Reparei numa pinta, pela primeira vez que me lembre, ontem à noite, ao espelho, enquanto escovava os dentes.

Não que ela estivesse escondida atrás do cabelo, e fosse enfim revelada pelas entradas que depois dos quarenta já avançam velozes testa adentro. Nem que ela estivesse num ponto cego, que eu não conseguisse enxergar ao espelho sem torcer o pescoço. Nada disso. Ela estava ali, a meio caminho entre o olho e o ouvido esquerdos, sem nada que pudesse servir de disfarce ou distração. Uma pinta escura sobre a pele branca. E não era das menores. Como é possível só agora tê-la visto? No dia seguinte pela manhã, ao lavar o rosto, já não consegui tirar os olhos dela. Tinha passado a noite a pensar sobre essas coisas que às vezes não vemos por estarem demasiado à vista. Mas, no caso da pinta, era mais estranho do que isso.

Você deve lembrar que eu tive problemas de acne durante a adolescência. Por isso eu pensava no meu rosto como um campo de batalha. Eu e meu arsenal de cremes e loções e pomadas, que só faziam manchar os travesseiros, contra as destemidas espinhas, que zombavam de todas as minhas tentativas de exterminá-las, aparecendo sempre vermelhas e robustas nos momentos mais inoportunos. Ainda hoje vê-se em minha pele as marcas dessa guerra, e por isso recusei-me a acreditar que eu nunca tivesse sequer reparado naquela pinta. Um nítido marco geodésico entre os acidentes da minha topografia facial.

Você também deve estar se perguntando por que resolvi te contar essas coisas agora, depois de quase vinte anos sem nos falarmos. Desculpe. Se tiver só mais um pouco de paciência, prometo que já vai entender. 

Eu fiquei um pouco obcecado pela história da pinta, e fui vasculhar fotos em busca de provas da sua existência pregressa, e da minha inexplicável miopia para vê-la. Não foi tão fácil quanto eu imaginava encontrar fotos minhas que tivessem qualidade suficiente para que se notasse uma pinta no rosto, e menos ainda fotos em que eu estivesse com o rosto suficientemente virado num ângulo que a tornasse visível. Mas, depois de umas boas horas de insistência, revirando os álbuns do fundo do armário e backups antigos do computador, consegui encontrar algumas que cumpriam todos os critérios. E qual não foi o meu espanto ao perceber que em nenhuma delas a tal pinta aparecia.

Voltei ao espelho. Lá estava ela. Mas por que então não havia sequer uma foto minha em que ela estivesse ali, onde deveria estar? Tentei olhar mais de perto, procurando sinais de que ela talvez fosse uma aparição mais recente, uma cicatriz, uma lesão, uma sujeira mal lavada… Mas não consegui identificar nada que a distinguisse de uma pinta normal, marca de nascença.

Fui ao dermatologista, que me disse a mesma coisa. Fui a mais de um, na verdade. Liguei para velhos amigos, que provavelmente já me achavam maluco e, depois de ouvir a história, passaram a ter a certeza. Ninguém se lembrava da pinta ter ou não ter existido. De modo que só me restou uma alternativa. Recorrer à única pessoa no mundo que poderia conhecer a minha cara melhor do que eu: minha mãe. 

Não vou descrever como estava a casa de minha mãe, ou ela própria, quando apareci de surpresa, numa quarta-feira à tarde. Estava tudo exatamente igual a quando fomos lá, por insistência sua, há um par de décadas. Até a televisão de tubo, com o cacto em cima, continua no mesmo lugar — e funcionando, sabe lá Deus como.

Sobre a pinta, ela não conseguiu dar nenhuma informação importante. Imagino que sequer tenha conseguido enxergá-la no meu rosto, por causa da diabetes que já lhe deu cabo da visão. Mas ficou muito contente quando insinuei que gostaria de rever os álbuns de fotografias. Em um minuto, já tinha depositado em meu colo pelo menos dez grossos volumes de capa dura. 

Mais uma vez, encontrar fotos que combinassem simultaneamente foco, proximidade e a inclinação correta da minha cabeça foi como procurar uma agulha no palheiro. Mas valeu a pena, porque consegui encontrar uma. Apenas uma.

Como você já deve ter adivinhado, a foto que encontrei é a que vai no envelope junto com esta carta. Eu e você, na praia. Não consigo lembrar qual era o ano, muito menos quem tirou a foto. Uma foto absolutamente perfeita: ângulo fechado e focado nos nossos rostos, a câmera posicionada ligeiramente de lado, de modo a pegar de chapa todo o lado esquerdo da minha cabeça, ligeiramente repousada sobre o seu ombro direito. Ao fundo, um pouco desfocado, mas reconhecível, vê-se o carrinho de um vendedor de picolé, e o desenho da marca estampado na lateral me certifica que a foto não está espelhada. Tudo na composição favorece a visão perfeita daquele meu pedaço de rosto, a meio caminho entre o olho e o ouvido. Finalmente, lá estava a pinta. 





Menina com um livro, de Pietro Antonio Rotari (1750-1762)

Era um desses cafés que ficam de frente para o porto. O que havia de peculiar nele não era tanto a sua permanente ocupação pela horda que saía dos iates e dos barcos de pesca, nem sequer o bando de marinheiros dinamarqueses, todos com um aspecto ainda desbotado e melancólico, tão deslocados no calor infernal de agosto neste minúsculo porto, para aqui enviados talvez por castigo, com uma mão cheia de fragatas para patrulharem esta remota fronteira da Europa. Também não eram os turistas, italianos e franceses e de quase mais nacionalidade nenhuma, tantos que quase todos os restaurantes servem comida italiana e o porto lembra mais a Puglia do que outro lugar qualquer. Ou Portofino, como um dos meus companheiros de viagem continua a dizer. A princípio, pareceu-me que ela não tinha nada a ver com o café, achei mesmo que era só mais uma cliente assídua, até que um dia entrei e a vi ao balcão. De manhã cedo, ela está sempre cá fora. Tem uma destas caras (não sei se isto se pode bem explicar) cuja expressão parou algures no ponto intermédio entre a mais intensa loucura e uma calma absurda. Quando os olhos dela param nos nossos, e param sempre nos nossos, nos dos turistas, nos dos marinheiros, parece que ela olha para dentro e a fundo, como uma ave marinha que mergulha na profundidade. É um olhar hostil como uma verdade escondida. Dura apenas um segundo ou dois e o seu olhar volta rapidamente a assomar à superfície, a regressar ao cordato superficial. Ela está sentada à mesa, com um cigarro aceso entre os dedos, os olhos fixos no porto diante da esplanada e, de repente, o rosto dela vira-se, fixa-se por um instante, há qualquer coisa na sua expressão que deixa perceber que ela entendeu o que precisava de entender e pode tornar a desviar o rosto.

Roberto Calasso recorda-se de uma versão muito obscura do mito de Ariadne em As núpcias de Cadmo e Harmonia, em que Dioniso arrasta com ele Ariadne, como um soldado, para o combate com Perseu, e que é Perseu quem vira o rosto de Medusa para Ariadne, agitando a sua cabeça diante do olhar da princesa de Creta, até ela se transformar em pedra. Parece-me que quando os olhos desta mulher param nos olhos dos transeuntes, nos teus, ou nos meus, ou noutros quaisquer, que é o olhar de Medusa que por um momento pousa sobre o nosso rosto. As perguntas que ficam por resolver quando nos perguntamos o que fica à superfície do nosso rosto quando os olhos de Medusa descansam sobre os nossos oferecem, como seria de prever, mais perguntas do que respostas. A principal pergunta é: o que é que este mito, que não é sobre Levinas e sobre a responsabilidade perante o rosto do outro, nos diz sobre o que em nós pode ficar petrificado à superfície, no momento do olhar. É também, claro, sobre equilíbrios de poder. Um só olhar de Medusa, com a sua força impiedosa, pode petrificar para sempre à superfície a mais preciosa das expressões de um rosto, que pode ficar para sempre conhecido como a cara que mereces.

Não há nada de banal no rosto desta Medusa. Ela recria com uma impassibilidade que é difícil de explicar, com uma facilidade aparente e arisca, a solidão de olhos que às vezes se encontram por breves instantes numa multidão. O efeito da urbanidade de Baudelaire neste porto esquecido, às margens da Europa, é bastante perturbador. Ela tem uma cicatriz no queixo, nem grande nem pequena, e outra um pouco mais acima, do lado do olho esquerdo. Grandes olhos castanhos, e o cabelo pintado também de um castanho que há muito deixou de ser plausível. Não é um rosto. É uma cidade. É uma destas caras a que se chega para efeitos de recordar a capacidade para a atenção que existe dormente em nós, por indolência, fatiga, falta de tempo, fechamento aos outros, e que pode ser convocada por um destes encontros.

Assim este jogo. Aqui faz um calor a que, há muitos anos, por virtude da vida que tenho levado, me desacostumei. É o calor dos verões da infância, traduzido num ponto muito distante da idade adulta. Aprendi, por causa do trabalho que faço e da personalidade das pessoas que me rodeiam, a raramente invadir os seus rostos com um olhar atento e fixo, do tipo a que se poderia chamar, “invadir o espaço dos outros”. Ela faz isto por brincadeira e é quase, assim o entendi dia após dia, uma profissão. Parte do seu trabalho é ver-te, reconhecer-te. É isso que acontece. Há muita gente que te reconhece sem nunca ter a coragem de te olhar adiante no rosto. Pensa nisso. O olhar dela corta a direito, é como um destes punhais dos pastores, agora vendidos por pura paródia, na loja dos turistas ao lado do café. O olhar corta a direito pelo que nele é insistente e te força a reconhecer o seu rosto, e encontra algures em ti, para lá do que flutua à superfície dos teus olhos e é a suja indiferença com que te amortalhas diariamente, este tempo da tua vida sem bússolas, uma paixão tão pura que merece ser passada a pedra. O olhar dela é, então, a crueldade da vida, a lembrança, mitológica e urgente, de que há um preço a pagar por escolher chegar demasiado tarde ao reconhecimento de alguns rostos. É o seu rosto que encoraja esta revelação. Não é da ordem da lógica. Ou é da ordem da lógica apenas ao género do que explica Italo Calvino, num pequeno texto autobiográfico sobre Turim. É a lógica que encoraja a loucura. Os rostos são paisagens, com as suas constelações e incêndios. Desde que aqui cheguei, a terra não tem parado de arder. O ar estava cheio de cinzas, durante dias não se pôde ver o horizonte. Quando voltares a levantar os olhos, lembra-te lá, agora, de Ariadne entre os soldados do cortejo de Dioniso.

Cabeça de William Feaver, de Frank Auerbach

There will be time, there will be time
To prepare a face to meet the faces that you meet

T.S. Eliot,
“The Love Song of J. Alfred Prufrock”

Está na cabeça. Na parte frontal da cabeça. É paralelo à nuca e, no caso do seu dono ter menos de dois anos, fica um bocado distanciado da moleirinha, mas não muito. Vai até onde o pescoço começa. Depois dos dois anos de idade, tudo igual, mas com moleirinha fechada. Está na cabeça, logo depois do cabelo, quando acontece haver cabelo. Habitualmente é feito de olhos, dois, de nariz, de boca, de sobrancelhas, testa, queixo, bochechas, mandíbulas, orelhas. Acredito que as orelhas fazem parte. É feito de tudo isto, não sempre por esta ordem. É o que mais vemos de nós quando há um reflexo de nós. No espelho logo de manhã. Na vitrine, antes daquilo que está exposto na vitrine. Nas lentes dos óculos de quem nos olha. Na água. Em dias difíceis, às vezes parece mesmo, conseguimos vê-lo nas duas palmas abertas das nossas mãos. E embora nem sempre nos reconheçamos a nós mesmos no próprio rosto, é por ele que somos reconhecidos.

É o que faz um ser humano identificar o outro. Lembro-me das pessoas pelas mãos, garante Lídia. O que eu realmente decoro em alguém é a forma de andar, diz Murilo. O cheiro, eu nunca me esqueço do cheiro, diz quase toda a gente. Acontece que estas coisas vêm depois. Primeiro está o rosto. Ele é que nos distingue na multidão. Mais do que o nome, o odor, o timbre da voz. O rosto. Não há um igual a outro, nem sequer no caso dos gémeos, muito menos dos sósias. É a performance irrepetível, e uma que só pode ser feita em vida. Numa vida só. Se acontecer outra existência, imagina-se, ela trará um outro rosto. É que a cara é uma amálgama de ossos, músculos, sangue e dentes, mas é também o espaço do corpo que ocupa o trono das emoções. Nele não estão só os trejeitos: está lá cada alvoroço, cada perturbação, cada enlevo.

Em vida, é raro perder-se um rosto. Existem os acidentes. As mutilações. Um rosto deformado em permanência faz sempre tanto dano. A cara é o mapa único do país privado de cada um: ser retirado dela à força, deixar de poder recorrer a ela para replicar aquilo que acontece dentro, conta sempre como amputação.

Diz assim num poema de Yorgos Seferis: “Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos/ que extenua os meus cotovelos e não sei onde/ pousá-la./ Ela tombava no sonho enquanto eu saía do sonho/ a nossa vida uniu-se e será muito difícil separar-se/ de novo”. 

Uma das formas mais antigas e mais terríveis de matar é cortando a cabeça a alguém. Pela espada, pelo machado, pela guilhotina. Alguns antigos gregos consideravam a decapitação uma forma digna de morrer – mas só os que ficaram vivos, com a cabeça posta. Salomé pediu a do Batista numa bandeja. A revolução francesa excedeu-se no rolar das cabeças. Judite apresenta a de Holofernes como sinal de justiça. Henrique VIII corta cabeças a duas das seis esposas, substituindo assim um rosto pelo outro sob a coroa consorte. Ainda hoje, em certos países, mulheres e homens são decapitados violentamente em praça pública. Num ápice, e na maioria das vezes como espetáculo popular, o corpo perde a cara. O emblema rola pelo chão. Não há símbolo maior do desfazer de uma vida, nem um tão imediato. É a barbárie.

A partir do momento em que o espírito abandona um corpo, o rosto dura muito pouco. E isto não tem apenas a ver com o chamado pallor mortis, empalidecer quase imediato após a morte. Muito menos com o rigor que vem depois. É que, perdendo a manifestação, o sopro, um rosto perde-se de ser o rosto. A expressão parte. Para além disso, o acumular de experiências, que era contínuo e a cada dia deixava a sua marca, cessa. Então o rosto para. Restam os retratos. Quantas vezes se ajoelha um vivo na frente do retrato 3×4 de um morto, quantas horas a passar o dedo pelas linhas agora unidimensionais daquele rosto? É comum, nos cemitérios, verem-se túmulos em cuja lápide, para além do nome e das datas de nascimento e morte, está uma fotografia. Costumam ser impressas 23 em cerâmica, pequenas representações em formato oval, como amêndoas de ouro. São rostos mortos e com os olhos fixos num ponto. O ponto acaba sempre por ser o rosto daquele vivo que caminha no cemitério. Destinados a oferecer algum consolo, estes epitáfios ilustrados, ao fim de um tempo, costumam produzir efeito contrário – poucas coisas são tão dolorosas quanto o retrato de um morto. Aquele rosto, em tempos dotado de trejeitos que lhe revelavam o humor, o rosto que espirrava, que soltava gargalhadas, que fechava os olhos apenas para dormir, meditar, ou, de vez em quando, na presença de uma forte dor de cabeça, aquele rosto que com a boca nos beijava a testa, que se virava no eixo do pescoço para ver passar um pássaro ou um outro rosto impressionante, agora está quieto. Procurando vida, algum fiapo dela que seja, fixamos o retrato do morto. Isso gera só um profundo cansaço. Nada mais existe ali para além de lembrança. As memórias são nossas, e nelas o morto existe apenas como interveniente. Ele não é. Não mais. Não assim. Ele está morto. A sentirmo-lo outra vez – seja como uma aragem no cemitério, como uma aparição noturna durante um sonho, como uma oração, um bafo no colarinho – dificilmente será por via da sua fotografia. 

Na pintura é diferente. São raríssimas, para não dizer impossíveis, as pinturas que retratam um rosto com exatidão. A cara é carne, não tela. E apesar disso os rostos pintados costumam estar bastante vivos. É que, enquanto forem os humanos a desenhar retratos, na sua representação existirá sempre alguma lacuna. Os humanos falham sempre um pouco – talvez seja essa incapacidade de perfeição pictórica que faz validar a pintura de um retrato, tornando-o, de súbito, fiel. A inexatidão do traço recorda-nos a nossa própria imperfeição, e a nossa mortalidade. Um rosto, sendo a maior representação de vida única, o seu grande sinal, lida sempre com a morte: ou já está morto, ou irá morrer.

Os primeiros retratos que conhecemos – e por retrato entenda-se uma representação de alguém que realmente existe ou existiu, que não seja nem deus nem rei – são os de Fayum. Encontrados pela primeira vez no Egito, precisamente na zona de Fayum e no final do século XIX, terão sido pintados entre os séculos I e III. Na época habitavam naquela zona os chamados gregos-egípcios. E estas eram de facto pinturas ao mesmo tempo gregas e egípcias. Gregas no traço, no tema, no vestuário, no rosto praticamente frontal. Egípcias na utilidade, já que, antes de colocarem os seus mortos nas necrópoles, os egípcios embalsamavam-lhes os corpos e deixavam-nos em casa durante algum tempo. Para que participassem um pouco mais da vida familiar, para que se sentissem acompanhados. Às múmias era colado um retrato a fazer de rosto. Era de um tamanho um pouco maior que o rosto que tinham carregado em vida, e para o qual quase sempre teriam posado antes. Nalguns casos, raros, poderiam ter sido pintados já mortos. Estes retratos serviam como última morada, e como cartão de identidade: para que lograssem ser reconhecidos durante a viagem na direção do reino de Osíris. Pintados sobre o linho ou sobre a madeira, são rostos surpreendentes. Contrariamente aos retratos funerários nas fotografias, estes estão carregados de vida. Olham-nos fixamente, e parecem mesmo contar histórias: um deles sobre o tempo em que foi florista, o outro padeiro, o outro atleta. Observam-nos, como escreve Jean-Christophe Bailly, a partir de um presente eterno. São os tais rostos únicos, irrepetíveis. Que numa pirueta da pintura feita a cera de abelha, conseguem existir ainda, cerca de vinte séculos mais tarde.

Mas será que os rostos precisam de facto de ser representados para que surjam? Numa escala crescente, qual será, por exemplo, o rosto mais presente na pintura Las Meninas, de Diego Velázquez? A infanta Margarida está lá, bem ao centro, mas não é nela que reparamos logo. Muito menos é ali que nos fixamos. Quanto mais na penumbra, ou ao fundo, estão as figuras retratadas, mais as perseguimos. Como o homem à porta, que ninguém sabe se entra ou sai da sala, com o rosto a três quartos. O casal de reis refletido no espelho, faces luminosas emolduradas a negro: aparentemente distantes de toda a cena, mas tão perto de nós, do lado de cá da vida. E aquela outra figura à direita, quase anónima, que a todos assusta um pouco, mas ao mesmo tempo atrai. Por ser um homem sem rosto definido, mas ostentando, ainda assim, no escuro, as formas de um rosto. Não se revela, e deixa connosco a tarefa de adivinhar-lhe a história. Basta o detalhe de um rosto, por vezes apenas a sua suspeita, para que na pintura ele seja poderoso. Tal como na vida, é pelo detalhe que uma cara é marcada, e muitas vezes por ele achada. 

As pessoas são procuradas pelo rosto. Existe, claro, a confirmação digital que os sistemas aduaneiros tanto estimam, mas nunca se viu uma impressão digital ser reproduzida cem vezes e colada numa árvore. Muito menos com a palavra wanted escrita por baixo. Podia dizer procura-se, mas é mesmo o wanted que quero marcar. To want, do verbo querer, está muito mais certo do que o português procurar. Quer-se. Deseja-se. Seja por razões jurídicas ou amorosas, um rosto é quase sempre procurado por causa do desejo. Pode ser um desejo amoroso. Saudade e bem querer, essas coisas. Mas também pode ser um desejo de segurança, de poder, ou mesmo de dominação. Antes da difusão das impressões digitais, na América do Norte dos séculos XVII e XVIII, os escravos, se saíssem durante a noite e sem os seus senhores, eram obrigados a carregar com eles lanternas ou velas. Era necessário que os escravizados – a ameaça ao poder estabelecido – caminhassem com o rosto visível. No mundo globalizado do século XXI, onde a cada dia brotam manifestações de descontentamento e libertação, já não são necessárias lanternas para aceder a rostos na multidão. Bastam as câmaras de vigilância, e um algoritmo.

O reconhecimento facial funciona por geometrias detetáveis – a distância entre os dois olhos, ou entre o queixo e a testa – e por correspondências. Há alguns anos, foi lançado um projeto, o CV Dazzle, que ensina a confundir o algoritmo através do próprio rosto. Para isso, cria-se uma espécie de antirrosto. Tem tudo a ver com camuflagem, nada a ver com indumentária. São pinturas faciais, coloridas, um bocado cubistas até, e que perturbam a ligação entre a máquina que lê a cara e a própria cara. Pinceladas vermelhas, azuis, brancas, fazem da face do manifestante, nem que seja apenas durante a caminhada, uma face nova. Distinta. Impressionantemente tribal. Enquanto um rosto pertence a um vivo, ou a um ser humano livre, encontra sempre forma de escapar a sistemas absolutos. O rosto é tudo menos absoluto. Ele modifica-se, transforma-se, mais de mil vezes num dia se for preciso, incontáveis vezes durante a vida. Sempre o mesmo, sempre um outro. Contradiz-se. Chora a rir. Ri, de tanto chorar.

As lágrimas escorrem sempre pelo rosto. Raras são as que se mantêm presas aos olhos, imóveis. Só as lágrimas dos traidores avistados por Dante no círculo nono do Inferno permanecem quietas, congeladas como o lago ao qual estão presos pela eternidade. São lágrimas que não param de começar, ficando assim suspensas nos olhos, dolorosamente formando neles “viseiras de cristal”. E até essas, nascendo e morrendo no manancial dos olhos, até essas acontecem no rosto. Mesmo que não escorram. Impressionante pensar naquele paninho que Arsénio, Padre do Deserto, mantinha sobre o peito para enxugar as lágrimas que sem cessar lhe caíam pelo rosto. Um peito é que segura um rosto, não exatamente o pescoço.

Cara, pescoço, cabeça: é o que mais ansiamos ver quando nasce um bebé. A cena de natividade, mesmo que acompanhada pelo pai e por quem quer que esteja a dar apoio, é um gesto particular entre mãe e filho. Aquele encontro de um rosto e outro talvez seja o maior e mais impactante embate da história de mundo. E embora se repita diariamente, a cada minuto e por todo o planeta, cada uma destas reuniões – em que a cara de mãe descobre a cara do filho – é uma epifania. Estrondo, visão, elã, labareda: nenhuma palavra é suficiente para descrever esta apresentação dos rostos. Olá, sou a tua mãe. Eis a transcrição do exalar que a mulher dirige ao bebé, logo respondido pelo hálito puro que ainda não descobriu a palavra, mas o amor sim.

A partir daqui há sempre o mundo a interpor-se entre dois rostos. Logo após o encontro, entram os outros na sala. E desatamos a tirar parecenças, porque o ser humano tem esta mania de falar sem parar quando acontece um momento de plenitude. Queremos descobrir o que é do pai, o que é da mãe, o que será talvez do avô ou da bisavó naquele rosto novo, acabado de chegar. E claro que existem quase sempre pequenos estilhaços do espelho na frente do qual se olharam vezes sem conta os progenitores. Mas também há exceções, e já Lucrécio terá escrito sobre elas no seu “De rerum natura”. Diz-se que o filho do amor é, no fim das contas, igual apenas a si mesmo. 

Habitando a própria cara agora inteira, só sua, a criança faz silêncio. Após o primeiro grito, cala-se. Observa o mundo ao qual chegou, que é feito de enormes rostos que cirandam em sua volta. Se tudo correr bem, também o seu rosto ficará grande, marcado, envelhecido. Aquela cara de criança sofrerá transformações, e será de homem, de mulher. E sempre que regressar ao silêncio da face, regressará um pouco a casa. Escreve assim Giorgio Agamben: “Um belo rosto é talvez o único lugar onde há verdadeiramente silêncio”. E ainda: “O silêncio do rosto é a verdadeira morada do homem”.

Um rosto é das coisas mais difíceis de se descrever em literatura. É talvez mais simples refletir sobre ele do que narrá-lo com exatidão. A cara é feita para ser vista, não imaginada. Mesmo as feições daqueles que nos são mais íntimos, se retiradas do nosso campo de visão durante demasiado tempo, se tornam turvas. Um amigo que viajou há anos, cujo rosto tão bem julgamos conhecer, regressa para se sentar à nossa frente. A sua cara é outra cara. Convencemo-nos de que foi a passagem dos dias que a tornou distinta, que são as rugas, a mudança de cor que afeta quase todas as peles com a idade. Mas sabemos muito bem que não é isso. Na debandada, aquele rosto levou com ele a possibilidade da partilha do presente. Um rosto, como já se disse, não dura assim tanto na memória. Ao regressar, refazer-se-á, já connosco. E nunca mais será aquele outro. O rosto é coisa do agora.

Está na cabeça. Às vezes parece ser de pedra mas quase nunca é. Deita lágrimas pelos olhos, cuspo pela boca, ranho pelo nariz. Levanta as sobrancelhas. Em casos de mestria, apenas uma de cada vez. Enrubesce, e aí não há artimanha nenhuma que o possa controlar. É mesmo como Séneca explica a Lucílio: “o rubor nem se impede, nem se provoca deliberadamente”. Difícil de conter nele é também o riso. Pela cara é que se ri, nela é que tudo se abre quando alguém a quem queremos bem olha para nós. Vem daí a expressão um rosto iluminado. Está entre a testa e o queixo, chama para si o pescoço e o peito, não é nem por sombras a maior superfície de um corpo, mas, ainda assim, é. A face. O semblante. A cara. O rosto. Aquilo que vai sempre à nossa frente, que nos trai, que nos protege. Preparado, e nunca preparado, para encontrar os rostos que encontra.

Autorretrato, de Frank Auerbach

*

Numa pequena nota pessoal, gostaria de agradecer a Tomás Biagi Carvalho pelo convite para ser a editora convidada desta edição da Amarello. E também a Gabriela Machado, que foi ela mesma desafiada a ser editora de artes visuais da edição. Pensar uma revista quase de raiz foi uma aventura, um empreendimento e, acima de tudo, um desafio. Não podia ter acontecido em melhor companhia. Desde pensar o tema sobre o qual nos debruçaríamos até aos detalhes finais de capa, tudo foi gratificante. Olhando para trás, já não sei dizer exatamente como foi que chegámos ao rosto, um tema que afinal é recorrente, constante, e que a toda a hora nos rodeia. Sei que a todos nos agradou, e foi agradando a cada dia mais.

Dividimos o trabalho. Eu pude escolher alguns colaboradores e mais tarde rever as suas produções. Gabriela escolheu outros, Tomás outros. Willian Silveira, Roberta Ferraz e Bruno Cosentino – também eles parte da equipa editorial habitual da revista, e a quem também agradeço – escolheram e reviram outros. Cada um de nós foi pensando em pessoas cujo trabalho estava, ou poderia estar, assente na ideia de um rosto. Decidimos com quem poderíamos conversar. Escolhemos lugares aos quais um rosto podia estar ligado. Imaginámos o cinema de um rosto. Pensámos a música que poderia acompanhar tantas caras, e todas tão próximas.

Rapidamente percebemos o óbvio: o tema é infinito. Há rostos por todo o lado, não param de se multiplicar. Há rostos escondidos. Há rostos que levam outros rostos dentro. Daria para fazer sete edições sobre o assunto, no mínimo. Felizmente existem Tomás e Willian, mais acostumados a estas andanças, que sabem mais ou menos quando parar. Parámos, e agora a revista está pronta. Agora é que ela começa. O leitor vai poder encontrar-se com vários rostos, de vários lugares. Algumas vezes, vão parecer-se a rostos que já conhece; outras vezes, ao seu próprio rosto. Eventualmente não se parecerão com nenhum rosto antes visto. Um rosto novo é como um novo país ou, já se verá, como uma cidade.

Robert Benchley, num texto humorístico intitulado “My Face”, escreve que todas as manhãs, ao olhar-se no espelho, encontra parecenças entre o seu rosto e os rostos de outras pessoas ou figuras. Estranhas, para ele, são as manhãs em que o seu rosto não se parece ao de ninguém. Nesses dias, conta, volta imediatamente para a cama. Eu, assim como a restante equipa da Amarello, esperamos que o leitor não volte já para a cama. Mas, se por acaso voltar, que possa levar esta revista com tantos rostos dentro, para que lhe façam companhia. 

Revista

O Rosto — Amarello 38

O Rosto é o tema da nova revista Amarello. Nesta edição, convidamos a escritora Matilde Campilho e a artista visual Gabriela Machado para pensarmos a múltipla presença da face – e suas responsabilidades – na vida em sociedade, desde a expressão artística representada na pintura figurativa até o aprisionamento de dados resultante da biometria facial.

Garanta a sua revista Amarello O Rosto aqui.

Destaque

Feira: coleção Orgasmo



Amarello lança nova coleção da Feira com o tema Orgasmo, apresentando produtos inspirados em curiosidades, raridades e objetos genuinamente brasileiros

Manifesto

Diante de um momento tão árido, onde a restrição dá o tom dos dias, escolhemos falar de um prazer imenso e acessível. O novo tema da feira é o Orgasmo, ápice indiscutível. Auge da vontade. 

Potência que nos faz pairar, como se o tempo parasse. Pequena morte que dá grandeza à vida, mistura de salto com tropeço, de fim com recomeço, de vácuo com exagero. Excesso de beleza, excesso de som, excesso de gesto. A felicidade aparece, contraída e alongada. O espanto se alarga.

Todos os sentidos transbordam desejo, ganhando a carne e dando morada ao corpo. Vamos à borda da borda e voltamos. Voltamos como se nunca antes, voltamos como se sempre. É quando somos tão humanos que soltamos as rédeas do ser, ultrapassamos. A força e a vulnerabilidade à galope, incrivelmente juntas, incrivelmente conectadas. Quentes, tamanha fricção.

Doze colaborações dão corpo a essa chama. Criações que deram toques, olhares, aromas e sabores ao Orgasmo. Em comum, o uso caloroso das mãos, a experimentação e a intensidade que é própria do auge.Ter, na unidade do corpo, todos os tesões possíveis.

Tomás Biagi Carvalho

Saiba mais sobre a Feira Orgasmo aqui

Fotos de João Wainer
ArteMúsica

Rhonda completa

Álbum mais maduro e enigmático da cantora Silvia Machete teve São Paulo como palco criativo e, ao completar um ano, ganha de presente versões pulsantes com todas as faixas remixadas 

Quando você muda de cidade, de certa forma, renasce. A nova atmosfera abre outros espaços, situações e desejos. E você se vê, naturalmente, em um papel diferente. Foi o que aconteceu com a cantora, compositora e performer Silvia Machete, 45 anos, quando deixou o Rio, cidade onde mais viveu, para ir morar em São Paulo. “A mudança acionou um gatilho muito excitante pra mim. Parecia que eu estava em Nova York. Perdi minhas referências… E surgiram melodias diferentes, ganhei uma nova voz, que saiu em inglês!, fora do meu controle”, revela. Silvia fez Rhonda apaixonada por todo esse movimento que acontecia ao seu redor. “A combinação desses fatores me levou a este clima misterioso e envolvente que tem no disco”, afirma. 

O processo de criação foi em 2019, pré-pandemia, e o lançamento em 2020, já com tudo fechado. Para Silvia, acostumada ao palco e à exposição, foi mais um desafio. As cortinas fechadas e o lançamento sóbrio e menos explosivo, entretanto, combinaram com o disco. “Finalmente consegui ser cool”, brinca a cantora, famosa por suas performances extravagantes, como a que faz malabarismos com o bambolê enrolando um cigarro, o chamado “número do bambolê”.   

Silvia sente que Rhonda é seu trabalho mais maduro e que lhe dá prazer de ouvir e reouvir. “Eu não costumo me ouvir. Mas  Rhonda é tão diferente de tudo que já fiz. Gosto de escutar e reviver o momento da composição. Acho sexy”, define. Os elogios da crítica endossam seu feeling. O disco comemora um ano agora se reinventando, com todas as faixas remixadas por grandes produtores amigos dela (veja abaixo a lista dos participantes, faixa a faixa).  A ideia é acompanhar o movimento do mundo, já mais pulsante do que em seu lançamento. As músicas ganham maior vibração. O primeiro single sai nesta sexta, 06/08, com remix do conceituado produtor Kassin: “Acompanho a Silvia desde sempre, e sempre a admirei, mas considero Rhonda o melhor disco dela. Ela me convidou pra remixar uma faixa, escolhi “Forget to Forget”, quis fazer algo vazio pra explicitar a beleza da letra e da melodia em contraste com a bateria eletrônica”, destaca Kassin.

Os próximos remix saem em setembro, outubro e novembro e em dezembro ela lança o álbum completo, Rhonda Revisite. “Gosto de pensar neste álbum como o som de um motor de motocicleta, sensual, te embalando”, traduz. Que agora dá mais um arranque. 

Rhonda – Revisite por Silvia Machete

Lips Leo Marques (Ilha do Corvo) 
Soon Regis Damasceno 
Forget to forget Kassin
I love missing you Diogo Strauz 
Meesy eater Rockers Control 
Carrousel Lalo’s Dub 
One of the kids you know – Alberto´s Alberto Continentino
Great mistake Grand Piano version Chicão 
So many nights Nomade Orquestra 
Cactus Olympyc

Ouça Rhonda no Spotify, Deezer, iTunes e todas as principais plataformas de streaming 

Além do talento para a dança, Mayara Magri demonstra habilidade para encurtar o tempo e o espaço. Foi assim que a menina, que ensaiou os primeiros passos apenas com a pretensão de melhorar a coordenação motora, transformou a obsessão por um vídeo em realidade: “eu era fascinada pelo DVD de La Bayadère, com Darcey Bussell e Irek Mukhamedov. Assistia sempre no Brasil, sabia de ponta-cabeça a coreografia”. Se nos primeiros anos em Londres, quando a jovem ainda precisava provar aonde poderia chegar, Mayara compensava a falta da família e a distância do Rio de Janeiro com ligações diárias pelo Skype, foi com o mesmo talento que fez do balé de Darcey Bussell parte do seu cotidiano, ao assumir o posto de bailarina principal de um dos palcos mais prestigiados do mundo, o do Royal Ballet.

Em uma conversa diretamente de Londres, Mayara nos contou um pouco da sua trajetória, do planejamento para alcançar seus objetivos e de como tem sido viver seu sonho de infância.

Mayara, como você ficou sabendo da sua promoção para bailarina principal do Royal Ballet?

A pandemia trouxe a incerteza também para dentro da companhia. Eu tive uma reunião com meu diretor em novembro do ano passado, e ele me falou que não tinha como ser promovida naquele momento. Eles estavam mandando muita gente embora, então era impossível, mas que eu estava no caminho, que não precisava me preocupar. Estou na nona temporada na companhia e posso perceber que ele confia muito no meu trabalho, até por ter feito vários papéis principais mesmo sendo primeira solista. Após o segundo lockdown em Londres, recomeçamos as atividades unindo vários programas e balés. Então, uma semana antes de abrir o teatro, em maio, ele me ligou e falou: “dá um pulinho no meu escritório, que eu quero falar com você”. Fiquei pensando: “tem apresentação hoje à noite, provavelmente vou ter que assumir o lugar da menina para quem eu faço o segundo cast”. Na minha cabeça, estava prevendo a desculpa que daria. Quando entrei no escritório, ele falou: “sei que a gente conversou em novembro passado, mas acho que consegui uma brecha e vou poder promover você. Vamos anunciar na semana que vem. Será para a próxima temporada, a partir de setembro”. Foi muito de surpresa. Ele não me deixou nem sentar na cadeira. Fiquei emocionada somente quando liguei para a minha família. Tem sido maravilhoso ainda não ter a pressão da estreia [a temporada de Mayara como bailarina principal inicia apenas em setembro de 2021], mas poder sentir as pessoas. Percebi a mudança de atenção há algumas semanas, durante uma abertura de Apollo. Eu estava de primeiro cast da Royal junto com o Vadim Muntagirov, que é uma estrela russa, e pensei: “nossa, nunca fiz este papel e estou sendo jogada na noite de abertura”, que é quando vêm as pessoas mais badaladas assistir. Foi ali que me atingiu a pressão. Mas eu tento ver de uma forma positiva.

Qual é a sua primeira lembrança envolvendo a dança?

Eu comecei aos 6 anos, e lembro de ter visto uma amiga fazendo balé na Petite Danse. Na época, eu fazia apenas umas aulas recreativas, para trabalhar coordenação motora, quando essa menina veio mostrar que conhecia uns passos diferentes. Foi aí que ela disse: “eu faço aula na Petite Danse, na Tijuca, pertinho da gente. Por que você não tenta uma bolsa?”. Coloquei isso na cabeça e fui perturbar minha mãe com essa ideia. Iniciei em um projeto chamado Projeto Social Dançar a Vida, pois meus pais não podiam pagar, inclusive porque éramos três irmãs, e o que uma fazia as outras também tinham que fazer. Minha família não tem uma história com o mundo artístico. Eu nunca tinha ido ao teatro ou assistido a um balé, mas sabendo desse projeto social, minha mãe arrumou a gente direitinho, de sapatilha, de collant, e fomos tentar uma bolsa. Quando chegamos lá, tinha se passado uma semana dos testes, muita gente tinha entrado. Por sorte, a dona da escola, a tia Nelma, que até hoje chamo de “Fada Madrinha”, aceitou dar uma olhada nas minhas irmãs e em mim. E ficou apaixonada pelo nosso potencial físico. Ganhamos três bolsas e começamos a estudar. A Petite Danse é excelente nisso, porque, mesmo sendo uma escola privada, ela consegue integrar os bolsistas nas turmas, então não há diferenças. O senso de inclusão é muito grande, o que se torna essencial nesse momento de diversidade que estamos vivendo. A partir de então, tudo se transformou. Comecei a viver o balé a toda hora, de uma forma muito intensa. 

Quando percebeu que você estava dançando balé e realmente gostando?

Eu sempre curti muito a disciplina da técnica clássica. Sempre fui muito organizada com as minhas coisas, cuidadosa com os detalhes, e acho que essa característica funcionou muito no ambiente do balé. Foi aí que eu me encontrei, nessa forma de buscar o que é necessário para aperfeiçoar uma pirueta, por exemplo, ou como melhorar a flexibilidade. Esse sentimento de responsabilidade e disciplina que tem em mim me ajudou muito, desde pequena. Lembro até de pedir para minha mãe para deixar a aula de Educação Física da escola porque eu não queria virar o pé e me machucar por causa do ballet, não queria jogar vôlei de manhã e ter que fazer balé à tarde. Mas ainda tendo essa consciência de priorizar e focar, nunca imaginei que faria carreira no balé ou quão longe poderia ir. Mesmo a diretora comentando que eu tinha possibilidades de ter uma trajetória fora, isso sempre foi algo um tanto distante, tanto para mim quanto para minha mãe. 

Dos oito anos que você passou na escola, quando sentiu que poderia realmente se tornar uma profissional?

No Brasil, a maneira como a gente treina passa por colocar a criança no palco o mais cedo possível para dançar, ganhar experiência e se soltar. Então, comecei a perceber o meu potencial através das competições regionais e nacionais, ganhando medalhas e ficando várias vezes em primeiro lugar. Mas quando competi internacionalmente, em Cuba, foi um baque, porque fiquei em segundo lugar. Depois disso, fui para Nova York, e também não ganhei nada. A partir daí comecei a pensar que, se eu quisesse realmente trabalhar fora do Brasil – que é onde podemos desenvolver o balé como carreira – era preciso me dedicar completamente e ter um planejamento. A decisão dos meus professores de me treinar para ir para fora ocorreu mais ou menos quando eu tinha uns 14 anos, junto com a patrocinadora que eu consegui para esses dois anos – uma mulher que era apaixonada por balé e esporte, apoiando jogadores de vôlei, nadadores, e queria também patrocinar uma bailarina. Lembro que foi a primeira vez que eu realmente sentei de uma forma um pouco mais profissional para discutir o que faríamos nos próximos anos e quais as nossas metas. E foi fantástico. A gente fez uma linha do tempo, e a Nelma [diretora da escola] falava: “ela vai para Joinville; ganhando em Joinville, ela vai para Córdoba; ganhando a competição de Córdoba, ela vai para o Prix de Lausanne. Quando chegar ao Prix de Lausanne, se ela ganhar, tem a opção de escolher para onde quer ir”. Quando essa trajetória se cumpriu, eu escolhi o Royal Ballet de Londres, mas não pude ir direto para a companhia, porque era muito nova. Fiz um ano na escola do Royal. Olhando para trás, parece até bizarro de acreditar que cumprimos todas essas etapas para as coisas darem certo. Quando se tem um foco, algo com começo, meio e fim, isso ajuda te direcionar em todos os sentidos.

Quando você pôde decidir para onde ir, surgiu a possibilidade dos Estados Unidos. Como foi a decisão pelo Royal? 

Para mim, a decisão foi óbvia. Talvez por assistir a muitos vídeos do Royal Ballet. Mas a Patrícia [Patrícia Salgado, professora e ex-solista do Balé de Stuttgart] até falava: “não, o seu estilo é mais América, você tem que ir para San Francisco”. Quando perguntam por que não escolhi outra companhia, penso que foi porque botei na cabeça que queria o Royal e vim. Muito estranho. Eu acredito muito nesse negócio de energia, de destino, assim como não consigo me imaginar em nenhuma outra companhia. O início foi um pouco difícil. Precisei me acostumar ao estilo deles, com a metodologia diferente, sem falar bem inglês. Cheguei aqui sozinha e procurei não enxergar isso de forma negativa. Falava com minha família todo dia pelo Skype e procurei manter o mesmo foco de quando estava no Brasil. É normal imaginarmos, hoje, que ter feito o último ano na escola do Royal ajudou a me lapidar, mas acho que o meu diferencial está em ter tido muito mais tempo de palco do que todas as outras estudantes da escola. De certa forma, é triste, porque as minhas colegas passaram oito anos na escola do Royal, enquanto eu cheguei no último ano e ganhei o contrato. Éramos 15, e apenas duas conseguiram. A diferença do brasileiro é essa, ele não tem medo de palco. Essa confiança na apresentação vem desde muito cedo, no solo, na técnica, e isso entrega algo de diferente. 

Como foi seu encontro e a adaptação à técnica inglesa de balé?

Foi bom ter vindo para Londres muito jovem, porque eu estava ainda nesse processo de aprender e me adaptar. E quando se mistura o jeito brasileiro de dançar com a técnica inglesa, funciona, porque, por um lado, os balés ingleses, de MacMillan, são muito reais. Há os clássicos, A Bela Adormecida, O Lago dos Cisnes, que são tradicionalíssimos e têm uma forma específica de serem feitos, e os balés do século XX, que são mais dramáticos e humanos, eu diria. Acho que, quando os brasileiros têm a oportunidade de fazer o Romeu e Julieta ou Manon, cai como uma luva. Você tem a técnica, que é ainda bem inglesa, quadradinha, até simples — não como a técnica russa, de perna muito alta, de saltar o máximo que conseguir. O estilo inglês é mais contido, e é fundamental o bailarino ter a capacidade de se adaptar, em todos os sentidos. Desde que eu entrei, a companhia mudou muito. Quem me deu o contrato foi a Monica Mason [antiga diretora do Royal], e minha primeira temporada foi com o Kevin O’Hare. Agora, nós temos uma variedade enorme de balés. Isso significa que você não faz tanto os clássicos, mas um pouco de tudo, inclusive os contemporâneos. Então é essencial ter essa habilidade de se adaptar a estilos, movimentos e tipos de dança diferentes. Essa versatilidade de se mover de várias maneiras é uma das principais características do bailarino brasileiro. 

Antes de a pandemia fechar os teatros, vocês estavam ensaiando O Lago dos Cisnes. Como foi esse momento de interrupção e incerteza para vocês? 

Faltavam duas semanas para minha primeira apresentação, que, no caso, seria o auge da minha carreira. O Lago dos Cisnes é realmente um marco para qualquer bailarina, e ficou tudo para depois. Pensaram em retomar entre o final do ano passado e este, mas perceberam que seria pouco tempo para entrarmos em forma tão rápido. Vai ficar para a próxima temporada, o que não é tão ruim, pois vou poder fazer com meu namorado, Matthew Ball, que é um bailarino fantástico. Talvez isso gere um pouco mais de pressão, por já ter de surgir em O Lago como primeira bailarina, mas é um balé que estou esperando muito para poder fazer, então será uma experiência incrível.

Você passou por várias posições no corpo de bailarinos do Royal. Qual foi a mudança mais significativa na sua rotina nessa evolução de responsabilidades até chegar a ser primeira bailarina?

Eu passei três anos no corpo de baile, fazendo tudo que era papel, enquanto eles me davam oportunidades, aqui ou ali, de fazer um solo em A Bela Adormecida, por exemplo. Nessa época, o trabalho acumulava, porque juntava a obrigação com o corpo de baile e mais esses extras, que você acaba aceitando porque quer mostrar que consegue fazer. Quando você se torna solista, a responsabilidade aumenta. No meu caso, foram três anos entre ser solista e primeira solista, algo complexo de conciliar, inclusive com as limitações do corpo, de encontrar um momento em que consiga estar satisfeita com o seu trabalho e não esteja com dor ou brigando com alguma lesão. Quando ainda era corpo de baile (chamamos aqui de primeira artista um cargo elevado no corpo de baile), tive a oportunidade de fazer Myrtha, um papel importante em Giselle. Assumi a responsabilidade de fazer esse papel no primeiro ato e as Willis no segundo ato. Se só de ensaiar você já fica exausta, quando acumulei todos os papéis acabei me lesionando. Arrumei uma lesão no metatarso, fraturei um osso do pé e fiquei parada três meses por causa disso. E acontece muito quando você entra na companhia. Especialmente quando você é jovem, quer muito fazer tudo, e o corpo não aguenta. Foi minha primeira lesão, aos 22 anos. Conforme você avança no rank da companhia, as apresentações diminuem, você passa menos tempo no palco, mas os papéis se tornam mais difíceis e com mais pressão. Comentei com o Kevin, que é o nosso diretor, que eu não quero fazer menos papéis agora que sou bailarina principal, porque acho muito importante para o balé ter os bailarinos principais em outros papéis também; é saudável. 

Falando em papéis, quais foram os mais marcantes na sua carreira?

Eu adorei fazer Kitri, em Dom Quixote, porque me identifiquei muito com o personagem. Era como ser eu mesma no palco, sabe? São três atos de pura energia, um balé bem virtuoso e técnico. No ano passado, fiz Coppelia, e curti muito viver essa história de garota jovem, que está amando pela primeira vez, que está sendo sapeca, brincalhona. Esqueci que estava no palco quando interpretei Swanilda. E adorei fazer Gamzatti, em La Bayadère, um papel incrível também. Outra dessas coisas do destino, aliás: eu era fascinada pelo DVD de La Bayadère, com Darcey Bussell e Irek Mukhamedov. Assistia sempre no Brasil, sabia de ponta-cabeça a coreografia. Cheguei aqui para fazer, e de quem era meu tutu? De Darcey Bussell. Dancei com o tutu da Darcey Bussell! Incrível a conexão. Ontem teve ensaio de palco de A Bela Adormecida, que a gente vai fazer só o terceiro ato nesse último programa, e quem faz o príncipe é o Federico Bonelli, primeiro bailarino aqui da companhia há vinte anos, um italiano maravilhoso. Ele estava ensaiando com uma bailarina nova, e eu olhei para ele e disse: “Federico, quando eu estava no Brasil, uns doze anos atrás, eu estava sempre louca com um DVD de A Bela Adormecida com você a Alina”. E ele falou assim: “uau, e olha onde você está hoje”. A gente teve essa conversa, de perceber que loucura que é a vida, sabe?

Tenho certeza de que são esses momentos que tornam essa sua conquista tangível, não é?

Sem dúvida. Eu não sei se é porque agora eu estou meio que procurando por esse momento, ou seja, estou percebendo que não existem muitos momentos como esse que estou vivendo. Fico pensando, nossa, como que eu, nascida no Rio de Janeiro, vinda de uma família tão simples, acabei aqui, trabalhando nessa companhia e fazendo parte dessa vida superartística, única, diferente de todas as pessoas que eu conhecia antes.

Olhando para frente, quais papéis você gostaria de fazer?

A companhia aqui é grande, e eu estava sempre de stand-by para a Sugar Plum Fairy, a principal de O Quebra Nozes, e vou fazer, finalmente, em dezembro. Já tenho minhas apresentações marcadas. Outro papel que eu sempre quis muito é Julieta, em Romeu e Julieta do MacMillan. É um balé que eu sempre quis fazer, porque é dramático, e tão pessoal. A maneira como você interpreta, ninguém vai vir e assistir à sua apresentação e querer que você faça de uma maneira diferente. Acho que os balés clássicos, como O Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida, têm essa pressão extra de que tem que ser dessa forma, a perna tem estar alta em certa altura, e às vezes eu fico um pouco aflita com isso, porque, por mais que você queira ter sua própria interpretação, você fica com aquilo na cabeça, um pouco presa à imagem que tem do balé. Mas os balés mais humanos são os de MacMillan. Você pode fazer da maneira que quiser e como estiver se sentindo no dia, sabe? Se quiser mudar tudo que estava pensando durante os ensaios e tiver algo diferente no dia, você faz. E ninguém vai te julgar dessa forma. Então estou muito animada para fazer esse papel. Acho que vai ser incrível.

Você comentou que vai mudar de partner para O Lago dos Cisnes. Como se dá essa escolha do parceiro de dança dentro da companhia? 

É uma decisão do diretor de colocar uma pessoa para dançar com outra e ver se funciona. Depois de algumas apresentações, se as duas partes gostarem de trabalhar juntas, e o diretor entender que funciona, então a parceria começa a se repetir, a ficar mais fixa. Por agora, eu acho que ele ainda está testando. Os três papéis grandes que eu vou fazer na próxima temporada são com dançarinos diferentes. Mas a ideia é que, dentro de alguns anos, eu tenha um bailarino fixo para poder desenvolver uma parceria artística. 

Em geral, o que tem inspirado você, tanto no mundo da dança quanto fora dele?

Nossa, muita coisa. Na dança, sempre tive meus olhos em Darcey Bussell, Marianela Núñez, essas bailarinas maravilhosas. Mas, agora que estou aqui dividindo espaço com essas pessoas, eu não consigo escolher uma delas para ser a minha ídola. Acho que cada pessoa tem algo diferente, em cada papel, que, se você é esperto o suficiente para perceber e colocar no seu trabalho, é muito legal. É difícil você ter um bailarino que consegue fazer tudo maravilhosamente bem, então cada um tem seu ponto forte em algum aspecto. Na vida, em geral, eu adoro dirigir por Londres. É tão calmo. Adoro meditar também. Viajo para o campo, e lá encontro uma paz maravilhosa. Eu e meu namorado também adoramos música clássica e vamos a uma casa de concertos que tem aqui. Desde a pandemia, a gente passou a curtir muito música clássica, então eu assinei a The Berlin Philharmonic e, nossa, adoramos assistir às sinfonias e buscar sobre os compositores. É algo muito ligado, também, ao que a gente faz, e às vezes eu penso que os bailarinos não estão tão conectados com a música da maneira que deveriam estar. Às vezes, ficamos muito focados na coreografia e esquecemos que, se você interpretar a música de uma maneira diferente, única, você consegue adicionar a essência que ela transmite para o passo que está fazendo. Isso é um aspecto que tenho começado a buscar. Comprei um teclado e tentei me ensinar a tocar piano, mas acho que é um pouco tarde para mim [risos]. Em Londres, ainda, tem toda a programação de museus, que é um tipo de inspiração muito rica. Para você poder criar as histórias na sua cabeça ao interpretar um papel, você tem que ter visto maneiras diferentes de se pintar, de se atuar. Você tem que ter provado disso para poder escolher como interpretar.

Você está evidentemente muito adaptada, Mayara. Se você gosta de dirigir na mão inglesa, então você passou no teste.

Minha mãe fala isso! “Você está muito inglesinha.”  Mas realmente, agora minha vida está aqui. Estou até fazendo o curso da Royal Ballet School para ser professor.

Imagino que ensinar seja uma vontade sua para o futuro. No Rio de Janeiro ou em Londres?

O fato de estar aprendendo a ensinar me ajuda muito como bailarina, é algo que acaba funcionando muito para o meu desenvolvimento atual, inclusive no palco. Sobre ensinar e onde ensinar, bem, isso é uma ideia. É uma boa ideia, mas, por enquanto, fica para o futuro [risos].

Alguns momentos nos marcarão mais do que outros. No caso de Lila, a cantora e compositora amapaense radicada no Rio de Janeiro produzia o seu primeiro disco, depois de uma série de singles e EPs nos últimos anos, quando a maternidade surgiu de forma a arrebatar qualquer prioridade. Neste instante, percebeu que não havia outro caminho senão o de recomeçar do zero, incorporando a experiência pessoal como matéria artística.

Destaque do cenário musical brasileiro desde o Prêmio Multishow, em 2015, quando figurou como artista revelação, Lila lança com Puérpera o seu aguardado álbum solo. Com produção de Diogo Strausz e Tomás Tróia e participações de Letrux e Ana Lomelino, o disco chega acompanhado de um zine digital, para complementar visualmente a proposta de um intenso percurso sonoro nas transformações do corpo e da alma. Ou, como Lila mesmo descreve a energia deste trabalho: “Puerpério é a vivência do luto da mulher que você era e nunca voltará a ser”.

Leia a seguir a conversa que tivemos com Lila sobre o processo criativo de Puérpera, e com Pepe Garcia, parceiro na concepção do zine.

Escute Puérpera aqui e leia o zine aqui.

“Sei que trago no corpo e na alma tudo que aprendi nesses três anos”

Como você enxerga o papel do feminino em Puérpera?

O Feminino é o princípio e o fim desse disco. A musa inspiradora e a arte criada. A fagulha e as cinzas. Uma tentativa minha de capturar, em forma de música e depois imagem, provas internas irrefutáveis da existência do númem Feminino Selvagem.

Você abriu mão de um um álbum que estava preparando para começar Puérpera do zero. Em que momento sentiu que abordar a maternidade e uma experiência tão pessoal seria o material que daria forma ao seu disco de estreia?

Eu estava já mergulhada na feitura de um disco, ou seja, imersa em processos criativos, quando me vi cercada de inspiração e sensações que precisavam ser transmutadas de alguma forma. Foi inevitável e imperativo que fosse sobre isso, e só sobre isso, o disco. Nada mais me dava tesão para criar e o que tinha feito até então já não tocava fundo a minha alma. Fazer arte pra mim é sobre dar vazão e transbordar o que tem te preenchido internamente. Um registro poético sobre o estado da sua alma naquele momento. É sobre o presente.

Como nasceu a ideia de convidar a Letrux e a Ana Lomelino para participarem do álbum? Como se deu o processo de trabalharem juntas?

Queria muito ter outras vozes femininas nesse disco. Ampliar as mulheres, suas falas e ideias dentro desse universo que eu estava propondo. Letícia e Ana sempre foram inspiradoras e muito poderosas para mim. Duas mulheres que, com sua autenticidade pessoal e artística, me moviam criativamente a cada show e troca que eu tinha com elas. Os processos foram todos à distância, mesmo antes da pandemia. No caso da Letícia, mandei a base musical para ela e expliquei um pouco do que eu estava fazendo no disco e ela me devolveu já com melodia e letra de um grande pedaço da música, fomos ajustando juntas até o fim da forma que está no disco. Já a Ana, fui trocando com ela ao longo do disco. Chamei ela para ser parceira em Lunação, mas quando mandei as idéias que eu tinha de letra e melodia ela me disse “essa música tá linda, mas já está pronta”. Continuamos trocando até que tive a ideia de que ela fizesse um texto para abrir a música da Letícia para que ela pudesse declamar. A primeira ideia que ela me mandou já foi essa revelação poética linda que está no disco.

A composição das letras foi surgindo aos poucos, durante as gravações, ou foi um processo intensivo, vindo diretamente do que estava acontecendo na sua vida?

Cada música teve seu processo e nasceu de um jeito, mas esse disco teve uma peculiaridade em comum muito desafiadora. Como já estávamos em estúdio produzindo outro disco, Diogo me propôs de começarmos as canções pelas bases musicais para que eu compusesse em cima delas. Seria uma forma de continuarmos com a mão na massa e eu poder, ao longo das minhas vivências, ir transformando tudo aquilo nas canções. Tomás e ele foram então estruturando toda parte de harmonia e beats e depois de algumas trocas e alguns dias de estúdio eu estava com umas sete bases para criar em cima. Um jeito novo pra mim de compor que acabou ressoando com toda aquela novidade de sensações e vivências. Claro que houve momentos difíceis em que achei que não fosse conseguir, mas os momentos recompensadores em que criei melodias e letras que traduzem exatamente tudo o que eu estava sentindo me fortaleceram como artista.

Os produtores Diogo Strausz e Tomás Tróia estiveram com você desde o início do projeto? Qual foi a contribuição deles para o resultado final?

Sim. Assim que decidi que ia começar meu primeiro disco com algumas canções que eu já tinha prontas, chamei o Diogo, que tinha acabado de se mudar para São Paulo, e ele achou que Tomás somaria muito bem para nossos processos. A amálgama criada por Diogo, Tomás e eu fez o disco ser o que é. Trocamos muito em relação às estéticas musicais e referências que eu gostaria que estivessem presente e eles, com suas sensibilidades, foram traduzindo e produzindo toda a parte musical para que eu pudesse criar as canções em cima. Algumas músicas eu interferi mais como em Puérpera e outras, eles não interferiram em quase nada como Criadora, mas a grande maioria das faixas já estavam bem próximas da versão final que está no disco. Pensando em retrospecto agora, acho que a principal contribuição deles foi terem tido calma e respeito para esperar esse disco acontecer. Foram quase 4 anos para o álbum ficar pronto e ser lançado e acho que o tempo foi fundamental para que ele fosse amadurecendo sem pressa e viesse ao mundo no tempo certo.

Puérpera chega acompanhado de um zine digital, do qual você assina a direção criativa junto ao Pepe Garcia. Além do evidente trabalho conceitual vigoroso e do diálogo com a natureza e o selvagem, como se deu o processo de criação e produção desse material visual? Quais foram as principais referências?

O disco ficou pronto no início do ano passado e seguramos seu lançamento por causa da pandemia. Mesmo pronto ele continuou amadurecendo dentro de mim. A pandemia possibilitou também um encontro entre a minha artista e a do meu companheiro. Eu e Pepe ficamos isolados na roça numa espécie de residência artística e nos jogamos nas experimentações sem pretensão de nada em especial. Com o tempo nossa linguagem foi amadurecendo, chamei Rachel Sioli, estilista, e minha  irmã, Malu von Kruger, que é figurinista e carnavalesca, para trocarmos e produzirmos alguns figurinos com tecidos de carnaval que já tinha. Nossa ideia era produzir imagens simbólicas para criar um repertório que desse conta dos universos poéticos das músicas.

Pepe Garcia: Apesar da criação da zine ter sido feita muito em conjunto, ela estava totalmente a serviço da mensagem da Lila. Ou seja: quanto mais estivesse potencializando a mensagem do álbum, mais potente ela seria. Como convivo muito com a Lila, sei de todas as camadas que estão por trás das suas letras, e de como isso abriu muito a minha cabeça, conhecendo tão profundamente sua visão de mundo e da energia feminina que ela tem. Tudo na zine foi pensado para conseguir fazer com que muitas dessas mensagens fossem se sedimentando em camadas no que estávamos produzindo.

Como imagina que será o desdobramento e o impacto de Puérpera nos seus próximos trabalhos?

O processo de amadurecimento que vivi para produzir esse disco e essa zine ampliaram muito minha visão e atuação artística. Difícil pensar hoje em como será o trabalho de amanhã, mas sei que trago no corpo e na alma tudo que aprendi nesses três anos.

Gerald e Sara Murphy

“A mais enxuta e gratificante crônica sobre a Paris da Geração Perdida”

CulturaLiteratura

Viver Bem é a Melhor Vingança

Gerald e Sara Murphy foram um casal de expatriados americanos que se mudou para a França, após a Primeira Guerra Mundial. No Velho Mundo, tornaram-se o centro da boemia e da vida cultural do período de grande efervescência dos anos 20, os chamados “anos loucos”.

O casal vivia cercado de pintores, músicos e escritores. Entre eles, F. Scott Fitzgerald, seu hóspede mais assíduo, que se inspirou no casal para compor os protagonistas de “Suave é a noite”, publicado em 1934. Além do escritor e de Zelda Fitzgerald, as reuniões dos Murphys recebiam Cole Porter, Hemingway, Picasso — que retratou Sara em uma de suas pinturas —, Léger, Gertrude Stein, Cocteau e Satie como convidados assíduos.

Entre 1921 e 1929, Gerald produziu 14 pinturas de objetos cotidianos, como lâminas de barbear, as engrenagens internas de um relógio e naturezas mortas de arestas duras e estilo cubista. Hoje, restam apenas 7 obras espalhadas pelo mundo. As outras, nunca mais foram vistas. Alguns dizem que sumiram durante a Guerra, outros que o próprio artista se desfez delas.

Nos anos 1960, pouco antes da morte de Gerald, seu trabalho foi reavaliado: de rejeitado artista bon-vivant, tornou-se precursor da Pop-art, pelo trabalho com temáticas da cultura pop, como os elementos mundanos, inspirados tanto nos comerciais de produtos americanos quanto na estética do design publicitário.

A história desse casal fascinante é contada — e um pouco romantizada, é claro — no delicioso livro Viver Bem é a Melhor Vingança, de Calvin Tomkins. Segundo o jornalista Sérgio Augusto, Calvin Tomkins escreveu nada menos que “a mais enxuta e gratificante crônica sobre a Paris da Geração Perdida e seu mais glamouroso casal de expatriados, Gerald e Sara Murphy”.

#16RenascimentoArtigo

Portfólio: Felipe Cohen

Com Felipe Cohen cai por terra o mito da experiência direta. Suas colagens, esculturas e instalações exploram a subjetividade, demonstram o quanto a consciência contribui para cada contato com as coisas ditas reais. Em face das sombras de mármore negro, dos desenhos montados com papéis e de reflexos enganadores, para ver é preciso pensar. Seria essa a verdade sobre toda experiência? Será que a percepção é mais uma construção intelectual do que a impressão do mundo sobre nossas mentes?

Não somos autores de tudo o que nos cerca nem podemos esco-lher o que aparece ao abrir os olhos, mas o pouco que sabemos resulta da nossa própria atividade. O que existe entre as obras de arte e meras coisas senão um ato livre da vontade de ver e fazer? Pelos trabalhos de Felipe Cohen somos forçados a lidar com uma alternância entre sentido e matéria. O contraste dessas duas categorias está na origem de todas as imagens e obras de arte.

Se entre as coisas do mundo não existe explicação para a autonomia da vontade humana e causas metafísicas não nos satisfazem, então reside só na consciência a razão pela qual agimos livremente em determinadas ocasiões, quando o fazemos por dever sem tentar obter algo em troca. A arte sempre teve forte ligação com a capacidade humana de agir, pensar e sentir desinteressadamente, o que foi percebido pelo filósofo Immanuel Kant (1724-1804), cujas ideias tangenciamos. Uma boa ação é bela, ainda que trágica.

Embora a afinidade do kantismo com a arte moderna tenha propiciado uma justificativa para a abstração (como forma “pura”), Felipe Cohen constrói e desconstrói figuras mani-pulando o próprio espaço como se fosse plástico, moldável. É possível ver beleza em quaisquer objetos, sejam eles sacolas plásticas, copos, garrafas, sombras, um galho seco ou caixas de papelão. 

Belas são as relações espaciais e as forças que determinam essas relações e não as coisas em si mesmas, que permanecem inapreensíveis no interior dos trabalhos. A sacola plástica deixa de ser uma coisa banal e converte-se no tênue ponto de equilíbrio entre pesos de mármore. O mesmo ocorre com o confete, torna-se a marca de uma força que perfura a pedra.

Em algumas colagens, é difícil identificar a figura dos objetos no feixe de formas que pode lembrar uma pintura de Malevich. Nas outras, um jogo livre entre realismo e imaginação sugere a analogia com Magritte. Então, ao se aproximar do trabalho, vê-se que não há tela, desenho ou pintura, mas uma montagem de papéis selecionados pelo artista para obter uma impressão de espaço. 

Como se os “papéis cortados” de Matisse fossem rea-lizados por um pintor renascentista que empregasse todo o seu engenho para criar um espaço ilusório de acordo com os rígidos preceitos da perspectiva geométrica!

Em Matisse tudo se acomoda com leveza na dança de formas e cores que transfigura o espaço. Felipe Cohen, por sua vez, exige que cada coisa tenha um peso, não pelo que vale nela mesma, mas pelo trabalho de pensá-la.

“Esta revista surge da inteligência, filosofia,
cor, beleza, dor, raiva e afeto

#37Futuros PossíveisCulturaSociedade

Futuros Possíveis

Eu sempre erro nesta conta, mas acho que me mudei de Recife para São Paulo em abril de 2016. Encorajado pela amiga e artista maravilhosa Xênia França, topei a ideia de tentar dar seguimento à minha carreira de pianista, compositor e cantor numa cidade que me oferecesse maiores possibilidades de trabalho. 

São Paulo ainda é — ou era, pois as coisas estão mudando tanto nesse segundo ano de pandemia — a principal cidade brasileira a receber artistas vindos das mais diversas regiões do Brasil e do mundo. Nos primeiros meses, morei no apartamento de Xênia, enquanto me adaptava à nova cidade e às inúmeras mudanças que me encantavam e, acima de tudo, me assustavam.

No apartamento aconchegante, na Zona Oeste de SP, viviam Xênia e Samira Carvalho, modelo de carreira internacional, amiga e roommate desde muitos anos. Eu, muito timidamente, passei a fazer parte da paisagem daquele apartamento habitado por duas mulheres pretas, incríveis e potentes. 

Junto a mim, silenciosamente existiam ali dentro um altar em homenagem a Michael Jackson, num cantinho da sala; toalhas de mesa coloridas; plantinhas verdes e bem cuidadas; e dois exemplares da revista Amarello, sempre à vista. Foi ali, pela primeira vez, que vi, li e me encantei com a publicação. Numa delas estavam lá, lindos e pretos, Xênia França e Tiganá Santana, dentre outras personalidades negras.

Sempre que eu me permitia sair do quarto, onde morei a maior parte do tempo, sem perceber que, com isso, causava a impressão de não querer interagir com aquelas duas figuras maravilhosas que me recebiam calorosamente em seu cantinho sagrado, eu lia algum texto da revista e olhava por horas as fotos e ilustrações, deitado no sofá, enquanto ouvia as músicas que Xênia ensaiava para alguma apresentação.

Alguns meses depois, me despedi das duas amigas para finalmente alçar voo na nova cidade, morar no centro e iniciar a sequência de conquistas e dificuldades que viriam a se apresentar.

Estar em São Paulo me proporcionou lindos encontros. Através do artista e amigo Bruno Cosentino, conheci Tomás Biagi Carvalho, idealizador e editor desta revista que me encantou à primeira vista – como o título da canção de Chico César.

Anos depois, de volta ao Nordeste por conta da terrível pandemia que enfrentamos agora, recebo o convite para ser o editor desta edição que vocês têm em mãos. E eis-me aqui, a convite do querido amigo Tomás, participando de uma edição simbólica, linda, potente, trazendo pessoas incríveis, que admiro profundamente, para falar de assuntos muito caros para a comunidade preta e indígena – comunidades estas onde eu e os editores e editoras convidados existimos, como corpos e mentes políticas.

Para dar conta da diversidade de pautas, estéticas, histórias e culturas dessas duas comunidades irmãs, convidei para serem coeditores (em ordem alfabética):

Gean Ramos Pankararu, filho da comunidade indígena Pankararu no Sertão Pernambucano, que desbravou o mundo como cantor e compositor, além de ser produtor cultural, ativista e articulador indígena. Fundador da Mostra Pankararu de Música, empenhado no fortalecimento da música indígena contemporânea.

Gil Alves é soteropolitano, graduado em Produção Audiovisual, formado em dança pela Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Atuou como diretor artístico de shows de artistas/bandas como Harmonia do Samba e Encontro de Fenômenos e de espetáculos como a última edição do projeto Concha Negra e o Afro Fashion Day (Salvador), além de trabalhar na concepção artística de produtos audiovisuais. 

Seu último projeto, o videoclipe “Adupé Obaluaê” (música do meu último álbum lançado, chamado Do Meu Coração Nu), no qual foi roteirista, diretor e performer, recebeu prêmios em festivais no Brasil, Europa, África e EUA.

Hanayrá Negreiros é metade paulista, metade maranhense e mestra em Ciência da Religião pela PUC-SP. Como pesquisadora, investiga estéticas negras que se manifestam por meio do vestir, da cultura material e visual, das religiosidades e das memórias de família. Assina a coluna Negras Maneiras na ELLE Brasil.

Pâmela Carvalho é carioca, moradora do Parque União, no Conjunto de Favelas da Maré. Historiadora, educadora e gestora cultural, pesquisa as relações raciais de gênero e direitos das populações de favelas. Coordenadora do eixo “Arte, Cultura, Memórias e Identidades” nas Redes de Desenvolvimento da Maré e integrante do grupo Intelectuais Negras, da UFRJ, é uma das fundadoras do Quilombo Etu, um coletivo que trabalha a cultura popular a partir da educação antirracista.

Esta revista que você tem em mãos surge da inteligência, filosofia, cor, beleza, dor, história, poesia, luta, raiva, afeto, arte e excelência de Gean, Gil, Hanayrá e Pâmela.

Ela tem também, em seu conteúdo, a genialidade dos nossos convidados e convidadas, intelectuais, ativistas e artistas pretos e indígenas que nos inspiram todos os dias e que compartilham aqui suas vivências, afetos e tecnologias. Um grande quilombo ocupando as páginas desta revista amada, que tem no seu nome duas palavras que definem esse nosso encontro, Amar e Ello.

Como vivemos num país essencialmente preto, indígena, miscigenado e, ao mesmo tempo, racista, excludente, pensado e construído para um ideal de branquitude, espaços de discussões, de aquilombamento, de exposição da história, da filosofia, da estética preta e indígena são necessários e bem-vindos.

Conheçam e consumam as produções pretas e indígenas. Há uma fonte infinita de riqueza e de belezas disponíveis, basta querer de verdade conhecer o Brasil real – este, por exemplo, aqui também presente.

Boa leitura!

 

São tempos difíceis, eu sei: segundo ano de pandemia, instabilidade política e morosidade na distribuição das vacinas. Nesse bojo, desmonte da cultura e ausência de políticas públicas de incentivo ao setor.

Não está fácil ser artista nesse país, mas, para quem é artista preto, nunca foi – esse é o fato!

Lembro do discurso de Conceição Evaristo no prêmio Bravo de 2018, alguns meses após a morte de Marielle Franco e dois anos depois do golpe contra a ex-presidente Dilma. O clima era de tensão, e o discurso de todos os vencedores era de temor diante do futuro. Mal sabiam eles. Conceição fez uma fala assertiva sobre como o medo ali colocado sempre esteve dado a artistas negros nesse país.

Eu não conheço nenhum artista preto, amigo meu, que não tenha trabalhado, criado, e produzido na escassez. Na falta de produtor, a gente mesmo se vende, se produz, inventa um nome falso para responder aos e-mails. Na falta de estúdio, grava-se dentro do armário. Eu mesma já cansei de confeccionar meus próprios “flyers” por não ter condições de pagar um designer. É a falta que nos faz ser tão inventivos! Se não sabemos, a gente aprende; se não tem, a gente inventa. Mas cansa.

Cansa não ser remunerado adequadamente, cansa não ter a visibilidade merecida apesar do esforço em dobro, cansa não ter o mesmo reconhecimento, cansa ter de ser criadora e também fazer todo o trabalho indireto necessário para manter sua arte viva, vista e verdadeira acima de tudo. Muito se fala em solidão da mulher no campo afetivo, mas ela tem várias nuances, pois me sinto só nessa corrida competitiva pelo sucesso e reconhecimento. “Eu sou minha própria embarcação, minha própria sorte”, frase cantada em meu primeiro disco, nasce dessa sensação de que, se eu não fizer por mim, ninguém o fará.

A despeito de tudo, há motivos para continuar! Porque a arte sempre foi uma tecnologia de sobrevivência e resistência de um povo; era com as cantigas de capoeira que se planejava a fuga, era com a dança do jongo que o mapa ao quilombo era passado. A arte não só sustenta a mim e minha família como me mantém sã; ela me cura antes de curar quem me escuta, me faz rememorar que o canto é ancestral e, para nós negros, ela serve bem mais que para pura arte e entretenimento, serve para a manutenção das nossas existências materiais e simbólicas.

Há 500 anos sobrevivemos ao Atlântico. Sobreviveremos a essa maré ruim dos últimos tempos também.

Fotos de Davi Reis no ateliê de Alberto Pitta, em Salvador

Criar e estampar os tecidos. Há mais de 40 anos, essa é a vida do artista plástico baiano Alberto Pitta, idealizador e fundador do Bloco Cortejo Afro – bloco que nasceu no bairro de Pirajá (Salvador) e, nos seus mais de 20 anos, tem exaltado a fantasia, a poesia e a cultura negra com um repertório relevante e original, valorizando aspectos da cultura africana contemporânea.

O filho da educadora, bordadeira e ialorixá Mãe Santinha de OYÁ – grande inspiração e razão para ter seguido o caminho das artes – sonhava em ser goleiro de futebol, até que surgiram os blocos Afro, que trouxeram toda uma proposta estética de empoderamento para o carnaval baiano no final dos anos 70 – um discurso que nos trouxe até aqui e que faz da Bahia um lugar diferente no Brasil.

“A partir desse movimento do Ilê, da década de 70,
tudo foi mudando na cidade”

SUAS ORIGENS E INFLUÊNCIAS

Minha arte vem da minha mãe (Ialorixá Anísia da Rocha Pitta e Silva, Mãe Santinha de Oyá), como era conhecida a antiga líder do terreiro Ilê Axé, porque ela, além de educadora, trabalhando em escolas, era uma bordadeira. Então, tinha todo um processo criativo ali, para você bordar, fazer um Richelieu, e tudo aquilo desde o início me interessava. Um segundo ponto era pelo fato de minha mãe ser uma ialorixá. Isso significa terreiros de candomblé, histórias, religião, religiosidade e os elementos que compõem os terreiros, além das indumentárias, das ferramentas dos orixás, dos animais, dos adereços. Tudo isso foi me chamando atenção por uma questão, a princípio, estética. Um terceiro ponto foi o surgimento dos blocos Afro. Eu já gostava muito dos blocos de índio, então me interessavam muito os desfiles do Apache, do Comanche, Caciques, Guaranis e Tupis. Depois, vieram os Blocos Afro e surgiu o Ilê Ayê, com toda uma proposta estética de empoderamento, um discurso pan-africanista, e tudo aquilo foi me interessando. Como eu já gostava do carnaval, resolvi mergulhar no universo dos Blocos Afro e Afoxés. Na época, eu já fazia serigrafia, e dali para passar para o processo criativo e ser convidado a fazer parte de grupos e blocos, foi um pulo. Estamos falando do final dos anos 70. Antes disso, era mais o interesse pelos desfiles: como aquilo era feito, de onde vinham aqueles grupos, acompanhar ensaios. Porque tinha uma negrada se movimentando e interessada num discurso – um discurso que nos trouxe até aqui e que faz da Bahia um lugar diferente no Brasil, a partir das cores do Ilê Ayê. Eu sempre entendo assim: a partir desse movimento do Ilê, a partir da década de 70, passando pelos Blocos de índio, tudo foi mudando na cidade. Então meu trabalho foi esse. Ele vem nessa esteira, do chamado carnaval negro baiano, e eu estou organizando, justamente agora, um livro contando essa história, esses mais de 40 anos fazendo tecidos para os Blocos Afro e Afoxés.     

RELAÇÃO COM O ESPORTE

Eu sempre quis ser jogador de futebol. Não é como hoje, que os pais colocam os filhos na escolinha. Na época, jogar bola era sinônimo de malandragem.

Meu pai não tinha interesse que eu fosse jogador, gostaria que eu fosse mecânico, chapista, assim como ele. Que tivesse uma profissão que me garantisse financeiramente. Se de fato eu mergulhasse no futebol, sei que teria toda possibilidade, e numa posição difícil, de goleiro. Então treinava nos times aqui de Salvador tranquilamente, fui aprovado e fiquei um tempo no Botafogo, mas aí deixei e me enveredei pelo caminho das artes. 

RELAÇÃO COM O ESPORTE CLUBE YPIRANGA

Eu tinha um primo de Cachoeira (BA), Evandro Soares, que era juiz de futebol e advogado. Ele era torcedor do Ypiranga, e o futebol da época não tinha grandes empresários. Teve um momento em que ele até levou o material do time na minha casa, para minha mãe benzer, aquelas coisas do futebol baiano. O time do Bahia fez muito bem isso, essa aproximação com as religiões de matrizes africanas. Quando vi aquelas cores, me interessei por tudo aquilo. Quando cheguei a treinar na Vila Canária (Time Ypiranga) em 1977, fui até convidado por Emerson Ferreti (que foi goleiro do Bahia, Flamengo, Grêmio e Vitória) para fazer parte da Diretoria do Ypiranga. No ano em que ele saiu como candidato a presidente, me convidou para ser vice na chapa, e aí eu fui vice-presidente do clube por 4 anos. Isso eu estou falando de 4 anos atrás. Mas até hoje faço parte do Conselho do Ypiranga, com reuniões de 15 em 15 dias. O clube surgiu em 1906, como um time feito, na época, para negros jogarem bola. Essa foi a ideia do Ypiranga, com suas cores amarelo e preto, e por isso que a capoeira angola tem essas cores. Ypiranga era o time de muitas personalidades, como Mestre Pastinha, Irmã Dulce, Jorge Amado e Zezinho (pai do Caetano Veloso).     

“Por que eu vou fazer só para negros comprarem
meu tecido e vestir?

USO DAS SIMBOLOGIAS DO CANDOMBLÉ ALÉM DOS BLOCOS AFRO

Eu acho que tudo faz sentido. Lógico que você tem que saber como. O que é que você está usando? O que é que você está fazendo? O que significa isso? De onde vem? Você tem que ter ideia dessas coisas. Mas, por outro lado, também é uma forma de perpetuar e divulgar. Hoje nós temos vários cânticos e várias músicas de candomblé, gravadas por artistas que usam algumas como refrões de suas canções e muita gente acha que não deveria, mas essas canções podem sumir. Tem dezenas delas que ninguém sabe mais e que se foram com a Mãe Menininha do Gantois, por exemplo. Eu lembro que Zeno Millet (neto de Mãe Menininha) chegou para mim uma vez e falou: “Poxa, Pitta, sobre essas coisas de símbolos, de signos, dessas histórias, você sabe mais do que eu. É verdade! Minha avó compôs várias canções que nós não soubemos aproveitar e tornar isso público. Terminou virando canções de domínio público. Quem fez? Quem é o autor? Ora, alguém escreveu”. Ele estava falando sobre essas coisas, e até cantou uma ou duas canções. 

O próprio Carybé foi isso a vida toda. Um cara que sai da Argentina, chega nesse lugar e diz: vou ficar por aqui. Porque me identifiquei com isso! E a vida dele toda foi isso. A arte de Carybé é pautada justamente no terreiro de candomblé. Enfim, mas também está registrado, senão essas coisas se perdem. Daqui a 50 anos, um monte de coisa você não vai mais saber sobre. Se não estiver registrado, se não estiver pintado, se não tiver virado publicação, se não for cantado, some. Isso é fato! Nesse sentido, eu não tenho nada contra.

Eu acho que tem que se ter respeito em tudo que se faz. Pode ser nas religiões de matrizes africanas, de outras matrizes ou qualquer coisa na vida. E também sobre a questão da apropriação cultural, eu não tenho muita preocupação com isso. Lógico, como eu falei, tem que ter respeito. Você vê uma mulher loira com o cabelo trançado, ornado com contas, e diz “aquilo não pode, é apropriação cultural!” Eu não vejo problema, porque a questão não é ela ter feito isso, e sim eu fazer isso e ser barrado no shopping ou coisa semelhante, por conta da minha estética, e ela não. Então é esse equívoco que temos que combater, e não o fato de as pessoas usarem as cores, saírem com uma roupa nas cores do Ilê Aiyê, com o cabelo trançado, sendo pessoas brancas. Acho que a conversa é outra. Até porque você vai no Centro Histórico e dezenas de turistas o tempo todo estão fazendo tranças com as trançadeiras negras, que sobrevivem disso. Porque dificilmente vai aparecer uma preta e sentar ali para ser trançada. As pretas trançam seus cabelos em casa. Elas já se conhecem, ligam ou vão até sua trançadeira e já têm quem pega na sua cabeça. Porque nem todo mundo gosta que qualquer um pegue em sua cabeça. Mas as pessoas brancas não estão nem aí. Eles se interessam pela estética, vão lá, sentam, pagam cinquenta, cem reais, e a trançadeira resolve a vida. Como é que você conta essa dita apropriação cultural? A mesma coisa digo dos tecidos. Eu estampo em tecido, e um metro de tecido meu é caro! O de Goya Lopes é caro, a arte de J. Cunha é cara. Então, se você pode comprar, você vai comprar. Por que eu vou fazer só para negros comprarem meu tecido e vestir? Não. Quando eu faço, eu quero vender. Porque aí eu sei que vou poder fazer mais. Vou poder fazer mais coisas. Então tem o interesse comercial. É você aprender a lucrar em cima da arte. Caetano já fala isso na música. Se você ouvir o álbum O Sorriso do Gato de Alice, tem um trecho da canção “Bahia, Minha Preta” que fala isso: “Vender o talento e saber cobrar, lucrar”. Tem que entender até onde vai o limite dessas coisas. 

Se você pensar em cota, aí já é uma outra história. Eu tenho meu bloco aqui com 100 fantasias e vou priorizar segmentos, porque é de interesse meu para a construção do meu próprio trabalho e do que eu estou fazendo ali. Mas, de fato, eu quero que todo mundo saia no bloco e quero que paguem. Tem uma classe média branca que se interessa pelo Cortejo Afro, e eu quero que paguem por isso. Não tenho nenhum problema! Até porque 70% do público do Cortejo Afro, nos ensaios, são brancos e LGBTQIA+, e quando eu saio dali, venho e boto aqui.

Se você olhar as salas lá em cima, que estão em reforma, eu tenho a vista da bacia. Pego a grana e faço coisas, porque eu gosto do que é bom. A pobreza tem que passar longe da gente. Eu trabalho com estética, e não posso pensar em pobreza. Preciso pensar em riquezas, que é uma herança nossa. Você não pode ter medo das coisas. Eu não tenho medo de absolutamente nada. Eu tenho medo de mim, pelo fato de não ter medo de nada. Eu vou e faço minhas coisas o tempo inteiro. Faço uma história no carnaval, as pessoas olham e dizem “não entendi”. Ótimo que você não entendeu, mas só pelo fato de você dizer que não entendeu, você já observou, você já pensou sobre o processo e, depois, você busca a resposta. A que você encontrar, é! Então não tenho nenhuma preocupação com essa questão de apropriação, de símbolos, signos ou da questão estética das roupas, das batas, dos vestidos.

Outro dia eu vi uma mulher no shopping com um vestido preto longo, de Goya Lopes, e estava lindo demais aquilo. Uma mulher branca, aparentemente de classe média, que foi ali e pagou uns R$ 600, naquele vestido. E, com certeza, Goya já pôde pagar o funcionário que estampou aquele tecido, e está resolvido. Daqui a uns anos, a mulher que comprou ainda terá o vestido e vai lembrar da artista Goya Lopes. Uma artista negra engajada, que tem um discurso, sabe das coisas. Eu quero que Goya se dê bem, e eu também quero me dar bem. A gente tem que se dar bem, e não podemos ter medo de comprar o carro e pensar que vão falar: “Olha lá o cara. O dono do bloco”. É o quê? Vovô do Ilê vai ter que ficar andando a pé para provar o que, para quem? João Jorge (diretor do Olodum) tem que ter o carro dele. Carlinhos Brown fala isso o tempo inteiro: “Como é que eu vou ter vergonha de comprar uma cobertura? Se eu tiver a grana, eu vou comprar mesmo e acabou a história”. Quando ele fez Guetho Square lá no Candeal, foi um efeito estético. Depois do Guetho, de toda história de Brown com a Timbalada, pode descer, é tudo pavimentado. Antes era um esgoto a céu aberto. Não havia interesse e ninguém olhava aquele lugar. Hoje as casas são pintadas, decoradas, com grafismo que veio através desse processo.

BLOCO CORTEJO AFRO 

O Cortejo Afro foi idealizado e fundado por mim em 1999 e surgiu da necessidade de reafirmação dos valores e aspectos da cultura negra na Bahia, respeitando a diversidade e incorporando novos elementos, visando ao crescimento das comunidades do século XXI.

A concepção artística do Cortejo Afro se apresenta através de releituras de sons e ritmos e resgata as cores perdidas do carnaval baiano, reafirmando seu conceito ético e estético.

Minha intenção é resgatar as cores, sons e ritmos do carnaval que o tempo se encarregou de apagar, tornando a maior festa popular do mundo numa pasta só. Daí a introdução predominantemente do branco sobre branco, azul e prata, que são cores de Oxalá. Já os grandes sombreiros visam passar o visual dos reinados das tribos africanas, especialmente de Benin, Costa do Marfim, entre outros países africanos. Arto Lindsay, Davi Moraes, Caetano Veloso, Gerônimo, a cantora islandesa Björk, Dog Murras, além de participarem dos tradicionais Ensaios do Cortejo Afro, no Centro Histórico de Salvador, também fizeram participações nos Carnavais, junto com o Cortejo Afro em cima do trio elétrico.

ARTES PLÁSTICAS COMO DESLOCAMENTO E TRANSFORMAÇÃO      

Eu estou fazendo agora um trabalho com a estilista Mônica Anjos. Ela quer fazer um trabalho com dança que vai lançar no São Paulo Fashion Week. Eu disse para ela: tenho um limite. Então eu estampo 200m de tecido com três tipos de estampa, que vão lhe sugerir movimento. Ela esteve aqui e já sugeriu outras coisas. Ou seja, seu trabalho, por si só, já causa um deslocamento estético. Eu estou com uma série que chamo de Mariwô. Primeiro, eu faço as ferramentas dos orixás e, depois, estampo o Mariwô sobre elas. Aí essas ferramentas passam a ser a coisa secundária. O Mariwô, falando de modo geral, é aquela palha de Ouricuri que fica nas janelas e nas portas dos terreiros de candomblé, que é um elemento de proteção. Essa série terá 16 orixás, criando símbolos e signos que os representam. Você pode ver, aqui, que eu sou um artista da contramão nessas coisas das telas. Normalmente usam cavaletes, sentam e ficam pintando. Eu coloco a tela aqui e faço aí. Então, se um metro de tecido meu custa R$100 essa tela aqui vai custar R$20.000. 

Eu estou com uma série que chamo de Mariwô. Primeiro, eu faço as ferramentas dos orixás e, depois, estampo o Mariwô sobre elas. Aí essas ferramentas passam a ser a coisa secundária. O Mariwô, falando de modo geral, é aquela palha de Ouricuri que fica nas janelas e nas portas dos terreiros de candomblé, que é um elemento de proteção. Essa série terá 16 orixás, criando símbolos e signos que os representam. Você pode ver, aqui, que eu sou um artista da contramão nessas coisas das telas. Normalmente usam cavaletes, sentam e ficam pintando. Eu coloco a tela aqui e faço aí. Então, se um metro de tecido meu custa R$100 essa tela aqui vai custar R$20.000. 


Capa do livro Em Tempos de Cárceres, composto por obras feitas no primeiro ano da pandemia e inspiradas nas pinturas rupestres

Também estou com uma série Tempos de Cárcere, que fiz de março até o final do ano. Com a coisa da pandemia, que ninguém esperava, eu pensei: na pandemia, o que eu vou fazer? Acabou o carnaval e eu sou um cara do carnaval. Mas eu percebi que iria piorar, porque já saímos do carnaval 2020 com notícias disso. Só não levamos fé! Então o que vou fazer? Estou em cárcere. Como eu gosto das figuras rupestres, me baseei nisso, nessa paleta de cores das cavernas. Porque estamos em lockdown, ou seja: estamos em cavernas. Para mim, a tradução de lockdown é caverna, movimento rupestre. Isso foi no ano passado. Agora estou na série Mariwô, que também é tudo por trás, tudo escondido. Tudo nesse sentido. Criações em tempo de pandemia. Quem tem essa sorte, de se dar ao luxo de trabalhar com arte como eu, consegue atravessar, mas tem gente que não tem para onde correr e cai em depressão. 

PROJETOS SOCIAIS DO INSTITUTO OYÁ

Aqui é um Terreiro de Candomblé, e nós temos o Instituto Oyá de Arte e Educação. Foi fundado pela minha mãe (Mãe Santinha de Oyá) e minha sobrinha, que herdou a casa. Ela toca o trabalho social do Instituto, que é um trabalho junto à comunidade, com crianças e adolescentes, acompanhamento escolar e pedagógico, como parte do Oyá Educa e o Oyá Criativa, que é esse da questão estética, com cursos de estamparia, moda, corte e costura, percussão, teatro e capoeira. Tem essas duas vertentes dentro do trabalho social do Instituto. É o Candomblé mais uma vez dizendo: olha, estamos aqui, a serviço da comunidade.

PROJETOS ARTÍSTICOS FUTUROS 

Saímos recentemente do projeto Histórias em Tecidos, com três lives, sobre a ideia de escrever e contar histórias nos panos dos Blocos de Índio, Blocos Afro e Afoxés. Porque os tecidos dos blocos têm essa função de contar histórias. Agora o outro resultado disso é o lançamento do livro Histórias em Tecidos – O Carnaval Negro Baiano. Vai ser uma série de estampas, que será lançado em novembro pela Fundação Pedro Calmon, que já demonstrou interesse.

#37Futuros PossíveisCulturaSociedade

Voltar para casa é um longo caminho

por Mayra Sigwalt

Resgatar a própria ancestralidade é como tentar voltar para casa. Mas, para encontrar o caminho de volta, você precisa cavucar com as próprias mãos um solo pedregoso e abrir feridas de gerações. Pois, nesse processo, além da sua dor, você precisa fazer aqueles que você ama relembrarem de onde vieram suas cicatrizes. Dói duas vezes.

Muitos não vão entender por que você precisa percorrer esse caminho. Afinal, essa não é a história de todo o nosso país? Não somos todos filhos dessa terra, da qual não conhecemos os verdadeiros nomes? Mas eu sempre vivi em um não-lugar. Eu sempre soube, ouvi que era, mas nunca havia nada que me “oficializasse” para isso. “Indiazinha” era um apelido para me diminuir, me machucar, mas, se eu ousasse admitir “sou indígena!”, diriam que não era o suficiente. Fui seguindo os passos da minha mãe, ouvindo atentamente, e, pelo caminho, encontrei também outros guias e mais aprendizados.

Descobri qual era o meu povo, de qual aldeia minha ancestral tinha saído, tudo o que ela percorreu e construiu. É difícil pensar que, assim como na minha família, em muitas outras essas mulheres foram apagadas da história. Faladas a respeito apenas aos sussurros. Os traços que elas deixaram para as gerações seguintes são suas únicas marcas no mundo. Mas, de alguma forma, ela não desapareceu completamente. Como aprendi com os parentes, “tentaram enterrá-la, mas não sabiam que ela era semente”.

Encarar nossa ancestralidade é encarar as mentiras que foram contadas sobre nosso país, sobre nossas histórias, sobre nossas famílias. É tirar heróis dos livros da escola, derrubar estátuas e pedestais que criamos para o mundo e para nós mesmos. Talvez aquele seu bisavô que pegou sua bisavó “no laço” tenha sido mais um dos que violentou os filhos dessa terra, e você é fruto disso. Você está pronto para lidar com essa herança?

É um caminho muito assustador e, muitas vezes, você se sente sozinho no escuro, mas fui abençoada com muitos faróis e estrelas brilhantes que fizeram com que eu me sentisse pertencente. No entanto, mesmo com todo esse suporte, sempre há aquilo que faz minhas pernas pararem, minhas mãos enfraquecerem. Um eco distante que vai se tornando maior, ensurdecedor. “Eu sou merecedora disso?”, “quem disse que você é legítima?”, “onde está a língua do seu povo?” “Qual a sua aldeia?”

E, para me dar forças, eu volto aos meus ancestrais, que sobreviveram, que lutaram muito para que eu estivesse aqui hoje. Que se esconderam, se calaram, se converteram, se embranqueceram, foram violados e se perderam de suas aldeias. para que eu pudesse estar aqui. Para mim, seria um desrespeito a eles se eu não continuasse a caminhar.

Uma vez, falaram para mim: “você nunca será indígena de verdade, apenas descendente”. E as palavras de um ancião me confortaram: “poderia um bezerro se dizer descendente de bezerro? Pergunta para um jabuti: você é jabuti? Não, sou descendente de jabuti”. Ao ouvi-las, eu sorri e, ao mesmo tempo, entendi o propósito dessa jornada.

É uma busca por pertencimento, mas também por restaurar os laços perdidos. Precisamos recontar a história de origem do que chamamos de Brasil. Lembrar que, se muitas culturas originárias foram preservadas, é porque muitas outras estavam na linha de frente, sendo ceifadas ou dissolvidas nas culturas populares ou regionais.

Se quisermos fazer parte de um futuro, precisamos conhecer melhor nosso passado. Precisamos continuar nessa estrada de resgate ancestral que, provavelmente, nunca terá fim, nunca será uma ferida cicatrizada. Precisamos continuar colocando as mãos na terra, porque, mesmo quando estão machucadas de tanto cavar nossa história, mesmo com a sensação de que abrimos um buraco em nossa volta impossível de ser fechado, é nesse momento que você consegue finalmente vislumbrá-las. Suas raízes. Pulsando com vida e mostrando o que você sempre soube. Quem você é.

#37Futuros PossíveisCulturaSociedade

Resgate

por Nelson D

Fui encontrado numa rua de Manaus, ainda bebê, com mais ou menos 4 meses de vida. O pessoal do orfanato informou mais detalhadamente aos meus pais adotivos que fui encontrado num estacionamento público e que provavelmente fiquei lá por dois dias até que alguém me encontrasse. Sempre disseram aos meus pais que provavelmente pertencia à uma etnia indígena, mencionando até o nome por causa dos meus traços. Depois do divórcio dos meus pais, essas informações se tornaram mais caóticas. Minha mãe esqueceu o nome da etnia indígena mencionada e meu pai nem lembrava desse detalhe. 

Com 25 anos de idade, decidi voltar ao Brasil; uma decisão movida por muitas motivações. Uma delas foi resgatar meu passado e conhecer mais sobre minha origem. Nos primeiros anos, só consegui visitar Manaus e meu orfanato, nada mais. Nunca tive informações ou pistas sobre a identidade dos meus pais biológicos. Provavelmente me abandonaram naquele estacionamento com a esperança de eu ser adotado e ter um futuro melhor. Não julgo essas pessoas; meus pais adotivos são os melhores pais que eu poderia ter. Mas sempre senti essa necessidade de saber de qual lugar vinha minha aparência, de onde vem esse rosto, essa pele, esse cabelo… Meus pais nunca me esconderam o fato de ser adotado (também porque eles são brancos e eu não) e nunca esconderam essa ligação com os povos indígenas; ligação que nunca foi totalmente clara naquela época. Eu sabia que era parecido com os habitantes de Manaus. 

Nos primeiros anos em que estava no Brasil, já seguia no processo de resgate, mas de resgatar minha identidade brasileira primeiro. Viajei por algumas cidades e decidi morar e trabalhar em São Paulo. Nesse tempo, me dei conta de quais lugares os povos indígenas ocupavam na sociedade brasileira e de qual invisibilidade eles sofriam. A necessidade de me aprofundar num segundo resgate ficou mais forte: eu não era somente brasileiro, mas também indígena, embora tivesse algo que internamente me bloqueasse. Indígena é só aquela pessoa que as mídias e a sociedade mostram? São só aquelas pessoas que moram na aldeia e que cresceram dentro da própria cultura? Essas dúvidas frearam muito meu entusiasmo, e cultivei um pequeno conflito interno. Será que, por ter sido criado na Itália, não sou mais indígena? Será que outros indígenas não irão me aceitar como indígena? 

Eu tinha caído numa armadilha psicológica bem presente na sociedade brasileira, que em diferentes camadas contribuiu para um processo de etnocídio – isso até conhecer outros indígenas. Conheci Katu Mirim, indígena urbana Bororé; Renata Tupinambá; Juão Nÿn, de Rio Grande do Norte; Kae Guajajara e muitos outros. Além de me aceitarem e me reconhecerem, me orientaram mais sobre identidade indígena e as lutas que os povos indígenas estão enfrentando: o genocídio do qual eu já era consciente se manifestava em diferentes contextos e formas. Entendi que era importante continuar a pesquisa sobre minha origem, assim como entendi que é importante mostrar para a sociedade que existe uma pluralidade da existência indígena e que a diáspora indígena é uma realidade da qual eu era a prova. Comecei a me aprofundar mais sobre os diferentes povos do Brasil e decidi aprender Nheengatù, um idioma muito falado na Amazônia, especialmente perto do rio Tapajós. Esse idioma tem a fama de ter sido imposto pelos jesuítas durante o período da colonização para facilitar a comunicação naquela região. Porém, há muitos indígenas que sustentam a teoria de que essa língua sempre existiu como idioma genérico e que ter sido imposta pelos colonizadores não a desqualifica. Não sabendo ainda qual minha etnia, optei por começar a estudar esse idioma que me proporcionou muitos conhecimentos sobre culturas e uma leitura da realidade dos povos indígenas. 

Demorei um pouco até decidir fazer um teste de DNA. Além de confirmar minha identidade indígena, esse teste me conectou com primos de quarto grau com os quais meu DNA está mais relacionado. Todos indígenas da Amazônia e do Mato Grosso. Consegui entrar em contato com alguns deles, e atualmente continuo essa correspondência. Essa viagem de resgate também trouxe algumas realidades amargas. Percebi o nível de perigo em qual vários povos indígenas se encontram, e que muitos deles não estão completamente alinhados entre si sobre várias questões. Uma dessas é a questão da identidade. Para alguns, mesmo carregando os traços somáticos, é importante ter sido criado dentro da cultura de um povo e ser reconhecido por ele; outros reconhecem os casos em que indígenas foram obrigados a deixar as aldeias e crescer em contextos urbanos longe do próprio povo e da própria cultura. De um lado, entendo que essa seletividade e desconfiança venha de vários casos em que pessoas sem nenhuma relação se apropriam da identidade e entram num esquema que eu chamaria de “indígena por conveniência”. Do outro, vejo que isso cria muitas fraturas entre pessoas que lutam do mesmo lado e pertencem à mesma terra. 

Pessoalmente, sinto a necessidade de reforçar mais trocas de diálogos e vivências, pois não podemos permitir, nesse momento difícil, a criação de mais bolhas sociais e ideológicas. Eu sinto a necessidade de expor minha identidade não só por motivações pessoais, mas porque é um ato que contribui na construção da base por uma luta de sobrevivência étnica e humana. Os indígenas existem e continuarão a existir, preservando culturas e criando outras, expressando antigas formas de vivências e inventando novas, falando diferentes idiomas, vestindo diferentes roupas e seguindo diferentes estratégias. Meu resgate anda junto com o compromisso de participar de processos, com o objetivo de construir perspectivas melhores, seja para os povos indígenas, seja para todo o povo brasileiro. Gostaria que a sociedade entendesse que ser indígena é fazer parte de um universo mais complexo do que se pode pensar, e que esse universo preserva sabedorias e visões de vida que são as reais riquezas dessa terra.

Fotos de Gleeson Paulino

“O Rio é espaço de lazer, memória, escuta,
identidade e encontro”

#37Futuros PossíveisCulturaSociedade

A importância do Rio São Francisco

Território Quilombola Águas do Velho Chico, localizado no município de Orocó, na Região do Médio São Francisco, sertão de Pernambuco, reconhecido pela Fundação Cultural Palmares (FCP) desde 2009, é formado por cinco comunidades, que são: Mata de São José, Caatinguinha, Remanso, Umburana e Vitorino. Elas estão localizadas às margens do rio e trazem consigo a identidade quilombola dos que este espaço habitam, povo ribeirinho que tem o rio São Francisco como local sagrado, místico, de vida, de resistência, alegria e lazer. 

Segundo relatos dos nossos mais velhos, essas áreas às margens do rio eram antes consideradas “locais cheios de matas e inóspitos”, até que alguns negros que vinham fugindo de Canudos, Bahia, por volta de 1897, e outros vindos da Serra do Umã em Carnaubeira da Penha, Pernambuco, chegaram e encontraram terra para, assim, gerarem a comunidade-mãe (Mata de São José) e a população hoje existente. Para os que residem nessas comunidades a importância do rio é, acima de tudo, a origem desse povo, local hoje chamado de território! Não se pode esquecer que o rio foi primordial, uma fonte de vida e de sobrevivência. Muitos só tinham o rio para tirar o seu sustento e de sua família. Os peixes eram abundantes, e as cheias traziam medo, mas, quando a água baixava nas áreas antes ocupadas (vazantes), era a maior riqueza. O plantio de batata doce, mandioca, algodão e feijão eram frequentes para o sustento de todos.  

Antes desse sentimento histórico regado de memórias ímpares para cada sujeito, eles  vivenciaram as duras fases de uma comunidade em que as condições de plantio eram um desafio – não pela falta de terra ou água, mas pela limitação econômica  que  essa população tinha, uma vez que  essas comunidades quilombolas se formaram bem antes da própria cidade. A forma de comércio era a troca dos produtos da agricultura familiar por carnes, peles ou ossos de animais em espaços pouco frequentes chamados de feira livre. O povo das áreas de cerqueiro vinham até o vilarejo de Orocó, ou “entre serras”, como é descrito por nossos parentes indígenas que habitam grandes áreas de ilhas desse município, e assim era feita a compra das mercadorias: peixe, macaxeira e seus derivados (farinha biju, goma), mel, carnes bovina, caprina e suína, tendo como meio de transporte a carroça de animal ou a própria canoa.  

Os relatos mostram que o único meio de transporte era a canoa, que ia de um município a outro, como, por exemplo, a cidade Belém do São Francisco, que fica a pouco mais de 100 km, ou até cidades mais distantes, como as de Minas Gerais, onde iam buscar toras de madeira para fazer canoas e jangadas. Eles passavam mais de seis meses andando pelo rio, levando as produções agrícolas que tinham para trocar por tecido, madeira, calçados e alimentos que não tinham na comunidade.  

Enquanto as comunidades iam se povoando, ganhando espaço, fazendo seus ranchos (moradias), outros olhares em torno daquele terreno eram direcionados para a exploração tanto das pessoas que ali viviam – a começar por sua força bruta, seus corpos e suas filhas, seus costumes e saberes – como de suas pequenas propriedades, que, sem condições financeiras, não podiam produzir. Muitas acabaram sendo invadidas ou trocadas por alimento, moradia, uma  canoa ou outra necessidade da família. Assim, passaram a produzir para um senhor (patrão), e nas poucas horas que lhes sobravam do trabalho (na roça de algodão, milho, legumes, na casa de engenho, entre outros afazeres) iam pescar ou cuidar do pouco que lhes restava – um pedaço de roçado contendo o feijão, macaxeira e/ou batata doce, nas margens do rio, para garantir o sustento.  

Falar deste rio é falar de suor. Muitas mulheres em sua gestação se banharam nessas águas doces e apresentaram ao rio aquele novo ser pedindo vida digna e direitos, pedindo proteção e bênção aos encantados d’água. Muitas esposas saíam para pescar junto com seus esposos à noite, ou durante o dia, enquanto eles estavam no roçado do patrão, com garra, determinação e fé. Como sempre fala a nossa mestre: “com fé em São José, vamos chegar!”(Maria José Gomes dos Santos, agricultora e parteira).  

Em conflito com a permanência desses povos em seus espaços sagrados estão os planos de desenvolvimento do governo brasileiro para o Nordeste, em especial no entorno do rio, com as construções das barragens. Desde a de Sobradinho, construída na década de 1970, onde as comunidades passaram a vivenciar durante anos as mudanças, até a transposição do rio São Francisco, que trouxe desordem e transtorno psicológico, alimentício, social, político, econômico, cultural e ambiental para a vida dos ribeirinhos, especialmente os povos e as comunidades tradicionais, que vivem em seus espaços secularmente. Em nossas comunidades não foi diferente. Vivemos o medo e a insegurança de um plano de desenvolvimento que fere a existência, o território e a história de um povo. E é um medo constante, antes, com o canal de transposição do rio São Francisco (Eixo Norte) e, depois, com a barragem de Riacho Seco e Pedra Branca, que interliga Bahia e Pernambuco e afetou diretamente a vida dessas comunidades.  

Atualmente, o rio é espaço de lazer, memória, escuta, identidade e encontro. Os mais jovens entendem a necessidade de preservar e cuidar, pois cada momento propiciado às margens do rio é um encontro do ontem com o hoje, um encontro com as histórias dos nossos ancestrais, que pescavam e contavam lendas como as do nego d’água e da mãe d’água. Esses relatos contribuem para a formação dos sujeitos que hoje vivem a pesca, se banham, dançam e escutam, tanto pela proposta da educação escolar quilombola de seus professores e familiares, que se reúnem às margens deste herói, quanto como forma de lazer, trabalho e, inclusive, prestar respeito a este que chamamos de pai e mãe, que é o bem mais precioso para toda a produção econômica, social, cultural e ambiental do nosso território: o rio São Francisco, ou Velho Chico, nosso maior bem.  

Assim, finalizo tentando exprimir nosso imenso amor e a necessidade de cuidar deste herói com um cordel de uma liderança deste solo sagrado chamado Águas do Velho Chico:

REIVINDICAÇÕES DO RIO SÃO FRANCISCO  
(Maria Senhora Gomes Dos Santos Gonçalves) 

Boa noite, minha gente
Estou aqui pra dizer
Seja fiel e consciente
cuide de mim e de você
Eu sou apenas uma semente
Estou vivo, mas posso morrer
Todo dia, o dia inteiro
Vocês precisam de mim
Pra pôr o feijão no fogo
Também pra molhar o capim
Cada dia morro aos poucos
Por que me tratam assim?
Se aumenta a inflação,
ficam todos preocupados
rádio e televisão
deixam todos informados
Por que não fazem um mutirão
em prol deste abandonado?
Meu café é esgoto
Meu almoço, agrotóxico
Estou até o pescoço
Poluído de remorso
Só me enxergam como um poço
Destinado a negócios
Muitos até se admiram
e falam da minha beleza,
Mas poucos se mobilizam
Em prol da minha defesa
Até meu coração partiram
em benefício das empresas
Se queres saber quem sou
procure no alfabeto
Sou um velho sofredor,
morador aqui de perto
Amigo do pescador
E refém dos projetos
É triste meu padecer
É pouco meu respirar
Estou cansado de sofrer
Ninguém me escuta gritar
A minha voz é você
já que eu não posso falar

#37Futuros PossíveisCulturaLiteratura

Beatriz Nascimento: uma compilação

por Beatriz Nascimento

INUSITADO
(A Oxumaré, 01.09.1987)

Antes tudo acontecesse como antes aconteceu
Não vindo como algo novo
Seduzindo o que não estava atento
Antes tudo acontecesse como o aviso do sinal
Atenção! “Está prestes a se concretizar”
E não como serpente silenciosa
Em seu silvar
Antes tudo acontecesse quando te sentisses forte
Capaz de reagir, que pudesses sangrar
Antes tudo acontecesse como se fosse o previsto
Visto de trás ou de longe
Antes que te atingisses de frente
Antes tudo acontecesse como acontecem as histórias
De encontros e rompimentos, num mergulho sem demora
Antes tudo se passasse como passa o Arco-íris
Num momento luz, noutro bruma e crepúsculo

SOL E BLUE
(17.02.1990)

Terra azul
Céu escuro
Fantasmas passam nas ruas
Como eu fantasma nua
A caminhar
A quem procuro?
Em que corpo quero estar
Em que cama repousa espírito tão inquieto?
Nas notas de sol em ritmo-Blues
Em remansos passados
Em fechados futuros
Em furioso silêncio

DE TODOS OS AMORES…
(1990)

De todos os amores de minha vida, de todos os muitos amores que me fizeram a vida;
está minha terra, o lugar, os lugares do meu país. De todos esses amores, às vezes dores,
elas marcando meu corpo ceivando-o e cevando-o em sangue

FEMME ERECTA
(10.02.1990)

Há quanto ao tempo pertenço?
Só esses anos? Impossível
Quantas cronologias marcam meu corpo.
Infinitas…
Senão porque tanta expressão
Sensação imprevisível. Átomos em explosão
Decerto não saberia, como sei identificar
Foram precisos muito sentir
Armas a adquirir, para por-se de pé.

LUNA
(16.10.1986)

Prenhe de luz
Plenilúnio
Altiva força benfazeja
Um certeiro retornar
Ambiciosa e divina
Maliciosa (e) impulsiva
Incandescente (e) intempestiva
Serenidade anuncia
A quem te dirige o olhar

PRIMA FILHA
(07.05.1987)

Betha, alfa do meu existir
Matéria acumulada em meu útero
Que ainda agora se faz sentir
Em estado de doçura exalto
A beleza do teu amor
Que de mim mesma se originou
Retornando livre como condor
Única escrita de minha história
Que em matéria se realizou e realiza
Semelhante ao que foi e ainda é
O som que dele partiu
No grito traduzido: pariu
Ressonante em meu viver
Seja feliz como és
Como sempre vais merecer
Bordando sutis sapatilhas
Girando no espaço
Que Deus a ti dedicou

Sou Gean Ramos, cantor, compositor, filho do povo Pankararu. Sou o décimo segundo filho de seu Eronides e Dona Tida, meu pai negro, minha mãe indígena. Mamãe conta que, quando entrou em trabalho de parto, ainda em casa com as parteiras da comunidade, houve uma complicação. Era dia 15 de junho de 1980, mês chuvoso e meio frio no sertão pernambucano. Socorrida por um dos poucos carros que tinha na aldeia na época, fomos levados para Petrolândia (PE), já em trabalho de parto. Chegando no hospital, não foi possíveal sermos internados devido ao comprometimento da nossa saúde. A última opção foi o hospital Nair Alves de Souza, em Paulo Afonso (BA). Nasci e, felizmente, sobrevivemos. Venci meu primeiro desafio nessa terra.

Eu era uma criança tímida, meio encabulada, sempre silenciada pelos irmãos mais velhos, que brincavam dizendo que eu tinha dois direitos – o primeiro era nenhum, e o segundo, me conformar com o que tinha. Era realmente uma brincadeira que nunca se tornou realidade, mas eu tinha que obedecer a todos os mais velhos. Todos tinham o compromisso de me educar. Sempre fui muito amado e acarinhado, mas essa referência parece que me dizia muito mais coisas do que eu conseguia compreender. 

Fui para a escola e, lá, comecei a encontrar outros desafios. Eu era um pouco diferente dos demais parentes. Eu nunca entendi direito; achava que era por causa dos cabelos, ou a cor, ou porque eu morava na aldeia mais próxima aos posseiros. No fim, hoje adulto, acho que entendi o porquê daquela indiferença. Além da minha cor, meus pais eram da Igreja Batista do Bem Querer de Cima, e a igreja recriminava toda e qualquer manifestação da cultura Pankararu. Nós, que éramos naturais dessa comunidade, não podíamos praticar nossa própria cultura. Fomos educados como se fôssemos melhores. Na igreja, diziam que, ao aceitarmos Jesus, estávamos salvos, e aquele povo (nossos próprios parentes) estava condenado ao inferno caso não se arrependesse dos seus pecados e não seguisse o caminho da igreja. 

Em meio a tudo isso, a essa alienação toda, tinha algo que era fascinante: a música.

Toquei meus primeiros acordes no violão com oito anos de idade. Meus irmãos mais velhos já faziam parte do coral, e eu ficava sempre vendo os ensaios. Ainda muito pequeno, eu tocava e cantava na igreja, mas ouvia do meu pai que não levava jeito com música. Hoje, prefiro acreditar que ele, me conhecendo, percebeu cedo que eu era do contra e encontrou uma forma de me incentivar. No fim, deu certo. 

Todas essas vivências que relatei aqui não são nem a introdução do que já vi e senti ao longo desses quarenta anos, mas vou me ater ao meu propósito de falar sobre a libertação e empoderamento que a música traz aos corpos pretos e indígenas. Falarei na primeira pessoa porque sou os dois e vivo diariamente os benefícios e as dificuldades enfrentadas com garra e amor.

Em 1999, decidi ir embora para Brasília. Eu tinha 19 anos e um sonho: tocar para o mundo inteiro ouvir. Queria estudar música, e me disseram que, chegando lá, poderia pleitear uma vaga no Conservatório de Brasília e morar nas pensões que a Funai dava para os indígenas. Nada feito. Não consegui nada. Decidido a não voltar para a aldeia, comecei a procurar lugares para tocar com a finalidade de ganhar uma grana e me manter ali por mais um tempo.

Nesse primeiro momento, tudo era novo demais, a inocência e a falta de leitura de quase tudo não me permitiam compreender as nuances das coisas. Sempre foi muito difícil encontrar um lugar para tocar. Muitas vezes, saía de casa pronto, usando a melhor roupa que eu tinha, e chegava na frente do restaurante ou bar e não conseguia entrar. Não sei se era por causa das falas do meu pai, ou da sensação de não estar à altura do lugar. E ainda tinha um porém: eu me achava feio. Todos esses fatores me fizeram criar uma capa, uma espécie de defesa que me “protegia” até dos possíveis contratos. Certa vez, tomei coragem e entrei em um lugar chamado Café Contato, um cyber (na época eu nem sabia o que era isso). Ele estava vazio e isso me encorajou. Entrei e pedi para falar com o responsável, me apresentei, e ele me pediu que tocasse um pouco para que visse. Passei a tocar lá todas as quartas. Dessa minha experiência, pude perceber uma coisa: eu me sentia bonito quando tocava. Não era apenas a realização de estar fazendo o que eu gostava, pois geralmente quando eu tocava era cedo e não tinha quase ninguém, mas eu não me importava e cantava, cantava, até me mandarem parar para o outro artista entrar. Meu cantar  me proporcionava sentir o gosto da beleza externa; eu me sentia bonito. Concluí que, de fato, nesses vinte anos, cantar me faz ser bonito. Não é uma questão de aprovação de ninguém, nem de paquera; não consigo traduzir essa sensação. 

Eu, preto, indígena, miscigenado, brasileiro de baixa renda, nasci tendo a dificuldade como um integrante da família, e isso influenciou muito a construção da minha autoestima, a formação do ser que teria que lutar por direitos iguais. As amarras não aparecem, não estão escritas em nenhum lugar, e nem importam para muita gente. Oportunidade não é algo que está aí para todos, nós sabemos bem.

A força maior do universo e da natureza me proporcionaram chegar a lugares especiais. Mudei o curso de uma trajetória fadada a não acontecer nada diferente. Vivo sempre à espera da próxima música, da próxima vez em que serei bonito e, assim, me sentirei útil, semeando vida, esperança, visibilidade, minha territorialidade, minha origem.

Faz tempo que adquiri uma consciência e um compromisso com o que eu canto. A música só faz sentido para mim se for representatividade, ancestralidade, respeito, amor, se promover a paz. Hoje, eu entendo por que não me senti bonito muitas vezes no palco. Diversas vezes fui tocar e minha alma ficou em casa; minha beleza, meu sorriso estavam longe de mim. Passei a perceber isso quando fui barrado por seguranças ao tentar entrar em lugares onde iria tocar, quando alguns colegas músicos marcavam de tocar comigo, não apareciam e sequer se justificavam, quando toquei por quatro horas seguidas por um cachê de R$ 150,00 e não tinha direito a jantar – da última vez, descobri que a água servida para mim era da torneira. 

Demorei anos da minha vida para me locar nesse mundo. Hoje, com 40 anos, morando há 12 na minha aldeia de origem, convivendo com a seca e diversas dificuldades que estão aqui desde antes de mim, sei mais o que quero e preciso, assim como sei o que não quero. Não vivo mais a expectativa projetada em mim; vivo o que minha consciência e meu coração me apontam. Hoje, já consigo me achar bonito realizando outras coisas além de música – quer dizer, vai sempre envolver música. 

Fundei o espaço da Aió Conexões, que funciona na antiga igreja evangélica fundada pela Missão Novas Tribos do Brasil e por meu pai, no terreiro de casa. Agora, ela passa por um processo de ressignificação e ocupação, dado que se tornou um vestígio de um processo de aculturação do povo Pankararu. Por meio da realização de ações culturais e de fortalecimento da identidade do meu povo, esse espaço tem ganhado novas camadas simbólicas, estimulando o senso de pertencimento cultural. 

A Aió funciona desde 2009 como minha produtora. Ao retornar à minha comunidade, pensei em promover conexões entre a comunidade indígena e o mundo a partir da arte e de boas informações.

Desde o seu início, a Aió Conexões realiza diversas ações, como encontros entre nós mesmos, um aprendizado constante entre os detentores de saberes e a comunidade antes descaracterizada pelos colonizadores espirituais, que deixaram o rastro de preconceito e falta de pertencimento.

O ano de 2020 trouxe um feito significativo para mim, a Mostra Pankararu de Música. Por três dias, me senti bonito que nem quando toco. A Mostra Pankararu de Música é um espaço de intercâmbios e vivências artístico-culturais que, através de ações nas linguagens da música e das artes em geral, traz ao público experiências de autoconhecimento e proporciona aos participantes o contato com saberes culturais do povo Pankararu – e meu povo também aprende com os artistas e pessoas que participam dessa imersão.

Tive da vida sorte, cheguei bem até aqui,
Respirei e segui, chorei, amei e amo muito 
Às vezes quero mais ou demais 
Parece que tudo foi pouco 
A sede de sentir, amar precisa estar aqui 
Em mim

Como as águas, o movimento
O ciclo natural das coisas não me conforma 
Parece que minha parada é sempre a próxima
Procuro o arrepio, o ar 
Num buraco fechado, fachada
Tudo parece tá fora do ar
Descarrilhado e no trilho

Vago por minhas noites 
Vampirando meu próprio sangue 
Desmembrando os coices da lida
Corro de mim mesmo 
Mas a cada esquina estou eu 
São tantos caminhos, e não sei em qual encontro o sol
Mesmo que amanheça, falta pernas, acelerador 
E a dor me freia 

Nesses tempos loucos tô são
Cego vendo tudo de perto
Com a alma presa sem divagar
Nos momentos curtos estou longo 
Sem me digerir, não adianta cavar 
Estou profundo

Em qual looping ou mantra eu devo entrar 
Qual sentença devo me condenar 
Nem toda luta se vence pintado
Nem toda pena me põe de pé
Nem todo casto é tão puro
Nem todo puto é pagão 
Eu rasgo as malhas mas não sei me vestir
Mas entendi  
Quem não morre não renasce

Ainda sou árvore, mesmo sem floresta
Mesmo que me tombem eu sou semente 
Eu sou o fogo circular, sou a mãe da terra 
O pai dos verões e a curva dos ventos 
Sou luz dos olhos do mundo 
Raiz dos mares profundos
E vou, sempre vou, voo sempre 

Eu, de verdade, tenho torcido muito para que meus irmãos pretos e indígenas também se reconheçam bonitos e importantes. Nossos destinos e belezas foram e são construídos por muitas mãos. Somos cíclicos, continuidade; passamos por aqui sempre abrindo caminhos para os que virão. 

Agora, em meio aos sons de grilos, cantos de acauãs, latidos de cachorros bem distantes, escrevo e faço uma inclinação de pensamento. Que você, meu caboquinho, minha caboquinha, negão e negona que estão lendo este texto, saibam e sintam o quanto vocês são bonitos. 

Pâmela Carvalho Foto © Douglas Lopes

Se você tá a fim de ofender
É só chamá-lo de moreno, pode crer
É desrespeito à raça, é alienação
Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamado de negão
Se você tá a fim de ofender
É só chamá-la de morena, pode crer
Você pode até achar que impressiona
Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamada de negona

(“Alienação” – Ilê Ayê)

#37Futuros PossíveisArteCulturaMúsicaSociedade

“A preferência é ser chamada de negona”

Em 2015, Mario Pam e Sandro Teles escrevem “Alienação”, no contexto do movimento artístico-político Ilê Ayê. E é com o Ilê que começaremos este breve caminho por algumas cidades do Brasil, que trazem em suas ruas, rostos e movimentos artísticos importantes lições sobre mestiçagem, racismo e reeducação das relações raciais no Brasil.

O Ilê foi fundado por Antônio Carlos dos Santos e Apolônio de Jesus no bairro do Curuzu, sendo o mais antigo bloco afro do carnaval da cidade de Salvador. Veio do Terreiro Ilê Axé Jitolu em 1974. Sua história se costura com a do terreiro e de sua Yalorixá, Mãe Hilda. Antes de receber o nome que conhecemos hoje, a ideia era que o bloco se chamasse “Poder negro”, mas esse nome nunca pôde ser utilizado. A Polícia Federal proibiu o uso, alegando conotações negativas e “alienígenas”. Isto contribuiu para que o bloco ficasse associado a uma ideia de subversão no período.

A fundação do Ilê Ayê escancarou a falácia da democracia racial. O bloco foi duramente criticado publicamente. Um marco dessa perseguição política foi a manchete veiculada em 12 de fevereiro de 1975 no jornal A Tarde, onde se lia “Bloco Racista, nota destoante”. Já nos anos 1970, o Ilê seria acusado do que posteriormente viria a ser chamado de racismo reverso – um grande engodo contemporâneo, que só se sustentaria com a humanidade voltando no tempo e reescrevendo a história mundial. Nos dias de hoje, o Ilê é considerado como patrimônio cultural baiano, tendo cerca de 3 mil associados e oferecendo uma série de atividades ligadas à arte, cultura e combate ao racismo. 

Para além da contribuição musical, o consagrado “bloco negro do sábado de carnaval” traz uma proposta política e estética essencial para discutirmos a reeducação das relações raciais no Brasil. Um símbolo dessa proposta é a Noite da Beleza Negra. A festa ocorre desde 1979, inspirada nos concursos de rainhas do carnaval, mas, na noite do Ilê, a “rainha” escolhida é consagrada como Deusa do Ébano. 

Mais do que realizar a escolha da divindade, o evento é uma celebração da raça negra. Os parâmetros para a escolha não são os mesmos utilizados na maioria de concursos, que acabam por reforçar um padrão de beleza que exalta a branquitude, a magreza e a juventude. No Ilê, o que configura uma Deusa do Ébano é sua “força de deusa negra”, sua performance articulando dança, potência negra e práticas antirracistas que passam pelo corpo e pela música.

Pensar a música no Brasil por um viés racializado é essencial para compreendermos algumas relações de opressão e movimentos de resistência que muitas vezes não recebem o devido crédito ou visibilidade. 

Noite da Beleza Negra

Durante o século XX, a música foi muito utilizada como aliada na construção de um projeto de identidade nacional pautado pela miscigenação e pela mestiçagem – ferramentas para eliminar a população negra do Brasil de forma gradual apresentadas como algo positivo. A música sempre foi instrumento político, e não vê-la assim é um equívoco. Durante o século XIX, a mestiçagem foi largamente tratada como algo negativo, capaz de formar indivíduos “física e moralmente pervertidos”. Porém, na virada para o século XX, a mestiçagem passou a ser usada pelo Estado para encobrir conflitos raciais e disseminar uma imagem de paraíso racial, onde todas as raças conviveriam harmonicamente – teoria que ganhou força com intelectuais como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Noel Rosa e Ataulfo Alves.

Os termos “negro” ou “negra” aparecem associados a algumas produções musicais do século XIX. Um exemplo disso são as canções que recebem tratamento a partir do espectro religioso, como a conhecida canção “Lamento Negro”, interpretada pelo grupo Trio de Ouro em 1941 e composta por Constantino Silva e Humberto Porto. O jongo também acaba por entrar nesta categoria, que chamarei de “Lamento Negro”, pegando emprestado o título da canção já citada. Menos associada à religião e mais associada ao que era considerado “canto de trabalho”, a manifestação surgida no Vale do Rio Paraíba também é abarcada pelo guarda-chuva das musicalidades que costumavam ser acompanhadas do termo “negro” ou “negra”. O termo “samba” era pouco empregado, sendo mais comum encontrarmos termos como “batuques” ou “macumbas”, marcados por certo “africanismo” associado a escravizados, ex-escravizados e pessoas negras de pele escura ou retinta nascidas no Brasil. A estas, no campo da música, restava o lugar do sofrimento, do “lamento negro”, da escravidão.

Podemos observar uma expansão do samba como fenômeno nacional a partir dos anos 1930. A presença da figura do africano e do negro retinto diminuem, dando lugar à figura do moreno e do mulato, animado e alegre, associado à bebida, à dança e à sexualização, em especial quando se falava de mulatas. As marchinhas de carnaval acabaram por reforçar alguns desses estereótipos, endossando o mulato não como fruto de um processo de genocídio racial, e sim como produto da harmonia entre as raças no Brasil. Em “Moreno”, gravada por Aurora Miranda no ano 1936 e escrita por Synval Silva, temos que:

Moreno, tu nasceste para ser o meu amor […]
Não posso viver sem os carinhos teus,
Moreno, tu foste tocado pelas mãos de Deus.

Ao “moreno”, ou “mulato”, restam o lugar do sexo, do amor – objetificado – e até mesmo de identidade nacional ou de produto de exportação. Cabe ressaltar que essas categorizações, ao longo de nossa história, vêm majoritariamente de agentes externos, como pesquisadores e folcloristas brancos imersos em processos políticos de embranquecimento da população brasileira.

Muitos direitos foram negados a pessoas negras. Entre eles, o de ser senhor de seu destino, de sua identidade e de seu nome. O nome, geralmente escolhido pelos progenitores, ganha tons ainda mais relevantes quando são associados a pessoas negras, assim como apelidos ou eufemismos utilizados para falar de negritude. Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor, expõe a importância da palavra, do nome, ao narrar a vida de Luísa Mahin, mãe do líder abolicionista Luiz Gama:

Nós não víamos a hora de desembarcar também, mas, disseram que antes teríamos que esperar um padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha sido batizada em África, já tinha recebido um nome e não queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em terras do Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria através do meu nome que os voduns iam me proteger…” (Gonçalves, 2006, p. 63)

Capa do álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), dos Racionais MC’s

A forma como somos chamados diz respeito à nossa história, nossa identidade. E denuncia, também, estruturas de poder baseadas no patriarcado e no racismo.

Muitas vezes, vemos perguntas como “o certo é chamar de negro ou de preto?”. Reforço aqui que as questões não são sempre dicotômicas. Nem sempre será “ou isto ou aquilo”, especialmente quando falamos de uma questão tão complexa como as relações raciais no Brasil. É importante estar atento ao uso, ao tom e ao contexto dos termos. 

O vocábulo “nego” (leia-se “nêgo”) é importante nesse sentido. Usado entre pessoas negras, muitas vezes ele expressa carinho e proximidade. Principalmente quando acompanhado de “meu” ou “minha”, como em frases como “está tudo bem, meu nego?”. A mesma palavra, quando usada por pessoas brancas, em especial acompanhadas do termo “seu” ou “sua”, pode adquirir tom de agressividade e menosprezo, como em “o que é, sua nega?”, por exemplo. Os sufixos de diminutivo e aumentativo complexificam ainda mais esta questão. O termo “neguinho” pode desejar demonstrar afeto, mas pode também ser usado para ridicularizar e inferiorizar o indivíduo negro, além de falar de um sujeito indeterminado, sem identidade como em “aquele neguinho lá”. O mesmo serve para o aumentativo. “Negão” pode ser usado para exaltar um semelhante ou ser usado, por exemplo, para objetificar a pessoa negra.

Retomando a pergunta “o certo é chamar de negro ou de preto?”, é importante reforçar que chamar alguém pela sua cor e não pelo seu nome desumaniza o indivíduo. Segundo Luísa Mahin, narrada por Ana Maria Gonçalves no já citado livro, “através do meu nome que os voduns iam me proteger”. As palavras e os nomes têm um enorme poder nas tradições africanas e afro-brasileiras. Um indivíduo negro não se chama “Nego”. Também não se chama “Preto”. Nem “Moreno”. E muito menos “Escurinho”. Temos nome, sobrenome, identidade e trajetória.

Para além dos termos utilizados a fim de inferiorizar pessoas pretas, há também os eufemismos, palavras usadas para “suavizar” a negritude de alguém. E, especialmente, para não pronunciar a palavra “negro”, que, para alguns, ainda soa como ofensa ou como um termo que “não cabe em bocas civilizadas”. “Escurinho”, “moreno”, “moreninho”, “marrom bombom”, “pegado na cor” e “mulato” são alguns dos vocábulos usados. “Moreno”, por exemplo, é um termo muito utilizado a fim de trazer ambiguidade e “suavidade” ao debate racial. O “moreno” teria identidade indefinida. O “moreno” não pertence a raça alguma. O “moreno” é o termo-corpo que representaria o sucesso do mito da democracia racial. Por isso, a afirmação de que “a preferência é ser chamada de negona” é tão importante. A autoafirmação e autoidentificação racial foram direitos conquistados por pessoas negras – e que ainda estão em disputa. Assim, quando o tema é raça, não há por que usar eufemismos. 

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considera a categoria racial “negro” como a soma da população preta e parda. Essa definição também foi incorporada ao Estatuto da Igualdade Racial. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, 46,8% da população do Brasil se autodeclara parda e 9,4% se autodeclara preta. Temos, assim, 56,2% de população negra no país.

Retomando o termo adotado pelo IBGE, trago Mano Brown para nos ajudar a pensar o grupo racial “pardo”:

Eu sou o mano, homem duro, do gueto, Brown, Obá
Aquele louco que não pode errar
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk
E de onde vem os diamantes? Da lama
Valeu mãe, negro drama.”

Pedro Paulo Soares Pereira (mais conhecido como Mano Brown) é um intelectual, rapper e compositor brasileiro de São Paulo. É integrante dos Racionais MC’s, grupo fundado em 1988 que revolucionou a cena do rap nacional. Além de Brown, o grupo é composto por Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador) e KL Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões). São deles os versos acima, do rap “Negro Drama”, escrito em 2002 para o álbum Nada como um dia após o outro dia. 

A pele parda evocada pode causar estranhamento quando lembramos que quem a evoca tem o nome de “Brown”, que significa marrom, traduzindo-se do inglês. Porém, é preciso lembrar que, no Brasil, a maior parte da população negra se autodeclara parda. Segundo o já citado IBGE, pardos constituem o grupo étnico negro. É possível ser pardo e ser “brown” ao mesmo tempo. É possível ser pardo e “ver e viver o Negro Drama”.

“O termo “pardo” expõe o histórico de apagamento e abandono das populações negras e indígenas no Brasil”

Também é importante termos em mente que o termo “pardo” muitas vezes é utilizado para referir-se a populações indígenas. Em ambos os grupos étnicos, precisamos estar atentos aos possíveis apagamentos trazidos pelo termo. Na mesma canção, Brown reforça que:

Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olha outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro, sem rosto e coração
[…]
Luz, câmera e ação, gravando a cena vai
Um bastardo, mais um filho pardo, sem pai.
Ei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé.

O termo “pardo”, empregado com excelência por Mano Brown há 19 anos, expõe o histórico de apagamento e abandono das populações negras e indígenas no Brasil, ainda que seja essencial quando falamos de políticas públicas e dados oficiais. O Brasil apresenta população negra e indígena em infinitos tons de pele e diferentes contextos sociais, e isto não pode ser esquecido. Autodeclaração é política. Raça é política.

Precisamos observar o que significa “uma negra e uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço”. Precisamos nos atentar ao que Brown lança luz ao falar de “mais um filho pardo, sem pai”. A miscigenação no Brasil revela um histórico de estupro, misoginia e racismo. É importante nos lembrarmos do consagrado quadro A redenção de Cam, de Modesto Brocos, que apresenta o “produto do sucesso da miscigenação no Brasil”. Ainda e apesar de, estamos aqui.

É preciso ter sensibilidade e olhar historicizado ao analisar as conformações raciais em nosso país. É a partir da categoria negro (junção de pretos e pardos) que conseguimos disputar projetos de nação. É a partir desse grupo racial (negros) que podemos afirmar que o processo de aniquilação total das populações negras – ainda em curso – não vingou no Brasil. A deseducação racial oferecida pelo nosso Estado consiste num projeto de apagamento físico, histórico e epistemológico. 

O rap carioca também nos ajuda a pensar a música como ferramenta de reeducação das relações raciais. Em “Favela Vive 2”, o rapper da Cidade de Deus, MV Bill, canta:

Na gaveta gelada do IML
Vários amigos que foram abatido pela cor da pele
Tática inimiga, bota a bala pra comer e menos um nigga
Atiram na nuca primeiro, derrubam certeiro, pra perguntar depois

A cada 23 minutos, morre um jovem negro no Brasil. As ruas têm dito muitas coisas, e um dos dizeres que ouvi recentemente é que ser negro no Brasil é nascer com uma marca na pele. Por vezes mais escura, por vezes mais clara. Mas a pele negra, o corpo negro, ainda é sinônimo de alvo numa sociedade racista.

Movimentos negros contribuíram para a ressignificação de termos como “negro” e “preto”, que foram, ao longo de nossa história, largamente utilizados para referir-se à população escravizada a fim de desumanizá-la, criando, nas populações negras, medo e dificuldade de associar-se à sua própria raça.

Em 1992, o compositor carioca Jorge Aragão compôs “Identidade”, que acabou por se tornar uma espécie de “hino” entre sambistas negros e negras:

Se o preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade

A reflexão de Aragão reforça que necessitamos de um processo de reeducação das relações raciais. Demandamos letramento racial para que encaremos questões como mestiçagem, miscigenação e racismo como projetos criados de forma legalizada pelo Estado brasileiro a fim de fazer vencer a ideia de um país com identidade branca. É essencial que façamos o resgate da nossa identidade levantado pelo sambista. E pela porta da frente. Só assim alcançaremos cidadania plena, como diria a intelectual Azoilda Loretto da Trindade.

A escravidão – legalizada – durou aproximadamente 350 anos no Brasil. O processo foi responsável por trazer cerca de 4 milhões (37% da população de escravizados trazidos para as Américas) de africanos e africanas para o país. Esse processo deixou feridas em nossos corpos, histórias e memórias. Afirmar que temos nome é um caminho para a conquista de nossas subjetividades. Afirmar que “a preferência é ser chamada de negona” em detrimento de termos como “morena” é se levantar diante do apagamento de nossas identidades como população negra. E é desta forma que, acredito eu, daremos continuidade aos caminhos abertos por nossos mais velhos e mais velhas, reconstruindo nossas histórias e buscando um futuro ancestral.