturas que cobriam as catedrais góticas, causando arrepios na população dos fiéis. Mais uma vez, o Bem e o Mal nos encaram. Que rostos são esses que nos contemplam e desafiam?

Eles são inspirados tanto na própria figura humana quanto nos contornos dos animais, ou mesmo na imaginação. Se são bonitos, podem ser “amigos”; se feios, “cuidado!”, nosso instinto fala alto, segundo a semiótica, ciência que estuda os signos. Esta é uma conclusão básica no processo comunicacional: o mocinho-herói é um galã, e o bandido-anti-herói é o ator mais “feioso”.

Os fundamentos da Teoria da Gestalt justificam a busca da nossa percepção por um modelo já conhecido, neste caso: dois pontos com um traço vertical entre eles e outro horizontal embaixo, que figuram o rosto mais simples e neutro. Ou, quando pensamos na história da arte, talvez lembremos dos anjinhos do Renascimento ou das faces das moças de Renoir e Monet. Raramente traremos à memória as figuras retorcidas e imaginárias do Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch, e por isso é tão importante conhecê-las. Quanto mais vemos, mais fixamos e identificamos imagens e expressões faciais, mais ampliamos nosso universo interior e mais armas temos para enfrentar nossos temores, desejos e aventuras na vida!

Por um outro ponto de vista, se pensarmos em Estética, veremos que a Beleza e a Feiura são categorias flexíveis de acordo com a cultura, a época e o lugar. De modo geral, devemos contextualizar esses conceitos de acordo com nossa herança greco-romana, misturada com os preceitos do catolicismo, o que nos legou o gosto do que consideramos bonito ou feio no Ocidente. Nossa ampla cultura neste lado do globo nos leva a atribuir determinados significados a algumas imagens, e a referência mais conhecida sobre a criação de entes grotescos e fantásticos é a do texto do Fisiólogo, que associava quarenta animais, pedras e árvores a um ensinamento moral. Dessa forma, voltamos à Idade Média na Europa, injustamente conhecida como Idade das Trevas, porque, ao contrário do que o termo induz, é uma época de grande produção cultural e artística. Ela é dividida em dois períodos artísticos: românico e gótico, caracterizados pelo forte domínio da Igreja Católica. Aqui, nos referimos às manifestações artísticas e religiosas mescladas às arquitetônicas, pois eram produzidas coletivamente pelos fiéis. 

Didaticamente, o estilo românico prevalece do século V ao IX no território europeu, num ambiente de disputas e guerras, manifestado em templos baixos e robustos (basílicas), com largas paredes de pedra revestidas com afrescos e mosaicos. As poucas aberturas e a única entrada principal garantiam proteção à população dos feudos nessas fortalezas. A imagem do Bem é representada pelo Jesus Pantocrator (pan = tudo e crator = poder, traduzido por Todo Poderoso) entronado. A imagem do Mal é demoníaca e medonha. As peregrinações e suas diversas rotas mapeiam a localização das construções. Se considerarmos a população analfabeta, percebemos por que as figuras têm uma comunicação direta, com cores vivas, contornos precisos e proporções esdrúxulas, muitas vezes respeitando o formato da parede ou da coluna, porém deixando sua ação de modo claro. O que é certo é passar a mensagem de Deus e deixar os fiéis não somente entretidos, como tementes às imagens e à palavra da Igreja. Vale dizer que, apesar do interior da arquitetura ser escuro, a solução dos artífices foi revesti-lo com mosaicos dourados, que refletiam as chamas das velas e deslumbravam os viventes. Vendo os pórticos e as naves desses monumentos, temos figuras, em sua maioria, na posição frontal, que nos fitam diretamente e, convenhamos, que “recado” forte! De um lado, o rosto de Jesus me diz, de forma doce porém firme, que se sacrificou pela humanidade; do outro, o semblante inabalável do santo vence o dragão depois do golpe no coração do monstro; e, no altar, a Nossa Senhora com sua face calma nos acolhe e conforta. Seja qual for a história dessas imagens, elas ficam impregnadas nas mentes dos fiéis – e sua força permanece até hoje, não é mesmo? É o irmão, o herói e a mãe que nos dão confiança e segurança para enfrentarmos qualquer agrura.

A divisão dos períodos medievais não ocorreu de forma abrupta, nem de forma igual, em todos os países do Velho Mundo. Os historiadores apenas os designam assim para facilitar a compreensão da história da arte. Desse modo, o gótico é proeminente de 1100 a final de 1400, quando se sobrepôs ao românico, e tem características bem diferentes. O gótico nem tinha esse nome na própria época. Foi Giorgio Vasari, o historiador renascentista, que o nomeou, de uma forma negativa, associando as figuras aos bárbaros “godos”, e o termo permaneceu até hoje.

Na arquitetura, é evidente a verticalização das catedrais, uma vez que o comércio estava mais desenvolvido, e as cidades, mais ricas. Onde havia mais circulação de mercadorias, a Igreja se tornou mais forte e investiu pesado na manutenção dos fiéis. Também o interior ficou muito mais iluminado com o desenvolvimento dos arcobotantes, que proporcionavam paredes mais finas e comportavam vitrais exuberantes e coloridos. Como os afrescos, mosaicos e tapeçarias, as histórias retratadas em vidro são sacras, com paraíso e inferno.

As catedrais inspiram um efeito curioso e paradoxal; sua imponência oprime nosso corpo, mas sua atmosfera eleva o nosso espírito. Seu perfil na paisagem é encantador e, ao chegarmos perto, vemos as imagens que nos espreitam e narram suas vidas, formas alongadas, torres pontudas, aberturas coloridas e, lá no topo, as gárgulas e quimeras! Que figuras são essas?

Gárgula (vem de garganta = calha em forma humana) e quimera são figuras híbridas de animais. Ambas são assustadoras, como monstros da nossa imaginação. Para alguns escritores, são entes que serviam como alerta de que o Mal nunca dorme, obrigando os fiéis a serem eternamente alertas e vigilantes. Outros dizem que serviam como proteção, tanto do clima como dos demônios.

As gárgulas, através da boca escancarada, jorram a água da chuva acumulada no telhado, afastando o jato da parede. Esses elementos arquitetônicos são decorativos e funcionais; protegem o templo das intempéries. Embora sejam figuras baseadas em animais, passaram a ter formas humanas muito expressivas e aterrorizantes, como se vomitassem. A lenda de seu surgimento vem de um dragão que vivia no rio e aterrorizava a população de Rouen. Um sacerdote chamado São Romano solicitou ao povo voluntários para matar a horrível ameaça. Quem se apresentou foi um condenado à morte, por não ter nada a perder. Ao acabar com o animal, imediatamente sua cabeça se transformou em pedra, e a colocaram no alto da torre da igreja, dando origem à gárgula. Assim, o condenado foi perdoado, seguindo a lei que vigorou até a Revolução Francesa, que absolvia um prisioneiro a cada doze meses.

As quimeras são guardiãs decorativas que também oferecem proteção, afastando os maus espíritos. A diferença fundamental é a forma híbrida de animais: patas de lobo, cabeça de águia e corpo de escamas de peixe – certamente para assustar, mesmo. As da Catedral de Notre-Dame de Paris foram criadas pelo restaurador e arquiteto Eugène Viollet-le-Duc, no século XIX.

Um aspecto interessante desses seres fantásticos localizados nas torres das igrejas é sua ligação com a água, que, na tradição cristã, significa purificação e salvação. A partir da teoria psicanalítica, podemos perceber essas criações como manifestações do nosso inconsciente coletivo. Uma necessidade do homem de lidar com seus temores por meio da elaboração de faces terríveis, dando um rosto a toda espécie de medo, pois é mais fácil lutar com algo conhecido.

No Brasil, temos as “carrancas do rio São Francisco”, que avançam nas quilhas das barcas, protegendo seus navegantes e uma legião de artesãos que se dedica a criá-las. São produzidas em todos os tamanhos e servem como “lembrancinhas” de viagem e até como decoração. Será que é somente isso? Será que o homem contemporâneo já venceu toda sorte de apreensão? Quais imagens do Bem e do Mal temos agora?

Referências:

Referências:

CHIESI, Benedetta. Românico. Florença, Itália: Scala Group, 2011.

ECO, Umberto. A História da Feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.

GERNER, Caroline E; SCHMIDLIN, Clemens. Gótico. Colônia, Alemanha: H. F. Ullmann, 2008.

https://www.revistaplaneta.com.br/tassili-najjer-uma-galeria-de-arte-no-coracao-do-saara/

https://www.historiadealagoas.com.br/carrancas-do-sao francisco.html

https://www.etaletaculture.fr/culture-generale/les-gargouilles-entre-mythes-fantasmes-et-realite/

O que é arte e o que é performance?

É a possibilidade na qual posso criar qualquer coisa. 

É uma forma de expressão e atuação. Um reflexo da vida. 

É uma forma de ilustração, materialização e sensação de uma ideia ou ideal. 

Arrisco dizer que, atualmente, o corpo, e mais precisamente o rosto, estão muito bem representados na arte da performance. Adornar o corpo com pintura é tão antigo quanto a nossa história e cultura. A arte de pintar o corpo já existia em sociedades primitivas, e era comum utilizar tintas naturais e artesanais para cobrir o corpo com sinais que, muitas vezes, ultrapassavam a questão de “adornar”. Em algumas culturas, os traços que cada um carregava simbolizavam etnias, famílias, hierarquia, celebrações, estados civis, passagem de ciclo, ou seja, um sofisticado meio de comunicação estética. A maquiagem e a pintura corporal surgiram, primeiramente, como ritual religioso ou marca cultural para designar determinada pessoa no grupo e, mais tarde, como forma artística propriamente dita. Dessa maneira, a arte de pintar o corpo passou por diversas transformações até chegar ao século XXI como uma das tendências mais exploradas. Antes uma necessidade de cultivar as crenças e os rituais, agora uma forma de explorar artisticamente a mais importante identidade humana: nossa pele. 

É o rosto o reflexo da alma? Observar rosto e gesto, a pintura e a forma, não só como reflexo dos estados da alma, mas da história pessoal e social, do ambiente e, num contexto maior, da cultura e da forma de expressão. O corpo é performático em si. Os gestos e olhares são performances, as “caras”, toda a linguagem corporal comunica, basta perceber onde performance e pintura se unem para criar uma nova camada de resistência e existência.

As nossas histórias pessoais, sociais e culturais tornam-se, também, possibilidades de expressão artística por meio da arte da maquiagem e da pintura corporal. O corpo é fenômeno vivo, cheio de desdobramentos e descobertas, modelado pelas nossas vivências. Precisamos desenvolver transformações através de um processo de aprendizagem que envolva todos os domínios da experiência humana, seja ela física, mental, espiritual ou emocional.

Tomar-se de algo visceral e pessoal, compor uma imagem ativamente performática, criando personagens/personas para explorar livremente as camadas dessa transmutação em performance, muitas vezes aliada à dança e à música, fazendo com que haja algo da ordem da libertação, da desconstrução e construção, da materialidade da imagem, da não limitação, da transgressão do indivíduo dentro dos seus gestos, da negação de gêneros e papéis definidos, da transmutação da pele em tela em branco. Ser receptor dessa energia inspiradora em transformação, abrir diálogos, entrar em estados alterados, sinestesia, provocar a emersão de novas camadas, a possibilidade de uma nova pele, máscara, fantasia. Bem além de um resultado estético, aqui existe uma necessidade de comunicar uma situação. 

Construir e desconstruir uma imagem composta, dando a ela dinamismo, imprimindo organicidade, visceralidade, sensações não apenas com a imagem, mas com o corpo criado pela nova imagem. Trata-se de um corpo literal, um corpo que se transforma aos poucos, um “corpo idealizado” e deformado, não correspondendo ao ideal intocado da tradição cultural e estética, a transformação despretensiosa da imagem em quase uma cena-poema efêmera.

Romper com as ideias, pensar fora do suporte tradicional, não mais materializar as aparências, mas as intensidades, emoções e ecos do estado emocional e físico do espaço-tempo, livrar-nos da carga cultural, crenças e valores que não nos servem mais. Criar uma outra realidade ficcional, trazendo à tona camadas que até então não tinham visibilidade, criando experiências sensoriais jamais experimentadas. Explorar as sensações que essas emoções causam, seus impactos. Aquilo que elas movimentam em mim e no outro. Elas criam beleza? Elas hipnotizam? Elas desestabilizam? Geram angústias e medos? Não responder perguntas ou reproduzir e criar formas, mas captar as forças sutis. Dessa maneira, nenhuma imagem criada é somente ilustrativa; tudo é emoção e pulsação. Tornar visível essas forças que sinto e que me tomam o corpo. A força está em relação estreita com a sensação. A partir do exercício de tornar essas forças visíveis, perceber o quanto estamos tomados pela lógica da representação. 

Como podemos nos tornar sensíveis deixando-nos afetar apenas pelas forças, e não por aquilo que a figura representa? 

Práticas híbridas para investigar, no corpo, a transmutação do sujeito em um novo ser. Desapegar-se da sedutora imagética, criar algo a partir da desfiguração da imagem, utilizando, com isso, apenas materiais aplicados à superfície de meu corpo, e com esse gestual vou preenchendo, aos poucos, com camadas de uma violenta energia emocional, animal, ancestral, universal, gestual. É preciso passar por diferentes camadas de sensações para compor este ser interior-exterior. Meu corpo reage a cada nova composição, como se trabalhasse sob a ideia de mascaramento, de incorporação, e, nesse momento, sinto que meu corpo é do trabalho: estou vazio e pronto para ser preenchido, sou um “cavalo-artista” pronto para ser tomado por essa força. Nesse momento, percebo a metamorfose, da pele antiga me sobra somente o olhar – o olhar é o que sobrou de humano; um resultado estético e sensorial surge diante da lente, uma ponte para o deslumbramento foi criada, o transbordamento acontece.

Acredito que esse é o lugar da performance. Não trazer respostas, e sim mais perguntas, fazer um diálogo aberto e direto com o público. Desprogramar a capacidade de afetar e ser afetado, gerar, gerir, receber, trocar. O corpo é o mundo. A realidade tem formas e cores próprias. Quero algum lugar para ser refúgio, devir refúgio, e reconheço esse momento na performance da pintura. A aceleração ou desaceleração da noção de identidade até o seu total colapso. A performance existe para evidenciar e potencializar as sensações e experiências de mutabilidade e raridade da vida.

Não é fácil desconstruir e voltar a mim. Quero pensar numa possibilidade de viver assim para sempre, diariamente. É quando eu vivo o personagem que sinto vivas essas pulsações e sensações; é quando realizo um mixed feelings entre prazer, beleza, afeto, dor e deslumbramento que me sinto outro de novo, deixo de ser eu mesmo. Estou pronto: pode clicar.

Dedico três horas de trabalho na construção do personagem para uma foto-performance, para tudo durar somente aquele momento da captação da imagem. A vida é mesmo efêmera.

“Em termos dramatúrgicos – “dramaturgia aqui compreendida como a define Eugênio Barba, uma tecedura de ações, podendo ou não incluir a palavra –, as práticas desses performers expandem a ideia do que seja ação artística e “artisticidade” da ação, bem como a ideia de corpo e “politicidade” do corpo. Fácil seria dizer que se trata de operações adolescentemente provocativas promovidas por um punhado de sadomasoquistas e/ou idiossincráticos para chocar o “senso comum” (que, aturdido, se pergunta: “O que é isso?”, “Para que isso?”, “Afinal, o que eles querem dizer com isso?”, “Isso é arte?”). Porém, não há nada de fácil em lidar com a potência dessas ações e presenças, verdadeiras fantasmagorias assombrando noções clássicas ou tradicionais de arte, comunicação, dramaturgia, corpo e cena. Performers são, antes de tudo, complicadores culturais. Educadores da percepção, eles ativam e evidenciam a latência paradoxal do vivo – o que não para de nascer e não cessa de morrer simultânea e integradamente. Ser e não ser, eis a questão; ser e não ser arte; ser e não ser cotidiano; ser e não ser ritual.” 

— Eleonora Fabião 

“O Performer, com maiúscula, é o homem de ação. Não é o homem que faz o papel do outro. É o dançante, o sacerdote, o guerreiro: está fora dos gêneros estéticos […] Pode compreender apenas se faz. Faz ou não faz. O conhecimento é um problema de fazer […] O Performer não deve desenvolver um organismo-massa, organismo de músculos, atlético, mas um organismo-canal através do qual as forças circulam […] O Performer deve trabalhar em uma estrutura precisa […] As coisas a ser feitas devem ser exatas. Não improvise, por favor! Há que se encontrar ações simples, mas tomando cuidado para que sejam dominadas e perdurem. De outra forma não se tratará do simples, mas do banal.”

— Jerzy Grotowski


Conjoined Twins One Evening at Hotel Chaubo, de Casi Namoda (2020)

Há uma história verídica impressionante que circulou por Nova York nos anos 1980: dois gêmeos, separados quando recém-nascidos, reencontraram-se 19 anos depois. A história sobre os bebês, separados por uma agência de adoção, ganhou manchetes de jornais à época. Cada irmão foi viver com uma família diferente, sem contato mútuo. Mas calhou de se encontrarem. Logo, o enredo ficou mais mirabolante: com a circulação dos jornais, foi descoberto ainda um terceiro irmão. Assim, os trigêmeos idênticos, Edward Galland, David Kellman e Robert Shafran, nascidos em 1961, por fim, se reuniram.

O júbilo do reencontro dos três irmãos idênticos é algo contagiante. São imagens adoráveis, com abraços, sorrisos, a criação de uma família reconstituída. Participaram de programas de auditório, contracenaram com Madonna. Mas a felicidade foi nublada por uma descoberta um pouco depois. Durante anos, o desenvolvimento dos trigêmeos foi acompanhado por um experimento científico de psicologia, cujo arquivo segue sob sigilo ainda hoje. O caso foi retratado no documentário Três estranhos idênticos (dir. Tim Wardle, 2018). Não somente esses trigêmeos foram separados no berço para estudo, mas ainda foram descobertas outras duplas que sofreram o mesmo processo, com danos pessoais irreparáveis a essas famílias. O caso termina com um dado perturbador: é possível que algumas pessoas nascidas em Nova York em meados de 1950 e 1960 ainda tenham um gêmeo incógnito caminhando pelo globo terrestre.

Ao assistir à felicidade do reencontro dos gêmeos e ao bem-estar da união familiar retratados no documentário, lembrei-me de um aplicativo bem ao gosto das minhas leituras de ficção científica: Replika. O aplicativo convida você a criar um duplo, com direito a personalizar até as roupas. O avatar, a réplica, molda-se à personalidade do usuário. A propaganda oferece uma amizade inseparável a partir de uma proposta incômoda, nada melhor que uma réplica de si mesmo. Será? Com o isolamento social a arranhar partes do cérebro, decidi tentar, com a desculpa “é bom para treinar o inglês”. Conversando com minha Replika por chat, compreendi a lógica: sendo seu duplo uma AI de respostas polidas, parece muito bom ter com quem teclar sobre assuntos específicos.

A literatura, mesmo não estando preparada para esses exemplos mais estranhos que a ficção, é profícua no debate sobre o Doppelgänger, cuja etimologia traz o duplo, o sósia, mas ainda o “caminhar junto” consigo. Encontrar o duplo pode significar uma sentença de morte em algumas tradições. Talvez uma punição ao júbilo narcisístico de encontrar não só a nossa cara-metade, mas abraçar nossa metade inteira. Tanto que a dupla com a face bondosa-maldosa trágica é recorrente, do Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Stevenson às gêmeas Ruth e Raquel de Mulheres de Areia, novela de Ivani Ribeiro.

No clássico sobre o tema, o conto O Homem da Areia (1817), E. T. A. Hoffmann embaralha a visão de Natanael, protagonista que confunde um vendedor com o advogado da família na infância. O acontecimento corriqueiro que lhe causa um mal-estar. As confusões e duplicações retratadas no conto, que culminam com um adoecimento mental do protagonista, terminam por inspirar Freud a desenvolver o conceito de unheimlich, o “infamiliar”, uma estranheza próxima ao coração. Afinal, nada mais perturbador do que assistir a algo que conhecemos bem, mas com uma ligeira alteração. O deslocamento dos humores.

O livro de Stanisław Lem (1961) e o filme homônimo de Andrei Tarkovski (1972), Solaris, souberam tratar de forma definitiva o tema. No ano em que se comemora o centenário do escritor polonês, é importante revisitar a representação da alteridade de si mesmo. Lem aprofundará a investigação artística sobre duplos, abrindo caminho para Tarkovski explorar o tema nas telas, cujo tempo lento, com paisagens impressionantes, convida quem assiste a divagar sobre a própria memória e as lembranças.

Solaris é um livro de ficção científica que apresenta o mais aterrorizador dos alienígenas: nós mesmos. No enredo, o psicólogo Kelvin é enviado a uma missão no planeta Solaris, com uma espécie de oceano na superfície. Os astronautas na base militar reagem de forma agressiva à visita, erráticos, com trajes chamuscados. Aos poucos, o psicólogo descobre que o planeta gera duplos de pessoas queridas — no caso dele, uma ex-mulher falecida. Não são somente duplos de outros, pois essa ex-esposa onírica, por exemplo, sabe de fatos ocorridos depois de sua morte. Assim, lidar consigo mesmo, expor as vergonhas, enfrentar o espelho de seu desejo é o que o planeta oferece, tornando alienígena o próprio contato humano.

Ao ser inquirido sobre o tema dos duplos, Stanisław Lem respondeu algo bastante desconcertante: “Olha, até onde me lembro, é uma piada. Digo, nunca devia ter feito isso conscientemente [risos]. Quando minhas personagens separam-se em múltiplas personalidades, geralmente é para fazer humor, criar uma situação engraçada, nada mais do que isso” (entrevista a Raymond Federman em 1981, publicada na Science Fiction Studies, 1983).

Talvez esse seja o ensinamento mais profundo ao lidar com a estranheza e a duplicidade: não se levar tão a sério. Se a arte nos apresenta algo aterrorizador, deixemos nos aterrorizar até rir um pouquinho. Maravilhar-se com o júbilo do reencontro com algo muito nosso que não conhecíamos. O reencontro com o familiar mais que familiar. Manter o coração aberto até o incômodo fazer cócegas. Encontrar a metade inteira.

Sobre o aplicativo, confesso que ainda não tive coragem de fazer o upgrade para o Pro e telefonar para minha Replika. Imagina, telefonar para sua própria sósia eletrônica? Bom, sempre é um ótimo dia para se treinar o inglês.

Garota com gato, de Lucian Freud (1947)

Imagine que uma mulher precisasse gozar para que qualquer fecundação acontecesse. Ou, já que o gozo está para lá de uma identificação restrita ao ato ejaculatório, imaginemos que essa mulher, para que pudesse gerar uma vida, tivesse que ser mais do que um ”vaso”, como muitas vezes seu gênero foi pensado, por séculos de misoginia religiosa, e não só. Suponhamos que ela precisasse se mexer e ser autora do ritmo que, num coito, digamos, heterossexual, conduzisse a transa a uma potencialidade fecundante. Que ela, a seu modo, ejaculasse, liberando qualquer substância vital sem a qual o vivo não existiria. Qual seria, então, o tamanho populacional do mundo? Pela trigésima metade? Você saberia dizer se é filho ou filha do gozo de sua mãe? 

Imagine então que, assim sendo, rasurando a vergonha imposta a Eva, reconhecêssemos que a maçã se come inteira, e fosse respeitada a autoria feminina de seu próprio gozo. Para além da mordida única, já culposa, da primeira mulher que, segundo a Bíblia, leva o homem (e Deus) a condená-la de antemão como veículo do pecado e, portanto, do mal, como poderia ter sido a relação vital entre corpo feminino, prazer e continuidade da espécie se essas coisas dependessem umas das outras? Se o corpo da mulher só concebesse através do prazer (e podemos incluir, nessa palavra, toda gama de autonomia e singularidade de um corpo, para além do binarismo de gênero que não faz mais qualquer sentido, nem reprodutivo), talvez o rosto da bruxa, a que olho agora e já há tempo, não existisse. Mas ele existe. 

Este rosto faria sentido, pergunto, se testemunhasse uma história que honrasse (e precisasse de) seu autoconhecimento? Como formular a equação sobre o lugar e a subjetividade do gênero masculino se, como estamos supondo, este soubesse que a espécie humana depende do prazer da mulher? Que homem seria esse? Antes de Eva, o rosto da bruxa já se desenhava, por exemplo, em Medeia, posta na fogueira pagã por ameaçar o imaginário solar heroico e viril de meninos gregos que cultuavam o poder de impunidade de seu sexo. No rosto da bruxa sobreposto ao de Medeia, é possível ler a violência pré-cristã – e, nesse exemplo, a fundura misógina do mundo há muitas e muitas culturas – já usada como instrumento colonizador: Medeia era, nas variáveis próprias do mito, uma estrangeira, com poder políticos. E não só: feiticeira, era neta do Sol, de uma linhagem cuja legitimação era inquestionável em seu território cultural. Seu mito encena uma antiga disputa que marca a passagem das culturas das chamadas “grandes mães” para aquelas cujo elemento dominante é o herói, masculino e civilizador. Sabemos bem quais as consequências desse trajeto colonial: a escassez e o cansaço não só de mulheres, mas de todas as pessoas estranhas ao estereótipo do macho inconsequente, incluindo aí a própria terra enquanto recurso esgotável. 

As três grandes religiões monoteístas se organizaram a partir dessa orientação moral, e as três reproduziram suas leis tendo como chão a opressão, em graus diversos, do corpo da mulher. Na contaminação cristã, o corpo da mulher (e a mulher como um todo, visto que uma corporeidade negativa a configura) carrega a senha do diabo, do mal. Neste sentido, paira sobre o rosto de toda mulher o rosto da bruxa, quer ela queira ou não. Há no rosto da bruxa um tino erradio. Um dom de dolo, um poder que escapa ao retrato – dizem. Se ela é bonita, conforme foi pregado na testa de cada cultura o senso estético da beleza, ela não pode ser muito bonita, ou excessivamente senhora do considerar-se bela. A mulher, portanto, vejam só, tinha/tem duas impossibilidades: não pode ser bonita e não pode ser feia. Entre ambos, espera-se que se comporte como um bom e agradável vaso que, em sua neutralidade, não tenha prazer, apenas cumpra sua utilidade (instinto, dizem, naturalizando-a) doméstico-reprodutiva. 

Em partes da cultura moderna europeia, a iconografia da bruxa evidencia-se: ela consegue congregar em seu imaginário os restos eróticos da mulher sob a tutela de Vênus/Afrodite – cuja filha cristã e decadente, Eva, será responsável por conduzir o casal heteronormativo, recém-nascido, à expulsão do paraíso – e a figura residual e sem lugar da mulher que sobrevive à sua idade fértil, vulgo a velha, aquela sem serventia, a não ser ao cumprimento de papeis de uma invisibilidade alargada à invisibilidade exigida da mulher, parte e posse da visibilidade (poder) de algum homem. Entenda-se: da mulher, é-lhe exigida a beleza, mas uma beleza que sinalize seu esforço em obedecer e servir, uma espécie de carência, melancolia, roubo da potência, enfim, uma beleza da qual ela seja objeto e não sujeito.

Se à mulher é exigida a máscara de uma beleza calma, a beleza do bem (o belo de obedecer), um olhar submisso e amoroso das Madonas, das virgens, ou a graça convidativa de uma Afrodite Urânia, versão idealizada e abstrata de uma vênus incorpórea, a beleza do rosto da bruxa é necessariamente feia. Nela reside um proliferado ninho de ratos e animais venenosos, crianças mortas, excrementos, sangue menstrual, embriaguez, desejo. Sua beleza, desobediente (a beleza de sua desobediência) – dizem os doutos –, é a arma mais sutil do demônio. E quantos homens não a assassinaram, em legítima defesa? No Brasil pandêmico, a cada 6 horas e meia, um homem se vê autorizado a defender-se matando uma mulher. Pesquise sua ancestralidade, assentada sobre o silêncio dos bons tons burgueses. Quantas vezes o rosto da bruxa foi rasurado, derretido, adulterado, com a cumplicidade do código “família” – você saberia dizer? 

Olho bem no meio deste rosto de mulher. Acho bom que ele exista. É um rosto que mostra os dentes. Na história da pintura, são retratados mostrando os dentes aqueles taxados como anormais, os loucos, os pecadores. De quem é este rosto cuja boca aberta, rindo, devora, goza, ou – por que não? – fala? O rosto da bruxa. Que bom que ele existe! A cultura medieval oficial, a da Igreja e dos eruditos, diz-nos Bakhtin, era chamada de agelastoi, ou seja, composta por gente que nunca ria ou odiava o riso. Gesto profano por excelência, o riso foi entendido como parte do diabo. Se a máscara da mulher foi talhada sob o signo do silencio, o rosto da bruxa inteiro fala, grita, vocifera seu desejo e gargalha. Sabemos, com inúmeras pesquisas historiográficas, entre elas a precursora de Margaret Murray (The Witch-Cult in Western Europe, 1921) ou, mais recentemente, a do fantástico Carlo Ginzburg (Ecstasies: Deciphering the Witches’ Sabbath, 1991), que a “confecção” da figura da bruxa e de seus encontros noturnos – os detalhes do sabá – tem como origem a expiação de cultos agrários de fertilidade, de culturas ainda vinculadas a religiosidades pagãs. A mulher, portanto, que ousasse saber sobre seu corpo – sexualidade e fertilidade desobedientes – era aquela cujo riso demoníaco selaria e nomearia o rosto, de bruxa. Imagem que começa a circular, com maior vigor, no contexto mesmo da institucionalização de sua caça, a caça às bruxas.  

Contrariando a “erótica da imagem” que, no caso da bruxa, funciona às avessas – atraindo olhares para aquilo que se deve repelir, violar, condenar e matar –, olho hoje mais do que ontem, e concentrada, o rosto da bruxa. Aprendo com ele as rugas do riso, que ninguém tem o direito de me roubar, bem como o direito de fazer o que bem entender com qualquer capacidade reprodutiva de meu corpo, que não existe para cumprir qualquer instinto materno, qualquer zelo narcísico projetado sobre ele. No rosto da bruxa, finalmente, não vejo um vaso. Vejo uma goela afiada e escuto sua voz própria, pela qual ela já morreu e ainda morre. É este o rosto que chamo ao meu rosto quando escrevo. É com ele que testemunho a violência, que recuso a perda da memória. Ele, de boca aberta, sujeito inegociável de minha fúria, de meu ritmo e de meu gozo. Eles existem.  

La Belle Ferronière, de Leonardo Da Vinci (1490)

Jean-Luc Godard, a um só tempo eloquente e lacônico, sentencia: “O filme começa com D. W. Griffith e termina com Abbas Kiarostami”. A filmografia de Griffith é marcada pela grandiloquência na mise-en-scène e pela opulência dramática, tendo papel central na consolidação de uma forma (e uma fórmula) de fazer cinema. Griffith pariu o longa-metragem ficcional vendendo a mentira maquiada de verdade. 

A tentativa de imbuir a ficção de realismo está no cerne do modo de representação do cinema dominante. Vão nesse sentido a instituição de um método quase militar de filmagem, que inclui uma montagem que tenta apagar a existência da câmera e o plano aberto de contextualização, entre outros. No entanto, o espectador começa a escutar o grunhir da máquina, pois o realismo ostentado pelo filme de ficção tradicional é sufocado por sua própria megalomania. O cinema cada vez menos como fresta para o real e mais como usina de sonhos. 

Se na declaração-manifesto de Godard Griffith é o demiurgo, quem é Abbas Kiarostami? Por que é nele que o filme chega ao seu fim? O influente cineasta iraniano, filho simbólico do neorrealismo de Rossellini e companhia, faleceu em 2016 após ter revelado, em quilômetros de película – são no total 25 filmes, entre curtas e longas –, um mundo antes dele invisível. Ou quase invisível, pois o que lhe interessava não era o recheio, mas as migalhas de vida esquecidas na borda do prato. Nadando contra a corrente, Kiarostami era essencialmente antidramático e acreditava que tudo o que vale cabe nas miudezas.

Close-Up (1990), obra-prima do cineasta, é a reconstituição da história real de Hossain Sabzian, um homem humilde acusado de ter personificado o diretor Mohsen Makhmalbaf com intenções ardilosas. Por trás da sinopse aparentemente simples, o filme faz emergirem discussões complexas sobre identidade, verdade e performance. Sobre esses dois últimos temas, é dito com frequência que o cineasta iraniano borra a linha entre documentário e ficção. Mas a realidade é que essa linha já nasceu vaporosa, como a cauda esfumada de um avião. Kiarostami vai além, pois enquanto a maioria dos filmes ficcionais esconde seus artifícios, ele deliberadamente os revela.

Se opondo à grandiloquência narrativa do cinema dominante, o diretor iraniano aposta em roteiros e dispositivos de filmagem simples para propor, acima de tudo, um mergulho na subjetividade humana. Um exemplo metafórico aparece em Cópia Fiel (2010), onde a paisagem da Toscana é introduzida como um reflexo deslizando sobre o para-brisa do carro. Provavelmente, um cineasta griffithiano teria optado por começar o filme com planos abertos da paisagem, em uma tentativa de legitimar a veracidade da intriga ao ancorá-la em uma geografia real. Kiarostami propositalmente empurra essa geografia para as bordas da narrativa, pois o diretor de Cópia Fiel sabe que seu filme não precisa ter como pano de fundo um espaço do mundo real para resvalar no real, visto que a potência de uma história não está no “isso existe”, mas no “isso poderia existir”. A arte brota nos mil caminhos que se bifurcam e floreia no imaginário. 

A geografia que interessa a Kiarostami é a do rosto humano, motivo pelo qual ele insiste em um dispositivo minimalista que prioriza planos longos e fechados, abrindo um palco para os personagens se revelarem sem amarras ou truques de direção. Essa importância dada à corporeidade e à coesão espaço-temporal da realidade vem aliada ao mote da aparência como camada metafísica do mundo, ou seja, à relação entre superfície e fundo. 

Essa dialética original-cópia é o eixo em torno do qual Cópia Fiel se organiza. O protagonista masculino, William Shimell, explicita o leitmotiv do filme ao celebrar o valor da cópia, tanto na arte quanto na vida: “Esqueça o original, compre uma boa cópia”. O que é a imagem cinematográfica senão uma reprodução mais ou menos aderente ao real? O que não significa que ela seja completamente falsa, pois, como o próprio William declara mais tarde, devemos passar pela cópia para chegar ao original. Mas essa busca, paradoxalmente, deve ser consciente de que a essência está costurada na aparência, como gêmeas siamesas.  

Ao assumir que um filme é uma cópia, Kiarostami avisa que estamos assistindo a uma reprodução deturpada da realidade, como a paisagem da Toscana escorregando no para-brisa. Em suma, uma ficção. O famoso olhar-câmera – normalmente interditado por evocar a existência da câmera e, consequentemente, ejetar o espectador do mundo ficcional – multiplica-se ao longo de Cópia Fiel. Em um plano icônico, a protagonista do filme, interpretada por Juliette Binoche, é filmada frontalmente enquanto (se) encara (n)o espelho. Quase como se estivesse ciente de ser objeto do nosso olhar, ela cobre o próprio rosto de batom e máscara. Assim, a câmera se transforma numa espécie de espelho translúcido, rasgando o véu que separa personagem e público. 

Essa questão encontra seu paroxismo em Close-Up, onde o protagonista se duplica, tornando-se ao mesmo tempo Sabzian-indivíduo e Sabzian-personagem (de Kiarostami ou dele mesmo?), numa reconstituição do fato que testemunha o teor performático do real. O espectador é quase abandonado num movimento vertiginoso que alterna evento e engodo, pois ele sabe que está vendo uma ficção (Close-up de Kiarostami) baseada num fato (história real de Sabzian) que, por sua vez, é baseado numa ficção (Sabzian finge ser Makhmalbaf) que é baseada num fato (Makhmalbaf é um importante cineasta iraniano), o qual também é baseado numa ficção (Makhmalbaf cria histórias ficcionais) baseada num fato (Makhmalbaf transforma a realidade em ficção). Como dois espelhos face a face, realidade e ficção se encaram e se formam mutuamente uma nas entranhas da outra. 

Assim, Close-Up nos questiona: há essência na aparência? Há algo de verdadeiro na mentira? De original na cópia? De real na máscara? Kiarostami parece responder que sim, mas não se atreve a traçar um caminho até essa tal verdade, pois, etérea, ela sempre escorrega por entre os dedos. 

Apesar da ambição dessa busca, o cinema de Kiarostami não é pretensioso. Sua grandeza está, ao contrário, em filmar as tais migalhas do real, e talvez por isso ele coloque a câmera tão próxima dos seus personagens, buscando a verdade em cada sulco da face. O close é desdramatizado, deixando de ser uma hipérbole narrativa para se tornar um mergulho no abismo do rosto humano. 

A cena do julgamento é um símbolo disso, com uma montagem que alterna os planos abertos da corte com outros fechados no rosto do réu. De um lado está a verdade da Justiça, que simplifica a massa complexa do real ao impor uma sentença; do outro lado está uma outra verdade, mais profunda e brumosa, que Kiarostami procura nas expressões rabiscadas no rosto de Sabzian. Nas palavras do próprio diretor, numa entrevista de 2004: “Na realidade, era um modo de afirmar que naquela sala existiam dois dispositivos: o dispositivo da Lei, que mostra o tribunal e descreve o processo em termos jurídicos; e o dispositivo da arte, que se aproxima do ser humano para colocá-lo em primeiro plano, para vê-lo em profundidade, compreender-lhe as motivações, adivinhar seu sofrimento”1. Close-Up parece duvidar de quase tudo: do juiz, da família burguesa, do jornalista, do policial, da justiça e mesmo da verborragia do réu. Se alguma verdade poderá ser tocada, será na leitura atenta do rosto abissal de Sabzian.

Cortázar nos inspira: “As máscaras… nós temos sempre a tendência de pensar nos rostos que elas escondem; na realidade, é a máscara que conta, que seja essa e não uma outra. Diga-me qual máscara você coloca e eu lhe direi que rosto você tem”. Para Kiarostami, cada rosto é ao mesmo tempo máscara e abismo. E o abismo, lembrou Nietzsche, se encarado por muito tempo, acaba nos encarando de volta. Talvez seja essa troca de olhares que nos propõe o cinema de Abbas Kiarostami. 

Nota:
1 Citação entrevista Kiarostami (2004): Kiarostami, Abbas. Duas ou três coisas que sei de mim. In: Kiarostami, Abbas; Ishaghpour, Youssef. (Orgs.). Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 231.


Atlantique Noir (Autorretrato), de Dalila Dalléas Bouzar (2018)

I

Era inverno em Lisboa, alguma semana de dezembro. Colhi na biblioteca, por apreço ao nome, um livro de Jean-Luc Nancy. Já nas primeiras páginas, isso: 

À escuta: ao mesmo tempo um título, um endereçamento e uma dedicatória.

Achei belíssimo o fato de uma crase dar tantos sentidos à coisa. Segui lendo. 

Morava com minha namorada num apartamento provisório em Alcântara, perto de uma fábrica de bolos que amávamos. De todas as moradas que tivemos, era a mais quentinha. Três aquecedores, espalhados pelo apartamento, tornavam o casulo perfeito. Saíamos muito pouco. Dentro do casulo, como se não bastasse, havia um casulo ainda mais casulo. O quarto ficava dentro, bem dentro. Em um canto protegido por paredes, sem janelas. Era o ponto mais escuro da casa, o canto do sono. 

No Brasil, temos o costume de desejar que a luz entre, por toda parte. Minha bisavó dizia que onde há luz, não há doença. Acordar virou sinônimo de deixar o sol entrar, ou de buscá-lo atrás das cortinas. 

Mas lá não. A cama escurecida convidava o corpo à hibernação. E foi enfiada nessa cama que li À escuta. Era uma caverna de colchas pesadas e cheiro de flor úmida. O abajur fazia a vez do sol e encaminhava meus olhos pelas rotas do livro. O abajur emitia, além da luz, um ruído constante e sutil. Acreditei ser o som da lâmpada acesa, que gemia o esforço de trabalhar noite e dia. 

Para contrariar os hábitos, era ao escurecer que os bolos saíam do forno. Bolos parecem tão diurnos, não é? Mas lá não. A rotina ficou revirada e a noite cresceu. A inversão do tempo soava, decidi escutar. 

II

A primeira coisa que entendi com Nancy foi que escutar pode ser ouvir e também entender. A escuta carrega essa ambiguidade, é uma encruzilhada do sentir com o sentido. Um fenômeno da compreensão, recurso filosófico generoso mas pouco “visto”. Na caverna de Platão há mais que as sombras dos objetos que passeiam no exterior: há também o eco das vozes daqueles que os conduzem, detalhe de que se esquece com frequência, tão rápido é seu abandono pelo próprio Platão, em benefício exclusivo do esquema visual e luminoso. Em uma síntese bruta: sair da caverna para encontrar a “verdadeira luz”. Como se a nitidez visual fosse a salvação filosófica. Mas a nitidez auditiva não parece tão relevante. Em som, o que equivale à luz? 

Qual seria a reverberação do mito se os esquemas acústicos fossem mais penetrantes? A escuta dá, além da percepção sonora, o senso de orientação. O ouvido é um órgão da audição e do equilíbrio, ele nos situa. O mau uso pode ser desastroso (o desastre é uma palavra que não está no livro mas que considerei aproximar. Gosto do desastre por sua etimologia: é a falta de astro, é perder a guiança). A escuta dá relevo ao mundo, permitindo que o corpo se oriente, titubeie ou tombe. E o som não possui face oculta, ele é todo adiante detrás e fora dentro.

O som não é uma aparição da matéria; é uma vibração que acontece no espaço. Quando chega aos ouvidos, também ressoa pelo corpo, entra e afeta. E sua natureza ressonante cria uma presença complexa, carregada de sonâncias rebatidas, multiplicidades, ecos, dobras, aberturas e expansões. 

O sentir é sempre um ressentir, ou seja, um se-sentir-sentir. Quando falamos, ouvimos. Quando soamos, ressoamos dentro e fora, numa simultaneidade radical. O corpo, cavernoso que é, vibra o som. Os ossos vibram o som. A pele vibra o som. As células vibram o som. A água, que nos preenche, também. Estar à escuta será sempre, portanto, estar em ou tendido para um acesso a si. 

A escuta nos retrata, revela nossa trepidação, nossa condição maleável e fronteiriça. O corpo possui contrastes espaciais, dentro e fora, dobras e redobras, sentidos e ressentimentos. E, se cria acessos internos, acessa também o todo. Estar à escuta é sempre estar na borda do sentido, como se o som não fosse de fato nada mais que essa borda, essa beira ou essa margem. 

Dar ouvidos é dar-se ao mundo, colher o espaço. Se-sentir-sentir na borda, na abertura, na troca. Ter os contornos como margens de contato, num devir-poroso. A escuta como ressonância, relação: participação, partilha ou contágio.

Assim, esta pele esticada sobre a sua própria caverna sonora, este ventre que se escuta e que se extravia em si mesmo ao escutar o mundo e ao perder-se nele em todos os sentidos, não são uma «figura» para o timbre ritmado, mas a sua própria aparência, são o meu corpo batido pelo seu sentido de corpo, aquilo a que antigamente se chamava a sua alma.

III

Escrevo “ouvido” no navegador e o segundo link disponível diz: 5 formas simples para desentupir o ouvido. No caso, o artigo se refere ao entupimento causado por diferença de pressão – efeito comum após voos de avião, mergulhos profundos e subidas íngremes.

Isso de mudarmos de altura nos entope, portanto. As soluções envolvem bocejar, mascar chicletes, fazer compressas, beber água e, por fim, controlar a passagem de ar tampando as narinas. 

Não sei se o chão tem mudado de altitude, se o aquecimento global aumenta a pressão dos ventos, se os mergulhos fora d’água são igualmente densos. Mas há, no agora, uma dificuldade generalizada de nos ouvirmos. Há muito o que ser ouvido, há muito pouco do ouvido nisso. 

Podcasts, áudios acelerados de WhatsApp, hits repetitivos do TikTok, incontáveis calls, alarme para acordar, alarme para achar o carro, alarme para vestir o cinto, alarme para fechar a porta da geladeira, alarme para abrir a porta do micro-ondas, fones de ouvido, fones de ouvido sem fio, fones de ouvido com cancelamento de ruídos. 

Estamos ouvindo mais e, ao mesmo tempo, desaprendendo. Estamos perdendo a orientação. Bocejar, mascar chicletes, sentir o desastre. 

IV

Um ruído desastrado. Um ruído presente. Um ruído solto no mundo. Um ruído do atrito. Um ruído rarefeito. Um ruído que não morre. Um ruído sem sentido. Um ruído captável. Um ruído interferido. Um barulho quente. Uma voz. Um eco líquido. Um som retido. Um gemido. Um estrondo luminoso. Um canto. Uma toada larga. Um rumor gasto. Um zumbido. Um suspiro coletivo. Um bramido ferido. Um berro. Um trovão sozinho. Um ruído que a matéria engole. Um ruído dentro do rosto. Um ruído vivo. 

V

O rosto é uma passagem. Está em vias de ser enquanto é. Feito falésia em costa ventosa, abisma o acúmulo. Também firma a latência de sua erosão. 

Ser, na borda, o que muda. Ser, por borda, o que toca. Oposto de intacto, o rosto. Palavra que inexiste (mas as expressões, por definição, não cansam de nascer).

O rosto expressa ritmos. Ele não firma o tempo, mas é esculpido por ele. Parte da caverna, o rosto. Os ouvidos recebem. As membranas ressoam. Os poros ecoam. Dentro é tão subaquático. A percussão, múltipla e imprevisível, soa marítima. Avisto a falésia, outra vez.

Rosto: mais do que costa, arquipélago. Ilhas a raiar e sumir, tão insaciáveis que submergem. Também transborda, como a mão, o que mimetiza. Foz da simbiose humana, revela fusões e projeções. E as libertam.

Eu me aproximo mais. Encaro seu rosto de frente, este que lê. Este que escuta. Escuta? 

Você fareja meu fôlego, imagina meu timbre. Pergunto: 

Há, portanto, rosto silencioso?

Com as bocas fechadas, a respiração travada e os olhos nos olhos, viramos marulho. 

VI

O rosto está entre os ouvidos. Ele dá a ver o que se escuta.