Esta revista é um dispositivo de projeção futurista e que deve ser utilizado como passaporte para a sua viagem. Abra. Leia. Vá e volte. Leia de novo. Rabisque. Olhe. Sinta. Quando sentir o chamado, embarque. E então, imagine.

Todos aqueles que vivem têm capacidade imaginativa. Na Bíblia, livro religioso, mas que aqui será discutido enquanto material histórico, lemos uma passagem em que Jesus Cristo diz: “Portanto, Eu lhes digo: tudo o que vocês pedirem em oração, creiam que já o receberam, e assim lhes sucederá” (São Marcos 11,24). A esse movimento circular de pedir, crer e receber chamaremos pulsão imaginativa — pulsão esta reconhecida pelo maior profeta da humanidade. 

Nos primórdios de nossa história, quando o sol beijava a terra diariamente e as estrelas iluminavam a escuridão noturna, surgiu a necessidade humana de medir o tempo. As pessoas observavam o movimento celeste, a alternância das estações, e buscavam formas de compreender e organizar o fluxo do universo. Assim, foram inventados os primeiros rudimentos de medida de tempo. As sombras projetadas pelos objetos, os relógios solares e os marcadores naturais, como as flores desabrochando e as folhas caindo, foram recursos utilizados para marcar o avançar das horas e dos dias. Com o passar do tempo e dos mergulhos imaginativos, surgiu o conceito de horas divididas em partes menores. Foram criados relógios mecânicos, relógios de areia, ampulhetas e outros feitos engenhosos para medir o tempo de maneira mais precisa. O ser humano imaginou o tempo e a sua medida.

O ser humano também imaginou a escrita. A criou enquanto estratégia de comunicação e transmutou da mente para uma plataforma física a sua permanência no tempo e no espaço. Assim, da pele da cobra, do cordeiro ou da ovelha se fizeram pergaminhos. Do ato de olhar algum destes animais e imaginar a escrita, se fez a construção física. Da observação de plantas aquáticas no Egito se imaginou o que conhecemos como papiro. A ação de escrever foi precedida pela imaginação da escrita. A imaginação por vezes é multifatorial. 

Há milênios, a invenção de navios e embarcações marcou um ponto crucial na história humana. A criação de poderosas estruturas flutuantes abriu caminho para a exploração dos vastos oceanos, conectando pessoas, culturas e continentes distantes. A partir do século XV, uma nova era marítima começou, com as ditas Grandes Navegações. Os navios tornaram-se mais resistentes, rápidos e capazes de enfrentar os desafios impostos pelos oceanos turbulentos. Caravelas, galeões e navios a vapor possibilitaram a descoberta de novos continentes e a criação de impérios coloniais. A invenção dos navios e de embarcações modificou a forma como nos relacionamos com o mundo e também as relações humanas, de consumo e de poder. A imaginação é capaz disso.

Há de se assentir que a presença da imaginação é forte em nossa história. Antes de executar diferentes feitos que deram o tom de eras, fatos e movimentos históricos, o ser humano ousou imaginar. Porém, a possibilidade de transformar a imaginação em ação não é e não foi distribuída de forma igualitária entre as pessoas. As ideias sempre foram livres; alguns seres humanos, não.

Jesus Cristo, nascido na região da Galileia, foi um dos homens mais importantes da história da humanidade. Embora sua representação visual ao longo dos séculos tenha sido predominantemente branca, existe uma importante e significativa discussão sobre a possibilidade de Jesus ter sido negro. Essa perspectiva desafia a narrativa tradicional e radicaliza um dos principais paradigmas das sociedades modernas: aquele que foi um dos primeiros a estimular a radicalização da imaginação como potência propositiva pode ter sido um homem negro.

Já a escrita, uma das invenções mais significativas da humanidade, tem raízes profundas, que remontam a tempos antigos na África. Na região do Egito Antigo, por volta de 3200 a.C., surgiu uma das primeiras formas de escrita conhecida, chamada hieróglifos. Esses símbolos complexos foram utilizados ​​para registrar a história, a cultura e os conhecimentos da época. Além do Egito, outras culturas africanas também desenvolveram sistemas complexos de escrita. Na antiga Núbia, por exemplo, surgiu a escrita meroítica, por volta do século III a.C., que era utilizada pelos reis e governantes. A escrita ge’ez, originária da Etiópia, é outra forma de escrita africana, tendo sido utilizada para registrar textos religiosos e literários.

A escrita africana não apenas registrou eventos históricos, mas também expressou conhecimentos científicos, filosóficos e culturais. Ela desempenhou papel vital na preservação e transmissão de tradições orais, além de permitir o desenvolvimento de sistemas de governo, leis e documentos legais. Esses sistemas de escrita africana são testemunhos da criatividade e da habilidade intelectual das civilizações africanas. Civilizações negras. Eles desafiam uma narrativa eurocêntrica que tende a negligenciar as contribuições do continente africano para o desenvolvimento humano. Esse esforço imaginativo que revolucionou o mundo é, também, negro.

As embarcações e navios, também fruto da imaginação humana e celebrados enquanto ferramenta de desbravamento, foram instrumentos de subjugação e racismo. As embarcações que foram utilizadas como navios negreiros durante a era da escravidão representam um dos capítulos mais sombrios e cruéis da história da humanidade. Esses navios eram instrumentos de opressão e deterioração, utilizados ​​para transportar milhões de homens, mulheres e crianças africanas em condições desumanas. As Grandes Navegações são frequentemente celebradas como marcos da exploração e da descoberta, mas também devem ser conduzidas criticamente. Sob o pretexto da busca por riquezas e da expansão territorial, essas expedições europeias resultaram em invasões violentas, exploração desenfreada e devastação de culturas e vidas indígenas e africanas.

A escravidão da população africana foi um crime contra a humanidade, uma violação brutal dos direitos fundamentais e uma manifestação do racismo e da supremacia branca em esfera global. Os navios negreiros eram os símbolos móveis desse sistema desumano, que roubava vidas, direitos e liberdade.

A imaginação radical, em sua essência, refere-se à habilidade de pensar o mundo, a vida e as instituições sociais não conforme são, mas de acordo com as possibilidades de como poderiam ser. Para exercê-la, é necessário coragem. É preciso um olhar ousado e audacioso para transmutar a realidade e inspirar ações concretas.

Imaginar radicalmente também tem a ver com reescrever o passado. Tem a ver com sankofa. Sankofa é um conceito poderoso, que tem suas raízes na cultura akan, da África Ocidental. Ele expressa a ideia de olhar para trás, voltar ao passado, para avançar e crescer no presente e no futuro. Sankofa nos lembra da importância de reconhecer e respeitar nossas origens, tradições e experiências passadas enquanto buscamos inovar e reinventar.

Reinventar o passado envolve a imaginação e a criatividade, pois exige que pensemos de forma inovadora sobre como podemos utilizar as histórias e as experiências anteriores para informar nossas ações no presente. Podemos buscar alternativas e soluções que não foram consideradas anteriormente, incorporando sabedoria ancestral e trazendo novas perspectivas. Ao reinventar o passado, abrimos caminho para a ressignificação de narrativas e a promoção de mudanças positivas. Podemos questionar narrativas dominantes e ampliar vozes historicamente silenciadas e marginalizadas. 

É importante perceber que reinventar o tempo passado não é tarefa individual, é esforço coletivo. É através do compartilhamento de conhecimentos e experiências que podemos reunir as peças do passado de forma significativa, criando uma narrativa que orienta nosso presente e nos inspira a construir um futuro pleno de direitos. As populações negras e indígenas são um chamado à imaginação radical, assim como as favelas, as periferias e os movimentos sociais o são. Nas margens se criam espaços imaginativos que subvertem as lógicas coloniais. Das vozes historicamente silenciadas emergem as possibilidades mais radicais de imaginação e existência. Antes da ação há a imaginação. Antes da execução do racismo enquanto modelo de sociedade, essa forma de se posicionar no mundo foi elaborada mentalmente por pessoas brancas. Do outro lado, a imaginação negra, muitas vezes enclausurada em senzalas, prisões, camburões ou manicômios, inventou formas outras de ser e estar — formas que apresentam ao mundo uma caminhada pautada em valores civilizatórios de circularidade e escuta. Pautar potência em meio à escassez é ser radical.

Que a imaginação radical seja nossa bússola, nos levando por caminhos menos óbvios e mais justos, revelando belezas ocultas e histórias soterradas e, finalmente, nos conduzindo à plenitude de ser quem somos.

Naná Vasconcelos diz que o afrofuturismo é a liberdade da expressão dos músicos alternativos, que não têm compromisso com a mesmice: 

(…) Às vezes, as pessoas pensam que eu estou em um mundo totalmente diferente. Não, eu sou um músico aberto a tudo. Essa música não tem compromisso com nada, é liberdade total e eu gosto de fazer parte disso. (…) Essa ideia de futurismo, a gente vai lá procurar, porque o que a gente já sabe, a gente já sabe. Porque a gente está procurando tocar o que a gente não sabe. (…) Meus elementos são muito percussivos, meu trabalho está muito dentro do afro, sabe? Minha cabeça está muito no futuro. 

Então, Naná nos brinda com sua risada, quase encantada.

O afrofuturismo é um movimento estético-político que trata de ficções especulativas, imagens tecnológicas, visões de futuro, assim como revisões históricas. São criações de pessoas afro-diaspóricas e africanas, cujas referências estão em cosmologias negras. As narrativas afrofuturistas são ferramentas críticas à hegemonia cultural eurocêntrica e produzem imaginários em que indivíduos negros são agentes centrais da construção de mundos, ideias, ciência, história, teorias, técnicas e tecnologias. Esse exercício faz parte do trabalho de resgate das memórias culturais, históricas e políticas negras que contemplam as existências e subjetividades dessas populações e indivíduos. Um trabalho arqueológico para a construção de futuros.

A música afrofuturista tem como primeiras sugestões do que representaria seu imaginário sonoro as músicas de Jimi Hendrix, Herbie Hancock, Lee “Scratch” Perry, George Clinton, com seus grupos Funkadelic eThe Parliaments, e Sun Ra. As sonoridades propostas por esses artistas norteiam as compreensões de tecnologia e ficção em um primeiro momento.

Sun Ra, George Clinton e Lee “Scratch” Perry são reconhecidos como “fundadores” do som afrofuturista. Os três têm em comum a criação de mitologias próprias, de performances marcantes, e o uso de figurinos em contextos musicais diferentes, como o reggae, o jazz e o funk norte-americano. Ra com sua Arkestra, Perry com as suas produções no estúdio Black Ark, que produziu os grandes nomes do reggae nos anos 60 e 70, e Clinton construíram universos estéticos únicos, explorando as possibilidades de produção e gravação de som na elaboração conceitual de seus discos e performance. Através das capas dos álbuns, dos figurinos e das sonoridades, eles trazem imaginários cósmicos, dimensões espirituais, criando uma experiência multissensorial, de onde emergem ambientes futuristas que, em comum, tratam da marginalização da cultura negra, utilizando metáforas espaciais e alienígenas. 

Sun Ra provavelmente é o artista que melhor exemplifica essa construção conceitual. Ele criou um arcabouço de ideias que conectam mitologia Kemet, cosmos, questões sociopolíticas negras, tecnologia, som, poesia e dança ― sua mitologia científica.

Em sua proposição de música, Ra busca nos familiarizar com culturas de outros planetas, suas danças e músicas não usuais. Suas inspirações são as forças da natureza, os deuses místicos ― todos músicos, independente de gênero musical. Ele comenta sobre duas composições: 

Retrospect não é sobre memória, é só sobre pensar em algo, no futuro, no passado, no presente, sobre algo que é totalmente impossível. Esse tipo de música apenas se alcança com as potências da humanidade, as potências de coisas eternas. (…) Sobre a música Face the Music, considero que a música é a verdade. O que estou dizendo é para encarar a verdade. Então é isso que este planeta tem que fazer agora. Temos que nos que ajustar a outra forma de pensar e ser.

O que o Sun Ra cria em sua mitologia o crítico cultural Kodwo Eshun chama de ficção sônica. O conceito ressalta as experiências sonoras e sensoriais da produção sonora afro-diaspórica. Em seu ensaio sobre visões da música do futuro, são abordados o jazz eletrônico, o dub jamaicano, o techno, o hip-hop, o jungle e o drum n’bass, e o nexo é recorrer a som e ficção científica para abordar essas culturas e técnicas. 

A ficção sônica consiste em pequenas notas, aforismos, anotações, samples, gestos performativos, design da capa de um álbum, figurinos e criação de novos instrumentos ou softwares pelos artistas. O conceito representa historicamente a mistura de sentidos, práticas, sensibilidades e técnicas. Ainda se ressalta esses criadores como “pensadores sonoros”, engenheiros conceituais, colocando os artistas como figuras fundamentais na própria concepção do que é a música e quais são seus fundamentos teóricos.

O compositor George Lewis faz uma provocação que abre caminho para outras possibilidades de pensamento acerca do som afrofuturista. A questão é: o que o som, sem as fantasias e os títulos sugestivos, pode nos dizer sobre o afrofuturismo? Ele aponta a tríade raça, som e tecnologia para buscar respostas. Diante disso, temos a oralidade como tecnologia de manutenção e de transmissão da memória. Ou seja, através da oralidade, essas práticas sociais sonoras negras se mantêm e seguem suas transformações durante a história. 

Com o surgimento do fonógrafo, na virada do século XX, os discos criam uma nova dimensão da oralidade e da disseminação dos sons entre as diásporas. Consequentemente, as tecnologias atuais de gravação e reprodução sonora influenciam a produção, a disseminação musical e as novas técnicas e linguagens sonoras.

Lewis tem um extenso trabalho, desde 1980, elaborando sistemas interativos eletrônicos com a premissa de ensinar computadores a improvisar, como no álbum Voyager. O compositor, em sua provocação, apresenta alguns nomes que comumente não são relacionados ao afrofuturismo, como a compositora Pamela Z, que desenvolve dispositivos eletrônicos para suas criações que permitem manipular em tempo real sua voz, criando múltiplas camadas sonoras, e o egípcio Halim El-Dabh, que, em 1944, compôs The Expression of Zaar ao registrar o ritual Zaar, uma manifestação religiosa que acontece nas ruas do Cairo, e posteriormente manipular as gravações com equipamentos do estúdio da rádio da cidade, usando câmeras de eco, filtros e todos os recursos que ele tinha à disposição para criar uma ambiência fantasmagórica, dentro de uma estética que se estabeleceria, a partir de 1948, como a música concreta, umas das linguagens musicais da vanguarda europeia.

Para inserir o Brasil dentro desse pensamento, gostaria de trazer o raciocínio do maestro Letieres Leite, que afirmava que as claves rítmicas, pequenos ritmos ou toques, são como um chip de computador, pois contêm a identificação étnica, geográfica e o deslocamento do grupo na diáspora. São tecnologias sociais e sonoras presentes na música brasileira. Um exemplo é o toque ijexá, cuja origem “é o etnônimo Ijèsà, subdivisão da etnia iorubá, que tem por capital a cidade nigeriana de Ilésà e cujo ancestral é Óbokún”, segundo a Enciclopédia brasileira da diáspora africana. A partir dessa organização temporal que as claves estabelecem, as músicas se estruturam, entidades dançam e o ritmo do trabalho é marcado. 

Casos como os toques de lundu, jongo, maculelê e capoeira representam tecnologias sonoras afro-brasileiras cuja continuidade marcam as sonoridades da música contemporânea brasileira através de suas organizações rítmicas e timbrísticas. Seria uma espécie de sankofa sonora, com sons que atravessam todo o arco da história, se desdobrando no tempo. 

Outra dimensão dessas tecnologias sonoras é o caráter de subversão, como o prato e a faca, símbolo colonial que então se torna um instrumento percussivo, sensível e de uma riqueza de som que marca essa capacidade de invenção, de ressignificação de instrumentos e suas possibilidades sonoras. O caráter de invenção é recorrente na diáspora, como o surdo, com o couro ancorado na lata de manteiga por Alcebíades Barcelos, o Bidi, um dos fundadores da primeira escola de samba no Brasil, a Deixa Falar, no Estácio, no Rio de Janeiro, em 1928. 

Tal fato é um marco para a música negra no século XX. O efeito dessa criação e de toda a sua história, a partir da década de 30 até chegar em 1997, com a paradinha funk do Mestre Jorjão à frente da bateria da escola de samba Viradouro, é o de conectar passado, presente e futuro, unindo as diversas veias dessas tradições e apresentando um viés experimental. Da mesma forma, o funk incorpora as sonoridades anteriores ao inserir samples de berimbau, conga e atabaque nas batidas de volt mix, emergindo os padrões do tamborzão e suas sínteses vocais com o beatbox.

A massificação das tecnologias digitais, como os softwares de edição áudio, é fundamental para as músicas negras e suas técnicas de criação. Daí surgem as novas linguagens, como o funk 150BPM, que funde a experiência entre a manipulação de ritmo e som a partir de uma garrafa pet para esculpir a batida Coca-Cola do Dj Polivox. Os procedimentos técnicos aplicados são similares ao que Halim El-Dabh realizou nos anos 40, compartilhando fundamentos da música eletrônica, como o corte e a filtragem para gerar novos sons.

Diante desse panorama, o som afrofuturista e a ficção sônica são lentes que permitem observar as conexões dos elementos sonoros negros aos contextos históricos, políticos e sociais globais e locais e suas transformações ao longo do tempo. São perspectivas que contam as histórias das diásporas negras, revelando misturas, ressignificações e invenções, expondo uma lógica do fazer musical, em que a interação, a improvisação, o groove, o corpo, o suingue, a comunicação, a mistura, a multissensorialidade e a experimentação na construção de uma identidade sonora são motores de sua continuidade no tempo e de especulações sobre o futuro através das vibrações.


(Esse texto é o resumo da transcrição da aula apresentada para o evento Dundun Sintético organizado pela BSAM Brasil.)

“O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?”. Lembrei dessa frase do Eduardo Galeano, em As veias abertas da América Latina (1971), quando começava a escrever este texto, o que me fez ter a ideia de parafrasear para vocês: “O passado do Norte é mudo? Ou o restante do Brasil continua sendo surdo?”. Pensem aí, enquanto inicio o desafio de pontuar a importância de consumir obras escritas por autores e autoras nortistas e de convidar ao exercício de pensar a região Norte através dessas produções. Produções não só no mundo da literatura, mas de pesquisadores, comunicadores e produtores de conteúdo e de gente que produz arte no geral, ou seja, a atividade de dar protagonismo aos seus, aos da terra. 

Antes de começarmos, tenhamos uma brevíssima reflexão sobre uma parte da história do Brasil, da Amazônia! A história de um povo com “sangue cabano e alma de rio”.

Em Amazônia: colônia do Brasil, a pesquisadora Violeta Loureiro escreve de forma clara como a Amazônia Legal, especialmente os estados que fazem parte da região Norte, foi construída, e como as visões sobre o território amazônico se estenderam por todo o país. Esse imaginário de indiferença, de que somos subdesenvolvidos, é uma herança do pensamento colonial sobre a população amazônida ― o que alerta o quanto precisamos subverter esses pensamentos, que persistem ainda nos dias de hoje. 

A resistência do povo do Norte aparece em vários períodos históricos, como no período de ameaças de bombardeios até a Província do Grão-Pará aderir à independência do Brasil, que exemplifica o protagonismo popular nortista através da “revolução social dos cabanos”, primeiro movimento a chegar ao poder liderado por indígenas, negros de origem africana e mestiços. A cabanagem foi um movimento que teve vários pontos em comum: a luta por direitos, por liberdade e principalmente pela construção do sentimento de identidade. Esses acontecimentos, e tantos outros, são poucos abordados nos livros de história do ensino básico, o que revela uma narrativa incompleta sobre o país. O quanto perdemos, como sociedade, quando não estudamos sobre essas populações que, assim como as outras, fazem parte da nossa história? Como coloca a historiadora Magda Ricci, esse acontecimento “ainda é analisado como mais um movimento regional, típico do período regencial do Império do Brasil”. A onda de novos pensadores e pesquisadores vem para reformular e problematizar a história não de uma região, mas de todo o país. 

Esse exercício de pensar de dentro para fora foi realizado pela antropóloga Neide Gondim ao escrever a obra A invenção da Amazônia. Nela, Gondim contextualiza como as representações europeias foram projetadas sobre a localidade que hoje conhecemos como Amazônia. Em meio a tantas guerras e sangue, ainda assim conseguimos assegurar a economia do país.

Caro leitor, cara leitora, o que estou tentando dizer aqui, rapidamente, é que a invisibilidade do Norte, assim como a do Nordeste, foi construída, ao longo da história, por mãos que reproduziram concepções europeias sobre a cultura amazônica. Um viés estrangeiro. Faça você mesmo o teste: pegue caneta e papel e liste três coisas que vêm à cabeça quando você pensa na região Norte. Se você for de outra região do país, as respostas serão alinhadas com o senso comum.

Hoje os olhares estão para o Norte, a COP 30, que discute sobre as mudanças climáticas do planeta, será sediada em Belém, no Pará. É a primeira vez que o Brasil receberá o evento que reúne mais de 192 países. É a primeira vez que acontecerá na Amazônia! Comentários xenofóbicos surgirão até a chegada de 2025, afinal, onde já se viu um evento como esse não acontecer no Sul e Sudeste? Segundo as visões de fora, não temos aeroportos, hotéis, nem mobilidade urbana capaz de conduzir os senhores e as senhoritas a um evento internacional. É verdade que precisamos aprimorar alguns agentes para que consigamos comportar a COP, mas é um ato ignorante quando relegam a região Norte a um atraso. Falando de Belém, temos os maiores polos de pesquisas, como o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) e o Museu Emílio Goeldi (MPEG), tido como primeiro projeto nacional de estudo científico da Amazônia. Esses e outros campos de pesquisas já discutem há muitos anos o que é Amazônia. Só em 2025 o mundo terá a dimensão de como somos de fatos! Somos, sim, um povo da floresta e dos rios, mas também da cidade e em constante desenvolvimento. Nessa oportunidade de discutir a Amazônia na Amazônia é que precisamos consolidar mais ainda o que vem do Norte e desmistificar os “pré-conceitos”.

A questão é: todo mundo terá algo para falar sobre a Amazônia, sobre Belém ou sobre o Norte. E por que se faz tão necessário pensar a região a partir das produções nortistas? No início do texto, comentei sobre a invisibilidade que a história da região possui e o quanto ela foi escrita por mãos que não sabem fazer uma “boca de lobo” em uma rede. Portanto, para romper com estereótipos, nada mais coerente do que consumir conteúdos de comunicadores do Norte e literatura escrita por autores e autoras nortistas. Ler o Norte é também ler o Brasil! Somos interligados por rios; como Ailton Krenak bem falou, “o futuro é ancestral”. 

Os escritores Milton Hatoum, Márcio Souza e Dalcídio Jurandir talvez sejam os autores mais conhecidos quando falamos de literatura que traz o cenário amazônico nas páginas literárias. Flor de gume, ganhador do Prêmio Jabuti em 2021, da escritora paraense Monique Malcher, é um dos livros contemporâneos mais conhecidos, não só por ter sido premiado, mas pela genialidade com que a escritora escreveu os contos. Nesse caso, nem entrarei em questões de gênero, porém, aproveitando a concepção de “o outro do outro”, que Djamila Ribeiro discute em Lugar de fala, e transferindo para a literatura amazônica: se a literatura nortista é “o outro”, a escrita por mulheres nortistas é “o outro do outro”.

Dois irmãos, Mad Maria, Chove nos campos de Cachoeira e Flor de Gume são obras que apresentam quatro percepções da região, trazendo consigo a identidade, a cultura e a história de Manaus, Rondônia, Ilha do Marajó e Pará. É comum que os sujeitos coloquem esses lugares como se fossem um só bloco, e é isso que torna pertinente a leitura do Norte sob a perspectiva de quem as escreveu. Fica possível mapear suas singularidades e analisar minuciosamente o sentimento de pertencimento ali contido. 

Em Flor de gume, por exemplo, conseguimos navegar nas águas do rio Tapajós quando a autora traz a sua cidade natal, Santarém. A experiência de viajar em embarcações, a encantaria e as histórias amazônidas que são transmitidas oralmente de geração para geração. Se o futuro é ancestral, é porque ainda carregamos uma herança cultural que permeia nossa sociedade. Aquela que não conseguiram censurar ou matar. A Amazônia é agora!

Leia o Norte! Parece que digo o óbvio… Todavia, quantas obras escritas por autores nortistas tu já lestes? Ou quantos autores nortistas tu conheces sem os que mencionei aqui? A sensação que dá é que, para o restante do Brasil, o Norte é invisível. Por essa razão, nós, nortistas, lutamos incansavelmente nessa retomada do Brasil querer saber da gente. É a nossa chance de mostrar o protagonismo amazônico do passado e do agora. Sendo assim, se informar a partir das produções e de comunicadores nortistas ajuda a desconstruir e fazer as nossas vozes serem ouvidas. Vozes amazônidas, negras e indígenas. Gritos da gente do Norte, que não aguenta mais ser invisível, mesmo tendo um corpo que fala ― o mesmo corpo que tanto sangrou antes agora usa desse sangue como luta para conquistar aquilo que é seu de direito: a retomada da sua própria história!

A escrita deste texto parece individual, mas foi coletiva, porque, para que eu estivesse aqui, inquietando todos vocês, muitos outros estiveram comigo, aqueles que vieram antes de mim lutando por mais espaço e protagonismo. Espero que vocês leiam este texto mais como um grito de um povo que quer e precisa ser ouvido. 

Se eu coloquei aqui que “ler o Norte é ler o Brasil”, por que todos estão lendo só uma parte? Esta é a hora de sair do conforto e partir para cá! Espero que este texto, que se tornou um manifesto, faça atravessar as linhas que delimitam as nossas regiões. Linhas que se tornaram muros e agora estão sendo derrubadas! A redoma de vidro foi retirada! Leiam, ouçam e pesquisem o que o povo da Amazônia produz!

Tu já foste ler o Norte?

#45Imaginação RadicalCulturaLiteratura

Omi Soro: Águas falam

por Will Braga

Todos os factótuns temporais, sem exceção, ouçam! Isto não é um teste! Favor se dirigirem ao seu ponto de salto! O Alto Conselho requisitou intervenção imediata! Múltiplas anomalias foram detectadas no fluxo contínuo do espaço-tempo!”

— Qual aventura nos espera? Ainda não fomos devidamente apresentados!

— Sou Ta’ziyah, “alma apaixonada”, mas pode me chamar de Ta’zi! Seu totem, a luz fragmentada de sua centelha dentro do seu mini-invólucro biosférico pessoal. Baixando e consultando dados da Central-Quil. Inventário da missão investigativa: colher pistas sobre o paradeiro da mulher que veste roupas com ornamentos reais e uma pluma de avestruz na cabeça; cobrir vestígios de um dirigível artefato veicular; evitar o colapso mundial pela sua descoberta. Localização e coordenadas espaço-temporais: Superuniverso Eyin, Universo Local Ilê-Ifê, Nilo Celeste, Orbe Aiye, linhas temporais 2020/2652, Brasil, latitude 8° 29’ 40” Sul, longitude 39° 18’ 1” Oeste e latitude 11° 17’ 60” Sul, longitude 41° 51’ 24” Oeste. Ao chegar em cada destino, reportar informações pelo memorando em arquivos de áudio e imagens telementais… Estarei à disposição. Me chame por comandos mentais ou por voz dizendo “Kapusulu Ta’zi”, e então materializo-me!

— Acredito que não tem nada de tão novo. No caminho descobrimos o resto. Wwooww Ffffllloooouuupp! 

Meu nome é Kamit, o autêntico africano, submetido à autoridade das leis da criação e o princípio da manutenção da ordem no universo. Aqui em 2952, sou um dos últimos “fluidores do tempo”, ligados a uma linhagem ancestral. O Grande Conselho requisitou meus serviços pois sou um dos raros “factótuns temporais” encontrado nestes quadrantes da galáxia.

Aprendi a transbordar para trás no tempo, por entre os passados ancestrais fluídos e remotos, ou para a frente, em futuros fluidos, alguns vigorosos, outros não. Aprendemos que o tempo é como a água, que flui no fluxo contínuo de correntes, indo em muitas direções.

Acessamos muitas linhas temporais através das chamadas “gotas de consciência”. Cada uma delas segue seu curso no rio da vida, até desaguar no Mar da Criação. Quando se viaja nesses espaços, o que fazemos é “olhar” bem de perto algumas dessas gotas de consciência e, ao tocá-las, vê-las se cristalizar como espelhos d’água translúcidos em que podemos nos ver refletidos. 

Omi soro! Águas falam! Assim, cada uma delas nos mostra um reflexo fractal de como parecemos ser em centenas de milhares de realidades paralelas. Ao mergulhar no espelho d’água, tomamos a personalidade do fractal da realidade alternativa escolhida.

Brasil, latitude: 8° 29’ 40” Sul, longitude: 39° 18’ 1” Oeste. Linha temporal: 2652

— Vamos ver o que temos aqui, o que dá para encontrar. Kapusulu Ta’zi! 

— Calibração quântica computacional… Calculando… Calibrando… Acessando espectros energéticos acumulados pelo inconsciente coletivo planetário. Dados relativamente corrompidos. Traduzindo e transmitindo do ecrã para a sua tela mental!

— Ah! Estava bom demais para ser verdade! Até parece que seria tão fácil assim! 

Meus olhos não acreditavam no que viam. Um deserto com a dimensão da histórica Inglaterra, no interior do Brasil, cobrindo regiões massivamente povoadas. 

O núcleo de desertificação no semiárido brasileiro fica nos entornos da antiga Cabrobó, em Pernambuco, situada ao nordeste das terras brasileiras, onde, no passado, se encontravam plantações irrigadas por torrenciais correntes a partir do antigo rio São Francisco.

Por que as águas secaram? Quem ou que teria provocado tal infortúnio? E como isso estaria conectado com o sumiço da mulher cujo nome ainda não sabemos? Eram muitas perguntas sem resposta.

— Kapusulu Ta’zi! Acesse a segunda coordenada geográfica em outra linha de tempo, mas para trás! Precisamos colher mais pistas com provas substanciais através de outros fatos históricos!

Realizando cálculos. Examinando rotas alternativas no fluxo de gotas conscientes… Conclusão com sucesso! A probabilidade de localizarmos evidências colaborativas em 2552 é de 91,8%. No entanto, devido à quantidade de anomalias e instabilidades no tempo escalar, eu diria que este salto é muito arriscado. O trajeto é muito comprido. Demanda grande impulso energético sincronizar com um fractal daquela realidade! 

— Eu dou conta! Sou um dos únicos fluidores capazes de atravessar o vasto Mar da Criação sem grandes dificuldades, meus ancestrais sentiriam orgulho. Vamos! Woow Ffflllooouupp! 

Brasil, latitude: 11° 17’ 60” Sul, longitude: 41° 51’ 24” Oeste. Linha temporal: 2552

— Kapusulu Ta’zi! Faça um mapeamento com diâmetro completo em um raio de mil quilômetros de distância! E nessas mesmas coordenadas busque lastros em outras linhas de tempo atrás! Busque por leituras energéticas deixadas por artefatos desconhecidos.

— Baixando informações. Alguns resquícios de dados localizados. A maioria das informações foram apagadas. A busca por fatos históricos em linhas de tempo anteriores a 2552 foram de alguma forma deletadas, aqui reside a origem da anomalia… Os sinais da leitura apontam para uma espécie de jarro feito por uma estranha cerâmica não pertencente a este tempo. Está localizada em uma região litorânea conhecida nos registros desta humanidade como praia, a cerca de 612 km de Irecê.

— Ta’zi, acione o teletransportador quântico, sincronize as coordenadas exatas e nos leve lá imediatamente! Shoouuple!

Outro núcleo de desertificação fica no interior das terras conhecidas em outros tempos como Bahia, e esse é repleto de paisagens homogêneas. Notou-se um avanço da desertificação a partir dos arredores do antigo município de Irecê.

De acordo com Ta’zi, tudo começou séculos atrás, depois de 2020, quando aqueles conhecidos como “tomadores da humanidade” passaram a derrubar a vegetação nativa da caatinga. 

Ao chegar na praia, atrás das encostas litorâneas, nos deparamos com estranhas inscrições em cerâmica num jarro completamente coberto pela areia, contendo dentro alguns papéis e ainda aquilo conhecido pelos humanos deste planeta como búzios, conchas e nzimbu. 

Através do banco de dados universal, Ta’zi descobriu a qual idioma pertencia aqueles escritos que reluziam em cores douradas refletidas pela luz do Sol, destacadas no vaso trabalhado em cerâmica artesanal, provindas de antigas realezas, que se perderam no tempo. 

O idioma era ancestral ao kemet hierático, uma escrita sacerdotal usada para arquivar documentos administrativos e científicos. Em um dos papéis, uma frase escrita com as letras de uma mão notadamente feminina nos chamou a atenção:

“Quem é paciente com uma concha de búzio terá um dia 2352 ou ainda milhares deles, como as estrelas que se somam nos céus noturnos”

— Espera aí! Kapusulu Ta’zi! Cruze os dados e busque por qualquer informação ou noticiários do planeta com as palavras-chave “conchas”, “búzios”, “artefatos” e “colapso mundial”! E trace paralelo entre anos de 2652 e 2352.

— Sincronizando dados. Sintonizando em ondas-frequências mais adequadas… Calculando… Recalibração estabelecida e concluída! Noticiários localizados em 24 de março de 2652 e 24 de março 2352… Transmitindo áudios e imagens pelo ecrã em projeção 5D.

24 de março de 2652: “Um grande marco na história nos faz refletir sobre as tantas perdas que já tivemos. Há exatamente três séculos as lembranças que carregamos conosco pesam em nossos corações. Aquela que ficou conhecida como a Gadamés brasileira hoje é um dos mais antigos assentamentos pré-saarianos do Brasil. A nossa ‘cidade oásis’, que guardava grandes descobertas e que revolucionou o mundo, é a mesma que trouxe um colapso global devido aos atritos entre as potências mundiais. A nossa ‘pérola do deserto’ será lembrada para sempre”.

24 de março de 2352: “As evidências arqueológicas sugerem se tratar de um búzio gigante com tecnologia de hiperpropulsão antigravitacional, por enquanto incompreensível para as autoridades. Ele estava submerso nas encostas do mar na Praia do Forte, localizada a 612 km de distância da cidade de Irecê, interior da antiga Bahia. Cálculos imprecisos de datação de carbono estimam que tenha muitas centenas de milhares de anos. Cientistas e arqueólogos de várias partes do mundo comemoram essa grande conquista como aquilo que nos ajudará a dar largos passos nos avanços tecnológicos na luta contra os ‘tomadores da humanidade’”.

— Kapusulu Ta’zi! Vamos traçar a rota para 14 de janeiro de 2352, meses antes da descoberta do dirigível artefato veicular! Sincronize as minhas gotas de consciências fractalizadas mais próximas destas coordenadas em que estamos!

— ZZZzzzzz… Shiiiuuu! Está feito, Kamit!

— Isso! Ótimo! Lá vamos nós! Wwwwooowww FFfffflllluuuiiiuuuuppp!

Brasil, latitude: 11° 17’ 60” Sul, longitude: 41° 51’ 24” Oeste. 14 de janeiro de 2352, 15h30

— Kapusulu Ta’zi! Kapusulu Ta’zi! Ué o que houve? Cadê você Ta’zi? 

— Reportando falha de conexão espectral. Zona neutra detectada. Possível limbo temporal. Estou a duas horas do ponto… E sem teletransportador! Quando eu mais preciso de você… Não acredito que terei que andar duas horas!

— Sinal frequencial localizado… Conexão segura restabelecida… Acionando teletransportador!

— Ufa, Ta’zi! Você me deu um grande susto! Vamos lá! Sshouuupp!

Ao chegar no ponto, algo surpreendente aconteceu. A telemetria quântica mediu uma afluência extraordinária de energia escalar produzida por aquilo que os meus olhos não conseguiam descrever, de tão lindo e enigmático que era: nos deparamos com um artefato ancestral no formato de um búzio gigante medindo 34 metros de diâmetro.

— Kapusulu Ta’zi! Examine a superfície externa do objeto a fim de entender seu funcionamento!

— A aderência superficial responde ao toque senciente, demonstrando ter consciência… Buscando formas de contato com este ser inteligente.

Havia uma fenda na parte de baixo da casca, semelhante a uma pupila negra iridescente sobreposta à superfície branca da concha, que, uma vez ativada, se abriu, permitindo a nossa entrada. Circulamos pelos interiores da nave e fomos conduzidos até uma cúpula de natureza orgânica. Foi quando avistamos uma criatura, uma mulher negra e nua, magnificente, com cabelos dreadlock, envolta por um casulo energético suspenso no ar e em posição fetal. Assim que percebeu nossa presença, ela abriu os olhos e falou conosco mentalmente:

— Olá, Kamit! Eu estava repousando por 900 mil anos em Duat, ligado a Nun, as águas do abismo primordial. Você me encontrou! Agora há esperança neste mundo… 

— Seria você aquela que estamos procurando há tempos?

— Eu sou Ma’at, conhecida como a mulher de pé ou sentada com um dos joelhos na terra e ornamentos de pluma de avestruz na cabeça… Mas a mesma terra antes molhada, propícia às sementes, para germinarem, crescerem e darem seus frutos, está sem vida, porque quase toda a água secou.

— Ma’at, me diga, como você resolverá esse problema do mundo, agora que despertou?

— Eu represento a ética e a ordem. Personifico a verdade, a justiça e a harmonia universal.

Ma’at rege as leis aplicadas ao todo, necessárias ao equilíbrio do universo e, sem ela, reina a desordem, o caos, a injustiça e a miséria. Ela disse que os búzios e as conchas de tamanhos variados são uma das grandes relíquias e heranças deixadas como presentes pelos ancestrais maiores, provindos de períodos muito remotos para concebermos com a razão comum. No entanto, muitos outros, de tamanhos semelhantes a este que nos cobre ou até mesmo de grandezas superiores, eram vistos como verdadeiras pérolas ornamentais, utilizadas em antiquíssimos reinos deste mundo e de outros por seres realmente muito gigantes.

As conchas foram feitas assim pelos arquitetos universais porque representam o corpo feminino com seus cortes arredondados e lembram a barriga da mulher grávida; assim, são um grande símbolo da fertilidade.

— Lá se vai Ma’at, em sua enorme concha de búzio! Bom trabalho, Ta’zi! Já podemos voltar para casa através de uma gota de consciência. Que os cursos dos rios da vida nos carreguem e nos levem e que possamos desaguar novamente no vasto Mar da Criação!

Não morrer numa máquina

O DJ K é um dos DJs residentes do Baile do Helipa e produtor de mandelão, o estilo de funk voltado para os fluxos das quebradas de São Paulo. Numa segunda-feira de março de 2022, fui à casa dele, em São Bernardo do Campo, com o DJ e produtor musical JLZ, criado na periferia de Brasília, que assinou trabalhos de Baco Exu do Blues e que, em sua carreira solo, explora conexões entre funk e outros sons eletrônicos da diáspora negra.

Os dois se conheceram naquela tarde, e ali mesmo, no quartinho do DJ K, fizeram uma nova música: Illuminati — viagem ao oculto. Entre uns beats e outros, nós três entramos numa conversa sobre uma sensação de esgotamento que compartilhávamos ao ver que os debates sobre o funk giravam quase de forma unânime em torno de temas como criminalização e preconceito sofrido por essa música e sua comunidade. Argumentei algo neste sentido: o fato de que o discurso sobre a opressão sofrida pelo funk e pelos funkeiros (algo não muito distante de obviedades como “racismo é ruim” e “mulheres são pessoas que devem ser respeitadas”) circule muito mais do que as discussões sobre os processos artísticos do funk revela como o estatuto da arte ainda é dominado — e bem cercado — pela elite branca deste país. 

o fato de que o discurso sobre a opressão sofrida pelo funk e pelos funkeiros circule muito mais do que as discussões sobre os processos artísticos do funk revela como o estatuto da arte ainda é dominado — e bem cercado — pela elite branca deste país.” 

“Parece que é muito difícil admitir que o som é foda”, respondeu JLZ. “É um vitimismo, né? Parece que os caras querem colocar a gente sempre no papel de vítima”, completou DJ K. A despeito de todas as violências, opressões e desigualdades, por todo Brasil, em pequenos estúdios caseiros como aquele, artistas da quebrada estão continuamente renovando a música, produzindo saltos de inventividade que levam a música eletrônica brasileira a rumos inesperados. A imaginação radical das quebradas parece dizer: não deixaremos que a densidade da História e os estigmas sociais determinem meu destino — antes de tudo, existimos aqui e agora. Eu não tenho dom pra vítima.

Por não se orientar nos eixos de significados preexistentes e nem mesmo à forma musical convencional, a imponência da matéria-som do funk rompe e resiste a certas categorizações predefinidas de identidade e interpretação, fazendo energizar o movimento, o drible, a indeterminação, o mistério irrastreável.

O racismo e a opressão são forças constituintes, mas será que existe alguma maneira de interromper a força totalizante e primária do ciclo negro drama? Poder político, nos lembra Amiri Baraka, é não só o poder de criar — não apenas o que será de fato produzido –, mas a liberdade de ir onde quiser ir (mental e fisicamente). Criação preta.

A liberdade do homem do Ocidente, que foi conquistada cientificamente às custas dos condenados da terra, o permitiu moldar o mundo e seus poderosos artefatos-motores. Máquinas e toda a tecnologia do Ocidente são apenas isto: tecnologia do Ocidente. Por outro lado, quem as produz? Quem produz a riqueza das big techs do Vale do Silício? Quem sofre com os algoritmos, a automação e a inteligência artificial?

Apple, HP, Dell são os responsáveis pelo suicídio em massa de operários chineses que fabricam seus componentes. Nas electronic sweatshops, montes de gentes trabalham em condições não humanas, inumanas. Afinal, é isto mesmo que são: mercadorias. Contraditoriamente são esses condenados da terra, indivíduos de não valor, as mercadorias, enfim, que produzem a riqueza das big techs e do capitalismo digital. 

Mas o objeto resiste. Esta é a história dos gritos da mercadoria. 

Esta é a história de como o aparente não valor atua como criador de valor: desde quando os toca-discos foram transformados de meros reprodutores de som em instrumentos expressivos para uma nova cosmologia afrosônica do rap, até este momento, em que crackeamos programas de beats e aprendemos a operá-lo em tutoriais no Youtube. Também no passado profundo, ou antes disso, e num horizonte ao futuro.

Não morrer numa máquina. Resistir numa máquina.

Onde o erro vira assinatura, onde o grito vira fala, vira música. Longe do conforto impossível da origem unívoca, reside o rastro da nossa linhagem impossível. Embrenhar-se nas margens de indeterminação das tecnologias e subvertê-las a partir de seu olhar, de sua escuta, das propriedades dinâmicas de nossa vida. Reapropriação, improvisação, remixagem conceitual, gambiarra, pirataria e fodasiiiii.

Ritmada de cria

Após anos trabalhando no mercado de ações, os programadores belgas Jean-Marie Cannie e Frank Van Biesen sentiam-se entediados com a monotonia de seus empregos e buscavam um trabalho mais divertido e desafiador. Foi então que, em 1992, eles fundaram a Image-Line Studios, uma empresa focada no setor de “games adultos”, com jogos como Porntris — sim, uma versão pornô de Tetris.

Na mesma época, um jovem franco-belga chamado Didier “Gol” Dambrin, de apenas 19 anos, chamou atenção da dupla ao vencer o concurso Da Vinci, uma competição realizada pela gigante empresa de tecnologia IBM a fim de encontrar os grandes programadores das próximas gerações. A recém-criada companhia contratou o prodígio em 1994. Embora tenha sido recrutado para criar games pornôs, foi no setor musical que Dambrin e a Image-Line obtiveram inesperado sucesso e revolucionaram a forma de se fazer música.

Em 1998, a Image-Line lançou o Fruit Loops, um programa gratuito de produção musical com design intuitivo que se tornou uma das mais populares estações de áudio digital — ou digital audio workstations, DAWS na sigla em inglês. Em outras palavras, são programas que oferecem um catálogo de instrumentos virtuais e permitem produzir, gravar, mixar e editar áudio. Tudo para você fazer uma música só com um computador.

Desde então, o FL Studio (como o Fruit Loops foi rebatizado em 2003, depois de uma disputa legal com a marca de cereal homônima) se espalhou pelo mundo. De acordo com dados fornecidos pela empresa, atualmente, o programa tem cerca de dez milhões de downloads anuais. Qual é o motivo desse sucesso? “Eu não tenho nenhum background musical e acho que isso é o principal motivo para o FL Studio ter deslanchado, porque não foi projetado para músicos”, argumentou Dambrin em uma rara entrevista concedida ao site Genius.

Ao municiar um fazer musical digital que não está ancorado no conhecimento de partituras ou no ensino formal de música, o FL Studio — bem como outros softwares similares — pavimentou outras lógicas de criação sonora. Experimentando os sons em tempo real, formando loops por tentativa e erro, o FL Studio e seus usuários criaram uma abordagem de montagem, mais do que de composição propriamente. “É como fazer música no Excel”, brincou o beatmaker mineiro Vhoor, que assina produções para o rapper FBC.

Em vez de melodia, harmonia e ritmo, os produtores desenvolvem saberes musicais com base em parâmetros próprios: as frequências sonoras (o peso e a pressão de um grave), os mecanismos de reprodução (onde essa música será executada? Num paredão de som de um baile? Num celular? Num som automotivo?) e a percepção corporal do som (aceleração das batidas para estimular determinadas formas de dança). “A minha música é um loop, mas é um loop que não cansa. É a coisa mais difícil de fazer. Eu não componho música, não estudei. E se me disserem que a música está em tal tom — no Dó, Ré ou Mi —, eu não faço ideia. Minha música é só fazer e, se está dançante, está bom”, declarou o DJ Marfox, representante da cena de kuduro das periferias de Lisboa, o batida.

Nas periferias negras do mundo, os dispositivos e softwares são criativamente transformados e ressignificados, com suas possibilidades sendo expandidas e dando corpo a expressões musicais singulares e contra-hegemônicas.

O DJ carioca Polyvox ouvia seu filho batendo na porta do estúdio com uma garrafa de Coca-Cola. Então ele gravou e sampleou na base do beat conhecido como tambor Coca-Cola, um dos primeiros da vertente do funk 150 BPM do Rio de Janeiro. Usando e, ao mesmo tempo, adaptando as possibilidades de sua DAW, o DJ da favela Nova Holanda inventou um método artístico próprio: incorporou o ruído da garrafa pet (considerado “não musical” pela musicologia ocidental). O resultado? O desenvolvimento de uma nova forma do funk, com uma nova dinâmica sonora, que renovou a cena do Rio. Na mesma linha, o produtor recifense JS, o Mão de Ouro, utilizou o som da panela de sua avó para criar as batidas metálicas que constituíram a sua assinatura sonora e caracterizam o movimento bregafunk com hits como Tudo ok e Hit contagiante.

Novos vocabulários, modos de fazer com novos parâmetros e estruturas conceituais. Toda uma nova escrita do som — e um conhecimento profundo de como ele reverbera no corpo.

Sangra tímpano

No atual funk bruxaria de São Paulo (um dos subgêneros do mandelão), predomina um som agressivo, distorcido e ruidoso que contraria as expectativas de uma “música dançante” e, sobretudo, as normas técnicas de uma boa produção, abraçando o “erro” como recurso expressivo. Em faixas como Tuin destrói noia, do DJ K, uma frequência aguda contínua perfura nossos ouvidos. O que para muitos é visto como um som incômodo e doloroso, nos bailes de rua complementa a alucinação auditiva provocada pelo uso de lança-perfume ou loló. Assim, os DJs constroem um vocabulário musical singular, que se nutre da ritualidade do baile para dar vazão a um som específico, não encontrado em nenhum outro lugar do mundo. Não por acaso, essa vertente também circula no YouTube com os nomes de “sangra tímpano” e “destrói fone“ — a escuta implica ir além do ouvido e ativar uma experiência que mobiliza o corpo inteiro.

A muitos quilômetros dali, na comunidade rural Sanankoroba, no Mali, o DJ Diaki (expoente do gênero balani show) reinterpreta os softwares de discotecagem para desconstruir os padrões rítmicos da música eletrônica ocidental.

As batidas repetitivas — o famigerado “bate-estaca” — é um dos elementos definidores da música eletrônica de pista. Foi esse mesmo ritmo fixo que caracterizou as raves quando estas passaram a ser alvo do governo britânico, que em 1994 conferiu à polícia “poderes para remover pessoas participando ou se preparando para participar de uma festa rave” na qual se execute “música total ou predominantemente caracterizada pela emissão de uma sucessão de batidas repetitivas”.

Na contramão desse padrão histórico e do compasso 4×4, Diaki opera uma transfiguração que subverte o DNA rítmico da eletrônica a partir de uma sensibilidade polirrítmica africana. Batucando uma bateria eletrônica, ele dispara uma ampla variedade de samples que correm soltos e aglomeram-se em uma massa tórrida e frenética de sons sintéticos e implacáveis, como podemos ouvir no álbum Balani Fou, de 2020.

“Pode parecer um ataque de pânico para ouvidos desacostumados”, avisou o jornal The Guardian ao comentar o disco. Mas o que para os ingleses soa como ataque de pânico, para os malineses de Sanankoroba é música de festa que faz centenas de pessoas dançarem despudoradamente na rua, rebolando no chão.

Na quebra

O desencaixe na percepção da música de Diaki entre europeus e malineses é o sinal de uma disputa de sensibilidade política no som. Isso porque Diaki opera na interface entre som, tecnologia, corpo e movimento, investindo no nascimento de uma nova ciência. Uma “torção semântica” dos dispositivos, criando usos imprevistos para eles. 

Em vez de usuários ou consumidores passivos, essa negritude periférica toma para si o papel de inventora. Cientistas do grave, dando outros propósitos para as tecnologias. Nesse processo, elaboram os próprios métodos e procedimentos para dançar nas curvas de um som nunca antes pensado. Uma música que, em suas limitações materiais, reimagina as ferramentas digitais para instaurar novas possibilidades para a arte e para a vida. Uma fantasia filogenética que desloca a gênese e os mitos de origem de uma identidade predeterminada. Em vez disso, convida-nos a seguir os mistérios do som, para além das demarcações. Na quebra.

Foto: Lucas Ninno/Editora Globo (Reprodução)

Dizem que o hábito faz o homem. No caso do meu pai, o ditado faz muito sentido, uma vez que sua imagem está intimamente ligada ao seu cotidiano. Desde que nasci, ele faz questão de preservar o mesmo ritual: todos os dias, após o almoço, ele tem o costume de tirar uma sesta em sua rede, na varada da nossa casa.

A casa em questão é o lar em que me criei. Nela, uma dessas redes toma conta do espaço, marcando a varanda com a sua personalidade própria. Amarrada de ponta a ponta, a rede liga uma pilastra a outra, cortando o ambiente com suas cores vibrantes e suas belas aves bordadas. A rede, fiquei sabendo mais tarde, foi um presente que minha mãe ganhou de uma amiga de Cuiabá. 

Na minha curiosidade sobre manufaturas brasileiras, fui pesquisar e descobri ser uma rede feita por artesãs de Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá. As redes cuiabanas, como são conhecidas, se caracterizam pelo tear manual, em uma tradição passada de mãe para filha durante décadas. Uma transição de conhecimento que conserva ainda o tear vertical, fruto do conhecimento e da herança indígenas.

Uma pessoa na casa dos seus vinte ou trinta anos, de classe média, acorda. Com as redes sociais buzinando desde que ela abre os olhos, não demora a prorromper uma certa pressão — às vezes sutil, às vezes nem tanto — para que um senso generalizado de realização, num âmbito pessoal e profissional, seja vivido. Seis, sete, oito da manhã e já há quem tenha jogado na cara uma ida à academia e um sorriso indefectível no rosto para encarar os perrengues do dia. Tão logo, mesmo que ainda sob o cobertor, essa pessoa se vê imersa em um mundo regido pela diretriz de se ir atrás, alegremente, daquilo que “te faz feliz” e conseguir tirar uma vida disso — e olha que essa pessoa nem sequer teve tempo de abrir o LinkedIn. Durante toda a vida do arquétipo tratado aqui, de vinte/trinta anos e de classe média, essa pessoa foi incentivada a perseguir os seus sonhos e transformar as suas paixões em uma carreira viável. Se por um acaso, nos anos de formação, ela pensou em se dedicar à medicina ou, vá lá, à advocacia, foi mais por gosto pessoal e menos por pressão parental.

“Insecure”, série da HBO, aborda a complexidade do trabalho no mundo de hoje. Foto: Reprodução

No entanto, a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão, o que acontece pela visão de que é inviável ter prazer na vida sem que se encontre o trabalho perfeito e se alcance o equilíbrio entre o que é a vida pessoal e o que é o trabalho. A impressão, muitas vezes, é a de que, sem isso, a felicidade real não vai ser possível e que a culpa, no fim, é sua. Se ao acordar para ir trabalhar a pressão já se faz presente, ao menos para martelar os ânimos, em algum nível, imagine então no trabalho propriamente dito. Neste contexto, esta pessoa se esgota fazendo um verdadeiro malabares mental para balancear suas expectativas pessoais, as demandas do mercado de trabalho e a realidade das oportunidades disponíveis, tudo isso enquanto busca construir uma relação saudável e significativa com o trabalho, além de quebrar a cabeça para fazer com que as finanças batam. É um prato cheio.

Será mesmo que aquele nove-às-cinco impessoal, bate-cartão-na-entrada e bate-cartão-na-saída, era tão ruim assim? 

O dia acaba e, veja só, ela não está necessariamente feliz, o que é algo natural na vida de qualquer um, mas, considerando a positividade profissional tóxica que o mundo circunscreve à ela, isso faz com que ela fique ainda pior, seja por não estar fazendo o que ama ou por estar fazendo o que em tese ama e mesmo assim não ter alcançado a tão almejada plenitude. Uma coisa leva a outra, feito a mais Millenial e Gen-Z das bolas de neve, e, agora com a cabeça deitada no travesseiro, os pensamentos não dão trégua. 

a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão”

Eventualmente, dorme. E, então, para o bem e para o mal, o dia seguinte vem.

Parece exagero televisivo ou literário, coisa saída de uma ficção distópica de pouca imaginação, mas essa autocomparação que coloca o factual e o idílico lado a lado é uma dinâmica diária de muitas pessoas. A psicóloga Thais Andrade1, tomando como referência seus muitos anos de prática, reflete sobre a importância do trabalho para as pessoas:

“A partir da minha experiência, observo que o trabalho é não apenas central como também essencial na vida de grande parte das pessoas. Para uma vasta maioria significa sobrevivência e sustento; para outros, como deveria ser para todos, significa também a possibilidade de reconhecimento e satisfação pessoal. Por essa razão tantos caem em depressão quando, por exemplo, deixam de trabalhar ou se aposentam. Para muitos essa mudança é catastrófica, uma vez que inúmeras perguntas nunca questionadas começam a emergir: quem eu sou sem meu trabalho? O que faço comigo? O que faço com meu tempo? Do que eu realmente gosto? Como estão minhas relações pessoais? Além de, é claro, a preocupação em pagar as contas.”

A relação com o trabalho passou por transformações significativas ao longo das últimas décadas. Basta tomarmos os anos 1980 como parâmetro. Havia aquele grande culto ao trabalho, sendo praticamente inevitável que aquilo fosse o centro da vida de uma pessoa, que tinha uma mentalidade de dedicação e comprometimento total à carreira. E não era bem como vemos com mais frequência hoje, de “eu faço o que gosto, então é claro que me dedico”, mas uma lógica de “eu vou virar tudo o que me dá retorno, não importa o que seja”. Os engomados de Wall Street, tão bem vestidos quanto tão sem escrúpulos, vêm à mente, certo? De Michael Douglas a Leonardo DiCaprio, de Sigourney Weaver até Melanie Griffith. Aqui no Brasil, com o boom de agências de publicidade e o espírito empreendedor generalizado começando a florescer, não foi muito diferente. 

Aqui e lá — e em tantos outros “lás” —, foi a década dos yuppies, obcecados em fazer mais e mais dinheiro, independentemente do quanto isso fosse pesar na vida pessoal. Analisando em retrospecto, com os valores da sociedade atual em mente, isso pode soar como algo absurdo. De fato, houve uma mudança nessa perspectiva.

“A vivência da frustração, que nos acompanha desde o nascimento, é fundamental para o desenvolvimento do nosso psiquismo e para a constituição de quem somos”, diz Thais Andrade. “Wilfred Bion e Donald Woods Winnicott, psicanalistas ingleses, escreveram de forma muito profunda sobre o tema. Frustrar-se faz parte da natureza humana e a maneira como lidamos com a frustração desenhará nosso caminhar pela vida.

Agora, será que uma pessoa que nasceu no início dos anos 80 teria uma tendência a ter mais tolerância e capacidade de lidar com as frustrações do que, digamos, um nativo digital? Alguém que, ainda engatinhando, já teclava nos celulares e tablets? Acredito que já existam pesquisas nesse sentido. Talvez sim, talvez não (existem os aspectos da constituição de cada um). O fato é que a vivência da espera era outra e a percepção desta parece mudar a cada geração.”

O trabalho é visto atualmente de uma maneira diferente, como uma ideia que foi, ao mesmo tempo, expandida e reduzida.

Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street.

Expandida porque, na medida em que a gama de possíveis atividades profissionais vai se ampliando a cada dia, mais caminhos podem ser traçados — estamos na época em que jogar videogame pode dar dinheiro (imagine dizer isso a um menino dos anos 1980!). E reduzida porque, por mais importante que seja o trabalho, ele não deveria mais ter o poder de nos definir. “Eu não sou o meu trabalho” é um discurso recorrente. Há uma tendência crescente de enxergar o trabalho como uma parte importante da vida, mas não necessariamente como o único ou principal elemento definidor da identidade pessoal. 

A busca por propósito e satisfação pessoal no trabalho tornou-se mais evidente, e as pessoas estão cada vez mais dispostas a explorar suas paixões e interesses, transformando-os em carreiras viáveis. Bonito, não? Sim, bastante. Mas é justamente aí que as contradições começam a aparecer. Há pouco tempo, tanto em redes sociais de caráter profissional quanto em plataformas como o Instagram, rodou o seguinte desafio: “Diga quem você é sem citar o seu trabalho”. Isto é, não valeria dizer “comunicador”, “empresário”, “bartender”, nem nada disso. Difícil. Por mais que a vida pessoal hoje seja importante — talvez, sim, até mais importante do que a vida profissional —, ainda temos o costume de nos classificarmos a partir de nossas atividades profissionais. O que isso diz sobre nós? É um mero ricochete de outras gerações ou a coisa vai bem além? A reflexão ganha ainda mais camadas quando a digital pessoal é tão marcada na vida profissional, como ocorre amiúde na atualidade, na grande maioria de setores e até classes sociais. O trabalho, então, por mais que mudanças teóricas, e até práticas, tenham acontecido, segue tendo muitas vértebras em nossas espinhas dorsais. 

Será que, no fim, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?

Uma mudança notável e inegável é que as atividades que antes eram consideradas apenas hobbies, como gostar de filmes ou de games, agora podem ser encaradas como opções reais de carreira. Essa mudança de mentalidade, e realidade de mercado, permite que as pessoas busquem caminhos profissionais que estejam mais alinhados com seus interesses e habilidades, o que resultaria em uma maior satisfação e realização no trabalho — isso, claro, quando o bailado é feito sobre o campo da teoria. Por mais positivo que esse novo aspecto possa ser, a busca por uma carreira baseada em paixões e interesses também pode trazer um sem-fim de frustrações. Não vai ser toda vez que aquilo que se deseja vai ser alcançado, e se porventura isso acontecer, as expectativas nem sempre são atendidas. É a velha máxima do “cuidado com o que deseja, pois você pode um dia conseguir tudo”. A discrepância entre a realidade e as expectativas têm o poder de levar a um constante estado de insatisfação, criando um inquietamente interno psicológico que faz as pessoas estarem sempre em busca de algo mais, em busca daquela sensação de plenitude profissional, e pessoal, que muitas vezes é difícil de ser alcançada.

“Um dos problemas do mundo atual, onde estamos com nossos pés fincados, é que com tanta demanda, tanto excesso de informação o tempo todo, fica difícil encontrar espaço para o sentir — incluindo a felicidade ou o processo de descobrimento do que despertaria tal sentimento. Como encontrar espaço dentro de nós, e em nosso dia a dia, para que os momentos de felicidade possam existir? Ou para percebê-los?”, questiona a psicóloga. “Outro ponto é que mesmo aquilo que nos faz feliz vai dar trabalho, vai ter perrengues, dificuldades, restrições, escolhas.”

Jesse Einsenberg em “A nova vida de Toby”, minissérie da Hulu/Disney Plus

Lembra da frase “trabalhe com o que você ama e nunca mais precisará trabalhar na vida”, atribuída a Confúcio? Ela reflete uma noção completamente idealizada de que se pudermos fazer o que amamos, o trabalho se tornará uma fonte contínua de felicidade e satisfação. Acordar vai ser fácil, enfrentar o trânsito não vai doer, passar horas infindas na labuta vai ser mole. Convenhamos que Confúcio, ainda que no auge de sua sabedoria, nada sabia sobre levantar cedo para trabalhar. Estima-se que o filósofo chinês viveu no mundo que antecedeu Cristo, séculos e mais séculos atrás. No entanto, essa perspectiva otimista segue sendo amplamente divulgada e incentivada, muito embora não responda mais ao que entendemos por mundo há um bom tempo.

Que justiça seja feita, há perfis por aí, populares e conscientes, que questionam tais platitudes, como o Obvious aqui no Brasil. No geral, transmitem mensagens empáticas sobre trabalho, autoestima, as dificuldades enfrentadas diariamente por mulheres e tantos outros temas importantes. É necessário que esse contraponto exista para que se enfrentem as visões idealizadas e crie nas pessoas a sensação de que está tudo bem caso alguma coisa dê errado nas suas respectivas buscas por satisfação pessoal e profissional. É uma questão de perspectiva: a frase de Confúcio, dependendo de quem a encara, pode ser vista como “trabalhe com o que você ama e, assim, você trabalhará 24 horas por dia”. Ela expressa um ponto de vista mais realista, destacando que se dedicar exclusivamente ao trabalho que amamos pode levar a uma imersão constante, onde a linha entre vida pessoal e profissional se torna tênue.

Enquanto a primeira versão da frase sugere que a paixão pelo trabalho elimina a sensação de estar trabalhando, a segunda versão aponta para a possibilidade de uma sobrecarga e de sacrificar outros aspectos importantes da vida. É importante reconhecer que, mesmo em uma carreira apaixonante, haverá tarefas menos agradáveis e pressões profissionais. E, acima de tudo, haverá o compromisso, a responsabilidade, que, por si só, já têm um peso diferente. Assistir a um filme é uma coisa, assistir a um filme e ter que escrever sobre ele é outra; ter uma banda é uma coisa, ter que compor um número razoável de novas canções dentro do prazo e fazer 25 shows ao mês é outra. E por aí vai. Nem mesmo seguindo as vocações que respondem ao mais espiritual dos ensejos, por exemplo, impedem que os burnouts aconteçam.

“Correr não adianta”, analisa Thais Andrade, “precisamos de pausas. É nessa brecha que podemos, quiçá, encontrar opções criativas e mais saudáveis para sairmos do lugar. Porém, descer da esteira que nos faz correr e não nos tira do lugar implicará em lidar com a realidade externa e com nós mesmos. Isso inevitavelmente vai gerar sofrimento, mas também será uma oportunidade de desenvolvimento pessoal. Quando nos olhamos, além de nos depararmos com nossas limitações, também podemos nos deparar com nossos potenciais, a depender do quanto é possível tolerar a dor que a realidade nos impõe.”

“Em complemento”, finaliza ela, “estamos na era da positividade excessiva, em tempos em que a Fake News do ‘tudo é possível e está a seu alcance’ circula das mais diversas formas pelas redes sociais. Se por um lado, a geração Z se opõe ao modelo de trabalho excessivo das gerações anteriores; por outro, também são estimulados a fazer aquilo que amam e a seguir seus sonhos. Cabe destacar, porém, que o véu do excesso de positividade pode turvar a visão e deixar o coração iludido.”

O pessimismo recorrente em algumas gerações pode ser atribuído em parte à percepção de que alcançar a felicidade plena no trabalho pode ser uma expectativa irrealista. É importante lembrar que a felicidade não é exclusivamente derivada do trabalho. Outras áreas da vida, como relacionamentos e tempo livre, obviamente também desempenham um papel significativo no bem-estar geral. Em vez de buscar incessantemente a perfeição e a felicidade total no trabalho, é mais realista e benéfico buscar um equilíbrio saudável, encontrar propósito nas atividades profissionais e também valorizar os momentos de descanso e cuidado pessoal. 

É como diz Issa, protagonista de Insecure (2016-2021), série que, dentre muitos temas, lidou muito bem com as complexidades do trabalho na vida atual, especialmente quando ele se mistura com a vida pessoal: 

“Eu sou uma bagunça. Mas uma bagunça que está aprendendo a lidar com os seus problemas.”

“Insecure”, série da HBO. Foto: Reprodução

1Thais Fonseca de Andrade, psicóloga clínica e psicanalista em formação pelo Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Mestre em Ciências (USP) e Especialista em Psicoterapia Psicanalítica (USP) ([email protected]).

No mundo artístico, o debate sobre as diferenças entre plágio e influência é uma constante. A humanidade vem produzindo arte há um bom tempo, então é natural que fórmulas se repitam e semelhanças ocorram aqui e ali, seja em qual for a manifestação analisada.

Quando acusações de plágio acontecem, reputações são abaladas, questionamentos éticos surgem e a obra em questão é submetida a um escrutínio público. O processo é complexo para todas as partes envolvidas. Como, afinal, definir o que é e o que não é plágio? Há formatos que permitem uma inspeção mais objetiva (a progressão similar de acordes similares, as mesmas palavras usadas numa frase, etc.), mas, mesmo nesses casos, é preciso refletir sobre os limites tênues entre a cópia e a influência, além de pensar em como aplicar quaisquer que sejam os parâmetros de maneira equânime — se isso for, de fato, possível. E em um mundo como o nosso, onde as narrativas canônicas costumam vir de um mesmo lugar, seria ingenuidade pensar que é. 

Como um ótimo adendo à discussão, chegou ao Brasil, pela editora Fósforo, o livro A Mais Recôndita Memória dos Homens, do escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr. Vencedora do prestigiado prêmio Goncourt, a obra nos convida a ponderar sobre um punhado de questões fundamentais a partir de um ponto de vista histórico, que volta o nosso olhar para trás, mas que, ao mesmo tempo, nos empurra na direção de episódios recentes, como o infelizmente sempre atual silenciamento de vozes africanas e algumas acusações ocorridas no mundo da música.

O escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr | Foto: Richard Dumas para La Croix L’Hebdo.

Em 2018, na sempre movimentada e bela Paris, Diégane Latyr Faye, um jovem escritor do Senegal — autor cujo último romance, tido como um fracasso pelo protagonista, vendeu “setenta e nove exemplares nos primeiros dois meses” —, enfim encontra o livro que sempre procurou, O Labirinto do Inumano. Seu autor, o lendário T.C. Elimane, em resposta a uma escandalosa acusação de plágio que mobilizou a comunidade literária francesa dos anos 1940, desapareceu do mapa. Fascinado pelo silêncio ao qual se resumiu a vida desse mito, Diégane — um claro alter ego do próprio Sarr — inicia então seu percurso para desvendar os enigmas por trás do desaparecido, e tão promissor, autor, que chegou a ser chamado de “Rimbaud negro” em uma resenha pelo jornal L’Humanité

É importante dizer que, muito embora seja fictício (assim como a resenha do L’Humanité), Elimane é baseado em um autor real: o malinês Yambo Ouloguem (1940-2017), que em 1968 ganhou o prêmio Renaudot com Le devoir de violence (O dever de violência) e, depois de acusações de plágio, sumiu sem deixar vestígios. Por que isso é importante? Ouloguem era um escritor negro, de Mali, e foi escorraçado não só dos círculos acadêmicos da França, mas da vida social como um todo. Esse caso real respinga pelas páginas de Sarr e tudo que seu livro tem a dizer sobre muitas das problemáticas do mundo da cultura.

Capa de Flávia Castanheira e Zansky.

Num labirinto literário e geográfico empolgante que não deixa escapar nenhuma oportunidade de crítica, o autor de Senegal rebate cada fascínio com uma ressalva e cada pé atrás com um encantamento. É um equilíbrio que se deixa pesar para cá e para lá pela gravidade da História, sem que a verborragia se sobreponha ao prazer da narrativa.  

Mohamed Mbougar Sarr mergulha nas profundezas da memória coletiva africana, explorando temas como identidade, história, colonialismo e resistência. O laureado romance oferece uma perspectiva única e poética sobre a experiência africana, trazendo à tona narrativas e vozes que muitas vezes foram marginalizadas e silenciadas (ou até mesmo apagadas). Os ecos de Roberto Bolaño, que também salpicou suas visões de mundo escrevendo sobre perambulações obstinadas em busca de um mistério literário, são claros. Eles são, inclusive, explicitados na epígrafe de A Mais Recôndita Memória dos Homens.

“Por algum tempo, a Crítica acompanha a Obra, depois a Crítica se desvanece e são os leitores que a acompanham. A viagem pode ser comprida ou curta. Depois os leitores morrem um a um, e a Obra segue sozinha, muito embora outra Crítica e outros Leitores pouco a pouco se ajustem à sua singradura. (…) E um dia a Obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirão o Sol e a Terra, o Sistema Solar e a Galáxia e a mais recôndita memória dos homens.”

Trecho da epígrafe de A Mais Recôndita Memória dos Homens, extraída de Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño

O enredo do livro se desenrola em linhas temporais distintas, entrelaçadas com um liga-pontos novelesco de saltar aos olhos: para além da contemporaneidade que acompanha um jovem africano em busca de sua própria voz e de respostas indigestas sobre o mercado literário, a Argentina pós-guerra também serve de cenário, assim como a região do Sahel, onde um soldado africano se vê envolvido em uma trama que envolve o exército colonial francês. Esse tipo de costura, na verdade, incute no leitor uma noção praticamente palpável de que o passado e o presente são tão somente nomes diferentes dados para as mesmas realidades — e isso vale para a Europa, para a América Latina, para a África. Politicamente falando (quiçá, emocionalmente também), há muita força numa contraposição bem feita de épocas, ainda mais quando esta se sustenta sobre bases que fogem das exposições batidas, por vezes desnecessariamente complexas, com as quais estamos acostumados. 

Ao incorporar elementos mágicos e mitológicos que alcançam decibéis ainda mais altos por terem o frescor da especificidade, Sarr desafia as convenções narrativas tradicionais de um cânone que, sabemos, é tanto elitista quanto branco, masculinizado e eurocentrista, conseguindo assim explorar as profundezas da psique africana e trazer à tona uma história coletiva complexa e rica. É por essas e outras que A Mais Recôndita Memória dos Homens é uma obra que se conhece e se assume profundamente, sem demonstrar qualquer medo de colocar o dedo em muitas feridas, nem mesmo que isso signifique críticas duras contra o mundo da literatura francófona, que, curiosamente, abraçou a obra.

Não foi um acaso que o trabalho de Sarr ganhou o prestigiado prêmio Goncourt de 2021, chancelando mundialmente um autor senegalês de 31 anos (hoje, com 33 anos) e, pela primeira vez em mais de cem anos de história, fazendo isso com alguém da África subsaariana. É um dos prêmios literários mais importantes do mundo, o que torna tudo ainda mais instigante e digno de comemoração.

Edmond Goncourt (1822-1896), que dá nome à premiação, foi um escritor e crítico literário francês. O primeiro Prêmio Goncourt foi concedido, em 1903 — sete anos após a morte de Edmond. Desde então se tornou um dos prêmios literários mais prestigiados da França e, consequentemente, do mundo, sendo conhecido por impulsionar a carreira de muitos escritores. O Goncourt é concedido anualmente, sempre no início de novembro. O vencedor recebe um prêmio em dinheiro e uma grande quantidade de atenção da mídia, o que muitas vezes leva a um aumento significativo nas vendas e na visibilidade da obra premiada. 

Ao longo dos anos, o Prêmio Goncourt tem sido um importante indicador de tendências literárias e tem ajudado a impulsionar muitas carreiras notáveis na França. A história do prêmio é marcada por uma lista de vencedores que inclui alguns dos maiores nomes da literatura francesa e mundial — sem exageros. Dentre os laureados, pode-se mencionar Marcel Proust (1871-1922), que recebeu o prêmio em 1919 por Em Busca do Tempo Perdido, Albert Camus (1913-1960), premiado em 1957 por A Queda, e Marguerite Duras (1914-1996), agraciada em 1984 por O Amante.

Marguerite Duras (1914-1996)

Ou seja, ter Mohamed Mbougar Sarr nesse hall impressionante de autores e autoras representa um marco significativo na história do prêmio e da literatura mundial, quebrando barreiras e ampliando a diversidade de vozes reconhecidas e valorizadas. A vitória de Sarr não apenas colocou a África Subsaariana no centro do cenário literário mundial, mas também serviu como um lembrete poderoso de que a literatura é um espaço onde as vozes marginalizadas podem e devem ser ouvidas. Essa conquista histórica abre caminho para que mais autores africanos e de outras partes do mundo tenham suas histórias compartilhadas e celebradas, contribuindo para a diversidade e o enriquecimento do panorama literário global.

É de se pensar também, como o próprio Sarr faz, que receber esse convite pomposo para fazer parte de um clube tão restrito pode ter lá suas razões escusas. Mantenha seus amigos próximos e seus inimigos mais próximos ainda, talvez? “Não sei exatamente como interpretar”, disse ele em uma entrevista. “Isso significa que o senso de humor deles é melhor do que se acredita? É uma forma de me silenciar ou de me endossar com o prêmio? Mas, no fim, eu realmente espero que a premiação tenha acontecido porque este é, acima de tudo, um bom livro.”

Em outra entrevista, endereçou o tema do plágio, que, aliás, é uma das principais questões do romance. Onde está a linha que demarca o que é plágio e o que é influência, colagem ou o que os acadêmicos chamam de intertextualidade? Sarr afirma que um dos critérios para definir isso é a cor da pele.

“Quando você escreve, diante de toda a biblioteca escrita antes de você pelos grandes autores, você se pergunta: ‘O que eu posso trazer de novo?’ A resposta é simples: ‘Nada.’” Segundo ele, é possível reinventar narrativas por meio de seu estilo pessoal, e isso pode gerar bons livros, mas dificilmente se escapará de tudo o que o cânone já produziu. “E o ponto é, quando você pertence a essa tradição literária, pode brincar com ela, mas quando você é de outro lugar, será que pode fazer isso sem ser acusado de plágio?”

Retrato de Mohamed Mbougar Sarr, em Besançon | Foto de Sophie Bassouls/Sygma via Getty Images

A Mais Recôndita Memória dos Homens faz uma acusação veemente à comunidade literária francesa, e do resto do mundo, dizendo com dedo em riste que narrativas que não pertencem à elite branca vêm sendo roubadas sem quaisquer tipos de consequências. As repercussões, muito pelo contrário, costumam ser positivas, enaltecendo a pessoa plagiadora por uma suposta criatividade. Quem irá questionar aqueles que detêm poder, aqueles que dominam a narrativa padrão? É por isso que Sarr afirma categoricamente que a cor da pele com certeza é um dos critérios que definem o plágio ou o não-plágio. É como o trecho de uma resenha do jornalista fictício Auguste-Raymond Lamiel (um dos muitas contidos no livro), escrevendo para o L’Humanité, que diz: “Toda a história da literatura não é a história de um grande plágio? Que seria de Montaigne sem Plutarco? La Fontaine sem Esopo? Molière sem Plauto? Corneille sem Guillén de Castro?”

A arte é um território fértil para a inspiração mútua, e é comum que obras sejam influenciadas por outras. No entanto, a linha que separa a influência legítima do plágio é tênue e muitas vezes subjetiva. Mohamed Mbougar Sarr, em sua obra, levanta essa discussão ao explorar a mais recôndita memória dos homens, em que a criação artística é enraizada em uma rede de influências que se entrelaçam ao longo do tempo.

Só quero escrever um bom livro, Stan, um livro que me dispense de fazer outros, que me livre da literatura, um livro como O labirinto do inumano, entende?

— Entendo, sim. Mas vocês, escritores e intelectuais africanos, bem que poderiam desconfiar de certos reconhecimentos. Mais dia, menos dia, a fim de apaziguar sua consciência, a França burguesa vai consagrar um de vocês”.

— Trecho do diálogo de A Mais Recôndita Memória dos Homens 

No final, é bem possível que os Les Dix do Goncourt, como são conhecidos os votantes do prêmio, perpetradores de uma forte herança, tenham tido o bom senso de aceitar que seus herdeiros, ao se apropriarem dessa herança pela qual eles vivem, podem tanto renunciar a ela quanto zombar dela.

Como toda grande obra e autor, nem Mohamed Mbougar Sarr nem A Mais Recôndita Memória dos Homens podem ser facilmente classificadas. E, depois do Goncourt, o vasto labirinto de criador e criatura parece ter ficado ainda mais complexo. Por anos a fio, essas paredes vão mudar ora para lá ora para cá. Ainda assim, seguirão despertando interesse, levando a caminhos que continuarão sendo desvendados. Justiça foi feita.

Detalhe de “Bandeiras e mastros”, de Alfredo Volpi (1896-1988)

Junho no Brasil é sinônimo de Dominguinhos e Luiz Gonzaga. Sinônimo de Alfredo Volpi. É a Festa do Interior que Gal cantava com tanto fervor. Se por um lado fevereiro é o mês que comporta as festividades que mais carregam o suprassumo do jeitão brasileiro (pelo menos aquele mais conhecido aos olhos estrangeiros), junho não fica muito atrás em termos de brasilidades e, de quebra, sempre traz consigo um punhadão especial de tradições que gritam ancestralidade através dos acordes, tecidos e sabores de suas celebrações. 

Obra de Nerival Rodrigues

Estamos falando da fogueira, do quentão, do correio elegante, da paçoca, dos chapéus de palha, da quadrilha, da maçã do amor, de tudo aquilo que garante um mês animado “igual que nem fole de acordeão/ tipo assim num baião do Gonzaga”, como diz Chico Buarque no seu álbum de 2011.

As festas juninas são como grandes demonstrações de alguns de nossos costumes típicos, uma curadoria detalhada e extensa que lota as paredes com quadros que enaltecem a possibilidade de se universalizar aquilo que é regional. Nada é mais Brasil do que isso. E, de maneira alguma, estamos falando de uma exposição que pretende tão somente relembrar: muito embora beba de pratarias de outras épocas, é, na realidade, a celebração de uma história que nunca deixou de acontecer e que, assim, se renova ano a ano. 

©Agência Brasil/Marcello Casal Jr

Essas comemorações vêm com temporada aberta para muitos dias de junho — todos eles sujeitos a lotações em qualquer canto do país. 

Com o arraiá nos chamando para dançar, é o momento de celebrar São João. A festividade se enraizou profundamente na cultura e se tornou uma expressão marcante da identidade brasileira. As raízes dessa festividade remonta a tempos distantes, quando as comunidades agrárias celebravam o solstício de verão, agradecendo às divindades pela fartura das colheitas. Com a chegada dos colonizadores portugueses ao Brasil, a celebração se mesclou com elementos da tradição católica, sendo dedicada a São João Batista, o santo padroeiro do Nordeste brasileiro. 

É Brasil sem tirar nem pôr — com um pé no solo do Nordeste, outro nas páginas da Bíblia e um terceiro pé (o que só parece ser possível por se tratar de Brasil) mesclando as superfícies de muitos outros estados brasileiros a tudo isso.

João Batista, quem é esse?

Depois do dia do “santo casamenteiro”, Santo Antônio — celebrado um pouco antes, no dia 13 —, São João dá continuidade às celebrações do mês. Ele, portanto, é o segundo religioso homenageado nas festas juninas, sendo seguido por São Pedro e São Paulo. Mas João, claro, é o mais lembrado, apesar de ser um daqueles casos em que o nome é mais famoso que a história por trás.

Nem todo mundo sabe, mas João Batista é o homem que, de acordo com a Bíblia, batizou Jesus Cristo. Suas mães, Maria e Isabel, seriam primas, o que quer dizer que, veja só, São João era parente de Cristo. Sendo seis meses mais velho do que o Messias, acompanhou de perto o desenvolvimento do primo de segundo grau. Com a boa relação entre eles, pavimentou o caminho do Messias, tornando-se assim o profeta que anunciou Jesus Cristo como o Cordeiro de Deus.

Toda a sua pregação era sobre o fato de que o Messias estava para chegar e, quando isso enfim aconteceu, São João diz que o tempo acabou. Mas sua vocação como pregador, que garantiu sua eternidade, também fez com que o final de sua vida fosse trágico: pouco depois de ser preso por Herodes Antipas, um poderoso administrador da região que via problemas no que o profeta pregava, João foi decapitado. João Batista, que viria a se tornar São João, morreu no dia 29 de agosto do ano 29. Essa data, aliás, nos leva a outro fato interessante, algo que denota a enorme relevância do santo: São João é um dos poucos santos venerados na Igreja Católica que possuem duas datas litúrgicas. Tanto a sua data de nascimento (24 de junho) quanto a de morte são eventos celebrativos, o que acontece porque São João é conhecido como o grande “anunciador”. 

“Salomé com a cabeça de João Batista”, de Caravaggio (1571-1610)

No imaginário popular e religioso, muitos símbolos e capacidades são atribuídos a santos. São Jorge é o santo guerreiro, Santo Antônio é o santo casamenteiro. Mas e quanto ao seu, ao meu e ao nosso São João? Além de ser associado com a imagem do cordeiro, tem uma ligação forte com a fogueira. Por ter testemunhado antes de todos a luz imensa que provinha de Jesus, João Batista se associa à fogueira como algo que simboliza essa iluminação. É por isso que não há festa junina sem fogueira. 

Uma festa e muitos Brasis

Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a partir de 1500, trouxeram, além das tradições católicas, as festividades religiosas. Os portugueses tinham as chamadas festas joaninas. No Brasil, fomos secularizando e transformamos em festa junina, no mês de junho. Há grandes influências da cultura indígena nos alimentos à base de milho, mas se conserva a tradição portuguesa e europeia das quadrilhas. A força de São João, sobretudo na região Nordeste do Brasil, tem ligação com a colonização do Brasil. Lá houve um enraizamento da cultura portuguesa, com São João sendo forte principalmente no interior com o catolicismo popular na vida do sertanejo.

“Bandeiras e mastros”, de Alfredo Volpi (1896-1988)

As festas juninas assumem diferentes formas por todo o território brasileiro, refletindo a diversidade cultural e regional do país. No Nordeste, a tradição junina se torna uma verdadeira festa de cores, com quadrilhas animadas, bandeirinhas coloridas e fogueiras que iluminam a noite. O forró é o ritmo predominante, embalando as danças e levando alegria aos corações dos festeiros. No Sudeste, a influência caipira e sertaneja dá o tom às festas juninas, com danças de roda como a catira e o cururu, e músicas que trazem a melodia da viola e da sanfona. O aroma de quitutes como o caldo de mandioca e o arroz-doce paira no ar, enquanto as pessoas se deixam envolver pelo clima acolhedor e festivo. 

Já no Norte, a Amazônia dá um toque especial às festividades, com ritmos regionais como o carimbó e o boi-bumbá. As tradições indígenas e ribeirinhas se entrelaçam com as manifestações juninas, criando um mosaico cultural único e cativante. O tacacá e o vatapá são sabores que marcam essa comemoração na região. No Centro-Oeste, a cultura pantaneira se faz presente, trazendo danças como o siriri e o cururu, que resgatam as tradições ancestrais. Rodeios, festas de peão e pratos típicos como o arroz carreteiro e a pamonha completam o cenário festivo dessa região.

A festa junina também desperta o interesse de estrangeiros que buscam vivenciar a diversidade cultural brasileira. Através das festividades, os estrangeiros têm a oportunidade de conhecer uma faceta menos explorada da cultura brasileira, se apaixonando pelos detalhes e pela riqueza cultural que permeiam cada celebração. Enquanto o carnaval é reconhecido internacionalmente como uma das maiores festas do mundo, as festas juninas ainda são pouco conhecidas além das fronteiras do país. 

Mas aí quem perde é o resto do mundo. 

Embate saudável entre tradição e tecnologia

Em um mundo cada vez mais acelerado e digitalizado, as festas juninas se mantêm como faróis de resistência à loucura do cotidiano. “Resistir” não necessariamente pela via de ir contra, mas resistir no sentido de emanar uma espécie de autenticidade destemida. Uma festa junina é uma festa junina, com todas as letras, sem medo de acontecer num mundo que parece pregar outros evangelhos culturais. 

É bem verdade: as barracas, as bandeirinhas, os fogos de artifício e mais praticamente tudo que há numa festa junina é muito “instagramável”. Num único evento, caso houvesse esse tipo de levantamento, a quantidade de postagens chegariam a números impressionantes. Mas isso não quer dizer que, em sua essência, essas comemorações não celebrem a simplicidade, evocando um espírito intrinsecamente anti-tecnologia e pró-calmaria.    

Luiz Gonzaga, o Rei do Baião

Ainda que aconteçam muitas vezes em centros movimentados de cidades grandes, como é o caso de São Paulo, elas nos convidam a uma pausa (ao menos uma ideia de pausa), a uma reconexão com nossas tradições (ao menos uma ideia de reconexão), com nossa essência como povo. As festividades juninas são um elo com o passado, uma celebração da identidade brasileira, repleta de cores, sabores e melodias que nos conectam uns aos outros e à nossa história. No São João, as tradições se perpetuam, e a cultura brasileira se fortalece. É um momento de reafirmar nossa identidade, valorizando as raízes que nos tornam únicos. As festas juninas seguem sendo mais tradicionais do que nunca, preservando a magia e a autenticidade em um mundo que busca constantemente a modernidade.

Na medida em que o mundo digital avança num ritmo frenético capaz de assustar qualquer um, as festas juninas permanecem como uma pepita guardada em nossos corações, batendo de frente com a voracidade da vida contemporânea. 

Elas nos lembram da importância de celebrar a vida, de valorizar nossas tradições e de nos conectar com o que realmente importa: a essência da nossa cultura e a conexão humana.

Que Gal Costa, Dominguinhos e Luiz Gonzaga não deixem de se esbarrar.

A Bienal de Arquitetura de Veneza é uma das premiações mais importantes e tradicionais do setor, sendo reconhecida mundialmente. Sua 18ª edição, inaugurada para o público no último dia 20 de maio, tem como temática central “O Laboratório do Futuro”, com destaque para a influência e a indispensabilidade do continente africano na formação do mundo de amanhã. A exposição internacional, com curadoria de Lesley Lokko, conta com 89 participantes. Já a exposição nacional conta com 63 pavilhões. 

Foto: Murdo MacLeod/The Guardian

“Que impacto terá esta Bienal? Que impacto espera ter? Espero que ressoe, que provoque o público a pensar de forma diferente e talvez com mais empatia sobre aquelas partes do mundo que parecem, à primeira vista, ter pouco a ver com ele, que proporcione momentos de alegria, surpresa e curiosidade” 

— Lesley Lokko, curadora da Bienal de Veneza 2023

E, pela primeira vez na história, o pavilhão brasileiro foi agraciado com o Leão de Ouro de Melhor Participação Nacional. A exposição intitulada “Terra”, vencedora do prêmio, foi organizada por Gabriela de Matos e Paulo Tavares, que com inventividade e apuro teórico estimulam uma reavaliação do passado capaz de projetar o futuro. 

Matos e Tavares propõem uma reflexão sobre a arquitetura ancestral realizada por comunidades quilombolas e indígenas, ao mesmo tempo em que investigam a tese de que Brasília foi construída sobre terras originalmente ocupadas por povos nativos, abordando assim um processo de colonização territorial. O pavilhão contempla o passado, presente e futuro do Brasil, com a terra como tema central de discussão tanto de forma poética quanto concreta no espaço expositivo. Ao cobrir completamente o pavilhão com terra, os visitantes são convidados a entrar em contato direto com as tradições indígenas, quilombolas e com a prática religiosa do Candomblé. A instalação site-specific enaltece a abordagem da terra em todas as suas dimensões.

“Terra” também aborda um futuro pós-mudanças climáticas, um porvir onde os conceitos de “descolonização” e “descarbonização” caminharão juntos, quase como noções interligadas e inseparáveis. Práticas, tecnologias e costumes relacionados à gestão e produção da terra, assim como outras abordagens na concepção e compreensão da arquitetura, são fundamentados na terra e carregam conhecimentos ancestrais para ressignificar o presente e vislumbrar futuros alternativos. Esses futuros não se limitam apenas às comunidades humanas, mas também se estendem às não humanas, caminhando em direção a um futuro planetário.

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Com uma estrutura dividida em duas galerias — “De-colonizando o Cânone” e “Lugares de Origem, Arqueologias do Futuro” —, há uma aproximação entre temas emergentes no contexto brasileiro, como reparação e decolonialidade, e tópicos abrangentes e fundamentais no debate global contemporâneo, como descarbonização e meio ambiente. 

O Ministério da Cultura, que destinou aporte ao projeto, comemorou a vitória. A ministra Margareth Menezes, além de prestigiar a presença brasileira no evento, parabenizou os arquitetos vencedores em suas redes sociais por promoverem a cultura brasileira e proporcionarem aos visitantes uma imersão nas tradições indígenas, quilombolas e na prática religiosa do Candomblé.

Gabriela de Matos é criadora do projeto Arquitetas Negras, que mapeia a produção de arquitetas negras brasileiras e pesquisa o racismo estrutural e suas influências no planejamento urbano. Também é professora da Escola da Cidade, em São Paulo, onde é vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no departamento de São Paulo (IAB-SP). Em 2020, foi premiada como Arquiteta do Ano pelo IAB-RJ. Seus trabalhos pesquisam tanto o racismo estrutural e suas influências no planejamento urbano quanto a arquitetura contemporânea produzida na África e sua diáspora. 

O trabalho de Paulo Tavares abre um campo colaborativo voltado para a justiça ambiental e contra-narrativas na arquitetura, operando através de múltiplas mídias. Seus projetos foram apresentados em várias exposições e publicações em todo o mundo, incluindo Harvard Design Magazine, The Architectural Review, e a Bienal de Arte de São Paulo. Além disso, foi co-curador da Bienal de Arquitetura de Chicago 2019 e faz parte do conselho curatorial consultivo da Bienal de Sharjah 2023. No Brasil, lidera a agência de defesa espacial autônoma e leciona na Universidade de Brasília.

Leia nossa conversa com Gabriela e Paulo:

Foto: Matteo de Mayda/Courtesy La Biennale di Venezia/dpa/picture alliance

Do ponto de partida “Laboratório do Futuro”, como chegar à ideia de explorar a arquitetura ancestral realizada por quilombolas e indígenas no pavilhão “Terra”?

Um conceito que sempre foi crucial para nosso projeto é a ideia de que “o futuro é ancestral”, elaborada por Ailton Krenak e o movimento indígena. Há algo de muito profundo nesta ideia do ponto de vista do design, do desenho da paisagem, da produção de uma arquitetura da terra, por assim dizer, terra como chão e planeta. É amplamente comprovado cientificamente — e também através de certificados patrimoniais como recentemente laureado ao Quilombo Kalunga pela UNESCO — que os saberes e as tecnologias de produção e reprodução da paisagem cultivados através de gerações por povos originários e povos africanos diaspóricos são cruciais para enfrentar a encruzilhada existencial que se impõe à espécie humana frente a crise climática global. Por isso olhamos para estes espaços e práticas como tecnologias do futuro, tecnologias ancestrais e ao mesmo tempo radicalmente contemporâneas. 

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Qual foi o processo de pesquisa envolvido na coleta de informações sobre a arquitetura ancestral e sua relação com a colonização territorial em Brasília?

“Coleta de informações” é um termo ruim. O que tentamos fazer, com todas as dificuldades e limitações de um projeto desenvolvido em prazo tão curto, foi estabelecer relações com entidades e lideranças das comunidades e povos que são os autores das arquiteturas apresentadas no pavilhão. Por exemplo, o Terreiro da Casa Branca, as Tecelãs do Alaká, a FOIRN — Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, entre outros. São muitas gentes (sic) e terras que fizeram este pavilhão, a quem agradecemos por compartilhar deste projeto. E também tentamos entender de que maneira o projeto da bienal poderia estar em aliança com o contexto político destas comunidades e organizações. 

Por exemplo, o filme de Day Rodrigues, O Corpo da Terra, uma comissão da curadoria, fala das ameaças ao patrimônio do Terreiro da Casa Branca, em Salvador, primeiro patrimônio negro tombado no Brasil, que nos últimos anos tem visto suas terras ameaçadas pela especulação imobiliária e total descaso do poder público em preservar este patrimônio. Um outro exemplo é o modelo digital da Cachoeira do Iauaretê, desenvolvido em parceria com a FOIRN e a BrTech, que utiliza técnicas sofisticadas de preservação patrimonial digital. Esperamos que estes materiais possam ter uma agência para além de Veneza, fortalecendo a agenda de reconhecimento e proteção destes patrimônios culturais. 

Quais foram os principais desafios enfrentados ao propor uma reflexão sobre o passado para projetar o futuro na exposição? Em especial, como alcançar uma mensagem universal a partir das especificidades contidas no pavilhão “Terra”, como as reflexões sobre Brasília?

Acho que é importante salientar que, apesar de estarmos olhando para questões memoriais, questões relativas à memória e ao patrimônio, não estamos falando do passado no sentido de algo remoto, distante, passado em termos literais. Estamos falando de questões muito contemporâneas, que, sim, certamente refletem sobre a história, mas uma história muito presente. Por isso também não falamos de “arquitetura vernacular” ou “arquitetura tradicional”, ou mesmo “arquitetura popular”, para designar as espacialidades originárias e diaspóricas do Brasil. Estes conceitos são, em muitos sentidos, legados de um sistema colonial de classificação da arquitetura elaborado pela modernidade, que desafiamos no pavilhão através de diferentes camadas e narrativas. Talvez um termo mais adequado seja “arquiteturas ancestrais”, no sentido projetivo que a frase “o futuro é ancestral” de Ailton Krenak carrega. 

Sobre “como alcançar uma mensagem universal”, como você pergunta, achamos que a universalidade da mensagem está justamente no fato de que o pavilhão trata de questões e práticas locais, situadas e históricas, práticas do chão e do solo, mas que assumiram uma dimensão política global, propriamente planetária frente a crise climática, da terra à Terra. Além disso, questões sobre a de-colonização de narrativas canônicas e reparação histórica que abordamos no pavilhão são questões que estão na ordem do debate arquitetônico e artístico contemporâneo mundialmente. Considere, por exemplo, todo o debate sobre a restituição de objetos de arte pilhados de territórios colonizados que hoje encontram-se nos museus europeus, ou o debate sobre a reparação memorial que surgiu com o movimento Black Lives Matter, e explodiu em manifestações mundo afora em 2019. O pavilhão fala sobre o Brasil, mas o Brasil também como epicentro deste movimento global antirracista e de-colonial. 

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Quais foram as reações e feedbacks que receberam dos visitantes da exposição? Houve algum ponto de destaque ou surpresa?

Ficamos muito contentes com a conexão do público com a exposição, especialmente o público não especializado em arquitetura. Parece haver uma relação afetiva com a terra e o chão de terra instalado no pavilhão que traz questões mais amplas sobre nosso futuro, através da arquitetura, mas para além de seu nicho disciplinar. Antes da abertura estava muito úmido em Veneza, havia chovido por dias, e a instalação de terra preservou esta umidade, exalando um cheiro de terra batida molhada por todo o edifício. Criou-se uma atmosfera sensível com a terra, não apenas no nível da representação dos projetos expostos, mas da própria experiência espacial imersiva, da experiência arquitetural do pavilhão. Como escrevemos no catálogo, ao fazer uma crítica às narrativas hegemônicas do modernismo, principalmente através de Brasília na primeira sala, não poderíamos deixar de considerar que o edifício do pavilhão brasileiro no Giardini, uma obra do arquiteto modernista Henrique Mindlin, não é um objeto neutro, dissociado das narrativas e ideologias que sua arquitetura carrega. Logo esta instalação site-specific em diálogo crítico com a arquitetura patrimonial do pavilhão no Giardini, que chamamos de “aterramento”, aterrando o edifício sobre o chão de terra batida. 

De que maneira vocês enxergam a interseção entre arquitetura e questões climáticas no contexto da exposição “Terra”?

Existem vários aspectos onde a articulação entre os termos “de-colonizacão” e “de-carbonização” colocada pela curadoria de Lesley Lokko aparece na exposição. Mais explicitamente no reconhecimento de que saberes e tecnologias indígenas e negras, manifestas em espaços como terreiros, territórios indígenas e territórios quilombolas, apontam caminhos para o enfrentamento da crise climática global de maneira igualitária e sustentável. Veja uma coisa interessante: os espaços de terreiros em Salvador tornaram-se verdadeiras “ilhas ecológicas” em meio à expansão urbana predatória e muitas vezes ilegal (este é o atual conflito enfrentado pelo Terreiro da Casa Branca, que faz parte da exposição, que é o primeiro monumento negro tombado no Brasil e está sob constante risco da especulação imobiliária). Aqui encontramos um saber/fazer de espaços — liderados por mulheres negras identificado por Gabriela de Matos como a origem da arquitetura afro-brasileira — que nos parece fundamentalmente atual para lidar com as mais prementes questões urbanas e ecológicas contemporâneas.

Como vocês vêem o reconhecimento do governo brasileiro, representado pela ministra Margareth Menezes, em relação ao prêmio conquistado pelo pavilhão brasileiro? Vocês acreditam que esse reconhecimento reflete uma mudança de postura em relação ao incentivo à cultura no país?

Ficamos honrados com a presença da ministra Margareth Menezes no evento de abertura do pavilhão. Em seu discurso, Margareth Menezes fez uma leitura sobre o significado do projeto curatorial de Terra para o Brasil contemporâneo. Não é coincidência que este prêmio venha neste momento. O Brasil passa por um momento de reconstrução, de reparação, temas centrais do projeto curatorial. De certa maneira, o Leão de Ouro vir para o Brasil neste momento simboliza uma reparação pelo desmonte ao incentivo cultural dos últimos quatros anos.   

Quais desafios vocês enfrentaram, especialmente no período de gênese do projeto, para realizar a exposição Terra em um contexto em que a cultura foi pouco incentivada? Como pensar além e superar desafios para alcançar o reconhecimento internacional?

Os desafios foram muitos e vieram em escalas diversas. Desde a distância entre nós, pois moramos em cidades e estados diferentes; a dificuldade de, institucionalmente, se entender um projeto que estabeleceu pontos de partida propondo outros cânones, isto é, a partir de epistemologias pretas e indígenas; e, por fim, projetar algo que faz reverência a nossa cultura ao mesmo tempo que não tínhamos, no momento que iniciamos o projeto (out 2022), um departamento em âmbito nacional que estivesse apoiando o campo. No entanto, a presença da Ministra Margareth Menezes na abertura do pavilhão em Veneza afirma o compromisso de sua gestão com uma proposta como a nossa.

Foto: Rafa Jacinto/Fundação Bienal São Paulo

Com esse prêmio histórico, joga-se uma luz sobre o desafio de questionar, ou ao menos ampliar, as narrativas canônicas e expandir assim a compreensão sobre a formação do território brasileiro. Em termos práticos, o que mais pode ser feito para chegar lá?

Em termos práticos, a principal questão é política. As narrativas, imagens e imaginários de outras histórias, memórias, patrimônios, arquiteturas. Tudo isso é fundamental, e também fundamentalmente político, mas não é suficiente. No momento em que esse prêmio histórico chega ao Brasil, reconhecendo as práticas espaciais e territorialidades dos povos originários na Bienal de Arquitetura de Veneza, um dos mais importantes fóruns da arquitetura mundial, vemos um retrocesso absurdo, a continuidade da violência colonial por outros meios, através da aprovação, ocorrida hoje, ao tempo desta escrita, da PL490, que adotou a tese do “marco temporal” na demarcação de terras indígenas. 

O Leão de Ouro nos faz refletir sobre uma questão crucial de um Brasil em reconstrução, um Brasil que deve olhar para sua história como horizonte de um outro possível futuro. Como as políticas de reparação serão implementadas para além de uma questão simbólica, mas sim acompanhadas de ações que garantam os direitos dos povos a terra? Em muitos sentidos, o horizonte político de nosso projeto curatorial Terra é sobre isso, através e além da arquitetura. 

Não subestime o orgasmo. Ele nunca deve ser reduzido ao “clímax sexual” — não que isso seja pouca coisa, mas, no caso, a síntese não vem a calhar. Seria como descrever um livro de Dostoiévski ou Clarice Lispector tão somente como “páginas e palavras”. Pensar na história do orgasmo é mais do que pensar apenas na história da gratificação física humana. Para muito além disso, quando realmente paramos para colocar os pingos nos “is”, logo vemos que ele pode ser o epicentro, aquele condutor que não se vê, das meneiras com as quais homens, mulheres e parceiros do mesmo sexo formam e mantêm relacionamentos. Isso, por sua vez, tem sido crucial para direcionar o modo como a noção de família se desenvolveu, para determinar facetas importantes de como vivemos em comunidade e até mesmo para moldar, por meio do casamento e da herança de propriedade pelos filhos de uma união sexual, como distribuímos terras e bens materiais. E por aí vai, com um aspecto determinando o outro: esse “clímax sexual” talvez seja o grande ponto G da História da humanidade.

Meg Ryan em “Harry & Sally – Feitos Um Para O Outro” (1989), de Rob Reiner. Ao simular um orgasmo em pleno restaurante, uma senhora sentada à mesa ao lado diz para a atendente: “Vou querer o mesmo que ela.”

A busca pelo orgasmo, a vontade de senti-lo, é desde sempre um dos impulsos mais poderosos que temos. Sua importância e seu poder de mobilização se manifestou em todas as culturas e países do mundo. O que torna tudo mais interessante é que, ao longo da História, a sexualidade acontece de jeitos, intensidades e em momentos diferentes. E isso vale mesmo para aqueles que, por alguma razão, não têm orgasmos. A sexualidade humana, evidentemente, não é um conceito cravado em pedra, não é uma linha reta de comportamentos e visões. Os bailes de máscaras de Veneza, lá pelos idos do século XVII, decerto eram diferentes do que, digamos, o mundo sexual dos aplicativos de relacionamento (apesar deste funcionar, ao menos em parte, um pouco como um jogo de máscaras). Cada qual trata o sexo e o orgasmo à sua maneira, de acordo com o metrônomo da própria época e do contexto cultural. Esse ato sexual, mesmo quando não sexual propriamente dito, serve de instrumento na ascensão social de pessoas (na maioria homens), ricocheteando na evolução cultural inventada pelos humanos. 

O orgasmo é então um ator cultural e, no fim, o impulso sexual é moldado não só pelos hormônios, mas também, e talvez principalmente, pela sociedade. 

Humano: às vezes excitado, mas sempre criativo 

O orgasmo é um ótimo exemplo da incrível inventividade humana. Que outro ser é dono de um gênio capaz de intelectualizar e atribuir tantos significados a fenômenos naturais, que, em última análise, nada mais são do que necessidades da vida? E, no meio do caminho, ainda descobrir novas formas de prazer, provenientes dessa peculiar criação de sentidos. Isso, aliás, acontece com mais frequência do que nos damos conta. Da necessidade de comer e da consequente descoberta de cozinhar alimentos, desenvolvemos a gastronomia; da necessidade de comunicar e da consequente evolução da linguagem, desenvolvemos a poesia. E, a partir da necessidade de reproduzir, transformamos o subproduto de nosso ato reprodutivo, o fenômeno do orgasmo, em uma busca de lazer que seguimos por puro prazer.

Richard Dawkins, autor polêmico de obras como Deus, Um Delírio e um dos principais pensadores de biologia evolutiva do mundo, chama a atenção para um fato que, sob os termos aqui discutidos, pode ser elucidativo: a contracepção vai, de forma inerente, contra os ditames darwinianos mais fundamentais, uma vez que oferece o prazer do sexo sem a reprodução. É o sexo pelo prazer e nada mais. Ele sugere que a explicação para tal comportamento é que o cérebro humano desenvolveu sua própria versão sobre o que é a sobrevivência.

Richard Dawkins fotografado no New College Oxford. Foto: Charlie Clift.

“Na natureza, onde não há contraceptivos, o desejo sexual leva à cópula. A cópula leva a filhos. Isso é tudo que os genes precisam. No mundo moderno, foram inventados os anticoncepcionais, assim é possível gozar da cópula sem que se pense em filhos. E é isso que nós fazemos o tempo todo, o que é anti-darwiniano, contrário aos ditames dos genes egoístas. Recebemos cérebros moldados para desfrutar do sexo. Também recebemos cérebros moldados para desfrutar de vários outros tipos de prazeres hedonistas. (…) Alcançamos o melhor dos dois mundos do ponto de vista do nosso próprio cérebro, mas não, é claro, do ponto de vista do gene.”

Richard Dawkins, em entrevista, ecoando a teoria contida no seu livro O Gene Egoísta (1976)

Ou seja: no sexo por prazer, o cérebro busca e experimenta o prazer como mais um método de sobrevivência. 

Mais do que prazer: energia vital e comunhão

Embora seja uma experiência universal, as percepções, simbolismos e representações culturais do orgasmo variam em diferentes sociedades ao redor do mundo. Na cultura ocidental, o orgasmo é frequentemente associado ao prazer, intimidade e satisfação sexual. É visto como um aspecto natural e desejável da atividade sexual, e é frequentemente representado de forma positiva na arte, literatura e mídia. Já em algumas culturas orientais, como a chinesa e a indiana, a coisa é um pouco diferente. Mais do que mero prazer carnal, o orgasmo é considerado uma parte integrante da filosofia taoísta e do tantra. Nessas tradições, ele é tido como uma fonte de energia vital (chi ou prana), que pode ser canalizada e cultivada para a saúde, bem-estar e espiritualidade. 

Shunga, nome dado à arte erótica japonesa, de Katsushika Hokusai.

Na história sexual da Índia, pouco foi documentado antes do famoso Kama Sutra, por volta do século III. No entanto, há evidências registradas de que a China era tão sexualmente consciente quanto países ocidentais, geralmente considerados como o berço da civilização. E, ao que tudo indica, despidos do moralismo cristão característico do ocidente, o sexo por lá nunca foi associado a um sentimento de pecado ou culpa. De acordo com os antigos escritos chineses sobre sexo, o que mais define o ato é a ênfase no prazer orgástico por si só, independentemente de questões de reprodução. O assunto da concepção quase não aparece na literatura, tão extasiados eram os chineses pelas sutilezas mecânicas e emocionais do ato de fazer amor. 

No taoísmo, acredita-se que o orgasmo possa desempenhar um papel importante na circulação e no fortalecimento dessa energia vital. Para alcançar isso, os taoístas desenvolveram várias técnicas e práticas sexuais específicas. Uma dessas práticas é conhecida como “cultivo sexual” ou “sexo taoísta”, que envolve prolongar o ato sexual e retardar a ejaculação, permitindo que a energia sexual seja direcionada para outros aspectos do corpo, em vez de ser dissipada rapidamente. Os taoístas acreditam que essa prática pode levar a um aumento da vitalidade, saúde e, claro, espiritualidade.

Além disso, o taoísmo também enfatiza a importância do equilíbrio e da moderação em todas as áreas da vida, sendo a sexualidade apenas mais uma delas. De acordo com essa tradição, o orgasmo excessivo ou a busca obsessiva pelo prazer sexual podem ser considerados contraproducentes para o desenvolvimento espiritual. As práticas sexuais taoístas são muitas vezes consideradas parte de uma tradição mais ampla de práticas, que incluem meditação, exercícios físicos e outras técnicas. 

O Tantra, por sua vez, define o orgasmo como o resultado feliz e indescritível da interação entre o potencial sexual dos dois amantes, produzindo uma polarização das energias bioelétricas na forma de uma liberação de tensão estática semelhante ao trovão. As raízes do Tantra datam aproximadamente de 1500 a.C., sendo encontradas em antigos textos védicos. No entanto, o Tantra emergiu como uma tradição distinta que se desenvolveu paralelamente aos Vedas — a língua indo-europeia falada na Índia de então — e diferia em suas práticas e abordagens. Uma das teorias sobre as origens do Tantra sugere que sua gênese se deu como uma reação à rigidez e formalidade dos rituais védicos. Ele buscava uma abordagem mais prática e experiencial da espiritualidade, enfatizando a união e a interação entre o divino e o humano, o masculino e o feminino, o corpo e a mente. Os yantras e mandalas tântricos indianos frequentemente incorporam símbolos de união e prazer sexual, representando o orgasmo como essa expressão de uma energia que vai além do plano físico.

Mandala da divindade budista Chakrasamvara (aprox. 1700-1800)

O orgasmo, portanto, produziria em cada um dos amantes, separadamente ou simultaneamente, um profundo sentimento de contentamento com ecos sincronizados em cada plano de seu ser. A prática envolve aprender a estar presente no momento, a explorar o corpo e os sentidos, a cultivar a intimidade emocional e a canalizar a energia sexual para fins espirituais.

Perpassando culturas ao redor do mundo, percebe-se alguns fatores comuns nas interpretações do que é o orgasmo, em especial o que diz respeito à aura etérea. Em várias culturas indígenas, por exemplo, ele é frequentemente associado a rituais sagrados e celebrações da fertilidade, visto como um ato de comunhão com a natureza e com os poderes divinos que governam a vida e a procriação. No contraponto interessante da cultura islâmica, muito embora a sexualidade seja vista como uma parte natural da vida, sendo valorizada dentro dos limites do matrimônio e com moderação, o orgasmo é considerado um presente de Deus e uma expressão de amor e prazer entre um marido e uma esposa dentro do casamento. 

Há um certo consenso: esse êxtase terreno tem o condão de elevar ao plano celestial. 

Definições e mais vislumbres divinos

O que realmente acontece com homens e mulheres quando atingem o orgasmo? Como o processo iniciado nos centros nervoso e psicogênico se traduz no vascular e no muscular? A descrição biológica soa um tanto quanto fria e, com frequência, nem mesmo as descrições literárias chegam lá. 

Nobuyoshi Araki, com a série “Orgasmos”

Temos nomes diferentes para o nosso objeto de estudo: clímax em português e climax, sem acento, em inglês; sukun em urdu; trupti em tâmil; e tantos outros. Ter um nome, no entanto, não significa saber descrevê-lo. Como você se sairia numa prova caso respondesse “A Hora da Estrela” para a questão “Descreva a principal obra de Clarice Lispector”? O dever da dissertação é o que nos pega de surpresa. Por onde começar? Parece haver tantas descrições, mas, ao mesmo tempo, poucas de fato dignas das sensações per se. Por que é tão difícil? De duas, uma: ou isso comprova a subjetividade e a intimidade extrema da experiência, ou, mais do que isso, comprova que nos perdemos tanto no calor do momento que refletir sobre ele a posteriori jamais se equipara ao que foi vivido. Como a mais complexa das poesias, trata-se de versos que se perdem na tradução.

É claro que há descrições que evocam com eficácia um pouco das rajadas elétricas que tanto fazem nosso corpo pinicar, inclusive tempos depois do ocorrido. O escritor britânico, Toby Young, em um livro autobiográfico de 2001 chamado Como Fazer Inimigos e Alienar Pessoas, faz uma descrição pós-orgásmica comovente:

“De repente, tudo pareceu encolher de tamanho, como se eu estivesse me afastando da cena a cento e sessenta quilômetros por hora. Só que não era uma sensação espacial, nem um movimento linear. Era como se a gravidade que mantinha minhas emoções sob controle tivesse desaparecido. Era como estar na ondulação do mar, mas não exatamente. Acima de tudo, havia a sensação de estar fora do tempo, o que Freud chamou de ‘a sensação de eternidade’. Era como tocar algo com uma parte de mim que eu normalmente não conhecia. 

Senti como se tivesse feito contato com a própria essência do universo.”
(Richard Toby, em Como Fazer Inimigos e Alienar Pessoas, 2001)

Salvador Dalí, “Visage du Grand Masturbateur” (1929)

O fato de que muitas culturas ainda acreditam que os orgasmos são experiências místicas, convenhamos, não chega a surpreender. Qualquer um de nós consegue enxergar a sensação arrebatadora do orgasmo e pós-orgasmo como algo paralelo a uma experiência religiosa. A descrição inspirada de Toby Young, quase uma parábola bíblica, deixa isso claro. Mas devemos ter em mente que isso só pode acontecer a partir do momento em que os seres humanos começaram a desenvolver a espiritualidade como uma busca por significado, propósito, inspiração e respostas sobre o infinito que existe na vida. Seria o “Meu Deus!”, tão gritado nessas circunstâncias, mais um indício da experiência etérea que é o orgasmo? É comum que tomemos essa sensação corporal com uma sensação impressionante, reveladora, sentimento metafísico místico de harmonia com o universo.

Ainda hoje, há uma literatura ampla que argumenta a favor do orgasmo como uma experiência mística. O movimento hippie dos anos 1960 foi pioneiro ao entender que os antigos hindus, maias, astecas e egípcios tinham orgasmos melhores e mais significativos do que os consumistas modernos. Crescer num mundo cristão é crescer num mundo em que o prazer sexual, como uma questão de política, é impregnado de culpa, além de ser altamente reprimido também em parte como uma estranha afirmação da superioridade do ser humano sobre os animais. Os hippies, então, foram atraídos pela junção do êxtase sexual ao êxtase religioso. O que era excomunhão para uma comunidade, era apoteose para outra.

Mas nos dias pré-cristãos, principalmente nos milênios do Antigo Testamento, não havia nada de impiedoso em gostar de sexo. Na verdade, fazê-lo era bastante religioso. Os êxtases do místico teísta são intimamente relacionados à união sexual, como alma e Deus performando um ato carnal bigâmico. Se é que há blasfêmia no paralelo entre o orgasmo e a aproximação mística com Deus, a blasfêmia não está na comparação, mas na transferência de responsabilidade de um dos únicos atos de que o ser humano é capaz que o torna semelhante a Ele, tanto na intensidade de união com os parceiros quanto na capacidade de, nessa união, sermos descobridores de novos mundos. 

No orgasmo, somos tão criadores quanto Deus.

Relaxa e goza

A alegria do orgasmo é uma forma de afetividade que indica nosso envolvimento primordial com o mundo. Não somos apenas seres receptivos que registram somente aquilo que nos aparece com forma e tamanho, somos também seres que, por nos importarmos profundamente com muito do que está por aí, elaboram interpretações pessoais que nos definem. Portanto, embora o orgasmo seja, em certo sentido, uma experiência solitária, incitando nossa consciência a se concentrar totalmente em nós mesmos, em nossos corpos e em nosso tempo pessoal, é também um ímpeto que nos força extasiadamente para fora, para o mundo e para os outros seres humanos. Mas, como qualquer outro evento perceptivo, é sempre uma experiência situada que ocorre dentro de algo que é mais amplo e maior do que as sensações puramente físicas que envolve. 

O orgasmo sempre foi, e sempre será, imbuído de mistério — e é aí que está a graça. Não há fórmula para chegar às nuvens, mas percorrer o caminho até lá é chegar à própria essência do universo. 

Detalhe de Un vendredi au Salon des Artistes français, de Jules Grün (1911)
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Festas e frestas

Uma conversa profunda vale muito mais que horas de papos superficiais.”

Todo ano a mesma coisa. Corro do trabalho, me arrumo com pressa. Penteio as crianças e quando chego no jantar de família, todo aquele vendaval preparatório parece se arrefecer. Muita comida, muito barulho, muita gente.

Conversas de pouca intimidade com alguns, de muita com outros. A sobremesa custa a chegar, crianças pedem para ir embora. Entendo, afinal, sou a primeira a cansar destes eventos. Festas são experimentos de muita exposição para mim, e embora eu adore gente, detesto ficar além do meu tempo. Desde mocinha. Acredito que isso se dê por uma certa permeabilidade que sinto em alguns encontros. Festas são feitas de excessos e ausências, concomitantemente. De barulho e solidão.

Para mim a melhor parte das noites, sempre se deu nas conversas. Sou psicanalista não é por acaso. Acompanhar a história de alguém, suas dores e angústias, tem um aspecto majestoso para mim.

Ontem, ouvi uma mulher contando sobre seu marido doente com tanta intensidade que o caso me foi suficiente. Era o suficiente para aquele evento. Não havia como sair de barriga mais cheia e coração mais quente. Uma conversa profunda vale muito mais que horas de papos superficiais.

A senhora me contava do marido acamado que já não a reconhecia, da tristeza que sentia por isso. Abria os braços e gesticulava, como se quisesse segurar o tempo, dedos longos abertos com firmeza, apertando o ar: “Ele foi meu amor desde os catorze anos, meu primeiro e único amor. Como vou viver sem ele?”

Em seus olhos verdes arregalados, vi o pavor que sentia em ficar viúva. Porém, quando começou a falar de quando se conheceram, seus olhos passaram a brilhar de encantamento. Ela me contava, orgulhosa, de tudo que aquele homem havia construído, sua capacidade de criar, pensar, seu jeito amoroso com os filhos e todo seu legado. O marido tinha sido um grande construtor. Enquanto falava, descrevia prédios famosos da cidade que haviam sido projetados por ele, admirada.

O que ela não viu, eu vi. Seu rosto assustado, reconstruído pela ternura e pela força das memórias daquilo que haviam vivido até então. Era como se, ao lembrar-se do que o marido tinha sido, o amor rejuvenescesse sua alma. Naquele segundo, vi aquela senhora jovem outra vez, tamanha a vitalidade com que me apresentava seu amado. Era visível o antídoto da memória funcionando como a celebração de um encontro, de duas pessoas, nas linhas traçadas nas palmas de duas mãos. Eu me sentia como se visitasse uma cidade bonita e entendesse naquele momento, a história por trás da estátua da praça central.

De fundo, ouvia a família de meu marido fazendo as preces judaicas da festa de Pessach. Mas eu e ela decidimos por não acompanhar a reza. Ficamos de canto e ela me apresentando seu amor.

Segurava as mãos dela enquanto a ouvia e me sentia como se estivesse entrando numa fresta sagrada, no meio de uma festa. A conversa se dispersou quando a mesa encheu com outros membros da família. Outros assuntos, outras conversas, crianças brincando. A vida continua depois das frestas abertas. Hora de voltar. Saí antes da sobremesa, pensando que era como se ela tivesse me mostrado a joia mais preciosa de seu cofre, o capítulo mais importante de sua história.

Tem algo tão sublime no encontro de duas pessoas – e a história da origem de uma família quando ouvida num momento de celebração explica toda a finalidade de uma existência. Pessach significa passagem, algumas pessoas passam e ficam. Ao final também estamos aqui de passagem, isso veio escrito nas linhas invisíveis da certidão de nosso nascimento.

Uma vez, uma atriz me contou de uma conversa com Elke Maravilha na qual ela disse: “Quando damos a vida a alguém, damos também a morte”. Isso é inevitável. A despedida sempre está lá, mas aquilo que fica daqueles que passam por nós, enquanto existirmos não passa jamais. Fica dentro de nós, como uma estátua concreta, imune às tempestades, erguida na praça do nosso coração.

E quando esse encontro é suficientemente forte, basta uma centelha de memória para acender outra vez toda uma existência.

“A Rede Social”, de David Fincher (2010)

Hoje, um punhado de big techs prosperam como monopólios escondidos bem debaixo do nariz do mundo inteiro, como uma confidência amplamente conhecida mas ignorada. Elas formam o núcleo infraestrutural de um universo tecnológico em constante expansão, operando como interfaces digitais praticamente obrigatórias para a troca social e colonizando tanto a vida profissional quanto o consumo privado, além de controlar como verdadeiros mestres titereiros os fluxos de informação e comunicação. 

Mark Zuckerberg prestando testemunho em Washington, 2018. Foto: Alex Brandon-Pool/Getty Images

Tolos são aqueles que acham que a Amazônia ainda é o “pulmão do mundo”. Esse posto, na verdade, foi reivindicado por outro lugar já há algum tempo: o Vale do Silício é quem atualmente faz o mundo girar. 

Exemplo dessa realidade tenebrosa é o que não falta: foram as plataformas digitais que mais favoreceram a ascensão da extrema direita, certo? No Brasil que elegeu Jair Bolsonaro e nos Estados Unidos que elegeram Donald Trump. E, como prova de que estamos totalmente à mercê das idas e vindas dessas grandes empresas, foram elas também que uniram forças para banir o mesmo Trump da esfera pública digitalizada depois que o ex-presidente norte-americano incitou a violência no Capitólio. Embora existam evidências legítimas de que as big techs estão mexendo um pauzinho ou outro para combater a violência política oriunda de suas próprias interfaces — mesmo que, sim, meramente por estarem sob pressão pública e forte vigilância midiática —, esses e outros casos ilustram o crescente poder que essas mega corporações exercem sobre a vida social de todo o planeta. 

E o mais aterrador: em algum nível, esse poder parece ser incontrolável, o que não é necessariamente mau visto por quem acumula mais e mais dinheiro. 

Essas empresas, é óbvio, extraem renda ilimitada de suas respectivas posições na economia digital. Não querem sair do trono onde estão sentadas tão confortavelmente. E, assim sendo, realengas que são, vão em busca de estratégias para ir mais além, chegando a elaboradas técnicas financeiras, que inevitavelmente são traduzidas em lucros estelares e recursos inigualáveis usados para expandir seus monopólios de plataforma em escala e escopo. 

Ou seja, para a surpresa de ninguém, apesar de eventuais discursos apaixonados que dizem o contrário, no fim elas não querem ser capazes de se controlar.

Muito domínio para o própior bem

“O Dilema das Redes” (2020), filme de Jeff Orlowski.

É um caso clássico de um poder que ninguém deveria ter.

As grandes empresas de tecnologia estão exercendo um impacto colossal em diversos aspectos da sociedade. Essas empresas-titãs, por serem donas de tanta magnitude e poder, têm influência determinante em várias áreas devido ao seu alcance global e domínio amplo. Tal poder é exercido em diversas frentes.

Empresas como Google, Amazon, Apple, Meta e Microsoft dominam seus setores, o que lhes confere uma autoridade perigosa. Elas controlam plataformas e serviços essenciais usados por bilhões de pessoas em todo o mundo, o que lhes permite ditar as regras e moldar a experiência dos usuários. É assim que as big techs conseguem acumular enormes quantidades de dados sobre os usuários, desde seus hábitos de consumo até suas preferências pessoais. E esses dados são usados para alimentar algoritmos de aprendizado de máquina e inteligência artificial, permitindo às empresas melhorar seus produtos e serviços, além de segmentar anúncios e personalizar as experiências dos usuários.

É assustador pensar que big techs têm grande influência política, em um nível global, já que elas mantêm laços estreitos com governos e políticos, realizando atividades de lobby e contribuindo para campanhas políticas, o que pode levar a políticas favoráveis às suas próprias agendas e interesses. O impacto delas na economia global é verdadeiramente expressivo, tanto como criadoras de empregos quanto como impulsionadoras de setores inteiros. Por exemplo, empresas como a Amazon têm transformado o varejo e a entrega de produtos, enquanto a Apple e a Google têm moldado o mercado de aplicativos móveis.

Há quem diga que, apesar das novidades tecnológicas do nosso tempo, as grandes empresas de tecnologia apenas aumentam as tendências capitalistas pré-existentes. Em outras palavras, o que é novo não é a tendência ao monopólio, mas sim a comercialização desenfreada de pegadas digitais.

O debate em torno do papel e da influência das big techs continua evoluindo e é importante encontrar um equilíbrio entre a inovação tecnológica e a proteção dos direitos e interesses dos usuários. Mas a amplitude e a profundidade da digitalização vertiginosa nos convidam a repensar a lógica do capitalismo. É uma nova lógica de acumulação, conhecida como capitalismo de vigilância — surveillance capitalism, no termo original —, voltada para extração de dados e modificação comportamental. 

Capitalismo de vigilância e suas implicações

“O Código Bill Gates” (2019), minissérie de Davis Guggenheim.

Essa mutação do capitalismo é a que cobre a abominável e escusa utilização da imensurável quantidade de dados que usuários fornecem gratuitamente a empresas de tecnologias, transformando-a em matéria-prima e produto final altamente lucrativos. Não é necessário pensar em algo fora do comum para visualizar um cenário em que alguém dá à web todo tipo de informação de mão beijada. Preferências, emoções, hábitos, posicionamento político, credo e tantas outras características que a definem enquanto pessoa e que, mais tarde, será usada para fins diversos. 

Todas essas informações são consideradas dados em estado bruto. Às vezes, esses dados são usados para melhorar a experiência do usuário, personalizar conteúdo e anúncios, oferecer recomendações relevantes e aprimorar os produtos e serviços. Mas nem sempre.

5 big techs dominam o universo tecnológico por enquanto, com milhares de plataformas menores orbitando em torno delas e milhões de aplicativos construídos sobre suas costas. São elas: Alphabet (Google), Apple, Amazon, Microsoft e Meta. Com cada uma dessas empresas tendo um monopólio para chamar de seu, as big techs como um todo passaram a colonizar as principais formas e meios de troca social, sobrepondo as formas pelas quais as pessoas costumavam interagir por meio de interfaces digitais. Isso vale para comunicação e informação, para trabalho ou consumo e, ao definir os padrões para kits de ferramentas de software, e liderar o desenvolvimento do hardware para permitir a troca, essas empresas se colocaram como interfaces obrigatórias para todos os tipos de troca na economia digital. 

É uma nova realidade que se sobrepõe à economia e à sociedade, com as big techs operando sob as lógicas de seu próprio jogo, sujeitando cada vez mais o resto do mundo às suas diretrizes imponentes e intrusivas. E bota intrusiva nisso.

O uso indevido de dados pessoais por parte das big techs é uma das grandes questões do mundo atual. Casos de vazamentos de dados, violações de privacidade e escândalos envolvendo o uso de informações pessoais sem o consentimento adequado dos usuários surgiram. Essas questões levantaram preocupações sobre a segurança e a proteção dos dados pessoais nas mãos dessas empresas. Para lidar com essas preocupações, algumas regulamentações de proteção de dados — como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) na União Europeia e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil —, foram implementadas para fornecer maior controle e transparência sobre o uso de dados pessoais. Essas regulamentações estabelecem diretrizes sobre a coleta, armazenamento, processamento e compartilhamento de dados pessoais, além de fornecer aos usuários mais direitos e opções em relação ao gerenciamento de suas informações.

Há, portanto, esforços em andamento para regulamentar e proteger a privacidade dos usuários, tentando garantir que o uso dessas informações seja feito de maneira ética e legal. 

Mas quando essas empresas exercem tanto poder e influência na política, na economia e na sociedade, ficamos com a pulga atrás da orelha. Um termo como capitalismo de vigilância devia dar calafrios a qualquer um. 

(Falta de) limites morais

As grandes empresas de tecnologia são entidades comerciais que buscam maximizar seus lucros e crescer no mercado, então é comum que os interesses corporativos prevaleçam sobre os limites morais. Não deveria, mas é. Em muitas circunstâncias, as decisões são tomadas em detrimento de considerações morais ou éticas mais amplas e os casos de empresas acusadas de usar práticas questionáveis ​​de coleta e uso de dados pessoais dos usuários, violando toda e qualquer privacidade, comprovam isso de maneira categórica. Além do que, algumas empresas podem estar dispostas a sacrificar a transparência ou manipular algoritmos para promover determinados conteúdos ou maximizar o engajamento, mesmo que isso signifique a disseminação de informações falsas ou prejudiciais.

O que nos leva, claro, ao episódio recente envolvendo o Telegram e sua infame mensagem que dizia aos usuários que “o Brasil está prestes a aprovar uma lei que irá acabar com a liberdade de expressão”. A empresa, conhecidamente orgulhosa por seu desacato às autoridades — o que acaba sendo seu principal diferencial, quando comparada ao concorrente WhatsApp (ainda que esse não seja moralmente irrepreensível) —, manifestava sua ojeriza em relação ao projeto de combate às fake news que tramita na Câmara dos Deputados. Ir com unhas e dentes contra um projeto que, entre outras determinações minimamente sensatas, criminaliza a divulgação de conteúdos falsos por meio de contas automatizadas e determina a retirada imediata de conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes, transparece a gema obscura do Telegram. E, sabemos, ela não é a única empresa que é contra a regulamentação. O que isso nos diz sobre os valores morais e éticos das big techs?

É claro que nem todas as empresas de tecnologia agem dessa maneira — principalmente, nem todos os funcionários dentro dessas empresas compactuam com tais modus operandi condenáveis. Muitas dessas pessoas têm consciência dos desafios éticos associados à tecnologia e estão pressionando por mudanças internas. Além disso, existem organizações e ativistas que trabalham para aumentar a conscientização sobre essas questões e exigir responsabilidade das big techs. A pressão da opinião pública, a concorrência no mercado e a implementação de regulamentações governamentais podem incentivar as empresas a repensar suas estratégias e considerar mais profundamente as implicações éticas de suas ações. 

Embora os interesses corporativos possam influenciar as decisões das empresas de tecnologia, o que parece fugir à lógica dessas empresas é que é fundamental que haja um equilíbrio entre a busca por lucro e a responsabilidade social. A sociedade como um todo desempenha um papel crucial na definição dos limites que devem ser aplicados a essas empresas, seja por meio de regulamentações governamentais, boicotes, engajamento cívico ou outras formas de pressão. Cada vez mais a tecnologia adentra a vida das pessoas. Por um lado, isso pode ser positivo, quando essas inovações estão atreladas a resolução de um problema humano, por exemplo, ou então facilitam alguma atividade que outrora necessitava de bem mais tempo investido. Por outro lado, essas novas tecnologias podem nos tornar dependentes de certos recursos e, consequentemente, das empresas que nos trazem essas inovações.

Quando os setores de IA dessas empresas crescem desenfreadamente e as equipes de ética diminuem em ritmo similar, fica claro que temos um problema.

Mas as coisas vão realmente bem para as big techs?

Os bancos centrais exercem poder por meio dos mercados financeiros, criando várias interdependências entre domínios e interesses públicos e privados. Esse núcleo de infraestrutura é continuamente refinado por meio da extração e análise de dados, acumulando mais aluguel e poder em um ciclo que aumenta as dependências tecnológicas dos estados. É por essas e outras que os legisladores em todo o mundo precisam controlar o poder crescente das big techs, antes que elas absorvam o poder dos governos eleitos democraticamente: as grandes empresas de tecnologia se tornaram caixas eletrônicos altamente financiados para seus acionistas e executivos. 

Para aqueles que acreditavam que os multibilionários da tecnologia são intocáveis, parece impensável qualquer cenário que não remeta àquela imagem de Tio Patinhas nadando num mar infinito de dinheiro. Mas o futuro talvez não seja tão promissor a essas empresas quanto imaginamos. 

Em 2020, o mundo foi forçado a frear bruscamente. A pandemia forçou as pessoas a mudarem suas vidas profissionais e sociais totalmente. Para a grande tecnologia, isso foi um grande impulso, já que essas transformações apontaram muito para a vida online. As principais empresas de tecnologia atingiram os níveis mais altos de capitalização de mercado na história, o que permitiu com que contratassem e investissem significativamente. Depois de um tempo interminável, as coisas voltaram ao normal e a maioria das pessoas se reajustou do mundo virtual para o real, num balanço funcional entre os dois, deixando as grandes empresas de tecnologia com planos ainda mais megalomaníacos, expostas ao superestimar o crescimento das atividades online. Presumiram, erroneamente, que as pessoas iriam para o mundo virtual e ficariam lá, mas não foi o caso. 

O Fundo Monetário Internacional, por exemplo, descobriu que os gastos online aumentaram de 10,3% antes da pandemia em 2019 para 14,9% em 2020 durante a pandemia, mas depois caíram para 12,2% em 2021 após o levantamento das restrições. A grande tecnologia foi, portanto, forçada a ajustar suas expectativas de crescimento. Mas a volta à normalidade não é a única má notícia na perspectiva da Meta e de outras empresas. 

Como o resto da economia, as big techs sentiram o efeito de uma sucessão de choques. A inflação galopante, o aumento dos preços da energia e a interrupção das cadeias de suprimentos globais têm sido notícias tristes para as famílias, especialmente aquelas com renda mais baixa, e para as empresas, que em alguns casos não tiveram escolha a não ser fechar as portas. As empresas de tecnologia também sofrem. Eles enfrentam custos crescentes e demanda menor em suas principais operações de negócios, como a publicidade da Meta, que perdeu 4% de sua receita no último trimestre. E os bancos centrais aumentaram as taxas de juros, atingindo a indústria de tecnologia, que passou a depender de quantias colossais de dinheiro de baixo custo.

Por outro lado, visto que as big techs respondem ao lobby e têm relações estreitas com políticos e instituições que ditam os caminhos da economia, virou algo frequente nos últimos meses vermos CEOs convocando as pessoas a voltarem a trabalhar presencialmente, devido ao impacto econômico negativo que o trabalho remoto representa para grandes cidades. Um caso recente foi o de um dos criadores do Chat GPT, Sam Altman, que disse que o home office foi “um erro”. Isso só mostra, mais uma vez, que a lua que dita o vaivém das marés dessas empresas é inconstante e moralmente questionável. 

Com um presente em que líderes de Estado são forçados a dividir poder com os Zuckerbergs, Bezos e Musks do mundo, previsões para o futuro talvez não venham a calhar. Melhor pensar no que fazer hoje.

Mas isso só é possível no caso de a tecnologia já não ter mudado o nosso comportamento para sempre.

Utopia, por definição, trata de um mundo imaginário ou hipotético. Onde mais, que não no maravilhoso campo da imaginação e das hipóteses, viveríamos em uma conjuntura sociopolítica ideal? Venhamos e convenhamos: uma sociedade que se caracteriza pela perfeição elevada a todos os âmbitos, nivela classes sociais e proporciona a todos felicidade, igualdade e realização, não é coisa deste mundo. O termo “utopia” foi cunhado pelo escritor Thomas More (1478 – 1535), que também era político, num livro de 1516, que retrata uma sociedade idílica localizada em uma ilha imaginária. Ao representar a perfeição, jogou luz nas ranhuras da vida real. No começo do século XVI, sem as catástrofes ambientais e as ameaças tecnológicas esmurrando as portas mas com um sem-fim de conflitos políticos já fazendo baderna dentro do cômodo, era sabido que a plenitude jamais seria alcançada por um corpo social. 

A humanidade e as suas formas de organização já eram tidas como eternos trabalhos em progresso. 

Na opinião do pensador francês Gilles Lipovetsky, as grandes utopias coletivas caducaram. Elas perderam a guerra para as utopias de cunho individualista — tema de sua obra-prima, A era do vazio, de 1983 — ou, então, para as utopias que não são tocadas pela esperança, mas sim pelo medo. É o caso das reivindicações feitas pelos ambientalistas: se não mudarmos logo, o mundo há de explodir. Simples assim, sem meio-termo. Desse medo para lá de compreensível, sentimos a necessidade de buscar soluções para evitar o fim de tudo, correndo atrás de um objetivo que estamos longe de alcançar. Há algumas décadas, fala-se à exaustão sobre o assunto, e com o devido tom alarmista, mas, desde que ele ganhou esse lugar cativo nos debates ao redor do mundo e virou pauta imprescindível para qualquer discurso político (ainda que, por ventura, esse discurso vá contra medidas ambientais), dá para dizer de boca cheia que algo realmente mudou? As previsões do futuro seguem aterradoras, talvez mais amedrontadoras que nunca, apontando mais para uma distopia digna de sci-fi

Seria esse tal mundo sustentável, sobrevivente da invasiva conduta humana, a grande utopia da modernidade?

Ao contrário do que aparenta num primeiro momento, a fala de Lipovetsky não é um ataque contra ambientalistas. O medo que os discursos sobre mudanças climáticas geram são provenientes de ciência. Não é condenável, portanto, adotar discursos pessimistas e insurgir nas pessoas um senso de responsabilidade emergencial para com o amanhã. O que o pensador francês sugere é que, na cambiante sociedade atual, em que a esperança sistemática soa cada vez mais como ingenuidade, não há muito espaço para se ter fé nas instituições. Numa era em que as pessoas fazem questão de evidenciar as inúmeras problemáticas estruturais que temos (sejam sociais, políticas e/ou culturais), não parece inteligente sonhar com grandes transformações que dizimarão o mal e farão florescer um planeta equânime. A ordem do dia pende mais para a metamorfose individual, uma versão hiperconectada e repaginada, bem menos gandhiana, de “seja a mudança que quer ver no mundo”.

A não ser, claro, que o medo esteja envolvido.

A ânsia por mudar o mundo jamais sairá de voga, isso é verdade. O que passa por um processo de remodelação, no entanto, é a maneira com que isso é sonhado, além dos porquês pelos quais esse impulso perdura na essência humana. Os projetos pessoais também têm forte poder de transformação e podem, sim, ser vistos como versões utópicas de nós mesmos, como impulsos para que melhoremos e façamos a nossa parte. É uma espécie de individualismo conveniente e que, no final das contas, é mais “pé-no-chão”. Quando isso se soma ao medo real proporcionado pela crise climática, a última grande utopia se apresenta como a única resolução (im)possível: a partir do conjunto de ações e transformações individuais, chega-se, quem sabe, à solução que salvará o planeta do proclamado colapso ambiental. Reciclagem, vegetarianismo, veganismo, conscientização sobre o desmatamento desenfreado, discursos inflamados nas redes sociais, tudo parte de uma lógica essencialmente individualista. Se isso tem o condão ou não de realmente proporcionar as mudanças estruturais necessárias, só o tempo dirá. 

Apesar dos indícios de que as coisas não vão bem, não dá para dizer que nada mudou. Mas, como os passos são pequenos (por vezes, menores do que as passadas céleres rumo à destruição), toda vez que uma nova marca é atingida, mais demandas surgem, nos afastando desse mundo saudável e verde, em cuja natureza é tratada como se deve. Fazemos pelo bem próprio apesar de ver pouco impacto prático no coletivo, com um grande medo do que pode acontecer agora e no futuro, mas com um medo maior ainda de nos perguntar: neste ponto, depois de anos de usar e abusar dos recursos naturais, será que dá para chegar lá?

“Diz-se o tempo todo que se as coisas continuarem como estão o planeta vai explodir. As utopias clássicas falavam de esperança. Temos, porém, muitas pequenas utopias à la carte, pessoais, particulares, singulares, sonhos de cada um: combater a miséria, preservar o patrimônio histórico, proteger a infância, melhorar o mundo, diminuir o sofrimento, ajudar os desfavorecidos, enfim. As utopias coletivas e sistemáticas é que desapareceram. Nada disso elimina o sonho de fazer coisas, de empreender, de reformar, de criar. As grandes utopias ideológicas, que pretendiam mudar o mundo como totalidade, cederam lugar às pequenas utopias realistas num mundo flexível e mutante.”

Gilles Lipovetsky

Há vinte anos, o filósofo francês Jean Baudrillard (1929 – 2007) afirmava que os desafios que a humanidade enfrentaria no início do século XXI seriam de importância vital, implicando em nada menos que a responsabilidade de garantir as condições de vida das gerações futuras. Deparamo-nos, todos os dias, com notícias sobre o último desastre ecológico, sobre os cataclismos políticos cotidiana, crises econômicas, escassez de recursos retornáveis e tantas outras notícias que pesam no nosso peito e formam nuvens sobre nossas cabeças. Existem três atitudes principais, e talvez complementares, às quais podemos recorrer como mecanismos de autodefesa frente à hostilidade de nossos tempos: o cinismo, o hedonismo e o ativismo (se é que esse é o termo mais adequado). Um: se o mundo está condenado por uma catástrofe iminente, por que eu deveria me preocupar com algo? Dois: ora, se o mundo está condenado por uma catástrofe iminente, o melhor a fazer é aproveitar a vida enquanto podemos. E três: se o mundo está condenado por uma catástrofe iminente, vou fazer o que posso para ajudar. 

Em Reality of the Virtual, o filósofo esloveno Slavoj Žižek desenvolve a ideia de que, perante o gozo imperativo que constitui o nosso atual ecossistema social, devemos aprender a sonhar com utopias e a viver nelas ativamente. A psicanálise moderna seria “o espaço onde é permitido não se divertir”. Isto é, uma hora completa em que você não precisa tirar fotos, postar, comprar e dar opiniões. Uma raridade no mundo de hoje. É a partir dela, ou de qualquer que seja o método de escape, que se cria o impulso autêntico para esse cinismo, o hedonismo e o ativismo. Sem interferência externa, como uma postura nascida de um contexto pessoal. 

A crítica de Žižek, claro, tem a ver com o “regulamento” total do capitalismo que nos diz “divirta-se” com o tapa de uma mão e “mas não coma demais, não fume, cuide da saúde física” com a outra. A sociedade capitalista não apenas nos manda desfrutar, mas dita os percursos adequados para fazê-lo. São percursos regulamentados que fazem parte da jaula dourada do nosso presente. Se partirmos da visão de Gilles Lipovetsky e reconhecermos que não existem mais utopias coletivas, muito do que nos é vendido perde força. Tudo que é demandado de nós enquanto indivíduos responde a uma demanda mercadológica, os valores e o zeitgeist de determinados tempos são ideais em constante metamorfose. Algo que vai de acordo com a moda da vez. A tarefa do pensamento atual é se opor ao imperativo intrínseco do capitalismo e das estruturas de poder, assumir que o estado atual das coisas não pode seguir esse caminho para sempre.

A principal tarefa hoje é reinventar a Utopia. Claro que não é a grande utopia antiquada de imaginar mundos irreais que sabemos de antemão que nunca serão realizados, essa é a utopia clássica. Devemos ousar realizar o impossível, devemos redescobrir como, não imaginar, mas realizar utopias. A questão não é planejar utopias; o objetivo é praticá-los. E acho que não é uma questão de ‘devemos fazer ou devemos persistir na ordem existente’? É uma questão muito mais radical, uma questão de sobrevivência: o futuro será utópico ou não haverá futuro.”

— Slavoj Žižek

Ou seja, uma utopia que não é teoricamente acabada antes de ser criada: uma utopia da prática individual e cotidiana.

Para que se criem novas utopias coletivas, hoje praticamente em extinção, a utopia do ambientalismo deve ser uma ambição de todos nós, seja ela impossível ou não. Muito embora o conceito de utopia seja frequentemente usado como uma ideia aspiracional, ela carrega em si a crueldade, e a força, daquilo que não vai se concretizar. Parece desarrazoado, mas, na verdade, a impossibilidade é a força motriz da coisa toda.

Se a cada dez passos que damos em direção às utopias elas cuidam de se distanciar dez passos mais, as utopias tem um propósito claro: fazer andar para frente.

Se tivermos sorte, uma era digital de vida breve será superada por uma cultura material híbrida baseada em antigos e novos modos de vida e de subsistência cooperativa.” 

— Jonathan Crary, em Terra arrasada: Além da era digital rumo a um mundo pós-capitalista

Não há uma resposta única ou consensual sobre o que virá ao fim do já extenso domínio do sistema capitalista. Pode parecer fora de mão pensar num mundo não regido pelos ditames que conhecemos tão bem, e com os quais às duras penas lidamos diariamente. Até mesmo conceber tal mundo alternativo soa como algo esquisito de se fazer. Mas é natural, e lógico, se ter em vista que, cedo ou tarde, o reinado atual há de acabar. O que espera na esquina? Não se trata de uma resposta certa, como as que vemos de vez em quando em filmes, aquela solução que se apresenta heroicamente no fim da lousa preenchida de contas. No entanto, existem várias teorias e abordagens que tentam imaginar ou antecipar o futuro dos sistemas econômicos. Karl Marx — sempre ele — previu alguns movimentos do futuro: dentre eles, viu a inevitabilidade de uma unificação capitalista do mundo na qual as restrições à velocidade de circulação e troca seriam progressivamente diminuídas por meio da “aniquilação do espaço pelo tempo”, e também entendeu que o desenvolvimento de um mercado mundial levaria necessariamente à “dissolução da comunidade” e de quaisquer relações sociais independentes da “tendência universalizante do capital”. 

Mas, diante deste mundo que Marx não chegou a conhecer, com o capitalismo mostrando sinais de enfim estar em sua fase terminal, o que dizem os pensadores contemporâneos?

Frente a frente com um planeta à beira de um colapso ambiental, e sempre a um passo de eventos nucleares ou da próxima grande recessão econômica, muito se fala sobre a chegada iminente de um pós-capitalismo, que nada mais é do que uma etapa de transição para um novo sistema que não depende do crescimento ilimitado e da exploração do trabalho humano. Em outras palavras, trata-se de uma fase em que o que hoje conhecemos como capitalismo ou é superado ou é transformado significativamente. Embora não haja ainda uma definição de como seria exatamente esse capítulo posterior ao capitalismo, no geral se espera que ele se caracterize por uma maior igualdade econômica, social e política, bem como uma maior ênfase na cooperação e colaboração entre as pessoas, indo na contramão da competição intrínseca atual. Economias alternativas com frequência são associadas a esse possível novo momento: economia colaborativa, compartilhada, circular e solidária, todas elas baseadas na ideia de que é viável construir um sistema ideal que valorize a cooperação e o bem-estar coletivo ao invés do lucro individual.

Nos últimos anos, devido a diversos fatores — entre elas: sucessivas crises dos mercados financeiros, aumento progressivo da desigualdade social, mudanças tecnológicas cada vez mais meteóricas, preocupações ambientais batendo à nossa porta —, a discussão sobre o pós-capitalismo tem se colocado sob os holofotes. É, portanto, a partir do final do século XX e início do século XXI que o debate ganha visibilidade e relevância, especialmente com o aumento da globalização e a traumática crise de 2008. Desde então, uma série de pensadores, ativistas e movimentos sociais têm proposto diferentes estratégias e abordagens para a construção de um sistema pós-capitalista, algo que possa superar as limitações e injustiças do atual modelo econômico. O que se pergunta é: quais são as melhores formas de alcançar um sistema pós-capitalista? O debate não só segue vivo e com saúde, mas a cada dia que passa ele é mais importante no contexto das crises atuais que a humanidade enfrenta. O britânico Paul Mason e o estadunidense Jeremy Rifkin são bons exemplos de vozes que teorizam sobre as possibilidades de amanhãs menos predatórios e ensimesmados, um futuro cujas fichas não estejam todas depositadas no mundo virtual (ainda que dele se beneficie).

Paul Mason & Jeremy Rifkin

“⁠A raiz do problema é, simplesmente, a globalização e a resultante monopolização da riqueza por uma elite global.”

— Paul Mason

Mason, jornalista e escritor, é conhecido por seus trabalhos acadêmicos nos campos da economia e da política, mas sobretudo pelo livro Pós-Capitalismo: Um Guia para o Nosso Futuro. Publicado em 2015, o livro comenta sobre o colapso do capitalismo e argumenta que estamos caminhando a passos largos em direção a uma nova era, uma página ainda em branco na qual as tecnologias digitais e a economia colaborativa podem abrir caminho para um sistema pós-capitalista baseado na produção em rede, na propriedade comum e na colaboração livre. Segundo Mason, o capitalismo tem mostrado sinais de exaustão nos vincos de sua face e já não é mais capaz de sustentar um modelo de crescimento baseado no consumo em massa e na exploração de recursos naturais. Ele aponta que a revolução digital e a emergência de uma nova geração de empresas colaborativas — como, vá lá, a Wikipédia e o Linux — estão criando as condições para uma economia que valoriza a colaboração, a inovação e a propriedade comum.

“A era capitalista está passando. Não rapidamente — mas inevitavelmente.”

— Jeremy Rifkin

O economista e ativista Rifkin, que faz coro a Mason, vem falando sobre a transição para uma economia pós-capitalista há décadas. Em seu livro A Terceira Revolução Industrial, publicado em 2011, argumenta que estamos no início de uma era econômica em que a internet das coisas, a energia renovável e a produção descentralizada estão criando as bases para, como diz Mason, um modelo de economia distribuída e colaborativa, baseado na produção em rede, na energia renovável e na economia do compartilhamento. Segundo ele, a tecnologia está criando as condições para uma mudança fundamental na forma como produzimos e consumimos bens e serviços, e que a transição para uma economia pós-capitalista é inevitável. 

Tanto Paul Mason quanto Jeremy Rifkin defendem a ideia de que uma inversão de mesa, um legítimo plot twist, está tomando forma há algum tempo: a tecnologia, hoje um tanto danosa, será fundamental para uma nova era. Essa visão de futuro pós-capitalista tem sido influente em diversos setores da sociedade, não só na política e no ativismo social, mas em meios acadêmicos também.

Será possível a era digital nos levar a um mundo menos digital? 

Embora a tecnologia e a digitalização tenham se tornado praticamente onipresentes em nossas vidas, há também um movimento crescente em direção a um estilo de vida mais simples, consciente e sustentável, um caminho praticamente inverso que pode incluir uma redução do uso de dispositivos eletrônicos e uma volta às práticas tradicionais. Como indícios desse movimento, observa-se o aumento da demanda por produtos e serviços locais e artesanais, um resgate da popularidade de atividades ao ar livre — de caminhadas a acampamentos —, e a valorização de práticas como a meditação e a desconexão digital. Essas e tantas outras escolhas apresentam alternativas simples e mais acessíveis do que a alta tecnologia. O conjunto constitui uma confrontação bem munida contra a ideia de que a conectividade é um jeito incontornável de se viver com felicidade e ser relevante. 

É bem verdade: é preciso colocar a cabeça para trabalhar para imaginar qualquer mundo sem o digital. Se nos deixarmos levar, toda e qualquer previsão do futuro é uma previsão da onde a internet e a tecnologia nos levará (e com nosso absoluto consenso). Qualquer hipótese que exclua o digital da operação parece fadada a virar motivo de zombaria, uma espécie de negacionismo mal visto. É como diz Jonathan Crary, outro pensador que tem o pós-capitalismo como pauta constante: “O complexo internético opera como uma proclamação sem fim de sua própria imprescindibilidade e da insignificância de toda forma de vida que continue avessa à assimilação de seus protocolos.” A cada momento, a cada scrollada, essa ideia fica mais incutida na nossa mente. É feito uma verdade universal, um não-questionamento incentivado pela própria realidade inquestionável. Com tanto acontecendo, talvez não haja tempo para que se inflame qualquer interrogação. Se uma onda violenta vem em nossa direção, por que contestá-la? Melhor fazer malabares em cima da prancha para tentar surfar. No meio do caos, esquecemos da possibilidade desse mar um dia se acalmar, como fazia há algum tempo.

A noção de que a internet funcionaria de forma independente das operações catastróficas do capitalismo global é só mais uma das ilusões estupefacientes do atual momento. Estão estruturalmente entrelaçadas, e a dissolução do capitalismo, quando vier, será o fim de um mundo pautado pelo mercado e moldado pela rede de tecnologias do presente.”

— Jonathan Crary

Jonathan Crary e o cansaço como impedimento do progresso

Jonathan Crary é um crítico cultural e historiador da arte que se insere na discussão sobre o pós-capitalismo ao explorar as implicações das mudanças tecnológicas e econômicas para a vida cotidiana e a subjetividade humana. Em seu livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, de 2013, argumenta que a nossa cultura atual, em que a economia global funciona 24 horas por dia e 7 dias por semana, tem implicações profundas para a nossa percepção do tempo, do trabalho e do descanso. A economia 24/7 “twenty four seven”  —, juntamente com as tecnologias digitais e de comunicação, estão mudando a forma como as pessoas experimentam o tempo, e que isso tem consequências na nossa capacidade de imaginar alternativas ao capitalismo. A cultura de agora, diz ele, está nos privando do tempo e do espaço necessários para refletir e imaginar novas possibilidades de organização social e econômica.

O livro Terra arrasada: Além da era digital rumo a um mundo pós-capitalista, lançado agora em 2023, questiona algumas “verdades” sobre o mundo digital, conceitos que, de tão embrenhados no nosso dia a dia, não chegam a ser postos à prova. 

As ferramentas e os serviços digitais utilizados por indivíduos do mundo inteiro estão subordinados ao poder das corporações transnacionais, das agências de inteligência, do crime organizado, de uma elite de sociopatas bilionários. Para a maioria da população na Terra à qual foi imposto, o complexo internético é o motor implacável do vício, da solidão, das falsas esperanças, da crueldade, da psicose, do endividamento, da vida desperdiçada, da corrosão da memória e da desintegração social.

Se o capitalismo tem como ordem do dia nos levar à exaustão dos recursos naturais, à desigualdade econômica e à exclusão social, então esses problemas só podem ser resolvidos por meio de uma transformação fundamental do sistema econômico e social. De acordo com Crary, isso só pode ser alcançado por meio de uma mudança radical nas relações de propriedade, no controle dos recursos produtivos e na distribuição da riqueza. E importante: é necessário que a briga seja levada para fora do âmbito das redes sociais.

O caráter constante dos tipos de luta e solidariedade exigidos por um movimento antiguerra ou anti-imperialista é inconciliável com as temporalidades e formas superficiais de atenção que acompanham a proliferação das redes sociais.

Em Terra arrasada, Crary explora como as tecnologias digitais estão, hoje, transformando a economia e a sociedade para pior, mas argumenta que elas têm o potencial de ser uma ferramenta para a criação de uma sociedade pós-capitalista, desde que sejam utilizadas de maneira estratégica e consciente. Ao examinar como as tecnologias digitais estão afetando a subjetividade humana, a privacidade e a autonomia individual, argumenta que a criação de uma sociedade pós-capitalista deve incluir a proteção desses valores. Num mundo em que as tecnologias de vigilância são cada vez mais sofisticadas, a nossa capacidade de resistir e lutar por alternativas está comprometida.

É possível que o futuro dos sistemas econômicos seja plural e complexo, com diferentes formas de organização coexistindo em diferentes contextos e escalas. O que quer que venha em seguida, independentemente de quando ou como isso acontecer, também pode envolver mudanças significativas nas estruturas de poder e nas relações de propriedade, incluindo a democratização da economia e a transferência do controle sobre os recursos produtivos das mãos de uma pequena elite para a sociedade como um todo. 

Sugerir que a internet é o local em que povos indígenas, imigrantes apátridas, desempregados, depauperados e pessoas encarceradas podem contestar sua própria marginalização e descartabilidade é não só errado como malevolamente irresponsável.

Talvez o pós-capitalismo, ou qualquer nome que se dê ao que está inevitavelmente por vir, não seja necessariamente um estado final ou um destino fixo, mas sim um processo contínuo de transformação social e econômica que pode levar a diferentes formas de organização social e econômica em diferentes momentos e lugares. O importante é que as pessoas sejam incentivadas a participar ativamente desses debates e a imaginar novas possibilidades para o futuro. Acima de tudo, a exemplo do que defende Jonathan Crary, é fundamental que se reduza o ritmo. Só assim, distante do frenesi viciante, que transformaremos, agora para melhor, a nossa escala de atenção e percepção de nós mesmos enquanto espécie: frear para que se enxergue a imagem turva do espelho. 

Em 1994, no sul da França, um grande acontecimento: foi descoberta a caverna de Chauvet, com imagens rupestres milenares. Crary extrai delas, e do timing de seu descobrimento, os melhores auspícios: para ele, elas “afirmam uma humanidade que somente pode florescer se aceitar sua inseparabilidade do mundo da vida animal e não humano”. 

Trocando em miúdos, não basta trocar a velocidade da máquina pela velocidade do humano, é preciso ir além. Ou, então, ir de encontro àquilo que está perdido mas que já se tem. 

O artista Seamus Wray prepara uma série de retratos na qual retrata a si mesmo | © Seamus Wray

Dizer que algo ou alguém é criativo — via de regra — é um elogio. Dentre os elogios, aliás, é dos mais lisonjeiros, digno de fazer com que rostos fiquem enrubescidos. Isso porque a criatividade ganhou uma importância monumental, um tanto por oportunismo mercadológico e político, outro tanto por um rol de gritos presos na garganta de uma ou duas gerações. 

Wheat Field with Cypresses, de Vincent van Gogh (1889)

Toda essa relevância, de tão imensa, faz com que esqueçamos, ou sequer comecemos a pensar, que a criatividade como a entendemos é, na verdade, uma noção relativamente nova. Muito se debate sobre de onde ela vem — é inata, cultivada, uma combinação dos dois? —, porém antes de entrar em tais méritos é pertinente definir o que é a criatividade. A questão não é tão simples quanto aparenta. O que logo vem à cabeça, claro, é aquela força motriz capaz de produzir arte, que, por sua vez, é o epítome de um “pensamento fora da caixa”, também alardeado como uma característica louvável para qualquer pessoa. O ser criativo, então, é comumente associado a todo tipo de criação artística. Certo. No entanto, o conceito pode ir muito além: desde atividades que se apropriam de técnicas e dão outro propósito para as artes, à exemplo do que fazem as agências de publicidade, passando pelo mercado financeiro e chegando — por que não? — em consultórios médicos. 

Dá para criar um layout, fazer um investimento e receitar um remédio, tudo dentro do mesmo campo, que, de acordo com o Dicionário Houaiss, pode ser definido como “inteligência e talento, natos ou adquiridos, para criar, inventar, inovar, quer no campo artístico, quer no científico, esportivo etc.” — e não necessariamente com um sendo mais criativo do que o outro.

No fim, criatividade lato sensu é também aquela solução arrojada para qualquer que seja a bricolagem de domingo, do mesmo jeito que é aquele caminho inusitado mas efetivo até a estação de metrô mais próxima. Ou será que, nesses casos, já estamos falando de outra coisa? Muito embora o Houaiss tenha uma leitura mais ampla, é verdade que esses tipos de soluções cotidianas não são tão valorizadas como as de cunho artístico e as de caráter corporativo. Isso quer dizer que vêm de um lugar diferente ou é somente mais uma construção cultural? Difícil dizer.

Voltemos algumas décadas. 

Os primeiros estudos sobre a criatividade foram realizados por psicólogos, como William James (1842-1910) e Alfred Binet (1857-1911), que buscavam entender como as pessoas criavam ideias novas e originais. Mas o conceito de criatividade, como essa manifestação quase divina que conhecemos hoje, surgiu nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. O que a princípio era mais um objeto de estudo reservado ao campo da psicologia logo se proliferou para inúmeras outras áreas. Como a medição de atributos mentais era importante nas abordagens da época, numa visão extremamente rasa do que era ou poderia ser a criatividade, depois de pesquisas psicólogos sugeriram que as pessoas mais criativas tinham pensamento divergente e tolerância à ambiguidade, além de preferirem arte abstrata e imagens assimétricas. No entanto, esses estudos pareciam condicionados a atribuir o dom da criatividade principalmente às classes mais altas, já que elas eram privilegiadas o suficiente para, a partir da instrução que tinham, elaborar interpretações de mundo um tanto mais complexas — compreendidas à época como sinais de inventividade. 

Mas a tentativa de justificar a criatividade por meio de uma causa psicológica somada à predisposição a fazer vista grossa diante dos diferentes níveis de escolaridade aprisionou a comunidade dos pesquisadores em um vai-e-vem tautológico. Os sintomas levavam às causas e as causas levavam aos sintomas. A frustração foi inevitável.

Enquanto isso, um pouco depois de 1945, a criatividade fervia no caldo de outros contextos. As organizações do pós-guerra — não só empresas, mas até mesmo as forças militares — valorizavam novas maneiras de pensar e agir. Não muito mais tarde, o pós-guerra virou a Guerra Fria e a competição com os soviéticos, estimulada pela ansiedade sobre uma lacuna tecnológica, levou o país a buscar melhores maneiras de obter o máximo de seus recursos humanos. Enquanto a URSS oferecia uma vida monocromática, cujos valores mais fechavam portas do que abriam, os estadunidenses fizeram de tudo para se mostrar como o contraponto colorido e cheio de possibilidades. A propósito, apesar de acontecerem ao mesmo tempo, as demandas de negócios surgiram independentes das pesquisas psicológicas, como resultado de um momento específico de um país que precisava chacoalhar a maneira com a qual crescia economicamente e culturalmente. 

O american way of life ainda era relevante, mas já não pulsava com a mesma força. Os EUA eram a terra da criatividade e dos sonhos (“the land of the free and the home of the brave”, como proclama o hino); a URSS, por outro lado, era a representação da existência sem imaginação. 

Para se ter uma noção, em 1956 o número de trabalhadores de colarinho branco (que não envolve trabalho físico) excedeu o número de trabalhadores de colarinho azul (que envolve trabalho físico) pela primeira vez na história norte-americana. O momento pode ser resumido em uma palavra: consumismo. Como nunca se tinha visto antes. E não demorou para que o fenômeno atingisse escala global.

No centro dessa revolução, o que borbulhava era a capacidade de incutir inventividade em soluções mercadológicas. Novas ideias mudariam o mundo. Como a criatividade está ligada ao conceito de autenticidade, ela é, em sua essência, um meio de autoexpressão. Numa época em que a dicotomia ressoava com vigor pelos alto-falantes dos noticiários e pelo lero-lero da vizinhança, valorizar a individualidade era valorizar a liberdade. A indústria que, com unhas e dentes, mais se agarrou à insurgência do “criativo” para glamourizar o seu modus operandi foi a da publicidade. Nas décadas de 1950 e 1960, as agências de publicidade abandonaram toda e qualquer ingenuidade na hora de anunciar um produto, substituindo-a pelo branding, termo repetido à exaustão na atualidade e que, apesar de naqueles tempos ainda estar em fase de engatinhar, era uma ideia que engatinhava às pressas. Eles não estavam mais vendendo um produto, estavam vendendo uma ideia sobre um produto. Os argumentos agora tinham ares de abstração e projeção, deixando para trás o simplório “este produto faz xis coisas e por isso você deveria comprá-lo” para preconizar o “este produto representa algo para o seu status social e fará com que você se sinta bem consigo mesmo”. 

A apresentação sedutora e persuasiva dessa lógica ficava a cabo dos Don Drapers da época, símbolos de uma agitação sociocultural que ainda ecoa (as Peggy Olsons, infelizmente sabemos, eram minoria).

No entanto, à guisa da precisão conceitual, não é verdade que o glamour e o prestígio do artista estavam relacionados a uma crença popular de que esses Artistas, com “A” maiúsculo, não se interessavam por coisas mundanas ou práticas? De que se tratavam de mentes que funcionavam por outros parâmetros e era isso o que as tornava especiais? Sim. Mas o contrasenso era benéfico. A criatividade levada ao ambiente de trabalho era boa para os negócios, aumentava a produtividade e fazia mais e mais dinheiro. Os negócios, no fim do dia, poderiam cooptar a reputação das artes plásticas e literárias, conectando a alegria da criação a uma boa renda. Artistas emprestavam o seu know how, mandachuvas preenchiam cheques que não lhe fariam falta: satisfação de ponta a ponta. Uma transação perfeita. Foi o melhor dos dois mundos.

Jon Hamm interpretando Don Draper, o icônico protagonista da série Mad Men.

Curiosamente, o ponto de partida para tal aceleramento do consumismo e a construção de impérios propagandísticos foi a contracultura. Os valores contraculturais que protestavam contra a Guerra do Vietnã e erguiam a voz pelo movimento dos direitos civis — para além do “paz e amor” e dos dedos em V pelos quais costumam ser reconhecidos — revelaram-se inteiramente compatíveis com o capitalismo de consumo na era da informação. O culto à criatividade do pós-guerra foi impulsionado pelo desejo de transmitir à ciência, à tecnologia e à cultura de maneira geral algumas das qualidades reivindicadas pelos artistas, como o inconformismo, a paixão pelo trabalho, a humanidade perante à sociedade, a sensibilidade moral e, claro, talvez acima de tudo, o gosto pelo novo. Esbarramos, então, em outro aparente paradoxo. É do capitalismo, o vetor-mor do consumismo, que nasce a criatividade movedora de montanhas. Mas ela não existe só de uma maneira que faz as engrenagens girarem, alimentando as máquinas que produzem dinheiro sem parar, ela se manifesta também como um meio de fuga da austeridade do próprio sistema que a pariu. 

Em meio a realidades cada vez mais rígidas, a criatividade ganha ares de romantismo. O termo escapa até hoje de uma definição clara por promover justamente a ampliação de ideias e o questionamento de verdades absolutas, permitindo que todos os tipos de pessoas e instituições o tomem como uma solução para os seus problemas, desde a monotonia corporativa até o declínio urbano. Considerando o quadro, nada poderia ser mais justo. Talvez flanar sobre contradições seja o grande poder da criatividade.  

Como um dos principais valores da sociedade, há quem diga que a criatividade é o nosso grande diferencial enquanto humanos. Na medida em que as inteligências artificiais se aperfeiçoam, a criatividade é a nossa única vantagem competitiva (ao menos por enquanto). Estima-se que empregos de execução mais mecânica serão progressivamente perdidos para a tecnologia, o que quer dizer que exercer a individualidade será mais necessário do que nunca para sobreviver em qualquer mercado de trabalho. A guerra entre criador e criatura já começou e o alento é que a mesma criatividade que ajudou a desenvolver IAs é também a que, possivelmente, vai vencê-las — outro paradoxo

O tempo do conhecimento — puro, simples, factual — está com os dias contados. Se as ferramentas de busca já vinham cavando essa cova, o Chat GPT e seus congêneres chegaram para jogar a pá de cal. O que fazer, então? Coloquemos a imaginação para jogo. Sejamos complexos, contraditórios, únicos, com um pé no sistema e outro na revolução. Responder “o que é a criatividade” não é possível — ou mesmo interessante, partindo de um ponto de vista mais filosófico e menos de dicionário. Refletir sobre de onde ela veio ajuda a entender o momento em que estamos, mas, inevitavelmente, o pensamento morre na praia. Agora, saber que há um sem-fim de mundos habitáveis aos quais as criatividades, com ésse no final, podem nos levar? Isso tem um potencial multiplicador. 

E nada é mais criativo do que abrir páginas em branco, lotadas de possíveis definições.

Ao término dos primeiros 100 dias do novo governo Lula, completados no último 10 de abril, é natural que se faça um levantamento mais detalhado do que foi e do que não foi feito ao longo desse período. É, afinal, um marco temporal significativo, em especial por se tratar de uma transição aprofundada do Brasil-catástrofe que aconteceu de janeiro de 2019 a dezembro de 2022. Entre as inúmeras mudanças que se fazem necessárias, dentro do tanto que se esperava mudar, um aspecto em particular arrepiava o cabelo de muita nuca por aí: para mandar uma mensagem clara e categórica à população brasileira, e ao restante do mundo, era urgente que o campo das políticas públicas passasse por um processo ardente de renovação. Isso, felizmente, se confirmou no trimestre que passou e vê-se no horizonte um punhado bem servido de propostas — em sua maioria, relançamentos de programas desmontados — que visam o combate à fome, a preservação do meio-ambiente, a luta contra o racismo e mais um mar de outras finalidades político-sociais. 

Foto: Getty Images

A despeito do hiato recente, no século XXI o Brasil segue a tendência progressista ocorrida na América Latina. Como conta Suzana Maria Loureiro Silveira1, advogada popular e mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, desde o fim dos anos 1990 os países do continente vêm, no geral, valorizando a gestão democrática — de Hugo Chávez, na Venezuela, até Fernando Lugo, no Paraguai —, universalizando condições de vida mais adequadas àqueles situados em vulnerabilidades socioeconômicas causadas por problemáticas históricas. 

“Desde seu primeiro mandato como Presidente, Lula tem buscado construir uma agenda política voltada ao reconhecimento das desigualdades sociais e históricas. No mesmo sentido, tem buscado alinhamento internacional sobretudo com países vizinhos. Esse movimento também ocorreu nos anos 2000 com a chamada ‘Onda Progressista’ ouOnda Rosa’ que representou uma base de sólidas articulações entre Estados latino-americanos por ocasião de vitórias presidenciais na virada do milênio. Em termos de integração houve um sentido de identidade para formulações de políticas voltadas à realidade regional. Esse recorte histórico não está alheio às políticas institucionais tomadas em cada país.”

As políticas públicas, então, dão as caras para promover o fortalecimento da participação social e a garantia de não retrocesso. O programa relançado que mais ganhou destaque nos noticiários brasileiros foi o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), uma iniciativa que garante compra de produção de pequenos produtores e oferece para pessoas em situação de insegurança alimentar. A mensagem por trás do programa e de toda a sua planejada repercussão? O combate à fome volta a ser uma das prioridades do governo. 

Evidentemente, uma política pública não se faz tão somente de boas intenções e posicionamento humanista. De tais discursos, a gaveta de projetos descontinuados ou ineficazes está cheia. Políticas públicas nada mais são do que ações governamentais para assegurar os direitos previstos na Constituição Federal, além de, com uma construção macro que se faz a cada programa, estabelecer uma linha geral de como fazer valer os valores que deveriam tocar a sociedade e servir, assim, de ferramenta para implementar mudanças progressivas. É por meio dessas políticas que o governo aborda algumas questões como a equidade de gêneros, estabelece diretrizes nacionais e providencia recursos necessários para alcançar tanto objetivos específicos quanto amplamente definidos. Se bem planejadas, podem fazer toda a diferença tanto para o presente quanto para o futuro. Com a ajuda de pesquisas científicas, por exemplo, as políticas públicas podem levar o Brasil a se tornar referência em energia limpa.

Como elas são feitas no Brasil?

O processo de elaboração de uma política pública é sempre complexo e multifacetado — dois adjetivos que, apesar de enclichezados, seguem sendo palavras-chaves para a compreensão do panorama brasileiro. De acordo com Suzana,

No Brasil, para que haja um mínimo de legitimidade das ações estatais, reveste-se no discurso das políticas públicas a necessidade da criação de instrumentos pelos quais serão promovidas as prestações que induzam ao ‘trajeto’ previsto pelo programa ou meta, previamente prescritos, sujeitos, inclusive, à intervenção de órgãos de controle (legalidade, constitucionalidade e orçamentário) como é o caso do Poder Judiciário e tribunais de contas. Pragmaticamente, as políticas públicas enquanto essas ações estatais funcionariam como um meio. Nesse contexto, as políticas públicas atuam como instrumentos necessários à efetivação de direitos fundamentais, refletindo-se em uma ação do Poder Público tendente à realização gradativa de programas ou metas definido em norma jurídica, sob a qual pode recair controle jurisdicional quanto à eficiência relativa entre os meios utilizados e os fins ou resultados, produto da atuação estatal. Assim, toma-se como uma peregrinação em que é inerente percorrer um caminho, compreendido, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, como imprescindível à prestação estatal, isto é, é essencial que haja a definição de uma política pública dentro de uma previsão orçamentária (votada e aprovada) e a execução do programa social aos moldes de sua definição. 

Presentes no Brasil, podemos pensar em 4 tipos de políticas públicas: a política pública distributiva, construída com o orçamento público contemplando ações que fornecem serviços para a população (ou parte dela) por meio do Estado; as políticas públicas redistributivas visam reduzir a disparidade social (um bom exemplo atual é a isenção do imposto de renda, que, a partir do ano que vem, aumenta a sua régua e passa a ser aplicada a quem recebe até R$2.640); as políticas públicas regulatórias estão diretamente relacionadas com as leis, criando, aprimorando ou fiscalizando o cumprimento de leis que asseguram direitos e o bem da sociedade; já as políticas públicas constitutivas têm como objetivo estabelecer as responsabilidades das esferas de poder, distribuindo e determinando se a responsabilidade sobre algo é do governo municipal, estadual ou federal. 

Na primeira etapa para a elaboração de uma política pública, identifica-se problemas e desafios que precisam ser abordados. Esses problemas podem surgir de diversas fontes, incluindo demandas da sociedade civil, diagnósticos técnicos e avaliações de resultados de políticas existentes. Como a educação é pouco, ou quase nada, democratizada, um ProUni (conhecido também como Programa Universidade Para Todos) se faz necessário para ampliar o acesso ao ensino público. Como a violência contra mulher atinge números cada vez maiores, uma Lei Maria da Penha precisa existir.

Com base na identificação dos problemas, as propostas são desenvolvidas por meio de consulta, negociação e articulação com diferentes atores sociais e institucionais. Essas propostas podem ser elaboradas por grupos de trabalho, comissões ou ministérios especializados. Depois que são formuladas, elas precisam ser implementadas por meio de ações concretas. Isso geralmente envolve a alocação de recursos financeiros, humanos e materiais, a definição de marcos regulatórios e a criação de instituições e mecanismos de gestão. Por fim, as políticas públicas precisam ser monitoradas e avaliadas para avaliar sua eficácia e efetividade. Isso envolve a coleta de dados, a análise de resultados e a revisão das políticas existentes para garantir que elas estejam alcançando seus objetivos.

Mas há alguns problemas na simplificação de processos que muitas vezes ocorre por aqui. O que fazer se, digamos, uma política pública não vingar? Não é difícil de acontecer, principalmente em um país gigantesco como o Brasil, que naturalmente impõe um sem-fim de obstáculos na implementação de qualquer medida ou programa. Como diz o economista Marcos Lisboa, inovações fracassadas do setor privado duram pouco no mercado, já as estatais perduram. Isso, por si só, levanta uma outra questão: o que é o sucesso ou o fracasso de um projeto? É comum que isso não seja definido de antemão, o que dificulta a tomada de decisões lá na frente, diante dos resultados. A política pública no Brasil por vezes não embasa suas ações em evidências disponíveis.

Mas, então, como deveriam ser feitas?

No mundo ideal, as políticas públicas deveriam ser feitas com base em princípios de transparência, participação, fiscalização e efetividade. Ou seja, as políticas públicas deveriam ser desenvolvidas em um processo aberto e participativo, com o envolvimento ativo de diferentes atores sociais e institucionais. Deveriam, também, ser avaliadas regularmente, e de maneira efetiva, para garantir que estão atingindo seus objetivos e contribuindo de fato para o bem-estar da população.

Nesse mesmo mundo ideal, a promoção da equidade e da justiça social deve ser o objetivo-mor, mas sempre com a adoção de políticas baseadas em evidências e a busca pela eficácia na implementação. As políticas públicas devem ser desenvolvidas de maneira estruturada e consistente, levando em consideração as necessidades da sociedade e as condições políticas, econômicas e sociais do país, incluindo possíveis barreiras. 

Há diversos elementos limitadores da ação, elementos jurídicos que atuam de modo a justificar as limitações de outras ordens (econômica, política etc.). As leis e planos orçamentários determinam a formulação e o alcance das políticas públicas. As alternâncias políticas e de projetos de governos impõem à população incertezas, uma vez que é suficiente que se altere a posição de um governante com relação a outro para que o cenário de formulações públicas em seu caráter progressista e mais social seja alterado. A universalização de garantias sociais tomada enquanto política de Estado representaria maior garantia aos grupos sociais subalternizados.

No entanto, a todo momento estamos trabalhando em nossa narrativa no âmbito do dever ser. No espaço amistoso e confortável do Direito, o de suas ficções e abstrações. Temos tantos e vários direitos reconhecidos, ratificados, internalizados, positivados, contudo sem muita garantia. Ironicamente, direitos que apesar de fundamentais parecem não ser encarados como tão fundamentais assim. Basta lermos o artigo 7º, 6º e 5º da Constituição.” , nos lembra Suzana.

Com isso em mente, o caminho básico deveria ser mais ou menos o seguinte:

Identificação do problema sempre em primeiro lugar. Pode parecer uma obviedade, é válido apontar que essa identificação sempre deve ser baseada em pesquisas e isso quer dizer que nada adianta se essas pesquisas só buscarem evidências que dizem respeito aos fins específicos daquele projeto e fechem os olhos para boa parte da população. 

Definição de objetivos: como saber se foi ou não foi bem-sucedida? A partir da identificação do problema, é indispensável definir os objetivos que a política pública deve alcançar. Esses objetivos devem ser claros, mensuráveis e, claro, realistas.

Elaboração de alternativas. Com os objetivos definidos, é hora de desenvolver alternativas para atingi-los, considerando o corpo de elementos que constituem nosso sistema jurídico. Essas alternativas podem incluir diferentes estratégias, programas, ações e investimentos.

Análise de custo-benefício. Antes de escolher a alternativa mais adequada, para fins de viabilidade é importante realizar uma análise de custo-benefício. Isso significa avaliar os custos e os benefícios das diferentes opções e escolher aquela que oferece a melhor relação custo-benefício.

A implementação da política talvez seja o ponto mais complicado. Pensar fora do papel, mas, ao mesmo tempo, fazer isso com o pé no chão para visualizar as viabilidades do Brasil real. Depois de escolhida a alternativa mais adequada, é hora de implementar a política pública. Isso pode envolver a criação de leis, regulamentos, programas e outras ações.

Monitoramento e avaliação: por fim, é importante monitorar e avaliar os resultados da política pública. Isso permite que os responsáveis possam identificar o que está funcionando bem e o que precisa ser ajustado ou modificado para que a política possa ser ainda mais efetiva e longeva.

Nada disso é necessariamente linear, tudo pode ser adaptado de acordo com o contexto e a natureza da política pública em questão. A participação e o diálogo com a sociedade civil e os grupos afetados pela política são fundamentais para garantir que ela seja efetiva e atenda às necessidades da população.

Devemos ser otimistas?

Quando comparamos o Brasil com outros países, temos ao nosso favor uma Constituição progressista que garante direitos sociais e trabalhistas, além de políticas públicas importantes que têm contribuído para a redução da pobreza e da desigualdade; por outro lado, o Brasil também enfrenta desafios significativos, como a corrupção, que afeta a efetividade e a transparência das políticas públicas, e a desorganização política, que implementa medidas de maneira descoordenada e sem uma avaliação adequada de resultados, o que pode levar ao desperdício de recursos e a um cenário de ineficiência.

O impulsionamento de um conjunto de condições materiais de existência (categoria podemos inserir os direitos fundamentais positivados na Constituição de Federal de 1988) às necessidades do capitalismo se dá independentemente da base ideológica do governo ou da plataforma política do momento em que as decisões são tomadas, que posteriormente decorre na definição de agenda, implementação de políticas públicas, pois a forma do Estado representa a forma social desta determinação histórica e não de outra. As políticas públicas experimentam variações com base nas vocações político-ideológicas no grupo que ocupa as mais altas cúpulas. Não se trata apenas de seu funcionamento, mas da essência da política pública que se almeja em um determinado recorte histórico. 

A eficácia das políticas públicas de um país é algo complexo de se avaliar e depende de diversos fatores, como o contexto político, social e econômico do país em questão. Um país frequentemente citado como exemplo de eficácia das políticas públicas é a Noruega. Mas como comparar a Noruega ao Brasil? 

Enquanto um é um país latino-americano emergente de 8.516 milhões de km², o outro é um país nórdico consideravelmente menor que a Bahia, cujo IDH é o segundo melhor do mundo. De maneira geral, a Noruega é conhecida por suas políticas públicas progressistas e bem-sucedidas, com um sistema de bem-estar social abrangente, que oferece saúde, educação e assistência social universais e de alta qualidade; políticas ambientais rigorosas, que visam reduzir as emissões de gases do efeito estufa e promover a transição para uma economia de baixo carbono; investimentos significativos em pesquisa e desenvolvimento, que têm ajudado a impulsionar a inovação e o crescimento econômico; políticas de igualdade de gênero, que têm levado a uma maior participação feminina no mercado de trabalho e em posições de liderança. Talvez isso pareça um verdadeiro oásis quando posto ao lado do país que ocupa somente a 87ª posição no ranking de desenvolvimento. Porém, lembremos das diferenças.

Para analisar criticamente qualquer assunto sobre a realidade do Brasil e da América Latina, devemos considerar alguns determinantes históricos que ainda continuam a produzir efeitos na forma pelas quais as condições de vida de diversos grupos sociais são construídas. Tais determinantes decorrem de eventos históricos como colonização, que implicou na condição de periferia suportada na região, por exemplo. De certa forma, toda problemática que envolve a temática de escolhas, decisões e elaboração de mecanismos que operem em um mínimo de alteração na realidade social de pessoas historicamente excluídas possuem um denominador comum: a especificidade histórica do direito no capitalismo. 

Em outras palavras, as demandas são diferentes, as realidades são diversas. A adoção por relativização de problemas sociais se realiza sob duas racionalidades distintas, em momentos históricos e conjunturais que não se confundem, ou deveriam ser confundidos. O que dá certo para um específico problema em uma localidade, não deve ser utilizado como modelo à outra.

Ainda que a comparação não seja o caminho indicado, a taxa brasileira de desenvolvimento humano relativamente baixa indica que há espaço para melhorias em áreas como saúde, educação e segurança pública. Não é de hoje que o país tem potencial para avançar e melhorar suas políticas públicas. À semelhança das próprias políticas públicas, tão limitadas pelo contexto jurídico-institucional, sendo muitas vezes incapazes de promover as mudanças pretendidas, perdura a sensação de que o Brasil é o Brasil que consegue ser e não o que deveria ser. Um país do futuro demasiadamente preso às agruras tanto do passado quanto do presente. 

No entanto, um certo otimismo pode subsistir sob tudo isso. Não chegaremos ao IDH da Noruega tão cedo, é verdade, mas estamos mais perto disso em 2023 do que estávamos nos quatro anos que vieram antes. Agora, finaliza Suzana, é tempo para que nós, sobreviventes de uma gestão de extermínio, organizemo-nos politicamente e pautemos as nossas lutas e bandeiras. A saída é pelo povo.

O mundo, e os muitos mundos que cabem no Brasil, precisam que a eterna promessa vire realidade.


1Suzana Maria Loureiro Silveira é Mestra e Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PPGD/PUCC). Doutoranda em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (PROLAM/USP). Integrante do Grupo de Pesquisa Crítica do Direito e Subjetividade Jurídica (USP). E-mail: [email protected]

O hidrogênio verde representa inúmeras oportunidades para o Brasil (e mundo). Por mais incrível que pareça, a despeito do contumaz projeto antiambientalista do governo Bolsonaro, nos vemos de novo como o epicentro de um possível amanhã renovável. Em um momento crucial para o futuro, ou o não-futuro, da humanidade, em tempos que clamam por mudanças reais no mais emergencial dos tons, os olhos sempre parecem se voltar ao país que abriga a maior biodiversidade do planeta.

Foto de Soonthorn Wongsaita | Shutterstock

Fica a questão: conseguimos bancar a responsabilidade? Na verdade, há quem queira bancar isso por nós — ou “nós”, com aspas de ironia, já que sempre existe uma parcela de interesse próprio no jogo da política. 

Hidrogênio verde (e de outras cores)

O hidrogênio é o elemento químico mais abundante e leve, além de possuir o maior valor energético. No entanto, raramente é encontrado de forma isolada na natureza. Pode ser obtido a partir de diversas fontes de matéria-prima, sendo utilizado em diferentes aplicações energéticas e não-energéticas. Se produzido a partir de fontes renováveis de energia, é fundamental para a redução de emissões de gases de efeito estufa, mas nem sempre é assim. Nas denominações por cores, que vão de acordo com as suas fontes primárias de energia, tem-se as seguintes classificações:

Hidrogênio preto: produzido por gaseificação do carvão mineral (antracito), sem CCUS (sigla inglês para Captura, armazenamento e utilização do carbono).

Hidrogênio cinza: produzido por reforma a vapor do gás natural, sem CCUS.

Hidrogênio marrom: produzido por gaseificação do carvão mineral (hulha), sem CCUS.

Hidrogênio branco: produzido por extração de hidrogênio natural ou geológico.

Hidrogênio musgo: produzido por reforma catalíticas, gaseificação de plásticos residuais ou biodigestão anaeróbica de biomassa, com ou sem CCUS.

Hidrogênio turquesa: produzido por pirólise do metano, sem gerar CO2.

Hidrogênio rosa: produzido com fonte de energia nuclear.

Hidrogênio azul: produzido por reforma a vapor do gás natural (eventualmente, também de outros combustíveis fósseis), com CCUS.

Não é necessária uma análise profunda para perceber que, na maioria das vezes, se trata de um processo poluente, tido como “sujo”. 

Além desse arco-íris, que, em seu fim, apresenta um pote de tesouro contaminado, há o hidrogênio verde (H2V), hoje em dia a grande menina dos olhos dos países que se preocupam em cumprir metas de descarbonização. Diante de tantos hidrogênios que não utilizam o processo de captura de carbono antes que ele vá para a atmosfera, não surpreende que o H2V seja tão cobiçado. Produzido a partir da eletrólise da água (processo que utiliza a corrente elétrica para separar o hidrogênio do oxigênio da molécula de água), com baixa ou nula intensidade de carbono, o hidrogênio verde utiliza energias renováveis para a sua produção, como a solar, hídrica ou eólica. Ou seja, ele é obtido sem emissão de CO2 — uma frase simples, mas rara, que faz com que as espinhas de ambientalistas se arrepiem de prazer. Um de seus poréns é a alta demanda de energia, sendo, portanto, mais caro. Por isso, é essencial que a fonte dessa energia seja limpa. 

No Brasil, por exemplo, em regiões com estações tanto de muito sol quanto de muita chuva, existem pontos com grande aberturas para a produção de energia eólica. No contexto da descarbonização do planeta em uma busca por maior sustentabilidade, ele pode ajudar o país a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e atingir suas metas climáticas.

Geopolítica em jogo

É sabido nos quatro cantos do planeta que o Brasil é um dos maiores produtores de energia renovável do mundo, dono de um imenso potencial para produzir hidrogênio verde em larga escala. Sabe-se também que esse hidrogênio pode ser usado como uma fonte de energia para setores como transporte, indústria e geração de energia elétrica, o que impulsionaria em qualquer lugar o desenvolvimento de novas tecnologias e negócios. É por essas e outras que tem ocorrido uma espécie de “corrida por ouro”, sendo o ouro aqui mais verde do que brilhante. E o papel brasileiro nessa história é de suma importância, ficando com uma função ativa central que não se resume à submissão, afinal a produção e a exportação caminham juntos: a exportação de hidrogênio verde para outros países é de grande interesse, pois pode se tornar uma importante fonte de receita para o Brasil, uma vez que há uma crescente demanda global por combustíveis limpos e renováveis.

Um estudo da BloombergNEF projeta a terra brasilis como uma das únicas capazes de oferecer hidrogênio verde a um custo inferior a um-dólar-por-quilo até 2030. E mais: se a leitura for a longo prazo, pensando no ano de 2050, essa cifra pode cair para US$0,55/kg. Para viabilizar esse cenário tão promissor, segundo estimativas, o país precisará investir alto na indústria — algo em torno de 200 bilhões de dólares até 2040. E é aí que a Alemanha entra em cena.

Os europeus como um todo, mas sobretudo a Alemanha, estão de olho na energia limpa que o Brasil tem de sobra. Não por um acaso, o principal motivo da visita ao Brasil do chanceler alemão, Olaf Scholz, foi a viabilização da produção do hidrogênio verde. Essa presença germânica calorosa visa um objetivo claro: ter de quem comprar, com prioridade, o hidrogênio limpo tão importante para o futuro do mundo. Isso porque, por lá, é inviável pensar em uma produção dessas por conta própria. Para além do comprometimento louvável com a descarbonização, outro fator que tem grande influência nessa movimentação alemã é a guerra da Rússia contra a Ucrânia. O conflito, que já ocorre há mais de um ano, virou também uma ameaça à segurança energética alemã, que acelera o processo de transição rumo a fontes renováveis, já que tinha sua economia altamente dependente do gás russo, que, certa feita, foi barato.

A Alemanha desponta como provável solução também na possível problemática do transporte. Para que o Brasil se torne um grande exportador, algumas inovações logísticas ainda são necessárias. Para ser transportado em forma gasosa, o H2V requer muita pressão. Em forma líquida, é preciso resfriá-lo a -253 °C. Uma das alternativas é transformar o combustível limpo em amônia, NH3, pois assim o nitrogênio é capturado do ar, e a amônia pode ser transportada de 12°C a 15°C. Quando chegar ao destino, caso o produto precise ser convertido novamente em hidrogênio verde, mais energia será gasta no local para essa transformação. Por esse motivo, uma das possibilidades em discussão é fazer no Brasil o beneficiamento de matéria-prima que seria exportada e transformada na Alemanha, como minério de ferro. Em vez de consumir a energia alemã para fabricação do aço, o processo ocorreria no Brasil movido a H2V.  

Nordeste: estrela da companhia

Nessa história toda, quem mais tem a oferecer é o Nordeste. No final de 2023 — ou, no mais tardar, no começo de 2024 —, a região sediará a primeira fábrica de hidrogênio verde do Brasil, no Polo Industrial de Camaçari, na Bahia. Nada poderia representar mais o potencial grandioso que o Nordeste tem na cadeia produtiva de hidrogênio verde. O estudo Mapeamento das Cadeias de Mobilidade, sobre o hidrogênio verde no panorama energético do Brasil e do mundo, aponta os caminhos: o perfil de geração elétrica da região do Nordeste — com 84% de fontes renováveis — coloca esses nove estados em posição de vantagem, já que a eletricidade renovável é chave para a produção do H2V. 

Reprodução: Energix Energy

Hoje, cerca de 49% da eletricidade do Nordeste é eólica onshore (cujas turbinas são instaladas em terra). Enquanto os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia, Pernambuco e Piauí possuem projetos para a instalação de hubs de hidrogênio verde, integrados a projetos de eólicas offshore (turbinas instaladas no mar). De acordo com o estudo, esse cenário geral diminui os custos iniciais do investimento e reduz as possíveis perdas energéticas.

Se é verdade que, como diz o outro, não se consegue escapar da responsabilidade de amanhã esquivando-se dela hoje, presentemente o Brasil tem a faca e o queijo na mão. Se o talher alemão é pontiagudo demais e o alimento, apesar de vistoso, eventualmente dará indigestão, logo saberemos. O que se sabe, ou o que se projeta, é que, de acordo com a Wood Mackenzie, o Brasil responderá por cerca de 6% do suprimento total de H2V do mundo até 2050, com o mercado ganhando escala após 2030. 

Portanto, que se tenha em mente esse verbo estranho, muito mais forte a cada ano que passa: descarbonizar. Esse é o caminho. E o Brasil, ao que tudo indica, se os ventos baterem a favor de um futuro mais verde, levará o mundo até lá.

O termo “consciência de classe” foi cunhado no início do século XIX pelo filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel e posteriormente popularizado pelos pensadores socialistas Karl Marx e Friedrich Engels. Para Hegel, a consciência de classe se referia à compreensão que os indivíduos têm de si mesmos como membros de uma determinada classe social, abarcando aí as formas com as quais essa compreensão afeta suas visões de mundo e ações político-sociais. Já a dupla Marx e Engels atribuiu ao conceito um significado mais específico, argumentando que a ideia traduzia um entendimento consciente e crítico dos interesses de classe e da posição social de um indivíduo na sociedade capitalista. Segundo eles, essa compreensão é um processo histórico que se desenvolve à medida que os trabalhadores percebem que seus interesses são distintos dos interesses da classe capitalista dominante, e que a luta de classes é necessária para alcançar a emancipação social e econômica.

Dito isso, pensemos no Brasil. Por aqui, há uma clara distinção entre a classe dominante e a trabalhadora. De acordo com o relatório World Inequality Report 2022, elaborado pelo World Inequality Lab, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, ocupando a “honrosa” 9ª posição no ranking global de desigualdade de renda. Em alguns pontos do país, esse cenário se faz gritante. Bom exemplo desse berro é o bairro do Morumbi, que comporta em si, num raio bem menor do que seria de se imaginar, a maior favela da América Latina e uma das maiores concentrações de renda do país. Você já deve ter visto a imagem que registra a divisa entre uma sequência de condomínios de luxo e uma sequência de moradias de baixa renda, ilustrando com perfeição essa dualidade do bairro e evidenciando, sobretudo, os altos índices de má distribuição de renda do país. Tirada no começo dos anos 2000, a foto já virou quase um clichê ao redor do globo: de tão eloquente, por escancarar uma realidade exageradamente desequilibrada, ela acaba sendo fácil de ser usada como exemplo. Trocando em miúdos, para o mundo inteiro somos uma amostragem de desigualdade.

Foto de Tuca Vieira.

Existe uma noção geral dessa realidade?

Pela lógica, a tendência é que a consciência de classe seja mais forte nos países em que a desigualdade de renda é mais alta, porque trata-se de um contexto em que as pessoas são mais propensas a se identificar com um grupo social, reconhecendo, ainda que inconscientemente, que pertence a um determinada estrato da sociedade. Ou seja, se tomarmos essa tendência como referência, estando no top 10 de países com maior desigualdade social, no Brasil essa consciência deveria ser alta. Mas, no fim, estamos conjecturando em cima de um conceito complexo e subjetivo, difícil (senão impossível) de medir e comparar entre países. Às vezes, parece irreal pensar na população brasileira como um corpo social totalmente ciente de seus próprios contrastes, ainda que estes sejam vividos diariamente; às vezes, no entanto, é impossível pensar o contrário. Ficamos um tanto reféns de nossas impressões pessoais, baseadas na vivência ou não.

Vários movimentos sociais e políticos demonstram que há, sim, uma forte consciência de classe no Brasil: lutas pelos direitos e interesses das classes trabalhadoras denotam isso, como sindicatos, partidos políticos de esquerda e grupos de defesa dos direitos humanos. Ela também pode ser captada na crescente mobilização e conscientização dos jovens e das minorias sociais, que enfrentam desigualdades históricas e estruturais em relação à classe dominante. Por mais louca e perigosa que as redes sociais possam ser, ela cumpre bem a função de conscientizar gerações mais novas — o que, em décadas passadas, ou nunca aconteceria ou, quando muito, aconteceria tardiamente.

É claro que vale ressaltar que nem sempre essa consciência é forte e coesa, já que muitas vezes — quiçá sempre — é influenciada por fatores culturais, políticos e econômicos complexos. Além disso, as desigualdades sociais e econômicas no Brasil são profundas e persistentes, o que significa que a consciência de classe pode ser difícil de se desenvolver e de ser mantida em algumas regiões do país.

E os impostos, o que nos dizem sobre isso tudo?

Como os impostos são uma forma importante de financiamento das políticas públicas e de redistribuição de renda, a consciência de classe pode influenciar a percepção dos cidadãos em relação aos impostos e como eles são utilizados pelo Estado. Em geral, dança-se o baile ao som das cornetas douradas do privilégio: a classe trabalhadora paga uma parcela significativa de impostos em relação à sua renda, enquanto a classe mais rica paga proporções menores. Isso pode levar a uma percepção de injustiça fiscal e a uma falta de confiança nas instituições governamentais. Por outro lado, quando os cidadãos têm uma consciência de classe mais desenvolvida, eles tendem a ter uma visão crítica das políticas fiscais e a exigir uma maior progressividade fiscal, ou seja, que os impostos sejam mais elevados para os mais ricos e que os recursos arrecadados sejam direcionados para programas sociais que beneficiem a classe trabalhadora.

A consciência de classe pode influenciar a percepção dos cidadãos em relação ao papel do Estado na economia. Enquanto os defensores de uma consciência de classe mais aguçada tendem a acreditar que o Estado deve desempenhar um papel mais ativo na promoção da justiça social e na redução das desigualdades, aqueles com uma visão menos crítica da classe tendem a favorecer políticas que reduzam o tamanho do Estado e a carga tributária. No Brasil, o sistema tributário é bastante complexo e o pagamento de impostos pode ser uma questão delicada para muitos cidadãos e empresas. Há uma grande quantidade de normas, leis e regulamentações que regulam a cobrança de impostos, o que pode dificultar a compreensão e o cumprimento das obrigações fiscais.

Existem diversos tipos de impostos, que são cobrados tanto pelo governo federal quanto pelos governos estaduais e municipais. Alguns dos principais são: o Imposto de Renda (IR), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e Imposto sobre Serviços (ISS).

O dinheiro arrecadado com os impostos no Brasil é destinado a diversas áreas e serviços públicos, tais como saúde (SUS), educação, segurança pública: assistência social, previdência social e outros. A alocação dos recursos públicos pode variar de acordo com as prioridades estabelecidas pelo governo em cada período. 

Sistemas tributários progressistas

Pensar na consciência de classe e na tributação específica de países pode ser interessante por, diante da postura de cada um, analisar as maneiras como cada um lida com a respectiva desigualdade social. Existem vários países que adotam políticas tributárias progressivas e buscam taxar as maiores riquezas de maneira justa. Alguns exemplos europeus, cuja realidade, sabemos, é diferente do Brasil, incluem:

Dinamarca Conhecido por ser um dos sistemas tributários mais progressivos do mundo, tem uma taxa máxima de imposto de renda de 55,9% sobre os rendimentos mais elevados. Além disso, a Dinamarca também cobra impostos sobre heranças e doações, e possui um imposto sobre a propriedade que incide sobre imóveis e outros ativos.

Suécia Taxa máxima de imposto de renda de 57,1%. Além disso, a Suécia cobra impostos sobre a propriedade, heranças e doações, e tem um imposto sobre a riqueza que incide sobre os patrimônios líquidos mais elevados.

Noruega Taxa máxima de 39%. A Noruega também cobra impostos sobre a propriedade, heranças e doações, e possui um imposto sobre a riqueza que incide sobre os patrimônios líquidos mais elevados.

Alemanha & França Com sistemas parecidos, a taxa máxima do imposto de renda alemão é de 42%, enquanto a francesa é de 45%. Ambos os países cobram impostos sobre a propriedade, heranças e doações. Além disso, têm impostos sobre a fortuna que incide sobre os patrimônios líquidos mais elevados.

Marx e um futuro almejado há mais de um século

“Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência.” Essa é uma das muitas frases famosas de Karl Marx. Entender a qual grupo pertencemos é determinante para tornar qualquer luta legítima. A falta de consciência de classe é capaz de criar cenários tenebrosos, como muitos que vivemos no mandato presidencial passado, em que os capatazes particulares nadaram de braçadas para sair à frente de qualquer sociedade igualitária. 

Para além de uma história formativa repleta de desigualdade e crueldade, temos uma história recente que faz ecoar com força essa triste realidade clássica brasileira.

Tanto Israel quanto a França vêm sendo palco de manifestações populares relevantes, cada semana mais divulgadas pelos noticiários ao redor do mundo. Em Israel, as reivindicações gritam contra a reforma judicial proposta pelo primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu; na França, a voz popular está contra a reforma da Previdência, uma das principais pautas do presidente Emmanuel Macron. Na medida em que as ruas dos dois países recebem mais e mais protestos — sim, com a violência infelizmente se fazendo presente —, os estadistas em questão seguem um tanto distantes do vozerio, respondendo a tudo com certa indiferença, a despeito das proporções enormes que as ondas de protestos tomaram. 

Casa do Senado francês.

Antes de nos darmos conta, por essas e outras, adotamos uma atitude cética quanto à real participação popular nas decisões políticas do Estado.

Em uma democracia participativa, os cidadãos são ativamente envolvidos no processo de tomada de decisão política, seja por meio de votação, debates, consultas populares, audiências públicas, fóruns e outros mecanismos de participação popular. Em muitos países, a democracia representativa tradicional tem sido criticada por não conseguir representar de forma adequada as necessidades e desejos da sociedade, especialmente de grupos minoritários ou marginalizados. Um equilíbrio entre a representativa e participativa, em tese, teria o poder de aumentar a confiança dos cidadãos nas instituições políticas e a construir uma sociedade mais inclusiva. Como garantir que todas as vozes sejam ouvidas e que as decisões sejam tomadas com mais de um grupo social em mente? O conceito de democracia parece divergir se analisarmos suas aplicações em diferentes contextos político-sociais, cada qual com seus conflitos e divisões. 

Se cada um tem a sua, do que é feita uma democracia? E do que é feito o espírito político de um país?

“do que é feita uma democracia?”

Alguns países são mais politizados do que outros e existem várias razões para isso. Primeiro, e possivelmente antes de qualquer outro fator, temos o histórico específico daquela nação — ainda que seja difícil, ou quase impossível, compreender totalmente de que maneira o passado vai se reverberando por entre as épocas. A verdade é que ele não vai só passando, como também se alterando. Se um país teve uma longa tradição de democracia e participação política, por exemplo, talvez seja mais provável que seus cidadãos estejam envolvidos em assuntos políticos.  Por outro lado, se um país teve uma história de autoritarismo e instabilidade política, talvez haja menos interesse e participação política. O “talvez” é a palavra-chave. Não é verdade que países mais desenvolvidos economicamente tendem a ter mais recursos para investir em educação, mídia e outras formas de envolver a população em assuntos políticos? Sim. E que, além de, dotados de todo o desenvolvimento, esses cidadãos têm mais acesso à informação e podem, assim, criar mais naturalmente um senso crítico em relação ao governo? Sim. Mas nada garante que as linhas dessas digitais serão assim ou assado. O que não quer dizer que devemos ignorar esses ou outros indicativos. 

Populações de países com maior liberdade política, incluindo liberdade de imprensa e de expressão, são mais propensas a serem mais politizadas, já que, em um contexto no qual as pessoas sentem que têm voz e poder para influenciar a política, elas tendem a se envolver mais. O mesmo acontece em países com maior polarização, por se tratar de uma pauta rotineira e difundida: guardadas as devidas proporções, é como quando somos pequenos brasileiros e nos sentimos forçados a dizer para que time de futebol torcemos, Palmeiras ou Corinthians, Flamengo ou Fluminense. Quando as questões são controversas e polarizadas, as pessoas tendem a se identificar mais fortemente com um lado ou outro e se mobilizar para defender seus pontos de vista. 

Se os “propensas a…” e os “tendem a…” deixam clara a imponderabilidade, as conjunções de cada caso deixam claros os caminhos a serem seguidos. Tomando como referência a história da França, por exemplo, não precisa de muito para que logo se veja um espírito democrático aflorado. 

Por mais que se questione o lugar-comum que nomeia o país como o “berço da democracia”, é inegável que se trata de uma cultura política que valoriza e naturaliza manifestações populares contra medidas do governo ou seja qual for o tema social. Só na última década, podemos citar vários protestos que aconteceram na França, como em 2016, quando o governo francês propôs uma reforma trabalhista que, entre outras coisas, tornaria mais fácil para as empresas demitir funcionários e facilitaria a negociação de acordos de trabalho. Ou, então, como em 2018, quando ocorreram as manifestações dos coletes amarelos, um movimento espontâneo de pessoas vestindo coletes e protestando no país todo contra o aumento dos impostos sobre combustíveis e os custos de vida em geral. 

Podemos até citar os protestos contra a reforma da Previdência de 2019 — opa, bateu um déjà vu aí? Já no final daquele ano, o governo francês propôs uma reforma vista como uma ameaça aos direitos trabalhistas. Agora, pela segunda vez em pouco tempo, a população francesa testemunha um aumento na idade de aposentadoria: o objetivo da nova lei previdenciária é, de maneira gradual (mas rápida), subir a idade de 62 para 64 anos, até 2030. A última mudança havia sido recente, em 2010 — antes disso, a idade de aposentadoria era 60. A reforma também adianta para 2027 a exigência de contribuir 43 anos para obter uma pensão, e não 42 anos como acontecia até agora. Além disso, a nova lei elimina os privilégios de aposentadoria de alguns funcionários do setor público, como os trabalhadores do metrô de Paris. Os protestos e greves de setores trabalhistas vêm acontecendo desde 19 de janeiro, quando a proposta foi apresentada. Desde então, centenas de milhares de pessoas se mobilizaram e foram às ruas — o que, ao menos por ora, tem se mostrado insuficiente

Knesset, o parlamento de Israel.

No caso de Israel, que também vive um contexto conturbado, basta uma rápida passada de olho pelas últimas décadas para perceber que as manifestações políticas, assim como na França, fazem parte do gene da população. A polêmica e infindável questão da Palestina decerto exerce influência sobre esse aspecto, uma vez que a mentalidade das pessoas israelenses é cultivada com a normalização de protestos, tendo os seus respectivos eu-políticos lembrados constantemente. Não é difícil encontrar exemplos recentes: em 2019, milhares de israelenses protestaram contra a crescente violência em comunidades árabes do país e pediram ações do governo para combater o crime; em 2018, manifestações em Tel Aviv gritavam contra a lei de imigração de Israel, que muitos argumentaram ser discriminatória contra os refugiados africanos. Os protestos populares são um aspecto importante da vida política em Israel e, com a reforma judicial israelense de 2023, não está sendo diferente. 

O plano apresentado pelo vice-primeiro-ministro e ministro da justiça, Yariv Levin, com o apoio do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, tem como objetivo mudanças fundamentais no ordenamento jurídico de Israel. Alguns aspectos da proposta dão ao governo influência decisiva sobre a escolha de juízes, além de impedir que a Suprema Corte do país revise leis aprovadas pelo Parlamento. A medida é considerada controversa por causa do sistema político de Israel, que não tem uma Constituição formal e usa leis básicas para definir o papel das instituições e Poderes. O parlamento teria o poder de anular as decisões da Suprema Corte por maioria simples, além de dar ao governo o poder de nomear juízes — algo que, atualmente, fica a cabo de um comitê composto por juízes, juristas e políticos. A reforma judicial é uma das principais apostas do governo Netanyahu. Porém, em meio à gigantesca onda de protestos, que dura praticamente 3 meses e parece não ceder, anunciou na última segunda-feira de março (27) uma pausa no andamento do projeto de reforma.

É claro, no entanto, que a criação de uma cultura política é um processo complexo e que nem sempre se serve de uma leitura linear. A espinha dorsal de uma nação é composta também pelo intangível. O que dizer do famoso paradoxo político argentino? Talvez não exista exemplo melhor para ilustrar a contradição que muitas vezes faz parte da construção da política de um país. Na Argentina, ao mesmo tempo em que há uma forte tradição que valoriza a democracia e a participação popular, mas, há também uma curiosa tendência histórica de líderes populistas autoritários que governam com mão de ferro.

“a criação de uma cultura política é um processo complexo e que nem sempre se serve de uma leitura linear”

Durante grande parte da história argentina, houve um forte apelo popular por governos que prometiam justiça social e participação democrática, como foi o caso do Movimento Nacional Justicialista, mais conhecido como peronismo, um movimento político fundado nos anos 1940 pelo então presidente argentino Juan Domingo Perón. No entanto, muitos desses governos populistas também foram caracterizados por um estilo autoritário e uma concentração de poder em torno de uma figura carismática — caso do próprio Perón e sua esposa, Evita —, o que levou a períodos de repressão e violência política. O paradoxo político argentino se tornou evidente em várias ocasiões históricas, como durante a ditadura militar que governou o país entre 1976 e 1983. Desde a redemocratização do país na década de 1980, a Argentina tem passado por altos e baixos em sua história política, com governos mais populistas e autoritários e outros mais democráticos e reformistas.

Quando comparamos a Argentina ao Brasil, vemos similaridades e diferenças, cada qual com seu jeito latino de ser. Da tradição política mais fragmentada, com muitos partidos políticos e ideologias diferentes, nem sempre se vê com bons olhos os protestos de rua no Brasil. Eles existem, claro, mas, pela difusão de ideais, existem em proporções humildes e raramente em escala nacional. Numa lógica mais polarizada, a Argentina tem uma longa história de confrontos entre o peronismo e o antiperonismo, e acaba gravitando em torno de greves e mobilizações sindicais. Os dois países tiveram períodos de governos militares autoritários, mas a forma como a transição para a democracia ocorreu foi diferente: na Argentina, houve uma reação forte e prolongada contra a ditadura, além da busca profunda pela justiça e responsabilização pelos crimes cometidos; já no Brasil, a transição para a democracia foi mais calma e gradual, com menos esforços para julgar os crimes cometidos durante a ditadura militar. Em suma, de um lado temos 1985, filme com Ricardo Darín; do outro, temos a avenida Presidente Castelo Branco, uma das maiores de São Paulo. 

Os protestos populares seguirão reverberando aqui, ali, em espanhol, português, francês, hebraico, nesta e em qualquer outra época. Isso é fato. A constituição histórico-cultural de cada canto há de definir os comos e porquês

O poder do povo na política é um conceito que remonta às origens da democracia, onde a voz do cidadão comum era tão importante quanto a dos líderes. No entanto, ao longo dos anos, tornou-se cada vez mais evidente que a influência dos mais poderosos muitas vezes vence os interesses da maioria. No mundo ideal, viveríamos onde os governados não temam falar e os governantes não temam ouvir. Mas não é bem assim. A riqueza e o poder político são recursos que muitas vezes estão nas mãos de uma pequena elite, que tem acesso aos corredores de poder e aos tomadores de decisão. A capacidade dos mais poderosos de moldar o processo político em seu favor muitas vezes resulta em políticas que beneficiam a eles próprios e prejudicam a maioria. Muitas pessoas acreditam que a política é corrupta e que as mudanças reais são difíceis de serem alcançadas por meio dos mecanismos democráticos tradicionais. Mas a descrença e o desencanto com a política, que desestimulariam a participação em protestos, não foi o bastante para impedir o atual contexto conturbado de Israel e da França. 

“ao longo dos anos, tornou-se cada vez mais evidente que a influência dos mais poderosos muitas vezes vence os interesses da maioria”

Com a crescente conectividade e o avanço tecnológico, a democracia participativa pode se tornar ainda mais acessível e eficaz. A internet e as redes sociais, por exemplo, possibilitam a participação de cidadãos em debates e consultas populares sem a necessidade de estar fisicamente presente. A democracia participativa — ou a ideia de uma democracia participativa — continua sendo relevante, e deve ser incentivada como uma forma de promover a inclusão cívica e a justiça social.

Do que, afinal, a democracia é feita? Sobretudo, de força de vontade. De muita força de vontade.