#3MedoUrbanismo

Cidadão Instigado

por Clévio Rabelo

A jornalista Jane Jacobs, na Nova Iorque dos anos 1960, foi pioneira ao defender o bairro, a rua, a calçada como elementos regeneradores da vida na urbe, modernizada a todo custo pelo capital.

Na contramão do momento futebolístico que passou, quando patriotismo e igualdades fictícias aproximam milhões de brasileiros, a experiência urbana brasileira cada vez mais é sinônimo de afastamento, diferença, desigualdade e medo.

A urbanista Raquel Rolnik, em entrevista recente a uma revista de grande circulação, disse estarem as cidades brasileiras condenadas ao fracasso: elas sobrevivem dentro de uma ética da cidade-limite.

O que seria essa experiência?

Com um pouco de cuidado, todos nós podemos listar práticas diárias que nos tiram do sonhado caminho que conduz à cidadania, esta palavra cuja origem fala dos direitos relativos ao cidadão – o ser da cidade ativo e participante dos negócios e das decisões políticas.

Porém, no espaço metropolitano, é cada vez mais raro encontrar personagens desse tipo. Pelo menos se falarmos não só de negócios mas também de política, esta entendida como debate amplo do conjunto de ações, em suas idas e vindas, dos cidadãos no espaço que se quer cidade.

Então você deve estar pensando: tudo é política? Sim, assim como tudo é negócio. Mas vale lembrar que existem políticas e negócios bons para a cidade.

A jornalista Jane Jacobs, na Nova Iorque dos anos 1960, foi pioneira ao defender o bairro, a rua, a calçada (sem desníveis, por favor!) como elemento regenerador da vida na urbe modernizada a todo custo pelo capital. Com Morte e Vida de Grandes Cidades (1961), Jane se tornou uma referência no campo das micro-políticas urbanas ao defender que o grau de urbanidade de uma cidade depende da vitalidade ali presente.

Mesmo sabendo que é difícil definir que tipo de vida queremos para nossas cidades, devemos concordar que elas não podem ser sinônimo de medo. Jane defendeu a vitalidade das relações humanas acontecendo em um espaço concreto e palpável de trocas que vão além dos câmbios monetários.

Em O Declínio do Homem Público (1977), o sociólogo e historiador Richard Sennett descreveu uma história da vida urbana moderna tratando-a como um percurso caminhante no sentido do completo esvaziamento do seu sentido público em favor de uma cada vez maior supervalorização do mundo privado e individual dos homens isolados em suas casas e grupos sociais fechados. As consequências espaciais desse trajeto da humanidade estariam visíveis em alguns elementos da forma-cidade contemporânea: centros degradados, condomínios de luxo fechados periféricos e favelas unem-se pelos laços da segregação social, atiçada pelo descaso e apatia de algumas elites. Já as sequelas psicológicas estariam estampadas na forma-homem globalizada: exércitos de narcisos que perambulam pela cidade sitiada e incivil sem qualquer envolvimento coletivo em termos de memória ou comunidade.

Medo é uma palavra constante em Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo (2000), de Teresa Caldeira. Baseada em depoimentos de moradores de bairros diferentes da cidade, colhidos entre 1989 e 1991, a autora analisa suas visões em relação à criminalidade, à polícia, às instituições democráticas e aos direitos civis tendo como fio condutor o conjunto da cidade emergida de uma noção de espaço público vigiado, fragmentado e socialmente segregado. A fala da senhora de classe média, imigrante da Itália, que se refere a outros migrantes mais recentes, os nordestinos, como responsáveis pelo aumento da criminalidade no seu bairro, é um bom exemplo dessa dinâmica de criação de distanciamentos e que se repete, também, nos depoimentos dos habitantes pobres da periferia em relação a outras classes de renda mais alta.

Os habitantes dessa cidade valorizam a cultura de violência das instituições policiais (notar a popularidade dos programas policiais da tv aberta), os shopping centers e os condomínios fechados, estes dois últimos verdadeiros “enclaves fortificados”, que a autora define com “propriedade privada para uso coletivo, que enfatiza o valor do que é privado e restrito ao mesmo tempo que desvaloriza o que é público e aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes arquitetônicos. São voltados para o interior e não em direção à rua, cuja vida pública rejeitam explicitamente. São controlados por guardas armados e sistemas de segurança”.

Na passagem do século XIX para o XX, antes das campanhas estatais e privadas direcionadas a fazer com que os operários realizassem o negócio da casa própria periférica, esses grupos moravam nas áreas centrais das cidades, usufruindo da proximidade com o trabalho e do conjunto de infraestruturas que esse setor da cidade oferecia à época. Muitas das revoltas populares que aconteceram no Rio de Janeiro na primeira década do século XX tinham como objetivo esse desejo de cidade. A população queria se manter no Centro, mas os setores dominantes percebiam o poder de luta política desses estratos quando eles se aglutinavam em áreas próximas aos locais de decisão, como costumeiramente eram os centros das cidades.

A casa periférica que foi proposta como modelo de felicidade do povo resolvia várias questões: enriquecia os novos concessionários de transporte (trem e ônibus) e serviços como luz, os donos de terra e especuladores em geral, além dos construtores, é claro, ao mesmo tempo em que desintegrava politicamente os movimentos populares.

O morador da periferia pouco cobraria do Estado. Não lhe pediria metrô, calçadas alinhadas, boa luz pública, água, esgoto e afins. Consolado pela ideia de morar no que é seu, por pior que sejam as condições dessa moradia, a periferia, em sua origem, calou o cidadão instigado.

É desse sujeito social que nossas cidades do medo precisam.

#3MedoCulturaSociedade

Tarô em cena

por Vanessa Agricola

Pollyannas, me perdoem, vou falar de morte. Não dá pra falar de medo sem falar de morte. Dá? Falta de criatividade ou não, morrer é o medo mais comum, pode pesquisar. Pode ser que você nunca tenha pensando nisso antes, mas quando pensar vai ficar com medo, muito medo. Ficar perto da morte dá vontade de fazer cocô nas calças. Outros medos só dão vontade de fazer xixi. Os puristas que me perdoem, mas é isso aí.

No dia que o Michael Jackson morreu eu quase morri. Não porque eu era fã do Michael Jackson e morri de tristeza, nada a ver, o que eu tive foi um ataque de pânico, do nada achei que eu ia morrer. Freud explica o porquê. Talvez quando eu era criança ele ainda era um adolescente, para mim ele ainda era um adolescente. Morrer aos 50 anos não é muito cedo? E se eu morrer aos 50? Que medo.

Só uma coisa passa na cabeça quando você acha que vai morrer: tudo de uma só vez. O que aconteceu, todas as pessoas, o que você disse, o que você fez. O que você não fez é o que mais dá medo, não vai dar tempo de fazer! Pânico. Esse dia eu tomei três vidros de floral de Bach, chá de camomila, chá de camomila, chá de camomila, até passar.

Passou. Chamei um táxi, entrei na primeira livraria, o Medo da Morte estava em todo lugar: “a morte não é o fim”, blábláblá. Mudei de corredor. Qual foi a primeira coisa que eu vi? A Morte do tarô, estampada numa caixa, logo ali. Peguei e abri na hora. “Senhora? Eu vou levar”.

Claro que A Morte foi a primeira carta que eu li.

ARCANO XIII – A MORTE

O Arcano 13 fala de uma grande transformação. É uma das cartas mais poderosas do tarô, pois anuncia que uma mudança irá ocorrer, não necessariamente a morte do corpo físico, mas pode ser. Com certeza A Morte anuncia o começo de um novo ciclo, totalmente desconhecido, por isso morrer é assustador, daí o medo. Mudar de ideias, trocar de marido, procurar outro emprego. Medo, medo, medo.

Mas olha que legal, no tarô A Morte é um passo à frente. Sempre. Apesar da representação dramática, a carta é um sinal de transformação positiva. Significa um progresso, um salto, te leva do menor para o maior, do alto para o mais alto. Embora nos faça sentir tristes, é uma vitória morrer, devemos morrer o tempo todo. Morrer é a única forma de renascer.

Simbologia: no Tarô de Waite a personificação da morte aparece montada num cavalo branco, símbolo de renascimento e passagem. A rosa branca na bandeira negra simboliza a vida. O Bispo e a criança dão as boas vindas à Morte porque conhecem o poder de transformação que ela traz. A água do rio vai virar nuvem e chuva, depois retorna pro rio outra vez, nada se destrói. Quase toda carta da Morte traz um símbolo de ressurreição, como o Sol, que significa que para progredir deve morrer a forma antiga.

“Quando aparece a carta da Morte, é possível que no seu caminho surjam grandes mudanças. Em geral, referem-se a algo no seu estilo de vida, uma velha atitude ou uma perspectiva que já não é útil e tem que deixá-la ir. Enquanto o Homem-Pendurado* é uma carta de sacrifício voluntário, a Morte é de sacrifício forçado, mas não significa que não seja para seu próprio bem.” O Tarô Universal de Waite.

#3MedoCulturaSociedade

Notas para um terrorista moral

por Carlos Andreazza

Tudo bem que já não se sequestre aviões (romanticamente) como outrora. Os tempos passam, as modas mudam, as passagens ficam baratas, as práticas se tornam anacrônicas e/ou vulgares; tudo isso é tão orgânico (e vital) quanto humano (e desumano) que as pessoas se valham de atitudes extremas – uma bomba ou um bumbum de fora – para chamar a atenção.

O terrorismo, mortal ou meramente ambiental, é a mais rigorosa modalidade de propaganda já constituída; e nem o Boninho terá compreendido as infinitas possibilidades da televisão ao vivo com a mesma clareza dos terroristas.

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Descobri, graças a Johan Grimonprez (autor do instigante filme Dial History), que as técnicas ancestrais que uso para fugir dos atores de teatro interativo – jamais sentar no corredor e nunca buscar o olhar do algoz – são as mesmas historicamente recomendadas aos que não querem ter o pescoço degolado por um sequestrador de avião.

(Incontornavelmente seguro, porém, é não andar de avião e, sobretudo, não ir ao teatro).

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Poucas palavras foram mais raptadas pelo clichê psiquiátrico que paranoia. Sei que muitos ficam milionários (ou viram presidentes da Venezuela) explorando delírios sistematizados vagos e cafonas; mas eu vou direto ao ponto, com a exatidão decorrente do notório saber: a única estirpe de paranoia que se deve temer é ciúme crônico de mulher (tenha ela razão ou não).

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Só recentemente tomei conhecimento de que o bêbado maluco aqui do bairro – que nos cruzava a porta cantando sambas-enredo do Império Serrano em francês – era depressivo, bipolar, esquizofrênico e dependente químico; e soube que já não poderia (deveria) mais chamar por Negão o amigo fraterno a quem sempre chamei por…Negão.

Pela mesma época, fui também informado de que vivíamos um poderoso drama, o aquecimento global, que de repente botava o planeta a contar os últimos giros, embora antes Hollywood devesse produzir todos os filmes sobre o fim do mundo (e apesar de que, em meus trinta anos, tivesse já experimentado muito mais calor e muito mais frio aqui nesta província do Leblon).

Aquele foi o verão (ou seria inverno?) em que o pavor presente – o terrorismo contemporâneo – consolidou dois grupos associados pesos-pesados: os politicamente corretos (ou ONGs) e os ambientalistas (ou ONGs).

E nada nunca mais foi como antes.

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Em qual momento um atentado – o 11 de setembro, por exemplo – deixou de ser episódio extraordinário para se esparramar em perenidade? Quando foi que aquela ocorrência – tão nefasta quanto efêmera – veio e simplesmente ficou, aboletada, fundida nos meios como lidamos com o mundo e com os outros?

Quando?

Subitamente, o terrorismo – aquele, clássico, com sequestros, bombas etc. – deixava de ser evento pontual para se desdobrar em permanência e, pois, em possibilidade. Um medo baixinho, sem explosões ou faces definidas; antes de tudo, ameaça, patrulha, desconfiança e, logo, licença para os maiores assaltos à democracia e às liberdades individuais. Um medo que espreita; que é um estado mental, hipocondria social (e que está sempre a um passo da histeria).

Ao dobrar da esquina… O terror! O terror! O terror!

Exagero?

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Brasileiramente, tudo afinal ecoou no preciso instante em que o jornalismo transformou-se em assessoria de imprensa e o politicamente correto virou movimento – “Basta!” – da classe média zona sul (foi um ai-jesus)! A bourgeoisie carioca estava cansada, já não aguentava mais a impunidade, a tamanha barbárie de traficantes cujas balas-perdidas encerravam-se em nossas crianças – e então decidiu levar Fernando Gabeira a sério.

Aquele foi o verão (ou seria outono?) em que Zuenir Ventura ganhou coluna em jornal, a crônica criminalizou a polícia e se pôs a serviço do onguismo, e o AfroReggae de repente se tornou o futuro (e a esperança) do Brasil.

E nada nunca mais foi como antes.

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O medo individual só raramente resulta em reação individual. Para tanto, os medrosos contam (contavam) com o governo. Mas e se este for corrupto, segundo a imprensa indignada, culpado de todos os males? E se o político e a política – tudo coisa ruim – estiverem também criminalizados, lá no degredo ético para onde mandaram a polícia?

Quem doravante protegerá a sociedade? (Afinal, alguém precisa lucrar). Quem pegará na mão dos ceguinhos?Ora, é simples: uma ONG. Ou milhões delas – todas curiosamente financiadas pelos… governos!

(Então: “Ficha limpa” neles)!

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Os governos – os políticos – são injustiçados?
Não, não é isso. Mas que tal ampliarmos a lista – o bloco – dos sujos?
Há mais de trinta anos, alternando vigarices, com maior ou menor competência e, logo, irresponsabilidade, todos os governantes do Rio conjugaram formas de adiamento e embromação, retardando-evitando os choques e empurrando o problema das drogas para os sucessores, e investiram em acordos tácitos espúrios e precários que, a rigor, cultivaram (em silenciosa estufa) o clima de ameaça-medo-terror constante: o tráfico podia controlar, como desejasse e sem maiores incômodos repressivos, os morros, mas desde que minimizasse os delitos no asfalto; pacto ao qual compareceu – agradada – a classe média (olha ela aí), que assim teria a segurança possível se com efeito indisposta a abrir mão do pó (ou como lhe restaria a vida social ou o glamour)!?

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Pegue o trecho acima, adapte a qualquer nação e a seus conflitos – da guerra no Afeganistão ao flagelo do Haiti, do bolsa-família brasileiro à velhacaria ideológica cubana – e repare em como o terror permanente financia a mais lucrativa (e viciante) indústria (elite) já erguida pelo homem: a da exploração da miséria (difícil será achar quem não a integre).

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Citei o filme Dial History – por meio do qual Johan Grimonprez radicaliza (e denuncia) a linguagem sensacionalista do que se convencionou chamar por media – e preciso lhe sublinhar o ritmo quase enloquecido da montagem, que consiste numa sucessão cronológica febril de sequestros de aviões mundo afora: eventos espaçados em um ou mais anos, cada qual com seus pormenores políticos-ideológicos-religiosos, normalmente desconexos entre si, no entanto apresentados em sequência, como se ávidos diariamente, um atrás do outro, e sob a mesma motivação; e logo se estabelece a massa do pavor, o grande lixão do medo, o espetáculo do pânico…

Pergunto-especulo: haverá neste desenrolar o instante em que o terror se desliga do terrorismo para assumir e desenvolver uma existência autônoma e multiplicadora na voz do Datena? Haverá o momento em que a reportagem do fato (do terrorismo) se transforma num terror (fato) novo, independente? Haverá aquele átimo em que o veículo deixa de noticiar terrores e terrorismos para amplificá-los e mesmo causá-los?

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E eis que chegamos ao verão (ou será primavera?) em que fumar cigarro é pior que fumar maconha.

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Uma questão muito séria: o Rio de Janeiro está mais violento hoje ou seremos vítimas do acúmulo de violências? A cidade é mais barra-pesada ou foi simplesmente o tempo que passou e as histórias-mazelas individuais que se sobrepuseram? O Rio vai mais agressivo ou tão-só ricochetearão as memórias? O crime é de fato crescente ou ora terá apenas mais instrumentos para repercutir?

Pode-se pretender uma atitude blasé ante os estímulos – midiáticos – que nos empurram ao curso do medo. Pode-se também desprezá-los; ignorar-lhes a influência. Pode-se quase tudo a propósito, desde que se faça a seguinte reflexão, importantíssima para a regularidade das noites de domingo: o que será do Fantástico – o “show da vida” – sem o medo?


Carlos Andreazza, fundador do site Tribuneiros.com e editor da Capivara Editora, é co-autor do livro Contra a juventude.

#3MedoCulturaSociedade

Transe

por Bruno Pesca

Bamiyan é um vale verde vivo cercado por montanhas sem fim, cujos cumes mais altos e esbranquiçados pela neve – mesmo no verão – são plano de fundo de um visual cinematográfico. Dois budas gigantes e monumentais, esculpidos ao estilo grego há quinze séculos, decoram o enorme paredão montanhoso de frente ao pequeno vilarejo e avisam que há muito mais história ali do que se poderia imaginar. Ficava claro o nosso privilégio. Foi somente no carro, durante a viagem de volta, que o êxtase passou e a realidade voltou: pegamos o caminho errado, e por instantes estávamos perdidos sozinhos em meio ao Afeganistão em guerra. Eu estava com medo.

Durante as décadas de 1960 e 70, aquela beleza toda fazia a cabeça dos hippies. A chamada hippie trail levava os jovens de imaginação por estradas desde a Europa até a Índia ou Nepal com um dólar por dia. Um dos ápices da viagem era bem ali. Em 1979 veio a invasão e guerra soviética, nos anos 1990 o Talibã, e na última década os falcões norte-americanos. Hoje não há muitos curiosos passeando na região, não mais. Como quatro cariocas foram parar em uma área tão remota, há duzentos quilômetros da capital de um país em guerra há trinta anos, é uma história longa, porém muito simples.

Uma reflexão desperta sentimentos – entre eles o medo – que podem te levar a lugares inalcançáveis, onde as pessoas dizem que você não pode chegar. O medo, no caso, seria o de ver a vida passar, de não usufruir de suas capacidades e de tomar decisões de vida por limites inexistentes desenhados por outros. Seria um medo de acreditar em si mesmo, que é cada vez mais comum. Em tratamentos de choque, esse medo de não viver empurra alguns ao desejo de sentir a vida na pele, e o perigo nasce quando isso exige situações que nos levem até, no limite, a perder a vida. Mas essa não é minha onda, e todas essas viagens, apesar do rótulo, são sempre lúcidas. Ou pelo menos acreditava nisso até aquele momento na estrada.

Fazer diariamente algo que te assuste um pouco pode ser uma receita de vida saudável. O segredo talvez seja a dosagem, embora não se possa esquecer que perigo é algo muito relativo. Duas pessoas igualmente sensatas podem ter disposições diferentes para a mesma situação de perigo. Um piloto profissional acelera tranquilamente a 300 km/h num carro de corrida, e sua análise de risco é diferente da de um gaiato. Mas em nosso caso ali, perdidos no Afeganistão, a análise de risco era diferente apenas porque as informações são diferentes. Operamos em cima do imaginário popular sobre certas realidades, e vamos de maneira “inconsequente” atrás da “verdade”. Mas essa é outra ideia relativa. E inconsequente, para nós quatro, é quem dá as costas para as mazelas do mundo que habita.

Nesse mundo aparece, às vezes, muita gente que não vive onde se vê quase todos os dias o risco real de se estar vivo, como em zonas de guerra; vive com o medo de viver como gostaria, e poderia. Porém, tecnicamente, diria o astrônomo, não é em nosso planeta onde o medo orbita em volta, e sim em Marte. Fobos é uma das duas luas daquele planeta. A outra é Deimos, que em grego quer dizer terror, assim como Fobos quer dizer medo. Dos gregos também vinham estilo e habilidade arquitetônicos exibidos nos Budas de Bamiyan, que sobreviveram a Genghis Khan, a séculos de islamismo, sol e chuva, mas não à boçalidade do Talibã, em 2003.

Foi pensando que não pouparam nem a história do próprio povo que nos ocorreu que seria o fim da linha se cruzássemos com o Talibã na estrada. Em Cabul, as instruções haviam sido claras: “sigam por esta estrada mais lenta, pois sabemos que os vilarejos em suas margens são seguros, e sabemos que o exército a controla, mas nas outras pode ser roleta-russa”, disse o dono do carro alugado. Felizmente, nosso motorista achou o caminho de volta para a estrada certa, e uma vez de volta voltamos a não pensar no medo, agora novamente gerenciado. A próxima parada seria, naturalmente, em mais um lugar cinematográfico onde se sente o valor de se estar vivo.

Por mais paradisíaco que possa ser Marte para algum ser, parece apropriado o nome de seus astros. Não importa o quão belo um mundo pode ser, mas medo e terror estarão sempre à volta.

#3MedoArteFotografiaModa

EPM: leve ansiedade e pânico

por Revista Amarello

Mulher nua,
casa, cavalo

por Ana Fay

O vento de passar suave em lentidão de coisa que leva pelo ar, abre janelas e entra e rodopia e se desfaz e dobra e desdobra-se e vai e venta e se sobra em curvas, esquinas, paredes e cortinas, a impregnar a casa de um tempo que já não é; com sua boca invisível de deus sopra para dentro de retratos mudos e escuros, estórias de mundos submersos e brisas de vida antiga.

No chão, o frasco que continha o melhor perfume dorme quebrado e seco, derrubado por vento outro que há muito passou: casa de hálito velho, que meus pés nus e frescos respiram das frestas de pequeninas pedras, grande mosaico de fendas profundas.

Levanto na poeira que voa, a memória da casa; a cada passo, cortes que se desenham em minha pele de pé rasgam traços de um passado que eu não reconheço, a inflamar-me as entranhas sob minha pele macia de neve, em seu trote impetuoso e violento de tempo. Abismo de segredos monumentais, dilato e estremeço, arremessada que sou à lembrança do que se me apropria me dando contornos de coisa explodida.

Eu, que vim de outro lugar.

Olho e o que vejo é minha estampa que jaz amputada no espelho; infinito, grandioso e fatigado guardião do silêncio, olhos dos que já morreram, túmulo velado de figuras cujas expressões eu vejo craqueladas em rostos sombrios pendurados na parede.

Em grito rápido e seco minha boca me cala, eu já não ecoo e adormeço separada de mim mesma.

O rosto
é rosto
sem gosto
sem resto
sem rosto
fosco e reto.

Reflexo.

Mas os espelhos não a retêm: seus dedos são compridos demais, sua pele fresca demais, o contorno dos seus seios delicados demais. Ela abre as portas e sou eu que atravesso os velhos espaços a ranger a madeira roída, carcomida pela ausência; eu a cavalgo por dentro e direciono o movimento de seu corpo de acordo com o que preciso recordar.

Ao fazer-me presente no corpo ainda quente, os pelos de ouro, macios e suaves se misturam aos meus pelos duros e selvagens; ao percorrer-lhe vasos, veias, ossos, ventre, sinto-me vivo e forte e bicho e homem. Vou destruir o meu retrato; os meus olhos pintados são apenas imagem seca: a minha expressão eu umedeço na memória dela, que roubei.

Pó, névoa e rastro.
Mal posso mover-me.
Ouço gritos.

Quem dorme?

Lembranças de
S. Clemente

por JPM

A campainha da porta da entrada talvez seja a única coisa que lembre o passado… chega a dar arrepio de tão igual que era seu timbre, nos tempos de minha avó! Época que o Palacete era, digamos, a porta da frente das casas de meu pai e do meu tio… todas davam pra alguma parte dos jardins. A nossa dava para a horta, e a do tio, para a garagem e a lavanderia. De qualquer maneira, a entrada/saída de todos os carros era pelo seu grande portão de ferro.

Sempre ouvi dizer que “é o dono quem faz a casa”. Não importa o tamanho, estilo, local, etc. e, nesse caso, todo o manejo e protocolo do palacete era ditado por minha avó, que ficou viúva antes de meu pai se casar e que comandava o batalhão de empregados, fornecedores e mantenedores com disciplina, porém com amizade.

Sua personalidade se espalhava pelo enorme casarão, em todos os vasos de flores, sempre vindos de seu jardim ou da casa de Petrópolis, da arrumação da casa em si, da mesa de jantar, dos menus que todas as manhãs ela ditava para a cozinheira chefe que aguardava sua chamada no hall do segundo andar, que dava para seu quarto de vestir e escritório. Depois fazia as contas com o mordomo e estava livre de seus afazeres “burocráticos”.

Outro detalhe que chamava atenção de todos de fora, menos de mim, pois nasci vendo aquilo como “fato feito”: ela abria os jardins da frente, que davam para a rua principal, para todas as crianças do bairro, onde haviam balanços e outros brinquedos. Achava um absurdo que crianças morassem em “apartamentos”.

Ah…como me lembro de detalhes…

Dos jardineiros colocando estrume, que vinha das nossas cocheiras do Jóquei Clube, para adubar os canteiros de flores e os gramados.

Da minha avó, pequena de estatura, mas sempre muito magra e elegante, agachada nos canteiros da horta, arrancando tiririca e nos dizendo da importância de se trabalhar com as mãos na terra.

Da estufa, com os vasos de antúrios, avencas e orquídeas para serem trocados semanalmente nas salas e na capela da casa, com aquele cheiro de húmus inesquecível.

O galinheiro onde, no Natal, os perus engordavam, a diversão era ver os funcionários darem cachaça para eles embebedarem e depois serem mortos com um corte certeiro no pescoço para serem colocados na água fervendo, depenados e levados em tabuleiros para a cozinha para os preparos da ceia.

Na enorme garagem ficava parada eternamente a Rolls Royce de meu avô, que nunca vi circular, mas que se tornou palco para inúmeras brincadeiras e fantasias.

Minha avó era muito religiosa, de modo que ia à missa todos os dias na Igreja do outro lado da rua, nos jesuítas de Sto. Inácio, colégio onde meu pai, tios e nós todos, netos, estudamos. Era só atravessar a rua, facilidade que dava margem a muitas “fugas” na hora do recreio, assim como matanças das aulas chatas como Latim e Canto!

Tinha entre seus hábitos rezar um rosário em seu oratório particular, atrás do quarto de dormir, onde haviam centenas de escapulários, imagens de santos, terços de todos os materiais, medalhas, água benta, etc. e uma coisa que me impressionava muito: uma “farpa da cruz de Cristo”, que meus avós receberam do Papa por alguma obra realizada para a Igreja, e que depois de sua morte doamos à PUC no Rio. Aliás, foi em seus salões que um grupo de intelectuais e novos cristãos, com o apoio financeiro dela, criaram a Pontifícia Universidade Católica do RJ.

Nos dias de seu aniversário, nas primeiras quintas-feiras do mês e em algumas ocasiões especiais, às 8h tinha missa na capela do segundo andar, aí sim com a presença dos filhos, netos e funcionários, depois seguido de um lauto café da manhã.

Poderia ter sido uma beata chata, mas não! Era ativa em todos os sentidos. Sabia temperar sua fé com o dia a dia do mundo em sua volta, principalmente sua família! E fazia tudo para agradá–los.

Apesar de sua vida social se restringir muito após a viuvez, e mais ainda depois da morte de sua única filha, a mais velha e adorada por todos. Foi um câncer fulminante!

Assim mesmo era de lei: todos os domingos, às 20h, reunia para jantar filhos, netos (depois dos 11 anos) e seus irmãos, com suas famílias, na enorme sala de jantar, numa longa mesa, onde ela sentava na cabeceira da esquerda, e seu irmão solteirão, meu tio avô, que foi morar com ela depois da morte do meu avô num acidente aéreo, na da direita.

Ai de quem faltasse sem uma boa razão! Havia sempre presente alguma autoridade do clero, literatura ou da política, quando o assunto invariavelmente era se o Brasil viraria comunista e nós todos iríamos para o “paredon a la Cuba“.

Às vezes algum artista protegido/ afilhado, após o jantar, tocava suas músicas preferidas no piano do salão ao lado. Ela, abanando seu inseparável leque, olhava sorrindo para o além.

Os jantares de domingo e aniversários de família eram complementados com os chás de toda quinta-feira, quando ela recebia as amigas. Não havia convites, já era um costume: aquele bando de senhoras de cabelos grisalhos, roxo ou branco, que ela apelidava de “meninas” e que ao longo do tempo foram diminuindo pela evolução natural da raça. Mas era o dia que eu mais gostava. Mal chegava em casa do colégio, largava a pasta e corria para a cozinha do casarão para devorar as sobras dos doces e sanduíches.

Quanto a seus hábitos pessoais, ela tinha enorme apego aos netos, a quem reservava todas as manhãs, e a cerimônia de sua preparação era um teatro, sempre igual, mas fascinante para nós, crianças. Ela como protagonista, enquanto a camareira escovava os longos cabelos que depois iam se transformar num coque, presos por um grampo de tartaruga, contava histórias e passava água de colônia, pó de arroz e depois fazia em cada face uma bola de rouge, espalhando no rosto, dizendo que tinha ido à praia. Aquilo para mim era mágica!

Depois ouvíamos discos, dançávamos com ela, brincávamos, tudo neste quarto de vestir onde os espelhos multiplicavam todos nós, fazendo ser uma festa.

Depois do despacho com o mordomo e a cozinheira, descia no elevador e ia esperar o carro na porta da frente (essa mesma da campainha). Independente do tempo, levava um guarda-chuva que ficava batendo no mármore do piso, impaciente com a demora do motorista que sempre tinha uma dor de barriga na hora de sair.

Era uma visita a um convento de freiras, uma obra social ou à Copacabana para um passeio pela praia e depois nas mesmas lojas: Sloper, Bicho da Seda, Pernambucanas, onde comprava muitos cortes de tecidos para enviar aos necessitados, ou então, para mim a melhor: uma ida à confeitaria COLOMBO no Centro. Na época das festas eram centenas de bolos, panetones, ovos de páscoa e outras guloseimas que seriam enviadas às obras que ela ajudava. Ficávamos na sala do gerente, que mandava me servir um bom lanche para eu sossegar e deixar ela fazer os cartões com sua caneta PARKER preta e ouro, com uma letra firme e elegante.

Na Páscoa, depois da missa e do café da manhã, a caça aos ovos no imenso jardim; em junho a Festa de S. João, em que um tio se encarregava dos fogos. A fogueira era enorme, assava milho, batata doce, pipoca, e nós, netos, fazíamos as bandeirinhas de papel de seda – metros e metros – era a nossa contribuição. Ela decorava tudo com lanternas japonesas embaixo das mangueiras, uma excitação ficar acordado “até tarde”. Em outubro, no Dia das Crianças, armava um circo no gramado e chamava o Fred e o Carequinha, a dupla mais famosa de palhaços daqueles tempos. Era uma alegria! No Natal fazíamos “presépio vivo” e o amigo oculto dos “mais velhos”.

Realmente era um feudo, no meio do trânsito da cidade que cada vez mais crescia, onde não havia lugar para esnobismos, tudo era normal e incrivelmente envolto de carinho e amor, afastando assim qualquer pretensão de show off.

#2NuCulturaEducação

Manifesto

por Dea Biagi

de Lucas Simões

O REI ESTÁ NU!

Uma jovem italiana veio para o Brasil em 1938, teve filhos e netos brasileiros. Gosta de conversar, de dar sua opinião, de questionar, de protestar contra o que considera errado. Sobretudo tem uma visão lúcida sobre a importância da educação para o desenvolvimento de um país.

CORPO SÃO, MENTE SÃ

A educação começa no ventre materno. Mens sana in corpore sano é o título do livro que Mussolini editava durante seu mandato na Itália. Precisamos trazer ao mundo crianças sadias!

O corpo precisa ser saudável para que a mente em formação se desenvolva, e as sinapses recebam e armazenem as informações externas para sua escolada inteligência, direito à liberdade, à prosperidade, à iniciativa privada, à educação independente, à livre expressão do pensamento, à democracia.
As crianças eram o centro da atenção na Itália de Mussolini.

Criança tem direito à educação e somos nós que devemos garantir este direito a elas. Com leis que o garantam. Somos os únicos responsáveis por tudo o que está acontecendo no mundo, porque conscientes, mas incompetentes. Incompetentes são os que fazem as leis, porque eleitos por uma maioria. Não são dadas as oportunidades da competência como a saúde e a escola, o que ajuda a formar um círculo vicioso do qual hoje é difícil de sair. Incompetentes por não se poder acreditar que se possa, propositalmente, impedir a sociedade de galgar os degraus da educação.

É preciso criar condições para a igualdade de oportunidades, a educação eficaz, a valorização dos indivíduos pelo que eles acrescentam de positivo à sociedade ao longo de sua vida. Premiar a iniciativa e o caminho para o progresso. Aos incapazes, aos doentes, aos que comprovadamente não podem produzir deve curvar-se excepcionalmente a nação e prover-lhes a subsistência digna.

Tudo o que a criança aprende antes de fechar a sinapse, ela guarda para o resto da vida. Alguns especialistas dizem que isso ocorre entre os quatro e os seis anos de vida, o patriotismo tem que ser cultivado, o respeito à bandeira e o conhecimento do Hino Nacional porque é fundamental e decisivo; o fulcro em torno do qual gravitam todas as forças telúricas que geram as forças necessárias para formar um povo que realmente seja a grandeza do país, um país mesmo rico nunca será um país grande se não estiver são, educado e independente: capaz de orientar a própria vida.

A educação é uma responsabilidade federal obrigatória, e não municipal!

Os currículos escolares deveriam ser iguais para todos os Estados, elaborados por pessoas do saber de competência moral e ética.

A roupa nova do rei é uma fábula de Hans Christien Andersen que conta a história de um vaidoso rei que se deixou enganar por dois falsos tecelões que prometeram a ele um belo traje, confeccionado com um mágico tecido capaz de ser visto somente por pessoas de superior inteligência.

A farsa é descoberta e professada por uma criança que estava assistindo ao desfile e não se conteve ao avistar o rei despido de qualquer vestimenta ou manto suntuoso, mas, sim, exposto como veio ao mundo. Então ela gritou, apenas porque sentiu pena e era sincera: “Coitado! O rei está completamente nu!”. E assim o povo a acompanhou porque também estava vendo o que a criança denunciava.

A criança não teve medo de falar o que via, mesmo que todos estivessem dizendo o contrário. Mesmo que aquilo o que ela sabia ver não fosse do agrado de todos. Mesmo que existissem outros pontos de vista naquele momento. Apenas falou porque, apesar da pouca idade, sabia enxergar com seus próprios olhos. O que alguém diz é sempre um ponto-de-vista.

Há outra história. De uma não tão menina. Mas é com os olhos da menina que ela foi e que guardou na memória lembranças de uma Itália longínqua que ela vem e fala. Sobre o que viu e o que viveu. O que pode sonhar e aprender. O que ela diz pode não ser a verdade de todos, mas é um dos lados da verdade.

Onde muitos veem um lado sombrio da História, a menina viu avanço, viu crescerem oportunidades e viu o desenvolvimento. Isso ela viu. Em tempos da valorização da democracia, dos princípios da liberdade de expressão, nos orgulhamos de apresentar um ponto de vista da História, acreditando que as transformações e as boas ideias surgem, muitas vezes, de uma reflexão sobre algo em que não se tinha pensado antes. Por desconhecimento ou por preconceito.

#2NuCulturaSociedade

Naturismo e a busca pela vida simples

por Flavia Milioni

Entrevista com Carina Moreschi e Marcelo Alves Pacheco

Seja como for, a nudez é tema constante em nossas vidas. Falando dela ou não. Seja quando, secretamente, em nossa maior intimidade, analisamos cada pedaço do nosso corpo, ou ainda quando crianças passamos pela terrível experiência de sonhar que estamos pelados na frente de todos os nossos amiguinhos da escola. Somos nus. Nascemos nus e morremos vestidos. Quanta ironia. Ou seria hipocrisia? Afinal, o que queremos esconder?

Procuramos ativistas do Naturismo e tiramos algumas dúvidas sobre como seria viver apenas como já somos.

Como vocês conheceram o movimento naturista?
O primeiro a conhecer o movimento naturista foi o Marcelo Pacheco, em 1996. Na ocasião, ele trabalhava nas proximidades da recém lançada, na época, Vila Naturista Colina do Sol, em Taquara/RS. Marcelo foi convidado por um amigo a ir até a Colina. A partir daquele dia, se apaixonou, e passou a ir na área com frequência, até se mudar para lá. Eu, Carina Moreschi, conheci o naturismo 2 anos mais tarde, em 1998, através de Marcelo, que trabalhava na extinta Revista Naturis (especializada em naturismo). Começamos a namorar e, a partir desta data, também fui morar na Colina e trabalhar no periódico.

Atualmente, não moramos mais na Vila Naturista. Porém, estamos intimamente ligados ao naturismo porque escolhemos este nicho de mercado para trabalhar. Somos proprietários da Brasil Naturista, empresa especializada em comunicação. Possuímos um portal na internet, o www.brasilnaturista.com, uma revista impressa, a única da América Latina, e uma loja virtual na qual os adeptos compram produtos específicos sobre a prática. Nosso trabalho é viajar e reportar tudo o que acontece nas áreas, praias e associações de naturismo mundo afora.

O que os motivou a aderir à prática naturista?
Naturismo vai muito além do simples fato de tirar a roupa. Segundo a INF-FNI (Federação Internacional de Naturismo), “Naturismo é um modo de vida em harmonia com a natureza, caracterizado pela prática da nudez social, que tem por intenção encorajar o auto respeito, o respeito pelo próximo e o cuidado com o meio ambiente”. Esta definição exprime tudo e já é 90% dos motivos para qualquer um aderir.

É muito difícil alguém não se apaixonar pelo naturismo. Não conhecemos ninguém que tenha vivenciado e não tenha gostado. Respeitar o próximo, nos auto respeitar e cuidar da terra em que vivemos é a solução para os grandes males do mundo e para a existência dele daqui para frente. Sem contar que a nudez, aliada aos três aspectos anteriormente citados, nos despe de grandes tabus e preconceitos que possuímos por “ignorância”. E o bem-estar e saúde proporcionado por deixar o corpo inteiro respirar, então? Nem se fala…

Quais as principais características que diferenciam os naturistas dos nudistas?
Não existe diferença alguma. São sinônimos. Existe uma parcela de praticantes que permanece diferenciando os conceitos e acredita que nudismo é apenas o ato de tirar a roupa e naturismo uma filosofia de vida. Mas, segundo nossa entidade maior, a INF (Federação Internacional de Naturismo), ambas exprimem a mesma coisa.

Que tipo de mudança se constata em relação a valores e conceitos após tornar-se um naturista? O despir-se de roupas influencia no despir-se de preconceitos?
Com certeza! Existem tabus e preconceitos cultivados desde a infância que serão possivelmente alterados a partir da prática naturista. Um dos mais comuns e importantes é achar que a genitália é algo feio, proibido, e que não merece ser tratada igualmente como qualquer outra parte. Desconhecemos nosso próprio corpo por causa destas “bobagens”. As crianças são poupadas deste assunto. Crescem com inúmeras dúvidas que só serão solucionadas na prática. Outro aspecto totalmente equivocado é aliar sempre nudez a sexo. São coisas distintas! Vale destacar, também, a aceitação de nosso corpo, independente de suas imperfeições. Gordinhos, deficientes físicos, pessoas com cicatrizes e etc. também são pessoas bonitas. E o naturismo recebe todas elas de braços abertos. A mídia cria seres irreais!

Haveria uma dualidade ou uma tensão entre as opções da vida privada e as normas do convívio social? Há uma tensão entre espontaneidade e formalidade no cotidiano de vocês?
A prática naturista em nosso convívio é tratada de uma forma muito natural. Não escondemos de ninguém que somos naturistas e trabalhamos com isto. Como este assunto vem sendo abordado com frequência pelos veículos de comunicação, a população em geral já tem uma boa ideia do naturismo e entende a escolha por tal.

Não há tensão alguma entre espontaneidade e formalidade no cotidiano. Só ficamos nus onde o local possibilita isto: nas áreas destinadas à prática e em nossa casa.

O uso de vestimentas deixa as pessoas mais formais e, portanto, menos espontâneas?
Não usaria a palavra formalidade. Podemos ser formais também sem roupa. Usaria as palavras mais livres, confortáveis, mais inteiros… Espontaneidade também independe da vestimenta. Diríamos que nus somos mais nós, mais iguais um do outro, mais abertos e receptivos, menos preconceituosos…

Qual a rotina do naturista? Em que momento a prática atrapalha o cotidiano? Ou em que medida o cotidiano se adapta à prática?
A rotina do naturista é igual a qualquer outra pessoa. Fazemos tudo o que uma “sociedade” faz, só que sem roupas. A prática não atrapalha em nada o cotidiano. E sim, facilita! Podemos citar aqui, por exemplo, a redução de roupas sujas, malas de viagem mais reduzidas, caso nosso destino for uma área naturista. Sem contar na redução significativa dos gastos com a compra de roupas. Só este último item já valeria muito a pena!

Com certeza, com o passar do tempo, é o nosso cotidiano que vai se adaptando ao naturismo na medida que percebemos que fazemos coisas simplesmente porque a sociedade nos impôs, não pela praticidade, normalidade e lógica. Deve existir de nossa parte um questionamento de o porquê as coisas são assim e, se existir necessidade de alterá-las, assim a faremos.

Curiosidade: e no inverno?
Acho que esta colocação a seguir responde bem o questionamento: roupas para os naturistas são simplesmente agasalhos e usamos elas com esta finalidade. Biquínis, sungas e outras roupas são dispensáveis. Se estamos com calor, tiramos a vestimenta, se estamos com frio, as colocamos.

A maioria das áreas naturistas possuem locais para o naturismo ser praticado no inverno, também, tais como: saunas, piscinas térmicas, ofurôs, cabanas equipadas com lareiras e fogões…

Curiosidade indiscreta: se o estar nu é o convencional, como tornar a nudez sensual e erótica?
A nudez, por si só, não é sensual. Está tudo à mostra! O que é sensual é o desconhecido, é saber o que está por trás de uma roupa íntima, um biquíni, uma transparência…

O naturismo propicia um conhecimento maior de nosso corpo e das pessoas que nos rodeiam. Por isso, usamos este conhecimento nas horas certas e a nosso favor. Um olhar, um gesto, uma palavra dita é muito mais intenso do que uma eventual insinuação. E na intimidade, tudo vale! Inclusive as vestimentas, para quem necessita disto para dar uma apimentada no relacionamento.

Há alguma espécie de imaginário naturista? Ou seja, há símbolos, figuras, personagens ou temas que circulem no imaginário comum de um “grupo naturista”?
Que circulem no imaginário, acredito que não. Mas há personagens e temas reais que fazem parte do nosso mundo. Como a pioneira Luz Del Fuego, que, em 1950, já praticava naturismo no Rio de Janeiro. Temas como terapias alternativas, alimentação saudável, preservação do meio ambiente e relativos à nudez e comportamento são sempre discutidos.

O naturismo brasileiro está num bom nível de organização. Temos uma federação, a FBrN, e 30 associações e áreas filiadas à ela. Com frequência, a entidade realiza eventos nos quais aproveita-se o momento para debatermos assuntos de nosso interesse e fazermos com o que o naturismo cresça e se organize cada vez mais, atraindo mais adeptos.

Estar nu faz você se sentir mais próximo de alguma coisa? O quê?
Sim, de mim mesmo! E claro, da natureza!

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Nu ao Quadrado

por Yasmine Sterea

Fotos de Markos Fortes e ilustrações de Cecília Tanure
#2NuCulturaSociedade

Pensar a nudez e o nu

por Felipe de Campos d’Ultra Vaz

Muito recentemente, num workshop de Butoh dirigido pelo grande artista japonês Tadashi Endo, tive a impressão de ver a alma dançando. Fui a esse workshop por causa do filme Hanami – Cerejeiras em Flor, em que pela estranha dança oriental, os personagens se comunicavam com os mortos.

Foram movimentos leves e mínimos os que nos instruíram a fazer, na lentidão característica do que não se automatiza. Saí do workshop em êxtase. Experimentei o corpo como me agrada pensá-lo: uma capa para a alma.

No dia seguinte, uma experiência cotidiana: a caminho da padaria, numa banca de jornal do bairro, observo que a maioria das participantes do insólito Big Brother Brasil exibe seus corpos em diferentes revistas.

O CORPO E A ALMA: A NUDEZ DO NU

Se emprestarmos uma alegoria de um belíssimo filósofo do século passado, diríamos que o corpo inteiro é um rosto. Uma delicadeza desconcertada, o humano no Homem se apresenta como a vulnerabilidade irreproduzível de uma face. Naquilo que ele tem de singular, para Emmanuel Levinas, o rosto é fragilidade. Em corpo inteiro, para mim, esse rosto que somos é a alma que dança o corpo no Butoh.

Pensar a nudez então como um desabrigar daquilo que está desabrigado. O nu como uma dimensão ontológica.

ÚLTIMA CENA

Lembro-me de quando eu era criança e me deparei com uma revista pornográfica. Senti um fascínio incontrolável e uma náusea muito particular. O fascínio era a excitação do medo, a náusea era o efeito do choque. Voltei a essa revista inúmeras vezes, voltei ao medo e a náusea até aprender a me descarregar deles de forma efetiva. Trauma, repetição e gozo. A psicanálise nos ensina que a infância nunca acaba ainda que nunca mais sejamos crianças.

SEDUÇÃO E ABANDONO

Um corpo que se despe diante de olhares que não vêem o nu em sua nudez. Um corpo que despido, inclusive de si, brutaliza, com sua nudez, o olhar.

Mulheres encouraçadas e um corpo sem psique.

O feminino que se vê diante da sexualidade sem ternura, de uma cultura que tem pelo corpo um fetiche e o transforma num objeto sem imperfeições, ou seja, sem sofrimento.

Narcisismo em consumo: corpos que valem mais quanto maior a perda de inocência.

A alma se esconde ao assalto e a personalidade se divide em partes incomunicáveis. Os corpos gladiadores, produzidos por horas de academia, hipnotizam pela ausência de rosto. Mas que onanismo é esse que praticamos em massa, e o que são esses corpos imaginários a quem podemos fazer qualquer coisa?

A nudez como violência é o segredo do Butoh.


Felipe de Campos d’Utra Vaz é psicólogo.

#2NuCulturaSociedade

Fantasia

por Antonio Biagi

O sonho e a fantasia revelam projeções. São extensões da realidade e das personalidades como a conhecemos, projetos em que se joga com o que há de melhor em cada um e também com aquilo que não existe e é desejado. Um sonho traz o que ainda está por ser feito e é, muitas vezes, impossível. Neste sentido, ao revelar um sonho, registra-se a responsabilidade em realizar-se um projeto de vida e assume-se o grande risco da frustração. Partindo do conceito NUDEZ, Amarello vai conhecer o sonho e a intimidade de alguns conhecidos.

Striptease a seguir:

SARAH Miller

Qual era seu sonho quando criança?
Meu sonho quando garota era me tornar uma estrela da Broadway (sem brincadeira). Eu ficava intrigada pelo palco e estava convencida que seria a próxima Julie Andrews. De fato, eu me lembro de passar, quando criança, a maior parte das férias de verão correndo pelo campo cantando The sound of music (confesso que ainda posso ser encontrada fazendo isto). Sentimental, eu sei, mas eu estava desesperada para me tornar uma artista. Eu venderia ingressos para a minha família e representaria peças que eu havia escrito na sala de estar, onde eles ficavam presos por horas a fio e eu atuava e cantava a plenos pulmões – tortura pra eles mas pura alegria para mim.

Então, até agora, em que ponto você está de realizar este sonho? Você mudou de ideia?
Eu desisti do meu sonho de ser artista em outubro de 2008. Estava tentando atuar nesta época, mas não conseguia papéis em peças de teatro tão frequentemente quanto esperava – havia feito algumas produções notáveis de Shakespeare pelos Estados Unidos, mas nada que lançasse a minha carreira. Eu acordei um dia e me lembro nitidamente de pensar “O que estou fazendo com a minha vida? Eu quero ser aquela pessoa que se dá conta que esta vida não é como a que havia sonhado quando era criança? Que eu havia desistido de tanta coisa essencial e que valoriza (família, filhos, dinheiro, etc) por uma carreira que não estava indo a lugar algum?” E então eu mudei de ideia, simples assim. Ou o tempo e a falta de sucesso mudaram minha ideia. Eu não estava querendo sofrer pela minha arte. Nas semanas que seguiram esta decisão, eu fiquei triste pelo fato de que este sonho que preencheu minha infância, que estava tão presente e parecia tão possível, havia se perdido. Mas eu estava confortada por aquilo que estava por vir, por uma nova vida que me proporcionaria os essenciais que procuro há tanto tempo.

Qual o seu sonho, hoje, para o futuro?
Eu amo teatro, música, arte e dança mais do que tudo, mas eu sei agora que meu lugar nesta arena não é no palco mas sim ajudando a promover o sucesso das artes e de seu propósito no futuro. Meu sonho é estar envolvida neste meio mas no sentido administrativo – levantar dinheiro para o seu crescimento e promover a sua importância. Esta posição é tão vital neste momento em que as artes enfrentam cortes significativos e organizações estão sendo forçadas a fechar, sinto que, de certa maneira, minha decisão de terminar minha carreira como artista foi uma bênção para que eu mantenha o sonho vivo para outros.

Sarah Miller, responsável por eventos do Convent of Sacred Hearts, em Nova Iorque, planeja se mudar para São Francisco para trabalhar com gestão na área cultural, no final do ano.

DOUGLAS Gilman

Qual era seu sonho quando criança?
Eu queria explorar o Espaço.

Então, até agora, em que ponto você está de realizar este sonho? Você mudou de ideia?
Houve uma fase inicial de grande progresso. Eu decorei a parede do meu quarto com um kit oficial do star fixglow in the dark”, acessório obrigatório para qualquer criança americana e aluguei o menosprezado, porém clássico filme, Mac and Me (1988). Ainda mais promissor, fui no Campo de treinamento espacial da Nasa, onde competi e ganhei o prêmio de melhor simulação no Espaço. Até me pediram pra dar nome para a nave que ia para Marte durante uma concurso de redação no começo dos anos 1990. Desde então, o progresso foi para um patamar sensivelmente mais tranquilo. Com quinze anos, como parte de uma tarefa para a escola, marquei uma entrevista com John Glenn, o primeiro americano a orbitar a Terra.

Quando cheguei no seu escritório, me entregaram uma carta previamente escrita e desculpas pois o senador não poderia me encontrar – o campeão do simulador de voo – pessoalmente. Para adicionar insulto ao machucado, o nosso governo retirou o investimento no programa espacial e eu às vezes brigo para sair da cama, imagine então pra chegar em Marte. Lady Gaga está agora indiscutivelmente mais perto de passear no colisor de Hadrons.

Qual o seu sonho, hoje, para o futuro?
Meu sonho hoje é abraçar a deliciosa ambiguidade e interdependência de nossas vidas-sonhos. Gilda Radner, comediante e atriz americana, uma vez mencionou: “Eu queria um final perfeito.” Agora eu aprendi, da maneira difícil, que alguns poemas não rimam, e algumas histórias não têm começo, meio e fins claros. A vida é sobre conhecer, ter que mudar, aproveitar o momento.

Douglas Gilman trabalha com pesquisas macroeconômicas e estratégia corporativa. Nunca pensou pequeno e vai, com certeza, realizar todos os seus sonhos.

ALEX Amorim

Qual era seu sonho quando criança?
Quando criança eu só pensava em voar, nada de avião ou de qualquer outro aparato de voo, queria simplesmente correr com toda minha velocidade, ir me esforçando para pular cada vez mais alto até sentir o corpo mais leve, dando braçadas para me impulsionar para cima e por fim voar.

Então, até agora, em que ponto você está de realizar este sonho? Você mudou de ideia?
Aos quatro anos, vestindo minha roupa de Super- Homem, fui impedido de tentar o que em minha cabeça seria o meu primeiro voo de verdade, quando minha mãe me pegou tentando passar entre as grades da janela de meu quarto no 12º andar. No entanto, o sonho de voar não morreu aí e talvez seja um dos únicos sonhos recorrentes que tenho até hoje aos 31 anos. O sonho apenas tem um significado diferente e confesso que corro atrás desse sonho o tempo inteiro. Hoje o voar é ser livre para mudar, é conhecer coisas novas para me conhecer melhor, é ver o diferente para entender a minha própria estranheza e é não carregar o peso que o mundo às vezes coloca em cada um de nós.

Qual o seu sonho, hoje, para o futuro?
Continuo sonhado em voar, só que hoje percebo a importância de compartilhar o sonho, então digo que meu sonho hoje é poder compartilhar, ao longo de minha vida, o meu sonho de voar com as pessoas que amo, e quem sabe fazê-las acreditar que elas também podem voar.

Alex Amorim, nascido e criado em Salvador (BA), é estudante de MBA na Universidade de Columbia. Alex ainda não sabe se vem trabalhar em São Paulo ou se fica em Nova Iorque no segundo semestre de 2010.

ROBERTA Ferraz

Qual era seu sonho quando criança?
Inúmeros. Imensos. Fazendo um breviário do que a memória alcança, acho que chego aqui: boneca de pano, paquita da Xuxa (assim, obrigada possivelmente a tingir os cabelos), amazona com os dois seios, professorinha de bonecas que não falam (já precoce o fantasma da autoridade), depois, com uma certa idade, advogada de acusação (era como eu dizia, ou seja, no sonho mesmo, um idealismo ainda frouxo mas válido – promotora pública em defesa dos desajustados), em seguida disso (abismo lindo): bailarina do Tchan (que hoje não é mais segredo para ninguém). Acho que, de criança, criança mesmo, foram estes os delírios. Hoje acho todos eles bonitos, e vejo que, de certa maneira, misteriosa e metafórica, todos eles aconteceram. Apenas os meus cabelos continuaram negros.

Então, até agora, em que ponto você está de realizar este sonho? Você mudou de ideia?
Então, seguindo à risca o enunciado: o ponto continua rodopiando sobre si, espargindo as sobras das experiências e arrumando novos embates-embustes para se lançar. Mudo muito de ideias, mas ainda quero mudar bem mais. O sonho agora é mais palpável, mas nem por isso menos imaginativo. Porque escrever é também bem isso: um jeito que se arranja para poder ser qualquer coisa, poder mudar sem ter ranço de promessas, a beleza da incoerência, uma liberdade que talvez só a criação sustente, porque aí a questão das responsabilidades está em outro plano, em outra afetação. Os sonhos viram páginas, outras vezes viram corpo, outras vezes viram silêncios. E o sonho do sonho continua a ser aquele que disse: errar mais, errar como errância, ver mais analogias, mais correspondências, novas conexões entre as coisas. Ouvir e olhar a linguagem dos sonhos, a maneira como tudo pode ser posto de cabeça para baixo e reordenado numa nova ordem sempre frágil e aberta.

Qual o seu sonho, hoje, para o futuro?
O sonho de hoje foi o seguinte (como acabei de me levantar, ainda me lembro): ia haver um casamento qualquer, de uma pessoa talvez conhecida da família. E, por um acaso fantasmático, descobri que o Saramago era parente de tal pessoa e que ele viria. Assim, comecei a montar um esquema de disfarces para que pessoas amigas, gente amada com quem partilho o cotidiano da escrita, pudessem entrar ‘sorrateiras’, na festa. Pelo que me lembro, só consegui levar a Lilian J. Mas, ó desbunde, quando chegamos na festa, não era o Saramago, era o Herberto Helder! Lembro da barba branca dele e de nossa gagueira. Acordei totalmente luminosa. E enquanto durar o futuro de um dia, esse dia de hoje, o meu sonho é que o sonho desça, preencha meu corpo, dando-me esse estranho sentido de contato com as coisas mais inesperadas.

Roberta Ferraz é escritora apaixonada por astrologia, literatura portuguesa, vinho tinto e uma boa conversa.

RONY Rodrigues

Qual era seu sonho quando criança?
Os aviões passavam bem perto da casa e a casa toda tremia, eu corria para a janela e olhava para cima e pensava um dia vou estar lá em cima e vou ver minha casa aqui embaixo. Sempre tive o céu como inspiração.

Então, até agora, em que ponto você está de realizar este sonho? Você mudou de ideia?
Realizei parte do meu sonho aos 16 anos, quando andei de avião pela primeira vez, e aos 18 anos quando morei fora por um ano. A segunda parte realizo até hoje. Trabalho numa empresa de pesquisa de tendências de consumo, a Box 1824, e por isso acabo viajando no mínimo 150.000 milhas por ano em busca de novos movimentos culturais. Acabei conhecendo mais de 30 países como Islândia, Camboja, Nova Zelândia, Japão e Polinésia Francesa.

Qual o seu sonho, hoje, para o futuro?
Conhecer novos lugares e morar fora sempre serão meus sonhos. Mas acrescento novos: conhecer pessoas inspiradoras e conseguir manter a paz do meu presente sempre.

Rony Rodrigues, fundador da agência de tendências BOX 1824, é um dos magos da nova geração da publicidade no Brasil.

#2NuArteFotografia

Dreamers

por Felipe Morozini

#2NuCulturaLiteratura

Pagu

por Roberta Ferraz

Colagens de Lucas Simões

Uma ideia relampejou assim: NU/PAGU. O curso d’água dessa edição da Amarello dedicou-se ao tema do nu, às diversas formas de nudez, da mais cartográfica e muda às outras todas, enfeitadas, antigas, fabulares. O desnudar-se do poema jamais se liberta de suas máscaras inoculadas: as coisas estão manchadas de linguagem, embelezadas nelas. Mas de antemão, o NU irmanou-se com PAGU, o que não significa nenhum tipo de compromisso, veja bem.

Pagu, porque esse ano comemora-se 100 anos de seu nascimento, e ela, a “musa trágica da antropofagia”, instalou-se nas nossas rodas alcoólicas e entrou no carnaval da página, que nem sempre é alegre, veja bem. Pagu foi uma mulher excepcional, e pra quem não a conhece, fica a dica de leitura de sua autobiografia errática, Paixão Pagu. Ali ela conta em algumas cartas (ao seu então companheiro no momento, Geraldo Ferraz) todo o fio extremamente coeso de sua vida, que passou pela paixão das experiências numa entrega que beira a exaustão (a nossa): ela bem novinha circulou com os modernistas de 22, como todos sabem, e na efusão de inovar os usos do corpo e da consciência foi se aproximando do comunismo, ao qual se dedicou até chegar ao mais desolado desencanto. Escreveu muito, crônicas, narrativas, poesia. Assinava Pat, Pagu, Gim, Solange Sohl, e outras. Conheceu o Borges, o Prestes, o Freud e, como sempre ressalta a poeta (presente aqui na micro-antologia) Ana Rüsche, a Pagu “andou de bicicleta com o último imperador da China”. A trajetória da nudez, então, não só é eixo de uma vida experimentada, como essa da Pagu, como é a fagulha mais brilhante do que dela nos fica.

Assim, o NU/PAGU se compôs e os poetas/escritores aqui convidados enviaram suas visadas largas, abertas, delicadas sobre esse norte dilacerado. Talvez uma cena arquetípica para dizer a violência da queda em si, em Gabriel Kolyniak. Talvez os andaimes trôpegos do jogo lascivo e deliciosamente carnavalesco da enunciação dos próprios e diversos nomes, em Érica Zíngano. Talvez as lamentações íngremes das escolhas, de um feminino oscilante entre o corpo doado ao sonho social e o corpo maternal, em Roberta Ferraz. Talvez o dilema íntimo-dramático ter um corpo com órgãos geradores em disfunção solitária, em Ana Rüsche.

Talvez formas novas e ainda antigas de tirar o vestido, as calças, a face perante a palavra e entregar esse corpo possível, que é o poema, a quem nele quiser pôr os olhos, o desejo, o ouvido. Ou o que bem entender.

gabriel kolyniak

I
Saltavam pela cerca dois carneiros,
foi da vara do destino que veio o fino
ferimento que, escorrendo, fez, dos dois,
um mancar apenas, dezenas de carneiros

fariam perceber as fraquezas do pastor;
reuniria melhor os novilhos o caçador,
que apearia a tempo de laçar
uma quadra de mugidos, gemidos, balidos,

ociosas refeições do rebanho que pernoita
num pasto roubado ao vizinho distraído,
eis porque é temido o perigoso caçador
remoente, outrora sido – nascido pastor,

na ponta do laço o terror disseminava,
fábula de nação empesteada contava um nauta
que passava em outra margem, a contemplar
a ausência de febre na demência do pastor.

II
Agrilhoado ao ferroal. Arrastaria serras
e roldanas. Amarradas à canela.
Engatadas em argolas, árvore
alta sobre o túnel de água densa.

Caiu nesse vão a atriz de obscura
índole, tateia agora o buraco inquieto
rumo à duplicidade, alardeia um ferimento
que babasse no ferro que nasce puro.

Gabriel Kolyniak, escritor, é natural de Barueri (SP). Além de poemas esparsos fotocopiados e dos publicados nas revistas Polichinello (Belém, 2005, 2006) e Zunái (www.revistazunai.com), publicou o livro de poemas Partilha (São Paulo, PAC; Nankin, 2008).

érica zíngano

situações carnavalescas

I
sábado
de aleluia
desço a rua
de óculos
escuros
acompanhando
o movimento
do bloco
– disfarce –
entre duas
ou mais
possibilidades:
– será que Cristina
volta?, penso
ou será que
fica por lá?
ainda mais
indecisa
entre tantas
outras
máscaras
coloridas
me confundem
Irina,
Sabrina,
Catarina,
até mesmo
Cristina
a quem eu
não saberia
informar
onde eu
guardei meu
próprio nome,
minha história
– passional –
à sete chaves.

II
domingo
depois
da sexta-feira
da paixão
desço a rua
– sem perder
de vista –
a agitação
do bloco
em procissão:
na praça XV
fantasiada de
Gabriela
hoje eu sou
Gabriela,
Gabriela
iêêê
(repete
a multidão)
sempre
Gabriela,
vou ser
sempre
assim
– Gabriela –
sem a
menor
distância
entre
mim
e ela:
eu e ela,
apenas
Gabriela.

III
antes
mas já
na quarta-feira
de cinzas
desço a rua
travestida
de púrpura
purpurina
– ao longe
escuto o
burburinho –
um zum zum
zum que
escorre
de batom
vermelho
e rosa no
cabelo
respondo
a quem me
pergunta
meu nome,
um desconhecido:
– meu nome?
um bibelô!
na vida pagã
eu pago
de Pagu.

Érica Zíngano, http://mileumanotas.wordpress.com/, gosta de observar as passagens no tempo.

roberta ferraz

pagu

I

disseram-me mole e fosca
como um remanso violentado

disseram-me lassa e moça
simples com lacinho nas calçadas

disseram-me a esmo
como se dizer-me
fosse um ato
em que eu sofresse
calmos sacrifícios
a qualquer verão

mas na cama não há estatuto
livro vermelho, cantiga
de sangue que vença o bicho
truculento e sem jeito
o mesmo bicho desclassificado
com vara no meio
que amei ludibriar

II

gim e fé, ruas, vasta madrugada
mão de um homem sem rosto ao meu relento

sem ventre, sem ventrílocos
desato a ser da caminhada

apascento com vísceras e calo
mais gim e outra ordem
vinda do subúrbio

depois desmancho, fico
com o pequeno lustre de uma pensão
sem filhos

dilato, arrumo as fezes dos discípulos
canto uma roda para os órfãos
e quase nunca estou em doçura

tenho um corpo mínimo para o que dou

vestimenta rude, armadura com pulmões
em charcos – todo um esforço sem tamanho
para resgatar dos lixos
a mântica liberta dos queixumes

III

ilesa e possuída
incinerei o que pudesse restar de mágoa
sobre toda constância duvidosa

IV

mulher de galardão a ovular
pechinchas numa tarde garoada
fêmea-tíbia, assassina, numa dolência
que pouco sabe ou titubeia quem a deseja

punhal nos olhos diluído
crista de um véu solar e anfíbio
manhãs de março, praça pública
mormaço, mulher em tempos
de debruo ilícito

a aglutinar a rua dentro desse abandono
transfigurado corpo ausente e ofício
ter ouvidos para o puído dos homens
e só oferecer a outra face
às imagens indefesas

Roberta Ferraz é paulista e escritora, publicou em 2003 o livro Desfiladeiro (Ed. Nativa) e em 2009 o livro lacrimatórios, enócoas (Ed. Oficina Raquel). Em 2010 foi selecionada pelo ProAC da Secretaria da Cultura para prêmio de publicação de livro, livro que elabora atualmente junto de Renata Huber e Erica Zíngano, chamado Fio, Fenda, Falésia.

ana rüsche

US Abdome Total

Desliza estrelas pela minha barriga gelada
e melequenta igual a de uma sapinha mirim,
ele mira as formas indizíveis na tela do outro lado
mão no mouse cheio de gel pelo abdômen da paciente
outra mão e olhos no quadro negro
pontilhado de constelações pulsantes, fórmulas matemáticas
e órgãos, canções de anjos dentro do umbigo e tantas outras coisas incríveis.
Não parecia se maravilhar.
Daí fiquei com vergonha da pergunta, engoli.
Homens com olhos apenas no escuro do céu
nunca sabem o sabor pesado do terror profundo da terra.

a cirurgia foi um after hours, mas estou acostumada a ir dormir tarde
acho que os médicos também, tão animados
fui sim até o centro cirúrgico bem acordada e fiquei acordada, sinto a hack entrando entrando…
ainda ao longe, bem corajosinha. uma conversa sobre qualquer coisa, luzes nos olhos
para que me sinta bem iluminada, bem disposta
de súbito lembro que não fiz depilação e isso me envergonha mortalmente
seria tudo filmado e colocado no youtube da faculdade de medicina, ririam de mim
mas tenho que explicar – foi de urgência a cirurgia, não houve tempo
não há tempo para nada, apenas para ficar ali, suspensa
e, afinal, não tenho namorado, foi uma urgência, sou sozinha

no início, me estacionaram com o carro-maca ao lado de um cara paciente também
podíamos até começar ali um romance,
lembro de ter desejado ao final “boa sorte, moça” e isso acabou já com tudo, que bobo
ele morria de medo, ia retirar uma pedra do rim e não se rendia a dormir
eu logo disse, ah, comigo também pensaram que era cálculo renal, pela dor,
mas depois bem viram que era uma laranja na barriga que eu tinha…
de súbito lembro que removeram o cara paciente com seu carro-maca e com seu medo
e fiquei pensando num poema do zukofsky, sobre uma laranja e o sol e a letra a
estava já chorando desesperada, por estar sozinha e confundindo os poemas, estar tão sozinha,
e a dor, bem isso é com as mulheres

#2NuViagem

Nudez de Atitude

por Andrea Simioni

Pare para pensar: o nu é muito mais do que uma condição física. O nu mais verdadeiro que se pode ver é a espontaneidade.

Alguém pode se apresentar totalmente nu: um caráter genuíno, a humildade, a simplicidade, a veracidade nas palavras, a sinceridade de opiniões e gestos e, principalmente, a transparência podem ser formas de nudez muito mais evidentes do que um ensaio de nu artístico.

Em um mundo globalizado, louco, capitalista e competitivo, difícil é encontrar quem se mostra verdadeiramente como é: com talentos e conhecimentos, mas também com limitações e medos.

Muito ouvimos falar da cultura oriental. Há muito tempo, nós, ocidentais, nos rendemos à gastronomia deles. Pois é de lá do Oriente, é lá do Camboja, de um pedaço do Globo cujo povo vive de maneira tão diferente da nossa, que trazemos a reflexão do nu para a Amarello.

NAVEGAR É PRECISO

Viajar nos ajuda a enxergar outras referências e, assim, compreender nossa própria forma de viver.

Em uma jornada, muitas janelas se abrem para o viajante. Em uma cultura diferente, uma das principais é a possibilidade de se tentar pensar com a cabeça dos habitantes locais.

No Camboja foi assim. A simpatia, a humildade e a transparência do povo cambojano tornaram-se um convite para a tentativa de compreender a natureza deste carisma nu.

Nós, brasileiros, somos conhecidos em todo o mundo como um povo de notável simpatia. Aqui o visitante chega e repara logo na nossa vocação para a comunicabilidade e a alegria. No Camboja, uma cultura absolutamente diversa da do Brasil, não. Ou melhor, não e sim: ao chegar, somos recebidos por um povo que esbanja uma simpatia que é tão verdadeira quanto diferente da nossa. A primeira grande chave é a ingenuidade dos cambojanos, totalmente antagônica à conhecida malandragem brasileira.

Nossa brisa de malícia carnavalesca nunca soprou por aquele canto do mundo…

Analisemos a história deste país, localizado no sudeste da Ásia, às margens do Golfo da Tailândia, mantendo fronteiras com o Vietnã, o Laos e a própria Tailândia e que passou por uma das ditaduras mais sanguinárias que o mundo já viu (ou melhor, que o mundo não viu e nem soube):

Entre os séculos I e XIV , o Camboja foi um poderoso reino. Com seu declínio, o país se tornou um mero joguete nos conflitos globais e regionais entre tailandeses, vietnamitas, franceses, japoneses e americanos. A Guerra do Vietnã abriu caminho para que a organização extremista e marxista Khmer Vermelho, liderada pelo ditador Pol Pot, tomasse o poder em 1975 e iniciasse um dos maiores genocídios do século XX.

Castigado pela ditadura dura e violenta de Pol Pot, o Camboja viu serem exterminadas quase todas as suas famílias ricas, com instrução, ligadas à política junto com professores, médicos e toda a classe intelectual. Viu o resto do país ser transformado em um grande campo de trabalhos forçados. Verdadeiras atrocidades aconteceram no país durante a década de 1970. Enquanto o coro comia no Vietnã, autoritário e cruel, Pol Pot castigava o Camboja com sua ditadura dura e violenta. Em 1978, tropas vietnamitas invadiram o Camboja e expulsaram o Khmer Vermelho do poder, mas logo após a invasão, uma feroz guerra civil eclodiu e perdurou até 1991.

Se a principal estratégia do ditador foi extinguir as cabeças pensantes do país para que pudesse tomar o poder total sem ser questionado, hoje a população ultra jovem e predominantemente rural vive as consequências:

• Mais de 11 milhões de pessoas vivem no Camboja e quase a metade tem idade inferior a 15 anos.

• Pouco mais de 20% vivem em áreas urbanas e, portanto, a grande maioria da população vive em pequenas vilas na zona rural.

A pergunta é: como um massacre pode colaborar para que um país venha a ter uma geração dócil e hospitaleira?

Nessa parte da história, a classe intelectual foi eliminada. O que resta é analisar o que sobra, então, de um povo. Simplicidade, com certeza.

Aqui temos algumas pistas do que poderia compor o caráter transparente e puro dos cambodianos…

A religião, primeiramente, que ampara e orienta a pessoa no seu GPS espiritual de “quem sou eu, o que faço aqui e para onde vou?”.

No Camboja, o budismo tem uma forte presença em todos os aspectos da vida dos locais. Ter regras e valores espirituais para orientar a vida parece ajudá-los, e muito, a serem mais tranquilos, terem menos paranoias, menos dúvidas, menos ansiedade e mais aceitação.

E não menos importante temos o valor do respeito. Este respeito, quando bem fundamentado, não serve somente para respeitar os mais velhos ou os mais fortes, mas sim respeitar a tudo e a todos. A verdade é que a inocência e o carisma no Camboja tornam-se escandalosamente nus ao olhar do visitante estrangeiro.

Uma coisa é certa: ali ninguém está fingindo nada! Mesmo porque não há muito o que se fingir. No meio da pobreza, que é a simplicidade da vida agrícola, a verdade está ali para todo mundo ver: a verdade liberta. E esta liberdade torna-se leve e nua para quem enxerga além das aparências e aprende como observá-la.

Tudo o que oferecem, palavras, sorrisos, expressões curiosas, a bondade genuína de ajudar e servir são plenas verdades, nuas e cruas.

Historicamente castigados e humilhados, estas pessoas, em sua maioria camponeses, são hoje conhecidas entre viajantes de todo o mundo como um dos povos mais carismáticos e simpáticos do planeta. Estranho… ou melhor: diferente! São pessoas puras, ingênuas e muito verdadeiras. Igualmente inteligentes, como a classe intelectual previamente extinguida pela ditadura. Com uma diferença:  pensam com o coração. Sua inteligência atende também pelo nome de resignação. São conformados, não alimentam grandes expectativas não porque não possam ter, mas porque parecem preferir estar exatamente como estão.

UMA PROPOSTA A SER DIFERENTE

Um dos pontos visitados pelos turistas são as chamadas Massive Graves. Estas covas para massas de pessoas eram construídas justamente para receber montanhas de corpos assassinados pelo ditador, que ia atrás dessas pessoas para “limpar” tudo e todos que estivessem no seu caminho.

Isto tudo pode fazer pensar: “cada um não deve, afinal, enterrar também um pouco de seu orgulho ferido, alguns sofrimentos sentidos e medos possíveis para dentro das “covas de massa?”

É a pergunta que faz o turista diante do povo cambojano que, apesar de tudo, com certeza consegue transmitir felicidade. Talvez,  pensamos, ser genuinamente alegre e naturalmente simpático é o mesmo que ser verdadeiramente feliz e entregue para vida como ela é. Nu.

Ser conformado não significa ser bobo, como o malandro se recusa a ser, mas sim um convite para entregar os ressentimentos todos, individuais e coletivos. Um convite a nos despir da carapuça de aparências e curtir uma nudez de atitude.

Fotos de Andrea Simioni
#1MudançaCrônicaCulturaLiteratura

Linguagem e euforia

por Yasmine Sterea

Ilustração de Isabela Lotufo

O movimento é a linguagem da euforia, da dor, da paixão, da alegria. A linguagem da arte em seu sentido explícito e implícito. O movimento significa sentir prazer a qualquer idade, o verbo de uma dança, uma pincelada de um artista, a melodia de uma música. São ondas infinitas no despertar do absoluto. Eu – sempre – me movimento no caminho da felicidade e na busca por alguma paixão. Paixão esta que seja sempre pela vida.

A vida não faz sentido sem o ballet. Sem a infância passada em aulas de dança. Do contato com o sorriso de amigos e amigas ao se depararem com as frases de uma tia professora. De ensaios clássicos elaborados por fãs do revolucionário Diaghilev. Ufa.

Pausa. Respiraram? Perceberam como o movimento está inserido em todos os aspectos de nossa vida, inclusive em nossa respiração? Pausa. Respiraram? Tomamos o brigadeiro como exemplo. Brigadeiro? Sempre. Desde que seja aquele da cantina e com ingredientes do segredo de um movimento das braçadas ferozes de uma cozinheira usando o famoso “fazer com amor”. E não me refiro a aquele tempero sazón. Eu amo. Amo. AMO. Isso significa que meu tempero é três vezes bom? Só se for o movimento.

Aprendi em minha temporada londrina a cozinhar. Londres não me ensinou apenas essa arte, mas me ensinou a entender que cada minuto do dia é uma chance para chegar ao sucesso e para dar uma boa risada. Por isso, sempre que posso, me tranco no banheiro e sambo, só sambo. Me movimento apenas pro meu bem único prazer de dar uma boa gargalhada em minha própria solidão.

Reparem que a gargalhada tem o pé na loucura do inconsciente. O mesmo da angústia, apenas com a diferença que a gargalhada libera mais movimentos em nossas cordas vocais. De qualquer forma, a sensação de prazer da gargalhada e de dor da angústia está sempre exposta em obras de arte, sendo esses movimentos de extrema importância em um processo criativo.

Pausa. Respiraram? O que é arte? O que faz alguma coisa ser chamada de arte? Uma coisa é certa: o movimento da junção de vários aspectos da arte está mais do que imposto. Ele existe. Ele é o futuro.

Eonnagata, ballet contemporâneo criado pela união de Sylvie Guillem, Robert Lepage e Russell Maliphant é perfeito para o entendimento deste dito futuro. O espetáculo não apenas junta mentes brilhantes, mas também é uma representação gráfica de uma obra de arte que engloba a dança, a literatura, a música, o teatro e a moda. Moda que amo por Alexander McQueen.

Tomamos a moda como um exemplo. De 20 em 20 anos existe uma movimentação para recuperar as tendências de duas décadas atrás que já tinham sido influenciadas pela década de 40 anos atrás. Parece muita matemática, mas não, é apenas um ciclo. Um bom exemplo são as influências dos anos 1980 nesse começo de 2010 (20 anos atrás), sendo que os próprios anos 1980 já são uma releitura dos anos 1940.

Se pararmos para pensar, os anos 1980 e os anos 1940 foram épocas de crise trazendo ao figurino estruturas rígidas e fortes como os power shoulders criados por Adrian nos anos 1940 para Joan Crawford. Nos anos 1980, aconteceu uma releitura clara usadas pelas nossas mães durante nossa, quer dizer, minha infância e agora, depois do boom do desfile de Balmain, mais uma releitura está acontecendo também nesta época de recessão mundial. Outro exemplo aconteceu nos anos 1990, quando Tom Ford fez para a Gucci a coleção hippie influenciada pelo movimento dos anos 1970. Façamos a matemática.

Qual será a tendência da década que agora começa?

Pausa. Respiraram? O teatro e a dança seguem um padrão menos cíclico.

Existe muito mais uma releitura contemporânea de teatros antigos. Tomamos o musical O Despertar da Primavera, forte demonstração de temas como suicídio, paixão e sexualidade em uma sociedade repressiva do começo do século. Hoje, estrelado no Rio de Janeiro, o musical ficou muito mais explícito, com figurino extraordinário, mesclando referências do passado e do presente de forma muito mais atual e moderna.

O que significa a modernidade? A contemporaneidade? Além da distinção temporal, existe uma mera distinção tópica em um movimento para o futuro. A contemporaneidade está mais atrelada à mistura das artes, do complemento da dança com a moda que uma vez foi influenciada pela pintura e grandes instalações, que uma vez foi descrita em uma certa literatura ao som de uma boa música. Quem sou eu pra dizer que não ou que sim, se antes de qualquer processo criativo analiso e reanaliso as obras de Jeff Koons enquanto sambo piruetando no banheiro ao som de Toquinho e Chico Buarque vestida de pin-up em meio ao século 21. Ufa. Repararam no movimento? Não parem.

Pausa. Respiraram?

#1MudançaArteFotografia

Entrevista com The Decaptator

por Rose Klabin

O artista inglês The Decapitator entrou de sola na cena de arte no ano passado arrancando respostas como “original”, “genial”, brilhante” e “pervertido”. Esse artista de culture-jamming (arte que subverte propagandas e comunicação corporativa de massa, infiltrando-se no próprio meio), aniquila as imagens em anúncios de propaganda arrancando as cabeças dos modelos, deixando nada além de um cotoco ensanguentado. Seu trabalho sujo já arrasou coelhinhas da playboy, o elenco de High School Musical da Disney, Sarah Jessica Parker e até mesmo o pobre sapinho verde Caco, dos Muppets, transformando peças publicitárias em arte subversiva. Seu estilo irreverente e perturbador que faz pensar, já ganhou as páginas da revista WIRED, do The Guardian, ADBusters e inúmeros outros veículos internacionais.

Uma de suas ações mais famosas foi o sequestro de centenas de exemplares do London Paper, um jornal gratuito londrino, e a alteração de sua contracapa, decapitando um anúncio do astro do futebol David Beckham e reintroduzido o jornal em circulação. O anúncio para a Gillette parece que já previa o que estava por vir: CUT THROUGH THE NOISE. E é exatamente esse o poder da obra do artista.

Seu trabalho nos diz bastante por si só, mas artista fala muito pouco a respeito e suas entrevistas são raras. Uma de suas obras foi recentemente parar num leilão da renomada Philips de Pury em Londres, mas aparentemente é a única obra à venda de que se tem notícia.

Em julho esteve por São Paulo, onde atacou o shopping Iguatemi, a badalada rua Oscar Freire e até então o seu único alvo fora das ruas, o templo de comércio de luxo da Daslu. Em matéria recente na revista playboy do Brasil, disse que foi só se vestir como rico que os seguranças nem prestaram atenção nele. A Daslu confirmou o atentado, mas se recusou a comentar o ocorrido.

É interessante ver como o artista lá fora parece atacar publicidade de maneira geral, mas em São Paulo escolheu todos os alvos entre o comércio de luxo. Seria uma crítica à adulação da elite paulistana a superioridade do dinheiro? Ou em um país tão desigual, não faria sentido comentar contra a publicidade em si, já que grande parte da população ainda sonha em comprar geladeira e máquina de lavar roupas? O que quer que seja, realmente ele nos faz pensar.

O que motivou sua vinda ao Brasil?
Encontrei uma ótima promoção em tarifas aéreas.

Você tem interesse em decapitar Sarney, Maluf ou Renan Calheiros? Ou prefere vê-los degustando a Moët Chandon?
A própria população deveria tomar esse tipo de atitude, mas quando estive por aí me pediram que voltasse durante as eleições para dar um pulo em Brasília. Ouvi dizer que eles têm ótimas pizzas.

O seu trabalho tem alguma ligação com as obras de Banksy, dos Gêmeos e Joseph Beuys?
Diria que são mais influências pré-rafaelitas com pitadas de neoconstrutivismo Russo.

Fale um pouco sobre o casamento entre a arte e a indústria da moda.
Não fui convidado para a cerimônia, mas soube que estão superfelizes e já estão até fazendo tratamento para engravidar.

O que acha das estratégias de marketing e de branding propostas por Marc Jacobs ao longo dos últimos anos?
Marc who?

Ao seu ver, qual a ligação entre a política, a arte e o consumo?
A Política é a dona do bordel, a arte são as prostitutas e o consumo é o lubrificante.

Suas intervenções: protesto, entretenimento ou sorvete de creme?
Não tenho tomado meus remédios ultimamente, mas assim que voltar para o hospital sei que vou me acalmar um pouco.

Polícia ou ladrão? Por quê?
Apenas um cidadão normal.

Seu sonho de consumo?
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#1MudançaHQ

White Cloud

por Isabela Lotufo

#1MudançaArteMúsica

As orquestras invisíveis

por Claudia Assef

– De Tênis não entra. Hoje é nostalgia.

– Como assim moço?

– Eu disse que de tênis não entra hoje. Não te avisaram que era baile nostalgia? Só entra a passeio.

Por pouco não respondi que estava ali justamente “a passeio”. De nada adiantou meu nome na lista de convidados do dono do baile. E o segurança nem ligou quando argumentei que precisava entrar para fazer uma reportagem e que o tênis, afinal de contas, era meu “sapato de sair”.

– Pode servir para as suas festas. Aqui, pode ser tênis feito de ouro que não vai entrar.

– Aaaaarrrrrrrrrrrrrrgh!

Era um calorento sábado de janeiro. Estava cansada, não conhecia direito o bairro e tinha acabado de me desentender com a amiga que me acompanhava na aventura. Quase dei meia-volta.

Foi quando apareceu o DJ Gringo, um negro enorme, com seus quarenta e poucos anos, vestido de terno e gravata, a quem eu tinha sido apresentada naquela noite.

– Alivía a moça aí, ela é jornalista, amiga nossa.

Estávamos salvas.

Lá dentro rolava um autêntico nostalgia, baile feito nos moldes das primeiras festas Black de São Paulo. O terno “nostalgia” apareceu nos anos 1980, criado por saudosos discotecários e frequentadores. As festas, que na época eram chamadas apenas de bailes, foram as primeiras a funcionar regularmente com música mecânica, ou DJ, no final dos anos 1950 e início dos 1960.

Naquele sábado de 2003, o salão do Cassasp (Clube Associativo dos Suboficiais e Sargentos da Aeronáutica de São Paulo), em Santana, reunia centenas de casais negros, misturados a alguns poucos brancos, todos loucos pelo som nostalgia. Na maior estica, os homens desfilavam de paletó e camisa.
As mulheres, a maioria, de vestido de festa. Muito lurex, lantejoula e brilho. Chiques no último. Àquela altura da noite, o DJ Gringo, que nos resgatara do segurança antitênis, soltava nas pick-ups discos que a galera do baile conhecia muito bem: uma massa de clássicos do samba-rock brasileiro e – sim, isso existe – internacional.

Gringo segue a escola dos primeiros discotecários (o termo “DJ” só seria usado no Brasil no final dos anos 1980) de som Black de São Paulo. Discos orquestrados, como Chá Dançante Volume 3, de Valdir Calmon (1959), e Bolão e seus Roquetes (1958), clássicos absolutos e precursores do samba-rock, botaram a pista do DJ Gringo para dançar a mesma coreografia harmônica e acelerada que se via nos bailes dos anos 1960. O ritmo, que de início se chamava apenas rock – isso bem antes de Jorge Ben se tornar seu maior ícone – , é dançado do mesmo jeito há mais de quarenta anos: em dupla, braços cruzados sobre a cabeça do outro, em movimentos curtinhos que seguem a batida cadenciada. Sempre o homem conduzindo a mulher. É uma espécie de rockabilly dançado mais grudadinho, com as mãos sempre unidas, embolando-se no topo das cabeças.

Como é que eu sei que sempre se dançou assim? Num cantinho do palco, observando o DJ Gringo, estavam dois discotecários da velhíssima guarda.

“Era assim que o pessoal dançava no nosso tempo. O nostalgia de hoje não mudou nada”, diz Joaquim Inácio Lucas, 58, o Kim, um dos discotecários tops quando se falava em bailes black dos anos 1960 em São Paulo. Naquela época, Kim e seu irmão Luquinha se juntaram para formar uma equipe de baile. Hoje ele não toca em festas, se acha “gasto demais”. Mas o sangue de discotecário ainda corre nas veias. “Sempre venho apreciar o som dos amigos”. Além de prestigiar os colegas, Kim continua dono de uma equipe, a Clube Primavera, fundada em 1976.

Outro DJ roots, o discotecário Sérgio Nogueira Teófilo, ou Serjão, não revela a idade nem amarrado. Ainda está em atividade (é DJ da equipe de Kim) e não quer ser chamado de “vovô” pelos DJs mais jovens.

– A gente é tão velho que pode colocar aí que somos da época da orquestra invisível.

Puts… Serjão me fez lembrar que antes de entrar no mérito do samba-rock, antes mesmo de falar dos bailes Black dos anos 1960, é preciso reconstruir a incrível história da orquestra invisível, o primeiro DJ do Brasil.

No final dos anos 1950, São Paulo tinha bons salões de baile. Os mais famosos eram o Clube Holms e o Alepo, ambos na avenida Paulista, o Clube 220, no edifício Martinelli, o Coimbra e o Salão 28, ambos na avenida São João, o Salão Campos Elíseos, na Barra Funda, o Royal, na rua Lopes Chaves, o Palácio Mauá, no viaduto Maria Paula, o Paulistano da Glória, na rua da Glória, o Clube Piratininga, na alameda Barros, o Casa de Portugal, na avenida da Liberdade, e o Som de Cristal, na rua Rego Freitas.

As festas nesses salões eram verdadeiros acontecimentos. Sempre aos sábados, os bailes eram pomposos, animados por orquestras competentes, com músicos vestidos em traje de gala.

Ao contrário de países como os Estados Unidos, não havia no Brasil um código social que vetasse a entrada de negros nesses bailes. O fator excludente era mesmo o alto preço dos ingressos. As festanças com orquestras eram verdadeiros shows, com músicos impecáveis, som da melhor qualidade e até iluminação caprichada. Tudo perfeito para divertir os dançarinos da elite.

Sabe a história da pessoa certa, no lugar certo, na hora certa? Serve direitinho para contar como o técnico de rádio Osvaldo Pereira, hoje com 68 anos, se tornou o primeiro DJ do Brasil.

Formado em rádio e TV, Osvaldo trabalhava numa loja que era, ao mesmo tempo, revendedora de LPs e assistência técnica de aparelhos eletrônicos. Quando não estava consertando rádios, Osvaldo ficava como vendedor na pequena seção de discos que havia ali.

Fã de música desde criança, o técnico ficava frustrado por não poder frequentar os bailes nos salões bacanas. Visionário, construiu um sistema de som com pouco mais de cem watts de potência (um assombro para a época, porém pouca coisa mais potente que um aparelho de som caseiro de hoje) e começou a fazer som em aniversários e casamentos no bairro de Vila Guilherme, zona norte de São Paulo, onde mora até hoje. O ano era 1958.

Com um toca-discos dinamarquês da marca Torris e o sistema de som que havia construído, Osvaldo foi o primeiro a sustentar um baile em um salão chique da cidade sem uma orquestra. Ou melhor, com uma orquestra invisível…

Em 1959, um ano depois de começar a fazer festinhas de bairro, Osvaldo Pereira negociou com o proprietário do Clube 220 o empréstimo do salão aos domingos. A ideia parecia boa para ambos, já que o salão não funcionava naquele dia e Osvaldo prometia um baile bem mais barato que o habitual, uma vez que não gastaria com músicos.

Hoje aposentado, Osvaldo descreve, orgulhoso, a sensação de segurar um baile só com música mecânica: “ Montei meu toca-discos no palco, distribuí as caixas de som pelo salão. As pessoas que iam chegando não entendiam direito como um som tão potente saía da minha vitrolinha. Tinha gente que subia no palco para ver. Às vezes, eu ficava escondido num cantinho ou deixava a cortina fechada. Aquele sonzão todo e nenhum músico, o pessoal ficava meio assim. Daí um primo meu me deu a ideia de divulgar que os bailes eram animados pela orquestra invisível, porque ninguém via direito de onde vinha o som. Eu gostei disso, achei charmoso. E completei com um nome em inglês bem bonito. Eu virei a Orquestra Invisível Let’s Dance”.

Ali nascia, ainda que sem querer, o esboço do que viria a ser, nos anos 1970, as equipes de baile. Só que, no caso de Osvaldo, o DJ, o técnico, o rodie e o empresário eram a mesma pessoa.

Em pouco tempo, a notícia da orquestra invisível de Osvaldo Pereira havia se espalhado pela cidade. As festas tinham fama de ser boas e baratas, o que poderia ser melhor? “Outros discotecários se animaram, surgiram várias orquestras invisíveis em São Paulo” recorda Kim, que cita, além de Osvaldo, o discotecário Daniel como uma lenda nos bailes da virada dos anos 1950 para os 1960. “Só que o Daniel virou crente. Ouvi dizer que hoje em dia é pastor da igreja lá do bairro da Liberdade”, diz o DJ.

Do Clube 220, a Orquestra Invisível Let’s Dance foi para o Ambassador, outro salão chique da cidade, instalado na avenida Rio Branco. Ali, ainda em 1959, Osvaldo passou a comandar os sábados, além das domingueiras.

Como só tinha um toca-discos, ele conta que tinha que correr para trocar de música. “Eu tocava rápido porque conhecia muito bem os LPs, sabia do que as pessoas gostavam. Conforme fui pegando prática, o intervalo entre as músicas foi ficando tão pequeno que às vezes as pessoas nem paravam de dançar”. Quando ele demorava um pouco mais na troca, os dançarinos batiam palmas, como se aplaudissem uma orquestra de verdade no final de uma execução impecável.

Na vitrolinha Torris do discotecário rolavam bolachas de 78 e 45 rotações. Até meados dos anos 1960, as orquestras invisíveis tocavam um som bem fiel ao das orquestras de carne e osso. “A gente botava Glenn Miller, Stan Getz, Ray Charles, Frank Sinatra, Johnny Mathis, Ray Connif… era um som bem requintado”, lista Osvaldo. Entre os artistas nacionais, os bons de pista eram Bolão e Valdir Calmon (os precursores do samba-rock), Golden Boys, Elza Soares e Miltinho, Eduardo Lincoln, Claudete Soares, Trio Ternura…

A dinâmica do baile não era muito diferente daquela que se vê atualmente nos bailes de nostalgia. O discotecário começava esquentando o salão, com sons mais calminhos, orquestrados. Depois passava para o swing, o shuffle e, mais tarde, para o fox trot, gênero anterior ao rock, que dançava com passinhos ligeiros em torno do salão – era o momento drum’n’bass da noite, com BPM no talo. Para desacelerar a galera, o discotecário soltava uma seleção de lentas, um sucesso entre os casais. Era a deixa para o cavalheiro tirar seu lencinho do bolso para não suar a mão da dama na hora de dançar. Em tempo de “homens-golfinhos”, aqueles meninos sem camisa que nas pistas molham todo mundo de suor, fica difícil acreditar que tal cena tenha existido… Fecha parênteses.

Baile bom ia nesse pique de sobe e desce até as quatro e pouco da manhã. Nos salões do centro, chegava-se a tocar até as cinco, horário em que os ônibus voltavam a circular.

Segundo o DJ Kim, não havia consumo de drogas nesses bailes. “No máximo o sujeito ia para fora do salão e fumava uma maconhinha“, diz. Coisa light. Entre os drinks mais pedidos estavam o cuba libre, o gim-tônica e o samba (pinga com coca-cola). Tomar uísque era coisa para “pessoa rara”, seja lá qual for o significado disso.

Com o sucesso dos bailes, Osvaldo teve que contratar auxiliares. Eram alguns amigos e parentes que se dispunham a tirar um por fora nos fins de semana em troca de carregar caixas e passar recadinhos no microfone nos intervalos das músicas. Além deles, Osvaldo mandava alguns rapazes, às sextas-feiras, a pontos movimentados da cidade (vale do Anhangabaú, praça do Patriarca, largo São Bento, rua José Paulino) para entregar as “circulares” dos bailes. Circular? É o nome paleozóico do que viria a ser conhecido como filipeta e mais tarde como flyer.

No auge do sucesso, por volta de 1962, a Orquestra Invisível Let’s Dance ganhou um nome mais pomposo, tudo em inglês: High Fidelity Let’s Dance. No flyer, ops, na circular, vinha até a pronúncia escrita entre parênteses, assim: “rai-fai”.

Reza a lenda que Osvaldo tocava sempre sentado e nunca abria a cortina do palco para o salão. Ele esclarece: “Não tinha muito isso. Às vezes eu ficava sentado, às vezes em pé . Tinha noite que eu descia até o salão para ver como estava o som. Fazia questão de me vestir bem, terno e gravata. A cortina eu abria de vez em quando, para ver se o pessoal estava caindo na gandaia”. “Cair na gandaia” é o mesmo que “bombar”, só que três gerações atrás.

Dependendo do salão, o DJ ficava bem longe da pista, instalado em algum quartinho. “A gente tinha medo que roubassem nossos discos”, explica o DJ Serjão.

Osvaldo reinou até 1966 com sua Let’s Dance – que chegou a ter um segundo DJ, Francisco Salles. Era o começo da febre do samba-rock. “Fiz meu último baile em 1968, mas já não me envolvia com a produção das festas. Ia mais porque o pessoal fazia questão que eu fosse abrilhantar o baile”, diz, com seu vocabulário todo rebuscado.

Pode-se dizer também que Osvaldo foi precursor das raves de praia. Em 1963, ele foi um dos primeiros a montar bailes nas areias de Santos. “ A gente chamava de piquenique. Alguém me contratava para levar o som e tocar. Montavam na praia uma barraca, igual a essas de quermesse, e o pessoal ficava dançando lá dentro”. Isso em 1963!

Pergunto se ele acompanhou a evolução dos discotecários, se ainda se interessa. “Agora chama DJ, eles tocam com dois toca-discos, né? Não saberia fazer isso, não. Mas acho bonito”, diz o fofo. Ele me convida para ver suas “caixas de discos”. São duas caixas plásticas, dessas de carregar fruta na feira, lotadas de LPs organizados por momentos do baile. “Aqui são as lentas, ali tem mais rocks”, explica. DJ que é DJ está sempre pronto para qualquer eventualidade, ora.

#1MudançaDesign

Evolução

por Matheus Benetti