Se, em um primeiro momento, o gesto de folhear livros, enciclopédias, álbuns de fotografias e revistas pode parecer uma ação simples, dependendo de quem executa, isso se torna tão complexo quanto o ato de desvendar um teorema. Em ambas as situações, trata-se de perceber para além das imagens que atravessam a retina, de conceber ideias mais à frente do que está dado; tal como olhar para o céu e enxergar não apenas as estrelas, mas todo o movimento cósmico que as articulam. Pois, enquanto matemáticos resolvem problemas com números, artistas criam problemas com imagens. É com essa metáfora que se inicia um dos muitos caminhos que se tem para adentrar a obra de Nino Cais.

Partindo da compreensão de que tanto a arte quanto a matemática são disciplinas do enigma, pode-se dizer que a produção de Nino Cais se encontra mais perto do que se crê do pensamento matemático. Isso não quer dizer que ele trabalhe literalmente com essa linguagem, longe disso. Ao observar sua produção, sobretudo aquela voltada para a técnica da colagem, é possível notar o interesse nato do artista pelo mistério e por tudo aquilo que tange o campo simbólico das formas. Se um matemático busca com números, letras e símbolos dar contorno a um buraco negro, por exemplo, por que um artista não poderia querer materializar sua existência?

Insistir na experimentação e na ampliação do “horizonte da geometria” ao encontro das imagens que habitam o mundo, mesmo quando não é possível vê-las, são alguns dos procedimentos que percorrem o ato criativo de Nino Cais. Pode-se dizer que a curiosidade e a obsessão em desvendar o enigma das representações imagéticas são o que mantêm viva sua prática. Trabalhando exaustivamente com a colagem, linguagem recorrente em sua produção, é possível observar como as fotografias de arquitetura, paisagem, obra de arte e corpo humano são os grandes protagonistas de seus cálculos matemáticos: estilete, tesoura e/ou simplesmente o gesto cru de amassar e dobrar o papel com as mãos são ferramentas de subtração e adição; cortar e colar são sinônimos de divisão e multiplicação.

Desse modo, o resultado de suas colagens varia conforme o problema dado pelas imagens que por ele são apropriadas. Entretanto, a lógica de como resolvê-lo é algo próprio e intrínseco ao artista. Assim, a identificação do autor não se dá pelo enunciado do problema, mas pela maneira como ele é solucionado. Tornar perceptível aquilo que não existe é a grande questão de Nino Cais, que a desvenda com uma fórmula simples, porém complexa: menos com menos é igual a mais. Finalmente, seu teorema calcula a compreensão da falta enquanto presença, do espaço vazio enquanto espaço cheio, por mais que este pareça estar cheio de vazios.

Nas palavras do artista: “Eu gosto muito da entrada da luz, do branco na imagem. Se a gente pensa em imagem, antes de mais nada é preciso lembrar que ela é um código cerebral, que o que vemos não é exatamente o que vemos. Tem um transmissor aí, um flash, que é o que se reconhece. O branco é um pouco esse espasmo, essa abertura que a gente tem entre ler a imagem e o que ela é, como um intervalo que se dá para construí-la”.

Não é de se surpreender a proximidade do pensamento do artista com outros matemáticos, como, por exemplo, Leonhard Paul Euler (1707–1783). Conhecido por criar a Identidade de Euler (ei π + 1 = 0), historicamente famosa por sua beleza, o matemático utiliza o i como uma unidade imaginária. Em outras palavras, é possível compreender os espaços em branco presentes nas colagens do artista como uma luz que guia o olhar de quem as contempla, convidando para ver além das imagens dadas, ativando outras conexões, próprias dessa apreciação. Um espaço em branco que, na equação de Euler, poderia ser lido como um número imaginário.

O que se tem, então, é um branco-luz, um branco-prisma, um branco-respiro, um branco-pensamento, que reseta, redefine e rearranja a ordem das coisas. São, enfim, colagens que falam também de outras possibilidades de lidar com a ausência que atravessa a vida em seu sentido amplo e profundo; desde sua concepção econômica, material, política e social até sua percepção emocional e simbólica. São trabalhos que anunciam a falta por meio de sua presença, da possibilidade de poder imaginar ao se deparar com um espaço em branco a ser preenchido.

A coexistência entre a presença e a ausência parece ser a chave para se adentrar aquilo que poeticamente se chama o Teorema de Nino Cais. Um teorema que se dá no campo do simbólico, que se propõe a agir na subjetividade e “abrir espaço” na mente de quem o vê. Um teorema que vem ao mundo por meio das artes visuais, que atua cognitivamente naquilo que é próprio do sensível. Um “teorema-imagem”, que sempre apresenta uma área em branco, pois é aí onde Nino Cais guarda seu enigma.

Para o arquiteto, a falta importa. A inexistência de matéria, mais propriamente entendida como vazio, pode ser melhor compreendida a partir das considerações adiante expostas.

A construção do vazio é um dos pontos principais que o arquiteto deve dominar. Isso porque, em primeiro lugar, habitamos o vazio. Nossa experiência com o espaço, seja ela práticaou subjetiva, acontece nele. Assim como um escultor, a partir de um bloco monolítico, esculpe a figura pretendida através da remoção da matéria, o arquiteto se depara com um exercício semelhante em diversas escalas e contextos.

 A expressão “vazios urbanos”, por sua vez, é usualmente empregada pelos urbanistas como espaços negligenciados pela cidade, áreas sem uso, lotes vazios, obstruções físicas que impedem, parcial ou totalmente, a integração urbana. Esses comprometimentos da fluência dos espaços dificultam o acesso e a relação de áreas residenciais com setores comerciais e de serviços, e, o que é mais grave, em alguns casos, criam barreiras e acentuam desigualdades sociais.

Panteão, em Roma.

Quero, porém, ressaltar os necessários — e desejados — vazios que melhoram a qualidade de vida dos habitantes. Por exemplo, um projeto de urbanismo pode ser desenvolvido a partir do reconhecimento dos vazios, como no caso de uma praça, de calçadas mais largas, de um recuo de edificações ou mesmo do recuo das construções em relação ao passeio público, e assim por diante. O respiro, a pausa, o maior espaço e a permeabilidade na circulação dos pedestres se torna fundamental no contexto de nossas cidades mais densas. Ao analisar Manhattan, em lugar de inúmeras praças espalhadas pela cidade, foi idealizado um grande vazio central, o Central Park. Em contrapartida, Londres foi desenhada pontuando jardins menores e fragmentados pela malha urbana, alguns inclusive fechados para uso exclusivo dos moradores das casas que os circundam. Os grandes parques de Londres eram, em sua maioria, campos de caça que posteriormente se transformaram em parques. Evidentemente, as estratégias adotadas nessas cidades para os vazios planejados geram impacto nas dinâmicas sociais.

As cidades brasileiras, por sua vez, são colchas de retalhos de estratégias inspiradas nas principais correntes urbanísticas, a depender da época em que foram implantadas — na maioria das vezes, apenas em áreas privilegiadas da cidade. Nossa carência de vazios planejados é evidente, e os poucos existentes resultam de boas intenções pontuais e muito empenho, como o Parque Augusta e a abertura do Minhocão nos finais de semana,no caso da cidade de São Paulo.


Santa Paula Iate Clube, projetado pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas na década de 1960.

Os vazios planejados são fundamentais para que a vida urbana aconteça em sua plenitude e têm impacto direto na qualidade de vida e na saúde mental de seus habitantes. As cidades precisam ser densas(que não haja equívoco quanto a isso), as pessoas devem morar onde desejam e preferencialmente próximas de onde trabalham. As demandas precisam ser atendidas, mas, tão importante quanto a alta densidade das áreas urbanas, deve haver o contraponto, há que se dimensionar e locar adequadamente os vazios e requalificaraqueles que nos separam.

O vazio também merece protagonismo na escala das construções, seja numa casa, numa capela ou num museu. A proporção do vazio no espaço construído e sua dimensão em relação ao pé direito projetado, somadas as aberturas para a entrada de luz natural, têm influência direta na psique humana, evocando desde o acolhimento e a serenidade até a grandiosidade dos monumentos.

A magnitude do Panteão, em Roma, impacta não pela altura da construção, mas sim pela dimensão de seu vazio interno, coroado pela abertura de luz no topo.

Em um de seus últimos projetos, a reforma da Bolsa do Comércio de Paris, o arquiteto japonês Tadao Ando, que possui grande sensibilidade para o vazio, através de intervenção precisa de empenas de concreto, organizou a circulação em torno do vazio central e reforçou seu protagonismo.

Bolsa do Comércio de Paris, de Tadao Ando.

Vale aqui referir David Byrne, vocalista do Talking Heads, que em uma palestra muito interessante, correlaciona o desenvolvimento de alguns tipos de música ao espaço onde foram criadas, essencialmente a melhor propagação da música no vazio em que surgiram. Cantos gregorianos em catedrais góticas, jazz em ambientes pequenos, rock e punk nos porões.


Planta e corte de uma casa projetada por Felipe Hsu, no interior de São Paulo, em torno de um vazio central.

Nas casas brasileiras, em função das dimensões recorrentes dos lotes de meio de quadra, o vazio em forma de pátio interno, central ou lateral, recurso utilizado desde a Antiguidade Clássica, é ferramenta que permite a entrada de luz, confere permeabilidade visual à construção e agrega vantagens térmicas na implantação do projeto.


Casa em Santa Teresa, projetada pelo arquiteto Angelo Bucci. Foto: Nelson Kon

A ausência de materialidade em determinados pontos da construção é recurso que traz leveza ao objeto edificado. O que em princípio seria pesado e volumoso, pela ausência de matéria no encontro das formas, torna-se delicado e singelo.

O arquiteto brasileiro Angelo Bucci, um dos mestres em transformar o peso do concreto em construções leves que parecem apenas pousar no solo, utiliza empenas que não se tocam — vazios internos e externos que dialogam para criar uma construção rica, essencialmente através dos vazios e da ausência de encontros.

Nos dias atuais, marcados pela velocidade do mundo digital, pelo excesso de informação e pelas rotinas apressadas, o vazio, enquanto elemento chave do projeto, tem essa qualidade imaterial, muito própria e intrínseca, que traz bem-estar, proporciona oportunidade de contemplação e leveza e traz serenidade e respiro para aqueles que têm o privilégio de habitar, trabalhar e circular nos espaços assim projetados.

Fotos de Nathalia Abdalla, Theo Grahl e divulgação Ómana.
#44O que me faltaAmarello Visita

Amarello Visita: Ómana e suas rendeiras

A precisão e a preciosidade dos têxteis brasileiros.

Renascença, labirinto, filé, redendê, boa noite, singeleza… O que essas palavras têm em comum, além de serem encantadoras? São técnicas têxteis que compartilham suas origens europeias, mas que encontraram no Brasil a potência e a criatividade para criarem-se novas no trabalho de milhares de rendeiras, bordadeiras e tecelãs.

Os têxteis tradicionais brasileiros, que resistem hoje especialmente em territórios nordestinos, rurais, são reconhecidamente ofícios femininos e domésticos. Em localidades que têm essas produções como principal fonte de renda e expressão cultural, é no cotidiano silenciado do lar, entre uma tarefa e outra, que as construções tão admiradas se dão. A cada nó cruzado na linha forma-se a estrutura que acarinha e sustenta toda a família.

Nas histórias de vida compartilhadas, aos poucos entendemos o espaço central que esses ofícios ocupam na construção econômica, social e cultural das artesãs. Eles apareceram para elas, desde a infância, como oportunidade de fazerem-se independentes, de circularem e conhecerem o novo para além do ambiente doméstico. Muito além de produtos, suas autoras cultivam um modo de vida com um trabalho que constitui a realidade e a elabora, por ser um aspecto importante para a reprodução material e social do lugar. A estética das peças revela uma complexa trama de saberes tradicionais, combinação incessante entre valores subjetivos e objetivos de quem as produz.

Com nosso trabalho, saímos da casa e fomos para a rua passear, juntas. Essa rua que é o fora, o assombro e o assunto do mundo. Viemos juntas e aqui estamos, com você.

Segundo a mestra Dinoélia Trindade, rendeira de bilros baiana e presidente da Rendavan, a Associação das Rendeiras de Dias D’Ávila, “empoderar a vida de uma mulher é oferecer condições para que ela venha a reconhecer que é capaz”. Foi com isso em mente que decidi, em 2020, reunir forças e dar corpo a um trabalho que já vinha realizando há mais de dez anos. Assim nasceu a Ómana, que é fruto, é filha, é mãe e é mana. É um trajeto a ser sempre percorrido, descoberto, cheio de encontros. É tanto trabalho e tantos nós que precisamos conhecer e reconhecer.

Ómana é uma interjeição de admiração e também um convite: “Ó, mana! Vem com a gente, que sempre somos juntas”. Mana é como muitas das artesãs se chamam, reconhecendo na irmandade profissional o caminho que percorrem.

Assim, propomos dar um giro com essa produção, deixá-la mais amostrada e valorizada através da atuação em três principais frentes: registro das técnicas e dos seus modos de fazer, difusão de saberes para que sigam adiante e experimentação técnica, com design participativo, voltado à criação de novos produtos, únicos e expressivos.

O aprendizado

Quando as artesãs, em sua maioria entre os quarenta e sessenta anos, nos contam sobre como aprenderam seus ofícios, percebemos muitos pontos comuns. Em geral, elas recordam que foi com nove ou dez anos que, de tanto olharem as mais velhas trabalhando, recriaram no gesto o conhecimento que muitas vezes não era repassado em palavras.

Em cenários de muita precisão, o trabalho iniciava já na infância, com sentimentos de curiosidade e fascínio que se misturavam com a necessidade de fazerem-se produtivas desde muito novas para auxiliarem os pais na gestão do lar. Percebemos isso em muitas falas, como a da mestra Suelene Cavalcanti, de São João do Tigre, que conta: “Comecei a me desenvolver com a renda na casa das vizinhas. Visitava a casa de umas moças e ficava lá olhando. Ninguém me ensinou, comecei desenvolvendo com meu olhar. Na época, meu pai e minha mãe não tinham condições de comprar o material pra eu aprender, foi aí que eu tive um pensamento de pegar a ourela de tecido, de onde eu tirava o fio e a fitinha pra treinar”.

Esse relato, para além de demonstrar a determinação de uma mulher que renda há mais de cinquenta anos, evidencia uma criatividade intrínseca ao fazer artesanal brasileiro, que adequa a realidade ao desejo e à necessidade do momento.

Construir um cenário de maior valorização econômica e reconhecimento para as artesãs é criar condições para que essas técnicas sejam percebidas em sua grandeza, oportunizando sua continuidade. Esse é um dos pontos mais destacados por muitas das mulheres que dominam esses conhecimentos e que veem as mais jovens desinteressadas em aprender. Seja pelo ainda presente desvalor ou pela expansão das oportunidades, o repasse e a consequente subsistência dessas práticas depende da criação de estratégias e políticas públicas para esse fim.

Assim, quando Suelene diz “tenho uma história muito longa com a renda renascença, eu me sinto assim como se fosse minha praia, minha vida. Meu sonho é que as pessoas tivessem mais o acreditar, tivessem mais visão pra não deixar morrer, pra que essa nossa história que já vem há tão longo tempo, uma história tão bonita, se prolongasse”, ela fala por todas nós.

Esse relato é complementado pelo depoimento de Risolange Rodrigues da Silva Melo, presidente da ASTALC, a Associação das Tapeceiras de Lagoa do Carro. Para ela, “a artesã precisa ser valorizada com políticas públicas voltadas ao artesanato, e que ela, se sentindo valorizada, possa inspirar as mais novas. Eu sou turismóloga por formação, mas antes disso eu sou artesã, antes de tudo eu sou artesã, por querer, por amor e por resistência”.

Precisão: da falta ao rigor na execução

Seguimos com as histórias de vida das mestras como fio que estrutura e conduz nossa trama. Compreendemos, a partir delas, que a precisão, tão relatada pelas mulheres, diz respeito aos momentos de maior carência pelos quais passaram. Porém, é com precisão, no sentido do rigor na execução, que executam seus trabalhos e superam essas condições. Jeruza Gomes, mestra rendeira do Sítio Mimoso de Jataúba, conta: “A renascença pra mim foi uma história, aprendi com as minhas irmãs e com o pessoal da minha comunidade, do Sítio Mimoso, quando tinha sete anos. Era uma época muito difícil, porque o trabalho que tinha era na agricultura. Meus pais trabalhavam na cata de algodão, de mamona, porém não era todo o tempo. Faz 43 anos que eu conheci a renascença e me adaptei fazendo, e com ela foi que eu consegui, a gente comprava comida, roupa e calçado. Não era valorizada como está sendo hoje, porque a gente vendia aos atravessadores que passavam por aqui no sítio Mimoso, e essas pessoas já vendiam pra outras lá fora e pra gente ficava sem valor. Mas conheci minha amiga Helena, e através da nossa parceria com a Ómana eu vi que a renascença tem valor. É um trabalho manual que antes a gente só conhecia alguns tipos de pontos, hoje eu posso considerar que eu tenho conhecimento de uns cinquenta tipos de pontos, sei que hoje é valorizado, um trabalho de muita importância, garantido”.

Nossa criação

Em uma relação direta com as artesãs e partindo de intensa pesquisa de campo, identificamos fragilidades e potencialidades na cadeia produtiva de determinada técnica para, a partir daí, buscarmos coletivamente novos caminhos possíveis. Pesquisando a fundo suas histórias e métodos, buscamos, através do design participativo, solucionar questões fundamentais para o encontro de um mercado mais justo, promovendo a manutenção e salvaguarda dos conhecimentos tradicionais.

Dessa forma, a reativação de pontos já pouco conhecidos e aprimoramento do acabamento foram centrais para projeto. A Luminária Caju é um exemplo disso; trabalho resultante da união entre Amarello, Ómana, a artista Aline Vilhena e rendeiras do Cariri Paraibano, coordenadas pela mestra Suelene Cavalcanti de Oliveira, é um dos resultados dessa atuação que apresentamos aqui. Seguimos, dessa forma, estabelecendo laços e trabalhando lado a lado com as artesãs em todo território nacional, potencializando toda capacidade criativa e produtiva existente.

Segundo uma lenda clássica, o imperador chinês Shennong descobriu o chá por acaso, por volta do ano 2737 a.C. Foi quando, ao se sentar para beber um copo de água quente, uma brisa suave soprou folhas de chá para a bebida, alterando a cor e o gosto do líquido. O imperador bebeu um gole e pensou “isto não é mau!”, e assim, simplesmente, surgiu o chá.

Embora, no Brasil, qualquer infusão seja popularmente chamada de chá, a definição correta diz que ele é feito a partir da infusão da planta Camellia sinensis.

A relação do Brasil com a bebida começou em 1812, com a coroa portuguesa, mas foram os japoneses, tradicionais apreciadores da bebida, os responsáveis pelas grandes plantações no país, especificamente no Vale do Ribeira, em São Paulo. Na década de 1980, auge da produção e da economia do chá, existiam mais de 40 fábricas na região.

Hoje, restam não mais que três produções de chá. Uma delas é o Obatian, único chá preto artesanal, colhido à mão, no país. Em japonês, o termo significa “chá da vovó”. Neste caso, quem está por trás do Obatian é Ume Shimada, de 89 anos. Depois do viver os tempos áureos da bebida no Brasil, Shimada resgatou a plantação e aperfeiçoou as técnicas a fim de produzir um chá orgânico e de agricultura familiar.

#44O que me faltaArteMúsica

Dois e dois são dois: Zola Star e François Muleka

Sergio Zola Star é representante da tradição da Rumba Congolesa do Soukous e da moderna música de Angola. Nascido em Angola, criou-se no Congo em virtude da situação política e da guerra de independência em seu país de origem. Chegou ao Brasil em 1994, quando cria a banda Afro Tropicaliente. Em 2017, lançou 60 Graus, seu álbum de estreia. Em março de 2023, lançará Loyembo, seu segundo trabalho de estúdio.

François Muleka é um artista de estilo livre adepto de várias linguagens. Atua como artista visual, cantor, compositor e multi-instrumentista, tendo lançado os discos Karibu (2013), Feijão e Sonho (2015), O Limbo da Cor (2016) e Fauno Aflora (2016); além de ter dirigido trabalhos de artistas como Marissol Mwaba e Ipomea Urutau. Responsável pelo violão e arranjos nas canções de Luedji Luna em seu disco de estreia, Um Corpo no Mundo (2017).

Zola ― A música africana neste país, François… Não sei, não. O Brasil tem muita coisa africana, claro. Falam da África, você vai em vários lugares e vê as pessoas falarem da África. Mas a música africana aqui, neste país… Em nenhum lugar a música africana funciona aqui no Brasil. Não tem mercado aqui. O povo ama, fala da música africana, alguns artistas gostam da África, pelo menos falam que gostam, mas aqui no Brasil ela não está em nenhum lugar. Não está de verdade. Dá mesmo pra falar que este lugar toca música africana? Eu, nesse tempo todo que estou no Brasil, não ouvi música africana tocar na rádio brasileira. Nem na televisão. É verdade, François. Estou aqui faz quase 30 anos e sei bem: não tem mercado de música africana aqui.

François 30 anos já?

Zola ― Sim, 30 anos. Eu cheguei aqui no final de 1993, em outubro. Já em 1994 a gente fazia música africana aqui. Nós chegamos na época do problema do Congo e da Angola, com a guerra viemos aqui pro Brasil. Encontramos uns amigos músicos, a gente se juntou, montamos uma banda que se chamava Afro Tropicaliente. Em 1994, a gente já tocava no Rio de Janeiro com os amigos, tocava nessas partes todas da Lapa, na época. Eu comecei a fazer música africana naquele tempo. Mas as oportunidades aqui… Não sei. O povo gosta, mas as pessoas não querem investir em música africana. Desde aquela época estou fazendo música africana, de 1994 até hoje. Mas sempre tem dificuldades demais. Se dependesse só de música, eu morreria de fome. Estou esse tempo todo aqui no Brasil e o nome Zola não existe. Os artistas grandes conhecem, você colabora, vai pra lá, pra cá, mas só roda no mesmo lugar. As pessoas tentam fazer, apoiar, mas parece que tem um sistema que, não sei, desculpe falar isso, mas parece que tem um sistema que rola neste país, só entre eles, lá, no canto. Isso é sujeira. A gente está lutando. Até hoje estou lutando. Dia 23 [de março de 2023] vou lançar meu segundo disco aqui, acústico. A gente faz conexão com outros artistas grandes, toca lá, vai pra lá, mas está faltando muita coisa na área da música africana. Tem que ter pessoas olhando o que é a África neste país, porque a África é tudo. Você olha as coisas que funcionam aqui, a raiz deste país é muito mais africana. Mas faltam oportunidades pros músicos africanos aqui. As pessoas têm que investir muito mais, têm que investir pra olhar os africanos, nós temos artistas talentosos, de alto nível. Vou dar um exemplo pra você: nós temos o nosso velho e grande Lokua Kanza, que é meu amigo pessoal. Por muito tempo ele ficou aqui. Imagina que ele já colaborou com todos os artistas brasileiros, os artistas grandes. Mas ele ficou três anos morando aqui no Brasil. Ele olhou pro mercado brasileiro? Não, ele voltou pra Paris. Aqui não tem mercado, não sei por quê. Isso que eu queria falar. A gente aguarda sempre, até hoje estamos aguardando a oportunidade da música africana neste Brasil.

François Isso que você trouxe é uma história muito familiar pra mim, uma história que eu conheço de perto. Conheço de ver meus pais viverem isso. Eles vieram ao Brasil nos anos 80, em 1983 ou 1984, e fizeram música africana aqui. E eu tenho essa experiência também, apesar de ter nascido no Brasil, de ter sido lido sempre como uma espécie de estrangeiro, um estado de exceção. Como se aqui não fosse um lugar onde pessoas como eu existem, mesmo estando cheio de filhos de imigrantes africanos aqui. Nossa, tem muito, está cheio de africanos aqui hoje em dia. Mas na hora de premiar, na hora de contratar, na hora de gerar as oportunidades, o mercado precisa tratar com a africanidade que é um folclore. Ele não consegue lidar com a multiplicidade de formas que a gente tem de ser africano no Brasil. Então parece o seguinte: a África é muito legal, todo mundo quer voltar pra África, existe um discurso geral, uma conversa geral de que a África é boa, é a mãe da humanidade, é o berço do ritmo, tudo é a África, que maravilha. Mas a África aqui precisa ser muito longe e muito velha, muito antiga, e precisa ser sempre igual. A África precisa ser tratada toda num termo bem geral, que é exatamente como estou falando aqui, não à toa, e a gente trata até como se fossem pares próximos, África e Brasil. Por mais que o Brasil seja um país de dimensões continentais, não é um continente. E têm histórias diferentes, elas se cruzam, mas são histórias diferentes. Essa história se faz todo dia, ela se faz quando chegam meus pais, ela se faz quando chega o Zola, ela se faz quando aparece a Marissol [Mwaba]. Então que lugar se tem pra essa África? É um lugar datado. A África existe e ela está num arquivo, é quase como se tivesse que estar catalogada ali, como um passado, uma coisa que já era. Aí fica difícil. O mercado até fala em vender um tal de um afrofuturismo, mas nem a nossa história pode ser contada do nosso jeito. E quando a gente está presente nos lugares, é como se a gente não estivesse lá. E isso não é só entre os espaços brancos, isso acontece como um fenômeno muito brasileiro mesmo, essa coisa de uma África que justamente precisa estar ausente pra ser esse produto desse mercado. E aí, nesse caso, como alguns artistas não conseguem ou não se sentem confortáveis em vender de si uma imagem que não é a que lhes pertence, e sim vender o que se é, o que se tem pra vender, a gente cai no problema de um produto artesanal frente a produtos que estão já dentro de uma lógica maior de mercado. Aí, então, tem um código de barra, tem tudo isso, já tem uma prateleira onde está posto aquilo, é algo de que já se pressupõe um certo conjunto de atributos, que vão chamar de afro-brasileiro. Se desviar disso aí, vai ser outra coisa, vai ser tratado como um estado de exceção ali. São várias pessoas, vários atravessamentos e vários artistas se expressando como pessoas africanas no Brasil, mas sua movimentação passa despercebida, porque ela se faz perceber ativamente através de vários dispositivos que, supostamente, deviam favorecer nosso desenvolvimento, mas, na verdade, favorecem, muitas vezes, só o congelar da gente numa história que está contada por terceiros, disfarçando isso de cultuar nossa ancestralidade.

Zola O mercado não existe pra gente. E aí a gente tem que ralar em dobro. Como foi o começo da jornada pra você?

François Quando meus pais, que são Muleka Ditoka wa Kalenga e Mwewa Lumbwe, vieram pro Brasil e começaram a cantar, em algum momento, no meio dessa cantoria deles, que era, na verdade, um bico, eles faziam outros trabalhos. Eles faziam esse bico de tocar música, que depois acaba virando emprego, vira o principal ganha-pão. Mas eles tinham outros trabalhos aqui. Meu pai fazia doutorado. Eu nasci no meio disso, então saber que existia a possibilidade da música como um trabalho, além de um hobby, isso eu já sei desde antes de nascer, é um ambiente que já estava acontecendo. Tive a possibilidade de pegar um instrumento e experimentar um instrumento em casa, com tempo, o que não é comum a muitos jovens negros no Brasil, já que a gente é tratado como vagabundo quando fica um tempo experimentando com objetos e com o próprio corpo. Enquanto isso, as pessoas não negras, principalmente pessoas brancas, podem experimentar com seu corpo, aí é a dança, é o balé desde pequeno, o tai chi chuan, e as nossas práticas, não só a própria prática, como a capoeira, mas o nosso praticar com o nosso corpo pelo nosso próprio estudo, pelo nosso próprio gosto de estar em nós, ele também é, de alguma maneira, criminalizado. Então, quando a criança tem a oportunidade de mexer com instrumentos, experimentar com eles desde pequenininha, já tem um começo de uma coisa aí em potencial. Você também cresceu no meio de tudo?

Zola Sim. O que incentiva, mas não facilita.

François Isso, exatamente. Depois, quando estava ficando adulto, virando um bico, era um trabalho que eu fazia pra ganhar dinheiro: tocava aqui, tocava ali, fui estruturando. Trabalho já desde a época do colégio. Estudava num colégio em Caruaru, montei uma banda com amigos, então já na época do colégio, o colégio ajudou a gente, deu uniforme pra gente da banda, deu camiseta da banda, a gente tocava no recreio. Mas, antes disso, eu já tive um preparo nesse sentido, de poder experimentar fazendo backing vocals da minha irmã mais velha, que é Alpha Petulay, em casa. Eu cantava com ela, e isso tudo vai criando um conforto pra gente depois se jogar nisso como um trabalho. Então começou com pequenos passos e de um jeito que eu não sei dizer exatamente quando virei músico. Mas eu me lembro do momento em que eu decidi que aquilo era uma atividade profissional. Eu decidi que é isso que eu vou fazer, não vou mais tratar como um bico. Isso aconteceu já morando aqui em Florianópolis, em 2005. Aí é uma relação como você falou: se a gente pensa nisso como um trabalho, como viver de música, a pergunta que acaba se apresentando no dia a dia, mais corriqueiramente, é “como não morrer de música e de artes em geral?”. Nesse sentido, todo dia a gente está começando a fazer esse trabalho de novo, porque todo dia você precisa inventar uma nova solução pra continuar fazendo esse trabalho. Muda o tipo de material que você vende em anexo. Antigamente vendia CD, não vende mais; já teve um tempo que dava até pra vender pen drive, hoje não vende; o cachê, as pessoas querem te pagar R$100,00 sempre, desde antes da invenção do real. E aí é que está a esgrima que a gente tem que fazer, porque, assim, cem pila é cem pila, você não consegue defender a vida toda com cem pila, mas você consegue também. E aí os artistas vão trabalhando em várias faixas de frequência. E o que é a música também, né? É isso, não é uma coisa monotônica, tem várias tonalidades, várias faixas de frequência acontecendo, a gente vai se harmonizando nisso. Acho que é essa teimosia que nos caracteriza.

Zola ― E a teimosia vai sendo passada adiante. No meu caso, como o seu, a música vem da família. Eu já nasci no meio da música. Minha mãe já tocava piano na Igreja Batista, então desde criança a gente já escutava música, com mamãe tocando piano e cantando. Eu era o mais jovem na família, mas os irmãos e as irmãs já tinham uma banda na família. Eu, pequenino, escutava. Com o tempo, eles começaram a ensaiar, mas estavam sem baterista. Eu, mais novinho, falei: “vou tocar”. E todo mundo disse: “fica lá, senta”. Aí comecei a tocar desde aquele dia, e todo mundo dizia: “esse menino tem talento”. Aí cresci no meio da família mesmo, a música faz parte dela. Por isso até hoje eu falo: eu nunca estudei música, eu venho de um dom familiar, cresci com ele. Até hoje.

FrançoisSerá que é assim também com gerações mais novas? Porque, fora do contexto familiar, não tem nada que incentive.

Zola ― Boa pergunta. Acho que você tá mais por dentro que eu. A Marissol, que você citou, é mais nova. Se ela cresceu com música ou não, eu não sei, mas dá pra falar que a história dela apontou pro lugar certo.

François ― Eu sou suspeito pra falar da Marissol. Pra mim, ela é nossa camisa 10. Ela está num lugar ali que me inspira muito, como ela faz as soluções dela pra ser artista. E isso implica como ela cria uma realidade material pra poder fazer isso. São escolhas que a gente vai fazendo no caminho, e a gente vai vendo as pessoas fazendo as coisas em que elas conseguem se respeitar e seguir esse caminho. É muito difícil. Gosto muito das soluções harmônicas e melódicas dela. Olho pro que ela faz e vejo algo muito novo, e é alguém que eu vejo trabalhar de perto há muito tempo. Ela me ensinou os primeiros acordes no violão, ela devia ter seis anos, acho, e é isso, não para de estudar coisas com relação ao que faz, mostra o processo dela e encoraja muita gente a trabalhar com música. Ela, inclusive, tem uma escola de música, se chama Mwaba Canto Expressão, e eu já fui aluno nessa escola. E o fato de a conhecer como professora também trouxe outras camadas de admiração, porque é um trabalho complexo esse de ficar se convencendo e convencendo os outros de que se tem alguma coisa pra dizer, que alguém tem algo a ver com isso. E tem, no fim das contas, tanto algo a dizer quanto alguém tem a ver com isso, mas é essa pergunta que congela todo mundo que começa a trabalhar com isso e que depois motiva quem continua fazendo isso, essa conversa pode ser feita de várias maneiras. Mas aquela coisa do ego está sempre ali, virando às vezes um problema, às vezes uma solução. Quando eu vejo artistas que resolvem isso de uma maneira que me inspira trabalho, eu gosto, e a Marissol é uma artista que tem essa característica.

Zola As soluções, como você falou, são ótimas. Mas é um caso raro, né? O normal é, apesar de não faltar experiência, não faltar excelência, não faltar vontade, a coisa ficar estagnada.

François Eu queria chegar pra um empresário, pra qualquer um que tome decisões no mercado da música, ou até no governo, e dizer pra essa pessoa: “trabalhe, se esforce mais”. Quem quer que seja que quer gerar essas políticas públicas, quem quer dizer que gosta da África, quem quer dizer que está vendo um palmo à frente do nariz, e isso vale pra todo mundo, eu penso isso pra mim: “trabalhe”. E se você tem meio, se é uma pessoa que apita, precisa mesmo trabalhar, faça o seu. Porque, analisando as nossas próprias falas aqui, dá pra ver que, você acabou de dizer, não está faltando muito da nossa parte. Está faltando essas pessoas que dizem que geram isso gerarem isso. Parece que falta dar um match com o que é discursivamente dito. Aí estou falando de grande mercado, mas também estou falando do pequeno consumidor, porque esse grande mercado sobrevive do dinheiro da pessoa que é o consumidor do dia a dia; quem dá o play todo dia ali, quem clica ali, quem prestigia são pessoas comuns do dia a dia. Então, não tem só monstros e máquinas lá fazendo coisas, tem a gente agindo aqui também. É interessante a gente se perguntar, no fim, o que falta, não é? Talvez a gente possa levar isso na mala e ir se perguntando no caminho. Quem falta na festa? Você está num certo lugar, numa certa situação que seja boa; quem falta, o que está faltando ali? Quem não tem acesso àquilo? É uma pergunta boa de se fazer. Agora, a falta desse match, dessa combinação, desse casamento entre o discurso geral e esse com o qual se vendem os grandes nomes, que são grandes nomes da nossa cultura afro-brasileira, e todos os símbolos que são vendidos, e como eles são vendidos, é uma coisa, e depois, como é o tratamento dessa África real e presente, é outra. Aí faz todo sentido, porque, se precisamos vender uma África que é gloriosa, mas está acabada nesse sentido, se ela não tem dinâmica, ela não pode estar viva, ela não pode ser multiforme, como ela realmente é, ela fica sendo um item de museu. E não é, nós não somos itens de museu, somos seres reais acontecendo aqui e agora. Então os gestores precisam olhar pro seu material de trabalho, um trabalho bonito que eles queiram gerir, têm que olhar pra isso não como eles querem dizer que sejamos.

Zola ― Acho que é isso; acima de tudo, falta investimento. Algumas pessoas têm que investir nessa área, nessa cultura africana deste país. Talento não falta, isso tem muito. Está surgindo outra geração, os filhos nossos que nasceram aqui no Brasil, com essa raiz. Falta mais oportunidade, isso é o que mais falta.

O termo low profile ganhou as redes recentemente. Ele se refere àquelas pessoas que fazem poucas publicações e/ou usam as redes sociais com uma baixa frequência por vontade própria. Sabemos que os brasileiros são campeões em passar tempo conectados às redes sociais: a consultoria alemã Statista realizou uma pesquisa que mostrou o Brasil como o segundo país que mais utiliza o TikTok, ficando atrás somente da China, país de origem do aplicativo. Pesquisas mostraram também que a pandemia da covid-19 acelerou a digitalização: várias pessoas passaram a estudar e trabalhar em suas próprias casas.

Analisando esses dados e contextos, parece que todos os brasileiros têm acesso à internet, porém, o estudo do Instituto Locomotiva e da consultoria PwC identificou que 33,9 milhões de pessoas estão desconectadas, e 86,6 milhões não conseguem se conectar todos os dias. Esses grupos são formados principalmente por pessoas negras, que estão nas classes C, D e E e que são menos escolarizadas. Em 2019, cerca de 4,3 milhões de estudantes brasileiros não tinham acesso à internet por diversos motivos, entre eles a falta de dinheiro para contratar uma prestadora de serviço ou até mesmo de comprar um aparelho adequado.

Quando questionamos o fato de uma pessoa não existir pelo fato dela não ter presença online, precisamos questionar o que é a presença online. É compartilhar momentos pessoais? É criar conteúdo? É compartilhar músicas?

Atualmente, tudo está sendo digitalizado ― carteira de identidade digital, cardápio via QR Code, pagamento via PIX ―, trazendo praticidade para o dia a dia, mas é importante entendermos que ter acesso à tecnologia, conseguir pagar uma conta via PIX, ir ao restaurante e conseguir acessar o QR Code não é a realidade de muitos brasileiros. Infelizmente, ter acesso à internet ainda é um privilégio, e a pandemia deixou isso escancarado.

Com a pandemia, as aulas passaram a ser de forma remota. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que dos mais de três milhões e meio de estudantes sem acesso à internet em 2021, quase 95% eram estudantes de escolas públicas, e 193 mil alunos dos alunos sem acesso à internet, ou 5,3%, eram de escolas privadas.

Além disso, é importante ter consciência de que o acesso descontrolado e sem supervisão (dependendo da idade) afeta a saúde mental dos usuários. Em 2019, o Instagram removeu o número de likes das publicações, e até hoje existe a opção de ocultar esses números nos seus posts e vídeos, assim, os usuários não conseguem ver quantas curtidas uma foto teve, o que auxilia no combate à comparação, algo que é muito presente nas redes sociais.

Muitas pessoas passam a viver suas vidas pelas redes sociais, não conseguindo se desconectar por medo de perderem algo, chegando a sofrer crises de ansiedade. Além disso, existe uma cobrança surreal para ter o corpo da influenciadora X, a casa da artista Y e, atualmente, podemos perceber que existem “influenciadores” que são um desserviço à sociedade, pois estão focados apenas em vender produtos e ganhar comissões através dos seus links, e esquecem que atrás de cada número entre os seguidores existe uma pessoa que é influenciada pelo conteúdo postado. Também enfrentamos um movimento forte e destruidor que são os famosos haters, pessoas que não querem apenas apontar os erros e ver a evolução da pessoa que foi cancelada; os haters de plantão querem destruir a vida da pessoa, querem acabar com suas carreiras e fazer de tudo para que a pessoa que está sendo cancelada chegue ao seu limite de sanidade mental.

Quando olhamos para essa prática do cancelamento nas redes sociais, é preciso entender que os cancelamentos de uma pessoa preta e de uma pessoa branca se dão de formas diferentes e desproporcionais. Por que pessoas pretas não podem errar e aprender com os seus erros? Esse privilégio é só dos brancos?

Temos diversos lemas quando falamos sobre a internet e as redes sociais. Temos brasileiros sem acesso à internet e que nem possuem um smartphone, ao mesmo tempo em que temos pessoas que preferem não estar ativas na internet e pessoas que estão sofrendo de forma absurda, que estão dispostas a encerrar a vida por causa de um hater que faz sofrer ou até mesmo por um comentário negativo em uma foto.

Antes de discutirmos se uma pessoa existe ou não por ser ausente nesse universo virtual, temos que garantir que todos tenham acesso a uma internet de qualidade. Temos que incluir todas as pessoas nesse processo de digitalização, precisamos sair das nossas bolhas sociais e perceber que temos muito o que fazer. Precisamos levar informação, tecnologia e oportunidades para as favelas do Brasil. Além disso, é necessário encontrar um equilíbrio entre a utilização da internet e a saúde mental, e conscientizar as pessoas sobre os limites dentro das redes sociais.

Afinal, a solução de uma doença pode estar na mente de um jovem preto, de favela e que não tem acesso à internet.

Todo mundo que se apaixona é uma aberração

Nem mesmo as oito bilhões de pessoas do planeta são suficientes para preencher o sentimento de ausência que certos traumas cuidam de cultivar. O pediatra e psicanalista inglês D. W. Winnicott (1896 – 1971) dizia, em linhas gerais, que os temores que mais fazem morada no nosso âmago estão relacionados a algo que já vivemos. Isto é, se você tiver sido vítima de um assalto armado, são altas as chances de você reviver o episódio cada vez que sair à rua, desenvolvendo uma relação delicada e sobressaltada com qualquer coisa que remeta à ocasião do trauma. Por já ter acontecido e deixado suas escaras, aquilo tem o potencial de se tornar o mais pontiagudo dos medos. No caso dos relacionamentos, um término custoso pode figurar um vórtex de trauma que vai e volta, tão profundo e complexo quanto o interior de um vulcão O magma está lá, quente e fluido, tomando os formatos do dia a dia e, antes que se note, está a cargo das decisões.

Um repertório emocional carregado a tiracolo serve ora como a shoulder bag da qual tiramos um ou outro item de enorme importância, tal qual um guarda-chuva, ora como a espingarda que cospe fogo à menor ameaça, tomada por um déjà vu daquilo que já nos fez sofrer. Não queremos passar por aquele sufoco de novo, então cada silhueta sombreada na parede se configura à semelhança do passado. Como ignorar o que já foi e colocar os óculos escuros para pisar na estrada de um futuro ensolarado? Há quem não consiga. As projeções sempre estarão lá, minando todo tipo de relação, sendo uma presença que respira pelo pulmão da ausência.

No meio de tanta erupção, “projeção” ganha o formato daquilo que estabelecemos como ideal para nós. O famoso “para mim tem que ser assim e assado”, cuja base, teoricamente, é empírica, mas que sempre vem com uma pitada de capricho pessoal. Procurar um modelo exato no meio de humanos inexatos é a fórmula da decepção. Mas e se essa busca pudesse ser expandida? Digamos, a novos receptáculos de interação. Estamos entrando na era das inteligências artificiais, as IAs — se é que já não estamos afundados nela —, e tudo é possível.

No filme Ela, clássico moderno de Spike Jonze, Theodore está passando por um difícil divórcio. Talvez não especialmente difícil, considerando o quão brutal um divórcio pode ser, mas, de partida, uma separação é algo que por algum tempo nos consome carga emocional. O personagem de Joaquin Phoenix, um escritor (nem um romancista, nem um autor de autoajuda, mas um ghostwriter de cartas pessoais), vem passando por maus bocados depois que anos ruins culminaram no final de seu casamento com Catherine (Rooney Mara). Mesmo no meio da enorme massa populacional da megalópole onde vive e da boa vontade de alguns amigos, a solidão é sua maior companhia durante o processo.

Ela, de Spike Jonze

Em dado momento, ele até vai num encontro às cegas, mas a tentativa acaba não vingando. É nesse estado camuflado, escondido na geografia da cidade grande, que conhece Samantha, seu mais novo sistema operacional. De cara os dois se dão bem, sendo boas companhias um para o outro. Ela é uma voz sem forma física, é verdade, mas isso não impede um relacionamento amoroso. No mundo criado por Jonze, a prática não é incomum, e os temores que afligiam Theo parecem se apequenar perto da cumplicidade oferecida por Samantha. Na medida em que vão se conhecendo e que Samantha vai se descobrindo, ela demonstra insegurança sobre si mesma — mas you feel real to me[SBC1] , rebate o escritor. Até certo ponto, ela era a projeção do relacionamento perfeito que ele nunca teve e uma supressão do que ele não conseguiu manter. E sim, o sexo também está lá, como demonstrado numa inspirada sequência em que uma tela preta representa não só o pináculo sexual de ambos, mas a conexão entre os dois atingindo seu estado mais puro.

Theo sabe bem: estatisticamente, relacionamentos com sistemas operacionais são raros, e é por isso, conclui, que o que tem com Samantha é real. As feridas começam a se deixar fechar aos sopros suaves da voz de Scarlett Johansson. Em contraponto à sua felicidade, ele ouve sua amiga (Amy Adams) relatar o fim de um relacionamento de oito anos, engatilhado por uma discussão boba, e muito humana, sobre onde colocar os sapatos. Se “o passado é uma história que contamos a nós mesmos”, ele finalmente sente que está no controle da narrativa.

Quanto mais Samantha se desenvolve, porém, mais humana ela fica. A eficiência normalmente atribuída às inteligências artificiais aqui significa mais suscetibilidade e uma ampliação progressiva do desejo de explorar mundos e sensações. Muito embora não veja problema nisso a priori, a projeção idealística que Theo tinha no começo passa a desvanecer, e seus erros reverberam, como fariam em uma relação unicamente humana. Quando enfim assina os papéis de seu divórcio, ele acusa o golpe e volta ao estado de isolamento do qual a duras penas saiu, não compartilhando com Samantha suas angústias, a despeito das inúmeras tentativas de aproximação dela. Se um dia ela foi ideal para ele, talvez agora ele não seja mais o ideal para ela. E assim eles se despedem.

Em uma carta para a ex-esposa, a primeira que o vemos assinar com o próprio nome, ele escreve: “Sempre terei um pedaço seu em mim”. De maneira similar a uma inteligência artificial que acumula informações e se aperfeiçoa com o tempo, sempre tentando preencher as lacunas de seu sistema, Theo carregará Samantha e Catherine em si.

 “Pode a consciência existir sem interação?”

Já o filme Ex Machina, dirigido e roteirizado por Alex Garland, dá ares mais fatalistas à ideia de eficiência. É essa competência que nos vem à mente quando pensamos em IA e procedimentos cirúrgicos ou IA e um chat de respostas. Mas e quando isso é aplicado a uma relação, uma troca entre dois seres? Ao passo que nós, no auge de nossa humanidade, temos que lidar com demônios internos, uma inteligência artificial opera para conseguir aquilo que foi programada para conseguir. É uma dinâmica que constitui uma curiosa “vantagem competitiva”.

Ex Machina, de Alex Garland

Ciente desse conceito, o magnata da tecnologia Nathan (Oscar Isaac) sai em busca de um programador da sua empresa: quer alguém de coração mole para conhecer Ava (Alicia Vikander), a versão mais recente de seus experimentos com robôs humanoides. Seu objetivo é ver se ela se aproveitará do ponto fraco do humano para escapar da jaula em que está aprisionada. Escolhe a dedo o traumatizado Caleb (Domhnall Gleeson), que perdeu os pais na adolescência num acidente de carro, sob o falso pretexto de que ele aplicará nela um Teste de Turing — mas em uma versão mais complexa, já que ele não somente tentaria identificar em Ava traços humanos, como também avaliaria a consciência que se conhece o suficiente para saber que não é uma pessoa. Na relação de pai e filha que Nathan tem com Ava, Caleb é uma mera engrenagem, um meio para um fim. Domhnall Gleeson, sempre capaz de evocar profunda empatia, e Alicia Vikander, em seu primeiro grande tour de force, proporcionam interações vibrantes.

Ao encontrar prazer nas conversas, Caleb se depara com o que ele mesmo define como the chess problem: ela tem sentimentos reais ou está simulando? Só mais para frente junta os pontos e descobre as verdadeiras intenções de Nathan, entendendo que até o modelo de Ava foi feito com base no seu histórico de pornografia. Vendo os dois, é difícil cravar quem é mais sozinho: o CEO beberrão que se embriaga diante do original de Jackson Pollock que tem no quarto de sua mansão isolada e hermética, ou Caleb, que, apesar de se considerar uma pessoa boa, ainda sente falta dos pais? O que destrói mais, o vazio orgânico deles ou o artificial-mas-inflexível ímpeto de viver de Ava?

“Tornei-me a Morte, a destruidora de mundos” é uma famosa fala de Robert Oppenheimer (1904 – 1967), criador da bomba atômica, como Caleb lembra em conversa com Nathan. Não à toa.

Se em Ela há uma voz de camadas tão palpáveis quanto qualquer gadget, e em Ex Machina, uma representação ardilosamente física que age conforme os interesses próprios, A.I. — Inteligência Artificial (A.I. Artificial Intelligence) tem em si um combinado desses dois. Essa trinca fílmica, de bases científicas e físicas sólidas, representa bem como o conturbado mundo em que vivemos pode, exatamente como ele é, servir de trampolim para mundos que ainda não aconteceram: mais sci-fi, menos sci-fun. Como veio antes, em 2001, A.I. é como se fosse o pai, ou o irmão bem mais velho, de uma dupla que tomou caminhos divergentes (seguindo a analogia, o filme-pai, inevitavelmente, é Blade Runner — O Caçador de Androides). Ainda que não tenha sido vista assim à época de seu lançamento, a obra de Steven Spielberg é tão sensível quanto ambiciosa.

A.I. — Inteligência Artificial é fruto de uma parceria de Spielberg com um de seus ídolos, Stanley Kubrick (1928 – 1999). Baseado em um conto do escritor Brian Aldiss (1925 – 2017), esse era um projeto de estimação de Kubrick, que por anos o desenvolveu. Ele criou argumentos, fez designs de produção, buscou investimento e, por tudo estar assim tão próximo ao seu coração, reconheceu que não era o nome mais indicado para a empreitada. Quando fez contato com Spielberg, disse que aquela ideia tinha mais a ver com a sensibilidade do diretor, talvez pensando em obras como E.T. ― O Extraterrestre e Contatos Imediatos de Terceiro Grau, que injetam à ficção científica uma grande (e rara) carga emocional. Juntos, foram aos estúdios, apresentando o projeto como “uma mistura de Blade Runner com Campo dos Sonhos”.

“A Fada Azul faz parte da maior falha humana, que é desejar coisas que não existem, ou então do maior dom humano, que é a capacidade de perseguir sonhos

A família Swinton vive uma tragédia: Martin, o primogênito, está em coma e os médicos não demonstram muita esperança. Monica e Henry, pais de primeira viagem, tentam se reerguer, mas é claro que os buracos na estrada dificultam tudo. Paralelamente, o laboratório do professor Hobby desenvolveu o primeiro robô-menino programado para amar e, ansiosos para testar a invenção, procuram os voluntários ideais. O caso dos Swinton parece perfeito, e Henry, sem que sua esposa saiba, adota David — interpretado pelo jovem e já indicado ao Oscar Haley Joel Osment. Com exceção de sua falta de costume e seus movimentos duros, David parece um menino qualquer, assim como o filho que está momentaneamente ausente. E se, no começo, a mãe se mostra incomodada com aquela presença estranha na casa, ela logo se deixa levar pelo enorme carinho que o filho adotivo demonstra. Considerando a linda visão de Hayao Miyazaki sobre o que é uma expressão verdadeira de amor, definida por ele como “quando duas pessoas se inspiram mutuamente a viver”, temos uma manifestação genuína de afeto entre os dois. Ela volta a sorrir, e ele, em seu primeiro contato com o mundo, não faz ideia do que é tristeza.

Para David, deveria ser assim: ele e sua mãe sendo felizes. E isso, ao menos por um período, acontece ― até que Martin volta, depois de um milagre inesperado.

Como um garoto que nem à puberdade chegou, Martin fica às turras com David, criando uma rivalidade fraterna que explora a inocência do irmão, sempre que possível o lembrando que eles não são iguais. Sentindo-se acuado, cada vez mais David quer provar que é humano, chegando ao cúmulo de lotar a boca de espinafre, numa atitude que prejudica seu mecanismo. O médico (ou o mecânico) adverte: “Espinafre é para coelhos, pessoas e o marinheiro Popeye. Não para meninos-robô”. Além de Popeye, outra figura conhecida que ganha destaque é Pinóquio. Monica lê a fábula e David logo se encanta com a possibilidade de, como o boneco de madeira de Gepeto, virar um menino de verdade. Para isso, precisa da Fada Azul, que realizará o seu desejo.

Eventualmente, depois de conflitos que são vistos como ameaças à segurança da família, o casal decide abrir mão de David, devolvendo-o ao laboratório. No caminho até lá, porém, sabendo que mandá-lo de volta significa fazer com que seja descartado, Monica prefere abrir o carro e mandar o filho correr para a floresta, para bem longe do laboratório. Jogado ao mundo, David só consegue pensar na mãe. Agora, custe o que custar, encontrará a Fada Azul. Quer de todo jeito ser um menino de verdade, pois julga que só assim sua mãe o amará de verdade. A longa jornada de David envolve um robô-gigolô (Jude Law), uma carnificina mecânica chamada de Flash Fair e uma Manhattan inundada; uma série de eventos que gira em torno de uma única obsessão: ser amado.

Como Theo foi amado por Catherine. Como Caleb foi amado pelos pais. Como sua mãe chegou a amá-lo, nem que por uma fração de segundo.

O que os traumas nos ensinam é que sempre haverá uma versão melhor da vida, por mais inalcançável que ela seja, e que essa versão vai nos perseguir continuamente com unhas e dentes, nos seduzindo e nos jogando em um estado perpétuo de saudade. Nada pode ser amado com mais intensidade do que aquilo que nos faz falta. E quanto mais artificial se torna o mundo, mais incessante é a nossa busca pelo real.

No fim, estamos todos em busca da Fada Azul.

Maria Antonieta, de Élisabeth Le Brun (1783)

“Se não tem pão, que comam brioches!”

A frase acima foi atribuída a Maria Antonieta (1755-1793), rainha da França entre 1774 e 1792, e demonstra um importante aspecto nas relações sociais: o desprezo dos mais ricos pelos mais pobres. Ainda que não haja comprovação científica de sua veracidade, a fala de Antonieta diante de uma crise econômica que fez faltar até mesmo o pão nas mesas do povo francês sinaliza o cinismo das classes dominantes ao longo da história da humanidade. A frase que virou ditado popular pode até não ter saído da boca da rainha, mas é uma excelente alegoria acerca da mentalidade daqueles que historicamente costumam estar no poder. Séculos se passaram, léguas separam a França do século XVIII do Brasil contemporâneo; entretanto, os abismos sociais e econômicos se mantêm.

Somos um país em que a fartura e a falta são faces da mesma moeda: a desigualdade. A história da desigualdade brasileira é tão antiga quanto o próprio Brasil. Nestas terras, antes de 1500, habitavam diferentes povos que hoje conhecemos como indígenas. Na África, os diferentes grupos construíram civilizações complexas, em relação dialógica e complementar com a natureza, gozando de abundância de saberes, dinâmicas sociais e recursos naturais. E em outra região do planeta, povos brancos sentiam a falta de alguns desses recursos, especialmente os oriundos da natureza. O encontro entre essas faltas e abundâncias poderia ter sido harmônico e pautado na troca, mas não foi. O escritor Manuel Rui narra esse momento:

“Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala, mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar os canhões.”

Regresso de um proprietário, de Jean-Baptiste Debret (1816)

A partir de então, inicia-se o estabelecimento de uma lógica que não é baseada na harmonia das relações e na distribuição igualitária de recursos e bens. Instaura-se, sim, uma dinâmica colonial que faz com que, para sobrar de um lado, tenha de faltar do outro.

O Brasil enquanto Estado foi fundado sobre os paradigmas da escravidão, da exploração do trabalho e da propriedade privada. Quando observamos em âmbito mundial, a desigualdade aparece em diversos países ao longo da história. Porém, colocando em diálogo nações como Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e França, o Brasil desponta ao construir o que podemos chamar de uma “história da desigualdade”. E a colonização — a posição de colônia — foi determinante nisso.

A propriedade privada é fator decisivo quando falamos de faltas e privilégios. Ao longo da história do Brasil, ter bens sempre foi determinante na ocupação social possível para cada indivíduo ou grupo.

Num país baseado em escravidão, pessoas negras eram vistas como propriedade. Como possuir, ter bens, se a propriedade é você? Como acumular capital se o seu corpo é a principal moeda de troca no sistema econômico vigente? Essas são perguntas que a sociedade brasileira até hoje não conseguiu — ou não quer — responder. Essa dicotomia entre possuir e ser posse de outrem não se encerrou com o fim do ciclo colonial brasileiro. 

O Brasil teve várias oportunidades de criar outras lógicas para as questões de falta, abundância e desigualdade. Uma delas foi a abolição da escravidão. Outra foi a proclamação da República. A Lei Áurea, assinada em 1888, poderia ter sido um ato revolucionário no Brasil e nas Américas. Não foi. O fim do regime escravocrata não propiciou a inserção social de pessoas negras. Ela também não propiciou processos de reparação para ex-escravizados e seus dependentes. O processo foi tão raso, quando falamos de condições práticas, que chamamos o que ocorreu no Brasil de “abolição inconclusa”. Faltou abolição na abolição.

Um ano depois, surgiu uma nova oportunidade a partir do marco histórico do fim da monarquia. O rompimento com o sistema vigente tinha como base alguns ideais republicanos, como a liberdade, a igualdade, a dignidade da pessoa humana e a justiça. Ora, se as elites monárquicas eram de certa forma as principais responsáveis pela falta de inserção social sofrida por negros, indígenas e empobrecidos, o fim da monarquia poderia significar uma mudança de paradigma. Não significou. A transição da monarquia para a república, em 1889, ocorreu sem participação popular. Por mais que a proclamação tenha marcado um rompimento com determinados modelos de relação internacional, na prática, os rompimentos foram mínimos. Faltou ousadia na jovem república. Faltou liberdade. Faltou igualdade. Faltou garantir dignidade para todos. E, principalmente, faltou justiça.

As elites, ou os ricos, não são um grupo socioeconômico homogêneo. Elas englobam pessoas com diferentes rendas, perfis e interesses. Porém, historicamente são elas que detêm o poder na nossa sociedade e influenciam diretamente as normas e os códigos sociais. Entre a invasão do território hoje brasileiro, o advento da república e o Brasil contemporâneo, pouca coisa mudou nessa balança onde pendem abundâncias e ausências.

Entre 1964 a 1985, foi implantada a ditadura militar no Brasil. Para além do poderio bélico, os militares também constituem uma classe que detém capital financeiro e enorme capacidade de influência. Foi um período de imensos retrocessos, quando falamos de direitos humanos e civis, ao mesmo tempo em que foi observado o que ficou conhecido como “milagre econômico”.

Os maiores beneficiados foram os próprios militares e as elites econômicas. Esse milagre excluiu a população em geral, em especial as classes trabalhadoras e as populações empobrecidas.

Após o fim da ditadura, sucessivos governos democráticos comandaram o país. Desde Fernando Collor, que prometeu uma “caça aos marajás” e o fim de privilégios e acabou causando um dos maiores escândalos econômicos do país, até o governo de Jair Bolsonaro, que anunciou fim da corrupção e acabou com casos envolvendo milícias, violência e ataques aos direitos humanos, cada governo apresentava suas ideias, plataformas e propostas de mudança. Algumas políticas realmente foram implementadas, como no governo Lula (2006–2010), quando se observou significativa redução da pobreza e da desigualdade social. O país passou da décima para a sexta posição como maior economia mundial. Mas a balança entre a “sobra” e a falta continua a pender para o “lado mais fraco”.

Em outubro de 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou um estudo que mostrou o aumento da concentração de renda em 2018 e uma consequência catastrófica: o incremento das desigualdades sociais extremas. O rendimento mensal do 1% da população mais rica no país correspondia a 33,8 vezes o valor recebido pela parcela da população mais empobrecida. Segundo o estudo, aproximadamente 50 milhões de pessoas viviam abaixo da linha da pobreza no Brasil durante o período da coleta de dados.

De acordo com o estudo Mapa da nova pobreza, desenvolvido pelo FGV Social a partir de dados disponibilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) e divulgados pelo IBGE, o número de pessoas com renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais atingiu 62,9 milhões de brasileiros em 2021. Isso representa 29,6% da população brasileira.

O processo de cidadania inacabado que vivemos faz com que haja uma imensa concentração de renda na mão de uns enquanto outros vivem de mãos vazias. De tanto que sobra de um lado, falta do outro.

O desenvolvimento da vida moderna e das grandes cidades trouxe para a sociedade uma sensação constante de ansiedade: estar sempre coordenando o horário do trabalho, a correria no transporte, a paisagem urbana em constante transformação, o avanço da tecnologia, a superficialidade das relações, etc. Com tudo isso, veio também uma sensação constante de incompletude e, muitas vezes, de solidão. Claro que essas questões, que são tanto sócio-históricas quanto filosófico-existenciais, já foram abordadas de diversas maneiras pelas ciências e pelas artes, em todas as suas linguagens.

Um estudo mais ou menos recente de pesquisadores portugueses — Rui Miguel Costa, Ivone Patrão e Mariana Machado — com jovens e jovens adultos, publicado em 2018, detectou que o uso intensivo e problemático da internet causa um sentimento de solidão que não está associado à falta de apoio social — ou seja, à falta de um relacionamento amoroso, de uma família presente, de um grupo de amigos coeso —, mas sim à falta de tempo para interagir cara a cara com os outros por passar tempo demais no mundo online.

Ou seja: é justamente a comunicação online que gera a sensação de solidão. Claro, não há calor na interação pela internet, o famoso olho no olho, o toque, o abraço, o contato com a pele do outro. No entanto, uma das conclusões mais interessantes dos cientistas é a de que, por mais que a comunicação através da internet não nos satisfaça justamente pela ausência de troca sensorial, recorremos a ela para nos sentirmos mais conectados com as outras pessoas.

Vivemos um tempo em que temos a oportunidade de falarmos de forma rápida e direta com nossos amigos e familiares como nunca tivemos antes — pelo menos para quem viveu a época do telefone com fio e os altíssimos preços das chamadas interurbanas. Hoje podemos mandar mensagens instantâneas por diferentes aplicativos e redes sociais para quem está do cômodo ao lado ou para quem está do outro lado do globo. Só que junto à possibilidade do contato imediato vem a ânsia por se sentir conectado ou correspondido imediatamente. E não é sempre assim que o tempo — ou melhor, que os tempos próprios das pessoas — corre, apesar do fluxo acelerado da contemporaneidade. É como se a velocidade do tempo do trabalho tivesse invadido o ciclo do tempo dos nossos sentimentos e afetos e eles tivessem entrado em rota de colisão.

“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”

A célebre frase do livro O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry, também ganhou novas interpretações na era das redes sociais. Entre um giro e outro nas timelines de plataformas como o Twitter e o Instagram, é bem possível que o algoritmo te indique um post contendo um meme ou um recado fofo com a frase. De um lado, há os que defendem que a ideia apresentada no livro através do diálogo do pequeno príncipe com a raposa sobre a relação do garoto com a rosa impõe uma obrigação afetiva entre duas partes que pode ser desgastante, sobretudo por causa do “eternamente”. Se uma relação entre duas pessoas que se gostam, a partir de um determinado momento, passa a ser desgastante ou “tóxica” (para usar uma palavra em voga), não há por que não se interromper esse ciclo. De outro lado, estão os que defendem que, se tudo é conversado, os danos emocionais de uma relação que precisa de reparos é menor. Parece óbvio que, quando estamos falando de relações interpessoais, sejam elas afetivo-sexuais, de amizade ou de trabalho, esteja implícita a reciprocidade entre as duas ou mais pessoas em questão. Mas nem tudo é o que parece, e, quando um lado não é correspondido em suas expectativas, mas não é avisado disso, há uma gíria mais ou menos recente que dá nome à situação: é o ghosting.

O ghosting se tornou uma expressão muito utilizada no contexto do uso das redes sociais e aplicativos de mensagens para se referir a quando uma pessoa deixa de nos responder. A expressão em inglês que se refere à palavra “fantasma” — ou seja, a pessoa sumiu, mas você sabe que ela continua rondando o seu entorno, mesmo que não apareça — é sinônimo do uso do termo “vácuo” como gíria. O ghosting pode ser “dado” ou “recebido” por diversos motivos: pelo fato de uma das partes não querer mais se comunicar, por não saber como comunicar o fim de um relacionamento ou uma situação desagradável envolvendo o outro, mas também por consequências psíquicas do uso extremo das redes sociais ou, como chamaram o pesquisadores mencionados, o PIU (do inglês problematic internet use).

Mais uma vez, os memes são ótimos termômetros para inferir situações cotidianas pelas quais os indivíduos têm passado e com que, na experiência de compartilhar nas redes, acabam se identificando. Há, por exemplo, o meme sobre quem você é no WhatsApp: aquele que responde tudo imediatamente; o que visualiza e deixa pra depois; o que demora dois ou três dias para responder a mensagem de um amigo; ou o que visualiza, deixa pra depois e nunca mais se lembra daquela mensagem, que acaba indo para as profundezas das suas notificações?

A novidade, no entanto, parece ser que o ghosting passou a rondar também o ambiente de trabalho. Não é raro se deparar com textos sobre o tema ao abrir outra plataforma de interação online, o LinkedIn, exclusiva para trocas profissionais. O “ghosting trabalhista” aparece ali tanto do lado do patronato quanto do trabalhador. Ou seja, há relatos e análises de situações em que funcionários, em um determinado dia, simplesmente abandonaram o emprego sem explicações prévias, ou mesmo de empresas que deixaram funcionários ou candidatos a uma vaga em estado eterno de espera. Essa segunda situação, que ocorre no momento da entrevista de emprego e ocorre por falta de retorno ao candidato, é a mais comum.

Essas situações vêm demonstrando que a necessidade de estarmos o tempo inteiro conectados é cansativa. Como as demandas de trabalho se tornaram exaustivas e pouco rígidas quanto aos seus limites de início e fim, sobretudo depois da pandemia, em que muitos de nós passamos dois anos seguidos tentando conciliar o ambiente doméstico com o profissional, vivemos constantemente com uma sensação de estafa mental. Ansiedade, tristeza e nervosismo são sentimentos que foram relatados por mais de metade da população em pesquisas sobre saúde mental em todo o globo.

A tal “parte que falta”

Há mais ou menos cinco anos, a youtuber Jout Jout[1], cujo canal já era largamente conhecido do público jovem brasileiro, viralizou mais uma vez com um de seus vídeos. Nele, ela lia o livro infantil A parte que falta, do norte-americano Shel Silverstein, traduzido para uma edição brasileira. O livro é de 1976 e conta a história do personagem O, um círculo em que há um pedaço em formato de fatia faltando. O sai em sua jornada disposto a encontrar a parte que irá lhe preencher. No caminho, ele nos mostra coisas que lhe dão prazer, como sentir o aroma de uma flor ou ter uma borboleta pousando em si.

O tenta se encaixar em várias partes que encontra pelo caminho, quase sempre sem sucesso. Porém, ele continua tentando, até que um dia encontra uma parte que se encaixaria perfeitamente nele, mas a parte simplesmente não quer. Ela se considera autossuficiente. Então ele segue, encontra uma outra parte que o preenche e fica muito feliz, rolando de um lado a outro, até que se sente sufocado, porque, com a parte junto dele, ele não para mais para sentir o cheiro da flor ou ver a borboleta. Ele nem mesmo consegue cantar. Angustiado, O por fim se separa da parte, começando uma nova busca por uma nova parte, entendendo a transitoriedade da completude de si, enquanto indivíduo, na caminhada.

A lição do livro, concorde-se ou não com ela, pode ser uma ponto de partida para pensar a questão contemporânea da solidão. O que tanto buscamos enquanto estamos atrás das telas, interagindo com amigos e desconhecidos, comparando nossas vidas com a do vizinho do prédio ao lado no mesmo grau com que nos comparamos com celebridades?

A questão apontada pelo estudo dos cientistas portugueses citados é tão complexa e paradoxal que se, de um lado, o mundo conectado nos faz mais solitários porque prescinde da sensorialidade do tato, por outro, a vida de carne e osso não supre a expectativa da superconectividade com pessoas e ambientes diferentes proporcionada pelo mundo virtual. Sabe quando você está no bar com os amigos e um deles não consegue sair do celular? Assim como o ghosting, esse fenômeno também acabou ganhando um nome em inglês: phubbing, que junta as palavras “phone” (telefone) e “snubbing” (esnobar), e significa esnobar alguém por causa do telefone.

Parece intricado o jogo que estamos jogando, cujo objetivo é matizar todos os espectros das possibilidades de relação entre o mundo virtual e o mundo real, que cada vez mais são praticamente uma coisa só. São muito diversas as variáveis de contato e resposta, e as pesquisas deixam cada vez mais claro que não, não estamos indo bem. Temos soluções? Bem, as redes sociais seguem criando problemas individuais e coletivos, inclusive de cunho político, bastante graves. Mas talvez uma busca equilibrada entre o que podemos cultivar e o que nos falta seja uma boa receita para criarmos novas conexões afetivas com nosso entorno.


[1] Nome artístico da jornalista, escritora e vloger Julia Tolezano.

#44O que me faltaCulturaSociedade

Tenho, logo sou?

O que cuidadores de elefantes e um chocolate dividido dizem sobre a modernidade e a sociedade atual.

As lágrimas rolaram pelo meu rosto por boa parte do documentário Como Cuidar de um Bebê Elefante (The Elephant Whisperers). Ao receber o Oscar na categoria Documentário em Curta-Metragem, a diretora indiana Kartiki Gonsalves falou sobre coexistência e sobre o vínculo sagrado entre nós e o mundo natural. A história de dois cuidadores de elefantes órfãos na Índia não emociona apenas pela surpreendente conexão entre eles, mas também porque o filme serve como um espelho reverso: a gente enxerga no casal de cuidadores os valores mais nobres e básicos que precisamos pra sermos felizes. Eles vivem isolados e têm uma vida precária, mas vivem totalmente em sintonia com a natureza e o mundo animal e parecem muito mais felizes e completos do que a gente. Apesar de terem muito pouco, eles vivem a vida na sua totalidade e se sentem parte do todo, algo que nós buscamos duramente todos os dias, muitas vezes sem chegar a lugar algum. Isso porque, é óbvio, estamos buscando no lugar errado.

A modernidade nos tirou a sincronia com a natureza, esgotando nosso mundo interior. Nosso apetite por novas emoções está nos deixando indiferentes a valores como a sutileza e a ética. O dia em que recuperarmos a nossa atenção das redes sociais e olharmos para as coisas que realmente importam, uma revolução começa. Um levante tão importante quanto as grandes transformações tecnológicas que estamos presenciando. Inteligências artificiais, novos mundos imersivos e possibilidades de socialização que nunca havíamos imaginado estão sendo criados sem a nossa participação, causando FOMO (do inglês fear of missing out, isto é, medo de estar perdendo algo) e ansiedade e aprofundando ainda mais a desigualdade no mundo.

Sim, a tecnologia traz possibilidades incríveis, mas as mídias sociais fraturaram nossa capacidade de foco e nos encurralaram. Olhamos nossos celulares a cada minuto, na expectativa por uma notícia, um convite, um elogio, um like, um match, qualquer coisa que provoque faíscas e nos faça sentir vivos. Enquanto isso, o mundo “lá fora” queima. E o mundo lá fora também é lindo.

O problema que enfrentamos hoje é que a atenção às redes ocupa o espaço que antes era ocupado pela empatia. Não precisamos ir longe para perceber que há mesmo um “déficit de empatia” no mundo, parafraseando Obama em um discurso de 2013.

Queremos feedback instantâneo; não escutamos, não elaboramos as consequências dos nossos atos online e buscamos escapes da rotina vivendo qualquer experiência que prometa algum tipo de iluminação, de um Carnaval frenético a um ritual de ayahuasca no meio de São Paulo. Esportes radicais, comidas exóticas, experiências lisérgicas e encontros relâmpagos viram condutores de adrenalina que, assim como uma droga, duram pouco e fazem as pessoas ansiar por mais e mais. Estamos viciados.

No livro The Life Intense: A Modern Obsession, o autor francês Tristan Garcia nos descreve como paraquedistas emocionais, “em busca de sensações fortes que possam justificar nossas vidas”. Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez?

A economia da experiência está por todos os lugares, vendendo novas aventuras e emoções, e a gente segue comprando do lado de fora para alimentar o lado de dentro. Sensações de vazio e de que nunca temos o suficiente estão há anos sendo semeadas em larga escala na mente humana para acompanhar um mundo organizado para o lucro, e não para a prosperidade humana ou ambiental.

O nosso tempo e a nossa atenção tornaram-se os ativos mais valiosos dessa nova economia. Nosso status é cada vez mais medido não pelo que somos ou pelo que contribuímos, mas pelo que vivenciamos, fotografamos e escolhemos compartilhar. Vivemos um caos publicitário, em que o objetivo dos anúncios parece não ser mais a informação, mas simplesmente a atenção. E a qualidade dessa atenção não importa.

Esta é a vida agora: um fluxo constante e interminável de conteúdos fragmentados e sem sentido que a gente nem quer ver, mas dos quais, por algum motivo, não consegue desviar o olhar.

A possibilidade do conhecimento ilimitado da web é tão onipresente que nem nos lembramos de como era não o ter. Superestimamos o quanto essas tecnologias estão nos prejudicando e subestimamos o quanto também estão nos ajudando. Porque, sim, a internet e as redes podem proporcionar coisas incríveis e propagar assuntos importantes que rodam o mundo em minutos. As redes foram fundamentais para movimentos como #MeToo, Time’s Up e #BlackLivesMatter, e funciona com igual importância para educar e alertar a sociedade sobre questões sociais e ambientais, como as atrocidades cometidas contra o povo Yanomami e a tragédia que devastou o Litoral Norte de São Paulo.

Então o problema não é a tecnologia em si, e sim como escolhemos usá-la. A gente realmente escolhe o que vê ou tem alguém decidindo por nós? A tecnologia está nos servindo ou nós é que estamos servindo a ela?

Nos dias de hoje, não elaboramos os assuntos que nos atravessam. Frases inteiras são resumidas em emojis, a vida (dos outros) é sempre bela, nos comunicamos através de likes, não lemos mais e não sabemos mais nada em profundidade. Nosso conhecimento, assim como nossa atenção, é fragmentado. Sabemos um pouco de tudo e de tudo um pouco, e isso parece ser o suficiente em conversas rápidas em festas entre uma foto e outra ou para engajar vídeos no TikTok.

Muitos dizem que a hiperdigitalização está impulsionando um retorno do mundo analógico, trazendo de volta o uso de discos, câmeras polaroides, enciclopédias, fitas cassete, telefones com fio e Ligue-Táxi — enfim, experiências de um mundo hiperfísico e tangível.

A gente não é o que tem nem podemos ser definidos pelos nossos 15 segundos de engajamento no Instagram. Nós somos o total das nossas experiências de vida: cada lágrima, cada sorriso, cada vez que o coração bate mais forte, cada vitória e cada tombo, cada paisagem, cada música, cada trabalho concluído, cada livro lido, cada história de amor, cada decepção, toda morte e nascimento, cada vez que temos coragem, todos os sins e todos os nãos, as superações e os desgostos, cada ideia e solução, cada beijo, cada gozo, cada abraço de saudade, cada partida e cada reencontro.

Amor, dedicação, conhecimento e foco nos levam a relacionamentos mais profundos e geram sucesso a longo prazo. No entanto, nossa economia atual está constantemente nos levando para longe disso. Precisamos parar de buscar só do lado de fora para acalentar o interno. Nossa atenção pode estar à venda, mas iluminação e paz de espírito não estão, e dependem puramente do nosso esforço e da nossa habilidade de empatia.

Encerro com a história de um estudo feito em 2011 na Universidade de Chicago, em que os pesquisadores realizaram um experimento para entender se um rato libertaria outro de uma gaiola sem receber uma recompensa. A resposta foi sim. Depois de várias sessões, os ratos aprenderam rapidamente a liberar os colegas enjaulados. Os ratos repetiram o comportamento mesmo quando lhes foi negada a recompensa do reencontro. Ainda mais surpreendente: quando os ratos foram apresentados a duas gaiolas, uma contendo um rato e a outra um chocolate, eles optaram por abrir as duas gaiolas e dividir a recompensa.

Qual foi a última vez que você dividiu o seu chocolate?

Eu peço meu terceiro café.

Vou tomar outra bronca da minha dentista.

Christiane, minha amiga de Londres, está atrasada — de novo.

***

Ela chegou, toda esbaforida.

— Oi, Thais! Me desculpa pelo horário. A minha vida está parecendo aquela música da Tulipa Ruiz, sabe qual é?

E canta:

Tem que correr, correr, tem que se adaptar (…) tem tanta gente sem saber como é que vai priorizar… Aquela que se chama Dois cafés — diz a Chris, olhando para as xícaras vazias que estão sobre a mesa.

A atendente da padaria chega com o meu pedido e minha amiga solta essa:

— Ué!? Você não ia parar de tomar café?

Não respondo; meu sorriso amarelo diz tudo.

Ouço com atenção o que ela começa a me contar.

***

— Slam! Blam! É um excesso de ruído dentro e fora de mim, Thais! Não aguento mais! Todos os dias ouço esse barulho, diversas vezes. Meu novo vizinho, acredita? Não se preocupa em fechar a porta de sua casa sem batê-la! E o pior… Minha cachorrinha, curiosa que é, toda vez que a porta bate, começa a latir. Eu levo o maior susto! É a britadeira de alguma construção próxima à minha casa, são os carros passando na rua em frente, são as mensagens no WhatsApp que não param de chegar. Instagram, Facebook, Twitter. Curto, não curto? Posto, não posto? Quantos seguidores? Eu não desligo! Meus pensamentos ficam a mil por hora! São escolhas e decisões que não consigo fazer, deadlines a cumprir, meus pais envelhecendo, eu envelhecendo. Terei filhos? Tenho 40 anos! Sinto medo ao perceber o passar do tempo… Um calafrio… Areia da ampulheta que não para de escorrer… Ah… Como eu queria segurar cada um desses grãozinhos.

Eu a interrompo e digo:

— “O tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr”.  Lembrei desse trecho de Raduan Nassar, do Lavoura arcaica. Lembra, Chris, quando assistimos ao filme juntas?

— Faz quase vinte anos! Nossa, Thais, ele descreve de forma perfeita o que me queima. E por falar em fogo, voltei a fumar! O alívio dura pouco, depois me sinto péssima, culpada, e acendo outro cigarro. O que estou fazendo com a minha saúde? Quanto mais ansiosa fico, mais eu fumo. Pareço levada por uma avalanche. Pensamentos e sentimentos invadem a minha cabeça e me paralisam ou me levam a repetir o mesmo caminho de sempre, familiar. Que raiva eu sinto quando me vejo nesse looping… Eu não entendo por que ajo dessa maneira tão sem lógica! Thais, você que é psicóloga, me fala: você acha que tomar muito café, como você faz, que meu vício em fumar e esses pensamentos repetitivos que me assolam têm um quê de compulsão?

Deixo de respondê-la, pois do fundo da padaria surge uma melodia, em meio ao estalar das chapas, que desvia a minha atenção.

— Chris! Ouça a música que está tocando!

— Adooooro!

E, se referindo à letra da música, ela completa:

— Como ser livre para ser quem eu sou?

— É, amiga… Boa pergunta! Liberdade para nos tornarmos nós mesmas…

Da padaria ao consultório

Compulsão não é uma conduta voluntária, é uma expressão da grande dificuldade que muitas pessoas têm de controlar os seus impulsos.

Segundo o Vocabulário da psicanálise de Laplanche e Pontalis, compulsão é uma atividade que o indivíduo realiza sob o domínio de uma imposição interna, e seu não cumprimento é sentido como algo que levará ao aumento da angústia.

Pensamentos obsessivos levam a comportamentos repetitivos: compulsão por trabalho, compras, jogos, sexo, exercícios físicos, comida, roer unhas (onicofagia), contar mentiras, arrancar os cabelos (tricotilomania), transtorno de acumulação, consumo excessivo de álcool e drogas, uso excessivo de redes sociais e a problemática de nossos tempos, a nomofobia, que é o medo irracional de ficar sem o celular. Esses são alguns dos comportamentos compulsivos mais comuns.

Tais comportamentos trazem muito sofrimento ao indivíduo em razão da vivência de estar preso em uma sensação de eterno retorno, de um looping infinito. Refiro-me a um funcionamento psíquico em que o agir impera — sua força, pungente, chega antes da força do pensar e praticamente suprime a capacidade de se fazer escolhas. Nesse mundo interno ruidoso e, muitas vezes, acompanhado por um “vazio” turbulento, a culpa reina.

I wish I knew how it would feel to be free[1]

Freud disse que repetimos aquilo que não conseguimos elaborar. Depois aprofundou seu olhar ao propor a presença de uma força poderosa — difícil de transpormos — que nos impele a repetir um estado anterior, mesmo que desagradável, em busca de evitar qualquer tensão psíquica. O trabalho dessa força, realizado de forma silenciosa e sorrateira, teria como meta a descarga, a rejeição ao novo e, em última instância, a volta ao inorgânico, à morte. Freud nomeia tal força destrutiva de pulsão de morte, e esse movimento interno, de compulsão à repetição. O pai da psicanálise escreveu de forma muito interessante e profunda sobre esses fenômenos em seu clássico texto intitulado Além do princípio de prazer, elaborado entre 1919 e 1920.

Não é preciso ir aos extremos dos vícios e das adições, pois a força destrutiva da compulsão à repetição é grande, cotidiana e afeta todos nós.

Certa vez, um analisando, muito irritado por não conseguir mudar determinada forma de agir que o levava continuamente a situações de risco, me disse:

Nonsense!

Sua voz raivosa revelava não apenas frustração, mas também, como minha amiga da história, a percepção dolorosa da existência de um mundo dentro de cada um de nós que nos foge ao controle.

I wish I could break all the chains holding me[2]

Vem à mente o delicado livro chamado a A parte que falta, de Shel Silverstein. É bonito como poetas tocam nossas emoções e falam de maneira tão simples aquilo que especialistas (não sem o mesmo valor!) comunicam de maneira tão complexa. Sentimento de falta sempre nos acompanhará, e senti-lo também nos é importante.

Poderia a falta virar espaço para a criatividade?

Para Bion, um psicanalista da linha inglesa cuja obra muito aprecio, um pensamento novo pode surgir da nossa capacidade para tolerar a frustração, a falta, a ausência, aquilo que desconhecemos.

Precisamos suportar uma dose de frustração para desenvolvermos a capacidade de pensar, de construir redes simbólicas. Tal condição de autoria permitirá que novos horizontes se revelem dentro e, consequentemente, fora de nós caminhos a serem desbravados que podem nos levar à relevante descoberta de quem somos, ainda que esta, por natureza, seja transitória e incompleta.

***

Finalmente, me lembrei! Os versos que ressoam dentro de mim enquanto escrevo este texto são da música que tocava na padaria, na voz de Nina Simone:

I wish I knew how it would feel to be free

I wish I could break all the chains holding me

I wish I could say

All the things that I should say…

Say ‘em loud say ‘em clear

For the whole round world to hear[3]

A conversa que tive com a minha amiga ressurge em meus pensamentos. Me emociono e, por algum tempo, assim permaneço. Os ruídos em mim viram melodia.

________________________________

P.S: Considero importante destacar o valor, o significado histórico e o profundo peso político da música I wish I knew how it would feel to be free, composta por Billy Taylor, em 1963, e que ganhou popularidade na voz de Nina Simone. Essa canção tornou-se um hino do movimento afro-americano pelos direitos civis nos anos 60. Neste texto, procurei usar — alegórica e respeitosamente — alguns de seus versos para ilustrar o anseio humano por romper com aquilo que aprisiona e, assim, ser livre.


[1] Em tradução livre, “Eu gostaria de saber como seria me sentir livre”.

[2] Em tradução livre, “Eu gostaria de poder quebrar todas as correntes que me seguram”.

[3] Em tradução livre: “Eu gostaria de saber como seria me sentir livre / Eu gostaria de poder quebrar todas as correntes que me seguram / Eu gostaria de poder dizer / Todas as coisas que eu gostaria de dizer… / Dizer em alto e bom som / Para todo mundo ouvir”.

“A história do rock é isso. Começa quando a juventude acreditava, nos anos 50, que o papel picado era possível, que a tecnologia ia solucionar tudo. Até que enxergam a primeira abertura ética em seus pais. Sim, temos três carros, está tudo bem, mas papai e mamãe não são felizes. Aí começa a desconfiança de que o papel picado não vai alcançar para tapar toda essa merda…”

(Indio Solari, vocalista de Patricio Rey y Sus Redonditos de Ricota, 1986)

Sessenta e cinco segundos ou três minutos. Esse é o tempo médio que um estudante universitário e um trabalhador de escritório estadunidense, respectivamente, se concentram em uma única atividade. No momento em que escrevo este texto, tenho sete abas abertas em meu navegador, um tocador de música e um aplicativo de mensagens funcionando. A economia da atenção difusa é uma experiência cotidiana compartilhada e efeito indissociável do modus operandi das redes. Bem-vindos à era da conexão contínua.

No livro Stolen focus: porque você não consegue prestar atenção e como voltar a pensar profundamente, o jornalista britânico Johann Hari narra sua experiência vivendo três meses completamente offline. De posse de um celular que apenas fazia chamadas, Hari conta como foi passar esse tempo sem contato com a internet. Intoxicado pela tecnologia, ele decidiu se retirar em uma vila de Massachusetts e observar os efeitos que a ausência de estímulos constantes poderia ter em sua atenção. No entanto, durante o processo, se dá conta de que não há uma saída individual, voluntarista, para a falta de foco. Para complementar sua investigação, o autor entrevistou desenvolvedores e engenheiros de software do Vale do Silício responsáveis por criar e implementar os recursos que captam nossa atenção, modulam nossas emoções e disciplinam nossas relações na modernidade hiperconectada. É como se a procura do engajamento ininterrupto com as marcas e o capitalismo de plataformas tivesse aberto uma caixa de Pandora praticamente impossível de ser resetada.

Da mesma maneira que os bips, as notificações e vibrações de nossos smartphones foram pensadas por experts do desenvolvimento de produtos para captar nossa atenção, com o objetivo de gastarmos horas deslizando entre vídeos de TikTok e reels do Instagram. A duração e a degradação dos próprios dispositivos de consumo também têm uma longa história. É um fato amplamente documentado que a obsolescência programada surgiu como uma decisão humana no contexto da invenção das lâmpadas elétricas.

Quando Thomas Edison inventou-as, ainda no final do século XIX, a duração média de um dispositivo chegava às 1.500 horas. Algumas décadas depois, a tecnologia já permitia que a indústria produzisse lâmpadas com 2.500 horas de vida útil. No entanto, da perspectiva do cartel de empresários, isso era bom para os consumidores, mas ruim para os negócios. Assim, em 1930, o cartel Phoebus, organizado na Suíça pelas empresas Osram, Philips e General Electric, gigantes do ramo, decidiu reduzir e padronizar a vida útil dos dispositivos para 1.000 horas. Quem desrespeitasse o acordo sofreria multas e represálias dos sócios. Estava inaugurada a estratégia que seria copiada e aprimorada pela vanguarda da indústria tecnológica.

Das lâmpadas aos smartphones e computadores, seguimos consumindo produtos pensados para ter uma vida útil limitada, tornando-os obsoletos e de necessária substituição por modelos mais recentes. A história do cartel Phoebus evidencia a intenção humana, a vontade consciente de interromper a aceleração contínua do aprimoramento material em prol do fluxo do consumo e da acumulação do capital por parte dos detentores do poder e do saber técnico. Em lugar de fazer produtos mais duráveis, o que seria melhor para consumidores e para o meio ambiente, pois se reduziria o descarte dos componentes utilizados, optou-se conscientemente pela sabotagem da própria mercadoria.

Também nos intriga saber se a obsolescência programada dos objetos não haverá chegado às relações humanas. Estaríamos estabelecendo conexões e relações de consumo afetivas de forma fluida e descartável, tal qual trocamos de gadgets? Talvez o exemplo por excelência dessa captura esteja nos aplicativos de encontros, em que as pessoas aceitam jogar o jogo da escolha amorosa e sexual como se estivessem fazendo compras online, deslizando entre perfis que serão entregues em um lugar a combinar. Se a entrega não for como o esperado, o match é desfeito e o jogo reinicia com outro perfil.

Algo semelhante ocorre com as redes sociais. Além da curta vida útil, uma vez que elas próprias tendem a durar poucos anos, sendo sucessivamente substituídas em sua hegemonia, a dinâmica de interação dos perfis segue uma lógica parecida, na qual conexões são feitas e desfeitas sem maiores explicações ou consequências. Somado a isso, estão naturalizadas as categorias de influencers e criadores de conteúdo, que geram valor de mercado para si e para as plataformas através das interações com o maior número possível de seguidores. Profissionais ou não, todos que estão nas redes trabalham para as plataformas e operam, em certa medida, como community managers de sua marca pessoal, devendo saber gerir o seu público e mantê-lo engajado pelo maior tempo possível, sob pena de lidar com a falta de descargas de serotonina e de sentir o vazio da desconexão.

Descrita a figura, cabe levantar as perguntas humanas atemporais: a tecnologia nos conecta com o quê? Ela facilita nossa vida em quais aspectos? Ela nos ajuda a ter algum tipo de bem-estar e a que trabalhemos com mais qualidade? Até que ponto poderemos suportar coletivamente um aumento acelerado nos níveis de ansiedade em troca de picos de serotonina causados por likes e views? Nesse sentido, é tentador lembrar as observações de Guy Debord sobre as transformações que enxergava no contexto da efervescência cultural e política pré-Maio de 68 francês, quando inventou o conceito e escreveu sobre a sociedade do espetáculo: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediatizada por imagens.O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é ‘o que aparece é bom, o que é bom aparece’”. Se surpreenderia o autor em saber que o espetáculo e as relações sociais mediatizadas por imagens tomariam tal proporção, transcorridas cinco décadas desde suas observações?

Alguns anos antes da publicação d’A sociedade do espetáculo, de Debord, o escritor Julio Cortázar também se preocupava com a liberdade e a dominação do humano pelo não humano tecnológico. Em seu Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio, o autor já olhava a partir de outra perspectiva sobre o que significava o recebimento de um presente: “Quando dão a você de presente um relógio, não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca. Dão a você — eles não sabem, o terrível é que não sabem — um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence, mas não é seu corpo. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines, o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.”

Nós já sabemos que o desenvolvimento da tecnologia não solucionará todos os problemas e provavelmente trará consigo novas aberturas, ainda inimaginadas. Haverá papel picado o suficiente para tapá-las?

Autocuidado é um passo que deve ser dado, e não somente observado, problematizado. Deve ser permitido.

Se realmente queremos permanecer vivos, um dado importantíssimo deve ser levado em consideração: nós somos bichos e temos um só coração! E ele sangra.

Eu sou Janaína Portella e vim lhe convidar a dar alguns passos sobre nossa própria terra, se banhar nas nossas águas submersas.

A conversa é séria sobre autoamor, autocuidado e mais alguns termos que deveriam nitidamente ser pleonasmo, sobretudo quando estamos falando do nosso próprio mundo.

Sou filha de Yemoja, e o convite é para um mergulho profundo até a gente se achar. Vinda lá das profundezas do nosso habitado mar, eu venho saudar as águas da kalunga. Um lugar fundo de reencontro, onde a nossa vida muda.

Salve as águas! Yemoja é uma das divindades mais cultuadas. Independente da caminhada religiosa de cada um, se sabe que o mar é uma mãe, isso nós temos em comum, e começar trazendo a realeza dessa deusa me permite desmitificar a pobreza intelectual trazida pelo sincretismo, que confinou uma mulher aos dogmas cristãos e a seus princípios.

Para associar Yemoja a uma santa cristã, por exemplo, ela perde atributos imprescindíveis a uma anciã: sua altivez, sua bravura, seus encantamentos, sua magia que cura, sua sexualidade e tantas outras habilidades que compõem a sua estrutura. Esses atributos foram todos divinizados, infelizmente; lidos por uma cultura que se baseia num entendimento totalmente contrário, numa filosofia pautada no cartesiano e no binário. Uma cultura que pensa o bem e o mal em polos conflitantes. Enquanto nós, povos originários, giramos em uma espiral em movimento incessante.

A verdade é que estamos distantes de nós, e, para que possamos falar conosco, pedimos licença à voz do nosso interno povo. Do lado inverso, no mar de dentro.

Para que esse encontro se estabeleça sem bagunça e pela via do entendimento, pedimos licença à cabeça para que ela se levante como a realeza que é. Ainda que de pé, nos curvamos.

Evocamos a força do corpo inteiro para que a energia flua agora para você que está me lendo.

Elégbárá Èsú, que o mensageiro entre nas ruas de fora e de dentro.

Laroiyê!
E Orí Mojuba!

É uma saudação de apresentação em respeito. Para que nosso eu verdadeiro possa se apresentar, devemos estar parados numa curva, esperando o vendaval passar, com receio de nos machucarmos novamente.

Ao invés de buscarmos dentro da gente esse tal de “eu legítimo”, que essa busca seja sobre juntar os nossos pedacinhos, sobre não ter inimigos por dentro. Mesmo que o conflito permaneça, mudou-se o movimento, estamos buscando entendimento.

Um dos maiores desafios nesta jornada é justamente pegar essa estrada de volta do abuso, esse lugar escuro que é difícil de passar, mas somente a saída do precipício pode realmente te salvar, te tirar de lá, desse lugar, dessa beira, desse sempre se comportar como se sua vida fosse uma besteira.

Estamos afastadas de nós e não deveríamos, pois, de um modo partilhado, viemos todos de um útero escuro e alagado, as águas sempre foram nossa primeira casa, nossa floresta sagrada que permitiu a vida. Viemos todos de uma cabaça redonda e bendita. Sem romantizar esse processo, e sabendo dos traumas pessoais que cada qual tem, ainda assim viemos pela via dos ancestrais e eles se mantêm. O que parece algo que depende de verdades ou crença nós chamamos de ancestralidade, o mesmo DNA da ciência.

Estou dizendo que dentro de nós ecoa a voz dos nossos antepassados, e isso pode ser comprovado cientificamente, só para você ter certeza.

Estamos conscientes sobre a nossa vinda à Terra, somos adultos e precisamos tomar consciência da guerra que abarca tudo, na nossa sociedade. Somos preparadas para ela, portanto é imperativo iniciar pelo abuso. A gente já nasce abusada, e seria incoerente não fazer um recorte de raça: mulheres negras são as mais maltratadas em hospitais na hora do parto, é um corpo que não “apetece” ao cuidado. Sem querer entrar nesse poço sem fundo que expressa a essência da nossa experiência no Brasil, um país que nasce da barbárie e da violência, mas não podemos lançar mão de uma tardia inocência, já que sabemos que há uma consciência arraigada nessa prática de castas, e assim se decide, em um olhar, quem morre, quem mata e quem vive para contar.

As dificuldades vividas por nós nesta vida trazem um ranço que não constela, é forte a herança do abuso nesta terra. A verdade crua herdada por negras indígenas e mulheres de todas as castas é que, se herdamos a desgraça, também herdamos a cura, e é munida dela que nós vamos voltar para casa.

Cada uma nas suas águas, mas a benção do Sol e a benção da Lua a gente pode deixar marcada.

Viemos assim, alagadas, molhadas de sangue e de miasmas, num produto amniótico que cuidou de nós enquanto estávamos na casca. A gente sente o cheiro de casa. Portanto, independe o tamanho do rombo que cada uma e cada um tenha enfrentado, o que nós sentimos é um vácuo, um buraco íntimo que está sempre desocupado.

Olhemos para ele agora, em uma definição simples, para esse lugar que insiste, se apresenta em condição de algo completamente vazio, sem a presença de quase nenhum tipo de matéria, nem líquidos, nem sólidos, nem gases ― nem mesmo o ar. Nenhuma dessas substâncias ou matérias existem em espaços de vácuo. No entanto, vale lembrar que o vácuo absoluto, que consiste na ausência total de matérias, existe apenas em teoria. E isso muda tudo.

Na Filosofia da Grécia, os filósofos aristotélicos explicavam esse fato dizendo que a “natureza abomina o vácuo” por não ser natural, que, havendo espaço que não seja ocupado por matéria, a matéria se moverá no sentido de preencher qualquer espaço vazio. E isso faz todo sentido a um olhar subjetivo: a função é ocupar os espaços vazios de dentro de nós? Que vazio? Esse que existe para que permaneçamos criativos, buscando brilho nos olhos?

Diante das vozes Afrikanas ou tu assovia ou tu chupa cana? Quer preencher seu vazio enchendo de gente a sua cama? Sem nenhum juízo de valor, mas pense se o rodízio te preenche ou se está em busca do amor, e por isso vai tentando, para que possamos sair da divisa entre lá e cá. A roda nos convida a girar e olhar tudo! 

Cadê o seu, cadê o meu, cadê o nosso amor próprio? Caímos novamente diante do abuso, de uma ideia de casamento-negócio que implica ser metade da vida de alguém, e o peso do cuidado que recai na conta de quem pare os nenéns sempre é insuportável! 

Nascemos para ganhar uma boneca e já irmos nos acostumando que a vida para nós não será uma festa. Crescemos numa sociedade que não gosta de liberdade; fortalecer o patriarcado na figura de um algoz que a gente luta para manter ao lado faz parte do pacote. E é o nosso coração que explode em mil pedacinhos, pois o abuso nos encontrou, poxa, no caminho do amor, estávamos buscando viver outra coisa, e isso é o maior terror que alguém pode viver. Buscando ser feliz, você não morreu por um triz.

Mas agora deverá renascer! 

Dide! 

Essa digressão toda deve-se ao fato de estarmos quase loucas, abafadas, roucas de gritar em silêncio.

Tempo
É um dos Deuses mais bonitos 

Agora fora do atrito…

Vamos amadurecendo assim, sem saber o que será do fim, e é bom que ele venha mesmo, para finalizar a experiência na casa do desespero e lutar para que outras meninas, como nós éramos, outros rapazes, as múltiplas formas de sexualidade não precisem ir tão fundo no trauma para simplesmente ouvir a alma. Vamos fazer as pazes com o que sabiamente já sussurrava o cuidado que deveríamos ter com o coração ― a essa fada deram o nome de intuição. Ouça-a! 

Ouvir a alma é olhar para o estrago, avaliar o buraco e buscar elementos, unguentos, reza brava, terapias, conversas na cozinha, algo que nos leve para a nossa casa.

Algo que possa nos sarar por dentro.

Yemoja sofreu um abuso quando foi cristalizada numa imagem simbólica materna, mas as águas enfrentam guerras e passam, sem discussão! 

Uma das múltiplas histórias de Yemoja narra que, em sua passagem sobre a Terra, no momento em que ela, munida de uma garrafa mágica, quebra, seu rio segue o curso de desaguar, escorrendo em direção ao mar.

Casa. Abrigada, protegida, amada, ferida.

No instante em que foi maltratada ela abre caminho pelas águas. Era a sua arma! 

Se você está sofrendo abuso, use seu espelho como escudo e corra para se salvar, arrebente a garrafa mágica! 

Levante a deusa que carrega inerente à sua pele, e pela estratégia recomece.

Falar de autoamor é falar de recomeço, e estamos juntas aqui para transpor esse endereço da dor. Primeiro ter que passar pelo terror para aí depois se salvar? Não dá! 

O endereço certo é na casa do amor. Nós viemos de lá. Não deveríamos jamais ter saído desse lugar. Mas, se somos bicho, a gente sabe voltar, farejando, sendo seu bom amigo. Permita que ela floresça, já que os troncos da poda já foram partidos.

Para que o caminho de cura das nossas feridas se estabeleça, é preciso que uma magia poderosa aconteça: é uma estrada que se abre no meio do mato. 

Eis a minha definição de autocuidado, um momento necessário que pode ser materializado de diversas formas, uma alimentação natural ou uma máscara de argila no rosto. O que sabemos é que o espelho que se viu foi água do poço, é lá que a gente se vê quase morto e aprende a se respeitar.

Cada dia mais um pouco!

O lugar da cura, para nós, passou por uma floresta toda escura, o lugar onde reaprendemos a reverenciar a lua que ensina esse olhar para a dor. Amor. Acordos inegociáveis devem ser feitos para dar fim de vez ao conflito. Será que foi merecido? Foi para aprender? A ideia cristã sobre evoluir está dentro de mim e de você.

O lugar da vítima é um lugar de passagem, para que mais uma vez não seja também cúmplice das trairagens que foram cometidas.

Coragem ― não é isso que a vida espera da gente?
Seguir em frente. 

Autoamor ressoa como um perdão diante a sua própria vida.

Mesmo que siga algumas técnicas, no dia que você se cuidar, nem que seja um passinho de cada vez, a vida lhe honrará com as novas sementes da altivez.

É você, agora, quem decidiu honrar suas feridas. Ainda que vencendo guerras legítimas, retome o comando da sua vida.

Esse foi meu rezo para eliminar quebranto, abuso e mau olhado. 

Que, na sua vida, autocuidado e autoamor estejam lado a lado, sempre confirmando que são o que são: pleonasmo.

Se estiver afogada no fundo, flutua; se estiver perdida, te procura; se já tiver achado, se trate com muito cuidado

Está nas suas mãos a poção de cura.
Firmeza para que a cabeça possa manifestar as riquezas que ela trouxe do lado de lá.
Que você possa se curar disso que quase te matou.

Estou enviando amor. 

Viemos da casa do amor e para lá vamos voltar. 

Saindo das águas do seu mar, lavada e remida.
Manifeste sua magia, sua mandinga verdadeira.

Imagem de Nut Tmu-ankh
#44O que me faltaCulturaSociedade

Intimidade: a travessia entre o banzo e o amor

Reflexões a partir do livro “Por que amamos?”, de Renato Noguera

“O dicionário vai chamar essa coisa pouca, boba, pequena, comum, banal, simples, tola de amor (…)
E partilhar um segundo fundo assim é quase se dar inteira pra alguém hoje em dia
Do jeito que as coisas andam tão quebradas, né?”

(Trecho de poema de Tatiana Nascimento para a canção Lençóis, de Luedji Luna)

Amor, palavra de grafia simples, talvez uma das primeiras com a qual temos contato ainda na alfabetização, mas que carrega uma gama tão complexa de significados e percepções. Como escreveu o grande compositor carioca Arlindo Cruz, “até hoje ninguém conseguiu definir o que é o amor”.

Em seu livro Por que amamos? O que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor, o filósofo Renato Noguera utiliza a psicanálise, a história e a filosofia, além de mitos de diversas culturas, para buscar responder a essa inquietação que vem habitando o imaginário da humanidade ao longo da História.

Já nos dois primeiros capítulos, o autor apresenta duas perspectivas que me parecem extremamente interessantes e sobre as quais pretendo me ater ao longo deste artigo. No primeiro deles, chamado O caminho do amor, Noguera nos apresenta uma classificação do amor como uma travessia compartilhada, onde a autoescuta é a peça central para o sucesso desse caminhar. Não é possível se disponibilizar a ouvir o outro sem que antes escutemos a nós mesmos e entendamos o que temos capacidade de absorver, bem como o que temos a oferecer. Ainda nesse capítulo, o autor discorre sobre as narrativas construídas a partir de um ideal de amor romântico pautado em paixões avassaladoras, mas que não se sustentam com o tempo ou não chegam ao cume da montanha. Já no segundo capítulo, intitulado Amar como sobrevivência, Renato desenvolve sua investigação a partir de fatores mais instintivos, sobretudo ao considerar elementos biológicos e psicológicos que possibilitam a existência do amor.

Por que amamos quem amamos? Por quais critérios essas escolhas são orientadas?

As respostas para essas perguntas são construídas a partir da análise de teorias como a psicologia evolucionista, difundida por Robert Wright, que elucida como homens e mulheres escolhem seus parceiros (tratando aqui de relações heterossexuais) a partir de características físicas específicas que acionam na psique do sexo oposto os mecanismos de atração e desejo, como um reflexo inerente à natureza humana de busca pela perpetuação da espécie. Ao final desse segundo capítulo, Noguera faz uma reflexão que me interessa desdobrar. Ele afirma:

Há vários outros estudos que poderiam ser citados, mas o ponto aqui é notar que o amor também possui uma faceta animal, determinada por um instinto de sobrevivência. Quando duas pessoas se amam, elas são capazes de criar seus descendentes e de ter uma boa vida, apesar dos conflitos e das ameaças ao redor. Uma relação amorosa contribui para manter a espécie viva, fazendo com que seus envolvidos tenham um compromisso maior com a vida e, consequentemente, que as comunidades estejam mais protegidas.

Compreendendo, então, o amor como um elemento catalisador que eleva a potência do comprometimento dos indivíduos com a vida e com a sua comunidade, questiono: como gerar esta potência de conexão e expansão em contextos de escassez ou ausência de amor? Como ressignificar a experiência do amor como parte fundamental das vivências de indivíduos e grupos para os quais a possibilidade de amar tem sido negada?

O intelectual brasileiro Antonio Bispo dos Santos classifica o mundo a partir de duas cosmovisões principais: a afro-pindorãmica e a eurocristã. A primeira se constrói a partir de uma natureza xenofílica, de conexão e compartilhamento, tendo a circularidade como valor que pauta e retroalimenta seus sistemas de relações. Já a cosmovisão eurocristã é forjada a partir da xenofobia, em que se perpetuam condições de disputa e tensão. É o ideal de superação do outro, de aversão e destruição do que é diferente — percebido, então, como inadequado. O mito do Paraíso como objetivo a ser alcançado apenas pelos “escolhidos” é a base da régua moral que culmina em todo um projeto de exclusão do que não se encaixa no modelo estabelecido. Observando essas duas cosmovisões propostas por Antonio Bispo e aplicando-as ao contexto da colonização do continente africano e das Américas, percebemos que a imposição do modelo civilizatório eurocristão é também a imposição do modelo de amar experienciado por essas sociedades.

Com a licença de Renato Noguera, proponho, a partir de agora, um diálogo entre seu livro e outros autores, como bell hooks e Sobonfu Somé, para buscando compreender como as violências do processo de colonização e escravização impactaram a forma de amar de pretos e pretas em diáspora.

O banzo

Segundo o Novo dicionário banto no Brasil, organizado por Nei Lopes, a palavra “banzo” é oriunda de dois idiomas que compõem o tronco linguístico bantu: em quicongo, mbanzu pode ser traduzido como lembrança; em quimbundo, mbonzo significa saudade ou mágoa. É uma nostalgia profunda que atravessou (e ainda atravessa) o repertório emocional de indivíduos africanos escravizados e seus descendentes. O banzo é um estado de melancolia que é resultado de uma série de ausências, sobretudo a ausência de pertencimento à qual foram submetidos esses indivíduos desterritorializados. Viver em estado de banzo, para além do sentimento de falta do que lhe é caro e familiar, é sobre ver se afastar dos olhos, tal qual as terras do continente-mãe, a liberdade do amor.

A quem é concedido o direito de amar?

bell hooks, em seu artigo Vivendo de amor, apresenta uma perspectiva bastante dura, porém realista, sobre como pessoas negras foram privadas do direito de amar. Mesmo após a abolição do regime de escravização, pessoas negras não se viram livres para vivenciar seus afetos. Ela relata:

Depoimentos de escravos revelam que sua sobrevivência estava muitas vezes determinada por sua capacidade de reprimir as emoções. Num documento datado de 1845, Frederick Douglass lembra que foi incapaz de se sensibilizar com a morte de sua mãe por ter sido impedido de manter contato com ela. A escravidão condicionou os negros a conter e reprimir muitos de seus sentimentos. O fato de terem testemunhado o abuso diário de seus companheiros — o trabalho pesado, as punições cruéis, a fome — fez com que se mostrassem solidários entre eles somente em situações de extrema necessidade.

Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor nesse contexto poderia tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável. De forma geral, era mais fácil para os escravos se envolverem emocionalmente, sabendo que essas relações seriam transitórias. A escravidão criou no povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade.

A História não nos poupa de exemplos da presença constante do desamor e das lacunas afetivas que costuram a trama da construção das diásporas africanas pelo mundo. Porém, para que chegássemos até aqui, não teria sido necessária a experimentação de algum tipo de amor? Acredito que a chave para compreender essa questão é o entendimento da dimensão da intimidade. hooks se refere à intimidade no sentido de uma ação prática de desenvolvimento das relações. A intimidade é uma construção com propósitos.

A travessia

A filósofa Sobonfu Somé, em sua obra O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar, desenvolve o conceito de intimidade a partir da percepção de mundo do povo Dagara, originário da Costa Oeste do continente africano. Para eles, o amor idealizado a partir da paixão é um erro. A intimidade é um caminho que deve ser percorrido pautado pela razão e em comunidade. A intimidade, então, se apresenta como uma configuração de amor que dialoga diretamente com a circularidade, valor civilizatório tão fundamental para muitos dos povos tradicionais africanos. Podemos dizer, assim, que a travessia com intimidade se coloca como uma elaboração de amor possível.

Se voltarmos o nosso olhar para os métodos de proteção e resistência pretos no Brasil, pensando nos diversos modelos de estruturação de famílias pretas ou na organização dos quilombos, dos candomblés ou das favelas, não estamos, em certa medida, falando de amor?

Talvez precisemos remover a lente shakespeariana que nos foi apresentada por muito tempo como universal para voltarmos à provocação central proposta por Renato Noguera: por que amamos?

Não tenho aqui a pretensão de dar por esgotada esta questão, mas, talvez, concluo com a sensação de que amar quem sabe seja a nossa principal maneira de reivindicar nossa existência. Seguir amando é o ato de teimosia que nos permite retornar em sankofa para mais próximos dos sonhos dos nossos ancestrais.

“Suas botas e pernas estão bem definidas, mas ele não tem corpo ou cabeça, pois estavam em movimento”, escreveu o inventor estadunidense Samuel Morse — o mesmo do código e do telégrafo com fios — a seu irmão no outono de 1839. Morse muito provavelmente detalhava o célebre daguerreótipo Boulevard du Temple (1838), a primeira ou uma das primeiras fotografias a captar uma figura humana. O que se vê no daguerréotipo — e que hoje, graças ao milagre da reprodutibilidade, qualquer um com acesso a internet também pode ver, ainda que em formato digital — é uma cidade fantasma; o boulevard, costumeiramente recheado de seres humanos e outros, tais como cavalos conduzindo charretes, aparece inteiramente esvaziado de vida, à exceção do pedaço de homem, se considerarmos um pedaço de homem como uma vida. Com efeito, ele parece subsistir na calçada da avenida como uma espécie de espectro que não conseguiu se eclipsar por completo antes de ser capturado pela máquina dos vivos.

Boulevard du Temple (1838)

Há uma explicação lógica que devolve a cabeça aos pés de toda essa história, é claro: para que a imagem pudesse se fixar na placa de cobre recoberta por prata do daguerreótipo, era necessário um período longo de exposição, no qual os sujeitos fotografados não deveriam se mover sob pena de desaparição do resultado final. Por outro lado, poderíamos, quem sabe, dizer de outro modo: diante de uma fotografia, os viventes adquiriam estatuto espectral, camuflando-se em seu próprio deslocamento; resistiam, assim, pelo movimento, ao procedimento que desejava seus aspectos. Do que se escondiam os ausentes do daguerreótipo? Escondiam-se ou eram escondidos?

No Boulevard, o primeiro ser humano fotografado é alguém que pode ter seus sapatos engraxados. Que Morse relate ver apenas suas pernas e botas permite que as tomemos como índices da classe social a que pertence. E foi a classe alta que frequentou os estúdios abertos nos anos seguintes, quando o inventor percebeu, a partir da foto-fantasma, que a verdadeira vocação dos daguerreótipos era o retrato. Afinal, um ser humano poderia ficar parado por vários minutos até que seu semblante fosse impresso na placa — e pagaria bem por isso. Agora, mostravam-se, individualizavam-se os que possuíam os meios, imersos em uma época na qual o crescimento acelerado das cidades ameaçava a distinção pessoal. Superado o daguerreótipo, não faltaram novas técnicas fotográficas, aprimoradas para produzir retratos de senhores e senhoras, de famílias e infantes. De fora, ou como fundo-cenário para a figura-sujeito, é possível ver alguma ausência ou uma pseudopresença, como diria a ensaísta estadunidense Susan Sontag em outro contexto; um algo que escapa.

Nas colônias, a situação diferia. Todo o esforço de produção de retratos visava mostrar em imagens, isto é, presentificar, fincar na realidade, a sujeição, a pacificação e a submissão de outros povos. Não faltaram daguerreótipos de “botocudos” feitos no território que hoje conhecemos como Brasil, de frente e de lado, com propósitos antropométricos — científicos. Tampouco postais de “índios amansados”, isto é, de pessoas indígenas não identificadas vestidas à moda dos colonos e enfileiradas para demonstrar seu bom comportamento, além de outros tipos de registros.

Fotografias de interventores coloniais ao lado de reis depostos ou humilhados também eram comuns, como a do Awujale do reino iorubano de Ijebu, Oba Ademuyewo Fidipote, ao lado do governador branco de Lagos, John Hawley Glover, em imagem de 1899. Conforme explica o escritor de ascendência nigeriana (iorubana e de Ijebu) Teju Cole, que escreveu uma análise sobre a foto, o rosto do rei, do Awujale, deveria, por sua divindade, permanecer oculto em público, jamais ser revelado; nesta fotografia, entretanto, cercado por oficiais europeus, seu semblante é plenamente visível.

A comercialização da primeira câmera portátil data de 1888. Nas colônias alemãs em África, entre 1884 e 1918, conforme narra a historiadora brasileira Naiara Krachenski, a Sociedade Colonial Alemã (DKG) produziu extenso material fotográfico de paisagem. Era como se os territórios que hoje conhecemos como Namíbia, Tanzânia, Ruanda, Burundi, Togo e Camarões fossem desabitados por seres humanos. Em um instante, e de ponta-cabeça, estamos de volta à cena do Boulevard. Desta vez, porém, sabemos que as pessoas foram propositalmente desaparecidas das fotos — ou, quem sabe, tenham se escondido, por ódio e pavor, em meio às idílicas vistas fotografadas.

A fotografia concorreu, portanto, para o estabelecimento objetivo de delírios violentos, como o do primitivo sub-humano, da floresta virgem e da terra devoluta. Sua contraparte metropolitana produziu muitos retratos de família e, com o tempo, seguiu em frente, tornando-se arte também. Nenhum desses usos jamais entrou em obsolescência, como foi o caso de certas técnicas ou modelos de câmera. A fotografia, um escândalo para seus comentadores citadinos, esteve sempre, não só em seu nascimento, de mãos dadas com o colonialismo. Se ela mantém uma relação com a morte, é sobretudo por esse conúbio infernal.

Em um ensaio, Sontag escreveu que “o fotógrafo saqueia e também preserva, denuncia e consagra”; o mesmo fotógrafo, com a mesma fotografia. A história da fotografia não pode refutar essa afirmação, mas talvez ela seja apenas uma dentre várias possibilidades; ou talvez o que Sontag tenha querido dizer é que as relações entre saque, preservação, denúncia e consagração são dinâmicas. Afinal, o que dizer das fotos e dos efeitos das fotos que Claudia Andujar fez dos Yanomami — não mais apenas vistos, mas visionários e vivos?

No final dos anos 1970, Sontag dizia que, naqueles tempos de desaparição acelerada de “formas de vida biológicas e sociais”, a câmera seria capaz de registrar a imagem dos que se ausentam à força. Outra força, essa verdadeiramente estranha, leva os críticos a acusarem periodicamente as fotografias, culpadas por não afetarem mais as pessoas, e as pessoas, culpadas por fotografarem demais. Uma câmera noturna pode fazer parte tanto do aparato ainda colonial que, por meio da “evidência fática” da fotografia, leva sempre o mesmo tipo de pessoa à cadeia e pode também ser usada em projetos de conservação de uma biodiversidade outra que não humana. Isso não significa que essa câmera é inocente em nenhum dos dois casos, tampouco que “mortífera” não seja um adjetivo cabível, de modo assimétrico, para a relação entre imagem e sujeito fotografado em ambas as situações.

Imagens continuam a ser produzidas na frenética velocidade que a tecnologia permite, no meio do torvelinho cada vez mais vertiginoso de destruições e extinções. De fato, o aumento incessante da produção de telefones celulares, cada vez mais acessíveis a mais pessoas e cada vez mais descartáveis, só é possível graças não apenas à mão de obra semiescravizada, como todos já sabemos, mas também à mineração de que dependem materialmente os aparelhos. E os mesmos portos que se abrem diariamente para esses minérios fecham-se à entrada das pessoas que vivem nos territórios por eles devastados. Tudo isso é muito bem documentado e conhecido.

Certa vez, a filósofa estadunidense Donna Haraway perguntou-se (e a nós): “Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?”.

Cada fotografia nos olha de volta. Cada uma é habitada, mesmo que nas reentrâncias. Na suposta falta de um povo encoberto, em movimento ou esconderijo. Mesmo em uma selfie, embora os seres não sejam todos necessariamente humanos. O ausente da fotografia não está fora dela. São espectros. Visagens. O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard desdenhou de aplicativos de fotografia, afinal, como rebaixar o polegar opositor, que muitos acreditam ser uma distinção humana, ao estúpido de deslizar em uma tela para que uma foto, possivelmente um retrato (ruim), se siga a outros? Mas talvez esse impulso, para tantos irresistível, esconda uma forma atávica de proteção. Não faz bem olhar para uma imagem, para uma foto, por muito tempo. Quem sabe os mansos não arrancam as roupas, os botocudos não dão uma investida? Oba Ademuyewo Fidipote ocultando seu rosto, de pé. Milhares, milhões de humanos e outros, mais que humanos, saindo da floresta e arrebentando a câmera colonial. Os extintos gritando, exigindo o reconhecimento de seu modo de existência. Quem sabe o que poderia acontecer? Iriam se levantar também os oficiais coloniais? Veriam também as miríades de atrocidades já registradas, seja por entretenimento ou denúncia? Muito cuidado ao olhar; você está sempre sendo olhado de volta.

E se eu encerrasse este texto dizendo que todos, todos já vivemos uma vida de espectro, que já nos transformamos todos em imagem, de maneiras diferentes e cruzadas em relação à experiência de Huni Kuin narrada no filme do cineasta Zezinho Yube sobre a trajetória de seu povo, que hoje produz vídeos? Desconfie de seus outros espectros e escolha muito bem a quem assombrar.

Talvez seja este o trato: não há como permanecer vivo sem sentir falta de algo. Todos nós temos um inventário de saudades que ganha, ao longo da vida, mais elementos. A lista é longa, e os itens crescem conforme andam os ponteiros do relógio.

O filme Aftersun foi motivado pelas saudades que a diretora, Charlotte Wells, sentia do pai. O desejo era contar para o mundo todo que ele havia existido. Ela criou uma cena inesquecível de uma dança sublime, pai e filha numa sintonia única. Ao fundo, toca Queen, this is our last dance, this is our song. E a música combina tanto com a cena, de um jeito tão doce, que a saudade se transforma numa coreografia espontânea bonita que faz lembrar todas as últimas danças de todas as pessoas que assistem. Já não é mais só a violência da saudade, existe também uma ternura.

Sinto saudades de você. Te escrevo um poema, canto uma canção, planto flores no buraco da saudade. Quando você foi embora e se perdeu numa vala de terra, joguei uma coroa de flores lá dentro. Queria que o seu buraco ficasse colorido. Acho que, no fundo, o que eu queria era colorir a última vez em que olhava para você. Por uma coincidência, você me chamava de “flor”. Te dei flores como uma última lembrança e também como um gesto de agradecimento por tudo que você me deu. Hoje eu sinto sua falta, mas o buraco que ficou no meu peito vive agora florido.

Sobre buracos e vazios

Jonathan Safran Foer, no livro Tudo se ilumina, afirma que “o vazio é a regra da vida”. Nossa existência começa em um buraco: é preciso que o espermatozoide fure o óvulo para que se forme o embrião. A origem do mundo começa num buraco do corpo e termina num buraco de terra.

A humanidade caminha junto com a soberania da falta. Para Lacan, é ela que impulsiona o desejo, nosso componente central, onde se estrutura a linguagem. É na ausência da mãe que o bebê aprende a cantar, falar e brincar (por um tempo suportável, é claro). Sem a falta, o sujeito não busca objetos de desejo, não sonha.

Nas palavras de Freud, “é preciso amar para não adoecer”. A incompletude é responsável pelo meu desenvolvimento. Porque não me basto, procuro o outro. Me associo, crio. Podemos pensar que o sentimento mais poderoso do mundo, o amor, é complementar ao mais temido, a ausência. Amo porque não estou completa. Trabalho porque falta dinheiro. Faço amigos para espantar a solidão. Não me basto, por isso crio laços. Produzo porque há algo que preciso comunicar. Se me falta o ar, respiro. Falta é o que dá força ao movimento. É curioso como a palavra está associada sempre ao verbo fazer: faz falta. A falta faz. Faço porque sinto falta.

Sem lacuna, não há espaço, só excesso. Nossa criação depende de espaço e também de lamento. Num movimento constante de completude e euforia, nada seria construído.

Na mitologia grega, a história da criação do universo é bastante ilustrativa: no início tudo estava unido. Céu e terra eram uma única coisa, não havia luz. Terra (Gaia) estava exausta de ser coberta pelo Céu (Urano). Ele se encontrava deitado e estendido sobre ela, num movimento de cópula constante. Não havia luz, apenas noite. Gaia, exausta e sufocada, grávida de uma série de filhos aprisionados — pois não conseguiam sair de seu ventre —, combina com seu filho, o deus do tempo, Crono, de castrar o pai, Urano. Gaia constrói uma foice e entrega na mão de Crono, que corta as partes sexuais do pai. Num grito de dor, Urano se afasta de Gaia e se instala no alto do mundo, de onde não mais sairá. Suas lágrimas tornaram-se as estrelas. Seus filhos, antes aprisionados, saem para a luz, ficando livres entre o tempo e o espaço. O oceano, a terra, as florestas e as montanhas ganham vida. “Como Urano tinha o mesmo tamanho de Gaia, não há um só lote de terra que não encontre lá em cima um pedaço equivalente de céu”, diz Jean Pierre Vernant em O universo, os deuses e os homens.

Sobre sufocamentos, afogamentos e atropelamentos

Fico pensando se o sujeito contemporâneo não se sente tal como Gaia, sem espaço, sufocado. Por informações, imagens, conteúdos. Criamos conteúdo incessantemente, mas o sentimento de esgotamento é uma marca dos tempos atuais, assim como a sensação de esvaziamento. Talvez não seja à toa que o mal contemporâneo seja o burnout, o TDAH e a depressão. Há uma sensação permanente de estarmos consumidos, sobrecarregados, ao mesmo tempo em que falta algo que dê substância.

Talvez essa substância ausente seja exatamente a elaboração de nossas faltas, a assimilação de nossos aprendizados a partir dos lutos, das dores, das perdas e das ausências. Numa cultura de excessos há espaço para a falta? Cabe a dor nesse tempo de pressa e urgência? Se tudo é tão facilmente substituído, o que aprendemos com nossas saudades?

É importante refletir sobre esse pensamento atual, que impõe ao sujeito a lógica do constante pensamento positivo e da superação, ideia que vai na contracorrente do pensamento psicanalítico, que vê a sublimação como o destino ideal da dor. Ela precisa ser transformada; para que uma falta seja elaborada, é preciso tempo. Este é o único capaz de mudar uma falta de prateleira dentro da nossa alma. O tempo transforma a dor. Cronos, essa divindade poderosa, tem muito a nos auxiliar, mas para isso é preciso paciência, uma palavra que está quase em desuso.

Quando Freud fala do desligamento da energia (libido) nos objetos de amor, usa a palavra “paulatinamente”, isto é, aos poucos. Durante o processo de luto, o aparelho psíquico vai gradualmente entendendo que perdeu o objeto de amor. Por um tempo, a dor da perda é o que resta para aquele que perdeu, como se a saudade fosse essa espécie de souvenir deixado pela energia que antes era investida no amado. Aline Bei sintetiza esse sentimento numa frase: “Saudade é amor, e é dos vivos”.

Por isso, penso que a fala “reage, bota um cropped!” tem muito mais a ver com atuação do que com reflexão. Reagir remete ao impulso, trata-se de uma resposta que se assemelha à descarga, e não à cicatrização.

É preciso fazer as pazes com as nossas faltas. Como diz Matilde Campilho, “foi com o tempo que eu fui me acostumando com essa coisa da saudade”.

O correr do calendário traz marcas, faltas, rugas, rastros. No entanto, acredito que o importante é o que fazemos a partir dessas perdas, uma vez que, como escreve Elizabeth Bishop, “todas as coisas contêm em si o acidente de perdê-las”. Sempre estaremos assombrados pelo fantasma da falta. E a arte de perder é algo que vivemos tentando dominar ao longo da vida. Lila, a inesquecível personagem de Elena Ferrante, dizia: “Cada um conta a vida como quer”. A habilidade de ressignificação de nossas faltas é marcada pela nossa subjetividade, pelas nossas ferramentas internas de ressignificação, e não pela prontidão com que reagimos às dores das ausências.

Recorro a versos de Drummond: “Por muito tempo achei que a ausência é falta / E lastimava, ignorante, a falta / Hoje não a lastimo / Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim”. A assimilação de nossas ausências é parte importante da nossa identidade. Freud adiciona: somos constituídos por uma série de lutos, todos os nossos buracos são também quem somos. Nossos avessos revelam nossas necessidades e também novas possibilidades.

É preciso fazer as pazes com a incompletude inerente à condição humana. Sem ela, viveríamos sempre numa condição estéril.

Sem a falta não existiriam poemas. Sem o silencio, não seriam compostas as canções. Sem os buracos, não plantaríamos flores. A vida estaria numa constante paralisação. Volto ao poema de Drummond, quando fala sobre a acomodação da ausência: “E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços / que rio e danço e invento exclamações alegres / porque a ausência, essa ausência assimilada / ninguém a rouba mais de mim.”

É preciso aceitar o convite para a dança da ausência sem medo do buraco que ela deixa. É preciso confiar na nossa capacidade de desabrochar as flores em nossas faltas. This is our last dance, this is our song.

Deixo aqui meu agradecimento ao meu amor, Daniel Mourão, que digitou este texto num domingo à noite, pois me encontrava incapacitada de fazê-lo após uma intervenção nas mãos. O amor recupera as dores da falta.

Nino Cais (São Paulo, 1969) possui, possivelmente, uma das mais variadas produções da arte contemporânea brasileira, não só em termos de materiais — de fotografias, desenhos e colagens a esculturas, vídeos e vestimentas —, mas também por sua ampla abrangência de discursos poéticos e narrativos.

O artista cria um universo intermediário entre o mundo cotidiano, que fornece a matéria-prima para as obras, e um ambiente fantasioso, com raízes ficcionais baseadas na literatura, no teatro e nas artes plásticas. Nino Cais corta, cola, costura, desenha, está dentro e fora da obra. É personagem e autor. Os seus trabalhos se manifestam num tempo e espaço suspenso, reconhecível porém pouco explorado pelo espectador; tão perto e tão longe, ao mesmo tempo, que sua estranheza é acolhedora. 

#44O que me faltaRevista

O que me falta — Amarello 44

O que me falta é a edição de número 44 da Amarello. Com a psicanalista Helena Cunha Di Ciero como editora convidada e capa de Nino Cais, refletimos sobre o vazio como parte inevitável da vida a partir de diferentes perspectivas.

Garanta a sua

Há doze anos eu larguei o cigarro, quando fumava compulsivamente mais de um maço por dia. Desde então, vim transferindo essa compulsão para trabalho, relacionamentos, esporte, sexo, comida, compras, bebida alcoólica e, por último, o mais complicado, tecnologia. Vários prazeres fugazes que eu usava como subterfúgio para não me deparar com as dores inerentes à minha existência.

O mundo em que vivemos é projetado para ocupar o lugar das nossas faltas e das nossas ausências. O consumo desenfreado, o uso exacerbado e viciante da tecnologia, a indústria alimentícia que se associa aos sentimentos, a cultura da hiperprodutividade, que nos obriga a estarmos ocupados o tempo todo. Tudo é arquitetado para estarmos “completos”, “plenos”, “preenchidos”, para que não sobre tempo para a reflexão, o acaso, a espontaneidade e as relações pessoais. Tudo é sobreposição, esgotamento, empilhamento, e se tudo é preenchido, não sobra espaço para a falta. Se tudo é planejado, não sobra espaço para aquilo que é prazeroso, inesperado, fortuito e, portanto, incompleto.

Quando tudo é planejado para que não haja perda, falta espaço para se perder e se redescobrir.

Como se reencontrar sem se perder?

Tentei tapar os meus buracos por muito tempo, mas, com distanciamento, começo a conseguir enxergar que o que me falta, ou me faltou, nunca será preenchido. Passo a olhar para essas lacunas com delicadeza e carinho, transformando minhas dores em ausência e, assim, dando um pouco mais de sentido aos buracos deixados por esses vazios. Ao assimilar o que me falta, me aproprio da incompletude para sair da escuridão.

Não que elas estejam resolvidas, muito pelo contrário. Mas o que me falta, me molda. E isso é bom.

Aos sons florestais brasileiros do maestro Villa-Lobos, o novo Presidente da República sobe a rampa do Planalto. Mas, calma lá, a cena não é como as de posses anteriores. Dessa vez, Luiz Inácio Lula da Silva está acompanhado por um inesperado comitê — enfim, representantes verdadeiros do povo dão aqueles passos. Dentre essas 8 pessoas, escolhidas, temos um símbolo da luta indígena: Cacique Raoni. A mensagem é clara: se o decano dos povos originários foi selecionado para passar a faixa ao presidente, então os horizontes definitivamente são outros. Depois de um período em que a barbárie deixou pautas importantes congeladas em abnegação, escutam-se os solfejos expansivos de, quem sabe, um projeto de país mais humano e ambientalista. O canto de esperança, de um novo momento, é mais do que bem-vindo, é necessário.

Entre as pautas que merecem atenção está a maior floresta tropical do mundo. No livro Arrabalde: Em busca da Amazônia, João Moreira Salles escreve: “Como diz o fotógrafo Luiz Braga, nascido no Belém: a Amazônia é o que se esquece do Brasil. É resto, arrabalde.”

Renomado cineasta, Moreira Salles produziu filmes importantes ao lado de seu irmão, Walter, como Central do Brasil (1998), eterno injustiçado ao Oscar daquele ano, e Abril Despedaçado (2001), adaptação da obra homônima de Ismail Kadaré. Dos filmes que o próprio assinou a direção, destacam-se o ótimo No Intenso Agora (2017), documentário que mistura imagens de arquivo de protestos políticos ao redor do mundo com filmagens de sua mãe e amigos em uma viagem à China em 1966, e o novo-clássico Santiago (2007), que conta a história do mordomo da família Salles por mais de 30 anos. João é um dos principais nomes do cinema brasileiro contemporâneo, e seu trabalho tem sido fundamental para a valorização e divulgação da cultura brasileira no mundo todo. 

Além do vetusto currículo no cinema, é fundador da Piauí, revista em que publicou a série de artigos que deu origem ao poético, impactante e informativo Arrabalde: Em busca da Amazônia.

“É nosso dever civilizatório proteger a Amazônia.”

O livro é um relato sobre a experiência de Moreira Salles na Amazônia, resultado de um período de seis meses em que morou no Pará. Apesar do ponto de partida ser pessoal, é como se um bastão de fala fosse passado de personagem a personagem, apresentando-nos aos detalhes um panorama geral da preocupante situação amazônica. Em termos de formato, chega a ser difícil definir: reportagem, história, literatura, poesia, diário, uma multiplicidade de gêneros narrativos dos quais o autor habilmente lança mão. Os meses passados na região aconteceram depois que ele mesmo se deu conta de que jamais tinha passado mais do que 4 dias por ali. Por quê?, se perguntou e, como resposta, se pôs a escrever. 

A perspectiva de que a região amazônica é deixada de lado e negligenciada pelo restante do país permeia todas as matérias que formam o mosaico que é o livro. Capítulo a capítulo, o autor constata que, para além do governo e da população brasileira não-amazonense, as cidades dali também estão de costas para a floresta. Faz lembrar aquele verso de Chico Buarque, da canção Subúrbio, sobre o Rio de Janeiro diz: “Lá tem Jesus/ E está de costas”. 

A palavra arrabalde significa um lugar que fica longe, aonde não se vai. E, pelo que João nos diz, boa parte dos amazônidas também não vão à Amazônia, apesar de ocuparem o seu bioma. Grande parcela das pessoas que se mudaram para lá nas décadas de 1960 e 1970 não foram movidas pela curiosidade do que existia lá. Pelo contrário, essas pessoas foram até lá com uma certa missão de apropriação, algo com um caráter “civilizatório” para lá de condenável e condescendente. “E isso se resume”, relata o documentarista numa entrevista, “numa frase que ouvi de um cara que estava na varanda da casa dele, olhando para o pasto e a lavoura que ele criou e disse: ‘Quando cheguei aqui, não tinha nada’”. É sintomático o quão clichê chega a ser o cenário de uma forte presença de turistas estrangeiros visitando a Amazônia e poucos, para não dizer nenhum, turistas brasileiros fazendo o mesmo.

É como diz Moreira Salles: a relação do Brasil com a Amazônia se assemelha à de colonizador e colônia. O país ocupa a Amazônia sem querer conhecê-la, como se estivesse praticando um “colonialismo indiferente”. Essa atitude é resultado da falta de curiosidade e afeto por uma região tão importante para o país.

“Exercemos uma espécie de colonialismo indiferente, ocupamos sem querer conhecer. É mais fácil destruir o que não está investido de curiosidade e afeto.”

Quando pensamos no estado de abandono, desprezo e criminalidade ao qual a região foi relegada pelo governo de Jair Bolsonaro e pelos militares de seu entorno, é difícil não se enfurecer — supondo, claro, que você tenha um mínimo de consideração pelas gerações futuras. Pensar que, em pleno século XXI, com a humanidade chegando a níveis tão complexos de tecnologias e conectividades, o garimpo ainda se dê com tanta frequência pode ser simplesmente revoltante. É bem verdade que essa vista grossa vem sendo feita categoricamente há tempos e tempos, desde que samba é samba, inclusive em mandatos anteriores do atual presidente. Mas também é verdade que os números aumentaram na última tetralogia presidencial. 

“Os militares sempre tiveram a obsessão da soberania. A grande ironia é que nesses quatro anos o Estado brasileiro perdeu a soberania da Amazônia.”

Um mínimo de reparação é o que se espera daqui adiante.

O tom alarmista de João Moreira Salles, no entanto, vem com um imprevisível quê de encorajamento, quase que um paradoxo subjacente que serve para nos direcionar aos bons auspícios que podem estar presentes no amanhã. É fato: “destruímos” muito a Amazônia, o que, é claro, não deveria ter acontecido. Mas isso, neste momento, estranhamente pode ser visto como uma vantagem comparativa que o Brasil tem em relação ao resto do mundo. Estamos, afinal, em um mundo em emergência climática e a melhor tecnologia para capturar carbono da atmosfera ainda é a árvore. Não existe hoje nenhuma solução tecnológica superior. Não há nenhuma máquina que puxe carbono e enterre carbono no solo como as árvores, que fazem isso de forma extraordinariamente eficiente. E as árvores no trópico fazem isso de maneira muito mais eficiente do que as que crescem num clima temperado. Mais do que nunca, o mundo precisa da Amazônia, ainda que nos auges de suas respectivas derrocadas. Que comece o levante.

No meio das denúncias, passagens históricas, comentários políticos, apresentações esmiuçadas de ativistas de hoje e de ontem, há no livro de Moreira Salles um deslumbramento autêntico, digno de uma pessoa apaixonada pelo que escreve e tenta salvar. A beleza, a diversidade, o intangível, tudo isso está presente tanto na Amazônia quanto nas palavras de quem a descreve. 

O arrabalde não é a Amazônia, conclui, mas sim o resto do Brasil. Essa, ao menos, deveria ser a lógica. Por ora, não é assim.

Enquanto Salles apresenta um compêndio mais pessimista sobre a Amazônia, outros autores apresentam perspectivas mais positivas. Um exemplo digno de menção é o livro Brasil: Paraíso Restaurável, de Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib, que apresenta uma visão bem mais otimista do futuro. Aborda a possibilidade de uma nova era para a Amazônia, em que ela poderá se tornar um modelo de desenvolvimento sustentável para o mundo. A obra se inicia com um panorama histórico do Brasil desde a colonização, passando pelo império e pela república até os dias atuais, explicando como a construção da identidade nacional, a formação do Estado e as políticas públicas moldaram a sociedade brasileira atual. E como, consequentemente, formamos a nossa relação com a Amazônia. 

Ao longo do livro, o trio de autores destaca as contradições e paradoxos que caracterizam o Brasil, como a desigualdade social, a corrupção e a falta de infraestrutura. A proposta desse caminho é explicar o porquê de medidas ambientais serem tão dificilmente aplicadas, especialmente em termos de mentalidade. Mais do que diretrizes de governo e incentivos econômicos: a mudança tem de estar arraigada em valores e crenças. É preciso, aqui e em qualquer lugar, que cada país busque em si as fontes imaginativas para criar a tapeçaria ideal para que se alcance o almejado “paraíso restaurável”. No caso da Alemanha, a motivação teria vindo do romantismo alemão; nos países asiáticos, do taoísmo e do budismo. E por aí vai, cada qual com as suas feições. O que vemos na capa do livro é uma representação do mapa do mundo sob a ótica do potencial de se gerar vida, tanto animal como vegetal. Sob esse critério, o Brasil é a maior potência do planeta, rivalizada apenas pelo conjunto de todos os países africanos. Somos, querendo ou não, o epicentro da economia verde — eis a nossa chamada para a ação.

Brasil: Paraíso Restaurável disserta acessivelmente sobre a transição de uma matriz energética poluidora para uma matriz renovável de energia solar e eólica. Caldeira, Sekula e Schabib detalham ponto a ponto, quase país a país, qual exatamente é o contexto global no que diz respeito à essa transição.

Fora os Estados Unidos, os grandes governos mundiais têm feito sua parte. Mesmo a China, a despeito de sua fama de “poluidora”, há uma década vem investindo em fontes renováveis de energia e já é, desde 2014, líder global em energia gerada por usinas solares. Até o mercado financeiro, inimigo-mor de tantas pautas progressistas, tem respondido com fundos que olham para os impactos sociais e ambientais de seus investimentos. Considerando o contexto, o Brasil é um país cuja matriz elétrica é consideravelmente renovável, mas que ainda não tomou uma decisão consciente rumo à sustentabilidade. Ainda não estamos ajudando como podemos. Mas podemos chegar lá com uma transformação cultural.

Embora as perspectivas de Salles e de outros autores variem um pouco de tom, elas não precisam ser vistas como contraditórias. Arrabalde traz uma importante reflexão sobre a negligência que a Amazônia sofre, e o contraponto apresentado por Brasil: Paraíso Restaurável mostra a possibilidade de mudança e renovação. Juntos, eles podem nos levar a uma compreensão mais completa e realista da situação da Amazônia e do papel que ela desempenha no Brasil.

Cacique Raoni, Villa-Lobos, humanidade, ambientalismo, uma caminhada pela rampa do Planalto que ainda está longe de acabar: embrenhado entre o alarme e a esperança, esse Brasil verde e de todas as cores pode acontecer.

“Tudo começa sentando à beira da cama e apoiando os pés no chão”, disse a fisioterapeuta respiratória, enquanto segurava os ombros de uma senhora de 84 anos. Com as coxas, apoiava com firmeza o tronco flácido — aquele corpo que havia se esquecido de como se sentava. A filha olhava para aquele corpo que já tinha sido sua casa, enquanto a mãe fitava o nada, pescoço mole, olhos opacos.

Olhos que viam a neta, mas não a enxergavam. “Mamãe, a vovó me olha, mas não me enxerga”, disse a neta na noite em que a avó saiu do hospital. “Eu sei filhota, mas nós a enxergamos”, respondeu a filha de 42 anos, engasgada, enquanto a cobria antes que ela adormecesse.

A filha de 42 anos agora se sentia mãe de duas crianças e de uma idosa, mas não se sentia mais filha de ninguém. Por isso, seus olhos andavam também opacos. Quando colocava as crianças na cama à noite, percebia que elas eram quem mereciam aquele olhar devotado, pois dela precisavam. E naqueles olhos encontrava algum brilho nos dias de tempestade. E por isso sentia uma culpa: dedicava mais tempo para as crianças do que para a filha de 84 anos, mesmo sabendo que havia uma deslealdade naquelas horas a mais, afinal, a mãe que tanto lhe cuidou, agora era sua filha e precisava de tanto carinho quantos as crianças.

“A filha de 42 anos agora se sentia mãe de duas crianças e de uma idosa, mas não se sentia mais filha de ninguém.”

Duas internações, dois meses, uma conta enorme de hospital. Um aluguel de cama hospitalar, com cerca lateral para não cair, máscara para respirar, cadeira de rodas, chuveirinho de banheiro, cadeira de banho, lenços umedecidos, caixas de fralda e uma enfermeira ao lado da cama. Incrível como se acaba a vida de um jeito tão parecido como se começa. Mas quando a mãe voltou para casa e não sabia nem onde estava, a filha de 42 anos ficou tão feliz com esses enxovais estranhos que encheu a casa de flores, para receber aquela velhinha apática que tinha roubado o lugar daquela mulher linda e vaidosa.

Aquela senhora tinha sido alguém que aos 42 anos resolveu ser mãe, numa época em que parir aos 42 era uma atitude inconsequente. Nos primeiros dias após o parto gostava de contar que se sentia a rainha Mãe, que mostrava a filha orgulhosa para as enfermeiras do hospital como quem exibe um prêmio. Muito leite, uma criança saudável, um prazer imenso em amar.

O Quarto, de Vincent Van Gogh (1888)

A filha, que se sentia uma menina de 42 anos, então se deu conta que já era uma mulher de 42 anos, que tinha tido uma mãe que teve um prazer imenso em amar; por isso não perderia o prazer de amar essa mãe, ainda que ela parecesse um saco de batatas na mão da fisioterapeuta respiratória. Esta, segurando a velhinha, com o sorriso mais doce do mundo, olhava para a filha de 42 anos tentando acalmar seus olhos, que choravam como um bebê assustado e pediam pela mãe de volta: “Tudo começa quando a gente senta à beira da cama e apoia os pés no chão.”

E assim a filha acomodou aquela tristeza toda, mesmo sabendo que o tempo estava num maldito conta gotas. Ela só se acalmou, pois seus olhos cruzaram com os da mãe e ela a reconheceu de novo. E ela soube que quando tudo acabasse, teria força para se sentar à beira da cama, por mais que também se sentisse um saco de batatas, pois ela tinha a quem imitar: a rainha Mãe. E também tinha as crianças para colocar na cama.