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Menino do rio, de Luiz Zerbini (1988), na exposição Paisagens Ruminadas, retrospectiva do pintor no CCBB Rio. Foto de Pat Kilgore.
ArteArtes Visuais

Paisagens Ruminadas: Luiz Zerbini no CCBB

por Revista Amarello

“Para pintar, é preciso estar em pé no campo, pisando o capim com o olhar vago, fixo no horizonte, e triturar involuntariamente paisagens, sonhos e memórias.” É com tal evocação visual que Luiz Zerbini nos convida a adentrar seu processo criativo, um emaranhado estético em que viver significa ruminar paisagem. O conceito está no coração da exposição Paisagens Ruminadas, a primeira grande retrospectiva do artista no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Até 2 de setembro de 2024, o público terá a oportunidade de mergulhar nos quase 50 anos de trajetória de Zerbini, figura central da Geração 80 da arte brasileira.

Chuva de verão Santo Antônio (2020). Foto de Pat Kilgore

Sob a curadoria de Clarissa Diniz, a exposição ocupa o primeiro andar do CCBB, reunindo 140 obras distribuídas em cinco núcleos temáticos. Algumas dessas obras nunca foram exibidas antes, incluindo uma instalação criada especialmente para a exposição. Acompanhar esses cinco núcleos proporciona uma viagem visual e sensorial pelo universo multifacetado e inovador de Zerbini.

Maré alta – Mangaratiba 1 (2021). Foto de Pat Kilgore

“Como a paisagem é um conceito sociocultural”, comenta a curadora, “os paisagistas estão implicados num exercício interpretativo que é atravessado por transformações não apenas subjetivas, mas também sociais, públicas, históricas e políticas. Com Zerbini não foi diferente. Se nesses 50 anos de trabalhos vemos o artista amadurecer em âmbito pessoal, é também verdade que sua obra e o mundo que ela rumina igualmente se adensaram, abraçando um número cada vez maior de camadas, nuances, interesses, compromissos. Suas estratégias formais e plásticas — bem como seus assuntos e ambições — se transformam continuamente, não numa linearidade evolutiva, mas em espiralados desdobramentos. Um exemplo desse movimento é a dimensão alegórica de sua obra, aspecto presente nas icônicas obras em que, já nos anos 1980, retratou seus amigos artistas, e que foi, mais recentemente, retomada e transmutada na forma de alegorias históricas.”

Maré alta – Mangaratiba 2 (2021). Foto de Pat Kilgore

Luiz Zerbini nasceu em São Paulo, em 1959, e iniciou sua atividade artística no final dos anos 1970. É conhecido por pinturas de grande escala, com cores exuberantes e incursões no abstracionismo geométrico. Mas sua obra é um mosaico de inúmeras formas, cores e narrativas, advindas da inquietude e sensibilidade diante do mundo. Além de pintor, Zerbini é um artista multimídia, explorando os limites entre as artes visuais, a música e o cinema. Há quase 30 anos, ele integra o grupo sonoro Chelpa Ferro, junto com Barrão e Sergio Mekler, produzindo objetos, instalações, performances, shows e CDs.

Mar branco – Mangaratiba (2021).

Não à toa, a exposição inclui diversidade de suportes e estilos em cada um de seus grupos temáticos. “Por ter um caráter panorâmico”, nos lembra Clarissa, “Paisagens Ruminadas é uma exposição que tem o compromisso de apontar para a complexidade da obra de Zerbini. Como um artista criativamente inquieto, Luiz expressa sua paixão pela experimentação de técnicas e mídias, como também nutre um profundo respeito aos acidentes, aos improvisos e aos acontecimentos que, guiados mais pela agência da matéria e do tempo do que pela racionalidade do artista, terminam por produzir arranjos e soluções plásticas que trazem, para o corpo da obra, uma miríade de outros suportes e formas de fazer. É buscando ser fidedigna à pluralidade material e técnica da obra de Luiz Zerbini que a exposição convoca toda essa diversidade para o seu coração, que deixa de ser território exclusivo da vetusta pintura.”

Boipeba (2016).

O primeiro núcleo da exposição, “viver é ruminar paisagens”, afirma a centralidade da paisagem na prática artística de Zerbini. Sua paisagística transcende a pintura, manifestando-se em múltiplas linguagens e experimentações. Uma das obras de destaque é High Definition (2009), peça monumental que marca o retorno de Zerbini às pinturas figurativas após um período dedicado ao trabalho com o grupo Chelpa Ferro. Este núcleo ilustra como a paisagem, para Zerbini, é tanto uma fonte de inspiração quanto um método de experimentação contínua, além de ser uma metáfora para os fluxos, para as energias, para as relações que nos constituem e que, em certo sentido, escapam à nossa compreensão.

High Definition, de Luiz Zerbini (2009). Foto de Eduardo Ortega.

No segundo núcleo, “o lugar de existência de cada coisa”, são exploradas as estratégias de Zerbini para forjar os lugares de existência de sua obra. Ele combina tradições naturalistas com elementos fabulares, memórias e alegorias. A obra Mesa Mar (2017) exemplifica essa abordagem, trazendo para o espaço expositivo objetos que habitam suas pinturas, criando uma sensação de vertigem quando as coisas parecem fora de seus lugares naturais, transformadas em espectros ou fragmentos de si mesmas. Este núcleo também aborda reflexões sobre a morte e o luto, ampliando a dimensão poética e onírica da obra.

“As paisagens”, comenta Diniz, “são compostas pelo que se revela aos olhos, mas também por sons, temperaturas, texturas, cheiros, dentre outros aspectos sensíveis que são radicalmente irredutíveis ao olhar. Há, ainda, presenças da ordem do invisível, como memórias, fungos, espíritos, etc. Nesse sentido, para ‘representar’ paisagens — ou, talvez mais precisamente, evocá-las —, Zerbini tem recorrido a estratégias que vão além do naturalismo do cânone europeu do gênero da paisagem. Sua obra tem se aproximado cada vez mais de problemas tais quais: ‘como evocar o vento?’, ‘como testemunhar, na pintura, a inseparabilidade dos muitos seres que compõem uma mata?’, ‘como fazer ressoar o som das folhas?’, ‘como tangenciar a luz que faz tudo vibrar?’, e por aí vai… Para lidar com esses problemas, o artista tem experimentado e inventado formas de representar que vão além da perspectiva linear, da distinção entre figura e fundo, da matização cromática, dentre outras prescrições naturalistas.”

Primeira Missa (2014). Foto de Jaime Acioli.

No terceiro núcleo, “da natureza alegórica da paisagem: Massacre de Haximu e Primeira Missa”, a retrospectiva destaca a vocação histórica da ruminação paisagística. As pinturas alegóricas revisitam a história brasileira, combinando signos e personagens em grandes composições que desafiam narrativas oficiais e avivam memórias de resistência e insurgência. As obras que dão nome ao núcleo, Massacre de Haximu (2020) e Primeira Missa (2014), confrontam iconograficamente a violência social que caracteriza a constituição colonial do Brasil, oferecendo uma leitura crítica e renovada da história nacional.

Massacre de Haximu (2020). Foto de Pat Kilgore.

O quarto núcleo, “eu paisagem”, desafia a dicotomia cartesiana entre o eu e o outro, a natureza e a cultura. Obras como Paisagem inútil (2020) exploram as inter-relações entre o retratado e o retratante, reconhecendo que a subjetivação é inerente aos territórios, objetos e elementos naturais. Este núcleo também investiga esquemas formais e ontológicos de culturas não-ocidentais, como os kenes Huni Kuin e os tecidos Batik, da Indonésia, que elaboram estéticas vinculadas à cosmovisões holísticas do mundo.

Paisagem inútil (2022). Foto de Pat Kilgore.
Eu paisagem (1998). Foto Vicente de Mello.

O último núcleo, “não é só sobre o que se vê”, estende a inscrição paisagística de Zerbini para além das referências visuais, incorporando leituras sonoras, espaciais e rítmicas. Em Miragem (2004), a paisagem se mescla com a geometria e a musicalidade, refletindo a intensa colaboração do artista com o Chelpa Ferro. Aqui, a arte de Zerbini é apresentada como uma experiência sensorial completa, onde o visual se funde com o sonoro, o espacial e o vibrátil.

Paisagem digital (2003). Foto de Vicente de Mello.

Sobre a integração da sonoridade e musicalidade na obra de Zerbini, a curadora observa: “Nele [no núcleo “não é só sobre o que se vê] vemos obras que lidam com a representação de instrumentos e outras tecnologias musicais (Paisagem digital, 2003) e com a alusão visual a ritmos (Frevo, 2019); brincam com a representação gráfica do som (Miragem, 2004) ou exploram a dimensão visual das ondas, frequências e outras instâncias vibráteis (Frequency of human hearing, 2017), bem como tem, ainda, uma peça (Chuva) que, composta junto ao Chelpa Ferro, é ela mesma uma fonte de emissão sonora.”

Após o CCBB Rio de Janeiro, Paisagens Ruminadas seguirá para o CCBB Brasília, de 17 de setembro a 10 de novembro de 2024, continuando a oferecer ao público a oportunidade de mergulhar nessa paisagem poética. 

Autorretrato (2024), de Luiz Zerbini. Foto de Pat Kilgore.

“Como tem reiterado Zerbini”, relembra Clarissa Diniz, “uma retrospectiva tem a capacidade de oferecer, aos públicos e ao próprio artista, a possibilidade de (re)ver obras que foram pouco exibidas em diálogo com aquelas mais icônicas, que costumam identificar uma poética. Ao fazê-lo, permite uma visada geral sobre o trabalho e suas transformações: perspectiva cuja generosidade costuma ser de fato relevante para a compreensão de uma obra. Esperamos que Paisagens Ruminadas possa trazer essa contribuição através da articulação de trabalhos de épocas, linguagens e intenções distintas em torno da ideia da ruminação, o operador conceitual da mostra que é, ao mesmo tempo, uma chave bastante útil à navegação por entre a complexa e ampla produção de Luiz Zerbini.”

sem Título / “Prata e Rosado” (1999).

Clarissa Diniz é curadora da exposição Paisagens Ruminadas, escritora e educadora em arte. Graduada em artes pela UFPE, mestre em história da arte pela UERJ e doutoranda em antropologia pela UFRJ, Diniz traz um olhar sensível e profundo para a obra de Zerbini. Seu trabalho no Museu de Arte do Rio e em diversas exposições, como Histórias Brasileiras no MASP, destaca sua habilidade em matizar o protagonismo de artistas contemporâneos, revelando as múltiplas camadas de suas criações.

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O que a inteligência das plantas nos diz sobre o futuro do mundo?

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Nos anos 1960 e 1970, surgiram experimentos que alegavam que as plantas possuíam sentimentos e respondiam a estímulos musicais (e faziam até testes de polígrafo!). Embora essas alegações tenham sido desmascaradas a ponto de virarem alvo de chacota, a jornalista climática Zoë Schlanger, em seu livro recente Devoradoras de Luz — que será lançada em novembro no Brasil, pela editora Objetiva —, nos mostra que as plantas são inteligentes de maneiras complexas que desafiam nossa compreensão, muitas vezes limitada às nossas próprias noções de espécie. 

“As plantas demonstram um interesse ativo no resultado de suas vidas. Sabíamos que reagiam ao ambiente, mas não de maneiras tão complexas e inteligentes”

Schlanger descreve essa inteligência como uma “forma de agência”, o que não quer dizer que as plantas vão desenvolver aparatos tecnológicos ou responder questões matemáticas. Quer dizer, na verdade, que as plantas demonstram um “interesse ativo no resultado de suas vidas”. Ou seja, elas sentem as condições às quais estão submetidas e tentam tirar o melhor delas, prezando pela própria sobrevivência. Essa nova visão, resultado de pesquisas e de respostas analisadas a partir de uma perspectiva moderna mais aberta, desafia a percepção tradicional das plantas como seres passivos e inertes, propondo que são afinal entidades ativas e responsivas, totalmente capazes de interagir com o ambiente de maneiras sofisticadas. A palavra “sofisticada”, vale dizer, é chave para entendermos a novidade: já sabíamos que as plantas reagiam ao ambiente, mas não de maneiras tão complexas e inteligentes.

Através de uma série de exemplos fascinantes, a jornalista revela como as plantas utilizam informações do ambiente para tomar decisões críticas. Plantas de tomate, quando atacadas por lagartas, liberam um componente químico que torna suas folhas desagradáveis, forçando as invasoras a se devorarem mutuamente; plantas de milho, por sua vez, analisam a saliva das lagartas predadoras e emitem um químico que atrai vespas parasitas, que então atacam essas lagartas. O nome disso? Inteligência, com todas as letras — esses comportamentos indicam um nível surpreendente de sofisticação na forma como as plantas interagem com o ambiente que lhes circunda, utilizando sinais químicos para se comunicar e se defender. 

Tal comunicação, muitas vezes referida como “sinalização” de plantas, demonstra que as plantas possuem sistemas intrincados para detectar e responder a diversos estímulos, o que sugere uma forma de inteligência e memória.

A ideia de que as plantas possuem uma forma de memória, aliás, é particularmente intrigante. No seu livro, Schlanger explora o conceito da “memória do inverno”, que se refere ao fato de que certas plantas precisam de um período de frio durante o inverno para conseguir florescer na primavera, indicando que elas “contam” os dias frios e quentes para garantir que não floresçam prematuramente. 

A autora Zoë Schlanger.

A explicação expandida é: a maioria das árvores frutíferas precisa “memorizar” um certo número de dias frios durante o inverno para poder florescer na primavera. Não basta apenas que o clima aqueça, elas precisam desse período profundo de frio, o que indica que, de certa forma, estão contando. Elas contabilizam os dias de frio e, em seguida, os dias de calor para garantir que não vão emergir prematuramente durante um aquecimento fora de época. Embora isso ocasionalmente ocorra, resultando na perda de colheitas para muitos agricultores, há evidências de que partes da fisiologia das plantas registram essa informação. No entanto, assim como ocorre com as pessoas, ainda não se sabe exatamente onde ou como essa memória é armazenada.

Essa capacidade de registrar informações ambientais e ajustar seu comportamento subsequente é mais uma forma de adaptação evolutiva que demonstra a complexidade inegável da vida vegetal.

E o que isso nos diz sobre o futuro do mundo? 

“A inteligência das plantas nos obriga a reconsiderar nosso papel no meio ambiente”

Primeiro, a inteligência das plantas nos obriga a reconsiderar nosso papel no meio ambiente. Reconhecer que as plantas possuem formas sofisticadas de comunicação, memória e resposta ao ambiente nos leva a entender, ou começar a entender, a interconexão e a interdependência dos sistemas vivos. Quanto mais nos lembrarmos que existe um grande ecossistema e que, no final, somos apenas parte dele e não o seu centro, melhor. Em um momento em que enfrentamos desafios ambientais cada vez maiores, como as mudanças climáticas que já há tempos apresentam resultados devastadores, essa perspectiva é indispensável. As plantas, com sua capacidade de adaptação e comunicação, oferecem lições valiosas sobre resiliência e, sobretudo, cooperação. Aprender com elas é desenvolver estratégias mais eficazes e sustentáveis para preservar o meio ambiente e enfrentar os problemas globais que ameaçam nossa existência.

A memória das plantas e sua capacidade de adaptação em particular são relevantes. Não seria melhor, especialmente no contexto do aquecimento global antropomórfico, se pudéssemos responder ao mundo ao redor e não forçar o mundo para que ele responda a nós? Plantas que podem ajustar seu comportamento com base em experiências passadas podem ter uma vantagem adaptativa, influenciando estratégias de conservação e agricultura sustentável. O conhecimento sobre como elas se comunicam e se defendem incute em nosso raciocínio a possibilidade do desenvolvimento de novos métodos biológicos para proteger culturas agrícolas de pragas, reduzindo a necessidade de pesticidas químicos.

Expandir nossa definição de inteligência e agência para incluir o reino vegetal incentiva a adotar uma visão mais holística e integrada da vida na Terra. Há outras formas de viver. Há outras formas de estar aqui e dialogar com o que mantém o planeta vivo. As plantas nos mostram que a vida é mais interconectada e interdependente do que muitas vezes percebemos. Essa percepção pode ser um catalisador para um futuro mais sustentável, em que a cooperação e a coevolução com o ambiente são reconhecidas como essenciais para a sobrevivência e o bem-estar de todos os seres vivos.

As descobertas sobre a inteligência das plantas também destacam a importância da mente aberta na investigação científica. Muitos botânicos e biólogos ainda recuam diante do estudo da inteligência das plantas devido ao dano causado por alegações não científicas no passado. No entanto, a narrativa de Schlanger ressalta que a validação rigorosa de novas teorias e a disposição para explorar o desconhecido são fundamentais para o avanço do conhecimento.

O que a inteligência das plantas mostra sobre o futuro do mundo é simples: devemos reconhecer e valorizar a complexidade e a interconexão da vida vegetal. Com suas capacidades surpreendentes, as plantas ensinam valores que, embora essenciais para o futuro, parecem estar em baixa. 

Será que, em algum momento, estaremos prontos para aprender com essa outra inteligência e — finalmente — redefinir nossa abordagem na preservação do planeta?

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Distração ou identidade? O dilema das telas na formação dos jovens

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Em cada bolso, um universo de possibilidades e distrações. Na sala de aula, e em tudo quanto é lugar, o celular, esse pequeno artefato tecnológico, se transforma em ponte e abismo, a um só tempo conectando e dispersando. E, assim, pais e professores enfrentam um dilema moderno: abraçar ou combater? 

“O Brasil é o segundo país no mundo com maior uso compulsivo de celulares. Pesquisas mostram que o uso excessivo pode causar impactos cognitivos.”

O debate sobre o uso de celulares na infância e adolescência, em especial na sala de aula, é um dos temas mais fervorosos na educação contemporânea. Enquanto alguns defendem o potencial educativo e de abrangência de visões de mundo desses dispositivos, que podem facilitar o acesso a informações e a diversas realidades, outros apontam para as distrações constantes e a dificuldade de manter a atenção por mais de alguns minutos. 

Segundo dados apresentados na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), o Brasil é o segundo país no mundo com maior uso compulsivo de celulares, refletindo um alto nível de engajamento digital na vida cotidiana. Segundo a ComScore, empresa de análise de dados na internet, mais de 170 milhões de brasileiros, quase 80% da população, participam regularmente das redes sociais. E pesquisas mostram que o uso excessivo de celulares e tablets pode causar impactos cognitivos e afetar o desenvolvimento psicomotor, levantando preocupações sobre os efeitos de longo prazo dessa intensa exposição à tecnologia desde a infância. 

Diante disso, fica a pergunta: deve-se preservar os jovens de uma exposição tão precoce e intensa às telas?

Ohana Luize*, coordenadora de Educação da COAR Notícias, acredita que “é uma preocupação legítima que merece destaque, pois sabemos como o excesso de telas e conexões pode impactar negativamente, gerando ansiedade e afetando a qualidade das interações pessoais. Observamos isso em nossas próprias famílias, sem necessidade de pesquisas, apenas ao observar nossa realidade. Muitas vezes, a qualidade das interações face a face entre crianças e adolescentes é comprometida pela constante presença dos celulares.”

Mas também salienta que “ao mesmo tempo, não podemos privar as crianças do acesso à informação, à tecnologia e aos aprendizados próprios de seu tempo. Precisamos acompanhar seu desenvolvimento de forma positiva, integrada e produtiva em relação às tecnologias e ferramentas digitais. Isso implica desenvolver um olhar crítico que não desvalorize a presença diária dessas ferramentas na vida das crianças, mas que as incentive a serem cada vez mais elaboradas e benéficas para o desenvolvimento educacional e digital das crianças.”

O Movimento Desconecta, iniciado por um grupo de mães em São Paulo, propõe uma reflexão sobre o uso de smartphones por crianças e adolescentes. Defendendo o adiamento do acesso aos dispositivos até os 14 anos e a restrição ao ingresso nas redes sociais até os 16 anos, o movimento destaca preocupações com o impacto negativo dessas tecnologias na saúde mental e no desenvolvimento social dos jovens. A iniciativa visa criar um ambiente mais seguro e saudável para o crescimento das crianças em uma era digital cada vez mais dominante. As pessoas envolvidas se preocupam com a exposição precoce a conteúdos nocivos e altamente viciantes que podem prejudicar a cognição, memória, saúde mental e relacionamentos das crianças. 

O movimento visa devolver a decisão aos pais, incentivando ações coletivas para minimizar essa pressão. “Queremos trazer a decisão de volta aos pais para iniciar essa transformação. Acreditamos no poder de ações coletivas e queremos inspirar família a família, escola a escola, a se juntarem a nós nessa missão”, afirma o manifesto do movimento.

Enquanto educadores enfrentam desafios para integrar tecnologias de maneira educativa, mães, como as fundadoras do movimento, buscam equilibrar os benefícios e os riscos associados ao uso precoce de smartphones por seus filhos. “Os smartphones”, diz o manifesto, “expõem crianças e adolescentes a conteúdos nocivos e altamente viciantes, acarretando prejuízos individuais na cognição, memória, saúde mental, relacionamentos e prejuízos coletivos como cyberbullying, desinformação, polarização e extremismo”.

Além disso, o movimento sublinha que a pressão social coloca os pais em uma posição desafiadora: “Ou damos aos nossos filhos acesso a algo que abre portas para vários perigos ou corremos o risco de excluí-los socialmente”. A iniciativa busca devolver a decisão aos pais e promover ações coletivas para minimizar a pressão social, inspirando famílias e escolas a se unirem nessa missão de proteger a infância.

“Os dispositivos facilitam a socialização, a expressão criativa e o desenvolvimento de habilidades digitais essenciais para o futuro”

Por outro lado, críticos argumentam que os smartphones são essenciais para a construção da identidade dos jovens — e não só a identidade digital. Os dispositivos facilitam a socialização, a expressão criativa e o desenvolvimento de habilidades digitais essenciais para o futuro dos jovens. A integração precoce às tecnologias digitais também pode preparar os jovens para um mundo cada vez mais digitalizado, onde competências digitais são essenciais para o sucesso acadêmico e profissional.

Especialistas em educação defendem que a chave está em ensinar os jovens a usar essas tecnologias de maneira responsável e produtiva, ao invés de simplesmente restringir seu acesso. Proibir o uso de smartphones pode privar os estudantes de oportunidades de aprendizado e interação social que são vitais para o desenvolvimento de habilidades importantes para o século XXI.

Ohana Luize chama a atenção para outro aspecto da discussão: as diferenças socioeconômicas dos usuários. Ela comenta:

“No final do ano passado, o estudo TIC Kids Online Brasil revelou que 24% das crianças até 6 anos de idade já começavam a se conectar à internet. Esse número aumenta para 95% entre os brasileiros de 9 a 17 anos, mostrando um crescimento significativo na utilização da internet.

O celular é o dispositivo principal para acesso à internet, especialmente nas classes menos favorecidas. Isso cria um fenômeno complexo: enquanto a tecnologia continua a se desenvolver, especialmente no ambiente educacional, proporcionando maior qualidade e robustez, a maioria dos usuários, especialmente os mais vulneráveis social e economicamente, acessa a internet exclusivamente pelo celular. No entanto, essa conexão via celular tem suas limitações de qualidade.

Essas limitações tornam as classes menos favorecidas ainda mais vulneráveis em termos de acesso à informação de qualidade. Muitos estudiosos e pesquisadores defendem um equilíbrio necessário: reconhecer os desafios dos excessos tecnológicos enquanto aproveitam os benefícios que as tecnologias podem oferecer para melhorar o aprendizado, diversificar os métodos educacionais e facilitar o trabalho dos educadores e o processo educativo familiar.”

A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda limites de tempo para o uso de telas: para menores de dois anos, o indicado é nenhum contato com telas ou videogames; dos dois aos cinco anos, o recomendado é até uma hora diária; dos seis aos 10 anos, recomenda-se entre uma e duas horas; dos 11 aos 18 anos: entre duas e três horas. Essas diretrizes, e a necessidade delas, refletem o desafio de equilibrar os benefícios educacionais das tecnologias com os riscos à saúde mental e socialização dos jovens.

O debate sobre o uso de smartphones nas salas de aula e além delas continua a evoluir. Enquanto o Movimento Desconecta destaca a importância de proteger os jovens, a sociedade enfrenta o desafio de encontrar um equilíbrio entre promover um uso responsável das tecnologias e garantir um desenvolvimento saudável e equilibrado.

Refletindo sobre o slogan do Movimento Desconecta — A infância e a adolescência são muito curtas para serem vividas em um smartphone —, somos convidados a considerar profundamente o impacto das telas na jornada de crescimento de nossos filhos. A reflexão poética nos lembra da fragilidade intrínseca da essência da infância e adolescência e, com os avanços tecnológicos que moldam nosso mundo moderno, essa essência parece ainda mais quebradiça.

Para Ohana, “o caminho para o equilíbrio parece ser o mais sensato: promover reflexões contínuas e discussões desde o núcleo familiar até propostas mais amplas. Essa abordagem visa não apenas garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável das crianças e jovens, mas também reconhecer e aproveitar os benefícios que a tecnologia pode oferecer para o avanço e crescimento educacional.”

A busca por um equilíbrio adequado entre a proteção e a integração tecnológica há de seguir. Prepare-se para os novos capítulos: ela promete moldar o futuro das próximas gerações.

*Ohana Luize é jornalista, mestra em Comunicação e pós-graduanda em Educomunicação e Tecnologia.

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Existe solução para o preço dos livros?

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A discussão sobre o tabelamento dos preços de livros no Brasil tem gerado debates acalorados, dividindo opiniões entre defensores e críticos. O Projeto de Lei 49/2015, conhecido como Lei Cortez, busca regular o preço dos livros no mercado nacional, impondo um preço fixo para os lançamentos durante os primeiros 12 meses. O projeto, que recentemente avançou no Senado, foi originalmente apresentado pela ex-senadora Fátima Bezerra (PT-RN) e ressuscitado pela senadora Teresa Leitão (PT-PE). Inspirado na bem-sucedida Lei Lang, em vigor na França há mais de 40 anos, tem como intenção fomentar a leitura e proteger as livrarias independentes, permitindo que estas possam competir com grandes varejistas, especialmente as plataformas de venda online. Não à toa, a gigante Amazon é o principal alvo da Lei Cortez. 

Atualmente, as grandes redes exigem descontos das editoras sobre o preço sugerido dos livros, podendo praticar um valor final mais baixo para o consumidor. Em contrapartida, as pequenas livrarias não conseguem obter os mesmos descontos e acabam cobrando preços mais altos do consumidor. Órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, bem como feiras de livros, também podem obter descontos.

“o desconto não poderá exceder 10% do preço fixado pela editora durante 12 meses após seu lançamento”

Se a Lei Cortez for aprovada, o desconto de qualquer livro não poderá exceder 10% do preço fixado pela editora durante 12 meses após seu lançamento. A partir da segunda edição, o prazo de validade do teto do desconto será reduzido para seis meses. Após esse prazo, a política de descontos fica liberada. Órgãos públicos federais, estaduais e municipais, e feiras de livros serão excluídos da regra geral, podendo obter descontos maiores, desde que a compra seja feita diretamente com as editoras.

As principais argumentações de ambos os lados são:

Contra o Projeto de Lei

Os críticos da Lei Cortez defendem que a fixação de preços para livros prejudica tanto as editoras quanto os consumidores. Argumenta-se que o alto custo dos livros no Brasil se deve às baixas tiragens, resultadas diretamente da baixa demanda. Como efeito, os preços elevados dos livros desestimulam a compra, criando um ciclo vicioso: poucos leitores compram livros, o que mantém as tiragens baixas e, consequentemente, os preços altos.

As editoras — negócio que, como qualquer outro, precisa ser lucrativo — se beneficiariam de uma maior liberdade para ajustar os preços conforme a demanda. Descontos estratégicos, especialmente em plataformas como a Amazon, ajudam a impulsionar as vendas, tornando os livros mais acessíveis ao público e permitindo que editoras e livrarias aumentem sua receita total, mesmo com preços unitários menores.

O jornalista Elio Gaspari, em matéria que leva o título A volta da tunga dos livreiros e o subtítulo Querem tabelar para proibir os descontos, argumenta que:

“É um caso especial de tabelamento, pois enquanto o costume é tabelar uma mercadoria para impedir que se cobre a mais, nessa girafa pretende-se impedir que o comerciante cobre menos. (…) Os livreiros têm uma aura apostolar. Afinal, um livro não seria um sabonete. Ilusão. Livros, sabonetes e caminhões são mercadorias. Tanto é assim que, há muitos anos, quando era mais barato imprimir um livro na China, algumas editoras passaram a rodá-los em Xangai, trazendo os volumes para o Brasil. As duas maiores redes de livrarias nacionais quebraram, muito mais por causa de suas acrobacias financeiras do que pela concorrência. Quando as grandes redes afogavam as pequenas livrarias, ninguém falava em tabelamento.”

A principal crítica ao PL 49/2015, portanto, é que ele impediria preços mais acessíveis ao proibir descontos superiores a 10% durante o primeiro ano de lançamento do livro. A restrição é comparada a políticas de controle de preços do passado, como os infames “fiscais do Sarney”, que muitas vezes resultaram em fracassos econômicos. A preocupação é que o tabelamento levará a uma redução nas vendas, obrigando editoras a diminuir ainda mais as tiragens e, consequentemente, aumentar os preços, criando uma situação insustentável para todo o mercado e ferindo quem já está bem combalido: o leitor.

Gaspari arremata: “Reclama-se que o freguês vai a uma livraria, consulta os volumes e, ao voltar para casa, encomenda-o eletronicamente. Os comerciantes que fazem essa reclamação fazem compras online e não pensam em tabelar os sanduíches. Ademais, todas as grandes editoras têm operações de venda eletrônica. Se cobram mais caro ou forçam a venda de livros físicos em detrimento dos e-books (mais baratos), o problema é delas.”

A favor do Projeto de Lei

Por outro lado, os defensores da Lei Cortez veem nela uma forma de proteger as pequenas livrarias e editoras da concorrência predatória das Amazons da vida. Eles argumentam que as grandes redes conseguem oferecer descontos significativos devido ao seu poder de negociação, o que prejudica as pequenas livrarias que não conseguem competir com esses preços.

O objetivo da Lei Cortez, segundo seus proponentes, é garantir uma maior diversidade no mercado livreiro, permitindo que livrarias de diferentes portes coexistam. Isso criaria uma tapeçaria de opções muito mais diversificada e abrangente, fugindo do monopólio que reduz as possibilidades de todos os envolvidos. Leis similares em países como França, Espanha e Argentina têm sido citadas como exemplos de sucesso, onde a regulação de preços ajudou a diminuir o preço médio dos livros e a preservar a biodiversidade cultural representada por pequenas livrarias.

Alexandre Martins Fontes, diretor-executivo da Editora WMF Martins Fontes e da Livraria Martins Fontes Paulista, rebateu diretamente os argumentos de Gaspari:

“A ideia dessa lei é impedir que empresas gigantescas (…), sem nenhum compromisso com a cultura do nosso país, tratem o livro como isca e deem descontos abusivos.”

A preocupação central dos defensores da lei é que, sem essa regulamentação, o mercado livreiro se tornará um oligopólio dominado por poucas grandes empresas, reduzindo a diversidade de oferta e centralizando o poder de precificação. Eles acreditam que a lei ajudará a manter as livrarias físicas nas cidades, que são importantes espaços culturais e sociais.

“A lei”, escreve Martins Fontes, “limita-se apenas a livros lançados nos últimos 12 meses, que teriam um desconto máximo de 10%. Ou seja, não atinge sequer 5% do total das obras disponíveis no mercado nacional e vale por um período que dará às pequenas livrarias a chance de uma concorrência mais leal, em produtos que atraem clientes e geram um movimento fundamental para as lojas menores. Ao garantir isso, a lei permite que mais livrarias possam coexistir e que mais livros, dos mais variados temas, possam ser descobertos pelos mais variados leitores. Se ficarmos apenas nas mãos de uma empresa (digamos, a livraria Amazon), podemos até comprar livros pela metade do preço, mas serão apenas os livros que ela entender que valem a pena ser vendidos.”

Há quem concorde com Gaspari, há quem concorde com Martins Fontes — mas há quem concorde com os dois. 

“a taxação de livros no Brasil reflete uma tensão clássica entre a liberdade de mercado e a intervenção regulatória”

A discussão sobre a taxação de livros no Brasil reflete uma tensão clássica entre a liberdade de mercado e a intervenção regulatória. De um lado, há a visão de que a regulação excessiva sufoca a inovação e a flexibilidade necessárias para um mercado dinâmico. Do outro, há a preocupação com a proteção das pequenas empresas e a preservação da diversidade cultural.

Ambos os lados apresentam argumentos válidos que merecem consideração. A decisão final sobre a implementação da Lei Cortez deverá levar em conta os impactos econômicos e culturais de longo prazo, buscando um equilíbrio que favoreça tanto o acesso aos livros quanto a sustentabilidade do mercado livreiro no Brasil.

Países como Alemanha e Espanha são exemplos que deixam claro que o projeto pode, sim, ser benéfico não somente às livrarias independentes, mas também aos consumidores. No Reino Unido, no entanto, onde a lei do preço fixo vigorou de 1996 a 2018, houve aumento de cerca de 80% no preço dos livros. 

Com a lei em prática, seríamos um caso que penderia mais para o lado da Alemanha e Espanha, ou para o Reino Unido? Difícil dizer. O contexto brasileiro, afinal, é o contexto brasileiro. Sem a Lei Cortez, o cenário também não é animador, já que o número de leitores no país é baixo. Segundo o Panorama do Consumo de Livros, pesquisa encomendada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) em 2023 e realizada pela Nielsen BookData, mostra que 84% dos brasileiros acima de 18 anos de idade não compraram livros nos últimos 12 meses.

Em outras palavras, que se seja contra ou a favor da Lei Cortez — não é de hoje, mas a maré parece pouco favorável à leitura

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Você já se emocionou com essa cena: diante das maiores adversidades, que variam entre vilões superpoderosos que querem dominar o mundo e questões familiares/financeiras/societárias, os protagonistas não desistem de sua missão. Se a partida está cinco a zero faltando poucos minutos para o apito final, ainda há chance de buscar o empate e até a vitória; se a arapuca parece insolucionável e a morte iminente soa como inevitável, uma fagulha de energia é tirada de alguma fonte inesgotável de força para buscar a sobrevivência. A narrativa é batida. Mas que força de vontade é essa? O que é que nos emociona tanto nessas cenas? A resposta é simples: o que nos toca nelas é a desconsideração total e completa que esses personagens demonstram diante da possibilidade de desistir. Dentre as poucas alternativas que sobram em situações adversas, desistir simplesmente não é uma delas. Isso nos emociona. Desistir, de acordo com o que nos é ensinado explícita e implicitamente, é um ato indigno; não desistir, por sua vez, é o que há de mais louvável. Heróis não desistem, se não não seriam heróicos. Bons exemplos, os tais role models, não desistem, se não não seriam exemplares. 

“Desistir é um ato indigno”

E o que isso quer dizer sobre a visão padronizada do que é a desistência? Ela invariavelmente é sinônimo de algo ruim, do fracasso retumbante. É o não-terminar algo positivo, é aquilo que as pessoas fazem quando não estão mais buscando o que as fariam felizes.

Mas, afinal, será que desistir é mesmo tão ruim?

No livro Sobre Desistir, publicado em versão brasileira pela editora Ubu, Adam Phillips escreve um sedutor manifesto a favor da complexidade da natureza humana e contra o binarismo pobre entre triunfo e fiasco, uma reflexão que se distancia do que nos é dado como verdade absoluta ao explorar as várias facetas da desistência e sua influência sobre nossa psique e jornada existencial. O psicanalista e psicoterapeuta britânico se debruça sobre concepções convencionais de sucesso e fracasso para propor uma reflexão tão inovadora quanto libertadora acerca do papel da desistência na formação da identidade e na busca pelo significado na vida.

“Será que conseguimos qualificar o sacrifício sem nos deixar ser indevidamente impressionados por ele, sem glamurizá-lo, seja como tragédia, seja como farsa? Será que conseguimos atentar para a distração do sentimento de superioridade interior gerado pelo sacrifício, sem nos sentirmos superiores por reconhecê-la? Ou melhor, podemos falar sobre desistir — requalificar a desistência — como um útil indício de nossa complexidade moral e emocional, em vez de mais uma de nossas provações prediletas?”

— Adam Phillips, em trecho de Sobre Desistir

O ponto de partida da obra é uma provocação fundamental: o que realmente significa desistir? Com texto suave, fluido e para lá de acessível, o autor recusa o academicismo afetado e consegue nos instigar a questionar nossas noções preconcebidas sobre esse ato tão malfadado, desafiando a ideia de que desistência é igual a fracasso. No lugar, vemos sobreaguar uma perspectiva nova que chega a ser um respiro de alívio: e se tomássemos a desistência como um ato de coragem e discernimento? E se ela fosse uma oportunidade de abandonar aquilo que não nos serve mais e abrir espaço para novas possibilidades de crescimento e descoberta?

“Se encaramos a desistência como uma catástrofe a ser evitada, que imagem formamos da desistência de fato? Quando não nos deixamos afetar demais pela desistência, percebemos aquilo que valorizamos. Criamos todo um mundo a partir disso.”

— Adam Phillips

Ao longo do livro, Phillips tece uma rica tapeçaria de ideias, recorrendo a uma ampla gama de referências literárias, filosóficas e psicanalíticas para enriquecer sua análise (sem parecer que está se esforçando demais para tanto). Autores que vão de Franz Kafka e William Shakespeare a Sigmund Freud, Jacques Lacan, Donald Winnicott e Friedrich Nietzsche são convocados para iluminar diferentes aspectos dessa desistência phillipiana e toda a relação com questões mais amplas, como identidade, liberdade, desejo e autenticidade. 

Desistir, ao contrário do que se prega amiúde, pode ser um ato supremo de livre-arbítrio, uma atitude que pode nos definir não como pessoas perdedoras ou ressentidas, mas como pessoas donas de nós mesmas, verdadeiras conhecedoras de nossas vontades e limites. Entregar os pontos talvez não seja o fim do mundo, mas o começo de um universo que esteja mais de acordo com a essência que nos cabe.

Uma das contribuições mais significativas do livro, portanto, é a exploração da relação entre desistência e autoconhecimento. Phillips argumenta que a desistência pode ser vista como um ato de autoconsciência e maturidade, permitindo-nos priorizar valores mais profundos e significativos em nossas vidas. Ao abandonarmos objetivos que já não nos servem mais, seja lá por qual razão, abrimos espaço para um crescimento autêntico e uma maior integridade pessoal. Essa é uma cena que deveria nos emocionar: quando abrimos mão de alguma coisa para lançá-la a outras empreitadas.

“Talvez não precisemos pensar na vida em termos de perdas e ganhos, ou lucro e prejuízo, como a ideia de desistir pode implicar, reforçando assim uma norma cultural muito apreciada. Talvez não precisemos perder a vida para encontrá-la; podemos simplesmente procurá-la por aí (encarar o luto talvez não seja o que mais queiramos fazer, nem a única coisa a ser feita, nem aquilo que somos obrigados a fazer). Talvez tenhamos subestimado nossas tentações. Pode ser que tenhamos nos distraído com uma analogia.”

— Adam Phillips

Há uma complexidade moral e existencial na desistência, o que causa inúmeras tensões entre desejo e renúncia, liberdade e responsabilidade. A decisão de desistir, como nos lembra Phillips, muitas vezes envolve um delicado equilíbrio entre nossos impulsos individuais e nossas obrigações éticas e sociais. Ao reconhecermos a importância da desistência como um aspecto fundamental do crescimento humano, podemos libertar-nos das expectativas opressivas da sociedade e abraçar uma maior autenticidade e plenitude em nossas vidas.

“Pretendo sugerir neste ensaio que existe uma parte de nós que precisa saber o que está fazendo, e outra parte que precisa não saber. E, na mesma medida, existe uma parte de nós que precisa saber o que quer e outra que precisa não saber. Há liberdades conectadas a ambos os aspectos de nós, que animam um ao outro — nossa vontade depende de sabermos e de não sabermos o que queremos.”

— Adam Phillips

Nas conclusões, como muitos capítulos finais, voltamos a memórias de infância. Será que são autênticas? E quais são suas funções? Na discussão, o autor destaca: “As memórias que temos nem sempre são passíveis de confirmação alheia nem são compartilhadas pelas pessoas que parecem fazer parte delas.” Essa observação levanta dúvidas sobre a confiabilidade das lembranças e ressalta a natureza solipsista e fugidia da infância quando rememorada.

O autor também aponta para a ideia de que as memórias de infância podem ser mais como “sonhos ou cenas simbólicas que simplesmente codificam os desejos da infância”, ao invés de representações precisas de eventos reais. Ele sugere que essas memórias são mais uma “memória do desejo, não de uma verdade histórica”, o que nos leva a questionar o que realmente estamos recordando quando pensamos em nossa infância.

“É na infância que aprendemos pela primeira vez a abrir mão das coisas. É na infância que somos introduzidos aos benefícios e ao sofrimento muito real implicados na frustração. E, sobretudo, é na infância que somos encorajados a abrir mão de nossa megalomania — nossa presunção onisciente e onipotente de que o mundo é organizado pelo que precisamos e queremos — e a reconhecer gradualmente que as pessoas de que precisamos não estão nem podem estar sob nosso controle remoto. Em outras palavras, tornou-se impossível conversar sobre o crescimento sem conversar sobre o sacrifício. A questão é sempre: o que temos de sacrificar para nos desenvolver, para seguir para o próximo estágio de nossa vida?”

— Adam Phillips

A reflexão sobre o propósito e a função da memória também é destacada, com o autor levantando a questão sobre o que as pessoas buscam ao recordar sua infância. Ele pergunta: “Falar sobre a infância é uma maneira de querer o quê? Ou de falar sobre o quê?” Essas perguntas nos convidam a considerar o significado mais profundo por trás de nossas lembranças e a refletir sobre o papel que elas desempenham em nossa identidade e compreensão de nós mesmos — e é aí que o ciclo do livro se fecha.

Sabemos o que queremos? Talvez menos do que estamos dispostos a admitir a nós mesmos. Sendo assim, como seria possível demonizar tanto o ato de deixar de correr atrás de algo? Ou, então, de buscar constantemente aquilo que supostamente nos faz viver. Ao deixar de lado algumas noções criadas a partir da infância, abrimos brechas em nossa vida e nos questionamos sobre o propósito e o significado delas. O que estamos sacrificando ao nos desenvolvermos? E como essas renúncias moldam nossa jornada rumo à idade adulta? 

“Sabemos o que queremos? Talvez menos do que estamos dispostos a admitir a nós mesmos.”

No meio dos pontos de interrogação que inundam toda e qualquer rotina, desistir não parece de todo ruim: é mais um fato da vida. Em determinadas circunstâncias, desistir é a atitude mais heroica que há.

Nossas construções são edificadas sobre bases pouco confiáveis e, muito embora sejam tudo que temos, é importante não depositar nelas todo o nosso peso — é assim que a casa cai.

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Os Millennials e a Geração Z carregam um título que ninguém gostaria de carregar: são a geração mais ansiosa da história. Antes, a expectativa que perdurava no ar era a de que, com avanços médicos e tecnológicos, cada próxima geração se sairia mais completa, mais próxima à perfeição que a anterior. Mas a ironia não deixaria que isso fosse cem por cento verdade. A sensação que predomina é que estamos diante de uma geração em que isso não condiz com a realidade, pois, apesar dos avanços em inúmeras áreas — e em algumas, por causa dos avanços —, questões maiores parecem ficar no caminho da plenitude.

Pessoas nascidas entre 1981 e 1996, no caso dos Millennials, e entre 1997 e 2010, no caso da Gen Z, cresceram em um mundo altamente digitalizado, enfrentando uma somatória de desafios. Entre os fatores que pintam esse quadro estão desde questões globais como mudanças climáticas e polarização política até problemas pessoais como instabilidade financeira e a inevitabilidade perniciosa das redes sociais.

No livro Geração Ansiosa: Um guia para se manter em atividade em um mundo instável, a psicóloga clínica, Lauren Cook, fala abertamente sobre sua experiência pessoal para oferecer uma abordagem honesta e repleta de métodos práticos de como lidar, ou tentar lidar, com a sobrecarga de informações e arapucas da atualidade. Nascida no começo dos anos 1990, ela também carrega o peso de sua geração, tentando esquematizar soluções e, por vezes, tirar algo positivo da história toda. Além de sua própria experiência com a ansiedade, se baseou em pesquisas psicológicas sólidas e vivências diversificadas de seus pacientes para escrever o livro. Cada capítulo tem um personagem-paciente central, que não existe como uma pessoa específica, mas como uma amálgama de relatos de seus pacientes e sensações comuns às temáticas tratadas naquele conjunto de páginas.

Para começo de conversa, Cook reconhece que, embora a tecnologia tenha facilitado o acesso à informação, ela também trouxe um constante bombardeio de notícias preocupantes e a pressão onipresente das redes sociais, um ambiente em que a comparação diária com os “melhores momentos” dos outros pode intensificar sentimentos de inadequação e isolamento. Por mais que se tenha a noção de que as redes não retratam as vidas verdadeiras das outras pessoas, é comum que os stories e as postagens façam com que quem quer que esteja vendo sinta que não está fazendo muito, que não está aproveitando a vida ao máximo, que sua vida profissional não foi para frente como ela sonhava, que seus dias são enfadonhos e pouco compartilháveis. A comparação por si só já é um problema. Sempre foi. Mas a comparação com algo totalmente irreal é ainda mais problemática.

Cook compara a crise de ansiedade à sensação de afogamento — assustadora, avassaladora e, sim, por vezes geradora da sensação de que a vida está por um fio. Muitos jovens hoje descrevem a experiência como se estivessem se afogando, inundando seus pulmões em um mar de inseguranças e desafios. As águas desse mar ficam violentas com os ventos fortes de uma ansiedade que é exacerbada por fatores que não eram tão predominantes ou intensos nas gerações anteriores — Baby Boomers (1946-1964); Geração X (1965-1980) —, o que explica em parte por que os níveis de ansiedade são mais elevados nas gerações Y e Z.

“Estamos cansados. Temos dúvida de que alguma coisa possa fazer diferença. O desgaste da ansiedade ao longo dos anos desenvolveu um tártaro emocional que nos deixou endurecidos. Nosso ceticismo nos deixou isolados em nossas redes sociais e telas da Netflix. Embora todos nós estejamos sofrendo coletivamente, podemos sentir como se ninguém entendesse nossa dor.”
— Lauren Cook, em Geração Ansiosa

Uma explicação popular para tanta insegurança e instabilidade profissional é a tese do “floco de neve”, de que os jovens de hoje foram demasiadamente mimados pelos pais, sendo permitidos a evitar a responsabilidade e a independência que fomentam a resiliência mental. Mas essa visão, claro, subestima esses jovens, ignorando o contexto maior em que eles estão inseridos. Há, de fato, novos desafios a serem superados, desafios que as gerações anteriores não tinham, especialmente quando se trata de preocupações com o futuro, seja por perspectivas de emprego ou por questões socioambientais. Não é sobre ser mais difícil ou menos difícil, mas o fator “tudo ao mesmo tempo no mesmo lugar”, somado à incerteza da existência de um futuro, configura um panorama novo, que demanda adaptação.

É sintomático que os Millennials tardios e a Geração Z estejam adiando muitos dos marcos da vida adulta que as gerações anteriores consideravam indispensáveis: muitos não são proprietários de imóveis, muitos não estão em relacionamentos sérios, muitos não estão se casando por escolha própria. Sem marcos que representam avanço, seus esforços para progredir acabam sendo frustrados, o que faz com que permaneçam inertes em posições fetais confortáveis, que não exigem movimento e, às vezes, se vier a calhar, nem custos financeiros. Por essas e outras, há uma demora cada vez maior para que deixem a casa dos pais. Como um todo, essas gerações têm níveis de escolaridade altos — na verdade, dos mais altos que já existiram —, mas o caminho para o sucesso está bem menos claro. 

Com a promessa de que o trabalho deve ser uma atividade apaixonada, monetizando muitas vezes um hobby ou algo que num contexto pessoal seria uma paixão, há uma enorme pressão para que a vida profissional não seja um mero ganha-pão. Ela tem que ser um prazer. Na teoria, funciona; na prática, nem tanto. O sentimento constante de insatisfação reverbera com força quando se é pressionado a ser feliz e agradecido inclusive nas oito horas diárias (se não forem mais) de labuta. Pois, se uma pessoa não se sente exatamente assim, saltitante com o que faz para viver, a cobrança começa vir dela mesma — algo como: “Naqueles últimos stories, as pessoas pareciam felizes com o trabalho. Por que não estou assim com o meu? Algo deve estar errado.” Fato é que, por mais que se trabalhe com algo que converse com suas afinidades pessoais, nada é mais natural que o desgaste aconteça e nem tudo seja rosas. 

Um efeito colateral disso é que, hoje em dia, para essas gerações, parece não haver mais espaço para atividades que exigem uma certa adaptação. Quando o trabalho é visto como uma extensão do prazer, ele rapidamente será considerado como não adequado. Afinal, estamos falando de cobrança, prazos, compromissos, estresse — e isso faz com que as pessoas troquem de trabalho rápido, sempre em busca desse ideal profissional que nem sempre existe. Há o lado positivo de estarmos mais atentos a ambientes tóxicos de trabalho e a chefes que maltratam seus funcionários. Nesse aspecto, houve um avanço inegável. Mas mesmo os aspectos positivos podem contribuir para a ansiedade, já que, depois de reconhecer um ecossistema ruim, estamos em um período de transição, o que quer dizer que os abusos morais ainda ocorrem com muita frequência e os burnouts estão longe de acabar. 

“Se você está considerando a suposição de que não está sendo uma boa amiga quando já está se virando do avesso para ajudar, ou de que tem ‘sorte’ por conseguir todo esse trabalho extra sem uma mudança de posição e uma compensação, temos que conversar. Não só você está em águas infestadas de tubarões, como temo que tenha vestido uma fantasia de foca, minha amiga. Pior ainda, se seus amigos, seu parceiro ou seu chefe fazem você acreditar que ainda não está fazendo o bastante quando está fazendo tudo o que pode, você agora está oficialmente na gaiola do tubarão, esperando que as grades sejam quebradas. Temos que encontrar uma saída.”
— Lauren Cook

Ao mesmo tempo, os Millennials e a Geração Z estão muito mais conscientes das questões de saúde mental. São mais capazes de articulá-las do que seus pais. Quando gerações mais velhas deixavam empregos, poucos acusavam questões psicológicas. As novas gerações estão mais em sintonia com suas necessidades, dizendo: “Eu tenho ansiedade,” ou, “Fui diagnosticado com depressão.” Mas o estigma persiste. Os jovens podem estar mais conscientes do que os aflige, mas relutam em falar sobre isso no trabalho. Alguns profissionais jovens estão lidando com problemas de saúde mental pela primeira vez, preocupados com a imagem, muitas vezes negligenciando suas necessidades até que se tornem insustentáveis.

Um dos pontos surpreendentes levantados por Cook em Geração Ansiosa é como a ansiedade pode ser transmitida de geração em geração. 

“Podemos ser impactados num nível biológico, microscópico. A investigação dos efeitos de traumas intergeracionais teve início quando pesquisadores começaram a estudar sobreviventes do Holocausto e notaram que, em alguns casos, os filhos de sobreviventes de campos de concentração pareciam ser mais traumatizados do que os próprios sobreviventes. A partir dos anos 1990, esses estudos foram ainda mais longe, examinando o impacto do trauma geracional sobre a expressão gênica, um campo de estudo conhecido como epigenética. Um estudo significativo constatou que crianças podem ser afetadas pela exposição a traumas parentais não apenas antes de nascerem, mas antes mesmo de serem concebidas. Tudo isso para dizer: nosso DNA pode ser literalmente modificado por causa da dor que nossas mães, pais, avós e gerações anteriores suportaram.”

O trauma e o estresse podem alterar fisicamente nossos genes, um fenômeno que tem implicações profundas sobre como entendemos e tratamos a ansiedade. O futuro, se é que existe, não parece promissor para os filhos da geração ansiosa. No entanto, a pesquisa também mostra que mudanças positivas no estilo de vida podem reverter esses efeitos, oferecendo uma visão mais esperançosa para o futuro. Haveria, então, salvação?

Seja como for, tanto os Millennials quanto a Geração Z têm sido lentos para abraçar a vida adulta com entusiasmo, juntamente com a independência que costumava ser atraente para os adolescentes. Adulting, ou “adultar”, agora se tornou um verbo, como se alguém tivesse escolha no assunto. A carteira de motorista é um exemplo — cada vez mais jovens estão renunciando dela, já que estão ou acostumados a usar Uber e transporte público ou pegar caronas com os pais. O que antes era um sinônimo de liberdade e amadurecimento, hoje é algo dispensável. Em números recordes, os jovens simplesmente não veem isso como algo que os preocupa.

Com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, “adultar” está longe de ser prioridade. 

Reconhecendo os desafios, há uma busca por soluções de saúde mental online, impulsionando o crescimento de uma nova indústria bilionária. Aliás, serviços de coaching, mentoria e terapia online estão se expandindo rapidamente para atender a demanda. Relatórios mostram que o mercado global de coaching online deve crescer significativamente, atingindo US$ 11,7 bilhões até 2032, enquanto o mercado de terapia online pode chegar a US$ 16,16 bilhões até 2028.

Talvez haja muitas coisas boas por vir. O difícil vai ser construir a estrutura de saúde mental necessária para que não desmoronem enquanto isso.

Para Lauren Cook, é verdade que a ansiedade é um dos grandes marcos da atualidade e das gerações que carregarão o futuro adiante. Mas, com um misto de preocupação e esperança, a autora acredita que, cedo ou tarde, o mundo oferecerá desafios impossíveis de serem enfrentados sozinhos. E aí a escolha terá que ser feita: ou a geração ansiosa afunda no mar de problemas ou ela os enfrenta de cabeça erguida. Para isso, tem que se transformar na geração unida.

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Quem é Fabio de Souza e o que, como e por que você sonha?

Sou um artista carioca, cenógrafo, diretor de arte stylist e produtor cultural. Sou formado em comunicação social e, durante vinte anos, trabalhei como tour manager de artistas e bandas brasileiras. Quando me mudei pra São Paulo, fui selecionado para entrar na Universidade Antropófaga do Teatro Oficina como ator e cantor, e ali eu reiniciei o contato com a arte. Eu cuidava da arte dos outros, e então passei a me reconectar com a minha própria. Foi nesse momento que despertei para minhas investigações artísticas.

Fafá de Belem por Rafael Catarcione.

A minha questão com o sonho é interessante, porque percebi que eu sonho pouco, fisicamente. Sonho muito mais acordado do que dormindo, e sonhar acordado, pra mim, é como uma investigação das possibilidades de voo. Quando eu estou sendo eu mesmo, quando estou criando narrativas e possibilidades artísticas, estou sonhando. Então eu sonho pra transformar a minha existência em algo iluminado, em uma vida em que me conecto com minhas raízes, com belezas que me façam acreditar em uma vida boa.

Você fez cenografias para artistas como Fafá de Belém, Geraldo Azevedo, Rita Benneditto. Conta um pouco sobre seu processo criativo, sobre criar cenografias e figurinos tão diversos e ao mesmo tempo tão únicos?

O meu processo criativo vem de muita pesquisa e respeito a quem, pra quem ou para o quê estou criando, como uma pesquisa do real propósito. Através da arte, eu busco o encantamento, eu quero dar asas a quem vem ao encontro como um bordado de afetos, um artesanato de encontros. Eu me inspiro na natureza humana, na poesia dos sentidos, em todas as coisas do mundo. Como diz Paulinho da Viola, as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender. Eu busco ver beleza na simplicidade. Em um mundo tão tecnológico, imerso em telas de LED, celulares e máquinas. Quero despertar sinestesias, desejos e o que é onírico em cada pessoa.

Ana Cañas canta Belchior por Iara Marinho.

O sonho, num sentido científico, costuma ser percebido como um processo inconsciente de imaginação. Porém, podemos ter sonhos conscientes também. E podemos, através da arte, propor universos mágicos e de sonhos, como suas cenografias, por exemplo. Qual é o papel do sonho no seu processo de criação?

O papel do sonho no meu processo de criação entra em um lugar de me dar asas pra que eu veja o mundo e as pessoas com os olhos livres, sem julgamento. Tudo é possível no tempo das coisas, no respeito à natureza e nesse lugar de efemeridade da vida.

Então, quando eu estou pensando numa cenografia, quando estou num processo criativo, o sonho vem muito como um aliado. Muitas vezes eu penso que, quando tenho uma caixa cênica, estou vestindo espaços, estou buscando narrativas para novos voos.

Agora pensando nos figurinos: você acha que é possível vestir um sonho? (Porque, quando vejo seu trabalho, sinto que sim)

Quando penso em figurino, eu imagino dar mãos e asas a quem estou criando. Acredito que o figurino tem um poder imenso de consagração a quem estamos vestindo. Então, procuro criar possibilidades para que a pessoa se autocoroe, para que ela se sinta forte, como um escudo. É como a pessoa fechar os olhos e ela se autoencantar. Me interessa que a pessoa se sinta absolutamente à vontade com o que ela está vestindo. Esse é um propósito. Não é o que eu penso como o melhor pra ela, eu quero que ela, nesse lugar de se vestir, se veja em outras possibilidades.

Chico Chico por Michelle Castilho.

Recentemente, você participou de um debate que pensava moda, figurino e cenografia, num caminho entre os resíduos e a criação. Mano Brown diz que “até do lixão nasce flor”. Você acha possível criar essas peças e cenografias a partir de materiais que, num primeiro olhar, poderiam ter sido descartados?

Sim, eu não apenas acho possível criar como acredito que também seja um preceito de divisão pra um mundo em que a gente vê cada vez mais a natureza dando sinais de que a gente precisa ter essa consciência na escolha. Amplificar visões de novas possibilidades de materiais e resíduos visando a sustentabilidade é de extrema importância. E ver beleza no que é visto como lixo, dar novos significados, dar importância a materiais não vistos como belos e possíveis muito me interessa. Há alguns anos, eu utilizo materiais que vão pro lixo e os transformo em arte, caixas de papelão, jornal, plástico, são matérias-primas muito interessantes. Já criei alguns cenários que foram muito especiais nesse sentido. Uma vez, no lançamento de um disco do cantor Chico Chico, me veio a ideia de criar um baobá de cinco metros de altura, todo feito de caixas de papelão. Pensando na trajetória dele, pensando na Cássia Eller e pensando nessa árvore frondosa da arte. E foi muito interessante, ficou muito bonito, aquela árvore toda feita de folhas, caixas de papelão transformadas em folhas de uma árvore frondosa. Outro cenário, que eu criei em 2023 pro cantor Geraldo Azevedo, era um arraial, me veio à cabeça uma obra do Matisse que se chama A dança, que são cinco pessoas dançando em roda. Como era um arraial, e eu fiquei pensando numa ciranda, me vieram vários artistas à cabeça. Eu transformei caixas de papelão e jornal em cinco pessoas de mais ou menos dois metros, que ficavam em cima do Geraldo e da banda, com o mesmo bailado da obra do Matisse, e essas pessoas vestidas com roupas juninas. E isso me despertou um lugar de muita consciência pelos materiais que eu estava usando, dando novas possibilidades a eles. A natureza agradece. E eu me lembro muito de um desfile, Do luxo ao lixo, do Joãosinho Trinta [oficialmente Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia]. O carnaval é uma fonte grande de pesquisa pra mim, nele a gente vê o encantamento que se dá através de muitos materiais que são descartáveis também.

Fabio de Souza por Ana Alexadrino.
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Nada é perfeito nem mesmo o céu, 2021.
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Habitar o mundo pelas bordas: Yasmin Guimarães

por Lucas Albuquerque
Fotos de Julia Thompson

Sob as inofensivas camadas de cor e traçados que compõem as paisagens produzidas pela arte ocidental, complexos emaranhados de construções simbólicas foram construídos e atualizados ao longo do tempo. Opondo-se à indomável e imponente desmesura da natureza, o gênero paisagem promove a domesticação do natural mediante sua ordenação. O enquadramento da imagem, por vezes bucólica, romântica ou mesmo voraz, pressupõe, no extraquadro, a continuação de uma beleza sublime, tornada tangível ao humano por meio de um enunciado cultural. Seja pela perspectiva renascentista, pela construção simbólica bizantina ou pela transposição fugaz modernista, tal vontade de representação refaz, pela ordem do sensível, um desejo de controle do Ocidente típico ao antropoceno. Ergue para si a máxima: “tudo fazer ver para dominar”.

Sem título, 2022.
Sem título, 2022.

Promovendo a perturbação de tais constructos visuais, a artista Yasmin Guimarães constrói paisagens que ora flutuam por horizontes instáveis e movediços, ora fazem pouco caso de uma verossimilhança com o natural. Mais interessada no aspecto fenomenológico da impressão retiniana da cor em um relevo imaginário, Yasmin faz da dureza da luz tropical o tônus de sua pintura. Refletindo sobre as cores que banham os trópicos em que vive e por onde habitam suas primeiras lembranças de paisagem, a paulistana substitui os tons alaranjados e quentes por uma paleta de cores fria, e assim estabelece com o espectador um encontro honesto, indispensável para a sua obra. Indispensável, sim, pois qualquer imposição de uma outra imagem referencial que se sobreponha às suas telas é um contratempo. É preciso aceitar o tom despretensioso, quase inocente, da cena para se deixar conduzir pela leveza de suas pinceladas.

Vento, 2021.

Das maneiras com as quais Yasmin tece novos horizontes, há três procedimentos que eu gostaria de explorar neste ensaio crítico, pois não denotam necessariamente fases de sua jovem produção pictórica ou escolhas conscientes, mas modos de encarar o vazio que podem ou não coexistir em uma mesma obra. Na primeira delas, a cena se constrói por camadas de tintas que adensam a tela em gradações que variam sutilmente entre tons. Formam uma espécie de nevoeiro cujos movimentos de cor circulam pela superfície em ritmos por vezes serenos (quando funcionam como fundo ou como objeto de reflexão), por vezes enérgicos (ao serem delimitados por bordas acachapantes). Nessas ações, a artista contempla o horizonte pelo acúmulo de sensações retinianas que apreendem, como metonímia, a parte pelo todo — a impressão de um conjunto de cores em tênue variação para aludir à elaboração de uma cena. Cena-paisagem, decerto, mas apenas ancorada à vaga lembrança subjetiva daquele que a vê, pois nenhuma das telas carrega, nem em seu título, nem nas anedotas de sua criadora, a referência a um externo.

Sem título, 2024.

Em outro gesto, Yasmin representa uma divagação poética das qualidades imateriais da natureza por meio de um trabalho de subtração. Nessas pinturas, um certo pontilhismo solto é utilizado, de modo a criar rastros de cor que ora se concentram em partes da cena, ora deslizam pela superfície, podendo ou não extrapolar os limites da tela. Em pontos de cor, raramente sobrepostos de maneira direta, a artista ambiciona representar o vento, a fina camada de cor que recobre as bordas de montanhas e vales, gotículas de chuva ou até formações de nuvens — estas últimas feitas em gestos rápidos de tinta molhada ou em fricções do pincel encharcado em óleo quase seco. A coreografia das partículas varre a pintura de forma enérgica, condensando fenômenos naturais complexos em zonas de cor que fluem pelo espaço pictórico. Dão a ver o fundo cru do suporte, geralmente em linho de cores variáveis, sobre o qual Yasmin propõe uma interação entre a fibra vegetal e os motivos de suas cenas.

Beira do mar, 2022.

Há, ainda, um terceiro procedimento da artista, que, não contente com a dureza do linho, suspende suas pinceladas em delicadas tramas de voil que exibem o seu próprio chassi. Aqui, a construção simbólica da cena como paisagem se desconstrói em alegres e rápidos traços de tons pastel, desvelando àquele que vê o intrínseco artifício da ilusão. Curiosa dicotomia, já que faz desmantelar a qualidade ilusória oriunda de uma tradição pictórica realista comum ao gênero de paisagem, tornando-o opaco como materialidade e enunciado cultural mediante o uso de um anteparo translúcido que revela a sua estrutura. É em um gesto tão sutil e repleto de beleza que, com ele, Yasmin atesta não se atrelar a uma herança ocidental que buscava o domínio do seu entorno pela apreensão visual do mundo, mas em sua experiência estética sensível. Tão modesto quanto espirituoso, o óleo se despe de sua seriedade e flui como o vento, embarcando na onda de sua criadora.

Sem título, 2024.

Nesses gestos, a artista revela, pouco a pouco, que seu interesse pela matéria das coisas que envolvem o mundo é menor do que pelas suas lacunas e bordas. Atraída pelo vazio, suas elaborações pictóricas parecem mais afeitas à construção da natureza sob um cânone visual oriental que, sob a influência do taoísmo, reflete sobre o entorno com a representação da vitalidade das formas e seu movimento rítmico demarcado pelo contorno do pincel, na busca por abstrações que sugiram o extrafísico. A criação surge como possibilidade de revelar o vazio. Contrasta, assim, com os ideais ocidentais, cuja perseguição por uma forma plástica orgânica ainda retém vestígios em nossa maneira de vivenciar o mundo, tanto na pintura como no regime de imagens técnicas, em um completo horror ao vazio. Em sua prática, Yasmin transforma a árdua tarefa diante do vazio em regozijo vital. Amiúde, suas composições mais espirituosas são aquelas em que os lampejos de tinta encontram campo livre para navegar, deleitando-se na fluidez eterna que revolve a placidez.

— Texto originalmente publicado para a exposição da artista na galeria Quadra.

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On Earth We’re Briefly Gorgeous: Douglas de Souza

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Far above the Moon
The planet Earth is blue
And there’s nothing I can do

— David Bowie

Na ocasião da morte de David Bowie, um artigo publicado na revista Frieze direcionava ao público a seguinte pergunta: “Você se lembra de quando começou a ler?”. Tal indagação, no entanto, não se referia aos processos de pura alfabetização ou letramento: “Quando você começou a ler o mundo ao seu redor? Quando um objeto ganhou determinada forma?”. O texto, inebriado de certo ethos adolescente, questiona ainda em que momentos decidimos nos vestir de determinada maneira ou quando começamos a entender a importância de emoções evocadas pelo timbre de determinada canção, que cala fundo e evoca memórias?

No artigo Hang on to Yourself, o crítico estadunidense Dan Fox dá pistas de uma função alternativa para a cultura pop no subtítulo de seu texto: David Bowie as art school. Nas suas especulações, Fox continua a imaginar que tal função, que poderia ter sido cumprida por um amigo, por um professor ou pelo irmão mais velho, que lhe ensinou, quando adolescente, como farejar novas ideias. Ou então, como exemplifica o autor, tal função pode ter sido cumprida por uma nota enigmática impressa na contracapa de um álbum de David Bowie. Numa interpretação pessoal, especulo que o autor esteja se lembrando de certo sentimento inaugural de identificação e pertencimento que sentimos ao ouvir a rebeldia alheia: uma ideia de exorbitância, de não caber no mundo. Se tal sentimento de desadequação é comum às adolescências, não se trata de exagero imaginar que elas se revelam por mais tempo nas biografias de pessoas que não se adequam à cisheteronormatividade e aos paradigmas do patriarcado.

I Am Not The Man You Think I Am, título escolhido por Douglas de Souza para sua mostra na galeria Cavalo, bebe da nutritiva fonte do pop — da indústria cultural de massa ao underground e suas subculturas — para citar uma determinada canção do grupo The Smiths: Pretty Girls Make Graves. Na expressão idiomática da língua inglesa que dá título à música e que remonta ao século XIX, somos alertados dos possíveis perigos que residem no belo. Ela é geralmente interpretada como uma observação irônica sobre como a beleza pode ser uma maldição. Na exposição, no entanto, não somos chamados pelo título da canção apenas — pelo perigo da beleza —, mas por um trecho que nos lembra da falência de ideias pré-concebidas. Somos alertados pelo artista que as imagens que se revelam à primeira mirada merecem de nós, espectadores, uma demora, quiçá uma dupla leitura. Em outras ocasiões, o trabalho do artista já foi descrito e interpretado à luz de uma perspectiva queer — com um feliz recurso poético, o texto trazia a ideia de um “verniz bicha” presente nas obras de Douglas de Souza. Para todos os interessados em decodificar por quais desventuras vemos tais objetos representados nas telas, será preciso debruçarmo-nos sobre seus símbolos e signos.

Se lidas, tais informações jogam justamente com uma ideia de engano: o cavalo, o cisne, o veado e o galo. Não se tratam de animais que vemos representados nas telas, mas imagens enquanto ideias, códigos culturais. Entre bibelôs e insígnias da indústria automobilística, sobram objetos de fetiche. Do alto das estantes, guardados com zelo, ou na ponta da lataria de nossas máquinas de velocidade, tais imagens expõem seus poderes simbólicos — e desconfio que é do lidar com esse arcabouço de imagens que surge o desejo do artista em exercitar a sua representação. As imagens revelam-se sedutoras, mas não só: repletas de brilho, além de serem a oportunidade para o exercício técnico de representação da luz que se revela na superfície de um objeto, também é a oportunidade de mostrar, na superfície desses veadinhos, garanhões, cocks e cisnes de pescoços fálicos com gestos graciosos, todas as possibilidades de mundo refletidas. “O principal fato do século XX é o conceito de possibilidade ilimitada.” J. G Ballard, autor dessa frase, escreveu, nos anos 1970, uma obra paradigmática, Crash!, romance que pretendia trazer carros numa simbiose pornográfica aos corpos humanos. “As opções multiplicam-se à nossa volta, vivemos num mundo quase infantil onde qualquer procura, qualquer possibilidade, seja de estilos de vida, viagens, papéis sexuais e identidades, pode ser satisfeita instantaneamente.”

Douglas de Souza mescla, no seu imaginário, uma estética da cultura de massa com cores efervescentes, quentes, pulsantes, exuberantes, sedutoras com cinzas metálicos e refletivos, cromados brilhosos que, por vezes, contrastam com tons ligados culturalmente à doçura, aos estereótipos de um feminino domesticado por tons pastel, que fogem às tonalidades vibrantes, encantados por uma esfera da infantilização. É em tal jogo de justaposições e contrastes que os Raging Stallions do pornô encontram os laços de fita do barroco; que o cisne de Leda é representado sobre a casca protetora de um objeto como o capacete de motociclista; que a superfície de proteção torna-se suporte para o adorno, o artifício, a bichice; que o animal torna-se ponta de lança, signo de potência, estereótipo de masculinidade, medida de força. No vocabulário estético de Douglas de Souza, os bibelôs e as insígnias de escuderia parecem ser profanados igualmente, submetidos à categoria de bric-à-brac de uma sociedade encharcada no desejo de consumir e construir identificações, duplos e pertencimentos. O pintor parece utilizar, com certa ironia, sua capacidade técnica de reproduzir imagens do mundo, como se ousasse construir com tintas de encantamento realidades mais ásperas. Se é bem verdade que tal metafórico verniz bicha está sobre as imagens que pinta, é preciso que atentemos para o fato de que ele não faz isso apenas no entorno de imagens de um pretenso vocabulário queer — ele toma para si, para suas tintas e seu pincel, a possibilidade de retomar motivos da pintura tradicional. Entre a natureza morta e o still life, sustenta-se a tentativa sempre falha — e, justamente por isso, subversiva — de estagnar o tempo das coisas e fazê-las imagem. Como diz o título deste texto, briefly gorgeous.

* Texto originalmente publicado para a exposição do artista na galeria Cavalo.

** Título em livre apropriação do romance homônimo de Ocean Vuong.

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por Gustavo Freixeda

Fotos de Gleeson Paulino

No calor de algumas das mais animadas ruas e vielas do Rio de Janeiro, entre batuques e sorrisos sinceros, desfila uma tradição tão antiga quanto as montanhas que cercam a cidade maravilhosa. Provavelmente você já ouviu falar dos bate-bolas; mas você sabe, de fato, quem são? Esses guardiões da cultura popular carioca emergem das sombras como personagens míticos, vestidos com suas indumentárias coloridas e máscaras exuberantes, para celebrar o carnaval e manter viva uma história que se entrelaça com a própria essência do espírito carioca.

Remontando às raízes do carnaval do Rio, os bate-bolas são herdeiros de uma história rica e multifacetada — e aqui, no meio de uma longa linha do tempo e de um sem-fim de máscaras, o termo “multifacetado” ganha a beleza da literalidade. Originários das camadas populares e suburbanas, eles surgiram como uma forma de expressão cultural e social, carregando consigo o peso da resistência e da identidade de uma cidade em constante transformação. Aconteça o que acontecer, os bate-bolas estarão de volta quando as épocas de folia chegarem, e, como qualquer um que já presenciou essa magia carnavalesca pode provar, capturariam a atenção de multidões, fosse esse o objetivo.

Mas, não, os bate-bolas não acontecem para multidões verem. Se elas aparecerem para vê-los, tudo bem, mas não é isso que move esses grupos. Eles estão mais interessados em dar vida às entranhas da cidade. Cada encontro é uma viagem ao coração da cultura carioca, uma celebração da diversidade e da criatividade que permeiam as ruas estreitas e os becos escondidos.

Quem são?

A pesquisadora Rafaela Pinah, além de ajudar com a direção criativa de muitas turmas de bate-bola, também estuda os grupos desde 2016. Para ela, o fator cultural e financeiro se misturam para criar um panorama social para lá de positivo: “São economias criativas nos bairros, no subúrbio”, conta. “Elas são extremamente interessantes nessa dinâmica de fator financeiro. Como é que gera e circula o dinheiro ali, nesse movimento inteiro, o ano inteiro? Hoje essas pessoas podem vislumbrar o lugar dessa potência cultural, de agentes culturais locais, trabalhando inteiramente para a cultura do governo do Estado do Rio de Janeiro, criando e trocando com as turmas, trazendo um trabalho psíquico e pedagógico também para essas crianças.”

Com barulho, fantasias trabalhadas que demandam meses de preparação e organizados em grupos que podem chegar a duzentas pessoas, os foliões conhecidos como clóvis — outro nome para os bate-bolas — fazem parte de uma tradição que existe há décadas nas ruas do subúrbio carioca.

Quando o carnaval chega, uma coisa é certa: eles estão vestidos com suas máscaras, luvas, talvez um meião, talvez algo que nem seja facilmente identificado, e sempre estão ou empunhando bexigas ou sombrinhas. A prática é antiga, com registros do início do século XX, mas isso não quer dizer que as portas estejam fechadas para a modernidade: os temas das fantasias se inspiram em personagens da cultura pop, além de a confecção dos trajes utilizar alta tecnologia nas estamparias e os hinos serem gravados em estúdios.

“Temos uma dualidade nesse lugar do contemporâneo e da tecnologia”, reflete Rafaela. “É uma roupa cara de ser feita, de ser produzida. Atualmente, há grupos de jovens com mais recursos e criatividade para criar suas vestes, enquanto outros, com menos recursos, também conseguem criar peças suntuosas usando materiais antigos. Então, você vê essa dinâmica, as turmas entrando também para as redes sociais, a fotografia, a documentação, a capa, o catálogo. O festejo também é super importante para isso!”

Em outro momento “sinal dos tempos”, hoje em dia, portais da internet cobrem alguns dos bate-bolas mais famosos, o que seria inimaginável tempos atrás, quando a imprensa (e todo mundo) não dava a mínima para as festas que ocorriam pelas regiões suburbanas da cidade.

Há até histórias que dão um aceno positivo para o novo momento, comprovando que a novidade não passa a borracha no que já foi, mas tem o poder de renová-lo e até melhorá-lo: “Vou falar de uma figura extremamente importante e emblemática neste lugar, aqui em Realengo, que é o seu Hélio, que era a pessoa que fotografava, revelava na quarta-feira de cinzas e colocava isso num painel. Hoje não, hoje a gente tem uma dinâmica muito mais rápida das fotografias e das imagens”. A instantaneidade trabalha a favor da festa proporcionada pelos bate-bolas.

De um jeito ou de outro, as pessoas dão continuidade a essa tradição. Mais do que simples performances carnavalescas, nesses festejos há um legado precioso que merece ser preservado e valorizado, marcados por tradições orais, ritmos ancestrais e histórias contadas ao som dos tambores.

Para compreender a importância e a profundidade dos bate-bolas, é necessário adentrar nos recônditos das comunidades, onde cada grupo tem sua própria história, seus próprios heróis e suas próprias lendas.

De onde vêm?

Os trajes que mesclam as cores vibrantes de sua terra têm resquícios de uma antiguidade distante. As hipóteses sugerem que suas vestimentas são uma metamorfose de fantasias europeias, um eco dos mitos celtas que atravessaram oceanos para encontrar solo brasileiro. E no nome “clóvis”, uma reverberação estrangeira ecoa a essência de um palhaço, um arquétipo universal entrelaçado à alma desses foliões. Ou seja, na essência, essa celebração contém um testemunho da alquimia cultural, da capacidade humana de transformar o estrangeiro em próprio, o desconhecido em familiar.

No início do século XX, os matadouros, como o de Santa Cruz, teceram o cenário para os primeiros passos dessa dança. Ali, onde o couro de bois e porcos era transformado em bexigas, nasceu o símbolo sagrado dos bate-bolas. E em meio à fumaça dos zepelins e à presença efêmera dos militares alemães que cruzavam os céus, ecoaram os primeiros acordes dessa celebração.

Como as águas que fluem e se mesclam nos rios que cortam nossa terra, as tradições estrangeiras encontraram aqui solo fértil para florescer de forma única. O que começou como mitos celtas e brincadeiras de rua europeias, ao se misturarem com a essência vibrante e criativa do povo brasileiro, se transmutou em algo novo, algo que é nosso, e só nosso. Nesse processo de metamorfose, os bate-bolas se tornaram um lembrete de que a identidade não é estática, mas sim fluida, moldada pelas correntes culturais que nos cercam. E, ao abraçarem essas influências estrangeiras e tecê-las em sua própria tapeçaria cultural, os bate-bolas nos convidam a refletir sobre a natureza dinâmica da identidade nacional e sobre a riqueza que advém do encontro e da fusão de diferentes culturas.

Contudo, foram relegados às sombras por décadas, alvos de olhares desconfiados e da mão pesada da repressão, mas sua resiliência nunca vacilou. Diante da adversidade, ergueram-se, desafiaram as trevas e mantiveram viva a chama da tradição que pulsa no ritmo de seus passos.

Com sua ampla vivência pessoal e acadêmica, Rafaela percebe como as coisas mudaram de panorama: “Hoje a gente vê um prefeito da cidade do Rio de Janeiro muito mais engajado com as culturas populares. E uma dessas é a cultura popular dos bate-bolas. Os bate-bolas estão em clipes da Anitta. Nomes como Poze do Rodo e movimentos de trap que surgem e que emergem das favelas e de periferias e subúrbios cariocas colocam o bate-bola em primeiro lugar. Os bate-bolas estão presentes nas instituições acadêmicas, em grupos de estudos nas faculdades, e isso é muito importante, quando a gente vê jovens negros e periféricos acessando um lugar acadêmico e falando da cultura dos bate-bolas. Vejo um caminho muito incrível, um crescente nesse lugar que é fazer a cultura dos bate-bolas. A gente muda a dinâmica de organização, muito mais comprometida, e hoje temos o poder público também, incentivando financeiramente e com espaços para que a festa aconteça”.

Para onde vão?

Os bate-bolas permanecem como uma das expressões mais vibrantes e autênticas da cultura carioca. Sua presença nas ruas, além de um espetáculo visual, é uma manifestação de identidade e resistência, uma prova viva de que, apesar das transformações e dos desafios, as tradições mais profundas e enraizadas continuam a reverberar. Por essas e outras, os bate-bolas se espalharam mais pela cidade, e a quantidade de foliões só cresceu nos últimos anos. O estigma de violência e perigo que acompanhava as fantasias deu lugar ao espírito de celebração das turmas, que apenas buscam brincar o carnaval e espalhar alegria.

O futuro parece brilhante.

“Eu imagino, no futuro, o mesmo caminho das escolas de samba no Rio de Janeiro. O sambódromo bate-bolas, o desfile, uma liga registrada no Rio de Janeiro que vai classificar e entregar prêmios e doações financeiras, a televisão e a imprensa vindo catalogar e falar da importância de popularizar o bate-bola. Tenho certeza de que será num futuro muito próximo.”

Preservar os bate-bolas, portanto, não é apenas uma questão de manter viva uma forma de entretenimento, mas sim de reconhecer e valorizar o papel fundamental que eles desempenham na construção da identidade cultural do Rio de Janeiro. É garantir que as futuras gerações possam continuar a dançar ao som dos tambores e a celebrar a riqueza e a diversidade da cultura carioca. E é também respeitar a pluralidade dessa tradição, compreendendo que ela carrega consigo uma carga histórica e afetiva que se mistura harmoniosamente com a identidade dos bate-bolas, enriquecendo ainda mais a tapeçaria cultural da cidade.

Nos labirintos das comunidades cariocas, tece-se um elo mágico entre o carnaval de rua e os imponentes desfiles das escolas de samba. Clóvis e bate-bolas merecem ser preservados.

Patrimônio imaterial (e ponto final)

Em 2012, a prefeitura do Rio de Janeiro declarou os bate-bolas patrimônio cultural carioca de natureza imaterial. O decreto levou em consideração a importância desses grupos como personagens típicos do carnaval que refletem a forma alegre e irreverente de a população suburbana festejar. A decisão foi histórica e emblemática. Ao serem declarados patrimônio, os bate-bolas alcançaram um novo patamar de reconhecimento e proteção. Não estamos mais falando de meros personagens do carnaval carioca: de 2012 em diante, viraram oficialmente tesouros culturais a serem preservados e valorizados por gerações futuras.

Os porquês de terem recebido a honraria residem na sua profunda ligação com a história e a identidade da cidade. Ao longo dos séculos, os bate-bolas têm sido testemunhas e protagonistas de inúmeras transformações e eventos que moldaram o destino do Rio de Janeiro. Desde os tempos coloniais até os dias atuais, eles estiveram presentes, fazendo jus ao ânimo do carnaval brasileiro e mantendo viva a chama da tradição.

Os bate-bolas, no fim, personificam valores como solidariedade, criatividade e resiliência, que são essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Tornar-se parte integrante do legado cultural do Rio de Janeiro não significa apenas garantir a continuidade das festividades carnavalescas, mas também promover ações de salvaguarda e valorização. Um viva ao fortalecimento do vínculo entre passado, presente e futuro.

Enquanto os tambores ecoam, as máscaras ganham vida, contando histórias esquecidas e sonhos adormecidos. Cada passo é um lembrete da força do povo carioca, e as máscaras transcendem sua função primária de adorno, transformando-se em portais para um mundo mágico e memorial. À medida que o ritmo acelera, as máscaras se fundem em uma só, revelando a alma de uma cidade que pulsa com a energia da vida.

Assim, eles seguem seu caminho. Onde quer que haja batuques e risos, lá estarão os eternos bate-bolas do Rio de Janeiro. Materialmente e imaterialmente, estarão vibrando e pulando um carnaval que nunca há de acabar.

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Por uma vida mais ordinária

#13 Qual é o seu legado? Cultura

por Helena Cunha Di Ciero Conteúdo exclusivo para assinantes

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#49SonhoMúsica

Conversa Polivox: Marissol Mwaba

por Sara Hana

Marissol Mwaba é uma artista brasileira de origem congolesa. Cantora, compositora, multi-instrumentista e estudante de astrofísica, tem livro lançado e vem trilhando uma jornada intergaláctica.

Você estudou astrofísica na Universidade Federal de Sergipe e depois ganhou uma bolsa para estudar física na Sorbonne, em Paris. Paralelamente a isso, estudava no observatório da capital francesa. Tem até um artigo publicado na revista Astronomy & Astrophysics. Como foi isso?

Mandei e-mail pra uma professora, ela me chamou pra conversar, e falei que queria trabalhar com a parte de galáxia, que eu gostei muito dela e tal. E ela já conhecia o Brasil. Aí ela falou assim: “no período que você pode estagiar, eu vou estar de férias, então só vou ter uma semana pra te explicar como fazer, e é um trabalho muito complicado, você provavelmente não vai conseguir terminar, porque é um volume enorme de coisas, eu não sei até que ponto serve você fazer esse estágio”. Eu falei: “mesmo assim, eu quero”. Aí eu fui lá pra fazer a catalogação de galáxias. Ela estava estudando um aglomerado de galáxias chamado Aglomerado de Ofiúco. Ele é interessante, porque é muito grande e muito velho. Então, saber sobre ele significa saber como as galáxias interagem. Só que tem um problema: ele fica num lugar que a gente, observando aqui da Terra, tem dificuldade de ver. Estou tentando simplificar.

Tudo bem, o que eu não entender, te falo.

A Via Láctea tem muitas estrelas, então alguns lugares pra onde a gente olha, tudo aquilo que está aqui vai fazer um ruído nessa imagem. É como tentar ver o pôr do sol em São Paulo com um monte de prédio na frente. Esse aglomerado está numa posição que é muito difícil de ver. Então o que ela estava fazendo junto com outros pesquisadores? Estavam tentando resolver essa questão da visibilidade, só que por mais “prédios” que a gente conseguisse eliminar com a tecnologia, ainda assim precisava de alguém pra pegar galáxia por galáxia e fazer uma limpeza dessa imagem e entender também se aquilo era realmente uma galáxia ou se aquilo era uma estrela da Via Láctea. Eu cataloguei mais de duas mil e quinhentas galáxias. Ela ficou chocada. E eu ainda terminei antes dos dois meses.

E ela achando que você nem ia dar conta, não é?

M — Ela achou que eu não ia nem chegar na metade. Aí ela falou assim: “olha, eu vou ter que te colocar como coautora do artigo, porque o catálogo é seu”. E assim esse artigo saiu na revista Astronomy & Astrophysics.

Que experiência incrível!

Agora, voltando à vida pessoal, pra poder ter essa perspectiva de fazer o curso no observatório de novo, e dessa vez conseguir me formar, e isso coincidir com a minha formação na física, aí eu vou ter um diploma na astronomia e um diploma na física… Enfim, ter um outro lugar de construção um pouco mais firmado, porque é muito difícil trabalhar com música. E eu sinto que o trabalho na arte é muito mais sobre como você para de depender da arte do que sobre você viver de arte, entende? Eu tenho muito essa sensação. Eu fico analisando carreiras, e todas as carreiras longevas e bem-sucedidas, no sentido de felicidade, estabilidade, prática do artista, qualidade de vida… Essas carreiras são sempre carreiras que não têm a dependência contínua do que o artista está fazendo na arte, tem outras fontes que se criam a partir daquele lugar. Porque senão a gente não consegue, não dá, não tem como manter uma coisa assim, que é passageiro. A cultura se transforma. Quantas pessoas eram relevantes em algum momento e agora não são mais? E isso acontece em todas as escalas. O legado fica, a vida continua, a cena se transforma. E se a gente quer continuar tendo condições de deixar o nosso legado, continuar criando e tendo felicidade em fazer isso, a gente precisa ter a renda vindo de um lugar que nos possibilite ter alegria de viver, porque senão a gente não vai ter.

Onde e como acontece a infância da Marisol? 

A infância… Nossa, lembro de muita coisa. Eu lembro de ter uma imaginação muito fértil, viver praticamente um mundo dentro da minha cabeça. De ser musical desde pequena, porque a primeira música que eu fiz, eu tinha seis anos. Desde então, compositora. Eu aprendi a andar, a falar e a cantar, e a criar, veio junto com as coisas básicas que eu aprendi. Quando perguntavam o que eu ia ser quando crescer, eu não falava cantora, mas isso era uma coisa que parecia que fazia parte de mim. Também sempre muito móvel, sempre me mudei bastante, então a infância da Marissol aconteceu em todo lugar.

Você morou em muitos lugares.

É, em muitos lugares, então eu estava sempre me deparando com uma nova realidade e, ao mesmo tempo, também sempre me despedindo de alguma realidade, amigos e tudo. Nisso, eu tive que encontrar um lar dentro de mim já muito cedo. E acho que foi assim que eu aprendi a guardar as coisas na escrita. A preciosidade de guardar os momentos na escrita começa muito nova pra mim, desde pequenininha. Eu lembro que eu tinha um caderninho onde eu ficava rabiscando, como se eu estivesse escrevendo muitas coisas. Depois foram se tornando cadernos onde eu realmente escrevia as coisas da minha vida. E acho que tem a ver com isso, com encontrar refúgio na minha companhia, porque eu tenho muitos irmãos, mas eu sou caçula, então todo mundo foi crescendo e indo embora, e eu fiquei em casa. De repente, eu não tinha mais meus irmãos ali. Na memória de infância, às vezes eu vejo mais os meus irmãos do que os meus pais, porque eles eram muito presentes, e, na nossa cultura, o irmão mais velho tem esse lugar de cuidado e de orientação do irmão mais novo, e até de autoridade sobre o irmão mais novo. Eu nunca morei mais de cinco anos numa cidade, então é isso, sempre muita itinerância. As músicas sempre tiveram um poder muito grande sobre mim. Em muitos momentos, eu considero que a minha vida foi preservada pela música. E como pessoa que cria, eu sempre sonhei um dia ter a minha música disponível pra felicidade e bem-estar ou acolhimento de alguém, da mesma forma que eu tinha tantas músicas disponíveis pra minha felicidade, pro meu bem-estar, pra um abraço. Então esse é um grande sonho. Assim, poder pegar na mão de quem eu nem conheço. Acho que é isso. A minha mãe sempre falava assim: “se veio uma música, para tudo e faz a música”. Ela me deixava faltar aula, deixava me atrasar.

Seu primeiro disco foi lançado em 2015?

Foi, lancei em 2015. Eu tenho muita sorte. Sabe, essa coisa de ser uma pessoa preta, e no Brasil ainda, só que ainda africana, e brasileira, ainda mulher… A fila de coisas que me botam pra trás é bem grande.

É imensa.

Não sou herdeira de nada, não tenho um tio chato pra onde ir. Se estou no Brasil, é nós ali, meus pais e meus irmãos. Então o legado da gente, e nosso amparo, vem muito do presente. Eu tive a sorte de ter dois irmãos mais velhos também na música, e isso me catapultou de um jeito que as pessoas brancas têm por outras vias, pela via do dinheiro, pela via dos contatos, pela via da própria abertura que já tem. Aí teve coisas que eu não precisei passar, porque meus irmãos passaram. Pra fazer a primeira apresentação, as primeiras experiências artísticas foram vivenciadas muito junto com meus irmãos. A preparação para o primeiro álbum foi um período que eu estava muito atribulada com a universidade. Estava em projeto na astrofísica e estava prestes a sair pro intercâmbio, então eu nem tinha condições. E eu era cantora no coro, bolsista no coro de música erudita da Universidade Federal de Sergipe. Tinha acabado de passar por um processo e estava com um problema vocal, e, ao mesmo tempo que estava com problema vocal, eu não podia sair, porque eu precisava da bolsa. Eu tinha sangramento vocal em todos os ensaios. E eu gravei assim. O sabor de muitas faixas do Luz-A-zul é de sangue. A gravação desse álbum foi um milagre da voz. E a partir desse problema que eu comecei mesmo a fazer aula de canto pra canto erudito, comecei a fazer tratamento com um grupo de fonoaudiólogos da universidade, consegui esse tratamento gratuito, mas foi bem desafiador. O desafio que eu tive com esse álbum foi de conseguir cantar e poder manejar com os afazeres que eu tinha pra intercâmbio e na universidade. E como foi importante poder ter ali o François [Muleka] cuidando de tudo. O trabalho do álbum foi o primeiro mais profundo que eu fiz com Alice Assal, que é diretora de arte, e que trabalha comigo até hoje. Ela traz uma coisa interessante, que é a tradução da história da minha música e trajetória através da imagem.

Interessante mesmo, porque você consegue ter uma cartografia da própria jornada.

Total, bem isso mesmo. Ver essa história sendo contada assim é como se eu tivesse registro de muita coisa da minha trajetória. Bom, o Luz-A-zul foi gravado desse jeito, então o meu compromisso era manejar as coisas e conseguir gravar, porque já tinha o Fran cuidando de tudo. Aí eu vim pra França ainda gravando o álbum, uma das faixas eu tive que gravar aqui, e fiz o lançamento aqui também. Depois, quando voltei pro Brasil, fiz um show de lançamento em Floripa. Mas é isso, primeiro álbum é aquela coisa, são músicas que você escolheu de um monte de músicas da vida inteira. Foi bem difícil escolher quais eram as músicas, uma até entrou de última hora, porque eu fiz na semana. Falei: “nossa, quero que ela entre”, aí gravei, e como eu componho muito, quando eu lancei esse álbum, já estava com outro pronto. Eu só fiz o show de lançamento. Depois eu nunca mais fiz esse show.

E a escola de música Mwaba Canto e Expressão, quando é criada?

A escola nasceu em Floripa, no ano de 2018, da necessidade de sobrevivência. Acho que as coisas que eu amo, elas vão entrando na minha vida e fazendo parte de todas as coisas juntas. Astrofísica faz parte da minha música, eu não consigo ver minha trajetória na música sem a minha trajetória na astrofísica. E vice-versa também, não ia achar a astrofísica tão bonita e ter saco pra toda aquela matemática se não fosse a música. Depois, futuramente, comecei a achar bonito também o foco em matemática. Acho que a minha poesia me permite ter esse olhar poético pra ciência, ao mesmo tempo que a ciência me permite ter um olhar físico, um olhar existencial na música também. A dança também entra nesse lugar. Eu faço dança do ventre desde 2013. É uma coisa que me deu sempre prazer. Quando voltei pro Brasil, eu não tinha mais como fazer dança do ventre. Eu não tinha mais como fazer muita coisa, estava sem dinheiro, estava doente. Aí eu conheci a Lídia Pereira, que é uma grande amiga, e ela viu como eu estava. Ela falou “cara, vem dançar” e me chamou pra fazer aula com ela. Então eu fazia aula, ela me carregava pra todas as aulas que ela dava, às vezes eu até ficava na casa dela, dormia na casa dela, ia pra cima e pra baixo, e ela foi a minha primeira professora negra e uma das poucas pessoas negras da dança do ventre. Hoje em dia, a gente vê até mais, mas antes não tinha referência negra nenhuma. Era muito foda ver ela dançando, porque, na dança do ventre, tem muito da moda que dita ali também. Na época do liso, era aquela coisa, joga o cabelo, cabelo liso. Então ter ela ali foi incrível. E ela me adotou mesmo, e nisso a gente também fez uma amizade muito bonita. Hoje ela é tipo uma irmã pra mim, e também trabalha comigo na produção. Aí ela um dia falou pra mim: “por que você não dá aula de canto?” Eu falei: “nossa, será que eu posso dar aula de canto? Não sou capaz de dar aula de canto”. Ficava me sentindo assim, “não tenho capacidade de dar aula de canto”. Aí ela falou: “olha, eu comecei a dar aula de dança dando aula. Eu também não achava que ia conseguir, mas, quando eu comecei a dar aula, vi que conseguia”. Ela botou uma sementinha na minha cabeça a partir da dança. Aí veio pro Brasil uma cantora estadunidense chamada Jessica Cohen, e a gente fez amizade. Ela é muito legal, e ela teve estudo formal de música. Isso também me travava. A gente conversou. Ela ficou uns dias na minha casa, então a gente pode se conhecer bem mais e tal, até que, no final, ela falou isso, que eu tinha total capacidade pra dar aula de canto e que eu podia estudar e fazer isso. O fato dela ter falado me fez acreditar. Então eu comecei a estudar, e um tempo depois eu tomei coragem e divulguei as aulas. Eu pensei: seja o que Deus quiser. Aí comecei a dar aula. E foi muito bonito poder me conectar com outros corações artistas, em outros momentos, em outras intenções com a música, em outras realidades, e nisso fui identificando uma missão também nesse lugar de partilha. Então, aos poucos, foi se estruturando mais esse formato de escola em torno da ideia mesmo de ser um lugar onde a gente estuda a partir do que é ser um artista independente. Eu continuei estudando cada vez mais, hoje já tenho várias certificações em pedagogia vocal, pra poder atender meus estudantes. Fui estudar teoria musical, fui estudar coisas que eu precisava, da parte mais formal da música, pra ter cada vez mais capacidade de atender. Inclusive, comecei a atender também profissionais da música, que estavam com carreiras estruturadas. Então dar aula me puxa bastante pra parte do estudo, da formação, do aprimoramento. Mas dar aula também é uma coisa que me alimenta no lugar da inspiração. Porque sentir o frescor que tem a música e a arte no coração dos estudantes alimenta algo dentro de mim. É muito mais do que ficar convivendo com um monte de profissionais.

Recentemente você teve um lançamento muito especial. Conta um pouco como foi a produção de Frase única.

Sim. Essa obra é um milagre. É uma música que eu já cantava há muito tempo, uma música minha, que eu compus há bastante tempo, mas em 2023, participei das atividades da diversidade, foi a Maratona da Diversidade, e teve várias falas, palestras e mesas. E aí a professora Letícia Carolina fez uma fala.

Isso foi em São Paulo?

Foi em São Paulo. Ela é professora, doutora, negra, trans, enfim. Ela escreveu um livro e é ativista da diversidade. Eu estava passando por um momento de muitas dores, muitas questões, e ela falando sobre a sua conquista do doutorado. Na hora que ela foi falando, eu fui anotando no bloco de notas. Ela diz assim: “precisamos transmutar a dor pra ir além, mas o que me trouxe até aqui não foi a dor, foi o sonho, precisamos de inspiração pra sonhar”. Eu fiquei refletindo, e vejo também o tanto que o sonho já me moveu. Essa reflexão me fez ter certeza de que eu queria lançar Frase única, eu queria fazer uma versão bem simples, tipo voz e piano. Aí o Zé Manoel, que eu conheci, já ouvia falar muito dele, mas quando eu conheci fiquei muito encantada pela pessoa, e depois eu vi ele cantando e tocando em Salvador. E eu fiquei assim, tipo… Ele toca com uma sensibilidade muito grande, e eu sou muito admiradora das pessoas que se exibem sem perder a sensibilidade. Enfim. Uma vez, do nada, eu ouvi a voz do Chico [César] cantando o trecho “se encontrar, jamais deixarei”. Eu pensei: “poxa, nunca tive coragem de chamar o Chico pra nada”. Escuto ele desde muito pequena, desde os meus sete, oito anos, e aquela história toda, eu sempre falo que não sabia que ele era brasileiro, a gente ouvia pra caramba sem saber, e eu ficava lá, toda encantada

Como o Chico tem uma importância, como ele atravessa gerações com sua autenticidade e sensibilidade.

As palavras dele… Acho que é isso, ele é muito lúdico, as palavras que ele vai inventando e falando, e abre um portalzão de permissões. Quando eu tinha uns 14 anos eu fui pela primeira vez em um show dele, em Jequié, “meu Deus do céu, eu vi ao vivo Chico César!”. E aí, anos depois, ele me chamou pra gravar as vozes, junto com François, no álbum dele, O amor é um ato revolucionário. E aí já foi a realização de um grande sonho ver o Chico no estúdio. Ele me hospedou, ele apadrinhou a minha ida pra São Paulo. Eu fiquei muitas vezes na casa dele, muitas vezes ele viajava e deixava a chave comigo, e eu podia ficar lá, ficava à vontade. Mas claro que eu nunca ia ter coragem de pedir pra ele cantar uma coisa comigo, porque é reverência. E quando me veio a voz dele cantando, na intuição, eu pensei: preciso falar. Aí eu mandei a mensagem pra ele, mandei a música e ele topou. A gente teve muitas conversas. E eu sei que ele não faz nada que ele não queira, não faz só porque conhece essa pessoa, ele faz se ele está a fim de fazer. Então, pra mim, sabendo desse background também, foi muito importante. Nessa coisa de eu sempre ter um caderno, agora também o bloco de notas, no dia que ele respondeu falando que topava, eu escrevi no meu bloco de notas: “7 de junho de 2023. No dia de hoje, Chico César aceitou gravar uma composição minha comigo. Um milhão de exclamações. Estou radiante. Às 21h35h”. E ele falou que a música era belíssima, agradeceu por eu ter pensado nele. Cara, que pessoa. Nossa, fico emocionada só de falar. Aí eu convidei o Zé Manoel pra gravar com a gente o piano desse encontro, fechando o trio de possibilidades.

Trinca de ases.

É, trinca de ases.

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O fim do fim da História

por Rafael Kasper

1.

Berlim, 1917: em prisão militar, um búfalo deportado da Romênia como “espólio de guerra” move uma carroça com uniformes ensanguentados. Soldados estão mortos. Os uniformes, lavados e remendados, vestirão outros soldados que também morrerão na Grande Guerra. O búfalo, chicoteado pelo guarda (“ninguém tem pena de nós humanos”), olha para o nada com “olhos escuros” de um ser abusado. A prisioneira Rosa Luxemburgo vai às lágrimas. “Eram as lágrimas dele”, escreveu ela em carta a Sophie Liebknecht. Búfalo, uniformes sangrados, guardas violados e violentos eram o “panorama da guerra” aos olhos abertos, lacrimejados, de Rosa Luxemburgo.   

2.

Berlim, 2024: de manhã, abro os olhos, desbloqueio meu iPhone. Vejo imagens do cavalo Caramelo, cascos e quartelas brancas suportando o peso do costado por quase quatro dias, o dorso marrom na telha ilhada, a água densa acuando o bicho esgotado. No Caramelo, vejo mais que instinto de sobrevivência. Vejo mais que uma vítima da enchente de 24 no Rio Grande do Sul. Vejo o panorama do fim do fim da história.

3. 

Fim da História: lendas sobre Messias e Juízo Final falam em evento depois do qual a sociedade mudará essencialmente. Mesmo no mundo “desencantado” da ciência e da materialidade do presente, o tempo continuou a ser visto como portador de sentido por olhos que veem na História com H uma marcha inexorável. Como a semente que se completa na flor, a história se realizaria no seu fim em duplo sentido, finalidade e término. Sociedade sem classes, progresso técnico, paz perpétua: seja qual fosse o conteúdo, a história teria último capítulo.

4.

Berlim, 1933: agentes do destino racial prendem Hannah Arendt. Depois, refugiada em Nova York, a autora criticaria fatalismos que postulam “leis” históricas irresistíveis às quais humanos devem se adaptar. Saída do abismo dos 1940, Arendt escreveu: a história não é “processo com monopólio de universalidade e significação”. História é um monte de estórias vividas, vistas, lembradas, discutidas.

5.

Rosa Luxemburgo, presa por discutir o sistema no qual vivia, e Karl Liebknecht, único parlamentar a votar contra o orçamento de guerra, denunciaram a desmesura imperialista e ideias que convenciam trabalhadores alemães a matar trabalhadores franceses. Em 1915, trens com soldados não partiam mais sob acenos de noivas emocionadas. Igrejas viravam “estábulo de cavalos”.  Populações mendigavam. “O espetáculo acabou”, Luxemburgo disse. A sociedade burguesa, “pingando sujeira”, estava em “forma nua”, sem os vestidos da ordem, da ética, do direito etc. Dessa sociedade, Luxemburgo não esperava nada novo. Ela esperava dos trabalhadores, açoitados, que veriam na “experiência histórica” uma “professora”.

6.

Porto Alegre, 1991: sentado em frente à TV, torrada de presunto e Nescau nas mãos, assisto ao Pedro Bial, sentado também, parlamento russo às costas: “estou moído, minha cabeça e meu corpo estão exaustos, mas meus olhos não se cansam de ver a história”.

7.

Em 1919, Luxemburgo foi apunhalada, atirada no rio, não pela história, mas por milicianos Freikorps sob vista grossa da social-democracia. Kurt Tucholsky protestou contra a falta de protesto. Acusou a “velha dança” militar e celebrou a coragem da mulher assassinada (“quão rara”). A salvação, Tucholsky disse, não se encontrava nas ruas, no povo.

Uma década depois, com apoio do povo ao racismo apresentado aos gritos em cervejarias bávaras, Leon Trotsky tentou compreender como a história, após Hegel e Marx, tinha produzido o “materialismo zoológico” de Hitler, Hess e Rosenberg, o “delírio” do império que aniquilaria o tempo (“mil anos”), sem teoria econômica, apenas com “excrementos culturais” regurgitados e vomitados pela garganta de agitadores. A história seria guiada por um barbarismo não digerido.

8.

Sozinho, Walter Benjamin, antes de sair do tempo histórico em Portbou, criticou a “barbárie” no útero da sociedade que tinha gestado Verdun e bombardeiros, e não conseguia ver o lado negativo do avanço material (“desastrosa recepção da técnica”). Essa sociedade se deixava arrastar pela “tempestade” do progresso.

9.

Nas notas do iPhone, eu rascunho o panfleto A vitória do showcialismo. Diferente do previsto por materialistas dialéticos, a modernidade não resolveu suas contradições na vitória do socialismo, mas as aguçou (conectividade/solidão, ciência/fake news, globalização/neonacionalismo). Agora cada um tem um Pravda digital para chamar de seu e socializar fragmentos de vidas alienadas.

10.

Berlim, 1989: troços do Muro são arrancados, no que parecia ser o último ato. Nas ruínas do fascismo e do nazismo, a Europa tinha se dividido em dois sistemas: capitalismo versus socialismo. Chris Gueffroy, morto, ao saltar no muro, por vinte e dois tiros dos soldados da RDA, queria viajar aos Estados Unidos. Visafrei bis Hawaii – manifestantes pediam liberdade de opinião e de movimento (“até o Havaí”). Dissidentes e a história pareciam caminhar, fugir, na mesma direção, a da democracia liberal capitalista. Alemães orientais, como Žižek diria em 1998, foram de opositores “heroicos” a consumidores de “bananas e pornografia barata”. Em o Fim da história e o último homem, Francis Fukuyama afirmou que a história intelectual tinha, sim, chegado ao clímax, com a democracia consolidada como melhor sistema para oferecer liberdade, igualdade e reconhecimento. E bananas.

11.

Com o copo de Nescau na mão e o Bial na TV, eu assistia a um ato triplamente simbólico: nossos olhos olhavam a história; olhávamos a história chegando ao fim; eu, apartamento na 24 de Outubro, torrada, achocolatado, videogame, direitos fundamentais em estado liberal tropical, sentia o fim da história em mim – eu era o “último homem”, ou o último guri de apartamento.

Ainda assim, perguntado o que eu “queria ser” na minha história pessoal, eu respondia, correspondente estrangeiro. Queria ver a história. Queria viajar a cantos onde o extraordinário, fora do tempo democrático, ainda insistia em acontecer – como se no meu Brasil não existisse mais história. O meu Brasil, a minha Porto Alegre eram uma bolinha de vidro onde a vida seguiria roteiro cíclico (universidade, trabalho, família) num tempo político acabado. Um ano depois, Fukuyama classificaria o Brasil com um dos países “pós-históricos”.

12. 

Hoje, não moro em Porto Alegre. Moro em Neukölln, Berlim. Segui minha história pessoal colocando-me no proletariado estrangeiro (vestido de freelancer). Na pós-graduação como guia de turismo, trafico a turistas troços da obra de Arendt, “questões alemãs” e visões fatalistas. Na linha do U8, escuto Berlim, Bom Fim. Penso na queda do Muro de Berlim, no aumento do Muro da Mauá, não mais “vergonhoso”. Penso em Porto Alegre, na Estação de Tratamento de Águas Moinhos de Vento, penso em Muçum e no Sarandi, na minha irmã evacuada do Humaitá, na tempestade de areia em Beijing, no ciclone em Myanmar, no calor cada vez mais quente no Chile, na Europa, na Ásia. Penso nas direções contraditórias da história, estórias, sentidos confusos, pulverizados num tempo que, em vez de parar, acelerou. Entre vendavais de areia, vejo explosões: olho para Kharkiv, Crimeia, Be’eri, Rafah, e vejo os séculos XII e XIX armarem barracas militares no século XXI. Vejo estupros ideologicamente motivados e a banalidade de bombas guiadas por GPS (“errando” o alvo) e penso que história não acabou nem vai acabar.

Eu leio restos de história arruinada nas linhas de Benjamin, profeta negativo, para quem memórias viram “flashes em momento de perigo”. O momento é de perigo. A história, lida por olhos modernistas “relutantes”, não ensina, não é professora, mas recomenda ficar alerta.

13.

Cansado, fecho o Fim da história e abro Ressentimentos, em que Jean Améry pede que “feridas” históricas não cicatrizem. A secreção de injustiça, da irracionalidade vira lembrança da responsabilidade humana. “O poder moral de resistir contém o protesto, a revolta contra a realidade, que só é racional se for moral”. Crimes contra povos, culturas, ecossistemas devem ser lembrados como eventos acontecidos que não deviam ter acontecido.  

14.

O homem “agiu na natureza” (Arendt), tornando chuvas, ventos e níveis de rios agentes ingovernáveis. A história natural invadiu a história humana, potencializando o imprevisível. O domínio da natureza se realizou na natureza descontrolada, história sem rumo, sem sonho nem utopia, sem novos princípios. No fim do fim da história, fronteiras nacionais e muros mentais continuam em pé, mas linhas entre natureza e artifício seguem desmoronando. E a distância entre poesia e realidade foi abolida: Quer morrer no mar. Mas o mar secou.

15. 

“Os negócios”, Rosa Luxemburgo escreveu em 1915, “prosperam nas ruínas”.

16. 

O fim do fim da história: a história não tem fim, e o melhor sistema é o sistema no qual os olhos, ainda que cansados, estejam abertos. Estórias terminam, mas cada fim é um novo começo, parafraseando Arendt e recomendando “pensar o que fazemos”, em 1915, em 1941 (na enchente, no genocídio), em 1991, em 2024, nas hipóteses alarmantes de 2030 e 2050.

17.

Não virei correspondente internacional. Como guia, visito muros e flashes de passados reprisados de segunda a domingo. Turistas falam em “lições da história”. Uma turista disse que não se aprende com história “porque ninguém mais lê história”.  Passamos pelo Museu Histórico Alemão. The Roads Not Taken. Ou: as coisas poderiam ter sido diferentes trata de anos cruciais e de alternativas concretas que foram perdidas. Cada momento, com ou sem perigo, contém caminhos potenciais, visíveis, invisíveis. A história não é linha reta. Construir muros, fronteiras, erguer barragens, desmatar, matar porco e fazer presunto, reconstruir ou revolucionar, banalizar ou “ampliar a imaginação”, fechar ou abrir os olhos: o fim do fim da história significa que a realidade pode ser diferente, para pior ou para melhor.

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Sonho meu, sonho meu
Vai buscar quem mora longe
Sonho meu
Vai mostrar esta saudade
Sonho meu
Com a sua liberdade
Sonho meu
No meu céu a estrela-guia se perdeu
A madrugada fria só me traz melancolia
Sonho meu

(Sonho meu, de Délcio Carvalho e Yvonne Lara da Costa)

Os sonhos, essas vivências sentidas na mente e no corpo, muitas vezes bizarras, que povoam nossas mentes durante o sono, há séculos fascinam e intrigam a humanidade. Envoltos em mistério, eles desafiam interpretações simples e abrem portas para um universo onírico de simbolismos e reflexões profundas sobre nós mesmos.

Do ponto de vista científico, os sonhos são eventos mentais que ocorrem principalmente durante a fase conhecida como REM (rapid eye movement) do sono, quando a atividade cerebral se intensifica e se assemelha à vigília. Nessa etapa, o cérebro processa informações, consolida memórias e libera emoções reprimidas, tecendo narrativas complexas que podem ser vívidas, emocionantes ou até mesmo perturbadoras.

Embora a ciência ainda busque desvendar segredos dos sonhos, algumas teorias tentam explicar sua função e seus significados. Para a psicanálise, os sonhos são a janela para o subconsciente, revelando desejos, conflitos e medos reprimidos que, por vezes, se manifestam de forma simbólica ou distorcida. Já a neurociência propõe que os sonhos sejam uma forma do cérebro se livrar de toxinas e processar informações acumuladas durante o dia, consolidando memórias e aprendizados. Os sonhos, muitas vezes vistos como meras fantasias da mente adormecida, também podem ser a força motriz por trás de grandes mudanças sociais e políticas. São eles que alimentam a esperança por um futuro melhor, inspiram a luta por justiça e igualdade e impulsionam a inovação e o progresso.

Sendo  assim, cabe traçar um paralelo entre os sonhos já citados — aqueles fenômenos que ocorrem enquanto dormimos e o sonho num sentido simbólico e político, no sentido de projeções de algo que se tem desejo de concretizar, ver, ter ou fazer.

Em O dono da dor, música lançada em 1997, composta por Nelson Rufino e conhecida na voz de Zeca Pagodinho, canta-se que:

“Ninguém pode imaginar
O que não viveu”

Esse verso, cantado a plenos pulmões em milhares de rodas de samba, abre despretensiosamente o caminho para refletirmos: como imaginar ou sonhar com aquilo que não vivemos ou que não nos foi permitido viver? Essa vida vivida e sonhada sem permissão é algo que comumente perpassa a existência e a produção intelectual e artística de pessoas negras.

A literatura negra tem sido um espaço vital para a exploração de temas profundos e complexos, incluindo os sonhos e a imaginação. Autores negros, em diversos contextos históricos e culturais, têm usado esses elementos como ferramentas para desafiar narrativas opressoras, reimaginar realidades alternativas e afirmar suas identidades. A imaginação, para muitos deles, não é apenas um exercício criativo, mas uma forma de posicionamento e sobrevivência.

Toni Morrison, por exemplo, em  Amada (Beloved), utiliza elementos do sobrenatural e do sonho para explorar traumas passados e a memória coletiva dos afro-americanos. A presença do fantasma de Amada (Beloved) simboliza não apenas a perda e o luto, mas também uma forma de retomar a agência sobre um passado doloroso. Morrison cria um espaço no qual o real e o imaginário se entrelaçam, permitindo que a história de uma comunidade seja contada de forma não linear, desafiadora e profundamente humana.

Os sonhos, na literatura negra, muitas vezes servem como projeções de esperança e desejos para um futuro outro. No romance Homem invisível (Invisible Man), de Ralph Ellison, o protagonista sonha com uma sociedade em que ele é visto e valorizado, contrastando com sua realidade de invisibilidade social. Esses sonhos não são meramente escapistas, mas funcionam como críticas contundentes às estruturas sociais existentes e como expressões de um desejo profundo por mudança e reconhecimento.

Octavia Butler, uma das mais proeminentes escritoras de ficção científica negra, utiliza a imaginação para reconfigurar identidades e explorar possibilidades alternativas para a humanidade. Em Kindred, Butler mistura elementos de viagem no tempo com uma narrativa profundamente enraizada na experiência afro-americana. Através da protagonista Dana, a autora explora como as identidades são moldadas e reconfiguradas pelo passado e pelo presente, utilizando a imaginação para criar uma narrativa que transcende as limitações temporais e espaciais.

Nas literaturas africanas, o sonho frequentemente assume uma dimensão coletiva, refletindo as aspirações de comunidades inteiras. Chinua Achebe, em O mundo se despedaça (Things Fall Apart), captura o espírito de uma sociedade à beira da mudança. Embora o romance se concentre principalmente nas realidades sociopolíticas de uma comunidade igbo, os sonhos e as visões das personagens revelam um anseio por equilíbrio entre tradição e modernidade. Esses sonhos, muitas vezes fragmentados e intercalados com realidades duras, oferecem uma visão sobre as tensões e esperanças dentro da comunidade.

Autores contemporâneos, como N. K. Jemisin, têm expandido ainda mais os limites da imaginação na literatura negra. Em sua trilogia A terra partida (Broken Earth), ela constrói um universo complexo no qual a geologia e a magia se entrelaçam, criando um mundo que é ao mesmo tempo familiar e radicalmente diferente. Através de uma narrativa que mistura elementos de fantasia e ciência, Jemisin explora temas como opressão, sobrevivência e transformação, utilizando a imaginação para questionar e desafiar as realidades do nosso próprio mundo.

Passear pelo universo dos sonhos e da imaginação na literatura negra não é apenas um testemunho da criatividade e resiliência da autoria negra, mas também uma poderosa ferramenta de proposição social, incidência e afirmação cultural. Através das obras de Morrison, Ellison, Butler, Achebe, Jemisin e muitos outros, podemos perceber e experimentar formas para reimaginar identidades, desafiar estruturas opressivas e projetar esperanças para o futuro.

Os sonhos não são apenas retrospecções ou formas de escapismo, mas também projeções de futuros possíveis e desejáveis. Para o movimento negro, a capacidade de sonhar com um futuro melhor tem sido fundamental para a motivação e mobilização. Martin Luther King Jr., em seu famoso discurso Eu tenho um sonho (I Have a Dream), encapsula a essência desse impulso. Seu sonho de uma sociedade justa e igualitária serviu como um poderoso catalisador para a luta pelos direitos civis, inspirando milhões a acreditar e trabalhar por essa visão de futuro.

Quando Dona Ivone Lara fala de “buscar quem mora longe, sonho meu” podemos fazer uma leitura óbvia sobre um amor perdido ou distante. Mas também podemos ir além e pensar esse sonho e essa busca como banzo. O banzo pode ser entendido como um fenômeno histórico e cultural que afetou profundamente a população africana escravizada no Brasil. Trata-se de um estado de melancolia profunda, nostalgia e depressão experimentado por escravos africanos, muitas vezes levando-os à morte por inanição ou ao suicídio.

Do ponto de vista psicológico contemporâneo, o banzo pode ser compreendido como uma forma extrema de depressão. Estudos em psicologia e psiquiatria mostram que a perda de laços sociais e culturais, combinada com condições de vida abusivas, pode levar a estados severos de depressão. A ausência de perspectivas de liberdade e o tratamento desumano contribuíam para um estado de desespero tão profundo que muitos escravizados perdiam a vontade de viver. Clinicamente, o banzo pode ser comparado a transtornos depressivos maiores, com sintomas como perda de apetite, insônia, apatia e pensamentos suicidas. Politicamente, o banzo evidencia a crueldade do sistema escravocrata e serve como testemunho da resistência física e espiritual dos escravizados. Embora frequentemente interpretado como uma forma de desistência, o banzo também pode ser visto como um ato de resistência silenciosa. Ao se recusar a participar do sistema que os oprimia, os escravos que sucumbiam ao banzo estavam, de certa forma, reivindicando autonomia sobre suas vidas e mortes.

O banzo, esse estado de melancolia profunda, e o sonho, tanto como forma de resistência quanto de esperança, são conceitos interligados na experiência da diáspora africana. Essa relação é complexa e multifacetada. Ambos são respostas ao mesmo conjunto de circunstâncias opressivas, mas manifestam-se de maneiras diferentes. Numa visão mais superficial, o banzo pode ser visto como um colapso da esperança, um diálogo com o desespero, enquanto o sonho pode representar a projeção de uma outra realidade. No entanto, mesmo no banzo, pode haver traços de sonho: a nostalgia e o desejo de retorno à terra natal podem ser vistos como uma forma de sonhar com uma realidade perdida ou que pode ser (re)inventada.

A imaginação tem papel central na reconfiguração das identidades negras, desafiando estereótipos e preconceitos. E assim voltamos a Zeca. Se ninguém pode imaginar o que não viveu, inventamos! Ao longo de séculos, a existência negra tem alternado entre a concretude de sociedade racistas e a projeção de universos outros, nos quais se pode existir de forma menos cruel e cristalizada. No contexto do movimento negro, os sonhos e a imaginação não são apenas individuais, mas coletivos. Eles ajudam a fortalecer a coesão comunitária, criando um senso de propósito e solidariedade. O movimento Black Lives Matter, por exemplo, utiliza a imaginação para vislumbrar um mundo sem racismo sistêmico e violência policial. Esse sonho coletivo fornece um quadro para a ação política e social, inspirando protestos, políticas e mudanças comunitárias. São essas projeções que têm impulsionado lutas concretas com resultados palpáveis e mensuráveis.

O poder dos sonhos não se limita a escritores, artistas, grandes líderes e movimentos sociais. Ele reside também em cada indivíduo que ousa imaginar um futuro diferente, que se recusa a aceitar o status quo e que luta por um mundo equânime.

Sonhos podem ser subversivos, desafiando as estruturas de poder existentes e questionando as normas sociais, especialmente quando falamos de trajetórias negras. Eles podem ser a faísca que inicia revoluções, as vozes que denunciam injustiças e a força que impulsiona a busca por um mundo mais justo e sonhado.

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Podemos falar abertamente? A sociedade brasileira está rasgada por dentro e por fora. Temos dificuldade de vislumbrar um futuro conjunto. Não almejamos um futuro compartilhado. O coletivo deixou de ser âmbito de diálogo, de convivência, de aspirações comuns. Tornou-se um problema, um dilema, um enigma. Os outros — aqueles que não pensam como nós, que não vivem como nós, que não percebem o mundo como nós — são vistos como fonte de embate. Causam-nos irritação, indignação, desprezo.

Essa abolição do coletivo — o desmoronamento da percepção de comunidade — é muito mais grave do que a tão falada polarização ideológica ou as muitas disfuncionalidades do poder público. Ela é a origem, a causa primária da nossa crise política, do cansaço por tudo o que é público, da indiferença pelo que não é pessoal, palpável, imediato. Perdeu-se a alteridade.

O coletivo tornou-se uma abstração sobre a qual — quando muito — se pensa, se raciocina. Mas não se sonha com ele. Não se cultiva, no íntimo, um futuro possível comum. Não se imagina. Sobram ideias, slogans, lugares-comuns. Falta partilha. Falta desejo.

Não é que o afeto tenha sumido do âmbito coletivo. Nota-se a presença da raiva, do ressentimento, da inveja. Mas o carinho, a empatia, a afeição, tudo isso sumiu do espaço público. Cada vez mais, esses sentimentos estão restritos à esfera privada. A uma reduzida esfera privada: aos amigos, aos iguais. Sequer são orientados aos familiares, que, não raro, são percebidos como inimigos, como diferentes, como a parte de nós — da nossa história, da nossa identidade — que nos desperta vergonha. Uma vergonha com a qual não sabemos lidar.

Também os iguais — aqueles dos quais nos consideramos próximos —, seja por uma leve mudança de circunstâncias, seja pela descoberta de alguma característica inesperada, são facilmente transportados para o campo dos diferentes, dos rejeitados. Há uma contínua ampliação da rejeição.

Nota-se um abismo no mapa do Brasil. Somos uma sociedade desencontrada, que tem dificuldade de se reconhecer, de se entender. Ao pensar, usa-se o fígado, num processo presunçosamente intitulado de racionalidade, de objetividade, de maturidade, de realismo. Mas não há isenção, não há lógica, não há método. O que há é o despejo de um mundo interior não socializado, não dialogado, não entendido, não refletido. É uma matéria-prima bruta, que produz atrito, que gera ruído, que causa divisão. Paradoxalmente, essa brutalidade convive com a hipersuscetibilidade. Dos outros, exige-se suavidade e consideração, ao mesmo tempo em que se distribuem socos, pontapés, cusparadas.

Menos desigualdade. Mais educação. Mais saúde. Mais segurança. Mais liberdade. Menos preconceito. Sim, sabemos elencar os elementos desejáveis para uma coletividade saudável. Mas o próprio anúncio desses tópicos traz a marca da frustração, da desesperança. Temos medo dos sonhos. Medo de sermos ingênuos. Medo de pedirmos paz e parecer que estamos sendo condescendentes com retrocessos, com abusos, com injustiças. Tudo se tornou complicado, cansativo, angustiante.

A imaginação — a possibilidade de uma resposta criativa às questões da vida e do mundo — está bloqueada. Foi lacrada pelo olhar alheio e pelo nosso próprio olhar, pelas nossas inseguranças, pelas nossas incompreensões, pelos nossos afetos.

Qual é o nosso futuro? Há possibilidade de futuro?

Nada é imutável, tudo é humano

Visto sob essas luzes, o cenário brasileiro assusta. Mas — no humano, sempre existe a conjunção adversativa — esse quadro não é a única resposta, a única possibilidade. A realidade não é um monolito definitivo. Suas condições não são imutáveis. Nada é um dado inexorável. Trata-se sempre de uma construção, de uma escolha.

Talvez isto seja o mais desafiador: reconhecer que esse presente, tão marcado por embates, tensões e divisões, não é simples resultado da ação de terceiros. É fruto da nossa própria conduta, das nossas ações, das nossas omissões. Também nós somos responsáveis por esse presente problemático, desigual, violento.

Essa constatação pode nos envergonhar, nos paralisar, mas também pode ser libertadora. Admitir nossa responsabilidade pelo presente é vislumbrar que o futuro não está determinado. Ele está disponível para nós. Está por ser tecido com nossas agulhas, com nossas linhas.

Talvez alguém pense que aqui se romantiza. Somos pequenos. Somos frágeis. Somos incapazes, tantas vezes, da nossa própria vida, que nos supera, que nos engole. Se é difícil ver autonomia em nossa própria trajetória, frequentemente moldada mais pelas circunstâncias do que propriamente por escolhas, como assumir, numa espécie de passe de mágica, o protagonismo pelo futuro do coletivo?

O questionamento é pertinente e nos ajuda a ver outra camada do problema. Não estamos diante de uma mera crise da coletividade. Há uma crise da própria individualidade, da identidade pessoal. Quem nós somos? Como nos enxergamos?

Talvez isso soe teórico; concretizemo-lo, pois. Como educamos nossas crianças? Quanto tempo dedicamos a elas? Como acompanhamos os idosos? Que admiração temos por quem os acolhe e cuida deles? Quem somos para quem vive uma situação social menos privilegiada? Como nos relacionamos? Como cuidamos da nossa calçada? Como gastamos nosso tempo livre? Quais são os nossos desejos? Como cantamos? Como usamos os nossos olhos? O que lemos? Ao que assistimos?

Sociedade não é abstração. É convivência, tempo gasto, cozinha compartilhada, abraço, aperto de mão, beijo, olho no olho. É confiança, é conversa, é confidência, é estranhamento, é aprendizado, é troca. Para viver tudo isso, temos de estar inteiros, minimamente inteiros. Conscientes de quem somos, da nossa história e do nosso presente. De outra forma, o futuro será simples repetição, reprodução de velhos hábitos — ainda que estejamos vestidos com roupas diferentes.

Reimaginar o humano

Não é questão de voluntarismo. De achar que basta querer. Que basta se esforçar. Não é questão de motivação, de pensar positivo. Decide-se o jogo — melhor dito, a aventura — em outra esfera.

É preciso reimaginar o humano sem encaixotar tudo em nossas lentes, em nossas percepções, em nossas sensibilidades. O humano é diverso, plural. E talvez aqui esteja o fio possível para costurar o tecido Brasil: a diversidade, o respeito pelo outro, com suas maravilhosas idiossincrasias.

Nada disso é tarefa intelectual, que se ensina com método e argumentos. É feito com a generosidade de olhar o outro em sua integridade, sem atribuir intenções distorcidas a quem pensa de forma diferente.

Mais do que simples altruísmo, isso é humanidade. Só vendo o outro com generosidade — abdicando de medi-lo com a nossa própria régua — é que saberemos nos enxergar. Só assim poderemos captar nossas limitações e lidar em paz com elas. Só assim poderemos nos transformar.

A preocupação com o coletivo não é uma espécie de sofisticação. É item de primeira necessidade para que possamos viver como humanos. Não se pode tapar o sol com a peneira. Os seres humanos sonham: o presente não é definitivo. Somos seres temporais, abertos à mudança, à transformação. Por isso, uma sociedade dividida é também uma sociedade paralisada, a desperdiçar sua energia com pequenezes.

Os seres humanos sonham, e, se não sonhamos, – se estamos incapacitados de detectar os sonhos profundos que permeiam nosso interior –, algo não vai bem. E é preciso enfrentar o sintoma de maneira genuína.

Vivemos hoje a utopia da tecnologia. Tem-se a expectativa de que, com suas engenhosidades e múltiplas inteligências, ela nos oferecerá as soluções. Mas soluções para quê? Não sabemos sequer formular para nós mesmos as questões que verdadeiramente nos inquietam.

Essa utopia é paralisante, preguiçosa: o futuro torna-se obra dos outros. A nós caberia acompanhar as tendências, aproveitar as novidades, usufruir dos novos gadgets. Mas será que não vemos que a tecnologia, espetacular, por si só, é incapaz de tecer o humano, de costurar o coletivo? Usuário massivo das redes sociais, o Brasil contemporâneo é prova cabal dessa disfunção.

O futuro não é obra dos outros. A vida tem uma dimensão coletiva, mas é sempre também profundamente pessoal. São planos interconectados. Não basta a tendência macro. Não bastam as decisões de Estado. Não basta o que os outros fazem, sentem, dizem. A sociedade é um tecido diariamente costurado por todos – e por cada um.

Falar em sonho não é enganar-se com uma fantasia. É resgatar o que há de mais íntimo e, ao mesmo tempo, mais coletivo, mais relacional. Vivendo nos conectamos. Sonhos não são meras imagens dentro da nossa cabeça. São motores: entusiasmo, impulso de vida. São frestas de futuro, que acendem o desejo de trabalhar mais, de realizar mais, de se conectar mais genuinamente com as pessoas, de contribuir mais.

Sonhos são desejo de vida, imaginação de caminhos. Ao sonhar, ao construir as condições para o sonho, abre-se a possibilidade de se tecer um novo sentido, mais genuíno, menos solitário, mais solidário. Sonhemos, pois, corajosa e suavemente.

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Muito além de máscaras e sombrinhas

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Na efervescência do Carnaval do Rio de Janeiro, surge uma figura marcante: os bate-bolas, também conhecidos como clóvis, pierrots ou clowns. Originários dos subúrbios ou das periferias cariocas, principalmente nas Zonas Norte, Oeste e Baixada Fluminense, esses foliões mascarados carregam consigo uma rica tradição, que se entrelaça com a história da própria festa.

Acredita-se que suas raízes remontam aos colonizadores portugueses e à Folia de Reis, mas o nome “clóvis” teria surgido no início do século XX, inspirado na palavra inglesa “clown”, que significa “palhaço”. Uma interpretação popular teria transformado o termo em um apelido para os foliões fantasiados.

Vestidos com fantasias vibrantes e máscaras que mesclam o cômico com o macabro, os bate-bolas se organizam em turmas, dedicando-se durante todo o ano à criação de seus trajes e à organização de eventos carnavalescos. Fogos de artifício, festas e churrascos animam a comunidade, ao som de hinos, marchinhas e funks próprios de cada grupo.

A diversidade marca a presença dos bate-bolas. Seus estilos variam, desde o clássico “bola e bandeira” até o criativo “evolution’, passando por “leque e sombrinha”, “bicho e sombrinha”, “pirulito” e “de capa”. As fantasias também apresentam diferenças regionais: na Zona Oeste, predominam os modelos “bujão”, com mais tecido, enquanto na Zona Norte a criatividade impera.

Os nomes das turmas refletem essa multiplicidade, carregando sentimentos, atitudes, personagens fictícios ou até mesmo o barulho e a desordem que acompanham a folia. Humildade, Emoção, Explosão, Alegria, Bom Gosto, Tirania e Fascinação são alguns exemplos. Na Zona Oeste, nomes de personagens como Mario, Urtigão e Kuka se destacam, enquanto turmas de “bola e bandeira” homenageiam a agitação com títulos como Tropa Embrazada, Zorra Total e Barulho.

Mais do que simples foliões, os bate-bolas representam a cultura popular carioca em sua essência. Sua tradição, preservada ao longo de décadas, foi reconhecida em 2012, quando os grupos foram declarados Patrimônio Cultural Carioca. Hoje, os bate-bolas continuam a encantar e desafiar estereótipos, colorindo o Carnaval com a alegria, a irreverência e a vibração única do subúrbio carioca.

Convidamos Mayara Assis, pesquisadora e brincante da cultura bate-bola, para um breve papo-vivência:

Muitos trabalhos que discutem ou apresentam a cultura bate-bola o fazem por um viés estético visual. Porém, seu trabalho extravasa essa fronteira e leva o bate-bola para uma dimensão do corpo. Que corpo é esse? 

Esse corpo é do medo ou respeito, aquele que coloca em dúvida os discursos da moralidade. E esse corpo, que está na dimensão da cultura dos bate-bolas, também, mas está em outros lugares, e é aí que a gente vai chegar. Porque, na minha perspectiva, eu não pretendo somente estar dentro, inserindo a minha pesquisa na cultura dos bate-bolas, se é um lugar pelo qual eu passo para ir de encontro. É ali que eu digo: existe esse corpo estanque, ele se reproduz aqui também. Que é esse corpo que, ao passar pela rua, ao entrar numa sala, parece sempre estar prestes a arruinar com tudo, com tudo que foi feito, com tudo que foi construído? Esse corpo que é estranho, esse corpo que, quando chega, já anunciou certo desconforto no espaço.

O meio bate-bola acaba sendo um espaço com muito protagonismo masculino. Como você vê o papel e a importância das mulheres nesses espaços? 

Mesmo não sendo a minha questão principal de debates, o protagonismo na expressão de gênero masculino nas turmas de bate-bola, vou falar sobre isso e trazer pra questão que eu não compro essa briga. Eu acredito que tem muito protagonismo feminino, da expressão de gênero feminino, na turma de bate-bola. Eu acho que o ponto que é importante de ser falado, quando a gente questiona e traz esse questionamento necessário sobre esse lugar, um espaço ocupado ou com a presença do protagonismo  masculino ao feminino, é que as nossas relações estão em crise, e essa crise precisa ser estampada. A principal crise que precisa ser estampada é que sempre, quando a gente conta a história da cultura popular brasileira, a gente diminui a importância do trabalho das mulheres, e principalmente das mulheres negras dentro das culturas. Eu comecei a ter interesse na cultura das turmas de bate-bola por conta de costureiras, e essas costureiras se sentem as primeiras pessoas que dão continuidade à turma de bate-bolas. São fazedoras de bate-bola, fazedoras de casaca, imprensa, fazedoras de máscara. Quem faz a indumentária, quem está com as mãos no trabalho, se sente totalmente responsável pela continuidade da cultura. E isso você vê de memória e de presença mesmo em cada cultura que é mantida por um grupo tradicional, seja no perímetro urbano ou até mesmo no perímetro rural. Eu vi que isso se replica, e que a importância feminina é subtraída quando a gente fala, às vezes, da nossa própria cultura. Existem turmas inteiras de bate-bolas só de mulheres,e também existem turmas em que, majoritariamente, o grupo que sai fantasiado é um grupo de homens, mas o carnaval não se encerra nesse grupo, é toda uma comunidade em torno disso, tem famílias dos bate-bolas. Gera renda também, circula a renda entre os pequenos produtores desses elementos que compõem a turma, e muitos desses fazedores são fazedoras, na verdade. Muitos desses trabalhadores são mulheres.

Então as mulheres são essenciais nessa cultura, certo?

Não que o papel das mulheres esteja encerrado, que a importância das mulheres nessas culturas dos bate-bolas ou até na cultura brasileira esteja encerrado ao espaço de organização, confecção, produção dos conteúdos, dos elementos. O papel das mulheres é de responsável pela continuidade do divertimento. E isso eu vejo em toda a cultura brasileira. Na cultura dos bate-bolas, elas já vêm encontrando espaços pra que elas mesmas possam também dizer desde o princípio o que elas querem que visualmente seja entregue, e esse é, vamos dizer, um outro caminho que vem sendo redesenhado pelas mulheres mais novas juntamente com mulheres mais antigas, que já frequentam turmas de bate-bola de outras datas e que têm feito turmas femininas e promovido ainda mais a voz das mulheres nesse contexto, no contexto em que elas também dispõem, vamos dizer assim, do mesmo desejo de manifestar o seu interesse pela liberdade, pelo prazer e pelo divertimento que é você confeccionar desde o princípio uma roupa e uma turma, toda uma organização de uma turma de bate-bola. Isso é algo que eu vejo agora. Na verdade, eu acho que esse é um protagonismo que eu vejo surgindo, emergindo mais forte agora, mas não acho que não existisse.

O carnaval muitas vezes é um momento em podemos experimentar outras subjetividades e formas de existir. E assim, também, sonhar. Você acha que nas favelas, nos subúrbios e nas periferias (espaços onde costumamos ver mais a cultura bate-bola), ser bate-bola é realizar um sonho?

Pra responder essa pergunta, eu vou começar dizendo que, se a gente tirar o bate-bola da cultura estética, de você ter poder e comprar, adquirir, obter, sei lá, comprar um tênis, comprar uma roupa, se a gente tirar ele desse lugar e pensar pela perspectiva da formação de uma turma, da formação de um núcleo que se comunica com outro núcleo, e com outro, e que são famílias juntas e que têm as suas denominações, que se reconhecem com ou sem os seus elementos em diversos cotidianos que não são somente o carnaval, isso por si só funciona como uma realização coletiva de um sonho, de um sonho de estar e fazer parte de uma comunidade, de ser aceito em um lugar. Isso é muito quem são também essas pessoas do bate-bola. Quem são eles é muito isso também, sentir-se parte de uma coisa, e cada um ali é fundamental, todo mundo bota a mão pra trabalhar na confecção das coisas, na realização, na concretização do sonho. Estar numa coletividade dessa forma, em que você se entrega desse jeito pra além dos mecanismos funcionais da estrutura global do mercado, de como o mercado funciona, ali dentro se constrói uma outra forma política, e essa forma política é o ideal coletivo, mas também é a realização de um sonho, de estar e fazer parte de uma comunidade. Eu já vi acontecer, em saídas de turmas de bate-bola, por exemplo, da pessoa responsável ter confeccionado umas roupas que poderiam equivaler pra crianças, e aí as crianças, que não participaram de nenhum dos outros movimentos que as pessoas mais velhas participaram desde o início do ano, naquele dia, do carnaval, estavam ali desde cedo em cima das pessoas da turma, querendo saber. Aquelas crianças ali ganham um bate-bola e saem. Essa sensação, essa memória da infância, essa relação com a cultura também é a realização de um sonho coletivo, de um sonho coletivo que se encontra dentro das periferias urbanas e da forma como a cultura pode ter continuidade nesses espaços das favelas e dos subúrbios, que é através da criança, estimulando o próximo, o mais jovem, o mais novo. E esse estímulo também é uma forma de realizar um sonho. Não sei se necessariamente todos que estão ali estão sendo coletivamente com essas questões subjetivas que eu estou trazendo, mas é o que a gente vê acontecer. Muitos ali só chegam com o único pensamento de construir. Quem é líder dentro da turma, quem é liderança, vai pensar o carnaval desde o princípio e querer que ele aconteça da forma como foi planejado. Tem gente que vai entrar que o sonho é só sair de bate-bola. E essas pessoas vão sair, porque é a realização de um sonho também. Mas não é só o sonho de comprar um bate-bola, de comprar um tênis, é o sonho de fazer parte de uma grande coisa. Eu sinto muito, às vezes, vindo dos corpos com os quais a gente está se direcionando, com os quais a gente está se comunicando, que são esses corpos que parecem estar andando por aí como se estivessem prestes a arruinar tudo. São muitas essas pessoas, muitas dessas pessoas procuram essas culturas, as culturas que impõem medo ou respeito, a cultura do funk, a cultura do bate-bola que, pra mim, estão muito atravessadas, e muito atravessadas às culturas negras, cujas origens são africanas. Eu falo isso porque isso me lembra o sentimento do quilombo, que, já diria Abdias Nascimento, é o sentimento de uma comunhão existencial negra. Ainda que nem todos ali sejam negros, essa cultura vibra nesse mesmo tambor, ela tem essa mesma vibração.

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Tive um sonho na madrugada de 31 de março de 2022. Eu andava pela casa um tanto ansiosa, procurando minha bolsa. Quando a achei, abri a carteira e, dentro dela, não encontrei minha identidade. Acordei assustada, e logo senti o sorriso aliviado da compreensão, já que, a partir da manhã seguinte, eu não teria mais o contrato de trabalho ao qual tinha me associado nos últimos vinte anos. Senti também medo do tamanho da mudança que o sonho desenhava para meu entendimento.

Estaria, então, livre para sonhar novas formas, encontrar novas imagens, compreendê-las e, ainda, simultaneamente, me permitir não as decifrar, observá-las sem pressa, vê-las ganhar significados e ressignificados inéditos com o tempo. Na manhã seguinte, eu poderia sonhar acordada com a nova vida que desejaria construir e experimentar. Com uma nova identidade.

“De onde vem a canção?”, canta Lenine. É comum nos perguntarmos quase todas as manhãs, ou madrugadas, de onde vêm os sonhos com aquelas mais encantadoras, assustadoras e bizarras imagens, conexões e desconexões.

Carl Gustav Jung (1875-1961), considerado pela revista Time o maior pensador do século em capa de 1955, afirma que os sonhos são expressões do inconsciente. Poço inato e infinito de histórias e significados — coletivos, familiares e pessoais.

Vale aqui diferenciar o conceito de inconsciente freudiano do junguiano, um dos aspectos responsáveis pela cisão dos pensadores, depois de um período de cerca de cinco anos de trabalho em conjunto.

Se, para Freud, o inconsciente é um depositário de aspectos reprimidos da personalidade, no qual é guardado tudo aquilo que não se sustenta na consciência, para Jung, o inconsciente é a origem de tudo, até mesmo da consciência.

Não à toa, no primeiro parágrafo de sua autobiografia, Memórias, sonhos e reflexões, escrita nos últimos anos de vida em parceria com a colaboradora Aniela Jaffé e publicada após sua morte, o pensador sintetiza, de uma só vez, sua experiência e fé: “Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento, e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade”.

A análise junguiana convida, de diversas formas, o interessado ao diálogo com informações inconscientes: por meio da ampliação dos sonhos (repare: ampliação, e não interpretação), da associação das palavras, das expressões simbólicas (técnica usada pela psiquiatra brasileira Nise da Silveira em contraponto aos eletrochoques no tratamento de pacientes esquizofrênicos) e da atenção e do significado às sincronicidades.

Como num sonho recorrente, vale a pena repetir: “De onde vem a canção?”.

No prefácio brasileiro de Uma investigação sobre a imagem, de James Hillman, o escritor e psicólogo Gustavo Barcellos propõe que as imagens oníricas precisam de respostas imaginativas, e não de explicação. Ousemos aqui, então, mergulhar com palavras nesse mar sem fundo do qual os sonhos emergem.

Hillman faz uma analogia que, em mim, ecoa sem, felizmente, encontrar contorno: “(…) os cheiros não podem ser evocados. Embora eles possam evocar lembranças de coisas passadas, não podemos recordá-los intencionalmente, assim como poderíamos recordar uma sala ou uma música. Estamos sujeitos a eles, somos assaltados por eles, transportados para seu mundo”. O autor segue: “A espontaneidade sem ego do cheiro é similar àquela da imaginação”.

Para mim, esse é um bom jeito de descrever sonhos pela perspectiva junguiana, pelo faro, pelas possibilidades infinitas, abandonando qualquer ideia materialista ou redutiva causal e ainda, ao mesmo tempo, considerando que o sonho pode ser, sim, consequência de um episódio vivido na vigília. Seu entendimento, porém, não deve ser reduzido ao fato.

Se dispostos a embarcar nesse convite de diálogo com o inconsciente, sem o desejo estreito de enquadrar as imagens, a ampliação dos sonhos pode virar um exercício diário de encontro consigo mesmo, com a possibilidade de sonhar, de imaginar a vida em muitas dimensões e de responder à vida com imagens, poesia, música, ficção. Com arte.

O analista junguiano Waldemar Magaldi explica, em inúmeras aulas, textos e vídeos do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP), que os sonhos podem ser ampliados a partir de três diferentes perspectivas: a compensatória, a pedagógica ou a antecipadora de tendências, de transformação (que vulgar e equivocadamente chamamos de premonitória). Esta última talvez seja a mais fascinante e amedrontadora das possibilidades.

O sonho da identidade desaparecida da carteira pode ser ampliado a partir da perspectiva dos sonhos pedagógicos. Observemos, então, as demais possibilidades.

A tônica do pensamento junguiano contempla a integração dos opostos. Dor e prazer, luz e sombra, bem e mal. Não há, na origem dessas potencialidades, diferenciação de valor. Todo oposto é complementar e precisa existir na mesma proporção, em busca do equilíbrio. Por isso, quando uma experiência é unilateralizada, seja no indivíduo ou na sociedade, há, em igual medida, o desenvolvimento de seu oposto complementar — a polarização política encontra aqui uma explicação.

No universo onírico, imagens compensatórias podem realizar aspectos impedidos de serem vividos na vigília. Ofereço mais um encontro despudorado com imagens que me assaltaram para ampliação: andava às voltas com questões complexas com um parente, que não se mostrava aberto para receber o apoio que eu estava disposta a dar, porém com o qual eu deveria, moralmente, colaborar.

Por semanas refleti sobre essas questões, afirmando que estava surpresa por não sentir raiva da situação, lidando com tudo (embora fossem assuntos chatíssimos) de forma objetiva e até leve. Eis que a seguinte cena me acorda de sobressalto no meio da noite: esfaqueio o parente pelas costas, giro a faca encravada em sua carne e ainda olho para ver se o sangue está mesmo jorrando.

Já que, felizmente, eu não fiz isso tudo na vigília, a compensação inconsciente aconteceu no sonho. Desta forma, minha psique integrou a compaixão das ações concretas ao horror da raiva inconsciente. E, ufa!, me livrou de anos de cadeia!

De olhos bem abertos, pude dar mais limites às tentativas de ajudar, me respeitando e incluindo o oposto complementar (nesse caso, a raiva) que, de uma forma ou de outra, merece se manifestar. Pude, também, aprender a respeitar o desejo do outro de não ser ajudado.

Jung inspira seus estudiosos a compartilhar a própria biografia e aspectos psíquicos pois ele mesmo foi um empirista acima de tudo. As mais de vinte mil páginas que escreveu tiveram origem, essencialmente, em sua experiência pessoal com o inconsciente. Ele descreveu tais experiências em livros lançados apenas após sua morte: os Livros negros e o Livro vermelho. Neste último, o autor revisa as anotações de sonhos e imaginações dos primeiros e acrescenta desenhos criados a partir das imagens que o invadiram diretamente do inconsciente.

Quando já havia chegado à criação da psicologia profunda, que depois foi chamada de analítica, tendo o caminho da individuação como meta a ser percorrida pelo indivíduo na realização do arquétipo do si mesmo (assunto para muitos outros ensaios), Jung passou a ter sonhos repetitivos com alquimistas. Como, para ele, os sonhos eram expressões que mereciam toda atenção e respeito, passou a comprar e traduzir manuais de alquimia. Ele então compreendeu, com o passar de anos de estudo, que o caminho da individuação era a realização, na psique e na vida, do grande objetivo alquímico: simbolicamente, transformar chumbo em outro.

Jung reafirmou, então, com os conceitos da alquimia, o que sentiu no estudo de si mesmo: ao longo da vida humana, é necessário passar por diferentes fases, assim como no processo alquímico. Todos nós, em algum momento, especialmente após a metade da vida, somos convidados a entrar num processo de transformação de si, de criação de uma “tintura-mestre”, uma sabedoria capaz de existir como essência, servir a si mesmo e ao mundo.

O processo da alquimia parte da calcinação, quando estamos, do ponto de vista emocional, cristalizados em formas de existir e de sofrer. Para sair desse estado, precisamos passar para a sublimação, acrescentando ar, ou seja, pensamento sobre o que estava cristalizado. Tal processo resulta num líquido, torna-se uma solução e pode ganhar novas formas. Para se obter ainda mais pureza, o líquido pode passar pela fermentação, quando aspectos que ainda precisam se transformar o fazem pela morte, pela putrefação. O material fermentado pode, então, ser destilado, quando mais impurezas evaporam, e depois é novamente coagulado. Com a matéria mais purificada pode-se, enfim, criar a tintura-mestre, o essencial, o ouro.

Eu ando sonhando com gestações, partos, animais selvagens que se metamorfoseiam. Ando sonhando com arrepios causados por uma respiração delicada que percorre da minha bochecha à orelha. Seriam prenúncios de novas possibilidades, depois daquele sonho em 2022?

“A vida tem que ser conquistada sempre e de novo”, disse Jung.

Milton Nascimento e Lô Borges disseram que os sonhos não envelhecem. Que basta contar compasso, contar consigo, que a chama não tem pavio.

Que os sonhos possam inspirar nossos processos de desenvolvimento pessoal, de transformação, de expansão da consciência. Que possam ser recebidos como sussurros de sabedoria das almas a cada nova manhã! 

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Foi no restaurante Sublime que encontrei meu destino pela primeira vez.

Aconteceu numa tarde de outono bem típica de Florianópolis, uma dessas tardes opacas em que a excitação quente do verão dá lugar a uma morna aura fantasmagórica. Todo mundo sabe que as verdadeiras profecias só podem acontecer na época outonal, e foi nesse espírito que, por volta das 15 horas, as duas mulheres atravessaram a porta de bambu e sentaram-se à mesa 11. 

Era nossa melhor mesa: um canto de dois lugares à esquerda da estátua fluorescente do Buda, sob a luminária de vitrais coloridos. Assim que penduraram as bolsas em uma das cadeiras, deram-se as mãos e fecharam os olhos por cinco minutos antes de abrir o maço de cartas sobre um lenço violeta. A lâmpada espalhava cacos de luz nos rostos sem que se dessem conta; o restaurante agora era um templo secreto, só delas. 

Lindas, foi o pensamento que me ocorreu, Duas amigas se encontrando numa quarta-feira para descobrir o futuro. O cabelo preto da mais nova vinha preso num coque. A mais velha, grisalha, tinha modos aristocráticos e um broche de penas e pérolas que parecia uma galinha despenteada.

Ninguém que as visse no fim daquela tarde poderia adivinhar-lhes os poderes. As bruxas hoje em dia são discretas. Só notei que eram diferentes dos outros clientes por causa do olhar, um jeito de quem vê por dentro das pessoas. Fora isso, eram normais em tudo, até no modo de vestir — saias compridas cobertas por blusas de lã em tons de terra. Marrom, vermelho, laranja, ocre. 

Observei-as de longe, esperando o momento certo para me apresentar. Elas só tinham olhos para a mesa. A jovem de coque estendeu o baralho à frente, a amiga cortou três, quatro, cinco, seis, sete vezes. De volta ao maço, as cartas começaram a aparecer lentamente, uma a uma, viradas pelos dois pares de mãos na superfície do pano roxo. Como se o jogo fosse de ambas, como se estivessem lendo um futuro compartilhado. 

Ou de outra pessoa. 

A Torre, O Enforcado, O Louco —– de relance, reconheci o desenho dos arcanos maiores em cartas de morte e vida. A Torre é mudança brusca, O Enforcado pede desapego, O Louco liberta potencial desgovernado. O caminho de alguém estava mudando para sempre, sem volta.

Seria demais interrompê-las para apresentar os pratos do dia antes da cozinha fechar? Fingi casualidade e dirigi-me à mesa com um par de menus:

— E hoje, vão querer o quê?

Com olhos que perfuram o espírito e uma voz imperturbável, pediram chá preto indiano —– black chai, por favor — e duas fatias de bolo de chocolate.

Falavam num tom meio cordial, meio distante; não me deram mais atenção do que a etiqueta recomenda. Confesso que as achei um pouco frias. Registrei o pedido, levei-lhes tudo na bandeja e, por um tempo 

— só por um tempo —, 

o turno transcorreu

normalmente. 



O restaurante Sublime costuma esvaziar depois do almoço. Quando os clientes terminam a sobremesa e voltam ao trabalho, as mesas são ocupadas por outro tipo de clientela. As pizzas e as saladas desaparecem, substituídas por sorvetes e cafés. Os vasos de plantas e as estátuas do Buda nos corredores ganham mais vida sem o trânsito dos advogados e funcionários públicos que vêm atrás de comida vegetariana.

Das duas às sete, somos três pessoas cuidando dos clientes: eu, meu outro colega garçom de natureza irritadiça e Balarã, o menino nepalês que às vezes esqueço que existe. Balarã não gosta de se envolver nas pequenezas do cotidiano no restaurante. É um jovem de grande sabedoria; enquanto lava a interminável pilha de louça do Sublime, contempla em silêncio o sentido profundo da vida.

A tarde é o turno da doçura. Se fosse uma cor, seria lilás. Tardes lilás. Enquanto os escritórios se enchem de clientes e funcionários, as mães vêm ao Sublime comer bolo com seus bebês. Buscam a paz de algum lugar que não seja o 

lar. A tarde é o turno das escritoras que gastam horas mastigando palavras e tomando café com leite, e é também o período dos que trabalham online, computadores e fones de ouvido ligados.

À tarde, o tempo se estende feito um leque aberto, deixando ver os detalhes que o movimento do almoço esconde. O ar fica mole. Turistas estrangeiros chegam da praia e afundam a colher numa mousse de chocolate lavada em café americano —– sempre o café americano dos alemães —, deixam gorjetas gorduchas e voltam para seus apartamentos com a leveza de uma torta perfeita, sem reparos.

Quer dizer, no verão. No outono, tudo muda: os turistas são poucos, e o Sublime se transforma em convite para o invisível. As estátuas de Buda e as plantas dos vasos conspiram no silêncio dos corredores,: é hora. Entre março e junho, sob o disfarce lilás das tardes outonais de Floripa, no restaurante Sublime tudo pode 

acontecer.



As duas mulheres com o tarô eram aquele tipo de cliente que pede um café e nunca mais vai embora. A tarde, que ia virando noite, corria como sempre para os outros, mas a verdade é que o tempo tinha parado na mesa 11. Três horas depois, as xícaras de chá estavam ainda pela metade. 

O black chai abandonado. O restaurante enchendo, a mesa ocupada. A 11. A do maior Buda, recanto da luminária colorida. Nossa melhor mesa. 

— Gostaram da sobremesa?

— …

Fui recolhendo tudo sem esperar resposta. Empilhei canecas, pratos e garfos sujos na bandeja e cruzei a porta basculante que dá para a área de serviço. Uma montanha de pratos e tigelas do almoço esperava a vez de entrar na lava-louça enquanto Balaram de costas para mim lavava as panelas com tanta concentração que não se deu conta da minha presença. 

Está ouvindo uma partida de críquete nos fones de ouvido de novo, certeza. 

Lancei os garfos sujos no balde de talheres usados, raspei os farelos de bolo no lixo e, quando estava prestes a jogar fora o primeiro saquinho usado de chá, a mensagem apareceu. Ali mesmo

na frente da louça suja

ele se anunciou. 

Soube sem hesitação que se tratava do meu destino. 

Meu destino vinha escrito na etiqueta do saquinho de black chai que uma das bruxas tinha deixado pela metade. Dizia:

Believe something higher.



Quem é que pode afirmar com certeza o preciso lugar no qual o destino nos espera?

Quem tem autoridade para dizer que uma mensagem é profética, e outra não?

Posso dizer hoje, com toda convicção, que o meu destino foi desvelado numa xícara de black chai. A profecia escrita em letras brancas me subiu à cabeça em calafrios. Vinha casual, disfarçada de mensagem positiva ou dica do dia que, no mais das vezes, só presta para repetir a desesperança do senso comum. Mas a verdade é que nunca me enganou, a mensagem. Sabia que tinha sido escrita para mim, especialmente, para aquele dia, para sempre. 

A gente sabe quando chega a nossa vez. 

Desde quando havia something higher? Fiz-me a pergunta, mas era uma pergunta que não cabia dentro de si. O que vinha escrito no papel de chá não era hipótese. O escrito na xícara de chá era uma afirmação

Believe something higher 

um mantra

Believe something higher

uma ordem.



O garçom que dividia o turno da tarde comigo entrou na área de serviço com uma pilha imensa de copos sujos:

— Tudo bem? Tá com cara de quem viu espírito, baby.

E saiu. Pelo vão da porta que abria e fechava, ouvi uma criança chorando. Ouvi um latido de cachorro e a música de fundo, um mantra que não lembro ter ouvido antes.

Tentei negar o que naquela altura já era inevitável. Tentei negar porque encontrar o destino é ser apresentado ao novo sem a garantia de que, ao aceitá-lo, poderemos manter as conveniências do presente. 

Aceitar o destino é aceitar ganhar e aceitar perder. 

Hesitei. Não deve ser nada, é só uma mensagem estúpida. Tratei de continuar com as tarefas. Ainda havia a segunda xícara para lavar, afinal de contas, e uma meia dúzia de mesas para servir. A tarde ia virando noite, e os clientes da janta chegavam. Levantei o braço para atirar a caneca na pia, e foi só quando ela estava no alto, pronta para entrar debaixo da torneira, que encontrei a outra mensagem. A mensagem, que estava ali, no saquinho da segunda xícara de black chai inacabada, dizia também

Believe something higher.

As cartas do tarô viravam na minha direção, o jogo era meu.




Era mesmo a confirmação. 

As canecas azul-escuras de um profundo, misterioso abismo.

As mulheres com roupas cor de terra numa tarde lilás. 

O filtro de água me olhou da estante

triste

já sabia da minha 

partida. 

Às vezes somos os últimos a saber do nosso destino

anunciado secretamente em borras de café

na trilha sonora dos restaurantes

na pelagem do gato

no fim de um amor

ou de uma amizade

no perdedor de uma partida de críquete. 

Por quanto tempo ficaremos ignorantes do nosso destino verdadeiro? 

Naquele dia, entendi que o destino tinha sempre me esperado.

Falava pelos objetos e seres, procurando tradução.

Naquele dia, por uma razão que ainda não compreendo

(por uma razão que jamais compreenderei)

a mensagem na xícara de chá. 

Na área de serviço, intoxicada pelo cheiro do black chai que as duas tinham deixado pela metade, ao som das panelas sujas que encontravam o detergente cristalino nas mãos do colega que adora críquete, firmei meu acordo com o Destino. Tomei o resto de chá de cada uma das xícaras 

aceito

arranquei os papeizinhos

— os dois —–

coloquei-os no bolso da calça

Experience something higher

e deixei a área de serviço. A porta basculante ficou balançando com a força da minha 

passagem.

Andei pelo restaurante em passos rápidos, na direção da saída.

Deu para ouvir as mulheres chamando

— Você pode trazer a conta e a maquininha do cartão?

Mas não virei para trás. Ainda vestida com o uniforme e o avental,
cruzei a porta 
decidida
something higher
alcancei a varanda
não voltar 
segui para a rua
continuei
caminhando.

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Falar de sonhos é algo central para quem acredita em dias melhores; o sonho normalmente tem marcas de utopia, uma realidade que nunca chega, mas que temos sede e fome de ver se materializar em nossas vidas. Algumas perguntas, entretanto, permeiam a minha mente, como jovem negro que vive em uma nação que foi escravista durante 388 anos e hoje assassina a juventude negra a cada 23 minutos: é possível sonhar enquanto se sofre dores inexprimíveis? Será que um povo que historicamente teve seu direito à dignidade roubado sistematicamente consegue ter sonhos de liberdade e esperança? Talvez o sonho, nesse caso, se torne uma fuga, uma maneira de não aceitar a realidade, e o mais poderoso: uma forma de reafirmar quem realmente somos, apesar de alguns se levantarem achando que são nossos senhores, donos das nossas vidas ou de quem somos. Sonhar é um instrumento possível para enfrentar a realidade: enquanto o racismo diz que não somos humanos, os sonhos que nascem do povo negro ecoam na história, dando ao mundo exemplos radicais de uma humanidade negra que insiste na construção de uma realidade de vida.

Martin Luther King talvez seja a voz mais conhecida quando pensamos em sonhar. Em seu profundo discurso conhecido como I Have a Dream (Eu tenho um sonho), o pastor batista, nas escadarias de Washington, na maior marcha da história do povo afro-americano estadunidense, começa afirmando: “o Negro ainda não é livre”. Antes de pensar em sonhar, King conta o motivo de precisarmos romper com o real. Quase como uma marcha, ele vai construindo a sua fala histórica em direção ao alvorecer, mas antes faz questão de falar de uma grande e longa noite que o povo negro estava passando, quando diz que “cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação”. Pensando a realidade norte-americana dos anos 60 e conectando com o atual contexto do Brasil do século XXI, podemos afirmar que a vida do negro brasileiro ainda é tristemente exterminada pelos caveirões da morte, que a dor que King sentia e as forças que tentavam interditar o alvorecer negro de um mundo mais justo para os condenados da terra são as mesmas que estão há séculos no mundo ocidental.

“A América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com “fundos insuficientes”. Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. (…) Assim, nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça.” (Martin Luther King, 1963)

Diante da longa noite que o povo negro ainda vivencia, enquanto leio o discurso de King, fico pensando, quase que em uma conversa direta com o próprio líder do movimento dos direitos civis: “será que ainda é possível sonhar, pastor? Eles continuam nos matando, nos roubando, nos separando. Nossas crianças são fuziladas, nossos homens são encarcerados, nossos jovens são assassinados e nossas mulheres morrem de doenças crônicas diante do abandono social e do desemprego. A terra continua sendo deles, o Congresso tem os mesmos donos de sempre e quem manda no nosso sistema de justiça tem cor. Martin, nós estamos em um beco sem saída, rendidos, desarmados, as leis realmente avançaram, os nossos direitos fundamentais até existem no papel, mas eles não param, parecem máquinas que precisam colocar esse sistema para funcionar, e o preço é o nosso sangue. Esse cheque sem fundo e esse saldo insuficiente permanecem como marca das Américas, não somente do Norte, mas se estende por todo o continente, como uma praga que não para de crescer”.

Este texto, assim como o discurso de King, é sobre sonhos, mas, com tanta dor e desesperança, quando estes nascem? Quando nós começamos a sonhar? Queria me arriscar dizendo que, segundo o pensamento de Luther King, os sonhos começam na recusa. Na mesma hora em que recusamos o que foi imposto para nós como verdade absoluta e acreditamos na liberdade e na justiça como valores que são nossos, também temos direito de acessar. Temos o direito de ser integralmente livres e plenamente saciados com a justiça, e por isso começamos a exigir mudança! O sonho negro, neste caso, começa na teimosia, na insistência de sabermos quem de fato somos, de não nos deixarmos definir por aqueles que tentam fabricar pesadelos com a nossa realidade, que tentam eternizar a afirmação de que “o Negro ainda não é livre”. Por isso o velho hino spiritual Oh Freedom, cantado desde os tempos de escravidão pelas igrejas negras, vai dizer:

“Oh, liberdade, oh, liberdade, oh, liberdade sobre mim. E antes de me tornar um escravo, serei enterrado em meu túmulo, e irei para casa, para meu Senhor, e serei livre.”

O grito de liberdade que ecoava no sonho de Luther King não nasce de um incômodo simples e de algo momentâneo. Esse sonho é coletivo e navega por gerações. Os negros sempre escolheram cantar sobre liberdade, preferiram o céu às algemas, queriam ir para casa, voltar para o seu lar; o sonho era o cessar das dores, era a plena liberdade ou qualquer realidade em que a prisão, a violência ou a supremacia não tivesse lugar. Para sonhar, é preciso gritar, bradar alto, marchar e, no caso do contexto negro, encarar a morte face a face e falar. Como disse King, “Nós nos recusamos”. Os sonhos surgem da recusa das injustiças, da luta contra os pesadelos, da consciência de quem somos realmente. Sonhar é um exercício que começa dentro de nós, conhecendo quem somos, de onde viemos, quem lutou por nossas vidas, e Luther King sabia muito bem quem ele era. Por isso, o sonho dele se parece muito com o nosso, por isso a utopia que King expressava naquele púlpito, diante de mais de duzentas mil pessoas, ainda se conecta com a realidade das pessoas negras afrodescendentes do mundo inteiro.

“Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial. Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus. Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo.” (Martin Luther King, 1963)

A urgência manifestada no discurso I Have a Dream atravessa o povo negro na sua mais íntima existência, pois o racismo faz os nossos sonhos serem urgentes. Afinal, viver, comer e ter uma casa, um emprego e condições iguais dentro do mercado de trabalho, as crianças negras serem protegidas e tratadas como crianças, ter educação e saúde de qualidade e ser considerado gente não deveria ser um sonho. Por esse motivo, a fome tem pressa, os que estão sob a mira do fuzil da polícia não podem mais esperar. O sonho que King nos apresenta tem o seu próprio tempo e sempre será o “agora”, só deixará de ser urgente quando a injustiça racial não for mais uma realidade. Afinal, como ele diz nesse discurso, “nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial (…) e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza”. O começo desse sonho só é possível com o fim do racismo, por isso o sonho de King e das pessoas negras, na verdade, não é apocalíptico, não é sobre o fim dos tempos, mas sobre o início de uma nova realidade. O povo negro não sonha com um mundo melhor, ele sonha com um novo mundo, com novas maneiras de olhar e afirmar a humanidade em toda a sua diversidade. Diante de uma realidade construída e fundamentada no racismo, o discurso de King dá início a uma peregrinação, quase um chamado nos convocando para caminhar para uma nova realidade.

​​”Eu tenho um sonho de que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje! “(…)” Nesse justo dia, no Alabama, meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos.” (Martin Luther King, 1963)

É preciso continuar dizendo: nós temos um sonho. O sonho de King era a derrubada do racismo, dos que tentavam definir o povo negro, dizer o seu destino, onde e como poderiam andar, comer e sentar, quais lugares poderiam ocupar ou nos quais poderiam viver. É bom dizer aos brancos que leem esse discurso que o sonho de King não era retirar a importância de quem nós somos ou o orgulho negro em prol de uma paz neutra e uma falsa equidade, mas ele sonhava que, sendo nós orgulhosamente negros em um mundo dominado pelo racismo branco, nossos direitos como seres humanos fossem garantidos. Assim, as leis segregacionistas e os muros que nos separam até hoje iriam cair por terra.

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(É manhã cedinho, será preciso cavoucar na terra de dentro.

Como responder ao convite para escrever sobre sonhos e infâncias? Nos atropelos do hoje, abre-se tempo e espaço para permanecer. E, como a vida tem me acariciado com pedidos assim, escolho aceitar.

É preciso envolver-se de si, respirar para a voz desaguar no papel. Banho quente, leite quentinho feito no escuro, somente com a chama do fogo aceso na cozinha. Foi escutando a fervura, com o calor subindo no rosto, que os sinais sutis vieram. O formigamento no peito. O leite já está fervilhando, o bebê pode despertar. Um movimento involuntário, sensível, que deságua no agora. A escrita é processo, e, quando há fome em dizer, tem momentos que chega até a vazar. O que deseja ser papel é revelador do corpo, como também são os sonhos. Seria o sutil nos atravessando?

Ligo o computador. O corpo emudece, soam-se alarmes.)

Durante meu tempo de infância, tinha certa repulsa às escritas. Eram de fora para fora, descoladas de mim, autoritárias, pasteurizadas por perguntas e respostas que valiam nota. Em suas sentenças (quase de morte) de certo e errado, perdiam significâncias, esvaziavam-se de seus sopros, de seus caminhos de vir a ser, dessensibilizando meu corpo de fala.

Acordar a escrita leva tempo. E é no amanhecer do dia, no despertar que ela se tece. Silencio e escuto.

Chego na sala de aula com uma caixinha de fósforo miudinha nas mãos. Num movimento preciso, balanço de um lado para o outro para que as crianças, ao escutar o tilintar, aos pouquinhos e, no seu tempo, se acheguem e aterrem em si.

Mas, em tempos em que a exaustão é o destino, somos pegos de surpresa pelas alças dos sovacos, colocados ao chão com pernas cruzadas. A professora solicita: “Começou a aula, é hora de sentar”. “Eu vou dizer onde cada um vai ficar”. “Lucas aqui, Tomás do outro lado. Vocês não conseguem sentar perto”.

Baque. Atropelamento. Intromissão. Sobra pressa quando educar deixa de ser uma questão de sensibilidade.

Essa cena é um sintoma da aridez, uma mostra do adoecimento que tomou as organizações sociais, que insistem em dizer que não há outra forma de viver o hoje.

Michelle Prazeres nos relembra: “As regras da vida nas plataformas se espraiaram para toda a nossa existência”. O excesso de estímulos, ofertas, tarefas, entretenimento que trazem não é preenchimento, é turvamento. O cuidado com as crianças foi tomado pelos ideais de eficiência, excelência de atendimento, excesso de prontidão. O “tão pronto a ajudar”, muitas vezes, nos embotam. Sobra controle. Sobra artificialidade. A contenção, a regulação de fora pra dentro nubla a expressão das infâncias, o vital. Será que tudo isso não tem distanciado as crianças de seus sonhos?

Como se sonha com pressa? Como se cria na era da distração? Como se sente quando todo sentir é perigoso?

Perde-se o olhar para o instante, para o inusitado. Anestesiam-se os movimentos pueris, os sentidos. O olho no olho que comunica se dissipa.

A expressão “não há tempo a perder” já nos doutrinou. Encaixotaram o tempo das crianças na gavetinha das funcionalidades, da produtividade máxima.

O pequeno fragmento de instante em que todo corpo se volta para onde o coração aponta se esvai. O que será que continha aquela pequena caixinha? Será que algum olhar encarteirado ainda procura pelo tilintar?

A minha memória deixa a sala de aula, caminha pela praia, uma cena me aventa. Pouso. Vejo uma criança mexendo nas pedras e em um buraco cavado ali no chão, ao lado de um canteiro verde. Segundo Walter Benjamin, “onde as crianças brincam, existe um tesouro enterrado”.

Ao tirar com as mãos um pouco de terra e colocar uma pedra, em um movimento de pôr, tirar, se misturar, chega seu pai e lhe diz:. “Filho, aí não pode, você vai se machucar”. Escuto seus gritos de quem foi arrancado de seu chão pelas alças do sovaco, arrancado de seu existir. Ouço o choro distante acender meus ouvidos, ecoando um pedaço da minha menina. “Ali certamente estava o mundo inteirinho, as sutilezas e as preciosidades do agora.”

O brincar é que fia o tempo presente das crianças, nessa mistura do pensar sentindo e do sentir pensando. A criança, ao cavar, encontra e é encontrada pelo brincar miúdo, um fazer que dialoga com o inesperado e o subversivo. Alargam-se os tempos, abrem-se buracos, espaços de imensidão para os estados de infância.

Enquanto acontece, a brincadeira se faz, e certamente a natureza é o maior disparador dos brincantes. Permanecer ali é transformar, ir além é desver, transver, romper com as próprias mãos os ciclos de mesmice, explorar a nós mesmos. Pausa-se o usufruir, comunga-se.

É a comunhão das naturezas: um pouquinho de mim, um tantinho de nós, uma conversa com o mundo. Esse brincar que comunga permanece no corpo mesmo quando já vai longe a infância. Sonhamos.

A natureza da infância nos leva a sentir, a conceber outros modos de viver. Estejamos atentos. E é apenas através de atos criativos que a vida se sustenta, frutifica, ganha sentidos. São as crianças que avivam nossos continentes do pensamento, da linguagem, do sensível, não como um fim, mas como experimentação. O eterno começo de tudo.

E, acordados, encontramos a folha no meio-fio sendo levada pela água corrediça da chuva, uma nuvem de vaga-lume no enlace do agora com o infindável. Alcançamos enfim a dimensão poética do cotidiano.

Já dizia Mia Couto: sonho é uma porta que dá acesso à poesia. No enredamento dos afetos, das importâncias, dos silêncio é que o sonho vai e vem, balança.

A entrega, o corpo como confluente, o vagar sem propósito — a criança se constitui desses movimentos. O à toa, a troco de nada, os buracos encontrados na terra precisam ser redescobertos, revelados, experimentados. É o tilintar que desperta o corpo atravessado pelas experiências que adentramos no imaginário, no simbólico, que alcançamos uma consistência própria. Pegando emprestado de Mario Quintana: sonhar é acordar-se para dentro.

Criançar, brincar e sonhar são três palavras de uma organicidade só, e é preciso enraizar-se nelas.

(Me preparo para enviar o texto, já é hora de lavar a caneca. Te devolvo agora o convite: como temos cuidado dos chãos das infâncias? Cabe o sonhar? E quão fértil está a sua terra dos sonhos? Afinal, são por eles que se chega às nascentes.)

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O gato da insônia e a saudade dos sonhos

por Helena Cunha Di Ciero

Para meu professor
Wagner Cafagni Borja,
com gratidão

À noite, todos os gatos são pardos. E a fera que nos visita na escuridão da madrugada é perigosa, insiste em nos rodear. O gato da insônia afia suas garras numa bandeja de prata, onde moram nossos maiores medos. A fome do felino, na escuridão, é tamanha que ele devora nosso corpo, cansado, moído. E quanto mais tentamos fugir, mais longa se torna a noite. Na madrugada, nosso desamparo mia na imensidão noturna. De dia, o bichano é manso, domável; os medos diminuem de tamanho quando o sol teima em raiar, as memórias esfriam, sem qualquer vestígio de terror.

Lembro como se fosse hoje. Celebrávamos o fim do colegial, às vésperas do vestibular, nos despedíamos daquele local que era uma segunda casa, a escola. O horizonte dos sonhos da vida adulta acenava com a promessa de que nossos desejos seriam realizados, já que estávamos crescidos. Meu professor de história (que outra matéria poderia ser, afinal?) propôs, em sala de aula, uma discussão sobre o capítulo da peste da insônia narrada em Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez. Meu coração despertou para a literatura com esse livro, e nunca mais adormeceu. A narrativa da enfermidade que acomete Macondo, local onde se desenrola a história dos Buendía, tem elementos essenciais para pensarmos sobre o risco de nos afastarmos da vida onírica.

O capítulo começa com a chegada da pequena Rebeca. Logo após ser adotada pela família, ela é encontrada acordada, numa madrugada, na sala, sentada numa cadeira, chupando o dedo com os olhos fluorescentes “como os de um gato na escuridão”. Ela é quem traz o bacilo da insônia ao povoado. Uma enfermidade contagiosa, que condena os doentes a permanecerem num constante estado de vigília.

Num primeiro momento, o patriarca da família Buendía, José Arcadio, diz: “se não dormirmos, melhor, assim nos rende mais a vida”. Por isso, no começo, os habitantes da cidade não se incomodam, pelo contrário, acham que a vigília os tornaria mais produtivos. Começam então a trabalhar sem cessar. A partir daí, passam a viver num constante estado desperto, numa “alucinada lucidez”. Os dias e as noites seguem numa inesgotável produção, mas logo os habitantes se entediam e passam a conversar durante a madrugada, procurando algum esgotamento. Aqueles que sentem saudades dos sonhos propõem uma brincadeira oral sem fim: a história do galo Capão. O jogo consiste em perguntar se os ouvintes haviam pedido pela história do galo Capão, e àqueles que diziam que não era questionado se queriam ouvir a história do galo Capão, e àqueles que diziam que sim, era questionado porque queriam ouvir a história do galo Capão. E assim a brincadeira segue, num ciclo infindável.

Com o passar do tempo, os dias no vilarejo tornam-se uma constante repetição, e tudo passa a ser vivido sem pausa ou pouso. Uma vez que os doentes se acostumam ao estado de vigília, estão condenados ao avanço da enfermidade: o esquecimento. Aos poucos, os nomes de objetos vão perdendo o significado, e, além da insônia, o povo começa a sofrer evasões de memória. Com o decorrer do tempo, etiquetas são colocadas nos objetos para que seus nomes sejam lembrados, assim como suas funções. E o mesmo se dá com os animais, as pessoas e as casas. É preciso colar uma etiqueta na vaca: esta é a vaca, produz leite. E no leite: este é o leite, mistura-se com açúcar e café… E assim por diante. Buscam a preservação da memória. A cartomante, que lia nas cartas o futuro, passa a ler o passado, pois, sem que os habitantes possam sonhar, não há a possibilidade de futuro. Macondo fica condenada à peste do esquecimento.

Resumir a escrita soberana do autor me parece uma heresia. Reescrevo as linhas acima com certo constrangimento. Mas a alegoria nos serve como metáfora e nos ajuda a refletir sobre a importância de sonhar para o nosso aparelho psíquico.

Sonhar e agir

Freud já dizia que nada acontece antes de ser sonhado e que são os sonhos a fonte da imaginação, a via régia do inconsciente. Uma espécie de portal que nos revela algo de nós mesmos que ignoramos. Segundo o neurocientista Sidarta Ribeiro, o sonho é essencial para o ser humano desenvolver a habilidade de fazer planos. A capacidade de imaginar na vigília e executar as coisas tem a ver com o processo onírico, pois as mesmas regiões cerebrais são ativadas.

Na terra dos sonhos, somos livres e realizamos desejos — muitas vezes, inconfessáveis para nós mesmos. Suportamos a realidade porque sonhamos. Quantas vezes o enlutado sente alívio ao sonhar com a pessoa que perdeu?

É no livro A interpretação dos sonhos que Freud descreve o sonho como a realização de um desejo. Porém, nem todo desejo pode ser explícito, e muitas vezes ele se apresenta com certo disfarce.

A censura está baixa quando sonhamos, e temos, assim, um terreno fértil para sentimentos ocultos e fantasias. Mesmo assim, alguns são censurados por nós mesmos — e, para se revelarem, juntam uma série de elementos que criam uma espécie de quebra-cabeça simbólico pessoal, somando vivências e experiências singulares e individuais, com significado único. Em resumo, certas coisas se dão em nossa mente de forma disfarçada ao adormecermos. É como se, dormindo, nossos desejos acordassem no sonho, apresentando-se de forma mascarada. Tal mecanismo é denominado condensação.

Uma amiga, após encontrar o ex-namorado, acorda assustada: havia sonhado com uma múmia que saía do sarcófago, toda empoeirada, e a perseguia. Ao acordar, levou o sonho para a análise e se deu conta: seu inconsciente revelava-lhe o impacto daquele encontro. A múmia que a perseguia era esse sentimento do passado que, pelo sonho, ela percebeu ainda estar vivo dentro dela.

Mas, para cada pessoa, os símbolos que aparecem num sonho têm um significado específico, que só pode ser decifrado pelo próprio sonhador. Mesmo que apareça de maneira torta, dá notícias de algo que, acordado, pode ser muito ameaçador. Por isso, o dicionário de sonhos não deve ser levado muito a sério. Como dito por Freud: o sonho pertence ao sonhador.

Eventos ocorridos durante o dia e que dão formas construtivas aos sonhos são chamados restos mnêmicos. É como se o inconsciente “pescasse” elementos na realidade para trabalhar durante o sonho. Logo, haveria um pensar inconsciente durante o estado de vigília que vai selecionando elementos do dia, levando materiais para a vida onírica.

Existem também os sonhos de repetições traumáticas — uma tentativa do nosso aparelho psíquico de dar conta de um trauma. A pessoa sonha o evento diversas vezes, em busca de elaborar aquilo que foi excessivo. Como se, ao dormir, tentasse acomodar algo extremamente incômodo, revivendo a cena madrugada adentro. Tal ideia é sustentada por Ferenczi — o sonho seria uma tentativa de reparação do trauma.

O psicanalista Thomas Ogden associa a capacidade de sonhar ao crescimento e ao aprendizado com as experiências. A literatura é um lugar de sonho, assim como a arte, que nos tira de um estado zumbi e nos acorda para outros mundos quando a realidade mais parece uma terra árida.

Sonhar acordado também é extremamente importante. Poder fantasiar nos possibilita uma tolerância maior à realidade. A fantasia é um dos veículos pelo qual o desejo pode se apresentar, sem ter que brigar com nosso lado responsável pela censura. É um terreno no qual tudo pode acontecer.

O sonho captura a fluidez do tempo

Há algo precioso no sonho: podemos voltar a ser crianças, encontrar pessoas perdidas, visitar casas que há muito abandonamos. No sonho, temos a percepção da atemporalidade do inconsciente e transitamos na fluidez desse tempo.

Quando perdi minha mãe, sonhei que a colocava boiando numa cachoeira. Dava-lhe um beijo na testa, abria os braços e a entregava para a água. Ela estava de branco, como se estivesse sendo batizada. Quando acordei, entendi. Uma mãe de santo havia me dito certa vez que eu era filha de Oxossi, filha da água doce. Minha mãe agora tinha sido devolvida para a mãe natureza e estava mergulhada dentro de mim para sempre.

Nós nunca vivemos essa memória, mas ela habita em mim, como qualquer experiência que eu tenha vivido na vigília. Foi o final feliz que eu inventei para ela na noite em que foi velada. Um presente que meu inconsciente ofereceu ao meu coração órfão.

O sonho é o antídoto para a peste da insônia, mas também para a peste da saudade, pois através dele podemos reencontrar pessoas perdidas, abraçar-lhes forte e inventar mais uma memória para viver junto. O sonho talvez seja a máquina de memória que José Arcadio Buendía tanto quis fabricar em Cem anos de solidão. Tomara que, nesta noite, meu inconsciente me ofereça um passeio de mãos dadas com ela.

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