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Repaisagem

por Guilherme Wisnik

Temporalidade invasiva

Poucas cidades são tão opacas à experiência cotidiana dos seus habitantes quanto São Paulo. Pois no curto tempo de apenas um século a cidade deixou de ser uma vila insignificante – situada no planalto acima do porto de Santos – para se tornar a grande metrópole do hemisfério sul. E durante esse processo, praticamente se reconstruiu inúmeras vezes1, passando de uma população de aproximadamente 200 mil habitantes, em 1900, para uma aglomeração informe de 10 milhões, cem anos depois. Tamanha opacidade na experiência diária espelha uma profunda aversão a qualquer consciência histórica, o que faz de São Paulo a permanente atualização de uma existência opulenta mas precária, construída pelo impulso bruto do mercado, e desprovida de qualquer dimensão hedonista ou narcisista, em oposição clássica, nesse caso, ao Rio de Janeiro.

Salvo engano, a primeira percepção clara dessa condição de simultânea precariedade e opulência como uma essência paulistana está registrada no livro Tristes trópicos, de Claude Lévi-Strauss. Ali, o antropólogo francês observa, a propósito de sua impressão de São Paulo, que as cidades na América tendem a passar da barbárie à decadência sem conhecer a civilização – isto é, estão ao mesmo tempo em construção e em ruína. Assim, se para as cidades europeias a passagem dos séculos constitui uma promoção, anota Lévi-Strauss, para as americanas a passagem dos anos é uma decadência, pois “não são apenas construídas recentemente; são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal.”2

Por que é que essas considerações têm relevância em relação ao trabalho fotográfico Repaisagem, de Marcelo Zocchio? Exatamente porque Repaisagem se alimenta dessa estranha condição presente na experiência da cidade. São Paulo não cultiva a memória nem a autoestima, e, no entanto, quando vemos fotos da cidade no final do século XIX e nas três ou quatro primeiras décadas do século XX – não tanto tempo atrás, portanto –, nos surpreendemos com a beleza e a civilidade do lugar, que parece uma miragem paradisíaca impossível de se escavar por detrás do asfalto das ruas e do concreto dos prédios atuais. Assim, ao vermos imagens antigas de São Paulo, sentimos, à primeira vista, não as pegadas de um passado latente e ainda familiar, mas a presença estrangeira de algo alheio, como uma aparição daquilo que Freud chama de sinistro. Uma das virtudes do trabalho de Zocchio, me parece, reside na capacidade de tocar nesse ponto sensível, como que a desrecalcar um tabu.

Situada na cabeceira de uma colina cercada por vales lamacentos, a aldeia jesuítica original de Piratininga ocupava um lugar estratégico na conquista de territórios interiores, através do rio Tietê, mas que era impróprio para um assentamento urbano. Porém, esse não é um pecado de origem que chegue a explicar os males da cidade de hoje. São Paulo fez, ao longo do tempo, continuadas opções no sentido de promover o seu desastre. Exemplos disso são a ênfase no modelo rodoviarista (do automóvel individual) e a adoção da franca especulação imobiliária como forma de crescimento, prática que periferiza e degrada o seu tecido urbano, e produz a dita “cidade ilegal”, induzindo ou obrigando populações removidas de outras áreas da cidade a morar em regiões afastadas, proibidas ou de risco, como a de mananciais. Nesse quadro, títulos como os de primeira cidade do mundo em frota de helicópteros e carros blindados não são exatamente honrosos. São símbolos de um violento apartheid social, que é urbano.

Por outro lado, o bruto laissez-faire do mercado deu à São Paulo uma polivalência que hoje é vista por muita gente como vital, por oposição ao congelamento das cidades europeias em formas de identidade herdadas historicamente. Daí o entusiasmo de muitos estrangeiros que chegam à São Paulo e veem na sua falta de regulação urbanística – alturas não uniformes dos edifícios, tratamentos estéticos variados – um sinal de liberdade. O fato é que a cidade, cada vez mais abundante em serviços, foi impulsionada inicialmente pela associação entre o café e a indústria, e formada por uma imigração (nacional e estrangeira) particularmente variada e rica. É constituída, desse modo, pelas pressões democratizantes inerentes ao processo de metropolização, e, portanto, por um cosmopolitismo que se opõe às formas paroquiais e segregadas de convívio.

Com efeito, a possível beleza contemporânea de São Paulo não resulta da sua melhoria real nos dias de hoje, mas de uma mudança na forma de se julgar a vitalidade urbana. Em um mundo de cidades globais3 e genéricas4, ou de “não-lugares”5, a inexpressividade anti-identitária do tecido urbano passou a ser vista como índice de saúde, como no caso paradigmático de Tóquio, mais do que de doença. Daí o interesse do curto-circuito criado pelas “repaisagens” de Marcelo Zocchio, que nos oferecem uma série de elementos comparativos que se chocam como índices de diferença temporal. São eles os próprios edifícios, evidentemente, mas também carros, motos, ônibus, bondes e charretes, além das pessoas e suas roupas, incluindo bolsas, chapéus, guarda-chuvas e outros elementos de urbanidade, tais como postes, árvores, telefones públicos, caçambas de lixo, jardins e os próprios contornos de rios e encostas. Contudo, mais do que um simples choque entre elementos novos e antigos, em si discrepantes, o que as montagens de Zocchio realmente revelam é a presença invasiva de uma outra temporalidade em meio à São Paulo que conhecemos. Pois esses espaços vazios que de repente se abrem em meio à saturação da grande metrópole não são apenas respiros. São signos de uma vida mais lenta, que acorda do sono secular para impregnar-se na cidade atual. Acho que quem viu essas montagens fotográficas não voltará a passar por esses lugares com olhos tão anestesiados pela cotidianidade do presente.

1 Ver Benedito Lima de Toledo, São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Cosac Naify, 2004
2 Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 91.
3 Ver Saskia Sassen, The global city. New Jersey: Princeton University Press, 1991.
4 Ver Rem Koolhaas, “A cidade genérica”, Três textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010.
5 Ver Marc Augé, Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.

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Shakespeare e porcos após 1984, e o que esperar do futuro

por Bruno Pesca

Grandes escritores geralmente descrevem com criatividade e perfeição o presente, ou utilizam de metáforas e riquezas de detalhes para nos lembrar do passado. Há exceções, e George Orwell, por exemplo, é lembrado por saber, como poucos, “lembrar” o futuro. Hoje, com 1984 pra trás, fica fácil constatar a perfeição das descrições de sua obra. Nós, economistas, especialistas que somos em fazer previsões, não à toa gostamos de Orwell. Só que nós, assim como a maioria das pessoas, erramos boa parte de nossas previsões.

Mas o que aconteceria se todas as apostas necessariamente se tornassem realidade? Em primeiro lugar, não seriam mais “apostas”. Restaria aqui apostar se o futuro ganharia ou perderia importância em nosso presente. Muitos escritores foram convincentes em nos sugerir que a certeza sobre o futuro seria um desastre. Shakespeare foi um deles, através da impressionante Tragédia de Macbeth. Segundo escreveu, o general Macbeth era um dos mais importantes militares da Escócia, e, ao voltar de uma vitoriosa batalha, esbarrou no caminho com três bruxas, que lhe profetizaram: primeiro, receberia como prêmio um importante título de nobreza; depois, terras e um título maior; e, no fim, seria coroado rei.

Quando a primeira parte da profecia se concretiza, Macbeth torna-se convicto sobre o resto. A fábula mostra como essa situação pode levar alguém sensato às vias da loucura, e até dos assassinatos. Macbeth destruiu seu próprio destino, e muito mais. Mas, tão importante quanto o desastre que é a hipótese da certeza humana sobre o futuro, a peça mais curta e sangrenta de Shakespeare traz também uma excelente provocação sobre quão trágico pode ser sobrepormos o futuro ao presente. E sendo assim, nem importa se o futuro é certo ou incerto. Macbeth caiu em desgraça quando passou a acreditar que o futuro garantido redimiria seus erros presentes, e, obcecado, passou a mal perceber o presente passar.

Há o velho ditado que diz que sua vida é aquilo que acontece e você não vê, pois está preocupado demais em resolver sua vida. De líderes espirituais como o Dalai Lama a dezenas de ótimos escritores, muitos já trataram do tema. Exemplos aqui seriam desnecessários. Fato é que a noção que temos de tempo como um caminho para se chegar a algum lugar frequentemente coloca o presente em segundo plano, não obstante ser ele, segundo a etimologia da palavra, a única parte do tempo que está à mão, à disposição. Há também um provérbio que diz que o tempo é um charlatão que escamoteia o presente, fazendo esplender o futuro.

A questão é que o presente é certo e o futuro incerto. E qualquer gerente ou executivo racional que tem em sua carteira de clientes, planos ou problemas uma opção certa e outra incerta resolve primeiro a certa. Pela lógica pura, qualquer papo sobre viver mais para o presente do que para o futuro deveria ser considerado um pleonasmo. Só que nunca é, e nós, aventureiros profissionais, também sabemos bem disso. Frequentes são as vezes em que somos chamados de inconsequentes por vivermos intensamente o dia de hoje, o que supostamente seria um prejuízo garantido ao dia de amanhã. Pela ótica do aventureiro, no entanto, inconsequência bem mais radical está no extremo oposto. As pessoas mais inconsequentes, na verdade, são aquelas que optam por uma vida inteira num estilo que não gostam, em nome de uma recompensa futura.

O curioso é que esse modo de viver, que mais parece doutrina de religioso atrás de vaga no céu, é justamente aquele que, no jargão, chamamos de racional. Pergunte a um sujeito racional que ficou cedo pelo caminho – por exemplo, um que tenha tido um AVC aos quarenta anos de idade – se considera que sacrifícios como abdicar do maior sonho em nome da carreira estável foram tão sensatos assim.

Escamotear o presente já seria inconsequência o suficiente, não fosse o agravante de que muita gente faz isso sem sequer ter um plano para retirada do tal prêmio futuro. Muita gente diz que abdica de seus maiores sonhos, pois espera assim ser amparado lá na frente. Espera? Mas por quem? Deus? O Criador jamais aprovaria essa ideia. Portanto, não há sentido em esperar. Quando lemos na fábula infantil dos Três Porquinhos que é preciso nos precaver para o amanhã, aprendemos que o terceiro porquinho, o único que não foi devorado pelo lobo, pois erguera um lar seguro, não esperou coisa alguma, mas, sim, traçou um plano sabendo exatamente o que precisava, pra quando (o inverno) e por quê.

Trabalhar bastante não é o problema; o problema é não saber pelo quê. Não sabermos o que queremos, precisamos, ou para quando. Nesse caso, nunca será possível saber o que é demais, e em algum momento acaba-se perdendo a direção dos próprios interesses. Quem não trabalha a serviço do próprio interesse de vida acaba trabalhando a serviço do interesse de outra pessoa. E, nesse caso, adivinhe o que a outra pessoa planeja para seu tão sonhado futuro? Nada. É preciso ter cuidado com isso, da mesma maneira que aprendemos que é preciso saber que ninguém olhará por nosso futuro enquanto estivermos embriagados com o momento presente. Só que geralmente ouvimos menos sobre um dos riscos do que sobre o outro, e isso também é resultado do plano de outras pessoas pra gente.

O que nos resta fazer sobre o futuro é esperançar. Esperançar significa ir atrás, fazer acontecer, não esperar. Quando alguém diz que espera que algo aconteça, isso não é esperançar; é esperar mesmo. É como passar o presente numa inútil sala de espera.

A esperança, por outro lado, é nosso motor para navegarmos ao longo do tempo; é o que nos empurra. Não podemos viver sem ela. Só que, para qualquer navegação, independentemente das condições do motor, precisamos de um plano de rota, de uma missão presente. E, especialmente se for a única jornada de nossas vidas, precisamos curtir e aproveitar a viagem.

Precisamos também dar mais atenção a fábulas sobre o futuro do que a previsões de economistas. De Shakespeare aos Três Porquinhos, há aventuras narradas em todos os níveis, pois as grandes questões do homem são as mesmas para todos. E talvez não apenas do homem. Afinal, como conclui outra grande obra de George Orwell (A revolução dos bichos), já há muito tempo está difícil diferenciarmos homens de porcos.

#9ObsessãoCulturaLiteratura

Oversharing

por Bruno Hoera

Desenho de Sandra Cinto

O que a gente faz com essa vontade louca de querer compartilhar tudo, a todo instante? Não, não estou falando de uma vontade minha ou sua. Falo do amigo insistente segundo o qual você pode ajudá-lo a encontrar uma pessoa perdida na Ilha de Páscoa, ou daquela tia-avó que, se pudesse lhe dar um conselho, esse seria: use filtro solar. Sejamos atuais e contemporâneos: o compartilhamento no Facebook é o novo PPT.

A verdade é: ninguém parará de fumar porque postaram a foto de um pulmão intoxicado; ninguém sairá pelas ruas à procura do cachorro poodle que tem Alzheimer e que está perdido; e nunca (nunca!) criança alguma na África receberá uma prata porque a foto dela foi divulgada por toda a população online. É bem óbvio: a vontade não está necessariamente em ajudar, mas em ser visto como alguém altruísta.

Dia após dia, a todo instante, sua tia-avó precisa compartilhar sabedoria, seu vizinho tem de, em nome de Jesus, evangelizar o mundo com os salmos do novo testamento, e a turma da moda se sente obrigada a divulgar seu look nada-a-ver do dia, acompanhado pela maquiagem de palhaço.

Essa obsessão não está somente em fazer circular informação, mas em pertencer a um grupo de ditadores de atitude, seja o da moda, o dos crentes ou o das tias-avós sábias. Enquanto isso, no mundo ideal, os mais cultos e informados não dão opinião quando não se pede, a religião é só o amor e ninguém está muito preocupado com a roupa que você veste – já dizia Clarice Lispector naquele texto que não escreveu e que alguém wanna be cult compartilhou.

Todo mundo quer ajudar, mas será que as pessoas querem ser ajudadas? Alguém já pensou na possibilidade de o sujeito perdido não querer ser encontrado?

Para ser bem sincero, se cada um não jogasse papel no chão, já ajudaria muito. Compartilhe essa ideia!

#9ObsessãoCulturaLiteratura

Proteger as sensíveis mãos

por Tsuyoshi Murakami

Depois, despir-se das luvas brancas. Nota-se logo a experiência de 86 anos de vida. Habilidade e leveza. Os dedos que bailam e exibem a rica sensibilidade.

Precisão do corte no lugar certo, na hora certa. Antes, com movimentos da direita para a esquerda, foi tirando as escamas. Sinto, neste instante, como se tirasse minha própria escama… Liberdade? Lâmina que atravessa na diagonal, entre o final da cabeça, a nadadeira lateral e o corpo firme. A cabeça rola da tábua de madeira (manaita) ao buraco da pia. Sangue. Segurou o corpo. O orifício desejado voltado para os olhos; a lâmina afiada penetra-lhe cortando toda a barriga, mas sem ferir os órgãos internos. Com a própria lâmina, cortou toda a linha da aorta, junto soltando as tripas. Separou o fígado (kimo) e o esperma (shirako).

A lâmina penetra vigorosamente na carne. Rente à espinha, toca-lhe com a ponta da faca, a mesma com a qual, delicadamente, vai cortando os nervinhos. Repito o percurso do outro lado. Reservo a espinha rosada e a costelinha protetora dos órgãos.

Cabeça de ouro mereceu uma divisão. Delícia! Com a boca para cima, enfiou a lamina no lábio superior. Firme, deslizou por toda extensão da cabeça. Aberta, concluiu com um corte do lábio inferior até o final da base da boca. Reservou.

A arte do arroz para o sushi. Senti o brilho, a temperatura, o cheiro, o toque e o sabor. Fantástico é quando se juntam o nikiri shoyu (shoyu da casa), a netta (fatia do peixe) e o nama wasabi (raiz-forte fresca). Nossa! Isso só no Kinoshita!

No mercado do peixe em Tóquio (Tsukiji), Jiro, com sua brilhante personalidade e imensa credibilidade, tem a moral que faz com que os caras lhe reservem os melhores ingredientes. Para a pequena equipe que trabalha com ele, é só qualidade, qualidade, qualidade… Desde o carvão para aquecer as algas (nori), passando pelo ovo especial (tamago-yaki), pelo anago (enguias), pelo gari (gengibre)…

Colocou o noren (cortina japonesa). Significa que o local já está funcionando. Tudo listo! Serviu de entrada o shirako com ponzu (shoyu com o suco do yuzu), muito firme! Só comi assim em Hokkaido. Kimo batido na faca, comi a pele levemente cozida (neste caso, dois segundos na água fervendo; depois, em água com bastante gelo), só com sal e sudachi (parece uma bola de gude, verde e com um cheiro cítrico original).

Momento de sentir o poder do mestre Jiro, com seus produtos premium – o melhor de cada província do Japão. Sem palavras. Silêncio… Mergulhei na simplicidade e percebi o puro dentro de mim. Abri os olhos com um suimono (caldo transparente feito com as espinhas e a cabeça) na minha frente. Olho nos olhos do mestre Jiro, vejo minha imagem e sinto a sua na transparência do caldo, refletida no olho do Tai (pargo). Este é um peixe para datas especiais, para os japoneses.

Será que tenho a mesma obsessão? Que sempre tenhamos a natureza selvagem! Porque está sumindo do planeta!

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Portfólio: Sandra Cinto

por Jorge Emanuel Espinho

Sandra Cinto ilustra nossa capa e edição
com sua Filosofia da Linha.

A obsessão é a mais ambiciosa das entregas na relação, e a mais larga também das exigências. Uma exigência exclusiva de perfeição e de intensidade absolutas, uma procura doentia de entrega total e de dedicação, uma cobiça maior a anular todo o resto – tão sobreposta que se coloca a tudo, essa expandida relação. 

Como uma emoção excessiva e permanente, invasora e superlativa, esta ideia fixa e compulsiva – de direção constante, mas crescente – procura, sem nunca alcançar, a plenitude de uma compreensão; o dominador entendimento de um outro, a mais profunda penetração e conexão, o maior insight. É dominando através da ânsia de dominar – incontrolável, crescente, absurda – que esta emergência permanente se amplifica e contamina. Transformando assim uma visão/relação particular numa procura louca e incessante de mais, de maior, de melhor. Uma lenta corrida total, sem meta nem final.

Encontramos na obra de Sandra Cinto uma abordagem criativa e metódica, profunda e absoluta, com este altíssimo grau de entrega e exigência. Tanto no objeto tratado, claramente definido – o encontro das ondas do mar, o céu

estrelado e escuro, a selvagem natureza das águas, a tempestade contínua que sabe a metáfora clara de uma interioridade vulcânica –, quanto no processo de trabalho: os milhões de linhas que vão edificando lentamente aquelas vagas, aquela espuma, alimentando aquele encontro constante; e construindo um espaço, que é feito das pequenas partículas ínfimas do traço, que vai inventando e fazendo esse todo imenso. A escrupulosa dedicação minuciosa a um gigante que se ergue devagar… 

A linha é, nesta obra, o fio condutor por onde avança e circula esta sempre crescente relação/narração, mas também a materialização no espaço – que vai criando e compondo – do próprio tema que é o alvo dessa criação. A linha corporiza e veicula a relação entre a artista e o seu assunto, dando também corpo a esse objeto, e com ele decidindo e construindo o lugar onde acontece esta estreita e explosiva relação. Na linha pulsa e flui esta convivência em tom de permanente descoberta; da linha se faz o corpo crescente e vivo do tema; é a linha que define o alto território onde tudo se dá e acontece. Como se refere Sandra Cinto a propósito de um trabalho recente: “Para mim, cada pequeno ponto, pequena marca, pequena linha, é importante… Uma espécie de filosofia, pensar que cada pequeno detalhe, pequena ação, pode mudar tudo…” 

A escrupulosa dedicação minuciosa a um gigante que se ergue devagar…

É desta relação de intimidade fértil entre a artista e o traço que tudo vem, germinando nas horas de entrega solitária, erguendo-se no lento aprofundar de uma densa familiaridade. Olhamos aqui o oceano inventado saído de uma convivência funda que se levanta e expande, avançando sempre, saído e criado que está nessa interioridade relacional. 

Se por um lado o tema se mantém constante, a relação com ele vai-se gerando e desenvolvendo em movimento, noutros espaços, noutros momentos, noutros tempos. Esta zona de interseção mutável entre a artista e o seu interlocutor exclusivo caminha e cresce continuamente; num ritmo próprio e autônomo, independente das partes que o alimentam. Pode-se dizer que, aqui, o terceiro elemento – a relação, a obra, a arte – manifesta-se como uma conversa livre que se vai indefinindo à medida que acontece, que se cria, que se espraia. Parece haver sempre e ainda muito por percorrer, por surgir, por desenhar. Como numa obsessão livre – sempre solta e ambiciosa –, encontramos aqui, e manifestado até na alta escala de algumas obras, um corpo de trabalho quase anárquico na sua transbordante e insolúvel fertilidade coerente; na sua natureza selvagem, irresolúvel, explosiva.

Mas ao contrário de algumas outras relações também íntimas e intensas, mas bem mais fechadas, neste seu processo particular a artista integra ainda outros sujeitos na ação, para além dos espectadores. Colaboradores que com ela regularmente vão também dando corpo à tarefa, e até voluntários, como aconteceu num recente mural feito para o Museu de Arte de Seattle. Esta postura de abertura e partilha acentua não só o caráter universal da sua obra – que parece apontar para a interioridade e para o inconsciente simbolizados pelas águas, como os planos onde se joga e acontece o verdadeiro pulsar e questionar primordial da vida

– como revela uma generosa oportunidade que nos é oferecida de participar numa relação que importa a todos entender, sentir, trabalhar. Fazer nossa também.

“Pôr o espectador dentro da água…” Nas palavras da artista.

Ao entrar na ação aparentemente estéril, mecânica e repetitiva que a linha impõe, somos convidados a entender, também criando, esta filosofia do pormenor; numa imitação que vai reproduzindo lentamente a enorme interioridade abstrata de que trata toda esta exteriorização minuciosa. 

Parece ser de fato da interseção obsessiva e incontornável do homem com seu mundo interior – seu inconsciente profundo, seu lado mais eruptivo e imprevisível, mas condicionante e estrutural, o espaço do não orgânico – que trata este corpo de trabalho inteiro. A própria água parece materializar essa obsessão circular – sem limite ou fronteira – que surge em obras que querem continuar ao infinito; discorrendo sobre a urgência do olhar ao âmago ardente do que somos; ao pulsante inconsciente sobre o qual sempre agimos, pensamos, decidimos. Se por um lado são notórias a magnitude imensa e o poder incontrolável que o sentimento involuntário sobre nós exerce; igualmente se sublinha a obrigatoriedade da nossa relação com ele; clamando-se pela urgência permanente dessa descoberta em relação.     

Longe da fechada rigidez cristalizada de outras fixações obsessivas, o trabalho de Sandra Cinto abre-se para nós na sua livre e solta coerência – partilhando-se, envolvendo-nos –, tratando conosco de avançar na narrativa ampla que vai fazendo de uma convivência íntima e única, mas universal e total. Discorrendo e alargando-se sempre, esta obra vai dando forma à nossa relação com o inalcançável e invisível inconsciente aquático, que mora altivo e solitário na natureza mais profunda do homem.   

#9ObsessãoCulturaLiteratura

Utopia e pão

por Léo Coutinho

Desenho de Sandra Cinto

A obsessão tem uma versão benigna chamada utopia. Cada um tem a sua, inclusive quando não tem nenhuma. A não utopia já é uma busca infinita. A não utopia é a perfeição, e esta, só no Paraíso, aquele que o Homem recusou. Dom Helder Câmara disse que “a utopia partilhada é a mola da história”, naquela linha do “sonho que se sonha junto é realidade”. É basicamente isso. A existência é a nossa realidade, que vamos temperando com o passar do tempo, das gerações, buscando viver melhor, ou simplesmente viver.

Um mundo melhor é o que todos queremos. O pepino é que cada um gosta de um jeito – para não falar daqueles que nem de pepino gostam. Pátria, religião, cultura e, em alguns – muitos – casos, futebol estão entre os livros de receita. Política é a mão do cozinheiro. E por “sal e pimenta a gosto” é que a guerra, a solidão, a peste, a miséria, a paz, o amor, a saúde e a riqueza acontecem.

Na vida, todos somos cozinheiros. Tem sempre alguém tomando as decisões na cozinha, é claro, mas todo mundo influencia o resultado do prato, inclusive aqueles que, por uma ou outra razão, não vão comer, até porque ninguém pode jantar satisfeito diante de um olhar faminto. Quem percebe e avisa que o pão está queimando pode desagradar o chefe, mas, além de comer bem, ainda será lembrado pela coragem e sabedoria. Aquele que nota o fogo alto demais e silencia vai comer queimado. São escolhas, e cada qual tem seu preço.

A primeira utopia é fazer o pão chegar a todos. Pode ser em porções diferentes, desde que não falte. Quando isso acontecer, as pessoas vão se acostumar e então, com a barriga cheia, a utopia será fazer um pão melhor, mais gostoso. É quando a turma pode se confundir e pensar que esse pão existe, transformando em utopia uma receita comum. Bobagem. Nossa utopia tem de ser pelo pão para todos, seja preto, branco, doce, salgado, denso, fofo, quente, frio, redondo, comprido, chato, alto, puro, recheado e até recusado.

O pão, como na utopia de Dom Helder, tem de ser partilhado. Só assim vira mola, bela viola, não enferruja, nem embolora. O pão individual é obsessão.

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TOC

por Leticia Lima

Coloco meu pijama, saindo direto do banho, e sinto a maciez do algodão na pele. Puxo meu edredon, experimentando o reconfortante aroma de lençóis recém-lavados. Suspiro, feliz, e mergulho no algodão egípcio de mil fios. Apago as luzes e fecho os olhos, pronta para abraçar uma renovadora noite de sono.

Mas algo me mantém acordada. Reviro-me, desconfortável. Finalmente, ao desistir, acendo as luzes. Aha! Ali está. Um canto da porta de meu armário está aberto, e consigo ver as vagas formas de camisas e jaquetas penduradas em seu obscuro interior. Levanto-me, devagar, e cuidadosamente fecho a porta, olhando ao meu redor para ver se existe alguma outra anomalia.

Nenhuma. Estou segura. Arrasto-me de volta à cama e mergulho sublimemente no sono.

Comecei a notar certos padrões repetitivos na minha vida há seis ou sete anos. Saía então de outro tipo de crise emocional, uma que me deixara confusa e desamparada. Com vinte e poucos anos, batalhava com sentimentos alternados de profunda depressão e exaltação. Finalmente, aos 24, fui diagnosticada com distúrbio bipolar do tipo II.

Receber o diagnóstico foi uma mistura de alívio e desespero. Alívio por encontrar um nome, um rótulo para aquilo que vivia. Desespero porque o resultado de minha pesquisa inicial sobre transtorno bipolar fora desolador. Altas taxas de suicídio, divórcio, vícios químicos, dificuldade em manter empregos e relacionamentos… De repente, senti o chão se abrir diante de meus pés e me vi desequilibrada, à beira do abismo, aterrorizada pelo medo de cair.

A relação com os membros de minha família era tensa, apesar de não terem culpa. Sentia-me como se não tivesse amigos; mal-amada e, mais importante, desmerecedora de amor. Por isso, afastei justamente o amor – de que eu tão desesperadamente precisava. No meio desse caos emocional, encontrei um médico maravilhoso que, com o auxílio de medicação prescrita e terapia cognitiva, começou a me ajudar no longo caminho de saída das trevas.

Minha vida estava em ruínas. Para todos os lados que olhasse, só via e encontrava o caos. Seria, portanto, estranho que tentasse, progressivamente, ordenar aqueles objetos sobre os quais tinha controle?

Comecei pela minha mesa de trabalho, onde não suportava ter coisa alguma. Somente o computador, o teclado, o mouse, a impressora e o telefone estavam autorizados ao privilégio de passar a noite ali. Nada de papéis, post-its, grampeadores, recibos, recados, canetas ou qualquer outro elemento que pudesse perturbar minha paz. Objeto nenhum poderia permanecer sobre aquela sagrada superfície.

Aos poucos, tal padrão se estendeu à vida pessoal. Minha prateleira de livros tinha de ser organizada simplesmente assim – não por ordem alfabética, por autor, por assunto, nem mesmo por tamanho. Nenhum critério que fizesse sentido fora de minha cabeça. A ordem tinha um significado particular – uma espécie de classificação cronológica de minha vida. Então, a Enciclopédia Ilustrada Britânica se encontrava ao lado do Clive Cussler e do Fernando Sabino, espremida entre um guia turístico do Quênia, e por aí vai.

Minhas bugigangas de viagem tinham de estar viradas a uma certa direção, e frequentemente me gabava, para mim mesma, de que estava ficando igual a Kathy Bates em Misery, de Stephen King – eu podia imediatamente saber se alguém estivera em meu apartamento pela posição milimetricamente alinhada de meus pertences. A primeira coisa que fazia ao chegar em casa era checar se tudo estava em seu devido lugar. Só então conseguia relaxar.

Com o tempo, esse comportamento impulsionado pela ansiedade foi perdendo força. Paulatinamente, o equilíbrio começou a se restabelecer em outras áreas de minha vida, e consegui me desapegar daquela rigidez com a qual controlava meu ambiente.

Para ilustrar, é importante entender as definições aqui cabidas: transtorno obsessivo-compulsivo é um distúrbio de ansiedade – a pessoa tem pensamentos indesejados, que levam à repetição de certas ações, geralmente de uma maneira altamente ritualizada. Trocando em miúdos, o TOC consiste em dois elementos fundamentais: obsessão e compulsão. Resumidamente, obsessões são pensamentos ou imagens que não vão embora; que permanecem. Uma obsessão é invasiva e normalmente entendida pela pessoa que a possui como irracional, algo que não se consegue interromper, parar ou ignorar. Obsessões podem ter diferentes níveis, desde os mais leves, com ocorrências apenas ocasionais, até aqueles de fato severos, ininterruptos, que podem e costumam impactar negativamente uma vida. Esses pensamentos reincidentes resultam, cedo ou tarde, em relacionamentos pessoais tensos e causam dificuldades no ambiente profissional.

Obsessões podem levar à compulsão – denominação geral dada à maneira como a mente se mobiliza para lidar com os pensamentos indesejados que a inundam. Da mesma forma que, no meu caso, sentindo-me mentalmente confinada a um ambiente instável e caótico, descobri conforto e alívio na ordenação minuciosa de meus pertences, muitas pessoas, por sua vez, encontram meios de amortecer o medo de doenças, por exemplo, lavando as mãos ritualmente.

Obsessões são pensamento recorrentes; compulsões, ações recorrentes. Usa-se a compulsão para espantar – fintar, domar, de certo modo adiar – a obsessão. O perigo, porém, é que as obsessões, quando não tratadas verdadeiramente, voltam, e forçam o sujeito a uma compulsão ainda mais extrema – o que constitui um ciclo negativo e permanente de obsessão-compulsão.

Confunde-se, geralmente, compulsão com alguma modalidade de vício. A diferença, contudo, é reluzente. Pessoas que sofrem de algum vício se sujeitam a situações extremas, não raro prejudiciais, motivadas pela promessa de prazer – gozo que costuma ser ilusório, e cada vez mais difícil de alcançar, o que leva os viciados a uma nova dosagem, progressivamente maior, seja de droga ou, em busca de carga adicional de adrenalina no sangue, de alguma atividade física.

Aqueles que lutam contra a compulsão não sentem prazer nas ações repetidas. Uma vez terminado o ritual, seja o de abrir e fechar portas ou o de lavar as mãos seguidamente, a pessoa é apenas tomada por um sentimento de alívio, de relaxamento da pressão decorrente do pensamento obsessivo. Nada a ver com o prazer, porém.

Isso pode ser um pouco confuso. De modo geral, viciados chegam a um ponto em que não conseguem mais usufruir do comportamento – do estado – viciado, momento a partir do qual apenas procurarão saciar a necessidade de consumo ou de envolvimento. Habitualmente, isso é potencializado pela abstinência, tanto mais se prolongada. Assim, apesar de parecer um comportamento obsessivo-compulsivo, devido ao fato de o elemento gerador de satisfação não estar mais presente, a motivação original do tal comportamento consistia em “sentir” prazer.

Outra diferença fundamental entre vício e compulsão está na consciência sobre a realidade. Aqueles com TOC geralmente têm noção de que sua obsessão não se baseia na realidade. Frustram-se e perturbam-se ante a própria necessidade de praticar comportamentos ilógicos, mas, de modo a aplacar a ansiedade, sentem-se obrigados a tal.

Por outro lado, os viciados costumam ser bastante desligados de qualquer consciência sobre a falta de sentido de suas ações. Justificam-nas com autoenganos e com razões autoilusórias – o sentimento de que estão somente “se divertindo”, por exemplo, ou a impressão de que outras preocupações não são tão relevantes. Essa negação da realidade tende a não ser confrontada até que alguma grande ocorrência, com consequências graves, force a emergência da percepção sobre o real – um acidente devido à ingestão de álcool, ou a perda de uma disputa de custódia.

O diagnóstico do TOC é complicado e delicado, pois o transtorno geralmente vem acompanhado de algum outro distúrbio psicológico, daí que possa se apresentar em uma grande variedade de comportamentos. As obsessões mais comuns incluem o medo de doenças e/ou de germes, a significância descabida dada a certos números, as excessivas precauções de segurança e uma preocupação torturante sobre se algo foi feito “da maneira certa”.

As mais frequentes compulsões que se contrapõem a essas obsessões são: lavar as mãos seguidamente, usar antissépticos, repetir certos movimentos um número específico de vezes, fechar e abrir portas, checar e rechecar o desligamento de aparelhos elétricos, acumular coisas e fugir de certos itens e/ou lugares (como faz o personagem de Jack Nicholson em Melhor impossível, que evita pisar nas rachaduras das calçadas).

Para mim, o leve TOC era um jeito de lidar com a obsessão de que a minha vida se despedaçava sem que eu tivesse qualquer controle. Isso estava claro como a luz do dia. Sabia por que fazia aquilo – algo que, de resto, nunca chegou a interferir no meu cotidiano. Para muitos, entretanto, o TOC é uma dificuldade e um caminho alienante.

A vida hoje muitas vezes é caótica e exigente. Existe a pressão para que sejamos bem-sucedidos em nossos trabalhos, em nossos relacionamentos e em nossas amizades. Nunca antes se viveu numa sociedade que demandasse tanta estabilidade e felicidade individual. Os estados de depressão, tristeza ou raiva são repudiados e tratados como doenças, e nossos mecanismos de luto são progressivamente eliminados, pois – somos sempre lembrados – o show tem de continuar.

Será muito espantoso, então, constatar a quantidade de pessoas que ora se encontram em plena luta contra os distúrbios de ansiedade, como o TOC? No mundo ocidental, somos obcecados pela felicidade, como se fosse um objetivo inalcançável, quase um destino, quando, na verdade, é um simples estado, aliás atingido justamente quando conseguimos nos desapegar de nossas melhores e maiores expectativas. Ser obcecado se tornou o padrão de várias maneiras, e a terminologia caiu no uso popular. Aplicamos – jogamos – a palavra como se não tivesse peso e, assim, potencializamos verdadeiras obsessões, alimentadas pela persistente ansiedade de estarmos sempre “à altura”, sempre encaixados às normas.

Só conseguiremos realmente entender o dano perverso que o verdadeiro comportamento obsessivo-compulsivo pode causar sobre as sociedades quando finalmente aprendermos a não ser obcecados pela nossa própria felicidade, expectativa social e definições de sucesso.

Ate lá, porém, deixe-me fazer mais uma “ronda” pelo quarto e verificar se todas as minhas portas estão fechadas.

#9ObsessãoAmarello Visita

Amarello Visita: Les ateliers d’art

Eram oito horas da manhã e tomávamos café ao lado do Studio Massaro, perto da Place Vendôme. Jet lag, tudo meio corrido e confuso. Um suco de laranja, café preto, teste de máquinas, verificação de baterias e de memórias, e pronto. Lá estávamos.

Quem fez as honras da casa foi uma canadense extremamente simpática e bem treinada, que nos deu uma aula de história da moda das últimas décadas, guiando-nos pelos corredores labirínticos dos Ateliers d’Art.

Os ateliers de alta-costura Lesage (bordado), Massaro (sapatos) Desrues (botões e joias para roupas), Guillet (flores de tecidos), Maison Michel (chapéus), Maison Lemarie (penas) e Robert Goossens (ouro e prata) são patrimônios sócio-culturais da França. Nasceram como pequenos negócios familiares, o mais antigo foi fundado em 1880, e abasteceram quase todas as maisons francesas.

Nos anos oitenta do século XX, com o mundo se direcionando para o lifestyle frenético em que vivemos, a alta-costura perdeu espaço para as roupas prêt-à-porter, e esses pequenos negócios familiares começaram a ver seus patrimônios ruírem com o avanço das grandes marcas. Não é necessário dizer que o prêt-à-porter nunca substituirá a haute couture. Não existe vanguarda sem tradição. A alta-costura é, pois, o resto de sonho que existe na moda, em que designers podem ser artistas e a palavra tendência surge unicamente para somar.

Os designers são grandes gênios, mas não teriam a mesma fama não fossem as costureiras, bordadeiras e sapateiras que transformam seus sonhos em realidade. O nível de habilidade dessas pessoas é tão raro e refinado que, de um rascunho quase abstrato de Lagerfeld, conseguem traduzir e criar verdadeiras pérolas em tecidos e couro.

Devido justamente a essa manufatura especializada, contudo, alguns desses ateliers estavam condenados a “pendurar seus chapéus”, até que, em 2002, a Chanel SA fundou a empresa PARAFFECTION (numa tradução livre, “por amor a”), cuja missão consiste em salvar o patrimônio da alta-costura francesa e preservar seu legado e know-how únicos.

No Studio Massaro, o de sapatos, o clima é de oficina. Um ambiente extremamente artesanal, de concentração absoluta, com foco em cada detalhe e sob uma dinâmica de trabalho invejável. Cada artesão está completamente imerso em sua função, como se aquele fazer fosse a única coisa que importasse. Os poucos minutos em que conseguimos roubar a atenção desses olhos atentos são rapidamente interrompidos, e os artistas voltam a dedicar visão e alma ao ofício.

Montanhas de moldes de sapatos dividem espaço com banquinhos de madeira e mesas – os únicos móveis necessários para que os dedicados profissionais realizem com maestria seu métier. Um pequeno rádio a pilha sustenta a trilha sonora das pequenas salas, tocando chansons francesas e pop americano.

O processo de criação de um sapato Chanel começa sempre com um rascunho de Karl Lagerfeld. A partir desses desenhos, os artesãos criam protótipos, que depois podem ou não ser aprovados, e que, durante esse processo, ficam transitando entre o Massaro e a Chanel.

As modificações de última hora são uma constante, com a qual os artesãos já estão acostumados. Um sapato flat que vira um salto alto, um bico redondo que tem de “quadrangular”, uma sandália de tiras que acaba tomando uma forma fechada…

Tamanho grau de colaboração entre as duas maisons seria impossível, não fosse o bom relacionamento e entendimento entre o responsável pelo atelier Massaro – Philippe Atienza – e Karl Lagerfeld, da Chanel. Um cuidado que permanece prioritário – herança forte de Mademoiselle Chanel – é o conforto dos sapatos. Isso sempre foi primordial para ela, e assim continua.

Conversamos com Philippe Atienza, uma figura simpática, que nos recebeu com entusiasmo, sempre demonstrando paixão por seu trabalho.

Qual é o seu background?
Tenho um background de artesão como base. Quando se é artesão, se é também um criativo. Comecei minha formação com a Compagnon, como muitas das pessoas que estão aqui no atelier. A Compagnon é uma instituição. Uma escola francesa que dá formação a pessoas de diferentes métiers, como carpinteiro, marceneiro, padeiro e sapateiro. Cumpri uma formação de oito anos e trabalhei com calçados masculinos por muito tempo antes de entrar para a Massaro, onde faço sapatos femininos. Durante essa formação, temos desejos de criação, vontade de fazer coisas, protótipos, sapatos, produtos bonitos. E certamente tentamos ser criativos, mas não se pode ser criativo no lugar dos criativos ou dos criadores. Na maioria das vezes, são as pessoas dos estúdios que nos dão uma direção. O Karl Lagerfeld principalmente.

Como você começou a trabalhar com sapatos?
Sempre fui um aluno particularmente estudioso e provavelmente conseguiria ter um diploma de algo sofisticado como a escola politécnica, ou algo do gênero. Mas decidi fazer outra coisa. A grade escolar convencional não me agradava muito, então decidi fazer algo não convencional e aprender um métier que, originalmente, tivesse alguma relação com o esporte que praticava: a equitação. Queria aprender a fazer botas de equitação, e isso provocou todo o resto.

Como você descreveria esse atelier?
É um espaço de vida extremamente confinada, onde estamos todos muito próximos uns dos outros. Um espaço bem pequeno. Talvez seja justamente isso que faz com que o atelier tenha um bom clima, porque, para se trabalhar em um ambiente como esse, é fundamental que a gente se entenda bem. Realmente temos uns aos outros, somos muito próximos, e esse é o primeiro elemento a ressaltar. Além disso, é um ambiente onde se sente claramente o clima de atelier de sapatos, onde as pessoas fazem frequentemente “experimentos” com as formas, a maneira de costurar etc. Um atelier de sapatos não é bem um atelier organizado, como um laboratório, em que se fazem as coisas com muita precisão, com muitas medidas específicas. Não, não… Somos um atelier que pode parecer um pouco bagunçado, muitas vezes, em termos de falta de organização, mas onde as pessoas sabem perfeitamente como encontrar todas as coisas; e é o métier que exige isso mesmo.

Como você descreve o seu método de criação ou de trabalho?
Tentamos ao máximo conservar um savoir-faire de sapateiro… Um tato com relação à história desse métier, pois isso representa algumas décadas ou até mais. E é justamente o fato de conservarmos esse savoir-faire ancestral que nos permite fazer belos sapatos. A propósito, não somos fechados ou resistentes a novas tecnologias ou a novos métodos de trabalho que nos possibilitem crescer. Porém, antes, o que nos permite produzir com essa qualidade é dominar o savoir-faire de sapateiro tradicional.

Você considera o seu métier uma arte?
De certa maneira, sim. Nesse métier a gente fala muito de artesãos. Nesse campo é um pouco difícil se definir… Para mim, o artista é uma pessoa efetivamente criativa, que produz peças únicas e tal. Então, é um pouco difícil nos considerar artistas. No entanto, as pessoas que trabalham nesse atelier têm paixão por aquilo que fazem, o que certamente nos autoriza a, em certa medida, considerá-las verdadeiros artistas.

Qual é o período de desenvolvimento de uma nova coleção?
Em janeiro, temos a primeira coleção de alta-costura do ano. Em seguida, podemos eventualmente nos associar à coleção prêt-à-porter, que acontece entre fevereiro e março. Depois, nos meses de maio e junho, temos a segunda coleção de alta-costura. E enfim, ao final do ano, nos meses de outubro e novembro, fazemos a coleção dos métiers d’art.

Qual é o seu material preferido para fazer sapatos?
O couro, claro.

Qual sua maior ambição como artista, e como ser humano?
Conseguir desenvolver e expandir as atividades da Maison Massaro. Fazer crescer a atividade da Massaro com o nosso trabalho. Isso é minha maior ambição como artista, de crescer um pouco na sociedade. Pessoalmente, minha ambição é conseguir fazer isso com a equipe do atelier, que é, como já disse, composta de pessoas extremamente fiéis, que amam o que fazem e que se entendem bem. Minha ambição é fazer tudo isso junto com as pessoas com as quais trabalho.

E o que você visualiza para o futuro?
Grandes coisas! Podemos começar de maneira simples. Hoje temos esse salão/showroom. Então, quem sabe se um dia teremos uma loja.

Ao chegarmos no atelier Lesage, fomos encaminhados a uma sala sobre cuja enorme mesa central havia uma montanha de tecidos, composta, logo notamos, de pequenas amostras de bordados feitos ali – o que, acho, seria o sonho de consumo para qualquer estudante ou pessoa que trabalha com moda.

Corredores apertados levam a salas específicas, dedicadas a cada parte do processo de bordado, todas sempre abarrotadas de detalhes: linhas de todas as cores possíveis e imagináveis, agulhas de todos os tamanhos e formas, pérolas (muitas pérolas), pedras, fitas, borlas; tudo devidamente guardado em compartimentos pré-estabelecidos. As gavetinhas de madeira, charmosamente antigas, abrigam os rolos de linha de costura coloridas, formando uma composição visual digna de um quadro do Monet. As pérolas, por sua vez, são estocadas em pequenos pacotinhos feitos de papel craft, envoltos por linhas rústicas.

Schiaparelli, Yves Saint Laurent, Chanel, Lacroix, Christian Dior, o atelier Lesage possui o maior arquivo de bordados do mundo. São 60 mil amostras, espalhadas e estocadas de acordo com a coleção, em salas especificamente designadas para tal. A razão para essa quantidade enorme de amostras reside no fato de que, para cada bordado feito no Lesage, é obrigatória a produção de ao menos um segundo exemplar. Imaginem só o que já arquivaram em quase noventa anos!?

Fundado no ano de 1924, por Marie-Louise Lesage, o atelier logo passou a ser comandado por seu filho, François Lesage. Quando tinha apenas dezenove anos, ele foi enviado aos EUA, pelo pai, com a ordem de levar uma mala cheia de bordados para Hollywood. Em 1949, Hollywood vivia sua época de ouro, e a meca do cinema mundial começou a notar Paris e a projetar colaborações com a cultura francesa. Esse seria o próximo negócio do atelier.

Chegando lá, François logo aprendeu inglês, e o passo seguinte foi abrir uma pequena loja no Sunset Boulevard. Foi ali que começou a fazer fittings com Marlene Dietrich, Greta Garbo e todas as grandes atrizes da época, conquistando o mercado hollywoodiano. Seu pai morreria alguns meses depois. François teve de voltar a Paris, com apenas vinte anos, para assumir o comando do negócio.

Dois anos antes, em 1947, Dior lançou seu novo look, que revolucionou o modo feminino de se vestir. Propunha uma cintura bem afinada e saias extremamente volumosas – algo bastante chocante para a época. Era o pós-guerra e tudo era extremamente restrito. Além disso, alguns outros estilistas surgiram ao mesmo tempo, como Balenciaga. A missão do senhor Lesage era conquistar esses novos estilistas e convencê-los a trabalhar com ele.

Foi quando François conheceu o jovem Yves Saint Laurent, na maison Christian Dior. Juntos, desenvolveram uma relação de trabalho que durou 44 anos. Todos os bordados feitos para a Dior, durante o tempo em que Yves Saint Laurent trabalhava lá, foram obra do atelier Lesage. E, depois disso, continuaram fazendo os bordados para Yves Saint Laurent Couture e Yves Saint Laurent Prêt-à-Porter, na década de 1960.

Outro estilista muito importante para o senhor Lesage foi Christian Lacroix. Ao se pensar em Lacroix, é quase automático se lembrar de bordados decadentes, estilo anos 1980. François considerava Lacroix como seu “afilhado” da moda, e, já naquela época, julgava muito importante apoiar e ajudar no desenvolvimento de novos talentos da indústria. E isso continua sendo prioridade do atelier até os dias de hoje. Incentivam as novas marcas e os novos designers, através de preços mais atraentes, a usufruir dos bordados, ao mesmo tempo para dar oportunidade e para não deixar o métier “envelhecer”.

A Chanel somente começou a trabalhar com o Lesage em 1983, com a chegada de Karl Lagerfeld. Mademoiselle Chanel era muito resistente em permitir que seus desenhos saíssem da rue Cambon (onde fica a Maison) e preferia manter tudo internamente. Em 2002, porém, a Chanel comprou o Atelier Lesage, que agora faz parte de seus Métiers d’Art.

Trabalho sério é trabalho sério, independentemente de estarmos na França, na Índia, no Japão ou no Senegal. Todo francês conhece esses ateliers, seus trabalhos e suas histórias. Fazem jus à fama que a França tem em fazer a melhor moda do mundo, pois vendem história, patrimônio, sonho, glamour e qualidade; itens raros no mundo pós – ou sabe-se-lá-o-que – moderno em que vivemos.

#9ObsessãoArteCinema

Um dia de paz

Soa bonito e esperançoso para aqueles que, como nós, vivem em um estado de… paz. Para quem convive com a guerra, porém, um dia assim, de cessar-fogo temporário, não é só bonito; mas incrivelmente útil. Num dia em que balas não voam, famílias conseguem visitar seus médicos, adolescentes podem brincar em praças, e as crianças, que crescem nesse ambiente de conflito, têm chance de conhecer, por fim, a paz, como é a paz, que barulho emite ou deixa de emitir, que cor possui. É uma janela de oportunidade e esperança aberta à construção de um mundo melhor e mais humano.

Jeremy Gilley parece aquele típico inglês – que deve ter sido punk, hippie, clubber – com o qual se esbarra às 22h45, desesperado para beber sua última pint de cerveja antes do pub fechar. No primeiro momento, sustenta uma conversa fria e calculada, um modo de se colocar agressivo, e mantém uma postura rígida, um ar que sugere revolta oprimida.

Nascido em 1969, em Southampton, na Inglaterra, aos doze anos tornou-se ator. Era dos piores da turma, sem qualificações, e sua mais relevante conquista acadêmica consistiu numa nota D, em cerâmica. Diziam que era disléxico. Quando criança, infeliz na escola, Jeremy pensava muito sozinho e assistia a todos os noticiários na televisão.

“Estava muito preocupado e assustado com o que estava acontecendo no mundo. Meus pais não eram mais casados, e isso me fazia pensar em relações de uma maneira geral. Eu era pequeno, solitário, disléxico, sofrendo bullying, e isso me fez tentar entender o que tudo aquilo que via na televisão significava”.

Aos dezessete anos, ingressou na Royal Shakespeare Company. Depois de uma década de carreira profissional como ator, Jeremy já fizera todo tipo de coisa, e começou a sentir que o conteúdo do trabalho com o qual estava envolvido realmente não era suficiente, e que deveria haver algo mais.

Nessa época, influenciado por um livro de Frank Barnaby – um físico nuclear que diz que não só a mídia, mas todos os outros setores têm enorme responsabilidade em que as coisas progridam –, pensou que talvez pudesse fazer algo, pois passara grande parte da vida próximo a uma câmera. Então, pôs-se a pensar na paz e numa maneira de usar seu trabalho de forma construtiva, para fazer a diferença.

Refletia: “Qual será o ponto de partida para a paz”? Foi quando percebeu que aquilo não existia, um local – um fato, uma ocasião – de onde largar, de onde dar início; que não havia um dia de unidade global, de cooperação intercultural, um momento em que a humanidade se reunisse e compartilhasse o encontro e o sentimento de convergência, de “estarmos juntos nisso”, e lhe ocorreu que, se nos uníssemos e cooperássemos, talvez encontrássemos a chave para a sobrevivência da humanidade. Se tivéssemos um ponto de partida, um dia em que parássemos e pensássemos na paz, aquela mobilização poderia mudar o nível de consciência a respeito das questões fundamentais que os homens enfrentam.

Em 1999, Jeremy lançou o projeto Peace One Day, a princípio como um documentário. Morando na casa da mãe, obviamente sem dinheiro, produzia, com amigos, shows e saraus literários em bares no oeste de Londres, de modo a levantar fundos e tocar adiante o projeto. Para o dia do lançamento, convidou milhares de pessoas ao teatro Globe, em Londres, onde Shakespeare apresentava suas peças, mas só 144 apareceram. A maioria, amigos e familiares. Isso não fez tanta diferença, pois se documentou tudo em vídeo, e o importante era mesmo o processo, não o resultado. “Costumavam dizer que a caneta era mais poderosa que a espada”. Jeremy achava que mais poderosa era a câmera – e que estar presente, simplesmente presente, naquele momento era algo realmente grandioso e promissor.

Começaram – ele e o grupo que se reuniu em função do projeto – a escrever para todos os chefes de estado, embaixadores, prêmios Nobel, ONGs, grupos religiosos, várias organizações etc. Propunham uma tentativa de unir todos os países em um único dia do ano para pregar a paz e a não violência. Jeremy percebeu, contudo, que uma série de estereótipos não seria suficiente, e que havia uma montanha a ser escalada, uma longa jornada a ser percorrida; que não importava se a tentativa falhasse ou tivesse êxito, decisivo seria desenvolver meios de articular as questões que há tempos o atormentavam. Será a humanidade fundamentalmente má? A destruição do mundo é inevitável? Devo ter filhos? É algo responsável de se fazer nessa realidade em que vivemos?

Gilley achou que o projeto duraria, no máximo, um ano, mas rapidamente começaram a chegar respostas para algumas cartas. Uma das primeiras, lembra-se, veio do Dalai Lama; e dizia: “Isso é uma coisa incrível, venha me ver. Gostaria de conversar com você sobre o primeiro dia de paz”. Foi quando Mary Robinson, presidente da Irlanda, declarou: “Chegou a hora de pôr essa ideia em prática”. Kofi Annan afirmou: “Isso será benéfico para minhas tropas que estão em terra”. A Organização da União Africana, na época dirigida por Salim Ahmed, pronunciou-se: “Tenho de conseguir envolver os países africanos”. Oscar Arias, ganhador do Nobel da Paz, atual presidente da Costa Rica, comprometeu-se: “Farei tudo que puder”. Então, Jeremy foi ver Amr Moussa na Liga dos Estados Árabes, conheceu Mandela nas conversações de paz de Arusha, e assim sucessivamente, enquanto defendia sua causa e lutava por provar que sua ideia fazia sentido.

Levou dezoito meses escrevendo cartas e trabalhando nos corredores da ONU para conseguir um encontro com Kofi Annan. Finalmente, no dia 7 de setembro de 2001 – “o mais importante da minha vida” –, doze anos depois de ter iniciado o movimento, Gilley viu a ONU, por unanimidade, aprovar a Resolução 55/282, que designava oficialmente o 21 de setembro como dia internacional da paz. “Estava sentado sozinho, com minha pequena câmera, e foi um momento realmente maravilhoso. Annan daria uma coletiva de imprensa mais tarde naquela semana. Minha equipe e eu chegamos lá às oito da manhã e, enquanto ligávamos nossos equipamentos, o primeiro avião atingiu o World Trade Center.” Era dia 11 de setembro, e a coletiva de imprensa nunca aconteceu.

Em seu filme de 2008, The Day After Peace, 11 de setembro é ponto central. Sete anos depois dos atentados, ele e Jude Law, a quem conhecera através de um amigo ator, encontraram-se no Afeganistão para o cessar-fogo que permitiu a primeira vacinação em massa de crianças contra a pólio. Longe de desistir, os ataques de 11 de setembro o deixaram ainda mais determinado a vencer e transformar esse dia em uma instituição mundial.

Muito criticado por usar rostos famosos, como os de Angelina Jolie e Stella McCartney, em suas campanhas, Jeremy teve em Law, principalmente no Afeganistão, muito mais que apenas uma face célebre. “Toda a carreira, todas as reuniões, Jude fez comigo. Foi um verdadeiro divisor de águas, porque, de repente, todo mundo estava interessado”. Nada como o aval de uma celebridade.

Em certos momentos, Gilley viu-se em situações de real perigo, sobretudo quando ficou cara a cara com o exército de crianças do Congo. Na Somália, esteve hospitalizado por três semanas. “A coisa mais difícil desses últimos anos foi a intensidade física e psicológica de trabalhar doze horas por dia, todos os dias da semana, e sentir meu corpo querer desistir”.

Depois de ver nascer sua filha, Rose, Gilley acha que não manterá o mesmo ritmo de trabalho e crê que não ficará mais tanto tempo fora de casa. Ainda pensa, contudo, em visitar entre vinte e trinta países em 2013, incluindo a Somália, para promover sua campanha. “Pela primeira vez na vida existe uma coisa mais importante pra mim do que eu” – diz, referindo-se à filha.

No próximo dia 21 de setembro, Gilley, que agora está por trás de grandes produções e eventos artísticos, irá produzir um concerto de Elton John em Londres, para o qual são esperadas mais de 60 mil pessoas – o maior encontro já organizado em torno da causa do Peace One Day. Nada mal para quem iniciou esta luta com pouco mais de cem apoiadores no Globe.

Discutindo essa edição da revista, e debatendo o tema com amigos e colegas de trabalho, uma questão comum a todos consistia em se a obsessão era algo bom ou ruim. Sempre considerei esse juízo como extremamente íntimo. A própria definição do que seja obsessão é complexa e, muitas vezes, de difícil identificação, especialmente pela pessoa “obcecada”. Ficar, porém, dezoito anos em busca de um ideal – sobretudo esse, com foco na comunidade global –, sob uma determinação incessante em chamar a atenção dos maiores líderes mundiais e mobilizá-los para que avaliassem e aprovassem sua proposta, definitivamente é obsessão de natureza saudável.

#9ObsessãoCulturaSociedade

Nunca – parar

por Guilherme Nehemy

Minha relação com o esporte teve início na infância, incentivada pelo meu pai, inicialmente no tênis e depois no futebol, como ocorre à maioria dos garotos. Sempre tentei me manter ligado à atividade física, correndo na academia ou na rua, ainda que apenas uma ou duas vezes por semana. Sabia que, por menores que fossem a frequência e a exigência, a simples prática esportiva me fazia bem, especialmente ao fim do exercício: aquela sensação de pós-esforço – uma injeção hormonal de endorfina e serotonina – que nos traz satisfação sem igual.

O ano de 2010 foi, na minha vida, um divisor de águas. Estava com hábitos nada saudáveis, fumando e bebendo muito, submetido a oscilações de peso muito bruscas. Quase não fazia atividades físicas. Minha preocupação, ao chegar em casa, consistia em saber qual seria o programa da noite e o que teríamos de bebida para acompanhar.

Até que minha esposa me presenteou com uma viagem que definitivamente me mudaria – e para muito melhor.

Fazíamos dois anos de casados e ela me ofereceu uma expedição ciclística pela Dordonha, na França, com uma turma que não conhecia e que então me parecia muito chata, já que pouquíssimos bebiam e nenhum fumava. O tour tinha por proposta conhecer a região sobre bicicletas – de ciclismo de estrada – e percorreria as principais cidades locais.

Estava mal-humorado, aborrecido com aquele presente de casamento. De qualquer maneira, já que a viagem estava paga e me fora dada com tanto carinho, comprei minha primeira bike, bem às vésperas de uma prova de ciclismo que subiria a serra velha de Campos do Jordão. Para quem o conhece, um percurso bastante duro, desafio que exige um mínimo de treinamento prévio.

A prova seria no domingo. Comprei a bike na sexta à tarde e, no sábado, testei-a: uma speedy, totalmente diferente de tudo que já experimentara. Enfim, no domingo, lá estava, a postos. Terminei o trajeto num tempo bem razoável, algo em torno de duas horas e pouco, e fiquei bem empolgado. Minha estreia se deu a 9 de maio. Tive tempo, portanto, para treinar até meados de julho, quando partiríamos à França.

A viagem, confesso, foi uma das mais espetaculares de minha vida. Fiz amigos naquela turma com os quais me relaciono até hoje. Queimei a língua – ainda bem.

Essa mesma turma, composta de pessoas muito regradas, estava inscrita para o Meio Ironman em Miami (1.900 metros nadando, noventa quilômetros pedalando e 21 correndo) – a se realizar no final de outubro. Mobilizaram-se para que eu participasse, como se fosse um passeio no parque, e irresponsavelmente aceitei o chamado e me inscrevi.

Treinei bastante nesse intervalo de três meses. Participei de um triátlon curto (750 metros nadando, vinte quilômetros pedalando e cinco correndo), fiquei em terceiro lugar, e depois, em Santos, tomei parte em uma prova de triátlon olímpico (1.500 metros nadando, quarenta quilômetros pedalando e dez correndo).

Finalmente, chegou o dia do embarque para Miami. Enquanto esperávamos, encontramos um casal de amigos que me perguntou se participaria do Ironman Brasil (3.800 metros nadando, 180 quilômetros pedalando, 42 correndo), em maio de 2011. As inscrições já estavam encerradas. Porém, disseram-me que conseguiriam abrir uma exceção para mim – e lá fui eu, irresponsavelmente, de novo. Dessa vez, considerado o poder de exaustão da prova, com grande risco de um trauma irreversível.

No Meio Ironman de Miami, mantive um ritmo bem conservador, com o intuito de não “quebrar” na corrida. Não queria ter de caminhar. Consegui e conclui o percurso em cinco horas e 47 minutos. Uma conquista importante, pois me dava confiança para o grande desafio de qualquer triatleta, o Ironman. Eu estava inscrito e não desistiria, focado em cumpri-lo bem, e sem caminhar nos 42 quilômetros de corrida.

Muitos duvidaram quando afirmei que participaria de uma prova em que se nada, se pedala e se corre, respectivamente, 3.800 metros, 180 quilômetros e 42 quilômetros. É um desafio contra você mesmo, contra sua mente, sempre pedindo para que paremos, para que desistamos, e no entanto, por algum motivo, seguimos em frente; eu segui – e fui: onze horas e 54 minutos. Cheguei exaurido, chorando muito, sob a mistura de dor e de alegria, muita dor e muita alegria, muita satisfação.

Com a regularidade dos treinos – para além das nítidas mudanças no corpo, com implicações decisivas para o bem-estar e para a disposição física cotidiana –, começa-se a adquirir uma disciplina acima da média, já que, obrigatoriamente, deve-se praticar ao menos dois esportes em quase todos os dias – e ainda conciliá-los ao trabalho e à família. Além disso, o rigor das provas fortalece o espírito e a cabeça. No Ironman deste ano, por exemplo, tive muitas cãibras e, portanto, senti muita dor. Sofri, mas fui em frente. Valeu a pena. Meus pais foram me assistir e me motivaram a terminá-lo. Atleticamente, porém, não fiquei satisfeito. Quem pratica esse tipo de prova nunca – nunca mesmo – fica contente com o próprio resultado. Sempre haverá onde e como melhorar.

Estou no caminho certo. Treino com pessoas legais. Alimento-me corretamente. E tento ser flexível para que esta prática não se torne uma neura e não prejudique minhas vidas familiar e social. O triátlon, compreendido desta forma saudável, mudou-me para melhor. Acredito que todos temos limites fisiológicos e físicos, os quais, entretanto, dificilmente alcançaremos – a não ser que sejamos profissionais. Como não sou, continuarei treinando, com responsabilidade, mas sem medo de sentir dor. Todos nós podemos ir além, sempre.

Jamais pretendo parar, uma vez que finalmente encontrei um esporte que me completa e me faz feliz.

#9ObsessãoCulturaSociedade

Warhol, Bündchen e Vacas

por Lígia Teixeira

Por muitos anos, o ato de possuir objetos foi considerado símbolo de manifestação de poder. O colecionismo sempre foi ligado à ideia de posse. Com o passar do tempo, tomou uma outra proporção e se transformou em uma atitude materialista, e ultrapassou sua função anterior. Hoje, ele não é mais associação ao poder, e sim, ao prazer. 

Vindo de uma família de artistas, Luiz Henrique Campos, 45, é programador visual, e coleciona, há mais de 20 anos, diferentes tipos de objetos. Sob forte influência de sua família, que fazia parte do teatro e da televisão brasileira, Luiz começou a colecionar tudo o que se relacionava a esse universo, cartazes, programas e fotos que hoje somam mais de 150 objetos.

Luiz mora com a mãe – que o influenciou, guardando suas roupas e objetos de criança – em um apartamento extremamente organizado, onde começou a armazenar todas as suas coleções, em seu quarto. Após alguns anos, juntou tanta coisa, que viu sua coleção invadir corredores e outros cômodos do apartamento. “Sei exatamente onde encontrar cada coisa rapidamente”, diz ele, tamanha é a ordem. São mais de 15 coleções que vão desde vacas, bonecas e revistas até objetos da realeza britânica. A coleção tem seu item mais raro, uma xícara da coroação da Rainha Elisabeth II, da década de 1950, junto com a coleção da Around, revista do anos 1980, que era dificílima de ser encontrada mesmo na época que era editada. Ele conseguiu as que fazem parte de sua coleção quando descobriu onde era a redação, e comprou direto da fonte.

Mesmo não sendo fã da modelo Gisele Bündchen, nos anos 1990, com a explosão de sua carreira, viu ali uma ótima oportunidade para começar a juntar revistas nas quais ela saía na capa. Hoje, são mais de 350 revistas – incluindo a que demos de presente quando fizemos a visita. Canecas, pôsteres, lápis, souvenirs, bonecos, xícaras de Andy Warhol, David Bowie, e Kate Moss. Também faz parte do seu universo uma coleção absurda, de mais de 520 dvds.

Sua primeira e maior coleção tem 24 anos e é a de vacas. Seus amigos o ajudaram bastante, dando de presente sempre que viam algum objeto relacionado, chegando hoje a mais de 160.

Além de colecionar objetos, Luiz tem o hábito, que começou em 1988, de escrever diários. Anotava tudo o que fazia, colava reportagens de jornal, fotos dos amigos e familiares, ingressos de shows, o que faz até hoje. Claro que em uma escala bem menor, pois a vida mudou. Sua agenda atual tem duas linhas para cada dia do mês.

Luiz nunca deixou nenhuma de suas coleções de lado. Nesses mais de 20 anos colecionando, ele alimentou todas elas. Mesmo pensando que poderia ter comprado um apartamento com todo o dinheiro já gasto até hoje, ele não se arrepende, e continua buscando ou esperando que esses objetos surjam de forma inusitada em sua vida.

#9ObsessãoCulturaLiteratura

Conversas

por Vanessa Agricola

– Você tem alguma mania?
– A minha é casar com mulher errada.
– Isso não é mania, idiota, deixa ela pensar.
– Eu acho que eu tenho mania de pensar merda.
– Que tipo?
– Tipo eu tô feia, eu sou burra, eu tô gorda. Outro dia pensei em fazer uma plástica na vagina.
– Você tá falando sério?
– Muito.

– Sabe o que eu fiz?
– Fala.
– Eu li os e-mails dela.
– Nossa…
– Tava aberto, eu não resisti.
– E aí?
– Aí que eu fiquei sabendo que ela ganha o dobro que eu.
– Nossa…
– E agora eu não sei como falar que eu descobri.
– Não fala!
– Não? Mas e as contas? Eu que pago todas!
– Nem se ela tivesse um amante você ia poder questionar.
– Que merda…

– Todo mundo que ela conhecia ela adivinhava o signo.
– Ela era astróloga?
– Não, advogada.
– Ahm… e de que signo ela era?
– Canceriana. Você entende alguma coisa?
– Não.
– Eu tive três cancerianas, essa advogada, uma ninfomaníaca e a professora de yoga.
– Caramba. E o que elas tinham em comum?
– Sei lá. Nada.

– Sexo.
– Muito repetitivo.
– Semana passada a gente falou daquele filme, como chama?
Shame.
– Isso, com aquele pintudo…
– Michael Fassbender.
– Esse.
– Ele é pintudo, é?
– Porra. Mulherada ficou obcecada.

– E o Mensalão?
– O cara foi preso hoje.
– O de Osasco? Grandes coisa.
– Pelo menos esse não vai mais ser candidato.
– Ah, mas algum dia ele volta, o Collor voltou.
– Não fala assim, tem que pensar que vai dar certo.
– Vocês acham?
– Claro, tem que pensar positivo, se não fode tudo.
– É, pode ser… vai votar em quem?
– Eu? Nulo.

#9ObsessãoCulturaSociedade

Corpo em evidência

por Hermés Galvão

Pagaram a conta obcecados pelo dono do restaurante. Ligaram-me logo em seguida, alta madrugada, para contar do grande encontro. A descrição de Ayris me tirou o sono.

Ex-obeso mórbido, obsessivo-compulsivo confesso e medicado, bem remediado, estômago costurado. Perdeu gordura e dinheiro no passado, chegou ao presente magro, chef de cozinha, artista e, aguarde, em breve: halterofilista.

Você precisa conhecer o Ayris, repetiam os amigos. Me convenceram, venceram.

A ideia de encontrá-lo me tirou o sono da véspera. A entrevista ainda estava no futuro, mas a imagem que fiz dele já era presente a todo instante. Vê-lo ao vivo passou a ser minha íntima obsessão.

Cheguei ao Chez Ayris, sua cozinha, e também casa própria, numa vila de Pinheiros, em São Paulo. Vejo cuecas brancas no varal a dois metros do chão, a poucos passos do balcão, e paredes escurecidas pela tinta cor de chumbo, onde estão pendurados quadros de mulheres peladas em respingos de guache e riscos de carvão. Flores fálicas nos arranjos, assistentes de cozinha másculos e (talvez) um jazz fechavam o ambiente luxuriante.

Não tinha fome. Era apenas sede e medo. Ou preconceito, vai saber, pois sou cheio deles – é minha fraqueza e minha defesa. Me assombrava a ideia de encarar alguém que assume o lado mais obscuro da sombra. Ao mesmo tempo, sua história me atraía. Era como se ele fosse o proibido da vida. Sexo, comida, dinheiro e pênis aos montes: tudo é parte de seu universo compulsivo, temas recorrentes de sua rotina, da biografia e da arte que esboça agora.

Ayris, seu nome próprio, é Syria ao contrário. E eu andava avesso à sua história, que, mais tarde, durante o almoço, seria passada a limpo. Nosso personagem nasceu no Mato Grosso, quase na Bolívia. Aos oito anos, foi mandado para São Paulo, onde estudou em colégio interno até a adolescência. “Meus pais supriam a minha saudade mandando dinheiro.” Ficou órfão aos vinte, gastou a herança até os quarenta, morou no Copacabana Palace por um ano, bancou amigos, perdeu tudo, engordou demais e caiu.

Foi estranhamento à primeira vista. Seus olhos filmavam o desenho do meu corpo, meus gestos, meus passos. “Anos de análise me fazem observar todos que vêm aqui. É natural”. Não houve gelo a ser quebrado, pois então. Em um minuto de “convivência”, éramos puro embate e, uma vez analisado de cima abaixo, não me senti nem um pouco envergonhado de violar sua intimidade. Era preciso entender os motivos que o levaram a fazer do corpo o suporte de seu trabalho inaugural, carnal na veia. Do que se trata: construção de deformações como crítica (ou ode) ao culto da boa forma. Segundo ele, “uma resolução muscular em 3D”.

– Projeto de vida?
– Não, de arte. Mas estou usando minha vida para isso.

Da cirurgia bariátrica às plásticas para restaurar a pele que habita, do implante de mandíbula à prótese de glúteo, tudo foi documentado em foto por Valentino Fialdini e será apresentado ao grande público no ano que vem. “Tinha o desejo de me transformar para me reconhecer de outra maneira.” São lâminas que revelam o passo a passo de um processo iniciado em 2004, quando os pesos e medidas de Ayris Kury, de 48 anos, ultrapassavam os limites do entendimento espacial. “Era preciso mudar, ou então morreria. A comida alimentava minhas ideias suicidas. Então houve um motivo de saúde por trás dessa transformação, que resolvi transformar em arte.” Há retratos de nus com drenos saindo pela virilha, cicatrizes, traçados de cirurgião que desenham o corpo como cortes de gado. É Frida Kahlo com Mapplethorpe, repulsivo e perturbador. Transgressor. Doloroso processo que se encaminha para a reta final. A última “chapa” será batida em poucos meses, quando o personagem que deu origem a série chegar ao corpo desejado, escultural, com combinação de fisiculturismo e dieta de UFC. “Vou criar uma armadura em alta definição, onde todos os músculos ficarão visíveis. Isso exige uma atitude obsessiva: tem de comer, dormir, seguir regras muito duras.” Vale tudo para a construção de um site specific ambulante e em mutação constante. É homem performance de verdade, intervenção de vaidade. “Sempre tive uma sensação muito forte de desconforto com minha aparência, um sentimento de inadequação. Hoje uso meu corpo para exercer poder sobre o outro, mas penso se ele pertence a mim ou a quem olha”.

Para quem vê de fora, Ayris fez apenas um making of de seu extreme makeover. Por dentro, sua ideia é transpor as compulsões para o lado claro da força, a construção no lugar da destruição; em vez de gastar, comer tudo e todo mundo, o resguardo e a saúde para preencher o vácuo de uma existência transtornada. É estética pura tudo o que fez, mas não está em discussão entender os meios que o levaram à reforma física. A questão é saber o que ele fará com o vazio quando der a obra por terminada.

#8AmorAmarello Visita

Amarello Visita: Guerreiro do Amor

O Gladiador do Amor mora num dos bairros mais caros da cidade. O endereço impressiona. Grades de ferro elétricas logo na entrada. O cenário higiênico bate de frente com a precariedade dos lambes-lambes dos postes. Rabiscados em tinta vermelha, anunciam os serviços de amarração. Subo os degraus da entrada, cruzo com duas pessoas. A primeira, uma mulher. Saião acinturado, uns trinta anos, cabelos ruivos e cacheados. Ela fala no celular e quando eu passo, espia. Um pouco antes do elevador, um homem de uniforme branco, com emblemas costurados nas duas mangas, segura uma boina de aviador e analisa o céu. No céu, duas massas robustas acinzentam ainda mais o asfalto. Aperto o botão do décimo andar. O hall do consultório é emoldurado por um papel de parede com flores violetas e os números do 1002 estão colados de forma irregular, lembram uma onda. A onda remete-me aos minutos de espera no meu pediatra, há anos. E a espera tinha o mesmo gosto de nuggets vencido.

— Escreva aqui embaixo o nome, completo, da pessoa para quem vou dirigir o trabalho.
— Então, Sacerdote. É uma longa história.
— É?! Conte, conte tudo!

O entusiasmo mexe com ele, o Sacerdote puxa para si o tarô, emparelha o monte de runas violetas e ajeita o pano indiano da mesa. Eu tento explicar a teoria; vim pedir um trabalho para os meus personagens, entende? Personagens de uma história que estou escrevendo, um romance, uma ficção! Que nome eu coloco aqui embaixo? O Sacerdote do Amor fita o meu terceiro olho (assim reconheço o gesto), ou seja, o olho contido dentro da pele que separa os dois olhos visíveis. Fixa o ponto na minha testa e muxoxa um mantra rabugento. Ele aponta com o nariz o vazio acima de mim e sentencia.

— Só posso ajudar se você disser nomes! Para efeito de amarração, o trabalho precisa de carne. É impossível fazer qualquer tipo de trabalho para personagens de uma história inventada pela mente. Nem Deus! Nem Deus! Escuta só: a magia está dentro da Verdade e a Verdade é feita de carne e energia. Tudo tem carne, entende? Sem carne não tem nada-nada que eu possa fazer por você. Pense num homem que você queira encontrar. Uma mulher quer tocar alguém, e isso eu faço!

Eu leio os lábios do Sacerdote sem prestar muita atenção no sentido daqueles sons. A boca estica as vogais e o seu olhar tão preto não separa a íris da retina. Uma única bola pisca, e na altura do meu terceiro olho, um calor desagradável condensa. Um inseto infiltra a sala pelos micro furos do radiador ao lado da janela. Não encontrando pouso seguro entre as dezenas de entidades, nem mesmo na organização cabalística das runas violetas, o inseto, meio mosca meio libélula, instala-se no ar, batendo mil asas por segundo; ele levita entre o Sacerdote e eu. O inseto é um bicho-oráculo. Encaro os mil olhos do bicho e eles espelham os diferentes ângulos do consultório, por fragmentos. As imagens se sobrepõem. A estatueta de Oxum caminha sobre as cartas abertas do tarô. A runa de número V rola no tapete de onça. As mãos de Shiva suspendem o chapéu do mago de cerâmica. Os colares pérolas de Yemanjá emolduram o ar condicionado encaixado na parede. Shiva abraça a Cigana das Sete Saias e uma criança de cera estica o arco de Oxossi. A Virgem Maria nina o meu dedo esquerdo agigantado. A porta do consultório caindo sobre o chão. Um certo enjoo rói as minhas costas, algo parece me atacar por trás. A mosca bate as asas. O Sacerdote ajeita o cabelo grisalho e desliza o anular na testa sem rugas, sem traços. O Sacerdote é quase uma máscara.

— Eu sinto que ele, o homem de carne, se esconde atrás da sua história inventada pela mente! Perversa mente! Serpente da ilusão! Você quer, Priscilla, uma ajuda para descobrir a carne desta pessoa que assombra você? Olhe para você, Priscilla, a sua aura está preta! Prefira saber o que deixa você tão menor… Entregue-se, Priscilla!

O Sacerdote apaga a luz do consultório. Eu deixo, apesar do medo do escuro, vim aqui com o intuito de explorar o fundo da minha teoria e dos meus personagens. Vou até o poço! A mosca encosta a pata na minha bochecha e eu quero abaná-la. O Sacerdote aplaca o meu gesto. Não, Priscilla, você precisa mergulhar em você mesma e o mergulho é imune às sensações, deixe a mosca, solte as cordas do presente e lance o corpo no mergulho do Divino, eu estou aqui para ajudar você nesta pequena morte. O Sacerdote repete bem perto dos meus ouvidos, eu engasgo. É quase pavor.

— Sacerdote, você pode acender a luz, por favor?
— Claro, Priscilla. Claro. Esse pouco de escuro já soprou o nome do seu homem. É Gustavo!

Em cima da mesa de jogo, a carta do Enforcado está virada. O nome Gustavo, assim, arrancado da minha cabeça em nanossegundos me deixa bamba. O Sacerdote me consola.

— Relaxa, Priscilla. Relaxa. Eu só quero ajudar.

Ele pede detalhes, qualquer detalhe. Preciso desenhar Gustavo, aglutinar nesse desenho o máximo de energias. O sacerdote adora essa palavra: energia. Começo a anotar na folha em branco. Gustavo gosta de manga. Gustavo dorme pelado. Gustavo anda de bicicleta. Gustavo planta manjericão na varanda. Gustavo mudou de celular e foi para Fortaleza. Gustavo só dava fora de área. Gustavo e a máquina fotográfica. Clique. Mais para a esquerda. Não, seja mais natural. Gustavo mora em São Paulo. Gustavo gosta de zonas de conflito. De homens com turbantes. De ketchup. De uva passa. De escovar os dentes deitado na cama. De falar francês e vestir bata peruana.

— Agora chega!

O Sacerdote grita como se cronometrasse o tempo da minha descrição. Como se o tempo curto, aqui, carregasse de mais Verdade o próprio Gustavo fabricado por mim. Pelos fragmentos dele jogados no papel. Mas o retrato é metade de Pablo, o personagem. Metade de Gustavo. Eu conto essas metades, do que é passado, do que é ficção. O Sacerdote arranca a folha com as minhas anotações e sanfona o papel. Risca um fósforo. Ateia fogo. As cinzas amontoam-se e o Sacerdote berra.

— Olhe para o fogo e diga em voz alta quem é Gustavo! Fale!

Eu mastigo palavras; Guerra, Ketchup, queijo, Gustavo, Pablo, manjericão, Gustavo de calção florido, celular sem rede, Priscilla, areia branca de Fortaleza, lente grande angular, Gustavo dorme pelado. Enquanto eu dito flashes para o fogo, o Sacerdote entoa um sermão pesadão que me lembra a aura preta em volta de mim e das minhas olheiras.

O Sacerdote ordena: – Assopra o monte de cinzas! Essas cinzas são Gustavo, você o quer de volta! Sopre! O chão do consultório incinerado, os pedaços de Gustavo e de Pablo amontoados. Sopre! As estatuetas gemem nas prateleiras e os Santos parecem suar. Clique. Este será o fim do meu romance. Clique. Após uma transa tântrica (posso intercalar Santos gemendo), Priscilla entra no mar (eles estão em Fortaleza) e Pablo foge enquanto ela mergulha. A última cena será a praia vazia, sem carne e sem memória. Fim. O tempo da consulta se esgota.

Despossuído e de voz suave, o Sacerdote recomenda um banho de flores vermelhas e frutas amarelas; é para Oxum e Maria Padilha acordarem de bom humor. Descanse por hoje, Priscilla, e tome um chá de margaridas bem quente. Você não precisa pagar pelo trabalho, é só deixar uma doação com a recepcionista. Não volte para a sua casa; é preciso descarregar. Deite uma rosa na encruzilhada mais próxima ao endereço do primeiro encontro com Gustavo e durma em paz. Gustavo morreu. Pelo menos, nunca mais tive notícias. Nem ouvi tambores.

#8AmorArteFotografia

Estender-se

#8AmorCulturaSociedade

O traidor

O carioca que sai do Rio de Janeiro será sempre apontado como traidor.­ É mesmo um desrespeito abandonar tanta beleza, uma ousadia achar que pode haver coisa melhor. Se mudar do Rio para São Paulo, então, é caso de pena de morte. É pior que trocar de time ou de nome. Falsidade ideológica – daí para baixo. Bate uma culpa sincera no primeiro dia em que um carioca se sente realmente feliz em São Paulo. E os amigos que ficaram não ajudam… “Como pode? Logo você, que amava a praia? Justo você, que abria a janela e se sentia feliz até em estar parada no trânsito da Lagoa?”

E desandam a falar da feiura, da grandeza, dos tons de cinza, dos engarrafamentos, das enchentes e da frieza paulistana. “Como é que você foi largar isso aqui?” – pergunta o carioca já apontando para qualquer direção, sabedor de que sempre vai encontrar uma montanha ridiculamente bem posicionada ou uma beira do mar por perto. Covardia. E é tão difícil entender quanto explicar.

Mas tento. Amigos: se tem alguém que sabe como o Rio é maravilhoso este é aquele que foi embora. Essa praia dói mais ainda em quem não a tem. Voltar para São Paulo na segunda de manhã e deixar para trás o Rio amanhecendo é de uma violência que não se pode contar. Todas as fotos de pôr-do-sol no Arpoador me magoam a ponto de querer sair do Instagram. E a cada sábado de verão em que alguém me chama a uma praia “pertinho, só três horas de carro”; a cada “vista linda” que o paulista, com a maior boa-vontade, quer mostrar, mas que se revela apenas uma visão panorâmica para um monte de prédios, juro: a vontade de chorar não é metafórica.

“Então volta” – seus amigos falam. “Fica” – insistem: “Aqui é gostoso, quentinho, seguro”. É mesmo tentador. O Rio é um colo de mãe. E os argumentos cariocas para não se sair da cidade são os mesmos que sua mãe usou para você não sair de casa. Por que ir, se aqui é tão bom? “Você tem tudo de que precisa: casa, comida, roupa lavada. Você não gosta mais da gente?”

Sim, Rio, ainda amo você profundamente. Não é você. Sou eu. A gente ama os pais, mas um dia precisa sair de casa. Eu me mudei de um apartamento gigantesco, com a vista do Pão de Açúcar, para um quarto-e-sala sem elevador e voltado para uma parede. Sim, eu amava meus pais, mas precisava ter meu cantinho. São Paulo parece grande. Porém, se olharmos de perto, é só o cantinho de muita gente.

É a chance de começar uma nova história o que conquista quem vem para cá. O Rio já está pronto. São Paulo tem cheiro de cimento, barulho de prédio em construção. De um lado, uma montanha de cinco bilhões de anos; de outro, um terreno escrito: em breve. É o conforto do estabelecido versus a adrenalina de todas as possibilidades. Tem quem se acanhe diante de tanto desconhecido. Mas para mim, que aprendi a correr antes de engatinhar, São Paulo é um alívio.

Claro que dá medo; saudade. Sai caro. Há dias em que tenho vontade de voltar correndo para a casa da mamãe. E volto, de preferência no fim de semana, cheia de saudade. Aí, até as piadas em que não achava graça ficam engraçadíssimas. Quando volto pro Rio, acho tudo divertido e bucólico. O serviço ruim não me atrapalha, a impontualidade fica charmosa, as eternas promessas de “passa lá em casa” têm o efeito de um abraço carinhoso.

Mas minha saudade não é o suficiente para os cariocas. “Porque você gosta tanto de lá?” – perguntam-me, inconformados. Como toda mãe, o Rio é passional e exagerado. Oferece muito, mas cobra uma fidelidade polarizada: ou gosta de mim ou de São Paulo. O Rio é uma mulher deslumbrante que, por isso mesmo, lida muito mal com a rejeição.

São Paulo é mais humilde, está acostumada a ser maltratada. É feia, sim, mas tem espelho em casa. Sabe que não pode sair botando banca.

Ela te pega aos poucos, vai comendo pelas beiradas. Conquista primeiro seu conforto, depois sua simpatia. Quando você se dá conta, não sabe mais viver sem.

São Paulo aceita tranquilamente ser “a outra”, até porque é a outra cidade de quase todo mundo. Aqui, como não podia deixar de ser, aprendi os tons de cinza: não existe só feio e bonito, perto ou longe, verão ou inverno. Todas as estações do ano podem ocorrer em um dia, e isso dá uma sensação de liberdade danada. Apesar da dureza aparente, São Paulo é muito flexível.

“Que palhaçada! Liberdade é correr na praia de manhã” – dirão os amigos, e estarão certos também. A natureza do Rio estabelece o horizonte como limite. Mas a sombra e a água fresca me causavam certa preguiça de ir até lá. O Rio é uma mãe manipuladora, que manda e desmanda, e você nem percebe por que é gostoso receber as ordens dela. “Vá à praia, sorria, coma direito, fique mais um pouquinho, descanse.”

São Paulo é mãe de ninguém. Nem vem pedir colo que aqui não tem. Se vira malandro. O que é que você vai fazer com essa tal liberdade? – já perguntava o pagode paulistano anos atrás. São Paulo impõe muito pouco. Será interessante, mas só se você também for. É uma relação de parceria, longe do amor incondicional. No Rio, basta estar ali. Aqui, não. Não se vive em São Paulo, mas com São Paulo.

Se isto é melhor que aquilo, impossível dizer. Nem precisa. Fui muito feliz com o Rio mandando em mim por 27 anos. Sentia tanta obrigação de ir à praia que, de vez em quando, torcia para chover só para poder fazer qualquer outra coisa. Só um carioca consegue entender esse sentimento.

O Rio é uma linda história com começo, meio e fim – e na qual todos viveram felizes para sempre. São Paulo é assunto para a vida toda, é futuro que não acaba mais, final aberto. Se nem meu GPS consegue dar conta de tanta atualização e novidade, imagine eu.

Quando bate a preguiça de ir tão pra frente, voo pro Flamengo, pra vista do mar, pra tudo que já conheço. Depois de uma semana, volto correndo com saudade de meu anonimato, saudade de ser de fora. Taí mais uma coisa boa que só um exilado pode sentir: o prazer de dizer numa mesa, com certo ar de superioridade, “sim, eu sou carioca”, sabendo que atrairá algumas antipatias, mas também, certamente, toda a atenção do mundo.

O carioca se acha, sim, e se acha porque é. É um luxo ser do Rio. Nós somos uma grife que eu, pelo menos, uso sem parcimônia, em estampas bem grandes. E o paulista, generoso que só, abre espaço para toda essa prepotência e gosta da gente. Um paulista vê muito mais graça num carioca do que um carioca em outro carioca.

E não será esse textinho bobo a fazer meus amigos mudarem de ideia e me absolverem. “Quem diria? Até a Patrícia se vendeu” – dirão. Carioca não se enrola nem se convence, eu sei bem. Por isso, se você sair do Rio para morar em São Paulo, já vá sabendo: será sempre considerado um traidor. Mas, talvez para aliviar a culpa que ainda sinto, peço clemência ao júri: traidora não, vai… No máximo me deixe ser condenada por bigamia: sou capaz de ter dois amores profundos ao mesmo tempo.

#8AmorCulturaSociedade

Pintura Íntima

por Hermés Galvão

No início era o amor pela ideia. Depois, a paixão por quem estava atrás dela. Mas desde sempre houve intimidade entre as partes interessadas, algo sensorial que aproximava criaturas e criadores. Rolava um clima, por assim dizer. Era pura troca. De um lado, o patrono. De outro, o artista. E entre eles, além de muito dinheiro, bastante diálogo. Funcionou bem de Isabella d’Este, primadona do Renascimento, até Peggy Guggenheim, que, a partir da Segunda Guerra, diluiu o mecenato ao concubinato estrelando a maior fotonovela artsy-erótica de que se tem notícia. Serial lover, sadomasô, avarenta e adunca como um rosto de Guernica, colecionou obras grandiosas e homens grandiosos, escritores, pintores e escultores. Da parede da sala para o quarto, da mesa de cabeceira até a cama, e vice-versa, com Laurence Vail, Kay Boyle, John Holms, Samuel Beckett, Marcel Duchamp (há controvérsias) e, tcharan!, Max Ernst, Peggy fez de seu Palazzo Venier dei Leoni, em Veneza, uma casa de tolerância onde livres pensadores ensaiaram o que mais tarde chamariam de liberdade sexual.

Mestres pintaram e bordaram ali, entre lençóis e canvas, sob os olhos mercenários da baranga boêmia que, fato, fez tudo por amor. Seu filme de sacanagem tinha enredo. Com final feliz para todo mundo, até para quem não passou pelo seu infalível teste do sofá – Peggy também promoveu (e não comeu) Jean Cocteau, Kandinsky, Henry Moore, Brancusi, Calder, George Braque e Picasso. Tudo em nome da arte. Misturava o lado pessoal com o profissional –, nada mais feminino… Mas fazia sentido, havia o tesão. E a coleção não mudava com a decoração, tampouco era tratada como investimento, papel, ação. Com Marguerite “Peggy”, a figura do mecenas ganhou outro rumo, outros valores. Foi além do patrocínio e do papel de incentivar a produção artística com o mero objetivo de melhorar a imagem na sociedade – afinal, nada mais déclassé que ter e não investir. Dividir nunca foi o caso… Fomentou exposições, protegeu gerações de artistas da fome e da crise, salvou talentos do anonimato e livrou o circuito da mesmice. Criou, também, a partir de suas iniciativas nobres, uma nova maneira de os milionários sine nobilitate frequentarem o café society sem sentir falta de sobrenome real. Com ela, o dinheiro novo parecia estar nas mãos certas. Paramos aqui. Pois é passado.

Estamos no agora. E talvez seja preciso rediscutir a relação do art patron com o artista (art dealer fica de fora, três é demais), perder o hábito de desaguar capital sobre alguém e alguma coisa que, ouviu-se dizer, “vai valorizar” sem sequer gostar ou, pior, entender. É papo contemporâneo, mas que vem a público não é de hoje. Tom Wolfe, em 1984, alertou sobre a falta de comunicação entre quem compra e quem vende em cínico texto para a Harper’s Magazine: “A arte se tornou um ritual social no qual os ricos investem por não ter nada melhor para gastar, como outrora faziam com a religião”. Susan Sontag, vinte anos antes, em ensaio intitulado Against Interpretation, defendeu a ideia de que, antes de mergulhar no hermetismo das artes, era necessário “aprender a ver mais, sentir mais e ouvir mais. Para que o papel da arte na vida não seja meramente decorativo, mas, sim, subjetivo. Para evitar, assim, o grande mal-entendido que se fez entre os que incentivam e aqueles que aceitam”. Mora na filosofia, mas procede. Há de se sentir qualquer coisa maior que um sentimento de posse. Há de se ter, mas sem se achar. Que colecionadores saibam a fundo o que trazem para casa. Nem que para isso levem o personagem para a cama. Personagem, o artista. Não o galerista.

Fala-se hoje de crowdfunding, ou financiamento coletivo de projetos. Mecenato new age, onde artistas sem um tostão apresentam seus projetos nas redes sociais em busca de patrocínio. Quem acredita na ideia paga para ver, financia a iniciativa, doa o que pode e pronto. É hype garantido ou o dinheiro de volta. E, quem sabe, a possibilidade de amar, de fato, a ideia e até seu idealizador. Nem que seja no plano virtual. É só dar um poke.

#8AmorArquiteturaArteArtes VisuaisCinemaDesignInteriores

Amor imenso

por Tomás Biagi Carvalho

Um sonho de amor é o filme mais bonito que já vi.

A trágica história, a atuação espetacular de Tilda Swinton e a direção de arte impecável transformam a obra de Luca Guadagnino numa maravilhosa e dramática ode ao amor.

De origem russa, Emma Recchi, personagem de Tilda, é retirada de seu habitat para casar-se com um rico industrial de Milão. Tem três filhos, mas, visivelmente, não é feliz. Seu olhar é vago, distante, perdido em meio à espetacular casa art deco onde mora. A residência, cuja riqueza de detalhes enche os olhos de qualquer um, é a protagonista do filme, e o trabalho da set designer Francesca di Mottola, portanto, quase de direção.

O filme retrata a mudança de controle – no centro de uma família abastada – sobre o poder e o dinheiro. Afinal, em sua festa de aniversário, o patriarca, Edoardo, anuncia sua aposentadoria e, ao contrário do que todos pensavam, informa que os negócios familiares não serão cuidados somente pelo filho Tancredi, mas também por seu neto Edoardo.

Esse mundo ordenado e plácido começa a rachar justamente nessa ocasião, quando surge na vida dos Recchi a figura de Antonio, sócio do jovem Edoardo num restaurante em San Remo. Numa visita ao novo negócio do filho, Emma descobre sabores que parece nunca ter experimentado. A dureza da mulher de gelo quebra-se para sempre.

Lindo esteticamente, o filme tem poucos diálogos e abusa do silêncio, da trilha sonora e dos olhares. Não à toa impressionou tanto a crítica. Há tempos não despontava no cinema italiano alguém com a capacidade de um Visconti para utilizar a cenografia e os espaços vazios de forma tão dramática.

Conversamos com Francesca di Mottola – carioca que se mudou para Roma, com a família, aos sete anos – sobre seu trabalho e, particularmente, a respeito do processo de construção dessa maravilhosa obra.

Fale-me um pouco sobre você. Onde nasceu? Morou no Brasil?
Nasci no Brasil. Passei minha primeira infância aí e, aos sete anos, mudei-me para a Itália. Sou brasileira, mas minha formação é italiana.

Você fez faculdade de quê?
Fiz Theatre Design na Central St. Martins, em Londres, e então comecei a trabalhar com um pessoal de cinema, que estudava no mesmo prédio, produzindo curtas-metragens. Terminei a faculdade em 2001 e fui trabalhar no time de Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo (production designer e set decorator – três vezes vencedores do Oscar), com quem fiz Cold Mountain, na Romênia, em 2003. Depois, voltei ao Brasil. Passei três anos trabalhando com cinema aí.

Li mesmo que você fez aquele filme, Cleópatra, com a Alessandra Negrini.
Sim, como assistente de direção de arte.

Então, isso foi na época em que morava aqui?
Isso. Depois de algumas experiências profissionais aqui na Europa, senti o desejo de passar uma temporada no Brasil. Trabalhava no art department de Un Long Dimanche de Fiançailles, de Jean Pierre Jeunet, em Paris, e fiquei muito amiga da dupla PaulaGabriela (artistas plásticas cariocas, cuja obra é muito teatral). Elas então preparavam uma instalação e insistiram muito que o Brasil estava “bombando” em termos de artes e criatividade. Ao chegar ao Rio, introduziram-me ao mundo da arte contemporânea e da moda, e senti a energia criativa de que tanto falavam.

O que a fez voltar para a Itália?
Voltei porque recebi um convite para trabalhar novamente com Dante e Francesca, em Sweeney Todd (2007), de Tim Burton, em Londres; e também porque, apesar de ter uma conexão muito forte com o Brasil, sentia-me um pouco isolada.

O que mais fez por aqui?
Trabalhei três meses na Grande Rio, com o Joãozinho Trinta ainda vivo. O enredo era sobre a camisinha. Foi muito louco. Desenhei muito e contribui nos adereços dos carros. Depois, comecei a trabalhar com o diretor de arte Gualter Pupo e fiz um filme do Flávio Tambellini, Passageiro. Fiz vários trabalhos menores também, como a instalação de uma exposição sobre cinema brasileiro, sempre como assistente. Foi muito legal e aprendi muito no Brasil – uma ótima escola pra mim.

Seu caso de amor com o cinema começou na escola, né?
Começou. Sempre tive um relacionamento de amor com o cinema, mas, quando estive na Inglaterra, pude passar muito mais tempo no teatro e no cinema. Londres oferece abertura total e acesso a muita informação: teatro, cinema e exposições maravilhosas. Ia, toda noite, a uma peça ou a um filme. Aquele ano foi, informativamente, muito importante, período em que entendi que queria fazer cenografia.

Você identificou o que queria fazer.
Totalmente. Foi maravilhoso. A faculdade de cenografia era muito aberta, não só baseada em teoria do teatro, ou na parte técnica, mas dedicada também a estimular o desenvolvimento de ideias e a análise criativa de textos. Nisso, os ingleses estão muito à frente, tanto que os cenógrafos britânicos são meus preferidos.

Quais são esses cenógrafos?
De teatro, Paul Brown, Ralph Koltai, Richard Hudson e Rae Smith, com quem inclusive estudei. Ela fez os cenários de algumas peças grandes, como War Horse.

Em que momento você começa a se envolver no processo de criação de um filme?
Depende muito do relacionamento que estabeleço com o diretor. Se trabalho com alguém que já conheço, o processo se inicia muito cedo. Por exemplo, meu marido é diretor. Desenvolvemos juntos, agora, o projeto de um filme, que possivelmente filmaremos no ano que vem, no Brasil. Meu envolvimento nesse projeto, portanto, começou com o screenplay. Fizemos o location scout juntos, e meu trabalho já entrou no script. Mas, normalmente, sigo um roteiro já estabelecido. Tenho trabalhado com diretores que possuem uma visão muito forte sobre o que desejam, o que é legal, pois me oferecem uma rota definida, como foi no caso de Um sonho de amor. A pesquisa visual do diretor era imensa, e tive de dar sentido ao que já imaginara. Foi muito interessante, porque ampliei certas coisas; outras, tive de condensar.

Quais são suas influências?
Crescendo em Roma, estive cercada de arte a vida inteira. Fiz o liceu artístico quando pequena, e a história da arte sempre esteve presente em mim. É difícil dizer quais são especificamente minhas influências. Depende muito do projeto, mas, na maioria das vezes, busco inspiração em quadros, pintores e fotografias.

Você pesquisa, ou se trata de algo natural, que já está em você e que compõe seu repertório?
É como se já tivesse tudo dentro de mim. Daí, claro, amplio este campo de conhecimento e parto para a pesquisa. A de Um sonho de amor é ridícula. Tenho um folder tão lotado de imagens que sequer o consigo carregar.

Você pode contar um pouco sobre essa pesquisa?
O diretor já tinha uma grande parte dela, dividida da seguinte maneira: “A fábrica”, “A natureza”, “A cidade”, “O mundo de Emma” e “A Rússia”. Artistas do movimento construtivista russo, como Malevich, serviram de inspiração para contar o mundo da fábrica de tecidos e de seus trabalhadores; as imagens no ritmo da música de John Adams inicialmente foram estudadas como título de abertura, mas não levamos a ideia adiante. Entre os artistas russos, como referências, tínhamos pinturas de Kuzma Petrov-Vodkin, Ivan Kostantinovich, Ilya Repin, Zinaida Serebriakova, Valentin Serov Alexandrovich e Leon Bakst. Foram muitas as influências. Por exemplo, possuíamos imagens de muitos quadros de De Nittis, Sargent, e também Cézanne, Matisse e Vuillard.

Para a natureza, as referências partiram de fotos como as de Thomas Struth e de Fischli & Weiss, cujas “flores” inspiraram as cenas de amor campestre entre Emma e Antonio. Falar da natureza era importantíssimo porque era o mundo de Antonio; o universo onde se perdiam e para o qual – representado por sua casa em plena Ligúria – levou Emma. A natureza tem a ver com a paixão deles, com o amor, uma paixão mais forte que todo o resto.

Já o mundo de Emma iniciava-se na cidade. O diretor tinha várias imagens de fotógrafos nas quais a arquitetura é muito poderosa, como Andreas Gursky e Thomas Struth, e desenhos de Vespignani, Umberto Boccioni e Paolo Pace. Assistir aos filmes Rocco e i Suoi Fratelli, de Visconti, La Notte, de Antonioni, e ao documentário de Scorcese sobre Armani, Made in Milan, também ajudaram na pesquisa sobre como contar a cidade.

Finalmente, teve a casa, a principal locação. Com sua beleza pura e formal, situa-se como um mundo paralelo. Dentro de seus muros, que contêm as dinâmicas complexas de uma família, definem-se as relações com o mundo exterior. Embora esteja situada bem ao centro de Milão, faz – devido, por exemplo, a seus opulentos jardins – com que nos sintamos isolados. Serve de fortaleza para a família, mas também de prisão.

É uma casa particular?
Foi uma casa particular, que se transformou numa fundação que se ocupa de casas-museu na Itália, chamada Villa Necchi Campiglio. Quando a vimos pela primeira vez, estava vazia e em processo de restauração. Foi construída nos anos 1930 e se trata de um exemplo de arquitetura racionalista, então muito valorizado na Itália. Durante algum tempo, a casa manteve o que Piero Portaluppi, o arquiteto, originalmente projetara e desejara. Depois de alguns anos, os donos começaram a achá-la muito fria, muito austera, e chamaram um decorador importante nos ano 1950, Tommaso Buzzi, que possuía um estilo muito ornamental e que nada tinha a ver com a arquitetura original, o que resultou numa mistura de estilos muito esquisita. O desafio de meu trabalho foi, em primeiro lugar, mexer na decoração para que pudéssemos sentir a beleza fundamental do edifício, ocultando ou removendo muitos dos elementos adicionados pela intervenção posterior. Assim, permitimos que a elegância dos espaços e a riqueza dos materiais respirassem e se impusessem. Em segundo lugar – possivelmente, o maior desafio –, nos dedicamos a fazer com que os espaços grandiosos e minimalistas tivessem vida.

Através de minha pesquisa, estudei alguns exemplos de casas art déco para ter noção de como os interiores poderiam ser organizados de modo a que parecessem contemporâneos, já que o filme se passa em 2001. Logo percebi que todos os objetos, móveis e quadros escolhidos tinham de “pertencer” ao espaço e aos personagens que ali viviam. Por exemplo, tudo o que pertenceria a Emma seria extremamente feminino e delicado. Inspirei-me muito na obra de Anna Asp, na forma como define, em ambas as casas, os espaços internos em O Sacrifício (A. Tarkovski) e em Fanny e Alexander (I. Bergman), e também em Being There, de Hal Ashby.

De fato, o minimalismo da casa traz muita força à história…
O minimalismo nos interiores e a maneira como foram filmados esses espaços (os ângulos e os framings) fazem com que os personagens fiquem muito “pequenos” em comparação aos ambientes; ou seja, a casa é o símbolo de algo que os representa, mas, dentro desse set em que a família vive, há muitas áreas “vazias”, cujo ego de um pai e marido despótico não consegue preencher suficientemente. Emma anda por esses vãos, perdida, e parece estar em outro lugar, pois sente este vazio. Os filhos entram e saem da casa como se já não pertencessem ao lugar. Então, se de um lado foi importante dar vida à residência, para que o espectador acreditasse mesmo tratar-se de uma casa de uma família contemporânea, de outro, tivemos de calcular, de medir mesmo, para que se mantivesse o equilíbrio deste vazio, que reflete a melancolia de Emma.

Os figurinos também têm um peso crucial para a personagem de Tilda Swinton.
O estilo “Jil Sander” foi um acerto para os figurinos dela. Essa linha minimal, que desenha o corpo, sempre muito simples, muito austera, quase como uma freira, segura-a, controla-a. Afinal, não é uma mulher exuberante. As cores das roupas são bem fortes, como laranja e fúcsia, e servem para destacá-la do resto do mundo e das pessoas do filme. Nos frames em que aparece, você sempre a lê muito claramente. Ela pode estar andando na cidade ou no meio da multidão, e estará sempre em destaque. O corpo e o jeito de se movimentar da Tilda também colaboraram muito.

Conforme a história se desenrola, isso vai mudando…
Ela vai ficando mais livre; libertando-se dessa forma que a contém. No começo do filme, está em casa, sempre muito formal, muito dura. Quando, porém, mergulha na história de amor, de paixão e de liberdade sexual, transforma-se em outra pessoa, totalmente aberta, até chegar ao final, em que tudo se rompe e ela surge de preto.

O título do filme se dá por conta da personagem de Emma, que concentra todos os tipos de amor, de mãe, de esposa e de amante?
Não sei se você percebeu, mas há uma cena em que assiste, no quarto, com o marido, à parte de Philadelphia em que a Maria Callas canta um trecho da Tosca, “Io sonno l’amore”. O diretor é totalmente fanático por esse filme e pelo diretor Jonathan Demme. Ele quis fazer uma homenagem.

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Lego >> Louisiana

por Maru Scatamacchia Widden

Meu caso de amor com a Escandinávia começou em 1989, quando viajei em família para Dinamarca, Noruega e Suécia. A única lembrança forte que tenho dessas férias, contudo, é a de ter conhecido a Legolândia – uma cidade dinamarquesa feita inteirinha de… Lego! Jamais me esqueci deste dia. Para uma menina então com oito anos foi quase um sonho, e eu não podia acreditar que aquela mini-cidade-de-lego fosse de verdade. No último Natal, meu marido me deu uma viagem para a Dinamarca, e achei que quisesse me surpreender com uma nova visita à Legolândia. Afinal, ele sabia que essa memória de infância ainda me fascinava. Mas este não foi bem o presente, e confesso que, de início, fiquei muito decepcionada. Meu marido tentou me explicar calmamente, como um bom sueco, que iria me levar a conhecer o Louisiana, e que esta seria uma experiência surpreendente.

Tenho de admitir que estava certo. A visita superou minha viva recordação da Legolândia e me deixou em estado de êxtase, como se ainda fosse aquela criança.

O Museu de Arte Moderna e Contemporânea Louisiana fica 35 quilômetros ao norte de Copenhague, numa pequena cidade da costa chamada Humlebæk, e é um dos mais visitados do mundo. Seu nome foi dado pelo primeiro proprietário da estância, Alexander Brun, que teve três esposas chamadas Louise e as quis homenagear. Foi apenas em 1958, no entanto, por iniciativa do terceiro dono, Knud W. Jensen, herdeiro de uma das famílias mais ricas da Dinamarca, que a propriedade transformou-se em museu. Knud era um grande colecionador de arte e investiu boa parte de sua gorda poupança na idealização do Louisiana. Seu maior desejo era modificar a maneira como os escandinavos enxergavam a arte e a própria instituição “museu”. Queria, em suma, proporcionar ao espectador a sensação de estar em casa.

Para que fosse possível abrigar sua vasta coleção, Knud teve de expandir a sede da estância. Contratou, então, uma dupla de arquitetos modernos dinamarqueses, Vilhem Wohlert e Jorgen Bo, que passaram alguns meses estudando atentamente a área da propriedade e criando um projeto capaz de relacionar intensamente arte, arquitetura e natureza. O propósito era o de que se pudesse contemplar o museu como um todo: paredes, corredores, pinturas, esculturas, natureza e a vista do mar. O resultado foi despretensioso e magnífico. O visitante podia, por exemplo, observar uma escultura de Giacometti numa sala com janela de mais de cinco metros de altura e assim ainda avistar, ao fundo, um dos lagos da propriedade. Este foi, aliás, um dos pontos altos de meu passeio.

Os arquitetos foram fiéis ao desejo de Knud de estimular sentimentos de aconchego e tranquilidade – algo que se pode resumir na famosa expressão francesa “joie de vivre”. Foi o primeiro museu da Escandinávia a ter uma cafeteria, flores frescas e materiais de acabamento simples em vez de mármore, pilares e os jardins de palmeiras tão comuns nas instituições culturais nórdicas da época. Wolhert e Bo cuidaram de todas as expansões pelas quais o Louisiana passaria nos 33 anos seguintes e jamais permitiram que o projeto perdesse o ar convidativo.

Apesar de sua inauguração coincidir com um período muito próspero da Dinamarca, os anos 1960 do século XX, o modelo proposto pelo Louisiana causou controvérsia. Muitos achavam absurdo não se obedecer ali as regras de etiqueta então universalmente impostas aos visitantes de museus e válidas ainda hoje em algumas instituições. Era permitido, por exemplo, fumar dentro das salas de exposição e não havia sinais de silêncio ou pedindo para que não se encostasse nas obras.

Knud introduziu um conceito inovador e mudou a maneira como os escandinavos enxergavam a arte. Foi muito questionado por isso. Alguns chegaram até a chamar o Louisiana de “Circosiana”, pois, para enrijecidos críticos, estava mais para um circo do que para uma instituição séria. Segundo os mesmos detratores, cercado pela impressionante beleza natural da propriedade, seria impossível alguém se concentrar em arte naquele museu.

Aos poucos, porém, Louisiana conquistou e multiplicou admiradores: aqueles que entenderam o quão única era a experiência de passar uma tarde em meio a tantas coisas belas; aqueles que experimentaram as sensações de liberdade e felicidade decorrentes da interação entre arte e natureza. A fadiga, algo comum após longa visita a um museu sem janelas e sem vista (imagine-se no Louvre numa tarde de sábado), não tinha vez no Louisiana.

Para preencher as salas do museu e complementar sua coleção, Knud pediu obras de colecionadores privados e da Fundação Carlsberg – atualmente transformada no Museu Ny Carlsberg Glyptotek, em Copenhague. Originalmente, o acervo do Louisiana consistia apenas numa coleção de arte moderna dinamarquesa, da qual pretendia ser uma espécie de “santuário” e por meio da qual Knud queria declarar seu amor pela cultura do país. Alguns poucos entusiastas, contudo, questionaram por que uma estrutura tão vanguardista abrigava pinturas nem tão modernas, o que trouxe à tona o grande vazio que o Louisiana ainda não era capaz de preencher: não havia grande acesso à arte moderna e contemporânea internacional; para muitos, um grande buraco cultural na Dinamarca.

Como um bom empreendedor, Knud entendeu a necessidade de expandir o horizonte de sua disposição inicial e – apenas um ano após a inauguração do Louisiana – viajou para a Alemanha, onde teve contato com a produção de novos artistas, como de Kooning, Kline, Rothko, Vasarely, e também com a dos já muito bem conhecidos Picasso, Calder e Henry Moore. Ele admitiu que estava errado em relação ao acervo de seu museu e principalmente a respeito de seu significado para a Dinamarca. O conteúdo do Louisiana estava enraizado na tradição do país e, erradamente, não se abria à arte revolucionária internacional. Para modernizar a coleção, portanto, resolveu trazer algumas exibições contemporâneas internacionais e assim construir – lentamente e a partir dos artistas participantes da Documenta de 1959, da Vitality in Art de 1960 e do Movement in Art de 1961 – um novo acervo, aos poucos transformando o museu num centro de arte moderna e contemporânea. Hoje, a coleção contém mais de três mil obras, muitas de peso e importância internacional, e inclui nomes como Picasso, Dubuffet, Rauschenberg, Calder, Vasarely, Philip Guston, Miró, Jorn, Polke, Kiefer e Per Kirkeby.

Ao longo das décadas, a curadoria do museu tentou preencher todas as lacunas possíveis geradas pelos novos movimentos artísticos e foi capaz de construir uma coleção que abrange o novo realismo europeu, com Yves Klein, a pop art americana, com Warhol e Lichtenstein, e a arte alemã dos anos 1980, com Kiefer e Baselitz, além de algumas importantes vídeo-instalações dos anos 1990, com trabalhos de Bill Viola e Paul Mccarthy. Mais recentemente a instituição adquiriu obras de Louise Bourgeois, Philip Guston, David Hockney, Doug Aitken, Thomas Demand e Jonathan Meese, entre outros.

O Louisiana é um dos poucos lugares verdadeiramente especiais do mundo, e até hoje transpira uma atmosfera de conforto e aconchego. Entre passeios por seu extenso parque, repleto de esculturas, chás na cafeteria com vista para o mar, corredores envidraçados e obras de arte, oito horas de meu dia se passaram sem que eu percebesse que já era tempo de voltar a Copenhague. E não estava nem um pouco cansada…

#8AmorArtigo

Amizade como forma de Amor

por Carmen Maria Gameiro

Pintura de Gabriela Machado

Aquele que conhece outros é sábio.
Aquele que conhece a si mesmo é um iluminado.
– Lao-Tsé

Está no coração o desejo de amar na forma filos. Porém, se na memória a dor estiver viva, o medo impedirá a entrega ao amor. Através da experiência profissional, o terapeuta Lowen comprovou que a maior dificuldade para as pessoas se abrirem ao amor é o sentimento de culpa e seu decorrente estado de tensão. Os infelizes têm o coração fechado, inacessível ao outro.

Amar é quando o coração se abre por completo. Do fenômeno em que o coração é tocado pode acontecer o amor à primeira vista. A excitação por um olhar, um aperto de mão ou um beijo envia uma onda de calor ao corpo todo, e essa sensação cria o desejo de ficar tão perto quanto possível do ser amado. O contato físico aumenta a excitação e há uma descarga da tensão criada pelo desejo. Lowen defende a tese de que só a aceitação sem culpa ou julgamento é capaz de nos abrir ao amor filos.

Há pessoas que nutrem o tabu de não manter contato sexual com a pessoa amada. Esse tabu, segundo Lowen, advém de experiências de infância, do período edipiano, e tem como efeito a separação da personalidade: a distinção entre o amor no coração e o desejo sexual no aparelho genital – o que bloqueia a satisfação amorosa. Muitas pessoas infelizes jamais têm contato com a sensação e o desejo de amar ao mesmo tempo.

Diz o mito – relatado por Aristófanes em O banquete de Platão – que, no início, os seres eram duplos e esféricos, e os sexos, três: um, constituído por duas metades masculinas; outro, por duas metades femininas; e o terceiro, andrógino, metade masculino, metade feminino. Zeus cortou-os em dois para enfraquecê-los. Cada um tornou-se então um ser fendido, e o amor recíproco se originaria da tentativa de restauração da unidade primitiva. Muitos chamam esta busca de encontro da alma gêmea.

Os seres iniciais, no mito, não eram apenas bissexuais. Na sociedade helênica, era valorizada a amizade homossexual, sobretudo a masculina, como forma possível desse encontro. Hoje, porém, ainda há sociedades que não admitem a amizade, o carinho e o contato físico entre as pessoas do mesmo sexo. Em outras, não há qualquer possibilidade de amizade entre pessoas de sexos diferentes. Tudo é apenas uma questão antropológica e moral. O significado mais aceito sobre o mito é o do anseio do ser humano por uma totalidade do ser, um completar-se que representa o processo de aperfeiçoamento do próprio eu.

Uma pessoa com alma generosa se relaciona num contexto filos, amor ou amigo-amante, e busca qualificar a vida numa completude, contrariando a forma do amor eros, que projeta a masculinidade ou feminilidade no outro. Neste, ama-se a pessoa porque tem algo que não se tem. É ciumento, mesquinho e invejoso. A busca pelo bem e pelo belo leva o ser humano a desejar a felicidade, numa procura incessante por se apaixonar. Não se apaixona pela pessoa ou por tudo que representa, mas por uma representação interna da pura beleza, segundo Platão.

O amante filos sabe separar-se do ser amado. Vê o outro. Sua atenção está na pessoa amada. Seu relacionamento amoroso é material, ou seja, o outro existe, está aqui ao meu lado. É muito confundido, erroneamente, com um amor espiritual ou idealizado, também chamado de amor platônico. No amor eros, por sua vez, a atenção está no eu, no ego. O outro é coisificado e serve para completar e satisfazer necessidades. É egoísta.

O casamento necessita ser reestruturado. Os pares devem se perguntar: o que busco neste relacionamento? A resposta influenciará no contato amoroso com os filhos. As dúvidas e as controvérsias sobre a sexualidade devem ser amplamente discutidas entre pai, mãe e filhos, pois há um desnorteamento quanto à educação sexual, os limites e responsabilidades de cada um na educação.

Quanto aos jovens, há sinais de que não estão tão livres como pensam. Não apreenderam, não viram, não vivenciaram relacionamentos familiares maduros e amorosos. Muitos pais não exercitaram o amor filos. Desta forma, dificilmente a família poderá sobreviver, e a consequência será o vazio existencial, não raro o grande uso de drogas – legais e ilegais – que simulam a sensação de liberdade e de transgressão às normas. Contudo, a dita educação moderna sinaliza para a necessidade de uma progressiva libertação amorosa individual dentro da vida conjugal e familiar. Nem a fórmula antiga de relacionamento deu certo, muito menos a contemporânea. As mudanças e as implicações sociais são imprevisíveis.

Para uma existência feliz há de se ter coragem para as amizades verdadeiras. Filos prioriza a qualidade e não a quantidade dos amigos. É um sinal de maturidade. Olhar nos olhos e começar um relacionamento amistoso consigo antes de encarar o outro face a face.

A amizade verdadeira é uma grande mestra. Quando o coração e a mente estão abertos, a aprendizagem flui numa relação dialética, como Apolo, o deus grego, que tem por característica a harmonia resultante da tensão entre contrários. Sócrates, ao buscar respostas no oráculo em Delfos, viu escrito no portal: conhece-te a ti mesmo. Tornou essa sua meta.

É político o relacionamento filos, que nasceu na polis, precisamente no Ágora, lugar democrático onde se dialogava sobre a vida pública em Atenas. É uma noção plural. Agita e provoca mudança social. Tem a capacidade de transfundir as estruturas que sustentam o ser isolado.

A dificuldade encontrada por alguns em manter um relacionamento filos é a própria dificuldade de se relacionar com o próprio self. A amizade é um bom e poderoso motivo para criar vínculos numa estrutura social geradora de inimigos. Se as pessoas fossem mais generosas, relacionar-se-iam de forma a superar idades, gêneros, preferências sexuais e obstáculos legais e culturais.

O instinto sexual comprova o empenho da vontade ou do amor erótico para perpetuar a espécie. O amor, nesse sentido, é ilusão, visto que nele, ao conquistar o outro, cada indivíduo pensa em levar vantagens. Na verdade, apenas realiza um trabalho gratuito em favor da reprodutividade ou do desejo. Presume seguir interesses pessoais, mas segue os da espécie, na maioria das vezes sem se saber a serviço.

Com quem fazer projetos de vida se não com amigos? Quando pequenas ou grandes perdas rompem o dia a dia, nada melhor que um amigo a quem pedir o ombro ou o colo.

Felizmente, a amizade encontra vias de expressão na literatura universal, nos livros sagrados, nas belas artes, no atletismo, na culinária e no design. Está intrinsicamente ligada ao bem, ao bom e ao belo.

A amizade mais profunda é entre Gaia (a terra) e a humanidade. Através desta ecologia, entra-se em contato com o todo. É o centro da relação com o mundo descoisificado, que provoca a consciência da existência e da vida no universo.

Filos nos faz ver a luz da verdade. É um caminho para se sair da ignorância. Não abarca para si toda a verdade, mas a possibilidade de amar o conhecimento. Daí nasce o filosofar.