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#52SatisfaçãoCultura

Satisfação: estamos em falta?

por Viviana Venosa

É o final de uma refeição, e os comensais, que são bons amigos, tratam de ir preguiçosamente retirando a louça suja da mesa e levando-as para a cozinha, onde as empilham na lava-louças. Alguém pergunta: “Estão satisfeitos?”. A maioria responde que sim, mas um deles diz: “Ah… Eu tomaria um cafezinho e esperaria um pouco para comer mais um pouquinho da sobremesa…”. Todos se entreolham; uma ideia sapeca foi semeada entre eles. No entanto, uma das figuras diz: “Agora não consigo! Eu não aguento mais…”. Já outra pessoa diz: “Até que seria bom, mas estou satisfeito…”.

A vivência de satisfação pode ser experimentada empiricamente como uma questão quantitativa, como se nota pelo parágrafo anterior. No entanto, vale observar que há uma ação do tempo em jogo: “esperar”, “não agora”, “até que seria bom”… A experiência de satisfação engana com isso, como se se tratasse apenas de um funcionamento tipo “tanque de combustível” ou qualquer metáfora semelhante: a fome vem conforme o tanque esvazia.

No entanto, se, por um lado, sentir fome é universal, por outro lado, há inúmeros atravessamentos sobre a questão da fome. Desde questões culturais e econômicas, que podem implicar populações vivendo sob condição de desnutrição ou de fome mesmo — ponto que não pretendo tratar aqui — até questões singulares. Se tomo a fome como paradigma, é apenas para lançar o desafio de como uma condição biológica se engendra em seres apalavrados (considerando o acesso ao alimentar-se). 

A satisfação é um problema, ainda que sentir-se satisfeito possa ser satisfatório. Quero dizer que a satisfação é um problema para a psicanálise, pois ela é intrinsecamente ligada ao desejo. Problema delicioso para o deleite dos psicanalistas. Desde Freud, sabemos que o desejo humano vem da tendência pulsional. Ou seja, a pulsão demanda satisfação. Isso implica que há falta de um objeto que foi perdido em um momento mítico da vida de cada um, tal seja, um momento de plena satisfação no qual nada falta, nada sobra; e chamamos esse momento de mítico por nunca ter existido de fato. Uma espécie de medida de encaixe perfeito, que não cabe para nossa espécie humana, falante que é. A satisfação está ligada ao desejo, como esse pulsar indestrutível em cada um de nós. Assim, Lacan vai tratar o problema do desejo enquanto inesgotável, insatisfeito, faltante. 

Se, com Freud e sua teoria pulsional, pudemos escandir necessidade e desejo, com Lacan, vamos trabalhar na escansão entre desejo e demanda. Isso quer dizer que, ao estarmos imersos e imiscuídos no campo da linguagem, as necessidades, mesmo as básicas, como comer, hidratar-se e dormir, já não obedecem mais somente a leis estritamente biológicas, de modo que, em cada um, esses basais estarão inscritos de diferentes formas, ou, melhor dizendo, de formas singulares, inscritos na história pessoal de cada um, esta que é impossível de reproduzir. A função da fala e da falta em cada um vai cavar uma espécie de não especificidade do objeto do desejo. É com Lacan, portanto, que podemos apreender que “desejo de chocolate” é da ordem de uma demanda com uma especificidade. 

Adentramos algo mais complexo da psicanálise: as demandas ordinárias que surgem em nós como pequenas ou grandes vontades são decorrentes daquilo que chamamos “constituição do sujeito”, sujeito que atribuímos como “do desejo” ou “do inconsciente”, aqui praticamente sinônimos. Quando Lacan, apoiado em Hegel, propõe que o desejo é o desejo do Outro, isso quer dizer que algo de valor é transmitido, desde a chegada ao mundo, do Outro encarnado por um outro (cuidador) e que vai interpretar o desejo, tanto no sentido de uma leitura — interpreto o que penso ser valor para o outro — quanto no sentido de um papel — isso que destaco como valor para o outro me interpretar em uma posição subjetiva. Esse valor transmitido vai representar algo para alguém. 

A satisfação não satisfaz plenamente, pois, entre desejo e satisfação, algo fica em falta. Apoiado em Saussure, Lacan vai (principalmente no primeiro momento de seu ensino) propor que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Isso significa que não há signos determinados que representam plenamente os objetos. Se o sujeito assujeita-se ao desejo do Outro, isto é, ele paradoxalmente faz-se objeto para advir como sujeito, isso o inscreve em uma cadeia de significantes em que “um significante representa o sujeito para outro significante”, de modo a instaurar uma cadeia infinita e deslizante. Quem sou eu? O que eu quero? Qual é o sentido da minha vida? Perguntas sobre as quais a filosofia se debruça muito antes da psicanálise. Mas o que faz da psicanálise um campo de saber não é propriamente responder a elas. Pelo avesso, é oferecer um modo de tratamento à cadeia significante que diz de cada um sem que se saiba. Para saber-se é preciso escutar-se. E, para escutar-se, é preciso um outro — o psicanalista —, que devolve ao analisante o que ele disse de si sem sabê-lo, ou seja, sua mensagem “invertida”. 

O desejo é esse deslizamento infinito ao modo do paradoxo de Zenão, no qual a tartaruga está sempre na frente de Aquiles, sem que este possa alcançá-la. Essa operação lógica se dá por meio da falta. Na medida em que no desejo do Outro também está inscrita uma falta (estrutural), uma cena fantasmática inscreve o sujeito no fio da história e precipita as repetições na narrativa da sua história. 

Narrar-se em um processo de análise é estar disponível a descobrir os paradoxos desse desejo insatisfeito e inalcançável — paradoxal por proporcionar realizações ao mesmo tempo em que a plenitude de sua realização não se alcança. Algo sempre falta, não por ter sido outrora perdido, mas por nunca se ter possuído.

Se a falta move o desejo, este é, portanto, insatisfeito. Não basta encher o tanque das vontades para cessar o desejo, pois isso é da ordem das demandas, impossíveis de se atender plenamente, ainda que, parcialmente, se possa ter a impressão de satisfação, mesmo que seja no tempo cronológico. De fato, satisfações parciais acontecem. Assim, a falta também balança a noção de tempo para a psicanálise, na medida em que o sujeito do desejo é dividido entre ser e objeto, e só podemos saber o que somos depois que fomos, em um sempre adiante nas narrativas que nos compõem, até o fim.

E o que é o fim, afinal? Com Lacan, foi possível pensar o fim de uma análise. O fim de um percurso, geralmente árduo, no qual se precipita um fazer-com essa falta, um fazer melhor em cada versão com a qual podemos nos apresentar no mundo, entre outros seres falantes e faltantes.

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Seu olho está cansado, leitor. Eu não preciso conhecê-lo para saber que seu olho está cansado, sua cabeça está cansada. Mas peço sete minutos de atenção. Com olhos cansados, vou escrever sobre olhos cansados a olhos cansados. Olhos assim não mantêm a atenção. Por isso, vou escrever parágrafos de, no máximo, 220 palavras. Tente se concentrar: vou falar a olhos dispersos sobre uma dispersão socialmente instituída. Contarei uma história que vai da promessa de olhos e corpos satisfeitos à insatisfação geral. 

Vitórias iniciais da imagem

Essa história se mescla à de um escritor em tempos de olhos desatentos. Em 2025, o escritor está um século atrasado. Em 1925, Joseph Roth, uma das linhas mais bem pagas do jornalismo europeu, escreveu mais de cem artigos para o Frankfurter Zeitung. Nesse diário, Roth apresentava a estagnação da sociedade albanesa, o avanço do tribalismo em resorts do Mar Báltico, a antropologia de um hotel francês, a dor em sanatório austríaco. Roth mostrava realidades a leitores que compunham cenas e ideias com os “olhos” da mente. O escritor via e lembrava. O escritor pensava e transliterava. O editor imprimia. O leitor visitava com a imaginação. Escritor e leitor se reuniam no papel. O encontro tinha início, tinha fim. A leitura era ritual de um tempo definido, que diferia essencialmente de outros momentos da vida e, ainda assim, podia penetrar na vida subjetiva do leitor alterado pela palavra. O jornal ia para o lixo, mas a realidade escrita podia ficar.

Mas mudanças se anunciavam. Na biografia Endless Flight, Keiron Pim fala no folhetim de Roth, que captura “o fluxo intenso e a estranheza desorientadora da vida na cidade moderna”, em metrópoles como Berlim, Viena, Paris, onde a atenção do leitor já era disputada por jornais competindo com jornais e com rádios, cinemas, letreiros em néon, e sons cacofônicos (buzinas, gramofones, vendedores ambulantes). O leitor do jornal era um cansado em potencial — pelo trabalho, pelas contas, pelas aflições pessoais, pelas palpitações urbanas, pelas dores do mundo. Nessa sociedade, Walter Benjamin (em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica) falou no cinema como arte ajustada a massas esgotadas pela rotina industrial, cansadas para ler, mas suscetíveis a choques audiovisuais. Benjamin falava de uma história da estória moderna, em que a narrativa declina e dá lugar à informação, depois à sensação. 

Não tinha smartphone, mas já tinha TV a cabo, internet: em 2006, sala da PUCRS, o professor Assis Brasil nos recomendava, na oficina de criação literária, o uso do ponto final. Escrevam frases curtas. Usem verbos visuais. Comecem frases com sujeitos concretos. O escritor digita e pontua orações verbais. O escritor ajuda o leitor, em vez de “o leitor é ajudado pelo escritor”. As técnicas de escrita pressupunham a gênese de um leitor distraído. Nos termos de Benjamin, a questão era como escrever histórias a olhos condicionados ao frenesi videográfico. Como narrar a olhos que já estavam se cansando?

Em 1985, Neil Postman já tratara do estatuto do texto em Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business. O ensaio lembra os sete debates, nos anos 1850, entre Abraham Lincoln e Stephen A. Douglas, com discursos de uma a três horas, assembleia lotada de cidadãos que ouviam argumentos cadenciados com elegância, lógica, evidência. Douglas, depois de aplausos eufóricos a seu discurso, disse ao público: “Eu desejo me dirigir ao seu juízo, seu entendimento, não a suas paixões e seus entusiasmos.” Postman falou na mente tipográfica, que recebia a realidade por textos com subtexto e contexto, mesmo na forma oral. Eram tempos da letra impressa e fenômenos como Common Sense, de Thomas Paine, autodidata, filho de artesão, cujo livro vendeu 400.000 cópias numa população de três milhões — comparável ao Super Bowl hoje, sugere Postman. 

O telégrafo prenunciava algo novo: mensagem de todos lugares a todos lugares, com conteúdo “queimável”. Logo viriam as revistas especializadas, meio transicional em que a palavra escrita perdia lugar para fotos, cores, gráficos e, na análise de J. Habermas (em Mudança estrutural da esfera pública), endereçava-se a um leitor de “notícias de gratificação imediata (acidentes, desastres, esportes, recreação)”. A TV, depois, foi abalo sísmico na estrutura dos meios de percepção. No jornal das 20h, não havia texto com contexto, mas fatos atrás de fatos. Como qualquer fato, os televisivos não eram puros, mas saturados de estímulos da linguagem cinética-comercial. Para Postman, criavam cultura de “irrelevância, incoerência e impotência”, voltada a “aplausos, não reflexões”.

Meio como realidade

“O formato da TV não me deixa aprofundar”, um jornalista me respondeu quando eu disse que sua síntese da “banalidade do mal”, de Hannah Arendt, não tinha sido justa com o juízo da autora, publicado em cinco reportagens escritas. Como incluir nuances de 275 páginas num comentário televisionado de poucos minutos? Para Postman, a TV absorvia todos os discursos midiáticos (rádio, cinema, jornal), mas excluía, pela própria forma, o não performático, “incerto”, “aborrecido” — como alguém no “ato de pensar”. Em 1983, a rede ABC, após exibir The Day After, reuniu intelectuais para debater o perigo nuclear. Sem jingles ou comerciais, o programa reuniu pensadores díspares, como Henry Kissinger, Robert McNamara, Carl Sagan e Elie Wiesel. Cada um tinha cinco minutos para falar — de preferência, sem evasões, contradições, vacilações inerentes ao pensar mas destoantes da linguagem televisiva, teatral e assertiva. Não funcionou: no tempo predefinido para a “discussão”, os intelectuais pareciam “finalistas num concurso de beleza”.

Nenhum meio é neutro, sobretudo quando meio vira mensagem que vira mercadoria. A TV capturava a atenção do espectador com shows em parte adaptados ao ciclo natural do dia (de manhã, Ana Maria Braga e culinária; depois da escola, Malhação e adolescência), em parte já transgredindo o tempo do dia com técnicas de excitabilidade e monopólio da atenção (um “domingão” todo na frente da TV; uma “maratona” de séries para descansar, ou cansar, no sábado). No telediário, o olho via eleições, agora guerra, agora o tempo, agora comerciais, agora inflação, agora futebol. O ponto de contato entre o consumidor de TV em casa e mísseis no Afeganistão (imagens editadas de mísseis no Afeganistão) era um “olho que nunca descansa”.

Eu disse era, no passado, porque a internet não só absorveu a TV (e o antes absorvido pela TV), mas também, atualizando Postman, sugou formas de ser que ocorriam fora dos “meios” — trabalho, estudo, amizade, amor —, virando não apenas epistemologia (modo de compreender uma realidade), mas ontologia (uma realidade). 

Derrota da sociabilidade

Em O século anti-social, publicado pela Atlantic, Derek Thompson fala que, junto à TV, o carro marcou a transição de uma vida mais pública a uma mais privatizada. No lugar de clubes, templos, praças, cafés, entram os espaços de corpos sozinhos. Até as casas mudam: menos salas e mais quartos onde solitários veem telas que, diferente do cinema, produzem sensações num “público” de um só. Na gênese desse espectador autocentrado, a TV a cabo, liberada da palavra escrita, acentuara o fracionamento da “esfera pública” em nichos recreacionais: o tio assistia à pesca, a mãe à ginástica, o irmão a desenhos. Ninguém assistia ao mesmo canal, à mesma versão editada da realidade. Era a pré-história do que C. Sunstein (em #Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media) chamaria de Daily Me das redes sociais. Nesse “jornal de mim”, a realidade é filtrada, fatiada, servida ao gosto do consumidor — ou desgosto de um consumidor consumido pelas demandas do consumo. A cultura industrializada propunha “facilitação psicológica” de enredos digeríveis por corpos cansados. Mas o capitalismo não é notório por se impor limites. Se ócio vira negócio, melhor negócio do que entreter às vezes é entreter sempre, reter com feed, banquete sem fim, açúcares e corantes digitais a empanturrar olhos cansados e cérebros insaciáveis.

Vitória do showcialismo?

Entre os séculos 19 e 20, teóricos revolucionários falaram numa “vitória do socialismo”, quando a humanidade se governaria com mais segurança e menos conflitos, mais liberdade e menos dominação, mais igualdade e menos privilégios. Não aconteceu. Poderíamos falar hoje numa vitória do showcialismo, sociabilidade de simulacros, conexão disponível a pessoas, grupos, nações desconectadas entre si? 

Em 1935, Benjamin evitara otimismo acrítico e pessimismo reacionário. O filme era democrático: dava ao indivíduo moderno o “direito de se reproduzir”. Com a câmera, qualquer um pode ver e ser visto. O filme tinha ainda potencial científico; o espectador saía de casa, rua, região, viajava com o travelling da câmera e descobria, com zoom out e foco, o “inconsciente”. E o filme tinha potencial socialista. Histórias podiam ser reproduzidas, legendadas e exportadas, fomentando consciência transnacional. 

Mas Benjamin via o “negativo” do progresso técnico. Alertou, por exemplo, contra o uso do cinema pelo fascismo, que dava voz às massas sem mudar suas condições materiais. Hoje, no showcialismo, estabilidade e autogoverno parecem distantes, derrotados pela vitória da ansiedade, desgoverno, exaustão. Atualizando Marx: padre, intelectual, advogado devem virar influencers — senão, não “existem”. A existência dá lugar ao jogo de imagens sobre si mesma. O usuário parece liberado de sua rua, país, mas, com olhos presos à tela, fecha-se em imagens protecionistas, protegidas contra a diferença. Traz à consciência o que antes era “inconsciente” — a onça nadando na piscina no Pantanal, o Silvio Santos IA, a criança ferida pela guerra —, mas só os descobre como representações sem presença física. A realidade parece aumentada, mas se encolhe organicamente entre retina e sinapse mental.

Sob o verniz da liberdade, cada Pravda pessoal censura o que insatisfaz, dá dislike: o feio, o envelhecido, o moribundo. Pulsões contraditórias são ostracizadas do território imaterial dominado por reproduções de materialidade feliz, dançante, veloz, estimulante, produtiva, gostosa, saborosa, nesse desfile de corpos sem textura, sem cheiro. Exilamo-nos numa Sibéria da Imaginação, na mesma forma estética imposta e posta por olhos cansados que não descansam. Até a mudança climática se adaptou à monotonia de vídeos curtos, assistidos em casas ainda intactas com wi-fi ainda estável.

É hora de refazer a pergunta revolucionária. Como mudar o mundo se nem estamos no mundo? Mudar o mundo seria voltar ao mundo? Que tipo de consciência pode formar quem trabalha, brinca, ama com o olho, descansa e cansa com o olho? Falar hoje em consciência humana soa anacrônico (“cringe”). Consciências showciais viraram colagens de sensações e imagens e palavras em memória exausta demais para lembrar. Há quem sinta essa revolução cognitivo-existencial como irresistível. As coisas “são como são”. São mesmo? Para quem quiser pensar o presente: eu não disponho de doutrina. Meu programa contrarrevolucionário é também fragmentário. Procede de imagens e pontos assistemáticos, como: (1) a cafeteria Pão Quente, em Leça da Palmeira, onde rascunhei este texto e onde vejo senhoras e senhores falarem sobre política, vida, vida alheia, ignorando TV e telefones, que talvez nem tenham; (2) a apropriação democrática das fábricas de fatos e “fatos alternativos”; (3) um retiro nos Andes ou em Piracanga; (4) ida ao cinema (quem diria, Benjamin?); (5) um match com alguém na parada de ônibus; (6) debate, por mais de cinco minutos, sobre os detentores dos meios de desatenção e seu acúmulo de poder político; (7) minutos em silêncio; e, principalmente, (8) um descanso ao olho.

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É preciso dizer que a maioria dos escritos em psicanálise se referem ao que poderíamos chamar, de modo geral, de sofrimento. É possível subverter a noção de neurose, ligada inicialmente à hegemonia do discurso psiquiátrico, e projetá-la, como assim o fez Freud, no âmbito de desordens psicológicas para melhor mapear as raízes do sofrimento. A palavra “felicidade”, na psicanálise em geral, é rara. A palavra “satisfação”, sobre a qual irei vagar nestas linhas, aparece mais do que a palavra “felicidade” em textos de psicanálise. A satisfação está ligada, contudo, às pulsões e aos desejos com conotações mais ou menos sexuais, pelo menos numa perspectiva freudiana. A satisfação, em algum sentido, pode ser entendida na sua articulação com o destino de uma pulsão.

Para Freud, o trabalho psicanalítico “nos lega a tese de que as pessoas adoecem neuroticamente devido à frustração. Referimo-nos à frustração da satisfação dos desejos libidinais”. A satisfação está no contexto de uma gramática conceitual em que impera a lei do desejo, mas o desejo aqui é tomado no amplo espectro capaz de atravessar os mais diversos corpos por estar incrustado numa espécie de condição humana. Temos então um duplo problema: a universalidade da construção freudiana e a própria redução da satisfação à esfera libidinal. Isto é, trata-se de uma construção conceitual que se coloca numa condição de neutralidade cultural e, portanto, capaz de falar da satisfação de todas as experiências humanas e, ao mesmo tempo, de uma compreensão da satisfação que condiciona a frustração a uma dimensão de “desejos libidinais”.

Se começo esta conversa com a psicanálise é porque o presente texto parte dela, mas sem a pretensão de se encerrar num determinado dos seus paradigmas. Por isso, é preciso, por um lado, demolir a universalidade das definições de satisfação no campo psicanalítico de matiz freudiano e, por outro, compreender como ela se inscreve na corporeidade negra como uma possível expressão da felicidade. Nesse sentido, se a cultura europeia é marcada pelo sofrimento ou tem no sofrimento um dos seus principais temas, no que diz respeito à negritude, o que está em jogo é o sofrimento que a mesma cultura europeia lhe impingiu e uma possível contraofensiva pelo recurso à noção de felicidade. A minha hipótese é de que a nossa satisfação como corporeidade negra passa pela implosão das máscaras brancas — responsáveis, entre outras coisas, por nos firmar no sofrimento racial — e pelo reconhecimento de que a nossa satisfação está no exercício da felicidade.

É importante sublinhar que, para o caminho deste meu ensaio, a presença de Frantz Fanon é uma das estações pelas quais somos obrigados a passar. Afinal, é com ele que as questões raciais da psicanálise conhecem um dos seus primeiros tensionamentos. A sua obra Pele negra, máscaras brancas é essa estação obrigatória. A máscara branca é a expressão que o editor da obra usa para se referir ao que Fanon inicialmente chamou de “ensaio da desalienação do homem negro”. Longe de expressar uma contradição com o autor, o trabalho de edição do texto torna possível o diálogo com título que Fanon originalmente havia pensado e que são os dois vetores centrais do processo de racialização. A construção da raça é a imposição do modelo de branquitude como padrão universal (a máscara branca), e, nessa imposição, ela aliena a pessoa negra de si mesma. Em certo sentido, a psicanálise, quando assume uma pretensão de universalidade, inscrita naquilo que chamo de fantasia da neutralidade cultural, é um mecanismo ideológico de subordinação da humanidade ao padrão da branquitude. Essa subordinação forçada implica a alienação da pessoa negra da condição de humanidade por ela não se reconhecer numa corporeidade que jamais pode ser a sua.

O ponto é que os dramas clássicos da psicanálise, ancorados no núcleo de uma família burguesa numa branca Viena dos séculos XIX e XX, e que constituem, segundo Freud, seus pilares — como, por exemplo, o complexo de Édipo—, não necessariamente tocam as subjetividades negras nas variáveis que lhe seriam supostamente constitutivas. Ou seja, só podemos seguir os nossos passos na insistência e na esperança de que caminhamos ainda com a psicanálise quando rompemos com um entendimento abstrato de satisfação e começamos a dotar de corpo negro aquilo que pode ser a satisfação. Afinal, o corpo negro em diáspora e em África não guarda as mesmas relações familiares e culturais das pessoas que frequentavam os divãs de Freud.

Quero pensar a satisfação na sua articulação com a felicidade. No território que sou, foi a experiência racial que me forjou antes mesmo da triangulação edípica. Nossas famílias são marcadas pela ausência de pais (seja a ausência na presença de pais alcoolistas, seja na ausência de quem partiu sem dizer adeus), por mães e avós violentadas e por um mundo que nos achata ontologicamente na forma de um ser deficitário, cuja falta de humanidade só é proporcional ao excesso de humanidade branca.

Nesse território que somos, a satisfação não é propriamente aquilo que está na ordem de uma iminente frustração de desejos libidinais. A nossa satisfação é interditada por razões humanas, mas de uma humanidade específica. A humanidade que inventou as raças para nos dividir. A humanidade europeia. Desse modo, a satisfação que procuramos é anterior ao que é central na psicanálise freudiana.

Satisfação: o exercício da felicidade

Inicio dizendo que, para as pessoas negras, a satisfação material está indissociada de uma dimensão psíquica. A privação do predicado humano foi e ainda é acompanhada por uma falta de natureza material. Por não serem consideradas humanas, as pessoas negras, ao longo das suas histórias, sempre estiveram acostumadas com os restos. Sobras. A comida era uma necessidade primeira, e a insegurança alimentar é um traço comum em várias vidas negras. É o que nos conta Conceição Evaristo em O sagrado pão dos filhos de Evaristo. A mãe deixa de amamentar os filhos para resguardar o leite para o filho de uma pessoa branca. Ou seja, a própria relação com o seio da mãe é marcada por uma falta que não é diretamente ligada a uma dificuldade da mãe de amamentar, mas por um direcionamento racial da prioridade alimentar e do próprio conforto da amamentação.

Se seguirmos o raciocínio de Melanie Klein sobre a dualidade do seio materno (seio bom, seio ruim), por meio da qual a criança pode atingir a posição depressiva e continuar o seu amadurecimento psíquico, que inclui a capacidade de lidar com a própria ambivalência, é notável que a privação do seio materno produz outras fantasias nas crianças negras, cujo recorte racial é incontornável. Isto é, uma necessidade material, a de amamentar os filhos dos patrões, tem ressonância no próprio processo de subjetivação das pessoas negras no modo, por exemplo, como elas lidam com o complexo e ambivalente ato de amamentação. Assim, não é possível dissociar questões materiais da própria vinculação da mãe com o bebê e com como ele consegue integrar na mesma pessoa duas dimensões primárias nas fantasias infantis.

É nessa perspectiva que a mesa farta não é apenas uma mesa farta de uma casa burguesa, onde cabe às pessoas negras os restos, como lemos novamente em Evaristo. A fartura para as pessoas negras, que se estende nas oferendas para os orixás, é, em certo sentido, uma satisfação das pulsões vitais com ressonância na própria compreensão da humanidade de si mesma. Ela tem o efeito psíquico, pouco explorado na psicanálise, que consiste na imposição da articulação da corporeidade com a satisfação para além das condições orgânicas. Isto é, a partilha que o alimento promove, quando liberto das condições subumanas que marcaram e ainda marcam a história da corporeidade negra, é o exercício da satisfação por meio do qual se enreda a própria experiência amorosa.

Se a psicanálise contribuiu muito para retirar o corpo das condições estritamente biológicas, a compreensão do sexo para além da reprodução, a sabedoria do povo negro aponta que a satisfação alimentar é um ato de liberdade e de construção de uma comunidade. Nessa perspectiva, a satisfação deixa a esfera de um indivíduo, que tem que se haver com as suas frustrações de natureza libidinal, para compor uma experiência comunitária que envolve também orixás e seres encantados. Essa ampliação da experiência da satisfação tem implicações sobre aquilo que as pessoas negras perseguem e que poderia servir de novo caminho para a psicanálise, a saber, a felicidade.

O exercício da felicidade, portanto, ocupa um lugar central naquilo que as pessoas negras ensejam para si mesmas como realização do desejo. Tendo a pensar que essa experiência comunitária da negritude não reconhece na sociedade um conjunto de pessoas em busca apenas de uma satisfação de caráter sexual e individual, como parece sugerir alguns textos de Freud. O ponto é que se trata de uma experiência comunitária que, por meio do alimento, pode promover uma partilha sensível. Nessa perspectiva, a compreensão da satisfação na sua articulação do corpo com a experiência de uma partilha sensível comum amplia os sentidos da satisfação e nos convida a pensar uma clínica e uma teoria psicanalíticas calcadas não apenas no sofrimento, mas no próprio exercício da felicidade. 

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Em sua edição 52, a revista Amarello une moda e sociologia ao trazer Verena Figueiredo na capa e Carlos Dória, especialista em alimentação brasileira, como editor convidado. Afinal, o que nos satisfaz?

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A compulsão sempre pautou a minha vida. Por ter sido um adolescente com sobrepeso, me foi imposta uma restrição alimentar que atrapalhou a minha relação com a comida e com o mundo. O buraco negro existencial do ser humano, se não enfrentado, é “tapado” com comida, cigarro, álcool, euforia, sexo, esporte, trabalho e, atualmente, sobretudo, tela. Isso, a gente sabe, não dá certo. Não é de hoje que sinto um desconforto enorme em relação à vida moderna e a essa hipnose de telas que estamos vivendo.

A tecnologia que prometeu mais tempo para vivermos nossas vidas nos deu, na verdade, mais tempo para ficar olhando telas, entulhando nossos cérebros. Estamos capturados por informação e dopamina, sem qualquer tolerância. Em um mundo pautado por algoritmos, a ignorância é a lei. Perdemos nossa autonomia e dignidade.

Olhem ao nosso redor. As novas gerações não estão fazendo sexo. Não estamos movimentando nossos corpos nem nos alimentando com prazer. A comida é o nosso elo com o mundo e a natureza. Comer por comer rompe esse laço sagrado. O prazer é um direito do ser humano, e ele parece distante de nós.

Estamos morrendo de desespero, em um looping infinito de insatisfação. A inteligência artificial está ameaçando substituir artistas e escritores, os adivinhos da cultura. Os níveis básicos de gentileza e saúde mental estão se desintegrando a um ritmo alarmante. Estamos em um relacionamento com nossos celulares. Apaixonados.

O que será do tempo e do espaço que a inteligência artificial vai nos liberar?

Precisamos mesmo trabalhar mais, ser mais produtivos, ter melhores posições no mercado de trabalho, ter mais influência, prestígio, seguidores, likes? Esse estigma da insuficiência é uma fábrica de sofrimento.

As pessoas estão desaparecendo sob a mão do mundo digital, e eu não acho justo viver às sombras de que se conheça o sol da própria vida.

Você já parou pra pensar no que, verdadeiramente, te satisfaz?

Tomás Biagi Carvalho

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A arte de Melly flui sem pressa, mas tem urgência em se fazer ouvir. Sua voz suave e, ao mesmo tempo, grandiosa, como de uma diva do soul-jazz-R&B, reflete um processo de constante reconfiguração. Cada canção que cria parece ser um fragmento de si mesma. Uma tentativa de capturar emoções que, por vezes, são difíceis de nomear. 

A cada novo trabalho lançado, a artista se revela em uma dança delicada entre o visível e o intangível, entre o novo e o ancestral. Com um EP, alguns singles e um álbum de estreia lançado em 2024, o Amaríssima, Melly busca não se limitar a um estilo ou uma forma, mas promove uma fusão própria de quem mergulha fundo naquilo de que é feito. No caso dela, a música, em toda sua imensidão. 

Melly vem dando uma nova cara à música popular brasileira, colocando holofote na riqueza dos ritmos afro-baianos e dando contorno próprio à produção contemporânea. Não à toa, Amaríssima já estreou com indicação ao Grammy Latino, e tudo indica que, de agora em diante,  a carreira da cantora — que é também compositora, instrumentista e produtora – será ainda mais potente 

Pérola — Melly, gostaria de saber um pouco sobre a sua origem. Eu sei que você nasceu em Salvador, do bairro do Barbalho, seu pai é músico, mas queria que você me contasse mais sobre sua relação com a cidade, com a sua família e com a música.

Melly — Grande parte da minha família é musicista, sim. Por parte de minha mãe, todos tocam instrumentos de sopro. Por parte de meu pai, tem meu pai, tem meus tios; meu tio-avô também tocava. A música sempre foi parte da minha vida. Eu já nasci com essa membrana me rodeando, sem saber que isso não fazia parte da vivência de outras pessoas. Eu achava até estranho quando alguém me falava que não tocava, não fazia coisas parecidas, porque para mim era muito natural.
A gente morava em um loft atrás da casa de minha avó, no Barbalho. Meu pai estava se estruturando ainda, ele me teve muito novo, com vinte e poucos anos. Ele estava no meio da carreira de músico, de artista, então as coisas começaram a se estruturar mais depois do momento que eu nasci. E, enfim, nesse loft tinha um estúdio, era uma casa-estúdio.

A gente dormia todo mundo no quarto, eu, meu pai, minha mãe, meu irmão e o cachorro. E a sala era toda cheia de instrumentos, bateria, essas coisas. Então é isso, a minha relação com a música foi natural. Eu já cresci e fui inserida nela.

E seu pai tocava o quê?

Meu pai compõe, meu pai canta também, e ele é violonista, toca violão.

E ele tocava com algum artista aí de Salvador?

Não, ele era o artista, carreira solo. Ele teve bandas, mas também teve carreira solo.

Qual é o nome dele?

O nome dele é Tito.

Eu vi uma foto sua pequenininha, no palco, acompanhando ele. Você já gostava?

Eu gostava, né? Acabou que uma coisa se uniu à outra. Eu nasci envolvida na música e gostei dela de volta. Eu fazia questão de estar com meu pai nos shows quando eu podia, quando não eram ambientes que não eram apropriados pra criança.
Quando eu podia, minha mãe ia comigo, ela me acompanhava. Eu subia no palco, tocava instrumentos que não estavam microfonados, fazia coisas parecidas, sabe? Só pra estar ali.

E você está em Salvador agora?

Agora sim, porque é fevereiro, é Carnaval. Minha companheira está aqui também, vou apresentar a ela o carnaval e as coisas de Salvador. Ela é do Maranhão.

Mas você continua morando aí?

No momento, sim.

Você conseguiu se destacar desde cedo na carreira, por causa do seu talento e da sua habilidade, está na Slap, da Som Livre, tem participado de vários festivais. Queria saber se, do jeito que você olha o mercado da música hoje, como ele se configura, você acha que é viável você gerir e alavancar sua carreira daí de Salvador mesmo.

Infelizmente, é uma questão sensível essa. Pela realidade das coisas, não, não é confortável de se gerir daqui. É possível, mas existem muitos entraves, são muitas intempéries, estando aqui e não estando no “centro”, que seria o Sudeste. As gravadoras, as grandes marcas e todas as outras possibilidades se concentram muito nesses polos, São Paulo e Rio de Janeiro.
É triste, porque se perde um pouquinho do valor da música e da diversidade da música. E algumas coisas ficam estratificadas. O pop ficou estratificado e fica designado como tudo o que se faz no Sudeste. O funk é pop, mas por que o pagodão daqui não é mais exportado, não é mais consumido, não é mais capitalizado? Se fosse tão capitalizado quanto o funk, também seria considerado pop. Porque o disco que eu fiz, que tem influências completamente melódicas da música popular brasileira e da música popular internacional, não seria colocado nessa caixinha do popular, do pop. Porque eu faço algo que está fora do eixo. Os artistas daqui também, os novos artistas da geração, veem essa movimentação de precisar se colocar enquanto diverso, se colocar enquanto essencial também para o funcionamento da música brasileira, para a perpetuação da cultura.
Infelizmente, quando as coisas se concentram em um canto só ou com um pensamento de um grupo só, a gente perde a riqueza da nossa cultura brasileira. E o Nordeste e o Norte também são pilares do que se faz. Mas é isso, não dá mesmo para pensar em muitas outras possibilidades estando no lugar que estamos, por essa falta de olhar, de cuidado, de investimento capitalizado mesmo das marcas, das empresas, das gravadoras, da máquina.

Como você concebeu o Amaríssima quanto às questões temáticas e aos ritmos que ele perpassa, que estão intrínsecos na sua música, na sua produção? Comparando ele com os seus outros singles e com o EP Azul, tenho a impressão de que ele talvez esteja um pouco mais para o lado desse som afro-baiano e menos do R&B a que sua voz remete.


É característico do gênero pop absorver alguns outros gêneros, ele não tem uma forma certa. Aqui no Brasil, alguns artistas acabam absorvendo o forró, o piseiro, o funk, e isso tudo se vê em algum momento popular pela forma que se é exposto e consumido. Eu, enquanto pessoa baiana nessa vida, enquanto nascida e criada aqui, com essas influências de cá, eu não tinha como deixar de falar a minha verdade.
Eu encaro música enquanto verdade também. Eu acho que a gente se conecta com os outros por falar com sinceridade aquilo que o coração chama. Então, o meu coração sentiu a necessidade de falar sobre a minha pesquisa e sobre a minha vivência afro-baiana. E eu coloquei isso na caixinha do popular, do pop. E sob a influência desses ritmos eu acabei construindo Amaríssima.
O disco tem muito de samba-reggae, [a faixa] Rio Vermelho é um samba-reggae. O Russo Passapusso, inclusive, foi muito esperto em pontuar que a gente deveria resgatar esse ritmo, resgatar esse gênero, algo muito característico e tradicional aqui na Bahia. Todos os blocos afro cultuam e reverenciam o samba-reggae, que é uma invenção nossa, assim como arrocha, assim como outras influências.
Enfim, temos samba-reggae, temos ijexá em Bandida, temos pagodão em Falar de amor, misturado com o Jersey, que é um gênero internacional. Enfim, é toda essa pesquisa pra gente poder adaptar o que eu tenho de bagagem, de repertório enquanto pessoa soteropolitana, nessa experiência e enquanto brasileira que pensa em se popularizar também mundialmente. O meu objetivo foi tornar isso algo de alta disseminação.

O disco estabelece uma relação muito íntima com o amor e a sexualidade, seja pela entrega, seja pela reflexão sobre esses temas. Como eles se integram à sua veia artística?

Música pra mim é muito sincera. E, como citei no início, eu não sabia diferenciar o que era uma vida sem música. Eu nunca soube desassociar também o que era uma vida sem composição. Me relacionar com os meus sentimentos sem compor sobre eles, falar sobre eles dessa forma poética, transformar isso que eu sinto em poesia. E Amaríssima não foi diferente, foi mais um momento da minha vida.
Assim como Azul, foi um momento de saudosismo, quando eu estava morando fora. Eu morei no Rio Grande do Norte, senti muita saudade da Bahia e compus sobre essa saudade. Amaríssima se tornou essa minha nova percepção de vida. Eu fui me tornando mais velha. Comecei muito jovem na música, então as coisas se transformaram muito cedo pra mim. As relações de trabalho, as relações com colegas.
Eu me vi adulta muito jovem. E aí eu achei necessário compor sobre isso, sobre esses fins de ciclo, sobre essas novas experiências desagradáveis, sobre passar a tomar muito café, sobre tudo isso que envolve ser uma pessoa adulta e que envolve também perder um pouquinho da inocência e da doçura que vem com a inocência, né?
O amargor que vem com a vida adulta também é muito interessante, eu acho que a gente idealiza muito essa experiência de ser independente. Eu, na verdade, idealizava essa experiência de me tornar gente grande. E, quando me tornei, vi que era algo mais realístico, que era outra noção. Passei a compor sobre isso. E aí, espontaneamente, veio Amaríssima e todas as composições dele.

Você tem um diário em que anota as suas coisas para compor ou você guarda tudo na pele?

Não, tenho vários diários. Desde pequena, tenho caderninhos com minhas músicas, com minhas composições e, às vezes, reclamações diárias.

E você foi morar no Rio Grande do Norte com que idade? Foi em período escolar ou depois?

Eu tinha catorze, quinze anos. Como meu pai abandonou a carreira de músico… Ele não deixou de ser músico, mas infelizmente teve que deixar de exercer por conta da família que foi formando. Ele passou em um concurso. Meu pai é analista de sistemas e passou num curso federal lá, sei lá que diabo era. Só sei que eu não ia conseguir me manter sozinha aqui em Salvador. Era muito jovem, catorze anos. Minha família também não tem essas condições. Somos ricos das graças de Deus. E eu não pude ficar com minha avó, tive que morar com ele no Rio Grande do Norte. Ficou eu, meu pai, minha mãe e meu irmão lá no Rio Grande do Norte durante cinco anos.

Você ficou até os dezenove, até acabar a escola?

Fiquei até a pandemia. Eu só voltei pra Salvador por conta da pandemia, que os formatos de trabalho se flexibilizaram, meu pai começou a trabalhar home office. Como ele faz coisas somente no computador, esse modelo deu certo economicamente, financeiramente teve retorno, a galera achou mais interessante. E aí tivemos a possibilidade de ficar em Salvador. Voltei quando tinha vinte.

Como você se vê dentro do mercado da música hoje, dessa dinâmica da música e dos festivais? Você está começando o seu show autoral, ainda vai levar ele para vários lugares. Você apresentou ele em São Paulo no final do ano passado e no começo deste ano.

Foi, eu fiz o lançamento com todas as participações, com Liniker e Russo Passapusso. No último [em janeiro], na Casa Natura, inclusive algumas pessoas que também fizeram parte do disco estavam lá enquanto espectadores. Produtores, a galera que está mais no backstage. Mas Amaríssima me colocou num lugar muito legal no mercado. Graças a Deus e graças à minha família também, que eu sempre tive suporte e apoio para me sentir segura e acreditar no que eu faço, na mensagem que eu tenho pra passar. Eu também sempre fui muito certa do que eu gosto, do que eu quero fazer no mundo. Ver as coisas evoluindo agora é muito gratificante e recompensador. O tanto de trabalho que eu tive produzindo esse disco, tanto o Azul quanto o Amaríssima, noites perdidas, pesquisas feitas durante meses, anos pensando e confabulando o que falar de interessante nesse mundo cheio de informação. E ver que a gente, enfim, conseguiu chegar no Grammy, o meu primeiro disco já indicado no Grammy Latino, isso foi loucura para mim. É muito legal poder ter um propósito e realizar sonhos assim.

E tendo você como principal maestra de tudo, né? De produção, de composição.

É, mas eu e mais todo o meu alicerce. A todo mundo, né? Obrigada. A galera da gravadora começou a observar que eu sou muito independente. Gosto de tomar para mim as coisas e fazer sozinha. E acabou que deram a sugestão da gente ficar mais livre. Então esse projeto é sinônimo de liberdade artística. Eu abri mão um pouquinho desse meu controle minucioso e meticuloso nos processos e deixei pessoas que eu admiro, que eu sou fã mesmo do trabalho e da interpretação, interceder nas músicas. Mandei pra alguns colegas, eles pegaram as faixas e transformaram de acordo com a sensibilidade deles. A gente tem, enquanto produtores, Nave e Erick Maniga, que é meu parceiro de sempre. Ele fez Amaríssima, também produziu Azul, que foi o meu primeiro trabalho. De participação, tem Karol Conká em Bandida, tem Duda Beat em Derreter e suar e Luccas Carlos em Falar de amor. Um dos meus músicos toca comigo, o nome dele é Aleph, toca bateria, também produziu uma canção muito bonita. A gente abriu também para o público, para a interpretação do público, fizemos uma espécie de concurso.

Foi tipo quando a Flora Matos abriu pra galera mandar…

Isso, beat pra ela. Foi tipo isso. E quem ganhou foi o Duda Raupp. Tem muita gente sensacional aí nesse projeto, e isso foi uma demanda da gravadora. Os meus A&Rs [Artistas e Repertório, divisão de uma gravadora responsável pela pesquisa de novos talentos e desenvolvimento artístico], que são pessoas que ficam ali comigo o tempo inteiro confabulando novas ideias, novas estratégias de lançamento e novos fervos que vão gerar bons frutos.
Eles acabaram reparando nisso em mim, nesse meu comportamento, eu acabo mesmo tomando tudo pra mim, querendo fazer tudo ao mesmo tempo. Eu quero produzir, eu quero compor, eu quero tocar, eu quero fazer um livro, escrever um livro, eu quero pintar, sabe? Então me propuseram essa nova abordagem.

Quais são seus hobbies?

Eu gosto de pintar, tem até um quadro da minha gata, que eu não terminei. Eu arrisco na pintura, eu gosto muito de escrever, quero lançar um livro, mas daqui a pouco.

De poesia?

Não, um romance. Um livro de poesia também, mas mais pra frente, porque eu ainda preciso entender essa ideias aí, eu só estou com a ideia do romance. 

Como você sente que está a recepção de Amaríssima em Salvador?

Rapaz, eu achei que não ia bater tanto, porque é um experimento, né? Eu também não estava nem aí se não batesse, eu iria continuar tentando. A questão é que, enfim, me bateu essa epifania de fazer um disco com essa abordagem, com esse conceito e com essa pesquisa. Eu não achei que ele fosse ser tão abraçado pelo público por ser algo tão novo, algo de que não se tem muita referência no Brasil. Não tem muitos artistas fazendo o que eu fiz em Amaríssima, da forma que eu fiz, da forma que isso foi feito.
Porque tem outras pessoas que já se arriscaram em atualizar, deixar o baiano de forma neo, de forma nova. Mas eu não achei que fosse ser tão bem recebido assim, não. A galera balançou muito, a galera gostou, está curtindo. Os shows aqui estão lotados, um fervo. Salvador inteira abraçando, a Bahia inteira abraçando. Só quero que cresça mais. É o que a gente sempre quer, né?

Com certeza. Para finalizar, o que os fãs podem esperar de você até chegar a hora certa de um novo disco, já que você ainda está com lançamentos do outro ainda pra fazer? Em termos de show ou de circulação também.

Ah, sim. Eu tô num momento de arriscar agora. Podem esperar muita música com liberdade artística. Pode esperar muita música, outro show, a gente vai fazer uma nova turnê aí com Amaríssima v2. E muitas colaborações interessantes também, com artistas que eu conheci aí recentemente, Luccas Carlos, até com Carol Conká também, até com Duda Beat.
Quero muito também lançar umas músicas que eu tenho com Luedji [Luna], umas coisas assim. Então podem esperar muita música, troca espontânea, muita vida. Coisas boas, no geral.

A mulher tá trabalhando.

A mulher tá trabalhando. Ela não para de trabalhar. Ela ama com o que trabalha. Que bom. Que bom demais.

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Cena 1
Na rodoviária de Recife, mulher branca tenta impedir homem negro a ter acesso a uma poltrona isolada das demais e para a qual ele havia pagado uma taxa adicional, dando-lhe o direito de reserva. O comando da mulher, disparado de uma poltrona conexa à outra — quer dizer, de uma condição que lhe negava, economicamente, o privilégio da escolha —, era preciso: ele poderia alojar-se em qualquer uma — chegou mesmo a apontar uma ao lado de outro negro —, menos a colateral a ela. 

Cena 2
Distraído (para o mundo e para a transparência que nele há), homem negro espera suas malas surgirem na esteira de bagagens no aeroporto de Salvador, Bahia. Casualmente, deixa correr as vistas para o lado esquerdo do saguão, quando percebe uma mulher branca, com uma criança de colo nos braços, ao lado de um homem branco — entregue ele também à uma distração própria —, do qual ela se afasta para avançar em sua direção, tão logo apontar as suas duas malas e ordenar, sob a dispensa de qualquer protocolo de urbanidade, para que eu as retirasse da esteira. Pego de surpresa, o homem negro prontamente obedece, para logo constatar, numa surpresa que adoece, que ela viajava junto a seu companheiro.

Cena 3
Num dia bastante especial, homem negro deita-se na cadeira do dentista (um homem branco de cabelo ruivo e rosto pintado de sardas), boca escancarada.

Dentista, que, sentado em sua cadeira, já começava a operar seu dente: Está alegre, bicho?! Nem precisei pedir para você abrir a boca um pouco mais…

Homem negro: Feliz demais!. Resolvi parte grande da vida: passei num concurso público para professor.

Dentista: Massa. Do município?

Homem negro: Não.

Dentista: Concurso do Estado.

Homem negro: Não, fui aprovado para a universidade federal.

Dentista, enquanto interrompia por um instante o procedimento, como se quisesse assimilar melhor o que ouvira: Federal federal ou federal rural?

Homem negro, cuja mínima expressão que pôde fazer sugeria que nunca havia refletido sobre as instituições sob essa diferença: Federal federal …

Dentista, após alguns segundos que tomou para deglutir: Certo…

Começa a curvar-se novamente sobre a boca do homem negro, mas se ergue abruptamente: Mas foi para efetivo ou substituto?

As cenas acima são todas atualizações do evento racial, e dizem sobre a impossibilidade de satisfação negra, sobre o que impede de se fazer desse estado ou condição (estar satisfeito) um valor e justa medida para os racializados. Essa impossibilidade tem a mesma idade do mau encontro colonial, inaugurado entre nós no século XVI, e, desde lá até agora, traduz a poética que desencobre a pele negra — uma das superfícies abissais excretadas pelo mau encontro —, e determina sua economia no mundo. Por razões econômicas, será proveitoso recuperar aqui certa formulação que já ofereci sobre o que seja o mau encontro e suas condições de possibilidade a partir de seus efeitos produtivos:

O mau encontro colonial produz, a partir de uma vantagem bélica, uma primeira divisão do sensível, assentando uma assimetria radical entre os homens, que é, precisamente, a assimetria no acesso aos recursos energéticos. Desse momento em diante, a vida dos subordinados fica entregue à asfixia e à dissolução, muito embora a assimetria não seja capaz de impedir que a energia continue a atravessá-la e que nela se acumule ainda em excesso — a capacidade de trabalho e de procriação dos escravizados acusa esse acúmulo energético; mas o acúmulo se experimenta sujeito, então, a uma dieta de excesso mínimo.

Acontece mais que isso. Essa assimetria ocorre concomitante a uma dupla devolução ou redução do homem à existência fora de qualquer sentido. Na condição colonial, o sujeito colonizado é reduzido, por uma via, a mero recurso: pura energia em estoque, reserva disponível. Sua condição é bem expressa na imagem de um sol negro: fonte provedora de energia sem contrapartida; luz negra apropriada como parte maldita, somente. Por outra via, trata-se de suspender a fala para fazer emergir o puro animal ou o infante. Neste sentido, a questão de Gayatri Chakravorty Spivak sobre a possibilidade do subalterno falar deve ser entendida dentro da perspectiva clássica de Aristóteles sobre o modo próprio como o escravizado participa da comunidade dos falantes.

O que essa formulação organiza e encadeia, de novo, são os registros sobre as condições do nosso descaminho para marcar que haverá mau encontro, portanto, onde quer que se exerça — mais fundamentada em sua dimensão tecnológica que epistemológica — uma partilha do sensível e do abstrato cuja assimetria (da partilha) e posicionalidade dos seus sujeitos — daqueles sobre os quais se projeta a experiência de parcialidade e desapropriação — já respondem a essa dupla redução (à pura energia para consumo e ao puro animal inscrito no interior da política sob a figura do negativo).

Certamente, tal ponto de vista sobre o mau encontro acusa sua fundamentação econômica, mas cujo entendimento e cujas consequências não param ou se esgotam nos postulados da economia clássica — aqui tanto faz se liberal ou marxista, já que o que importa é a insuficiência explicativa do princípio ou primado da utilidade. Aqui, em particular, estamos mais próximos dos dados de uma economia geral e cósmica — nos termos de George Bataille —, onde o uso improdutivo — às vezes, antiprodutivo — do negro e, antes dele, do escravizado é tão fundamental quanto seu uso no interior da economia racional.

Desencobrindo o mau encontro sob essa circunscrição, a expressão “dupla redução”, que dizer de seu funcionamento diagramático, de um paradigma — complexo, em sua mistura desequilibrada de relações de poder e de estados de domínio que atravessa a experiência singular de dominação inaugurada pelo escravismo moderno, e cuja atualização só é possível pela sua capacidade de atravessar — e, em muitos casos, insuflar — corpos e posições dos sujeitos.

Definidos, pois, os termos do mau encontro (vantagem bélica, dupla redução, assimetria fundamental, os sujeitos que ele cria e posiciona), retorno às cenas para demonstrá-las como que atravessadas por sua economia.

Ora, a primeira cena demonstra que, decorridos mais de meio século desde o mau encontro, continua a figurar próprio ao ser branco o poder de comandar a partilha do sensível que nos cerca a todos. Esse poder é anterior — e superior — à regulação econômica (nesse caso, sobre as condições para pôr a poltrona sob reserva), já que o ser negro já se encontra desde sempre fora da cena do valor.

A segunda cena deixa mais evidente que a (in)satisfação negra é anteparo ou condição de possibilidade da satisfação branca. Na cena, o que se atualiza é a posição do negro como pura energia sob reserva, o que é o mesmo que dizer: disponível para o uso (ad hoc) sem medida (o nome disso é abuso).

A terceira cena, o espanto, a dificuldade de registrar o que se ouve (decidi a minha vida), a necessidade de acomodar essa escuta difícil (federal federal) e a experiência ainda hoje tão monocromática (de pertença institucional), tudo ali diz sobre o quanto figura antinatural ou contra instintivo verificar uma cena ou episódio negro de satisfação — e que alcançado, faz do negro um ser incrível (não crível).

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Na rádio, anunciam-se desastres ambientais, população em estado de alerta, desmatamento. Esses ruídos são indícios da fase antropogênica em que nos encontramos. Embora isso não seja novidade, diante do ápice ainda incerto da crise global, nos vêm à mente as consequências das disputas territoriais e seus impactos nos ecossistemas, especialmente no que se refere às transformações e ao esgotamento das terras brasileiras.

Duplicidade, 2024.

Independente de nosso futuro, nos lembraremos dos montes cariocas nas melodias de Villa-Lobos, das estalagmites ecoando nas composições de Hermeto Pascoal, dos caminhos rurais interioranos de Agostinho Batista de Freitas e da urbanização vista pelas janelas de Djanira da Motta e Silva. Por meio dessas representações, vivenciadas por seus interlocutores, talvez as entenderemos como artifícios para evitar o esquecimento coletivo dessas territorialidades. Mas como recuperar as sensações que paisagens extintas já trouxeram?

Durante a pandemia, Lucas Rubly (São Paulo, 1991) inicia séries de pinturas nas quais castelos de areia, bosques, lagos, flores e formas abstratas emergem como refúgios, lugares amenos e acolhedores. A trama das temáticas segue os vestígios da sua memória: os castelos de areia lembram a precariedade da casa em que cresceu, no bairro Vila Ivone, na Zona Leste de São Paulo, construída pelo bisavô e agora prestes a ruir. As casas sem portas nem janelas, sempre distantes, guardam as paisagens das viagens a Monte Verde na infância, quando um ideal de família ainda parecia possível; as flores em vasos remetem à contenção do selvagem, sintoma de uma lógica de violências sobre o natural. Mais recentemente, a abstração o descarregou da figuração anterior — um alívio que veio após um período intenso de confinamento e produção.

Para conceber ambientes externos ao doméstico, Rubly mesclou fotografias antigas às pinturas de outros artistas. Adequou-se, então, aos recursos tecnológicos contemporâneos, apropriando-se da inteligência artificial como ferramenta criativa, incluindo na sua prática a criação de um banco de imagens para serem processadas, filtradas em até três imagens, editadas no Photoshop e finalmente pintadas. Mesmo após o isolamento imposto, o artista manteve esse processo de pesquisa na sua produção: de representações inexistentes construídas pelo excesso de imagens para resultar na recriação de paisagens próprias.

Casa escura, 2024.
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“A tentativa de relembrar não é uma tentativa de reviver. A memória é sempre uma construção imperfeita, e essa imperfeição está também nos suportes, no preparo da tela, no desenho, na forma de mostrar” diz Rubly. Por isso, suas pinturas — por vezes realizadas em telas de algodão, em outras pintadas diretamente na madeira — têm escala pequena e intimista, confortável para os olhos acostumados à leitura das telas de tablets e celulares. O formato quadrado, pouco comum na pintura tradicional, pode vir a ser reflexo do repertório visual das redes sociais. Ao dispor as séries na parede, costuma embaralhá-las como um jogo de memória, com fragmentos de temáticas que, quando relacionados, formam narrativas cruzadas — elemento característico do mass media. O arranjo, somado às composições desalinhadas, dão ritmo à leitura das obras, como uma partitura musical a acolher o visitante dos ruídos externos.

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Castelo de areia, 2024.
Lago branco, 2024.

As pinturas, em trânsitos temporais e espaciais, permitem revisitar paisagens moldadas pela memória e pela tecnologia, ao mesmo tempo em que as despersonaliza. Morandi, Volpi, Lorenzato, Vila Ivone, Monte Verde, álbuns e cenas familiares são misturadas às imagens dos algoritmos para se tornarem referências particulares, quando listadas. Quem sabe um anúncio de vasos ou até uma obra de Aurelino; cada olhar reconhece algo familiar, absorvido no fluxo do dia a dia.

Parecido com a composição do haicai — poema conciso sobre temas simples, que atravessa tempos, lugares e movimentos artísticos sem perder o vínculo com a natureza e o ritmo cotidiano —, o trabalho de Lucas Rubly revela as camadas dessas apropriações e reformulações, deslocando-as de seus contextos originais.

“no que eu sinta
sim um pouco de papel
muito de fita
e um tanto de tinta
pego esse mundo
bato na cabeça
quem sabe eu esqueça
quem sabe ele enfim
haikai do mundo
haikai de mim 

(…)

no espelho
de relance
a cor do sonho
de ontem.
(…)”

Paulo Leminski, Ideolágrimas (1983),
poema do livro Caprichos e relaxos.

Inocência, 2024.

Assim como o eu lírico se enxerga no poema e captura o “mundo” com poucas palavras, Lucas Rubly constrói metonímias de sua solidão. Não por acaso, o haicai de Leminski intitula sua primeira exposição individual em 2024, na Galeria Verve, para unir o passado ao presente e ressaltar a relação entre o processo subjetivo de criação e os fragmentos de uma consciência coletiva.

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“Corromper a ordem é uma tentativa de subverter o que já está dado, de abrir brechas em sistemas que se apresentam como estáveis e imutáveis. Gosto de confundir, de embaralhar sentidos, de habitar espaços de suspensão onde as coisas ainda não foram totalmente nomeadas.” 

Sem título V.

No ateliê de Nati Canto, a ideia de cozinha é transfigurada em um território imprevisível, sensorial, alquímico. Lá, não à toa, o cozinhar vira um devir artístico. Pense em uma arte que não quer representar o mundo, mas fermentá-lo a seu modo. “Isso”, reflete a artista, “tem a ver com resistir a uma lógica de previsibilidade e controle que, muitas vezes, vem do mundo, das instituições, dos sistemas de produção. É como se eu precisasse me proteger desse chamado constante à conformidade.” 

Corpos orgânicos, ingredientes e resíduos alimentares deixam seus papéis habituais para se tornarem matéria escultórica. Nessa transmutação, a artista funde gastronomia, arte e vida em um processo de cocção simbólica e material. “No espaço da cozinha, que levo para o meu trabalho, encontro um terreno fértil para a ruptura com o que é certo e me jogo naquilo que escapa, que ainda está se formando e não pode ser facilmente categorizado. É uma forma de manter viva a poesia e a possibilidade de invenção.”

Sem título 1, da série Bituca (2024).

A cada nova série que apresenta, a artista tensiona o tempo e seu poder de transformação, trazendo à baila elementos em estado de transição: gelatinas pigmentadas com urucum, barbatimão, pães de massa morta, biosilicones, tripas artificiais, espumas. Com eles, faz da prática no ateliê ser regada de verbos herdados da cozinha, como assar, triturar, derreter, esfriar, coar, secar. Cada técnica carrega um modo de fazer e uma cosmologia, desafiando a fronteira entre arte e culinária. “Nunca vi transição entre arte e gastronomia na minha vida”, afirma. “Não acredito que somos feitos de interrupções tão delineadas. A insistência em definir com precisão todos os campos, seja ‘arte’, ‘gastronomia’ ou qualquer outra área, responde mais a uma ideia produtivista do que à forma como realmente vivenciamos nossas experiências.”

Exercício para o vazio, da série Comer ou ser comido (2022).

Essa fricção entre campos, e a recusa em fixá-los, é ponto central do incômodo que Nati quer provocar, sendo a dificuldade de “lidar com aquilo que não se pode classificar”, para ela, “uma das maiores dificuldades do pensamento hegemônico ocidental.” É de maneira proposital, então, que sua produção recusa a clareza. O que se vê, se toca ou se cheira nunca se entrega por completo. “Não me interessa controlar como alguém vai se envolver com o que faço”, atesta a artista em prol da ambiguidade da matéria. “O que me move é justamente a possibilidade de abertura, de provocar, de cutucar o outro.”

Sem título 2, da série Bituca (2024).

Ao invés de tentar dominar a matéria, Nati colabora com ela, aceitando a mutação. “Trabalho com matéria orgânica, e isso significa lidar diretamente com ciclos de vida e morte”, explica. “Mas não se trata de algo que simplesmente ‘desaparece’. Entendo o processo como um corpo. Assim como nossos corpos, os biosilicones também envelhecem, se modificam com o tempo, enrugam e reagem ao ambiente. Pra mim, isso é parte da obra, não uma falha.”

Isso, como ela destaca, não é novo na história da arte. Cita como inspiração artistas como Eva Hesse, Heidi Bucher e Dieter Roth, cujas pesquisas com materiais instáveis e mutáveis seguem como referências poéticas, sensoriais e ainda vivas no campo das artes visuais. No centro desses universos, tanto no dela quanto no de suas referências, está o corpo, como um sistema em funcionamento que não apenas consome, mas assimila, filtra, transforma e expele. “O corpo que digere e o corpo erógeno, no meu trabalho, muitas vezes se sobrepõem. Ambos são corpos que sentem, absorvem, assimilam e expulsam. E é nesse movimento que vejo potência poética.”

Minas, 2024.
A sobra, 2024.

Entre o erotismo e o nojo, entre o instinto e a construção cultural, Nati tem um fraco pela zona de atrito. “O nojo, por exemplo, é um ponto de entrada importante, ele não é uma mera reação instintiva, mas uma construção social e política. Ele opera como um mecanismo de separação, de exclusão do outro. Só que o que é considerado nojento ou aceitável muda conforme os parâmetros sociais e temporais”, explica. “O que é excluído tem relação direta com corpos marginalizados: velhos, gordos, doentes, não-normativos… Me interessa esse tensionamento tanto material quanto simbólico e creio que a arte possa ser um espaço para explorar esse desconforto.”

Pensar no futuro da obra de Nati Canto é aceitar que ele não se dará por continuidade linear, mas por ramos que se bifurcam. “Atualmente”, reflete ela, “sinto que minha pesquisa atingiu um estágio muito sólido, porque desenvolvi uma fórmula com uma durabilidade e resistência mecânica muito alta, algo que considero uma conquista recente e extremamente gratificante. Isso abriu um leque enorme de possibilidades que antes pareciam fora de alcance.” Ou seja, há ainda muito a ser fermentado, cozido, contaminado. 

Nesses corpos-processo que Nati entrega ao mundo, há obras que respiram, envelhecem, apodrecem e, justamente por isso, continuam acontecendo. 

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Em um fim de tarde agradável, o chef Ivan Ralston recebeu o editor convidado desta edição, o sociólogo Carlos Dória, para uma conversa livre e ampla — como deveria ser toda boa conversa — dedicada à alimentação. Inicialmente formado em música, foi no restaurante da família que Ralston viu despertar o interesse e o talento para o mundo dos sabores. Após trocar um sentido por outro, graduou-se na Escuela Hosteleria Hofmann e acumulou experiência em restaurantes renomados, como El Celler de Can Roca e Mugaritz, ambos na Espanha, e RyuGin, no Japão, antes de abrir o seu Tuju. Reconhecido pelo público e por seus pares como um dos principais nomes da cozinha no Brasil, foi com a mesma qualidade e verve criativa com a qual concebe seus pratos que o chef tratou de temas como gastronomia, ética, ingredientes, Brasil e, claro, os acertos e erros que somente o amor à comida pode proporcionar.

A primeira questão que eu queria colocar é a seguinte: conheci o seu pai logo que ele veio do exílio e começou a operar uma lanchonete no Conjunto Nacional. Também fui colega do seu tio, Eduardo. Cheguei a ir uma vez à fazenda Terra Roxa, onde ele tem o negócio de goiabada. Você sempre respirou esse ambiente culinário? E como é que você descobriu que tinha um cozinheiro dentro de si?

Ivan — Sempre respirei isso, com certeza. Talvez a primeira imagem mais marcante seja a abertura do [restaurante] Ráscal, em 1994, quando eu tinha nove anos. Nesse dia, lembro de queimar os crèmes brûlées. Eles me deram um maçarico, “fica queimando aí”, e eu fiquei me divertindo. Então sempre estive no universo dos restaurantes. Agora, meu sonho não era ser cozinheiro, mas ser músico. No colégio, era apaixonado por jazz, queria ser o Jaco Pastorius, o baixista. Mas não tinha aptidão. Até estudei numa escola de música nos Estados Unidos. Eu era um músico bem medíocre, não me destacava em nada. Nos Estados Unidos, você consegue fazer três semestres por ano, então terminei a faculdade com vinte anos. Quando voltei, fiquei alguns meses na casa dos meus pais, e meu pai, aquele pai judeu bravo, falou: “Você não vai trabalhar, cara, vai ficar aí tocando baixo o dia inteiro? Olha, semana que vem você começa no restaurante”. Lembro que, primeiro, eu fui trabalhar no Ráscal, com a Nádia, que até hoje está lá. Foi uma experiência muito legal, mas chegou uma hora que meu pai entendeu que eu precisaria trabalhar em um restaurante que não fosse da família para poder me desenvolver. E, na época, o Maní era um restaurante icônico na cena gastronômica de São Paulo. Foi uma experiência incrível, passei dois anos trabalhando lá. Só que eu nunca tinha feito faculdade de gastronomia, e a Helena [Rizzo] sugeriu “Ivan, deixa eu te dar uma dica, vai estudar nessa escola em Barcelona que, quando eu fui fazer estágio lá, era onde eu queria ter estudado”.

Qual escola?

Na Escuela de Hostelería Hofmann. Por influência da Helena, acabei indo lá fazer faculdade e depois fiquei mais um tempo trabalhando. Foi isso, acho que o cozinheiro talvez estivesse dentro de mim por tudo que eu vivi, mas nem valorizava tanto.

Interessante. Você fez essa trajetória, e, hoje, que tipo de gastronomia acha que faz?

A gente abriu o restaurante [Tuju] em 2014. Eu era aquele tipo de cozinheiro que se formava fora do país e chegava com um nível técnico razoável, não excelente, longe disso, mas razoável, e queria mostrar tudo que tinha aprendido. Acho que, num primeiro momento, a culinária que eu fazia era muito inspirada em coisas de fora. Pegava algo que havia aprendido no exterior e decidia que iria usar a jabuticaba no lugar. Essa era a minha cozinha, em que a brasilidade se encaixava através dessas possibilidades, talvez até uma cozinha superficial, porque era pouco flexível e muito parecida com o que se via lá fora, apenas com variações de ingredientes locais. Hoje, acho que o que eu faço é cozinha de mercado. E comida boa.

De mercado no sentido que o Paul Bocuse coloca?

Não, eu realmente vou três vezes por semana comprar peixes, frutos do mar e grande parte das verduras que a gente usa no cardápio. Eu vou bastante na Liberdade, numa peixaria chamada Fenglin, vou em algumas lojas de verduras de lá, que eu gosto bastante, vou nas feiras da Mourato. Enfim, eu frequento os mercados, vou passeando atrás de produtos, todo dia. Construo o menu a partir disso. Claro, como estou bem mais maduro, depois de dez anos, a comida é mais gostosa também.

Aproveitando que comentou, você acha que há essa demanda para os chefes de abrasileirar o que aprendem lá fora? Quer dizer, essa coisa de aterrissar na brasilidade? Eu pergunto porque isso está no livro Cozinheiro nacional.

Ivan — Sim, se você parar para pensar, a demanda por comida italiana em São Paulo é muito maior do que a demanda por comida brasileira, concorda?

Claro.

Os restaurantes italianos, no geral, estão bem mais cheios. Agora, eu também acho que tem algumas áreas do conhecimento humano que o Brasil se destaca culturalmente, num nível de excelência alto. Acho que a culinária ainda não é uma delas. O Brasil se destaca, por exemplo, na música. Você não acha que temos um repertório, uma estética muito própria? Acho que o Brasil se destaca também na arquitetura, por exemplo. Temos uma arquitetura entre as três melhores do mundo nos últimos oitenta anos. Você vê uma cidade como Brasília, que foi projetada do zero. O Tuju é uma tentativa de elevar a gastronomia ao que essas outras humanidades já conseguiram. Uma tentativa; não disse que é uma execução, é uma tentativa.

Você não acha que é tarde demais? Me explico: tem uma tese [Os chefs e suas criações] do Maurício Piatti Lages que é bastante madura sociologicamente. Ela demonstra de maneira bem convincente que os chefes hoje se formam num fluxo internacional, internacionalizados desde sempre. Quer dizer, o chefe não é daqui nem de lá, ele não tem nação, num certo sentido. Há uma universalização do discurso gastronômico. Você não se sente um cozinheiro do mundo, mais do que um cozinheiro brasileiro?

Eu sinceramente não me sinto um cozinheiro brasileiro, eu sou uma pessoa zero patriota. Essa coisa de Brasil nunca me pegou. Inclusive, apesar de eu ser uma pessoa de centro-esquerda, não de esquerda, eu acho que essa coisa de orgulho nacional é uma grande distração para a classe trabalhadora não olhar o que ela realmente devia olhar, que é ter uma vida boa. Acho que muita gente acaba se perdendo nisso. Então, respondendo, eu me sinto talvez muito mais paulistano do que do mundo, e muito mais paulistano do que brasileiro.

Mas do ponto de vista técnico, por exemplo, é difícil você estabelecer essa fronteira.

É difícil, mas tem casos de pessoas que… Por exemplo, hoje eu aprendi muito a respeitar cozinheiros sem formação, porque eles às vezes tem um olhar fresco para as coisas. Então você pega, por exemplo, o Michel Bras. Hoje a cozinha dele está mais conhecida, muita gente copia, mas, na época em que ele surge com aquilo, com uma cozinha tão vegetal, só alguém com a cabeça vazia poderia ir por esse caminho. Alguém que está tentando agradar críticos e guias jamais seguiria essa ideia.

Nesse sentido, é mais espontâneo, você acha?

Mais espontâneo. A espontaneidade é muito importante também.

Eu não conheço bem a biografia dele, mas ele é um cara que, quando desponta, já tem uma carga técnica.

Ele é um cara sem escola. Ainda mais na França, onde tudo é profissionalizado, isso é muito raro. Normalmente você entra com quatorze anos numa escola técnica para virar chefe, aí eles vestem você com aquela gola com a bandeira da França. A França tem um projeto nacional de comida. O Brasil não tem isso. E ele é um outsider desse projeto, é um cara que não sai daí. Em teoria, quando você tem um projeto desses, é esperado que a maior parte do talento do país venha dessa proposta. Então essa espontaneidade, essa capacidade do ser humano de criar coisas novas, foi algo relevante. Não sei agora, com a inteligência artificial, o que vai acontecer. Mas sempre surge alguma coisa diferente.

Vamos voltar pro Brasil. Se você pegar, digamos, até os anos 70, há um esforço muito grande de alinhamento com a nacionalidade, claro. E não apenas na gastronomia, também se pode ver na arquitetura, na música. Eu acho que essa dimensão nacionalista da cultura é incontornável. Depois, nos anos 70, aí voltando pra gastronomia com a nouvelle cuisine, você tem o relaxamento dessa exigência nacionalista, e acho que é nesse contexto que o Michel Bras consegue vicejar. Eu fiquei muito impressionado quando, nos anos 40, descobri o Paulo Duarte desenvolvendo um pensamento gastronômico que não existia antes. Nem Mário de Andrade tinha desenvolvido. E, dos 40 em diante, vemos uma separação entre o viés nacionalista e o viés internacionalista. Você teve também uma separação muito grande, que eu chamaria entre os ingredientistas — aqueles que veem no ingrediente uma materialização dessa ideia nacional —, que defendem que, afinal de contas, o cupuaçu é nosso, ninguém tira; e também os tecnicistas.

Engraçado que essa primeira ideia que você falou, sobre “o cupuaçu é nosso, ninguém tira”, nas minhas viagens, eu tenho visto que é muito delicada, porque, de repente, você vai para o Peru e o cupuaçu também é deles. Ou você vai para a Venezuela e eles têm um prato muito parecido com a feijoada. Então isso aí é muito relativo.

Sim, é relativo, mas hoje tem um aparato público que se apropria disso. O próprio Estado passa a fazer o elogio dessas características, promover os ingredientes, as matérias-primas nacionais como ingredientes de uma culinária nacional. Isso é algo inevitável. Eu não gosto, mas é inevitável. A gente sabe que a Amazônia é de vários países. A formiga não está só no Brasil, não é? 

O pirarucu também não.

O pirarucu também não. Fazer desses componentes da flora e da fauna algo nacional, imbuído de nacionalidade, é um projeto ideológico muito claro…

E raso, vamos combinar. Fazendo uma comparação com a arquitetura, por exemplo, com o brutalismo, a cultura moderna brasileira conseguiu desenvolver uma linguagem própria, a ponto de você olhar e identificar qual arquiteto projetou determinada obra. Eu concordo com você, os ingredientes não são suficientes para definir uma nação culinariamente.

O tucupi é muito mais.

E o tucupi também, porque agora, por exemplo, os peruanos também estavam falando que tem tucupi lá, uma vez que os povos indígenas também estão lá. O que torna, eu acho, justamente algo mais profundo. Imagina se a gastronomia japonesa falasse que o produto deles é a soja. Não é a soja, é o shoyu, é o que eles conseguem fazer com a soja. Então o tucupi é um exemplo de um produto que eu acho que tem essa força de puxar a gastronomia brasileira, porque ele não é um ingrediente natural, ele é uma ideia de como tratar esse ingrediente.

Um trabalho humano.

Um trabalho humano. O tucupi tem essa força. Agora, teria que ter mais tucupi.

*

“o Brasil é mais pobre que a Argentina. É mais pobre que o Uruguai, acho que é mais pobre que o Peru, não tenho certeza. É mais pobre que a Colômbia, que o Chile. Somos os mais pobres da América do Sul.”

*

Se a gente pegar pela vertente da técnica, claro, fazer o tucupi é uma técnica elaborada. A mesma coisa na farinha de mandioca e várias outras coisas. Sem contar aqueles produtos naturais que não são naturais, mas são culturais, arqueologicamente. Porque tem muita coisa que é domesticada por povos indígenas há milênios. Existe essa coisa da técnica que a gente não presta atenção. Não há um livro de técnicas brasileiras. Pode ter vários livros de técnicas francesas, até de outros países, japonesas, mas não existem técnicas brasileiras.

Vamos fazer uma reflexão. Qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça quando falamos em técnicas brasileiras? Me cite três.

Moquém, tucupi, farinha de mandioca.

Paramos aí. Você falou três técnicas que, vamos dizer assim, são oriundas dos povos indígenas, correto?

Que já existiam quando os portugueses chegaram.

Você já parou pra pensar qual era o PIB per capita do Brasil antes da chegada dos portugueses?

Não existia PIB.

É, não existia PIB, mas, se você fosse calcular, devia ser altíssimo, não concorda? Tinha pouca gente num ambiente riquíssimo, com muito recurso natural, sem pobreza. Então, para desenvolver técnica, você precisa desse tipo de ambiente. É que, no nosso mundo ocidental, a gente ainda vê a riqueza somente como a riqueza capitalista, mas eu acho que existia um ambiente de riqueza no Brasil antes da chegada dos portugueses. E hoje o Brasil é um país muito pobre. O brasileiro fica zoando a Argentina, mas o Brasil é mais pobre que a Argentina. É mais pobre que o Uruguai, acho que é mais pobre que o Peru, não tenho certeza. É mais pobre que a Colômbia, que o Chile. Somos os mais pobres da América do Sul. Enquanto não resolver a questão social, eu não vejo no Brasil um ambiente propício para você ter um desenvolvimento de técnica. Onde isso está acontecendo? Está acontecendo nos países ricos, na Espanha, na França, nos Estados Unidos, no Japão, na Alemanha, na China. É isso, essa é a realidade. Aqui no Brasil os restaurantes vivem com a corda no pescoço. Enquanto a gente não tiver um crescimento econômico exponencial importante isso não vai acontecer no Brasil.

Recentemente você se envolveu num projeto de pesquisa dentro do Tuju, um centro de pesquisas voltado a democratizar os estudos que fundamentam a prática gastronômica. O que você espera dessa atividade? Olha, me corrija se eu estiver errado, mas eu vejo nas ações dessa proposta, em um primeiro momento, apenas a finalidade de alimentar o Tuju, e não uma dimensão pública, digamos assim.  

A primeira obrigação é alimentar o Tuju, sem dúvida. Não vou ser hipócrita, os primeiros trabalhos que foram feitos nesse centro de pesquisa foram para catalogar a sazonalidade dos alimentos, que era algo para ser muito simples, mas não existia antes.

Algo parecido com o que fez o Virgilio [Martínez, chef peruano]?

Não, o que o Virgilio fez no Peru tem outros critérios. A gente quer saber algo mais básico, saber que época do ano tem jabuticaba. Isso não tinha sido catalogado. Então é uma coisa muito simples, mas que nunca foi feita. E o objetivo disso é que a gente soubesse no Tuju qual hora a gente deveria usar cada produto. A gente não sabia.

Quer dizer, ele visa suprimir a ignorância do Tuju.

Totalmente. Hoje a gente sabe muito mais do que sabíamos há três anos. Longe de saber tudo, claro, mas sabemos que devemos usar manga em determinada época do ano, por exemplo. Sabemos que a sazonalidade da lula está no mar, então deve ser usada em tal época do ano, quando conseguimos ela pescada na costa, na água quente, que é o ambiente propício para a lula se reproduzir. Assim ela chega mais fresca. A gente sabe que tem olho-de-boi, por exemplo, pelas correntes marinhas, também nessa época do ano. Até tem o ano inteiro, mas é nessa época que ele está gordo. Estudamos muito a parte do mar, das frutas e verduras. Hoje temos um bom conhecimento de em qual época devemos trabalhar com cada produto. Num primeiro momento, o projeto foi esse. Agora, nesse segundo momento, existe uma missão de tornar esse conhecimento mais público, fazendo com que o restaurante preste um serviço para a sociedade. Às vezes, quem olha de fora tem uma imagem extremamente superficial e elitista do nosso restaurante. Mas um restaurante como o nosso trabalha com pequenos agricultores, ajuda a formar em torno de trinta cozinheiros por ano, que passam por aqui no programa de estágio. Honestamente, a empresa é lucrativa, e acho isso essencial, pois recolhemos bastante imposto, e isso ajuda o país. Vamos ver o que vai sair disso. A ideia é oferecer cursos que não sejam caros, que as pessoas possam entrar no universo do Tuju. Elas podem não ter R$1.100,00 para pagar num jantar, realmente poucas pessoas têm, mas quero que, de alguma maneira, elas possam desfrutar e aproveitar esse ambiente de uma outra forma.

A pesquisa, você me disse, é um primeiro mapeamento de sazonalidade. Talvez de ecologia, correntes marinhas. Mas eu lembro de um jantar aqui que tinha de boi curraleiro até navajas, que você descobriu no Rio Grande do Sul. Essa diversidade, como ela é? Planejada, empírica ou você tem um propósito, por exemplo, de descobrir, além do curraleiro, outras carnes nacionais?

Depende. Algumas descobertas caem no meu colo, porque aparece alguém e me diz, “estou fazendo isso aqui”. Outras, eu realmente encontro, como as navajas. Hoje, o nosso principal fornecedor, aquele com que gasto mais dinheiro, é uma peixaria de chineses na Liberdade. Você sabe que São Paulo, o Brasil, teve uma migração chinesa muito grande nos últimos dez anos. Esse pessoal está chegando com uma mentalidade moderna, porque a China é um país muito desenvolvido atualmente. Então eles querem tudo vivo, com qualidade excelente, que eram condições que me faltavam dos produtos do mar. Esse pessoal consegue me suprir disso. Olha a importância da imigração e olha o momento que a gente está vivendo, em que você vê o presidente dos Estados Unidos expulsando os imigrantes. Eu tenho certeza de que ele é um símbolo da decadência americana. Porque a imigração, na verdade, traz diversidade, riqueza, trocas. E que bom que o Brasil ainda é um país que aceita imigrantes e promove encontros, essa troca positiva. E, por fim, algumas descobertas são apresentadas por colegas, como, por exemplo, o curraleiro, que chegou pelo Rafa Bocaina. O Rafa é um cara que se interessa muito pelo universo das carnes. Ele falou “Ivan, encontrei uma carne”, e a história por trás é muito interessante. Foi, realmente, a primeira raça de vaca que se estabilizou no território nacional. Eu não vou comprar somente porque a história é boa, claro. Antes de tudo, tem que ter qualidade. Então tem vários jeitos de descobrir as coisas, você tem que estar antenado, de ouvido aberto e atento.

A gente poderia falar, se fosse na música, de harmonia. Mas quando o assunto são os sabores, como é que você vê essa questão hoje? Eu tenho em mente, por exemplo, aquela sua entrada de caviar iraniano com curau. Você acha que é uma coisa da gastronomia brasileira moderna? O que te moveu a aproximar os dois sabores?

Primeira coisa: quando resolvi reabrir esse restaurante com a Katherine [Cordás, sócia-diretora do Tuju], uma das coisas que eu falei que não tinha feito e que queria fazer era trabalhar milho e mandioca. Porque, engraçado, apesar do milho ser a cultura principal no Brasil, junto com a mandioca, a gente não se apropria tanto disso no discurso como outros países, como México e Peru, por exemplo. A ideia de juntar vem do meu gosto por provocar. É um curau com um pouco de gelatina, sem o caviar. Talvez as pessoas achassem aquilo ali vulgar, que não poderia estar num restaurante desse nível. E a minha provocação é essa.

Lá atrás, há pelo menos vinte anos, o [Alex] Atala me falou algo semelhante, “se eu não puser foie gras…”

Não, mas não é no sentido de que se eu não puser foie gras as pessoas vão reclamar. A minha visão é outra: se eu colocar, então é que elas vão dar valor para o milho. E vou te falar, mais de uma vez cheguei a ouvir de clientes “Muito bom esse prato. O milho é melhor que o caviar”.

Gente pretensiosa [risos]. Mas o que o Atala apontava, acho que com razão, é que você tem uma pequena burguesia que frequenta os nossos restaurantes que demanda a presença desse valor agregado nos pratos. Esse valor é o foie gras, é o caviar, alimentos e ingredientes que, no universo de valores dessas pessoas, faz sentido e contamina, digamos assim, a experiência.

Nesse sentido, eu me inspirei muito na arquitetura brasileira, porque um dos desafios, como eu disse, era criar um senso estético único. E acho que o Tuju tem conseguido. Isso tem a ver com o êxito que o restaurante tem tido. Uma regra que eu coloquei aqui é: algo só vai entrar no prato se tiver uma utilidade, seja ela gustativa ou em termos de textura, para melhorar esse prato. Você está falando e tem toda razão. A pequena burguesia, vamos chamar assim, ela quer o show, ela quer o nitrogênio, ela quer as flores, ela quer uma estética que já existe fora do Brasil. O que eu quero é justamente o contrário. Eu quero apenas o que é preciso para aquele prato. Às vezes, escutamos elogios que eu não gosto. “Nossa, foi muito bom, nem parece que estou no Brasil”. É bem desagradável, mas as pessoas falam achando que a gente vai achar legal. Na verdade — e eu não falo isso no sentido nacionalista —, as pessoas que fazem esse país são capazes de produzir coisas incríveis.

Você acha que esse nível de consciência de trabalho, em restaurantes como o seu e outros dessa categoria, como o da Helena Rizzo, o do Alex Atala, etc., vão ter algum impacto na alimentação popular? Impacto estético.

Com certeza. Eu acho que o impacto vem não apenas dos restaurantes, mas também do mercado de luxo. Isso é comprovado, impacta o mercado mais popular, seja em moda, em arte, em gastronomia.

Em gastronomia, fale alguma coisa que lhe ocorre, além do dadinho do Mocotó.

Foi a primeira coisa que eu pensei, eu já estava com o dadinho em mente. Posso dizer várias, mas quero um exemplo provocativo. Veja o sushi, ele surge como algo caríssimo, para poucas pessoas. A partir disso, se desenvolve no Brasil, goste ou não, um estilo próprio e popular de fazer sushi, que vai com cream cheese, goiabada, seja o que for, mas que é uma expressão do que antes era somente para os ricos.

Está no buffet das churrascarias.

Está no posto de gasolina. 

O temaki é uma invenção brasileira.

Do jeito que fazemos, ele se torna brasileiro. Assim como esses sushis são brasileiros. Às vezes, as pessoas mais ricas debocham, sem perceber que é uma expressão popular, como a lambada. É o resultado de como o brasileiro entendeu determinada comida e criou a partir dela.

Você tem a perspectiva de criar algo que tenha esse lugar na alimentação?

Olha, sabe que, com quarenta anos e dois filhos para criar, as minhas ambições são bem mais modestas. Eu só quero que o restaurante seja rentável, que esteja cheio, que as pessoas que trabalham aqui estejam felizes. É evidente que produzir algo único ajuda nesse sentido. Agora, quem tem que falar se a gente faz algo único ou não são os clientes.

Claro. Você sente, da parte do público, alguma estima diferenciada por algo em particular?

Curioso perguntar, porque sinto que — lembra que você comeu e adorou a panacota de milho com caviar? —, temos tido sucesso com o prato de milho com caranguejo. É uma espécie de molho, uma sopa de milho com caranguejo. E, no menu anterior a esse, tinha lagostim com pamonha.

Milho de novo.

Milho de novo. A gente tem tido êxito em conseguir demonstrar que é possível fazer com milho uma comida legal, sofisticada, leve e saborosa.

E que é bem paulistana. Se você estivesse no Nordeste, provavelmente a mandioca falaria mais de perto. Interessante.

E esses pratos foram considerados pelos clientes o melhor de cada um dos menus.

Queria voltar e comentar o caso das navajas. Tudo bem, você encontrou no Rio Grande do Sul, mas elas me fazem pensar imediatamente no turu.

O que é turu, desculpe?

É um marisco.

Já sei, aquele que dá no tronco.

Exatamente, ele é parente da ostra.

Tem na Amazônia, não é?

Isso. Quando é a hora de ir atrás do turu? Ou essa é uma tarefa do Thiago Castanho?

Eu acho que é uma tarefa dele, que está na Amazônia. Na minha cozinha, 90% do que eu uso é comida de mercado paulistano. Eu não faço uma comida que me exige viajar pelo Brasil inteiro para procurar ingredientes endêmicos. Não, eu faço uma comida com produtos do agricultor que tem um sítio em Mogi, de outro que pesca peixe em Ubatuba, na Ilhabela. É uma proposta muito mais modesta. O Brasil tem esse desafio de ser um país continental, e, por isso, é difícil alguém realizar o trabalho como o que o Virgilio fez, de pegar cada região do Peru e botar isso no menu, porque o Brasil é maior do que a Europa. Então é impossível, a gente vai precisar repartir, ninguém vai poder ser dono da gastronomia brasileira. Não deveria ser assim, e não é.

Pois então, você cai num dos temas do Modernismo. O Mário de Andrade procurou expressar uma culinária nacional. Assim como o Câmara Cascudo, ele tinha um pensamento antirregional muito forte, eram muito militantes dessa visão, ao contrário do Gilberto Freyre. Você acha que o cenário futuro vai ser assim, de uma gastronomia nacional diferente, ou vai ser uma federação de gastronomias regionais?

Uma federação de gastronomias regionais, porque o Brasil é muito grande. Não regionais no sentido à paulista, em que a gente sabe que a comida do interior de São Paulo se torna igual à de Minas. Regional nas expressões, sem fronteiras ali.

Regional de verdade, regiões culinárias.

A tendência, na minha opinião, é nos tornarmos diferentes inclusive linguisticamente. Daqui a duzentos anos, devemos estar falando línguas quase diferentes entre Norte e Sul. O Brasil de hoje não tem esse projeto nacional, e acho isso bom, porque justamente dá lugar a mais diversidade, a mais expressões.

*

“Eu não tive essa cultura, não sei dizer se o tucupi está bom ou ruim”

*

Você acha que a perspectiva de uma culinária afro-brasileira é muito mais se individualizar e se expressar autonomamente do que se integrar nacionalmente?

Acho que sim, acho que a integração nacional é uma mentira. De verdade. Sobre esse assunto, quem você acha que tem que fazer uma culinária afro-brasileira, eu ou um chefe preto de Salvador?

Eu acho que os pretos estão fazendo em todo lugar.

Exatamente.

Eu acho que a matriz disso está no Manoel Querino. Inicialmente ele que procura dar uma expressão fidedigna do regional fora da Bahia, criar um cânone para a cozinha baiana que possa se universalizar. O Jorge Amado mete todas as receitas nos livros dele. As nacionaliza, num certo sentido.

Sim. Veremos muito mais complexidade nos projetos se as pessoas pararem de querer ser algo e passarem a ser o que elas realmente são. Eu admito isso: quando cheguei, eu queria usar tucupi, queria usar esses ingredientes, até que um dia pensei “eu não tive essa cultura, não sei dizer se o tucupi está bom ou ruim”. Então essa não é essa culinária que eu tenho que fazer. Se alguém sabe, ótimo, vai lá e faz, mas eu não sei, então não vou fazer.

Mas é isso, Ivan, existe uma força difícil de nomear que diz o seguinte: você tem a tarefa de implantar um bom tucupi.

Acho que os jornalistas gostam muito disso, é uma categoria que acredita muito nesse projeto nacional.

Porque eles vivem num país imaginário.

Eles estão totalmente errados, essa é a realidade. Jornalista não gosta de ouvir que está errado, é uma das categorias mais mimadas do mundo.

É, eles esperam que você fale o que estão dispostos a ouvir.

O que estão dispostos e o que querem ouvir, é isso. 

Sim, mas tem poucos segmentos da sociedade, da vida cultural, capazes de vocalizar criticamente essas questões, inclusive a respeito da nacionalidade. Sem dúvida, quando você diz que o Peru tem isso, tem aquilo, hoje está havendo um recorte que é transnacional, e não nacional. É algo universal. Se pegar produtos como mate, por exemplo…

Eu acho que o projeto gastronômico do Peru, como muita coisa no mundo, é uma bobagem feita para americanos. É como as pessoas que vão para a Disney, naquele Epcot Center. Meus pais nunca me levaram, mas eu vou levar meu filho esse ano, porque ele está viciado em Star Wars. E, no fundo, acho que também estou a fim de ver com os meus próprios olhos toda aquela encenação estética da paisagem no prato. Aquilo é algo feito para norte-americano, que, para conectar o cliente com a natureza através da comida, coloca musgo embaixo do prato. No fim, você ainda coloca um chocolatinho para o cliente pegar.

Mas isso está lá no começo da nouvelle cuisine, não?

Isso é tudo publicidade, porque comida é tão direta quanto a arquitetura, no sentido de que a boa arquitetura é aquela que produz bons espaços para as pessoas viverem e interagirem, e a boa comida é aquela que provoca sensações interessantes. Inclusive, não vou considerar que é o que dá “prazer”, porque não acho que comida boa tem que ser somente o que é saboroso, gostoso, mas, sim, aquilo que provoca, que faz a pessoa se sentir melhor depois de comer.

Você se sente à vontade para falar um pouco dos seus colegas chefes de destaque? Helena, Alex, etc.

Sim. A Helena Rizzo é uma pessoa brilhante. O certo seria ela falar de mim, porque eu que fui o aprendiz dela, mas já que é o contrário, acho ela uma pessoa com um dom artístico, uma sensibilidade estética muito apurada. Por vezes, até foi mal-entendida, porque o público, no Brasil e no mundo, está em sua fase mais infantil — a mais infantil de todos os tempos. As redes sociais, essas sim, deixaram todo mundo muito burro. Você fica o dia inteiro consumindo conteúdo de quinta categoria e, depois, qual será a sua capacidade cognitiva para julgar o trabalho de uma pessoa tão sofisticada quanto a Helena?

E o Alex?

Vejo ele como o primeiro chefe brasileiro a ter um restaurante de fine dining num formato mais… Tivemos outros antes, mas eram franceses que usavam produtos brasileiros. Ele foi o primeiro brasileiro. É um cara que ama a Amazônia, gosta de viajar para lá, que tem uma conexão com o lugar, e acho ser a pessoa capaz de fazer um pouco dessa culinária também em São Paulo. E, claro, os estrangeiros têm muita mais curiosidade numa culinária amazônica do que num restaurante de cozinha de mercado em São Paulo. O Alex me falou que no Dom, se não me engano, 60% do público é estrangeiro. No Tuju, esse número não chega a 10%. 

E o Rodrigo Oliveira, do Mocotó?

Rodrigo é muito bom cozinheiro, e caso raro. No Brasil, são poucas as pessoas que conseguem progredir financeiramente. Eu conheço poucas, uma delas é meu pai. Meu pai é uma pessoa que nasceu pobre e enriqueceu. O Rodrigo é outra pessoa assim. Eu acho que sempre que tem alguém que consegue furar a bolha no Brasil, a gente precisa bater muita palma, porque é bem difícil.

Qual é o papel cultural que você enxerga na cozinha dele?

Ele faz uma culinária que define como sertaneja. Eu não sou um grande conhecedor desse tipo de culinária, mas sei que gosto de comer lá quando vou. Sei que ele criou, talvez, o prato mais copiado da culinária brasileira no mundo, que é o dadinho de tapioca. Cheguei a ver Albert Adrià fazer dadinho de tapioca. Lembra que eu te mandei uma foto disso? Então ele é um cara fantástico.

Tem algo interessante na linguagem dele, porque, seguramente, a maior comunidade paulistana é nordestina. Aí ele pega essa culinária e põe para um público burguês lá no fim do mundo. Eu lembro que a primeira vez que eu fui lá, com a Nina Horta, ela falou “eu te pego na sua casa”. Daí chega ela com uma van, ela alugou uma van para irmos. “Nina, por que você não falou? A gente pegava um taxi”, eu disse. “Não, eu não sei voltar de lá, então aluguei uma van”. Então era uma excursão, literalmente uma excursão com a saudosa Nina.

Isso é lindo. Ele, durante muito tempo — e acho que até hoje, mas em menor medida, até porque abriu um Mocotó aqui na Zona Oeste também —, fez as pessoas saírem da Zona Oeste, da Zona Sul, dos bairros mais nobres e irem até a Vila dos Medeiros. Isso é fantástico. Aliás, dizem que a definição do Guia Michelin dos restaurantes de três estrelas, não sei se você já viu, mas eles falam dos restaurantes que valem a viagem.

Porque tem que viajar.

O Mocotó era um três estrelas desses, porque as pessoas viajavam para ir comer no Mocotó e voltar.

Interessante. Você pega — na Europa isso é muito comum — os bons restaurantes fora da grande malha urbana. No Brasil, não funciona muito.

É, teve o Mocotó, que não está na Zona Central; teve o Restaurante Cepa, que hoje está em Pinheiros, mas surgiu no Tatuapé. Você tem projetos que deram certo nesse sentido. A própria Casa do Porco — é bizarro falar isso —, mas é porque o centro de São Paulo não é hoje o centro econômico de São Paulo, ele virou um lugar……

Virou uma representação do centro, alegoria central.

É, as pessoas saíam daqui para ir até lá para comer na Casa do Porco. Tem projetos, de tempos em tempos, que conseguem se destacar nesse sentido. 

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Um cafezinho com Alberto Renault

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“O som me interessa, a luz me interessa, a espacialidade me interessa. Todos os requisitos que alguma pessoa pode vir a querer ter no seu morar, eu sinto que conquistei na minha casa.”

Tomar café na casa de alguém é um convite para conhecer profundamente essa pessoa. Nossa casa é a casca que nos protege do mundo. Ela é parte importante de nossa cultura particular, e reflete a maneira como enxergamos e gostaríamos de nos inserir no mundo.

Aqui, dividimos casas de pessoas que gostam de casa. Que têm suas casas vivas, cheias de objetos que contam a história de uma vida, sem um lugar perene em seus espaços.

Alberto Renault é diretor de tv e documentários, e anda por aí de casa em casa há 15 anos, nos apresentando brasis diferentes dentro do Brasil. Com gentileza, poesia e competência, ele nos conta histórias de brasileiros que nos dizem sobre nós. 

E aí, como estão as coisas? Me conta o que tem feito de bom. Eu vi que vocês lançaram um episódio novo do programa no YouTube.

Tudo bem. É, estou trabalhando em uma temporadazinha de cinco episódios. Na semana retrasada estreou o com a Lia Siqueira, arquiteta. Amanhã, domingo, estreia um com projeto do Sérgio Rodrigues para a casa da Regina Casé. Nessa série, eu busco sempre ter o morador da casa. Por mais que sejam projetos assinados, ou são assinados por quem está morando ou a gente tem o morador e o arquiteto. No programa Casa Brasileira, que eu fazia, a proposta já era a de apresentar não apenas um projeto, mas a interação entre quem criava e quem fazia aquela demanda. Não existe arquitetura sem demanda, existe sempre para quem foi feita aquela obra. Estou editando e terminando de gravar essa série, e gosto muito, especialmente, do último episódio, que vai ser a Casa Cavanelas, um projeto do Oscar Niemeyer, com um jardim incrível do Burle Marx. 

Aí no Rio?

É, em Petrópolis. Já gravei essa casa para o especial Oscar Niemeyer, mas eu vou regravar para a série De casa em casa. Eu estou também em cartaz, circulando entre festivais, na Filadélfia e na Itália, com um filme, que é o Anna Mariani, anotações fotográficas. Ele está fazendo um circuito de filmes de arte e de arquitetura… E estou na preparação de roteiro de um segundo documentário, chamado Da oca ao concreto, onde eu conto a história do Brasil a partir das casas. Eu vou passando por uma oca, uma casa bandeirante, uma casa colonial, uma casa do Império, vou passando por todas as casas, vendo como estão um pouco hoje, até chegar num projeto moderno, senão contemporâneo. Estou pensando ainda o caminho aonde eu chego, mas então estou nos estudos dos textos desse roteiro.

A ideia é ser algo mais visual ou você também vai conversar com os moradores, algo mais histórico?

Para esse Da oca ao concreto, a gente está fazendo uma pesquisa de textos referentes a casas e suas épocas. Serão vozes em off e, eventualmente, a minha, que ilustrarão e acompanharão o percurso da câmera. Teremos textos literários, que podem ser mais epistolares, como cartas, textos em primeira pessoa, ou mesmo como um trecho d’A Moreninha, do romance que descreve uma casa em Paquetá, ou mesmo a carta de Pero Vaz de Caminha, que descreve uma oca. Serão textos históricos, daquela época, que fazem referência à casa. Não devemos ter entrevistas ou pessoas aparecendo.

Você tem narrado cada vez melhor. Está treinando muito?

Estou treinando. A gente é muito crítico consigo mesmo, mas acho que estou me acostumando com a minha voz, com a minha presença sonora nos vídeos, porque, realmente, eu não quero ser um apresentador, não me interessa isso. O que eu gosto de fazer é criar narrativa, conduzir, levar música. É o meu olhar que eu gosto de mostrar — desejo que as pessoas não olhem para mim, mas que olhem comigo. A linguagem, que eu fui desenvolvendo ao longo desses anos, é mostrar a casa no sentido mais amplo da palavra, porque não é só arquitetura, também não é só antropologia, não é apenas uma técnica construtiva, é um jeito de olhar para a vida.

De onde vem esse seu interesse por casas?

Freudianamente falando, acho que ele vem de uma infância, talvez, solitária. Eu brincava muito sozinho e isso me levava a construir mundos. Eu morava num prédio muito alto, e adorava passar por cada um dos andares para ver como era ali, o que havia naquele hall que não era o meu, onde ficava a casa dos outros. Esse interesse vem de alguém que é muito espectador. A vida foi me colocando numa posição de quem está observando. Então a casa é um dos elementos que eu adoro observar, assim como a natureza e o jeito que as pessoas se vestem. Vem de uma curiosidade, de querer procurar uma fresta aberta. Se alguém quer me contar algo, eu digo “conta logo, pelo amor de Deus”, eu sou extremamente curioso e interessado. Estamos conversando por vídeo e fico imaginando o que tem atrás de você. Vejo três luminárias e já penso, “será que é ali que ele lê?”. Tenho uma curiosidade plástica, estética e dramatúrgica. A primeira curiosidade sobre casas começou no meu quarto. Toda semana eu mudava a posição de tudo, mudava os quadros, os móveis e os brinquedos. 

A sua casa tem uma coisa que eu amo, que é uma casa que tem uma base branca. Qual você acha que é o papel do branco numa casa?

A minha não só tem a base branca como uma parede inteira vazia. Eu gosto muito do vazio e o branco é uma cor que sugere muito esse espaço. Gosto da possibilidade do vazio exatamente para poder preenchê-lo. Por sorte, tenho o privilégio de duas janelas para uma das vistas, que eu acho, uma das mais bonitas do mundo.

É bem impressionante.

Ainda coloquei espelhos na lateral das janelas para multiplicar essa vista, essa possibilidade de janela. Eu gosto da neutralidade do branco para que os livros, e qualquer coisa que entre aqui, possa acontecer. O branco é uma espécie de moldura serena para as coisas acontecerem.

A sua casa tem muitos objetos, muitos livros, mas ela não é uma casa cheia.

Tem uma brincadeira entre vazio e cheio, uma disposição bem minha do espaço. Não tem aquele desenho clássico de sofá, mesa de centro, poltrona em frente, essa estética que você pode repetir ad eternum em várias casas.  Naquele livro do Tanizaki, Em louvor da sombra, ele fala muito do espanto do oriental com a casa ocidental. Como pode ter uma fruteira em cima de uma mesa e, do lado, um quadro com frutas? A quantidade de coisas que tem enfeitando. Eu não gosto que os objetos estejam ali para enfeitar, e o branco ajuda as coisas a estarem ali por si só, enfeitando sem estarem propositadamente enfeitando, digamos assim.

Dá pra perceber que você tem muitos objetos, que, imagino, são objetos da vida, que você foi juntando em viagens. 

Sim, não tem nenhum objeto comprado para enfeitar. Se comprei um soldado numa feira em Macau, é porque queria trazer um pouco daquele lugar. Um objeto é, efetivamente, tempo e espaço. Ele me traz uma época da minha vida, traz um momento que eu pude estar ali, naquele lugar em Hong Kong. É um pedaço da minha experiência que está registrado ali. Mas aos 61 anos, estou bem menos acumulador de objetos.

Tudo que você tem está em uso, exposto, ou você guarda?

Na minha casa não tem gaveta ou armário. Tudo fica exposto. Esse sininho de cabra, por exemplo, é do sertão, quando estava filmando o filme da Anna. Mas a minha relação com os objetos é muito afetiva, como essa louça do Azumi, o restaurante japonês em Copacabana que fechou, ou esse potinho do Copacabana Palace. São objetos que realmente contam alguma história. Eu não sou etimólogo, mas a palavra “decorar” deve ter alguma relação com coração. Se não tiver, cai muito bem num texto.

O que a sua casa te oferece em termos de conforto e bem-estar?

Eu não seria a pessoa que eu sou, com as ambições que tenho, se não morasse aqui do jeito que eu moro. É um apartamento que fui comprando aos poucos. Comprei um, depois o outro, e juntei ambos. Financiei. Moro aqui há 25 anos e não pretendo mudar. Eu tive essa sorte, mas tem pessoas que gostam de mudar, que não têm muito apego onde estão. Normal. Eu, por outro lado, tenho muito apego. Quando pequeno, andava de ônibus, voltando do colégio, e pensava “quero morar aqui. Não, aqui. E nesse. E nesse”. Morar era um assunto que me interessava. Essa casa é um espaço sem paredes, algo excelente para quem mora sozinho. Eu sei que tempo está fazendo, não preciso olhar por uma fresta para ver como está o céu. Acordo muito cedo, então vejo o amanhecer e o anoitecer. Originalmente, esse lugar no Rio de Janeiro se chamava Fazenda da Lagoa. Pela manhã, às 6h, quando abro a janela, é um silêncio, um som de pássaros muito forte. Eu me sinto na Fazenda da Lagoa nos anos de 1800 e tanto. Para quem é ligado ao bem estar, seja ele sonoro, olfativo ou tátil, todos esses elementos estão reunidos aqui. O som me interessa, a luz me interessa, a espacialidade me interessa. E isso tudo me faz muito bem. Eu não tenho vontade de sair, e quando viajo, tenho vontade de voltar. Todos os requisitos que alguma pessoa pode vir a querer ter no seu morar, eu sinto que conquistei na minha casa. 

Qual é o papel da vista que você tem aí? Ela é bem impressionante

Diria que é para mim é essencial, mas, no geral, acho que a vista é bastante subjetiva. Às vezes, a pessoa não tem consciência de que certos elementos nos fazem bem ou que determinado lugar está nos fazendo mal. Quantas casas lindas e interessantíssimas eu visitei, por exemplo, numa favela, com uma vista inacreditável e a pessoa amava aquele horizonte. Quantas casas, também na favela,  tinham uma parede cobrindo a vista, e eu falava “pelo amor de Deus, faz um recorte aqui e você vai ter a visão mais incrível do que qualquer costa grega”, e a pessoa simplesmente não estava se importando com aquilo. É subjetivo no sentido de que podemos escolher não ter vista, buscando mais introspecção ou praticidade. No sertão, muitas pessoas não querem a vista, porque a claridade atrapalha. É relativo, mas, no  meu caso, ela não é uma paisagem a ser admirada, mas uma paisagem a ser vivenciada. Muitas vezes tenho a sensação de que estou no campo, em plena natureza. O Paulo Mendes da Rocha tem uma definição de arquitetura, uma das mais brilhantes que conheço, de que a arquitetura não é nada mais do que uma proteção em relação à natureza. Aqui eu me sinto na natureza, protegido numa caixinha, olhando para uma natureza exuberante. Quando perguntado, Lúcio Costa dizia que projetava prédios baixos, porque até o sexto andar uma mãe poderia chegar na janela e gritar para o filho: “vem, está na mesa, vamos jantar”. Moro no terceiro andar de um prédio de quatro andares, então é uma vista de detalhes, não um skyline como os de Manhattan ou São Paulo, e que às vezes podem ter a sua beleza. A escala aqui é humana, permitindo o detalhe. Abro a janela e vejo a coleira do cachorro ali embaixo. Vejo a pessoa que está passando na canoa, a roupa de quem está remando, de quem está correndo na pista em frente. Olho a rua para ver se as pessoas estão de casaco e isso me diz se está quente ou frio. É uma vista muito presente e sobre o presente. Pode parecer bobo, mas é um jeito de morar que as cidades poderiam replicar muito mais.

Sem dúvida. Você que rodou o Brasil com seus programas, sente que há uma diferença entre o morar em cada um dos estados do país?

São tantos estados e classes sociais. Diferença é difícil, porque o mundo caminha para uma pasteurização.

Você acha que temos ainda nuances? Ainda conseguimos encontrar alguma coisa que foi retida de originalidade regional?

Eu acho que talvez diferenças de construção. Das casas de palafitas da Ilha de Marajó para o Sertão Mineiro, efetivamente, a gente ainda tem marcas originárias vernaculares das construções desses lugares, ou dos telhados mais alpinos, digamos, no Sul. Ainda é possível rastrear algumas especificidades nas construções das casas, até nas populares.

Penso isso a partir do que você falou, das vistas de uma favela e de uma casa no sertão. Local, espaço, temperatura marcam diferenças?

Esses fatores influenciam, realmente. As casas do sertão têm janelas menores, pois o lavrador trabalha o dia inteiro na claridade, do lado de fora. De certa forma, também, a estrutura de uma janela impacta nos custos. Mas sinto que é algo mais de comportamento. Há uns 3 ou 4 anos, eu estava no Japão e observei que muitas casas tinham duas, três, quatro garrafas de plástico de água paradas na porta da casa. Eu não consegui descobrir o motivo. Corta. Três anos depois, estou no interior do Cariri, filmando casas com garrafas de plástico de água. Qual é a função delas? Para o  cachorro ou gato não vir fazer xixi. Corta. Rio de Janeiro, 4 anos depois, o porteiro aqui do lado, “de onde o senhor é?”, “do Cariri”, “por que essa garrafa de plástico está aqui?”, e ele me responde: “para o cachorro não vir fazer xixi”. É algo antropológico. Qual o circuito de uma coisa estar no interior do Japão, estar no Cariri e chegar no Rio? Esse circuito de jeitos de morar, bem ou mal, também é muito interessante. Mas a verdade é que a estética acaba bastante pasteurizada em quase todas as cidades em que fui visitar. No Nordeste, por exemplo, a maioria com porcelanato, muitas com grade, muitas com câmera, com parabólica. É incrível como alguém pode achar que aquela estética é superficial ou mundana, ou leve, mas estética é ética. A estética é agredida por uma ética distorcida. Ter o tanto que temos de grade, de arame farpado, de câmera. Veja como destruíram as portarias do Rio, que nos anos 60 tinham laguinhos, carpas, mosaicos, eram todas modernistas. Hoje você tem grades, tudo foi fechado. A estética brasileira foi totalmente agredida pela insegurança e pela falta de educação. Quando falamos de como o visual se reproduz nas cidades, todos os assuntos se esbarram. A gente está na época da praticidade.  Por que eu vou gastar dinheiro na manutenção da minha casa, se eu posso ter algo que é para sempre? Grade, parabólica, arame farpado. Nada é gratuito. Tem mil questões que passam pelo que é a estética do morar, sem que seja o julgamento do que é feio ou bonito. Aquela casa que é para rua, essa imagem icônica da porta aberta. Essa porta aberta acabou, e ela é uma metáfora. As ruas estão fechadas, as portas estão fechadas.

O que você acha que significa tomar um cafezinho na casa de alguém? Justo você, que deve ter tomado muitos pelo Brasil inteiro.

Nossa, quando não oferecem, eu peço. Até duas da tarde, eu sou viciado em café, mas depois eu corto completamente. Eu nunca sinto que estou indo gravar na casa de alguém, mas que estou indo visitar uma pessoa. Essa noção brasileira da visita resulta sempre em uma das primeiras perguntas: “quer alguma coisa?”, “aceita um copo d’água?”. Essa pergunta vem junto com a porta aberta. E, em muitos casos, ela acompanha cesta de pão de queijo, bolo, e muito mais. Inúmeras vezes eu aviso, “a gente não vai ficar para almoçar na casa”. Mas não interessa, me fazem almoçar independente disso. Nunca ser apenas um cafezinho me parece o jeito brasileiro de receber as pessoas, um movimento de muita gentileza, como uma deferência, uma comunhão. Algo, aliás, que me faz lembrar que sou péssimo, porque não tenho praticamente nada de café. Tomo café solúvel, não sou nem um pouco barista. Desde que seja sem açúcar, tomo café frio, meio gelado, no copo de requeijão.  Claro, prefiro quente, moído, vindo de um grão especialmente colhido numa sombra raríssima. Mas eu gosto tanto que tomo de qualquer jeito. O cafezinho é um hábito profundamente brasileiro, que, para além da energia e dos benefícios que proporciona, também significa carinho.

Objeto de carinho

Muitas peças da minha casa eu ganhei ou comprei em alguma viagem. Essas duas garrafas de porcelana da fábrica portuguesa Vista Alegre são as raras peças que comprei aqui no Rio, mais precisamente no Shopping dos Antiquários, em Copacabana. Adoro passear nesse lugar, e elas estavam na vitrine de uma loja fechada. Elas gritaram: me leva com você! Eu liguei para o dono da loja, que tinha uma eterna placa “volto já” na porta, e obedeci ao pedido delas. Faz alguns anos que elas moram comigo!

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Sob a pressão incessante do mundo contemporâneo, em que os dedos cibernéticos moldam hábitos, impõem tendências e pesam sobre nossas existências, a alimentação não saiu incólume. Entre listas que transformam o paladar em competição e dietas propaladas por influenciadores que fazem dos nutrientes um dogma, comer deixou de ser apenas uma necessidade fisiológica ou um prazer compartilhado. Chega a ser estarrecedor perceber que, no meio disso tudo, a alimentação se tornou um emblema de identidade, um afazer constantemente mediado por regras e validações externas. 

Diante dessa trama de significados por trás do simples ato de levar o garfo à boca, será que realmente gostamos do que ingerimos? Seria o prazer uma casualidade desta guerra?

A busca pela “melhor” experiência gastronômica, pelo “melhor” caminho para o “melhor” resultado não é novidade — as estrelas Michelin estão por aí há um bom tempo, e o mesmo pode ser dito sobre as dietas mirabolantes que pouco duram. Mas é inegável que o fenômeno ganhou proporções inéditas com a proliferação de influenciadores que desfilam por este ou aquele restaurante. O problema não se resume à exaltação do luxo e da exclusividade, pois a obsessão pela excelência nutricional ou alimentar, e isso é especialmente pernicioso, vai além dos restaurantes estrelados e se infiltra na alimentação cotidiana. É um processo artificialmente  impulsionado pelas demandas digitais, promovendo tendências efêmeras, dietas restritivas e modismos que fazem da comida um totem de reconhecimento social e distinção.

“A sociedade busca aquele alimento que vai curar e aquele que é responsável por trazer todas as doenças”, afirma a nutricionista Tarcila Ferraz de Campos. “Isso pode levar a um verdadeiro transtorno, uma obsessão pela alimentação saudável, na qual só determinados alimentos são permitidos. O problema é que essa visão rígida nos afasta da nutrição baseada nas necessidades reais do corpo e naquilo a que temos acesso. Hoje, há até uma categorização para isso: a ortorexia, um transtorno marcado pela obsessão por uma alimentação ‘perfeita’, capaz de trazer impactos negativos para muitas pessoas.”

O desejo por uma alimentação saudável pode se transformar em uma busca mais pautada pela aceitação social do que pelas reais necessidades do corpo. Há quem “se cerque de todos aqueles alimentos considerados saudáveis”, mesmo que não sejam os mais adequados para si. Essa escolha, no entanto, nem sempre está baseada em critérios nutricionais, mas sim no fato de que são “mais aceitos pela sociedade”. O comportamento, porém, pode oscilar: em algumas semanas, a pessoa segue regras rígidas; em outras, cede ao desejo de consumir tudo o que vinha evitando. Fechar-se para o prazer é, na verdade, um convite a mergulhar, de forma profunda e perigosa, exatamente nesse prazer que se tenta evitar.

À medida que evoluímos como espécie e passamos a criar cultura, consolidou-se a ideia de que comer pode, e deve, ser um ato de prazer — uma experiência sensorial que envolve sabores, memórias e encontros. No entanto, como esses momentos têm sido cada vez mais reduzidos a um mecanismo de controle e otimização do corpo, a coisa toda é quase como um retorno aos primórdios da humanidade, quando comer era apenas uma questão de sobrevivência, mas agora sob uma lógica que hierarquiza essa sobrevivência, determinando o que é mais válido ou aceitável. 

É claro que tudo está interligado. Conforme mais “besteira” foi sendo produzida pela indústria alimentícia — com níveis indecentes de açúcares, sódio e agrotóxicos —, mais restrições tiveram que ser impostas para que vidas mais saudáveis fossem vividas. Ninguém precisaria deixar de comer salgadinhos ou beber refrigerantes viciantes se eles não tivessem sido criados. Um fator foi levando a outro e, assim, os extremos começaram a se consolidar, tanto o da permissividade quanto o da proscrição.

Combinadas, as dietas da moda, a categorização rígida entre alimentos “bons” e “ruins” e a obsessão pela alimentação perfeita criam uma relação disfuncional com o ato de comer. É comum, inclusive, que o excesso de informação cause confusão. É como comenta Tarcila:  “Grande parte dessas dietas foca mais no ideal de corpo do que na saúde de fato, o que gera uma confusão alimentada por informações contraditórias: algumas recomendam cortar carboidratos, outras defendem o contrário; há quem pregue o jejum prolongado, enquanto outros o descartam. Quando a pessoa entra nesse ciclo de controle e não consegue sustentá-lo a longo prazo, essa contradição constante pode levar à frustração”.

Em muitos casos, a disputa entre os lobbies de alimentos e produtos se assemelha a um jogo de interesses. E, no fim das contas, quem sempre sai perdendo são as pessoas. “As dietas da moda surgem e desaparecem, muitas vezes trazendo promessas de soluções rápidas ou mágicas. Esses modismos acabam reforçando a ideia de alimento ‘mocinho’ e alimento ‘vilão’, sem considerar o indivíduo como um todo.” 

Estudos indicam que mais de 70% dos praticantes de musculação seguem perfis nas redes sociais que divulgam informações sobre alimentação, sendo que cerca de 45% relatam ter consumido suplementos específicos por influência das redes sociais. Quando falamos de alimentos em geral, o número passa dos 50%. Além disso, uma alta porcentagem das mulheres que praticam musculação sentem que seus corpos são inferiores quando comparados aos dos influenciadores.

Ou seja, como se não bastasse, essa mentalidade também alimenta, como os anos de prática de qualquer nutricionista mostram, a baixa autoestima e a culpa. “A crença de que certos alimentos são ruins ou responsáveis por algo negativo pode gerar sentimentos de culpa e vergonha”, afirma Tarcila, baseando-se nos seus mais de vinte anos de experiência. “No momento em que a pessoa consome esses alimentos, essa percepção pode levá-la a adotar restrições excessivas, desencadeando comportamentos prejudiciais. Isso pode incluir episódios de compulsão alimentar ou jejuns prolongados, pois ela passa a entender, equivocadamente, que se alimentar de forma saudável significa evitar o consumo.” 

A pressão para se encaixar em padrões alimentares impostos por tendências transforma cada refeição em uma escolha moral. Quem não adere a um estilo de vida ligado àquela ou essa alimentação é visto como descuidado; enquanto isso, quem segue à risca as normas da alimentação funcional muitas vezes subtrai do comer o prazer gustativo e afetivo. Nos extremos, não há vencedores. E é preciso lembrar: seguir esses padrões nem sempre significa ser saudável, assim como não os seguir não significa o contrário, porque “alimentos isolados não determinam a saúde”. Para manter um padrão alimentar equilibrado e um estilo de vida saudável, “é essencial valorizar a variedade e aprender a reconhecer os sinais de fome e saciedade”. 

A saúde alimentar, ao fim e ao cabo, vai muito além de nutrientes e calorias. Envolve bem-estar emocional, conexão social e respeito pelas tradições e preferências individuais. Do ponto de vista nutricional e de saúde pública, essa obsessão pela alimentação perfeita pode trazer consequências sérias: “acho que o mais importante”, afirma Tarcila, “é que existe uma questão totalmente desconexa entre o prazer e a cultura de se alimentar. Essas restrições não estão preocupadas com o prazer, as questões e os fatores culturais. Os hábitos alimentares não devem ser guiados por estímulos externos ou emoções. A gente precisa trabalhar a consciência: a que comida se tem acesso quando se tem fome, como incluir alimentos nutritivos e ainda fazer com que eles tragam prazer”.

O debate sobre a glamorização da alimentação e das dietas não é apenas sobre gosto, mas sobre o que significa comer em uma sociedade cada vez mais mediada por imagens e pelo consumo simbólico. A solução, felizmente, talvez seja mais simples do que imaginamos. 

“O foco deve ser comer bem, sem neuras, sem rotular alimentos como bons ou ruins. Podemos adicionar mais fibra, combinar com proteínas, distribuir as quantidades ao longo do dia.” Essa abordagem parece prática, mas a verdadeira dificuldade surge quando se trata de aceitar que essa forma de comer já pode ser considerada perfeita.

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Foi preciso muitos anos para entender o que Mick Jagger cantava nessa canção. Trata-se de um grito de desespero de alguém que nunca está satisfeito, sempre em busca, numa atitude voraz que o consome, aprisionado num movimento repetitivo, uma busca extremamente angustiante, que não leva a nenhum lugar. Mas é também sobre alguém que não desiste de tentar…Cause I try, and I try… Foi preciso envelhecer para me dar conta de que essa canção tinha muito menos a ver com prazer do que eu imaginava, embora o rebolado de Mick Jagger permaneça tão hipnótico que quase esconde a dor da letra para o ouvinte distraído por hormônios.

Quando mocinha, achava que, para ser feliz, precisava da festa mais cheia, do maior número de amigos, do corpo perfeito e indefectível, da praia mais distante, do constante agito, do excesso. Na juventude, ficamos presos a um ideal que empobrece o que a realidade nos traz. O presente é sempre insatisfatório e parece que o futuro sempre guarda um “a mais” que o hoje não tem. O júbilo da juventude carrega um imposto, uma espécie de maldição, uma fome e uma voracidade de ter tudo, que mais nos afasta de um tempo tão precioso do que de saboreá-lo. Acredito que, quando jovens, estamos mais preocupados com a euforia do que com a alegria, e confundimos esses dois estados. Tudo é muito, ao mesmo tempo em que nada é o bastante. Essa inquietude, essa energia dos primeiros tempos da vida, é importante, mas tem data de validade. Enquanto escrevo, me ocorre a pergunta: de validade ou finalmente de libertação?

Na obra Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911), de Freud, este descreve a dinâmica da relação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, estruturas fundantes de nosso psiquismo. Em resumo: nossa existência se dá nessa dualidade. O princípio do prazer está relacionado ao impulso de buscar a satisfação imediata e evitar a dor, refletindo os desejos primitivos do id. Essa parte da personalidade opera de forma impulsiva e busca gratificação instantânea. Por outro lado, o princípio da realidade surge como uma necessidade de lidar com o mundo externo. Ele representa a capacidade do ego de adiar a gratificação e buscar soluções mais realistas e sustentáveis. Dessa forma, o ego atua como um mediador, equilibrando as demandas do id a critério da realidade.

A eficácia do ego em regular os impulsos do id permite que o indivíduo funcione favoravelmente na sociedade, adaptando-se às situações e necessidades do ambiente. 

Existem buscas de satisfação que muitas vezes não confessamos nem a nós mesmos: elas provocam vergonha, são consideradas menos civilizadas, envolvem sentimentos que não são bem aceitos e podem ser mais brutais, gerando culpa, medo e inveja. Embora essas buscas de satisfação nos impulsionem, nem sempre conseguem ser abertamente expressas. Frequentemente, é necessário reprimir certos sentimentos para manter as escolhas que fazemos. Por outro lado, quanto mais reprimimos, mais intensa se torna a vontade de realizá-las. Nossos instintos tendem a ser persistentes e obstinados, e essa luta causa sofrimento. Assim, essa batalha constante gera uma tensão intensa: de um lado, a necessidade de satisfação; do outro, as regras, a moral e nossas decisões.

A busca pela satisfação surge de uma parte poderosa dessa psique inconsciente chamada id, que está em conflito com outra instância que exerce a censura, conhecida como superego. Este é igualmente forte e representa internamente a moralidade, as leis e os valores familiares. A civilização tenta controlar nossas buscas de satisfação, moderando tanto as sexuais quanto as agressivas, a fim de estabelecer certa ordem que proteja a humanidade de seus próprios instintos. Apesar das falhas da sociedade, o ser humano depende dela para se organizar de maneira relativamente eficaz.

O singelo filme Dias perfeitos, de Wim Wenders, traz essa oposição: um personagem jovem, cheio de planos, esfomeado, sempre apressado, e outro, num estado mais pacífico, mais contemplativo, que saboreia as pequenas coisas, que brinca com a sombra numa noite fresca, que sente o ar batendo no rosto quando pedala sua bicicleta no pôr do sol e que realmente escuta as canções, sua melodia, numa fita-cassete e não pula apenas para as faixas favoritas. Fiquei pensando se esses dois personagens não seriam a representação desses dois estados, um de um primeiro tempo da vida e outro já de um segundo, negociando com seus cabelos brancos, com dias mais simples, mais rotineiros, mas vívidos, com mais inteireza. 

Um dos maiores presentes que ganhei conforme o relógio do tempo correu foi aprender a me satisfazer com menos. Não preciso mais da melhor praia; basta que esteja limpa e não muito cheia para que eu possa me refrescar no banho de mar e sentir o prazer de caminhar descalça na areia. Hoje, troco feliz uma festa barulhenta por um café da manhã sem dor de cabeça e ressaca moral. Vejo meus filhos com saúde, podendo ir à escola, crescendo, brigando, rindo. Tenho o privilégio de trabalhar com o que amo. Chego em casa cansada, mas com a certeza de que produzi. Um livro em silêncio conversa mais comigo do que jantares lotados em restaurantes. Atualmente, uma mesa de bar é muito menos atraente que um bom filme. Troco, num piscar de olhos, uma festa cheia de desconhecidos por uma conversa de intimidade numa caminhada. Gosto de sair de encontros com a alma cheia e não esvaziada, e por isso escolho quem quero encontrar. Percebi que borboletas no estômago são deliciosas, mas a tranquilidade de amar e ser amada me faz dormir tranquila e sem angústia. E pronto, sou feliz. O que não significa que estou feliz sempre, mas que sou contente, no sentido de conter aquilo que possuo, de sentir que é meu, que me cabe e que me pertence. Por isso, cuido, zelo, protejo. Reconheço que aquilo que tenho me pertence por um tempo limitado, e por isso tenho urgência.

Depois dos quarenta, algumas perdas surgem, o corpo já não reluz colágeno, pessoas partem de nossas vidas, alguma saudade permanente nos acompanha, a fome do id foi saciada em alguns momentos, mas em outros teve de ser calada, sublimada, ressignificada e finalmente elaborada.

Outro dia, ouvindo um podcast sobre o tema, os apresentadores diziam que antes dos quarenta a gente só ganha da vida. E que, depois disso, começa a fase da barganha, da negociação perante as perdas. Achei bonito pensar que, a partir daquilo que perdemos, podemos finalmente ganhar, no sentido de usufruir e aproveitar. Essa negociação com o que sobra nos mostra que certas belezas se revelam a partir das fendas e das partidas. Cresci e apareci com aquilo que perdi. Apareci para mim mesma. E, finalmente, fiquei mais contente. Hey hey hey, that’s what I say.

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Parte importante de nossos afetos e histórias, chorar por alguém famoso também pode ser um lembrete.

Há mortes que nos afetam profundamente, mesmo que estejamos falando de pessoas que nunca estiveram conosco à mesa ou que nunca cruzaram nossos caminhos na fila do mercado. Ainda assim, quando elas partem, podem nos deixar um vazio. Mas onde já se viu chorar por quem nunca conhecemos? É como diz um dos muitos jargões da internet: “é raro, mas acontece muito.” Com frequência, choramos pela morte de celebridades, figuras públicas, artistas, atletas, intelectuais. São nomes que aprendemos a pronunciar com reverência, como os deuses da sociedade contemporânea.

O que é esse luto? É real? Pode mesmo ser vivido com legitimidade, ou seria apenas uma ilusão emocional?

A psique humana opera, muitas vezes, com base em vínculos simbólicos e é nesse campo que nasce o luto por celebridades. Não é preciso uma convivência direta para que alguém se torne significativo em nossa vida. Basta que essa pessoa ocupe um lugar — afetivo, estético, ideológico, ou mesmo fantasioso — na construção de quem somos. Cantores que embalaram a adolescência; atores a quem recorremos nos momentos difíceis em que precisamos de um rosto familiar; aquele jogador ou jogadora que encarnava nossas paixões. Do ponto de vista psicológico, esse tipo de luto é possível, embora nem sempre seja reconhecido como tal. 

Em seu célebre texto Luto e Melancolia, de 1917, Freud aponta que o luto não depende apenas da realidade concreta, mas da magnitude da perda. “O luto, de modo geral”, escreveu, “é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante.” Ou seja, o que importa não é o laço objetivo, mas o que foi investido de afeto naquela relação, ainda que ela tenha sido construída à distância. Esse luto simbólico, porém, carrega algumas complexidades. Como ele não é validado socialmente da mesma forma que a perda de um parente ou amigo, ele pode ser vivido de maneira silenciosa ou até reprimida. A pessoa sente a dor, mas se pergunta se tem “direito” de sofrer. É uma dor que esbarra na vergonha, no constrangimento, na dúvida, criando novas camadas para o sentimento.

Com a ascensão das redes sociais, esse fenômeno ganhou novas dimensões e levanta, inclusive, questões sobre a legitimidade desse luto e a possível espetacularização da morte. O que as mudanças ocorridas com o advento das plataformas digitais têm a revelar sobre nossa identidade coletiva? Muito. Acabamos nos tornando viúvos de pessoas que talvez jamais tenham cruzado nosso olhar, mas que, de algum modo, habitaram nossa rotina. Há quem questione o sentimento, de maneira que o problema ganha ares tautológicos: o que veio antes, a dor ou a espetacularização da dor? 

Na sociedade contemporânea, marcada por narrativas coletivas e identidades atravessadas pela cultura de massa, as celebridades ocupam funções simbólicas importantes — talvez mais do que nunca. Elas condensam valores, estéticas, estilos de vida, formas de resistência e de pertencimento. E tudo isso ganha um peso ainda maior porque, hoje, não são mais apenas os tabloides que nos trazem novidades sobre suas vidas pessoais. Muitas vezes — a depender da disposição da celebridade em questão —, essas informações chegam em primeira mão, por elas mesmas. Stories, posts, vídeos e confissões transformam essas figuras públicas em presenças cotidianas, quase íntimas. Quanto mais próximas parecem, mais apego despertam. Para o bem e para o mal.

É nesse ponto que o luto coletivo se torna um reflexo da identidade de uma geração. O que compartilhamos sobre a morte — as homenagens, os memes, os trechos de entrevistas, os vídeos caseiros — fala mais sobre nós do que sobre quem se foi. São manifestações de uma cultura que se conecta pela perda, que busca sentido em comunidade, que tenta fazer do efêmero algo memorável. Essa conexão emocional pode ser explicada pelo conceito de “relações parassociais”, na qual indivíduos desenvolvem vínculos unilaterais com figuras midiáticas. Nesses casos, a celebridade ocupa um espaço significativo na vida do fã, influenciando emoções e comportamentos, mesmo sem uma interação recíproca.​ A relação é unilateral, mas não menos verdadeira para quem a sente.

O luto, portanto, passa a ser validado não apenas pela perda da pessoa real, mas pela ausência de tudo que ela representava. Perder essas pessoas é perder também os significados que construímos com elas. E isso vale para diferentes épocas. Muito antes das redes sociais, multidões se comoveram com a morte de Marilyn Monroe, de Elvis Presley, de John Lennon, de Ayrton Senna. Quando estamos falando de artistas, não é raro que essas pessoas tenham despertado em nós sensações que ninguém mais despertou. O luto, então, faz sentido, não? As homenagens em praça pública, os tributos espontâneos, os rituais improvisados revelam que o luto por celebridades sempre existiu. O que muda com o tempo são os modos de expressão e compartilhamento dessa dor — hoje acelerados, visibilizados, e muitas vezes performatizados pelas redes.

Esse tipo de luto sempre foi um espelho da cultura. Ele revela quem somos, o que valorizamos, como criamos laços simbólicos e, sobretudo, de que maneira nós nos organizamos emocionalmente em torno da perda. Em sociedades onde os vínculos comunitários estão mais frágeis — ou, se pensarmos em épocas passadas, nas quais muitos sentimentos eram reprimidos —, muitas vezes as celebridades se tornam figuras de referência emocional. De maneira curiosa, acabam sendo presenças estáveis em um mundo instável.

Ao mesmo tempo, como Freud também dizia, de uma perspectiva egóica, esse luto coletivo nos convida a pensar em nossa própria finitude. Há algo na morte de quem parecia eterno, seja pela juventude ou pela fama, que nos confronta com a passagem do tempo. Quando morre alguém que parecia imortal, morre também uma parte da ilusão de permanência que cultivamos sobre nós mesmos.

A espetacularização da morte — amplificada, mas não criada pelas redes — pode transformar o luto em entretenimento, esvaziando seu significado. Há um limite tênue entre a homenagem e a apropriação emocional. Mas o problema não está em sentir, e sim em explorar o sentimento como capital simbólico.

O luto por celebridades merece ser compreendido como parte da forma como organizamos nossos afetos e narramos nossas histórias. No fundo, talvez choremos também por nós. Porque cada luto simbólico é um lembrete: ainda somos humanos tentando encontrar sentido em meio ao ruído que sempre esteve presente, mas que parece cada vez maior.

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A história da luta pela independência africana não se fez apenas com discursos inflamados, marchas revolucionárias ou a brutalidade dos golpes de governo. Ela também vibrou nos contratempos do jazz. É essa pulsação dupla, tão política quanto musical, que estrutura Trilha Sonora para um Golpe de Estado, documentário-ensaio indicado ao Oscar do belga Johan Grimonprez — disponível no Sesc Digital, gratuitamente. 

O filme orquestra um concerto de imagens, sons e arquivos que, ao se entrelaçarem, compõem um ritmo para a compreensão da geopolítica do século XX. No improviso de trompetes e saxofones, desenha-se a cartografia tortuosa de uma guerra em que a música virou arma e os músicos tornaram-se embaixadores involuntários. Se recontar a tragédia da morte do líder anticolonial congolês Patrice Lumumba é o ponto de partida do filme, reorquestrar os arranjos entre arte, poder, colonialismo e propaganda, num crescendo que reverbera até hoje, é o verdadeiro propósito de Grimonprez.

1960, o ano da África. Dezesseis países recém-libertos do jugo imperialista ocupam suas cadeiras nas Nações Unidas. Entre eles, o Congo de Lumumba se ergue como símbolo de um futuro que parecia possível: anticolonial, pan-africano, soberano. Mas, por trás das cortinas diplomáticas, outra coreografia se ensaiava: uma dança de sombras realizada pelos Estados Unidos e a Bélgica, com co-autoria dos muitos outros braços ocultos dos interesses ocidentais, a fim de impedir que esse destino floresça. Por que não? Bem, o de sempre. O futuro que Lumumba ousou imaginar desafiava a sinfonia dos impérios, composta a partir da espoliação de recursos e corpos. E quem rege a orquestra não tolera notas dissonantes.

É este o cenário que Grimonprez nos convoca a ouvir. E o que ouvimos não são apenas as notas, mas os códigos, os disfarces, as contradições que ecoam baixinho no fundo. O timbre grave de Louis Armstrong, a intensidade de Nina Simone e as bochechas infladas de Dizzy Gillespie são símbolos de resistência, estando no front da luta pelos direitos civis nos EUA. Mas a vil instrumentalização disso acontece e os três são enviados como representantes culturais de uma suposta democracia americana para países africanos recém-independentes. 

O músico Louis Armstrong, um dos símbolos da cultura norte-americana.

O jazz, então, nascido da dor e da criatividade negra, acaba sendo vitrine do famigerado, e tão falacioso, american way of life. A ironia é brutal. Enquanto os músicos ganhavam “corações e mentes” na África, eles mesmos eram cidadãos de segunda classe em seu próprio país. 

Armstrong, que inicialmente recusou missões culturais, desembarca no Congo em outubro de 1960, com recepção triunfal, quase messiânica. Três meses depois, porém, Lumumba está morto. Torturado, fuzilado, dissolvido em ácido com a conivência de agentes da CIA, autoridades belgas e o silêncio cúmplice das grandes potências. A presença do músico em solo congolês não era um gesto de boa vontade cultural. Era uma cortina de fumaça para despistar a movimentação real do desmonte de uma revolução nascente.

Grimonprez não narra a história com a frieza de um relatório. Ele prefere colar imagens de arquivo, trechos de entrevistas, registros históricos, capas de discos e discursos políticos como quem improvisa um solo de saxofone, evocando o ziguezague da história e a impossibilidade de narrá-la de forma linear quando há tantos fios soltos e tantas omissões. O que Trilha Sonora para um Golpe de Estado propõe é, além do resgate histórico, uma reflexão sobre como o Ocidente constrói seus mitos de liberdade enquanto mina as liberdades alheias. É uma pergunta extremamente atual sobre o papel da arte em contextos de manipulação. 

E esse jogo duplo com o presente se faz valer ainda mais quando há a inserção de propagandas contemporâneas de iPhones e Teslas, apontando para uma continuidade da velha e conhecida pilhagem. O Congo de ontem, fonte de urânio para as bombas nucleares, é o mesmo Congo de hoje, rico em coltan e cobalto para alimentar a era digital. O colonialismo mudou de roupa, mas não de lógica.

Entende-se como Lumumba morreu, mas nos perguntamos também o que sua morte impediu de nascer. É impossível ver as imagens de um jovem e carismático líder africano, com um projeto continental de união, e não pensar nas ruínas do pan-africanismo, ainda hoje um ideal fragmentado por interesses externos. Ao fazer da música personagem central, Grimonprez propõe uma outra escuta do mundo. Não aquela das versões oficiais, mas a que se dá nas entrelinhas, nas notas jamais tocadas porque foram silenciadas antes do tempo. 

Ecoa daí o ruído incômodo da história sendo remixada diante de nossos olhos. É a consciência de que os golpes de estado não terminam no disparo. Eles reverberam, se atualizam, e seguem se camuflando, em um contexto no qual há, em comparação, mais lugares para se esconder. 

Se não escutarmos com atenção, seguiremos dançando no ritmo imposto por quem sempre escreveu as partituras do poder.

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Lançado em 1967, Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez parece ser mais do que uma obra literária de impacto. Depois de quase 60 anos, fica claro que se trata de um livro que adentrou um certo panteão, tornando-se um fenômeno cultural que continua a se expandir para atravessar gerações e se reinventar em novas linguagens. A recente adaptação da Netflix revive a história da família Buendía em um formato inédito, oferecendo uma oportunidade para que novas audiências se envolvam com o universo criado por Márquez. A obra, embora situada na fictícia Macondo, é um reflexo sedutoramente real da complexidade humana e da história da América Latina. E talvez o mesmo possa ser dito sobre outros livros que deixaram sua marca, como Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo (que também ganhou adaptação do mesmo streaming), mas a sensação que fica é a de não chegam no mesmo patamar, ainda que possam ser clássicos com c maiúsculo. 

O que faz Cem Anos de Solidão ressoar mais e ser tão especial, além de surpreendentemente atemporal?

Para Eduardo de Faria Coutinho, Professor Titular Emérito de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele se destaca por construir uma identidade própria da América Latina, rompendo com os paradigmas do chamado cânone ocidental. “Foi preocupação de García Márquez”, afirma, “produzir uma obra que estivesse voltada para a realidade cultural latino-americana, marcando suas diferenças com relação à produção literária europeia e norte-americana. Daí a sua crítica tão veemente à lógica racionalista, cartesiana, que ele considerava própria dos colonizadores europeus, e seu uso do realismo mágico ou maravilhoso, que via como uma reação à tirania daquela lógica.” Para Coutinho, a obra funciona como um microcosmo da América Latina: “relata a saga de uma família, e, por extensão, de toda uma comunidade latino-americana, durante cem anos, traduzindo, metonimicamente, as etapas por que passou o continente e refletindo criticamente sobre a sua história.”

A pesquisadora Márcia Hoppe Navarro também destaca seu poder encantamento, o que, segundo ela, explica seu impacto duradouro: “O livro não teria o êxito que teve se não fosse extraordinário, maravilhoso, exercendo uma espécie de encantamento permanente em seus leitores.” Além da riqueza narrativa, vê que o romance responde a uma busca profunda pela identidade latino-americana, decifrando origens e história. Ela observa ainda que o livro “pode ser lido de várias maneiras, agradando desde os leitores mais simples, bem jovens às vezes, até os mais sofisticados.” Parte desse fascínio também se deve, segundo a pesquisadora, à forma como Márquez reuniu em Cem Anos de Solidão elementos de suas obras anteriores, “como se fosse o tabuleiro completo de um quebra-cabeça cujas peças foram sendo introduzidas nos seus livros precedentes.”

Ou seja, Cem Anos de Solidão tem uma capacidade de se reintegrar e se transformar com cada nova geração. A obra de Márquez se conecta com questões basilares ainda muito presentes na sociedade moderna, como a busca por sentido em tempos de incerteza e a permanência dos erros e ilusões humanas. Mantém um lugar privilegiado na cultura popular, porque toca em aspectos do ser humano que são atemporais. Em seu cerne, trata da experiência humana em sua totalidade. Apesar de sua ambientação e contexto latino-americano, suas reflexões sobre o amor, a morte, o poder e a solidão reverberam em qualquer lugar e em qualquer tempo.

O realismo mágico, o tempo cíclico, a memória coletiva e o peso da história criados por García Márquez continuam ecoando em outros trabalhos que não se propõem a adaptar Cem Anos de Solidão, mas que dialogam com seu espírito. Filmes como O Labirinto do Fauno (2006), de Guillermo del Toro, ou La Ciénaga (2001), de Lucrecia Martel; peças como Villa (2011), de Guillermo Calderón; e até discos como Transa (1972), de Caetano Veloso, revelam como o legado do autor colombiano ultrapassou o texto e se enraizou profundamente no imaginário cultural contemporâneo.

Por décadas, Cem Anos de Solidão permaneceu intocado no audiovisual por uma decisão do próprio García Márquez, que recusava adaptações por considerar que a estrutura e a linguagem do livro eram difíceis de traduzir para a tela. O autor também exigia que qualquer versão fosse feita em espanhol e por uma produção latino-americana, algo mais difícil de acontecer em sua época, se considerarmos um orçamento digno do tamanho do livro. Só após sua morte, em 2014, seus filhos Rodrigo García e Gonzalo García Barcha autorizaram a Netflix a produzir a primeira adaptação oficial, que estreou sua primeira parte em 2024, trazendo pela primeira vez Macondo e a saga dos Buendía para o universo das séries.

Para muitos, será uma nova porta de entrada para uma das maiores obras da literatura do século XX. Mas, no fim, não importa o formato, seja livro, série ou adaptação, a força do trabalho de Márquez reside em sua capacidade de fazer com que o público, muitas vezes sem saber, se veja refletido nas vidas dos Buendía.

Cem Anos de Solidão é uma espécie de espelho da história e da alma humana, com a vantagem de que, a cada nova releitura, sua presença parece mais intensa e relevante. Se ainda há uma lição a ser aprendida de Macondo, é que o tempo, esse protagonista silencioso, continua a se alongar indefinidamente, e as cicatrizes da solidão continuam a marcar o curso das vidas que, como os Buendía, se entrelaçam e se repetem, em um ciclo eterno de amores e despedidas.

É a prova de que algumas narrativas têm uma força tão intensa que atravessam o tempo, reinventam-se em novos formatos e seguem seu ribombar por diferentes gerações. Ao contrário do que o ritmo acelerado e digital do mundo atual sugere, palavras podem continuar pulsando no coração da cultura.

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Nem toda perda precisa de um funeral para doer. O fim de uma amizade pode provocar um tipo de luto silencioso, muitas vezes subestimado. Em um mundo que valida o luto de despedidas definitivas e faz vista grossa para muitos outros, romper laços com alguém que já esteve perto gera uma dor difícil de nomear e ainda mais difícil de explicar. Essa falta de nome ou de explicação é capaz, inclusive, de agravar o sentimento. Muito embora seja um tipo de perda que se esforça para passar despercebida, ela carrega consigo uma dor profunda, profunda o suficiente para rivalizar com a de perder um familiar. Um amigo, afinal, é alguém com quem você escolheu caminhar junto, o que nem sempre é verdade com a família. 

O que acontece, então, quando um laço de amizade se desfaz? Quando de fato nos apercebemos dessa perda e qual é o nosso processo mental para lidar com ela? 

Ainda que seja menos discutido na sociedade, esse luto é um processo de ressignificação e aceitação que exige tempo e reflexão. Ao longo da vida, vemos muitas amizades nascerem e se extinguirem, assim como outras que resistem ao passar dos anos. Existe uma espécie de movimento natural na amizade, como se fosse uma dança de aproximações e distanciamentos, moldada pelas mudanças e escolhas de cada pessoa ao longo de sua jornada. Faz parte do jogo. Mas, ao mesmo tempo, nelas existe também uma certa sensação de perenidade. Diferente da relação com nossos pais — em que a diferença de idade traz a dolorosa consciência de que um dia, se a ordem natural das coisas se fizer valer, teremos que lidar com a perda deles —, a amizade costuma se construir entre pessoas da mesma geração. Talvez por isso ela carregue a ilusão de permanência, a sensação de que aquele laço vai durar para sempre, de que seguiremos lado a lado, sem grandes despedidas.

E, assim, tanto pela falta de atenção dada a ele quanto pela dificuldade em aceitá-lo como parte natural da vida, o luto pelo fim de uma amizade muitas vezes não é devidamente processado.

Pesquisas das universidades de Aalto, na Finlândia, e de Oxford, no Reino Unido, apontam que os círculos de amizade tendem a diminuir depois dos 25 anos. A vida muda, e com ela mudam também as prioridades: novos empregos, novos amores, filhos, rotinas que pouco deixam espaço para vínculos que antes pareciam eternos. Imagine, diante desse cenário, perder uma dessas relações. E nem toda distância é natural. Às vezes, há rompimentos explícitos, desentendimentos que racham a confiança; outras vezes, a amizade se desfaz em silêncio, deixando apenas a sensação de vazio.

Segundo a psicóloga estadunidense Marisa G. Franco, especialista em amizades e autora do best-seller Como fazer e manter amigos para sempre: guia prático para se relacionar com todos ao seu redor, a rejeição e a perda de conexões sociais, como as amizades, ativam regiões cerebrais relacionadas à dor física — conceito levado adiante hoje na neurociência por estudos como os de Naomi Eisenberger e Matthew Lieberman.

O fim de uma amizade, então, acabada por qualquer que seja o motivo e por iniciativa de qualquer uma das partes, tem um quê de rejeição forte. De qualquer jeito, a dor é real, pois não se trata apenas da perda de uma pessoa que estava presente nas celebrações e nas dificuldades da vida, mas de um pedaço de identidade que se desfaz. O amigo muitas vezes é o espelho que reflete partes de nós mesmos e, quando esse reflexo desaparece, somos deixados com a sensação de ter perdido algo fundamental. Mas, se não houve uma morte física, qual é o espaço que a dor tem? A resposta pode estar no fato de que o fim de uma amizade representa a perda de uma ligação emocional profunda, e o sofrimento é real, mesmo sem o reconhecimento dessa dor.

Diferente da interrupção definitiva que é a morte, o fim de uma amizade tem o potencial de deixar uma porta entreaberta, cheia de perguntas sem respostas. Por que nos afastamos? O que mudou? Será que poderia ter sido diferente? Essas perguntas assombram, deixando no ar uma incerteza regada por dúvidas lancinantes.

No entanto, a vida segue, e com ela vem o amadurecimento. Amadurecer, aqui, é reconhecer uma perda e encará-la, tirando disso o que pode haver de positivo. O luto por uma amizade, quando validado, oferece um convite à reflexão sobre o que realmente valorizamos nas pessoas ao nosso redor. Ao enfrentarmos a dor, começamos a entender que, assim como nas relações familiares, as amizades também têm ciclos, e que, embora algumas se percam, outras se renovam. E, de alguma forma, o sofrimento se mistura com as experiências de vida que seguem em frente, criando um espaço para novas conexões e entendimentos.

É essencial permitir que a dor se manifeste, sem pressa para superá-la. Ela é um lembrete de que amamos, de que nos importamos, e que, mesmo com o afastamento, as pessoas que passaram por nossas vidas sempre deixam marcas. 

O importante é ter força para continuar amando. O que resta, pois, é seguir em frente, com a consciência de que a vida e a amizade, assim como o luto, têm sua própria maneira de se reinventar.

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A sociedade contemporânea vive uma contradição: ao mesmo tempo em que nunca se viveu tanto — a expectativa de vida global saltou de 52,6 anos em 1960 para mais de 73 anos em 2020, segundo dados do Banco Mundial —, o envelhecimento ainda é visto como um problema, um tabu, quase um erro de percurso. Enquanto o culto à juventude segue sendo celebrado em publicidade, cinema e redes sociais, a velhice permanece à margem, marcada pelo estigma da inutilidade e da decadência. Embora as discussões sobre o tema ganhem espaço nas redes sociais e o culto seja cada vez mais problematizado, na prática os mesmos preconceitos e problemas continuam a se repetir.

A obra Vida, velhice e morte de uma mulher do povo, do sociólogo francês Didier Eribon, serve como um ótimo ponto de partida para refletir sobre essa realidade. Eribon retrata a trajetória de sua mãe, uma mulher da classe trabalhadora, expondo como envelhecer, especialmente em contextos de pobreza, pode significar a perda progressiva de direitos e de visibilidade social. 

A velhice, como coloca Eribon, não é um fenômeno isolado, mas sim parte de um ciclo maior de marginalização social. Ele discute a ideia de que, enquanto os corpos envelhecem e as energias diminuem, as pessoas de classes populares são frequentemente desvalorizadas em relação às suas versões mais jovens e produtivas. Nas classes mais abastadas, não é a força física que gera produção e, consequentemente, riqueza. Já entre os mais pobres, essa força se torna um fator crucial de sobrevivência: carregar cargas, limpar, construir, cozinhar para os outros. Nesse panorama, o envelhecimento não é apenas um processo biológico, mas um agravante da invisibilidade social que, ao ser marcado pela fragilidade física, intensifica a marginalização de uma vida inteira dedicada ao trabalho.

Essa invisibilidade é ainda mais exacerbada por uma sociedade que cultua a juventude como o ápice da vida, onde os corpos esguios, vigorosos e belos são exaltados enquanto aqueles que envelhecem se tornam, muitas vezes, esquecidos ou ridicularizados. A relação entre velhice e marginalização social é especialmente complexa para as mulheres, que enfrentam, de maneira mais pronunciada, a pressão de manter uma imagem jovem e desejável. O livro do sociólogo francês ajuda a vermos como a velhice é um estado de opressão, que transcende o desgaste físico e se manifesta na forma de uma constante desvalorização social.

Por essas e outras, o envelhecimento populacional exige uma mudança de paradigma na forma como a sociedade encara a velhice. Caso contrário, estaremos fadados a uma contradição dolorosa e amplamente sentida.​ Esse descompasso fica evidente quando analisamos os números: a OMS estima que, até 2050, o número de pessoas com mais de 60 anos dobrará, ultrapassando 2 bilhões de indivíduos no mundo; no Brasil, o IBGE projeta que, em 2030, haverá mais idosos do que crianças e adolescentes. A priori, tudo isso é ótimo, estamos vivendo mais. Porém, políticas públicas, infraestrutura urbana e até o mercado de trabalho ainda não se adaptaram a essa nova realidade.

Alexandre Kalache, de 79 anos, tem sido uma das principais vozes no estudo da longevidade e do envelhecimento. Com 50 anos de dedicação ao tema, ele é um defensor da importância de se preparar para o envelhecimento de maneira mais eficiente e consciente, especialmente no Brasil. Em entrevista à BBC News Brasil, ecoando a visão de Didier Eribon, alertou sobre um dos maiores desafios do país: o envelhecimento acelerado da população, sem a devida preparação estrutural e social. “Estamos envelhecendo em pobreza, imensa desigualdade, face a catástrofes naturais”, afirmou o gerontólogo, destacando que, enquanto os países desenvolvidos tiveram tempo para se preparar para o envelhecimento, o Brasil está enfrentando este processo sem recursos adequados.

A desigualdade social e a falta de políticas públicas eficazes são questões que preocupam Kalache, que defende a criação de mais instituições públicas de longa permanência para idosos, como “asilos” ou “casas de repouso”, e a melhoria dos serviços voltados à saúde da população idosa. O Estatuto do Idoso, em vigor há mais de 20 anos, precisa ser mais respeitado, segundo ele, com um compromisso real por parte do Estado para que os idosos possam envelhecer com dignidade. Kalache também critica a forma como a responsabilidade pelo cuidado dos mais velhos recai sobre as famílias, muitas vezes as mulheres, que já carregam uma carga enorme de responsabilidades e limitações financeiras.

Ainda assim, surgem iniciativas que buscam reverter essa lógica. A OMS, por exemplo, lançou a Década do Envelhecimento Saudável 2021–2030, com o objetivo de mudar a forma como se vê e se trata as pessoas idosas. Entre as metas estão o combate ao idadismo e a promoção de cidades mais inclusivas para a velhice. Mas é claro que ainda temos muito a evoluir. A sociedade está em transformação para acomodar uma população cada vez mais madura. 

O grande desafio agora não é apenas garantir mais anos de vida, mas garantir que esses anos sejam vividos com qualidade. A velhice, longe de ser uma queda, pode ser vista como um tempo de potência, de experiência acumulada e de novas possibilidades — isso se a sociedade estiver disposta a derrubar seus próprios preconceitos.

É como diz Kalache, “se você quer chegar bem aos 90 ou 100 anos, comece agora.” Se isso vale para o corpo humano, também vale para o corpo do Estado. O futuro já está sendo escrito, e ele depende das decisões de agora.

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Entre tosses que viram percussão, copos d’água que se tornam instrumento e a sinfonia dos animais do sertão, o documentário O Menino d’Olho d’Água se propõe a muito mais do que contar a história de Hermeto Pascoal. Isso já valeria muito a pena de ser assistido, considerando que a história em si é ótima, mas a obra dirigida por Carolina Sá e Lírio Ferreira entende que isso o limitaria, e faz mais pela figura que retrata ao não tentar decifrar o “bruxo” passo a passo, nem enquadrá-lo em escolas ou movimentos. Prefere o caminho mais sincero, aquele que o próprio Hermeto indicaria: no lugar de explicar, sentir.

Distanciando-se do formato convencional de biografias audiovisuais — em especial as musicais, em que o período pré-fama ganha destaque por revelar o primeiro contato com a música, reverberando a mensagem “dali adiante, tudo mudou”, e com os anos de sucesso sendo reduzidos ao impacto cultural muitas vezes subjetivo —, o filme parte da liberdade criativa que sempre guiou o multi-instrumentista alagoano para construir uma narrativa igualmente livre, fragmentada em três tempos: o presente performático de Hermeto, seu passado em Olho d’Água Grande, no interior de Alagoas, e os bastidores atemporais do processo criativo. É um todo fascinante que cabe na simplicidade e grandiloquência de uma de suas frases: “a música sou eu, eu sou a música.”

O Menino d’Olho d’Água, disponível no Canal Curta!, não deixa de se agachar por sobre as origens de uma musicalidade intuitiva e radical. Mas dá a essa origem um ar quase etéreo. O filme começa com Hermeto tocando flauta dentro de um lago e esse gesto sintetiza o espírito do que veremos dali adiante — com toda a ênfase no “espírito.” A água deixa de ser apenas elemento cênico para tornar-se som, corpo e partitura. E tudo que o cerca, da boiada ao ronco noturno, é matéria-prima musical. O que circunda Hermeto vira sonância e, por isso, ele e sua música se confundem com o mundo. O mundo toca Hermeto, e Hermeto devolve em música. É uma relação íntima que emociona.

Ao costurar imagens de arquivo, apresentações recentes e depoimentos íntimos, o documentário revela mais pelas margens do que pelo centro. Quem se permitir flutuar pelas nascentes de por onde corre a música de Hermeto, encontrará um filme que ecoa sua própria lógica: nada aqui é linear, tudo é pulsação.

Nascido em 1936, Hermeto cresceu afastado das atividades agrícolas da família por conta do albinismo. Em vez da típica vida na roça, então, ele se pôs a descobrir e a fazer amizade com os sons do mato: o coaxar dos sapos, os assobios dos passarinhos, a sinfonia viva das matas de Alagoas. Ali se formou o ouvido que transformaria tudo em música. “Meu professor foi o universo”, diz ele. Assim, o mundo era sua escola, seu cotidiano, seu caderno de música levado a tiracolo.

Mas, em casa, o ambiente também era musical. O pai e o irmão tocavam acordeão; a mãe era cantora de coral. Esse incentivo decerto foi importante. Mas é no modo como ele transgride convenções, e ouve música onde os outros escutam apenas ruído, que sua grandeza se revela. Ao longo de sua trajetória — que inclui parcerias com ninguém mais ninguém menos que Miles Davis e uma carreira solo marcada por inovação —, Hermeto nunca se curvou a padrões. Sua música é selvagem, espontânea, profundamente brasileira e, ao mesmo tempo, universal. Ela parece vir de uma camada pouco explorada por outros artistas, algo vindo de um lugar mais elementar.

Aos 88 anos, Hermeto segue ativo. Em 2024, lançou Pra Você, Ilza, álbum dedicado à sua companheira de quase cinco décadas. Com ele, ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Jazz. É um trabalho que reafirma que, mesmo após décadas de invenção, Hermeto continua compondo como quando andava de ônibus nos anos 1970, repetindo as melodias que surgiam em sua cabeça para não perdê-las antes de chegar ao destino.

O Menino d’Olho d’Água não é sobre a história do músico, é sobre sua natureza. É sobre um artista que nunca separou som de vida, música de corpo, técnica de intuição. É um filme que, como ele, prefere o risco à fórmula. E que nos lembra que certos mistérios não foram feitos para serem explicados, mas ouvidos.

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Livro da pesquisadora Helena Kussik é um registro sensível dos variados saberes têxteis que marcam a identidade do Brasil.

No Sítio Mimoso, em Jataúba, Agreste Pernambucano, duas meninas se escondem debaixo de um pé de árvore. Com folhas de caruá, papel de açúcar e agulhas “roubadas” da mãe, decidem ali mesmo “aprender o renascenço”. O improviso não é brincadeira, é o prenúncio de uma habilidade que se tornará profissão, memória e identidade. Uma delas, Maria Aparecida de Oliveira, a “Bium”, hoje é referência na Renda Renascença, e essa cena, que poderia muito bem ter sido tirada de um conto, é uma das muitas narrativas que o livro Têxteis do Brasil – Rendas e Bordados, organizado por Helena Kussik, reúne com generosidade e escuta atenta.

E Helena aqui não é apenas uma pesquisadora. Neste projeto, é também uma testemunha sensível do que se aprende com o gesto, com o silêncio entre as palavras, com o tempo do bordado. O livro é fruto de uma jornada de mais de 10 mil quilômetros pelo Nordeste brasileiro, no qual o chão seco e o céu azul das paisagens agrestes guardam memórias tão profundas quanto os pontos de uma renda labiríntica. Realizada com apoio da Artesol, a publicação responde à urgência de reconhecer e preservar técnicas têxteis que, apesar de sua riqueza, permanecem pouco visíveis e muitas vezes subestimadas. 

Em cada capítulo, há o percurso de técnicas como a Renda Renascença, Singeleza, Labirinto, Boa Noite, Redendê, Bilro, entre outras. Técnicas que parecem falar de ornamento e delicadeza, mas que são, na verdade, ferramentas de sobrevivência e resistência. No conjunto desses capítulos, forma-se uma travessia afetiva, estética e política por catorze núcleos produtivos do Nordeste brasileiro, onde se bordam saberes ancestrais em formas que desafiam o tempo cronológico. “O tempo dos pontos, para mim, é o tempo da criação”, escreve Helena em sua introdução. E é nesse tempo espiralar que o livro se constrói: entre as linhas que cruzam o passado, o presente e o que ainda está por vir.

“A maioria inconteste dessas artesanias são criadas por mulheres de classes populares vivendo em áreas rurais”, aponta a pesquisadora Bianca Barbosa Chizzolini no prólogo, ressaltando como os bordados, ainda que originados no espaço doméstico, não se limitam à esfera privada. Muito pelo contrário, são caminhos para a emancipação. Uma artesã entrevistada por ela, por exemplo, conta que, por meio da venda de suas peças, conseguiu retomar os estudos. Outra entrevistada conta que viu o mar pela primeira vez em uma viagem a uma feira de artesanato. Essas histórias mostram que o bordado é também uma geografia de expansão. É nesse contexto que o “saber-fazer” deixa de ser apenas técnica e se afirma como identidade, política e poesia.

O livro respeita a lógica dos afetos tanto quanto a das técnicas. O foco está onde precisa estar, rendando a fazedura com a existência. Embora tenha nascido de uma extensa viagem de pesquisa, a obra não se organiza segundo um roteiro geográfico tradicional. Adota uma metodologia que dialoga com a ressalva feita desde o início aos mapas convencionais. Como lembra o antropólogo britânico Tim Ingold, citado no prefácio, os mapas traçam linhas para delimitar, mas não conseguem registrar “a identidade substantiva das pessoas e dos bens”. Para isso, é necessário outro tipo de cartografia, aquela que se desenha nos gestos cotidianos, nos risos partilhados em varandas, na tensão silenciosa da linha no lacê. É essa geografia sensível que o livro se propõe a registrar, e é aí que ele mais comove.

A técnica, aqui, não está separada da vida. “É você saber mesmo fazer a Renascença, para saber onde dá pra tecer o dois amarrado, o richiliê, a traça, o que é possível. Tem coisa que é impossível, que é só na imaginação”, diz Maria Laudecir, uma das riscadeiras entrevistadas. Os nomes dos pontos, que vão de “mosca” a “sianinha”, carregam histórias e regionalismos que seriam apagados por qualquer tentativa de padronização industrial.

Há também uma dimensão física e sensorial na produção têxtil que o livro faz questão de valorizar. As fotografias de Nathália Abdalla revelam a concentração no rosto das artesãs, o traço da idade nas mãos, a dança silenciosa dos dedos. Já as ilustrações de Camila do Rosário transformam pontos como “pipoca”, “amor seguro” e “dois amarrado” em registros visuais claros e expressivos. Têxteis do Brasil – Rendas e Bordados acaba sendo uma espécie de chamamento, um canto que convoca o reencontro com o fazer, com a escuta, com o reconhecimento. E faz isso sem cair no risco da folclorização, denunciando o apagamento histórico desses saberes e apontando caminhos possíveis para sua continuidade. Destaca, inclusive, o papel de políticas públicas, de projetos como o Crença (Centro de Referência da Renda Renascença) e das redes de comercialização direta.

Como um tecido que vai se estendendo, o livro deixa fios soltos para que sejam retomados. Não é um ponto final, mas uma laçada, um gesto de continuidade. Em tempos de algoritmos e aceleração, ele nos lembra que existe valor no tempo do detalhe, na pausa, no feito à mão. E que bordar, como viver, pode ser um ato de atenção radical. Porque, como dizem muitas das mestras, muitas vezes o aprendizado vem “de olhar”. E, se olharmos com atenção, veremos que cada renda é uma carta aberta do Brasil para si mesmo.

Helena Kussik encerra sua introdução com um desejo: “Que essa potência não fique restrita às lembranças de uma infância na casa da avó, nem seja deixada para um futuro distante, como a aposentadoria.” 

Que o têxtil seja agora. 

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Entre tanta correria, redes sociais, planilhas de trabalho e conteúdos de autoajuda, os livros de ficção têm perdido espaço no cotidiano das pessoas, em especial na vida dos homens. O Brasil é um país que lê pouco, e isso se deve a uma combinação de fatores: o acesso desigual à educação, o analfabetismo geral e o funcional, a precariedade das bibliotecas públicas, a falta de políticas consistentes de incentivo à leitura e o alto custo dos livros. Mas o desinteresse não se limita a quem enfrenta essas barreiras estruturais e, no meio disso tudo, os homens são tem mais se distanciado dos romances, motivados pela ideia de que esse tipo de livro é uma espécie de gasto de tempo improdutivo, uma atividade que não cabe na agenda de quem tem metas a cumprir.

Apesar da ausência de dados recentes que mostrem a preferência por romances dividida entre homens e mulheres, os levantamentos disponíveis indicam que o público feminino segue sendo maioria entre os leitores brasileiros. Segundo a pesquisa mais recente da Câmara Brasileira do Livro, feita em parceria com a Nielsen BookData e divulgada no começo de fevereiro, 61% das pessoas que compraram livros nos 12 meses anteriores eram mulheres — um salto em relação aos 57% registrados em 2023.

Já o levantamento Retratos da Leitura no Brasil, publicado em novembro de 2024, aponta que 22% dos leitores costumam escolher livros de contos, enquanto 20% preferem romances. Ou seja, entre cada 100 leitores, apenas 20 escolhem romances. Se cruzarmos essa porcentagem com o perfil de quem mais compra livros, é possível estimar que, a cada 100 pessoas que compraram romances, cerca de 61 seriam mulheres. Isso reforça a hipótese de que elas também são maioria entre as leitoras de ficção. Assim, mesmo sem um recorte específico por tipo de obra e gênero dos leitores, o cruzamento desses dados permite uma inferência: considerando que as mulheres representam a maioria dos leitores e compradoras de livros no Brasil, é bastante provável que também liderem quando estamos falando da leitura de romances. 

Se o Brasil lê pouco e os homens são os que leem menos, um número ainda menor recorre aos romances. Mas por quê?

Historicamente, o culto à produtividade é imposto mais fortemente sobre os homens. Ler, por prazer, seria quase um ato de resistência — e, no caso dos homens, uma pequena revolução contra a lógica do “faça mais em menos tempo”. Mas essa resistência, muitas vezes de pouco fôlego, acaba silenciada pela pressa e pela necessidade de produzir, produzir, produzir.

Durante o século XIX, nas casas mais abastadas, a leitura de romances tornou-se associada à feminilidade justamente porque as mulheres da burguesia, enclausuradas no espaço doméstico, buscavam na literatura uma válvula de escape. Os homens, ao contrário, se mantinham no domínio do “útil” e liam para se informar, para se educar, para construir. Um eco dessa visão antiquada ainda reverbera no mundo moderno. Romances ainda são sinônimo de fantasia “inútil”.

No Brasil, a diferença começa cedo. Segundo educadores, meninos costumam ter menos modelos leitores do mesmo gênero. Enquanto são incentivados a correr, competir e produzir, meninas crescem cercadas por mais referências literárias — nas mães, nas professoras, nas personagens que leem. Como resultado, por volta dos 11 anos, muitos garotos deixam para trás os livros que os encantaram na infância. A adolescência, então, vira praticamente de terra de ninguém para a leitura masculina. O mercado editorial, ao notar esse afastamento, responde reforçando estereótipos femininos, tanto na estética quanto na narrativa. E o ciclo se retroalimenta.

Quando a figura de um homem ideal é vendida, fugir à regra não é convidativo. Parecer sensível demais, por exemplo, é fugir dessa regra, assim como se envolver com emoções que não se encaixam na armadura do homem prático, do líder infalível, do sujeito que resolve, mas não sente. Há o medo de se reconhecer na fragilidade de um personagem, de chorar em público com uma cena banal, de se comover com a dor de alguém que nem existe. De entrar numa floresta literária onde não há trilhas bem demarcadas e a saída não é um falacioso “upgrade”. Visões ultrapassadas como essa ainda estão por toda parte — nas falas, nas piadas, nos silêncios. E continuam afastando muitos homens de algo simples, humano e necessário: a experiência da empatia.

O erro colossal dessa resistência, que chega a beirar o absurdo, está em enxergar a ficção apenas como passatempo, como um dispêndio sem função prática. Para além do problema de avaliar tudo a partir de sua praticidade, os romances, na verdade, têm muito a oferecer nesse quesito: nuances, contradições, zonas cinzentas — tal qual, veja só, a vida. Ler ficção não é se alienar da realidade, mas mergulhar nela com mais profundidade. É exercitar o olhar do outro, expandir o repertório emocional, treinar o olhar para aquilo que não está dito. E isso, convenhamos, é tudo menos fútil.

É claro que não ler romances ou valorizar a produtividade não quer dizer necessariamente que uma pessoa não tenha empatia, da mesma forma que ler ficção não transforma automaticamente uma pessoa em alguém mais sensível ao outro. Mas há, sim, estudos que indicam uma relação entre a leitura de ficção e o desenvolvimento da empatia e, na maioria das vezes, isso falta em muitos dos discursos que exaltam apenas a eficiência.

E é claro também que esse padrão de insegurança e de masculinidade estóica não é exclusivamente brasileiro. Como apontou uma matéria da Dazed que causou bafafá no meio do ano passado, muitos homens do Reino Unido, sobretudo os heterossexuais, tendem a evitar a ficção e, quando recorrem à leitura, preferem livros de não ficção com apelo à produtividade, melhoria pessoal e conhecimento prático. Não estamos sozinhos — e, nesse caso, isso não é um alívio.

A masculinidade, ainda marcada por traços de virilidade engessada, não abre espaço para o tipo de entrega emocional que a leitura de um romance exige. No Brasil, onde as taxas de depressão entre homens crescem e a busca por modelos positivos de masculinidade é urgente, o romance poderia ser uma rota alternativa. Não é exagero dizer que ler romances poderia ajudar a salvar vidas. Ao criar vínculos invisíveis com personagens, ao exercitar o músculo da empatia, o homem leitor deixaria de ser apenas espectador da própria rigidez. Tornaria-se, também, aquele que sente, sem precisar pedir desculpas por isso. 

Talvez esteja aí a verdadeira “ameaça” do romance: ele nos convida a parar. A desacelerar o passo, suspender as metas, silenciar as notificações internas. E parar, para muitos homens, ainda é sinônimo de fracasso. Mas se há algo de urgente no Brasil de hoje — e nos homens brasileiros, sobretudo — é a necessidade de reaprender a parar. De sair do modo “otimizar” e se permitir estar com um livro sem a cobrança de sair dele mais produtivo, mais forte, mais eficiente. Apenas estar. Ler por ler. Sentir por sentir. 

Seria fácil dizer que a perda é deles, e que lidem com isso. Que são os homens que deixam de acessar um repertório emocional mais vasto, que vivem presos em um modelo de masculinidade sufocante. Mas o buraco é mais fundo. Uma sociedade em que metade dos seus integrantes se afasta da ficção, da escuta e da vulnerabilidade não é uma sociedade equilibrada. Quando os homens se blindam contra o sentir, todas as relações empobrecem: afetivas, familiares, profissionais.

Há muito futuro nas páginas de um romance. Um futuro muito mais empático e menos violento. Mas, para alcançá-lo, essas páginas precisam ser folheadas.

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