– De Tênis não entra. Hoje é nostalgia.
– Como assim moço?
– Eu disse que de tênis não entra hoje. Não te avisaram que era baile nostalgia? Só entra a passeio.
Por pouco não respondi que estava ali justamente “a passeio”. De nada adiantou meu nome na lista de convidados do dono do baile. E o segurança nem ligou quando argumentei que precisava entrar para fazer uma reportagem e que o tênis, afinal de contas, era meu “sapato de sair”.
– Pode servir para as suas festas. Aqui, pode ser tênis feito de ouro que não vai entrar.
– Aaaaarrrrrrrrrrrrrrgh!
Era um calorento sábado de janeiro. Estava cansada, não conhecia direito o bairro e tinha acabado de me desentender com a amiga que me acompanhava na aventura. Quase dei meia-volta.
Foi quando apareceu o DJ Gringo, um negro enorme, com seus quarenta e poucos anos, vestido de terno e gravata, a quem eu tinha sido apresentada naquela noite.
– Alivía a moça aí, ela é jornalista, amiga nossa.
Estávamos salvas.
Lá dentro rolava um autêntico nostalgia, baile feito nos moldes das primeiras festas Black de São Paulo. O terno “nostalgia” apareceu nos anos 1980, criado por saudosos discotecários e frequentadores. As festas, que na época eram chamadas apenas de bailes, foram as primeiras a funcionar regularmente com música mecânica, ou DJ, no final dos anos 1950 e início dos 1960.
Naquele sábado de 2003, o salão do Cassasp (Clube Associativo dos Suboficiais e Sargentos da Aeronáutica de São Paulo), em Santana, reunia centenas de casais negros, misturados a alguns poucos brancos, todos loucos pelo som nostalgia. Na maior estica, os homens desfilavam de paletó e camisa.
As mulheres, a maioria, de vestido de festa. Muito lurex, lantejoula e brilho. Chiques no último. Àquela altura da noite, o DJ Gringo, que nos resgatara do segurança antitênis, soltava nas pick-ups discos que a galera do baile conhecia muito bem: uma massa de clássicos do samba-rock brasileiro e – sim, isso existe – internacional.
Gringo segue a escola dos primeiros discotecários (o termo “DJ” só seria usado no Brasil no final dos anos 1980) de som Black de São Paulo. Discos orquestrados, como Chá Dançante Volume 3, de Valdir Calmon (1959), e Bolão e seus Roquetes (1958), clássicos absolutos e precursores do samba-rock, botaram a pista do DJ Gringo para dançar a mesma coreografia harmônica e acelerada que se via nos bailes dos anos 1960. O ritmo, que de início se chamava apenas rock – isso bem antes de Jorge Ben se tornar seu maior ícone – , é dançado do mesmo jeito há mais de quarenta anos: em dupla, braços cruzados sobre a cabeça do outro, em movimentos curtinhos que seguem a batida cadenciada. Sempre o homem conduzindo a mulher. É uma espécie de rockabilly dançado mais grudadinho, com as mãos sempre unidas, embolando-se no topo das cabeças.
Como é que eu sei que sempre se dançou assim? Num cantinho do palco, observando o DJ Gringo, estavam dois discotecários da velhíssima guarda.
“Era assim que o pessoal dançava no nosso tempo. O nostalgia de hoje não mudou nada”, diz Joaquim Inácio Lucas, 58, o Kim, um dos discotecários tops quando se falava em bailes black dos anos 1960 em São Paulo. Naquela época, Kim e seu irmão Luquinha se juntaram para formar uma equipe de baile. Hoje ele não toca em festas, se acha “gasto demais”. Mas o sangue de discotecário ainda corre nas veias. “Sempre venho apreciar o som dos amigos”. Além de prestigiar os colegas, Kim continua dono de uma equipe, a Clube Primavera, fundada em 1976.
Outro DJ roots, o discotecário Sérgio Nogueira Teófilo, ou Serjão, não revela a idade nem amarrado. Ainda está em atividade (é DJ da equipe de Kim) e não quer ser chamado de “vovô” pelos DJs mais jovens.
– A gente é tão velho que pode colocar aí que somos da época da orquestra invisível.
Puts… Serjão me fez lembrar que antes de entrar no mérito do samba-rock, antes mesmo de falar dos bailes Black dos anos 1960, é preciso reconstruir a incrível história da orquestra invisível, o primeiro DJ do Brasil.
No final dos anos 1950, São Paulo tinha bons salões de baile. Os mais famosos eram o Clube Holms e o Alepo, ambos na avenida Paulista, o Clube 220, no edifício Martinelli, o Coimbra e o Salão 28, ambos na avenida São João, o Salão Campos Elíseos, na Barra Funda, o Royal, na rua Lopes Chaves, o Palácio Mauá, no viaduto Maria Paula, o Paulistano da Glória, na rua da Glória, o Clube Piratininga, na alameda Barros, o Casa de Portugal, na avenida da Liberdade, e o Som de Cristal, na rua Rego Freitas.
As festas nesses salões eram verdadeiros acontecimentos. Sempre aos sábados, os bailes eram pomposos, animados por orquestras competentes, com músicos vestidos em traje de gala.
Ao contrário de países como os Estados Unidos, não havia no Brasil um código social que vetasse a entrada de negros nesses bailes. O fator excludente era mesmo o alto preço dos ingressos. As festanças com orquestras eram verdadeiros shows, com músicos impecáveis, som da melhor qualidade e até iluminação caprichada. Tudo perfeito para divertir os dançarinos da elite.
Sabe a história da pessoa certa, no lugar certo, na hora certa? Serve direitinho para contar como o técnico de rádio Osvaldo Pereira, hoje com 68 anos, se tornou o primeiro DJ do Brasil.
Formado em rádio e TV, Osvaldo trabalhava numa loja que era, ao mesmo tempo, revendedora de LPs e assistência técnica de aparelhos eletrônicos. Quando não estava consertando rádios, Osvaldo ficava como vendedor na pequena seção de discos que havia ali.
Fã de música desde criança, o técnico ficava frustrado por não poder frequentar os bailes nos salões bacanas. Visionário, construiu um sistema de som com pouco mais de cem watts de potência (um assombro para a época, porém pouca coisa mais potente que um aparelho de som caseiro de hoje) e começou a fazer som em aniversários e casamentos no bairro de Vila Guilherme, zona norte de São Paulo, onde mora até hoje. O ano era 1958.
Com um toca-discos dinamarquês da marca Torris e o sistema de som que havia construído, Osvaldo foi o primeiro a sustentar um baile em um salão chique da cidade sem uma orquestra. Ou melhor, com uma orquestra invisível…
Em 1959, um ano depois de começar a fazer festinhas de bairro, Osvaldo Pereira negociou com o proprietário do Clube 220 o empréstimo do salão aos domingos. A ideia parecia boa para ambos, já que o salão não funcionava naquele dia e Osvaldo prometia um baile bem mais barato que o habitual, uma vez que não gastaria com músicos.
Hoje aposentado, Osvaldo descreve, orgulhoso, a sensação de segurar um baile só com música mecânica: “ Montei meu toca-discos no palco, distribuí as caixas de som pelo salão. As pessoas que iam chegando não entendiam direito como um som tão potente saía da minha vitrolinha. Tinha gente que subia no palco para ver. Às vezes, eu ficava escondido num cantinho ou deixava a cortina fechada. Aquele sonzão todo e nenhum músico, o pessoal ficava meio assim. Daí um primo meu me deu a ideia de divulgar que os bailes eram animados pela orquestra invisível, porque ninguém via direito de onde vinha o som. Eu gostei disso, achei charmoso. E completei com um nome em inglês bem bonito. Eu virei a Orquestra Invisível Let’s Dance”.
Ali nascia, ainda que sem querer, o esboço do que viria a ser, nos anos 1970, as equipes de baile. Só que, no caso de Osvaldo, o DJ, o técnico, o rodie e o empresário eram a mesma pessoa.
Em pouco tempo, a notícia da orquestra invisível de Osvaldo Pereira havia se espalhado pela cidade. As festas tinham fama de ser boas e baratas, o que poderia ser melhor? “Outros discotecários se animaram, surgiram várias orquestras invisíveis em São Paulo” recorda Kim, que cita, além de Osvaldo, o discotecário Daniel como uma lenda nos bailes da virada dos anos 1950 para os 1960. “Só que o Daniel virou crente. Ouvi dizer que hoje em dia é pastor da igreja lá do bairro da Liberdade”, diz o DJ.
Do Clube 220, a Orquestra Invisível Let’s Dance foi para o Ambassador, outro salão chique da cidade, instalado na avenida Rio Branco. Ali, ainda em 1959, Osvaldo passou a comandar os sábados, além das domingueiras.
Como só tinha um toca-discos, ele conta que tinha que correr para trocar de música. “Eu tocava rápido porque conhecia muito bem os LPs, sabia do que as pessoas gostavam. Conforme fui pegando prática, o intervalo entre as músicas foi ficando tão pequeno que às vezes as pessoas nem paravam de dançar”. Quando ele demorava um pouco mais na troca, os dançarinos batiam palmas, como se aplaudissem uma orquestra de verdade no final de uma execução impecável.
Na vitrolinha Torris do discotecário rolavam bolachas de 78 e 45 rotações. Até meados dos anos 1960, as orquestras invisíveis tocavam um som bem fiel ao das orquestras de carne e osso. “A gente botava Glenn Miller, Stan Getz, Ray Charles, Frank Sinatra, Johnny Mathis, Ray Connif… era um som bem requintado”, lista Osvaldo. Entre os artistas nacionais, os bons de pista eram Bolão e Valdir Calmon (os precursores do samba-rock), Golden Boys, Elza Soares e Miltinho, Eduardo Lincoln, Claudete Soares, Trio Ternura…
A dinâmica do baile não era muito diferente daquela que se vê atualmente nos bailes de nostalgia. O discotecário começava esquentando o salão, com sons mais calminhos, orquestrados. Depois passava para o swing, o shuffle e, mais tarde, para o fox trot, gênero anterior ao rock, que dançava com passinhos ligeiros em torno do salão – era o momento drum’n’bass da noite, com BPM no talo. Para desacelerar a galera, o discotecário soltava uma seleção de lentas, um sucesso entre os casais. Era a deixa para o cavalheiro tirar seu lencinho do bolso para não suar a mão da dama na hora de dançar. Em tempo de “homens-golfinhos”, aqueles meninos sem camisa que nas pistas molham todo mundo de suor, fica difícil acreditar que tal cena tenha existido… Fecha parênteses.
Baile bom ia nesse pique de sobe e desce até as quatro e pouco da manhã. Nos salões do centro, chegava-se a tocar até as cinco, horário em que os ônibus voltavam a circular.
Segundo o DJ Kim, não havia consumo de drogas nesses bailes. “No máximo o sujeito ia para fora do salão e fumava uma maconhinha“, diz. Coisa light. Entre os drinks mais pedidos estavam o cuba libre, o gim-tônica e o samba (pinga com coca-cola). Tomar uísque era coisa para “pessoa rara”, seja lá qual for o significado disso.
Com o sucesso dos bailes, Osvaldo teve que contratar auxiliares. Eram alguns amigos e parentes que se dispunham a tirar um por fora nos fins de semana em troca de carregar caixas e passar recadinhos no microfone nos intervalos das músicas. Além deles, Osvaldo mandava alguns rapazes, às sextas-feiras, a pontos movimentados da cidade (vale do Anhangabaú, praça do Patriarca, largo São Bento, rua José Paulino) para entregar as “circulares” dos bailes. Circular? É o nome paleozóico do que viria a ser conhecido como filipeta e mais tarde como flyer.
No auge do sucesso, por volta de 1962, a Orquestra Invisível Let’s Dance ganhou um nome mais pomposo, tudo em inglês: High Fidelity Let’s Dance. No flyer, ops, na circular, vinha até a pronúncia escrita entre parênteses, assim: “rai-fai”.
Reza a lenda que Osvaldo tocava sempre sentado e nunca abria a cortina do palco para o salão. Ele esclarece: “Não tinha muito isso. Às vezes eu ficava sentado, às vezes em pé . Tinha noite que eu descia até o salão para ver como estava o som. Fazia questão de me vestir bem, terno e gravata. A cortina eu abria de vez em quando, para ver se o pessoal estava caindo na gandaia”. “Cair na gandaia” é o mesmo que “bombar”, só que três gerações atrás.
Dependendo do salão, o DJ ficava bem longe da pista, instalado em algum quartinho. “A gente tinha medo que roubassem nossos discos”, explica o DJ Serjão.
Osvaldo reinou até 1966 com sua Let’s Dance – que chegou a ter um segundo DJ, Francisco Salles. Era o começo da febre do samba-rock. “Fiz meu último baile em 1968, mas já não me envolvia com a produção das festas. Ia mais porque o pessoal fazia questão que eu fosse abrilhantar o baile”, diz, com seu vocabulário todo rebuscado.
Pode-se dizer também que Osvaldo foi precursor das raves de praia. Em 1963, ele foi um dos primeiros a montar bailes nas areias de Santos. “ A gente chamava de piquenique. Alguém me contratava para levar o som e tocar. Montavam na praia uma barraca, igual a essas de quermesse, e o pessoal ficava dançando lá dentro”. Isso em 1963!
Pergunto se ele acompanhou a evolução dos discotecários, se ainda se interessa. “Agora chama DJ, eles tocam com dois toca-discos, né? Não saberia fazer isso, não. Mas acho bonito”, diz o fofo. Ele me convida para ver suas “caixas de discos”. São duas caixas plásticas, dessas de carregar fruta na feira, lotadas de LPs organizados por momentos do baile. “Aqui são as lentas, ali tem mais rocks”, explica. DJ que é DJ está sempre pronto para qualquer eventualidade, ora.