O descontentamento da população brasileira com a educação do país não é novidade. É desses problemas históricos, tomados quase como aspecto da identidade nacional, que se agravaram nos 4 anos de governo Bolsonaro. Para além das pesquisas que mostram essa insatisfação — como, por exemplo, o estudo Retratos da Sociedade Brasileira – Educação Básica, realizado anualmente desde 2006 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em parceria com o Ibope Inteligência —, a descrença nas instituições que cuidam do setor pode ser sentida nos mais distintos contextos sociais, sendo palpável em diálogos rotineiros, dos que acontecem enquanto se chucha o pãozinho ou a bolacha no café. A maioria, mesmo a parcela que desfruta dos privilégios de bancar o ingresso dos filhos em instituições que dispõem de mais recursos, concorda que algo precisa mudar. Mas, no Brasil, o que isso significa? As mudanças, afinal, podem acontecer em diversas frentes. Qual seria a principal ordem do dia? Equipar melhor as escolas, aumentar a segurança, estimular a participação dos pais, melhorar a gestão…? Ou a melhor pedida seria, então, uma reforma dos métodos de ensino?

Nos últimos anos, com a aprovação de um Novo Ensino Médio, essa última abordagem virou motivo de celeuma. 

O que é o novo ensino médio?

A Reforma do Ensino Médio Brasileiro é um conjunto de mudanças para o sistema educacional do país, propostas pelo Governo Federal. Aprovada em 2017, com Michel Temer na presidência, a reforma teria como objetivo modernizar o currículo escolar, tornando-o mais flexível e permitindo que os estudantes pudessem escolher as disciplinas que desejam estudar de acordo com suas preferências e interesses. Entre as principais mudanças propostas, estão a ampliação da carga horária anual, a possibilidade de escolha de itinerários formativos, a inclusão de disciplinas importantes — lê-se Filosofia, Sociologia, Educação Física e Artes — como obrigatórias e a flexibilização dos horários para que os alunos possam estudar em tempo integral.

A Reforma, claro, tem gerado debates e controvérsias desde sua aprovação, com críticos apontando que as mudanças foram implementadas sem a devida discussão com a sociedade e com a comunidade escolar, além de questionarem a falta de recursos para sua implementação efetiva. A implementação tem sido um processo bastante complexo e desafiador, em especial pela adaptação das escolas e dos professores. Muitos deles relatam a falta de formação específica para lidar com algumas mudanças propostas, isso para não falar da falta de recursos para a elaboração de novos materiais didáticos e a realização de atividades extracurriculares.

Alguns estados, como São Paulo, já têm pensado em fazer mudanças. O governo paulista estuda reduzir as opções de formação específica para poder dar mais apoio às escolas. 

O Novo Ensino Médio começou a ser implementado no Brasil a partir de 2019, quando foram definidas as primeiras diretrizes curriculares para as escolas. Desse momento adiante, as escolas começaram a elaborar seus projetos pedagógicos de acordo com as novas orientações curriculares. A implementação é gradual e está sendo feita de forma escalonada, de acordo com as condições de cada escola e rede de ensino. Isso significa que, em alguns casos, a implementação do novo ensino médio leva mais tempo para acontecer completamente.

Milan Puh, docente da Faculdade de Educação (USP), acredita no efeito negativo que isso pode ter:

“Os estados e municípios têm limitações orçamentais e, também, de recursos humanos para oferecer uma gama maior de disciplinas e itinerários formativos, pode se esperar um efeito adverso à expectativa de ter jovens adultos preparados para o mundo altamente mutável e instável, uma vez que lhes pode faltar uma visão panorâmica e estrutural de como o mercado e a sociedade funcionam.”

Faculdade de Educação da USP.

A pandemia trouxe desafios adicionais para a implementação, uma vez que muitas escolas tiveram que adotar o ensino remoto e precisaram adaptar seus projetos pedagógicos às circunstâncias. Mesmo assim, apesar das dificuldades adicionais, as escolas e redes de ensino continuaram trabalhando para implementar as novas diretrizes curriculares e tornar o ensino médio mais adequado às necessidades e interesses dos estudantes.

Uma reforma como essa não acontece da noite para o dia. Ela ainda está em curso e enfrenta muitos desafios. É necessário que sejam tomadas medidas efetivas para garantir que as mudanças propostas sejam implementadas de forma adequada e com qualidade.

OS PRÓS E OS CONTRAS

O caso demonstra toda a complexidade do sistema educacional brasileiro. Há muitas nações dentro do país que chamamos de Brasil, com uma infinidade de realidades e subjetividades. Cada medida de escala nacional, portanto, deve estruturar diretrizes para possibilitar a melhor implementação possível. Ainda que bem intencionada e visando melhorar um problema latente, se não for pensada nos mínimos detalhes, uma reforma pode se virar contra si mesma. O Novo Ensino Médio é uma solução ou um tiro no pé?

Ele, de fato, responde a algumas angústias clássicas. Para começar, ele permite uma maior flexibilidade do currículo, fugindo daquele esquema tão engessado, e possivelmente traumatizante, que conhecemos. Um dos principais objetivos da proposta é dar aos estudantes alguma autonomia para escolher as disciplinas que desejam estudar, indo de acordo com suas preferências e interesses. O processo de aprendizagem, assim, fica bem mais atraente e significativo para eles, podendo até dar uma visão mais abrangente de suas atividades no mercado de trabalho.

Outro ponto é a ampliação da carga horária, com a qual abre-se a porta para um maior aprofundamento nos conteúdos estudados e contribuir para uma formação mais completa dos estudantes e a inclusão de disciplinas importantes, que contribuem para uma formação mais ampla e para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais.

Mas, é bem verdade, ela também esbarra em questões que são igualmente clássicas. 

Uma delas, talvez a principal, é a falta de diálogo com a sociedade e a comunidade escolar. A discussão não incluiu os principais partícipes da história, de maneira tal que a elaboração das mudanças acaba sendo consideravelmente menos efetiva do que poderia ser. A ausência quase ingênua de reconhecimento das desigualdades regionais é um exemplo disso. Caso o diálogo fosse tão abrangente quanto deveria, isso logo seria reconhecido e aplicado de maneira prática nas medidas. A flexibilização do currículo, por exemplo — a priori, um ponto de mudança que soa positivo —, pode acabar ampliando a desigualdade social, uma vez que nem todas as escolas possuem a infraestrutura necessária para oferecer as diferentes disciplinas e áreas de concentração. Mais uma vez, reverberando o que já acontece na sociedade de uma maneira geral, a mudança benéfica se restringe principalmente às camadas mais abastadas. 

A implementação da reforma demanda recursos financeiros e formação específica dos professores para lidar com as mudanças propostas, o que nem sempre tem sido garantido pelo poder público.

“O que a discussão sobre o ‘Novo’ Ensino Médio nos lembra”, comenta Milan Puh, “é a dificuldade de implementação de determinadas políticas para o contexto das vastas diferenças e desigualdades brasileiras, fazendo com que a não-implementação seja razão de novas reformas para ‘corrigir’ aquilo que nem chegou a ser efetivamente implementado. Esse tipo de ocorrência não é nova, pois tivemos propostas semelhantes, dentro do seu momento histórico, nos anos 1940 e 1970, sendo essa uma tendência cíclica no nosso país. Querer reformar um sistema que ainda não consegue se consolidar, tende a aprofundar os problemas duplamente, tanto pela dificuldade de ‘resolver’ os problemas antigos quanto por acarretar novas questões que podem se transformar em empecilhos para a efetivação de um bom ensino.” 

“As reformas que se pretendem ‘universais’, ‘atuais’ ou ‘inovadoras’, muitas vezes costumam padecer de dificuldades em entender a particularidade de cada instituição escolar e espaço que atende; circunstâncias históricas que afetam o modo como o novo modo de ensino se concretizará; e reciclagem de ideias já testadas que ocorre ao pensar propostas que se estabelecem em oposição ao que vinha anteriormente.” 

O governo Bolsonaro e o descaso com a educação

Jair Bolsonaro sempre demonstrou que o investimento na educação não era uma de suas prioridades. De acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em 2021 o gasto público com a educação atingiu o menor patamar desde 2012. Seus esforços, na verdade, pareciam mais direcionados à desvalorização do Magistério Público e da estrutura educacional. As retiradas sistemáticas de dinheiro no ministério desde 2019 reduziram em 80% o gasto federal com a construção de creches e pré-escolas. A lista que explicita o viés anti-educação é longa: escândalos de corrupção, ataques às universidades públicas, cortes de recursos, corrupção no Ministério da Educação (MEC), guerra ideológica nas escolas, abandono da educação do campo, o orçamento secreto… Chega a ser impressionante constatar que esses são apenas alguns dos desastres da política educacional da gestão do ex-presidente. 

E nada poderia representar melhor esse desleixo — algo que, somado ao período de pandemia, levou a educação do Brasil aos piores índices dos últimos anos — do que a troca não de um, não dois, não de três, mas de cinco ministros da educação. Lembra deles? 

  1. Ricardo Vélez Rodríguez (1º de janeiro de 2019 a 8 de abril de 2019) — Filósofo colombiano naturalizado brasileiro, foi o primeiro ministro da educação do governo Bolsonaro. Sua gestão foi marcada por controvérsias e polêmicas, como a tentativa de retirada de trechos sobre ditadura militar nos livros didáticos.
  2. Abraham Weintraub (8 de abril de 2019 a 20 de junho de 2020) — Economista e professor universitário, assumiu a pasta em abril de 2019. Sua gestão também foi conturbada, marcada por declarações polêmicas e críticas a universidades públicas. Ele deixou o cargo para assumir um posto no Banco Mundial.
  3. Carlos Decotelli (25 de junho de 2020 a 30 de junho de 2020, se formos generosos) — Economista e professor universitário, foi nomeado em junho de 2020, mas acabou deixando o cargo antes mesmo de tomar posse. Isso ocorreu após denúncias de que ele teria incluído informações falsas em seu currículo.
  4. Milton Ribeiro (10 de julho de 2020 a 28 de março de 2022) — Teólogo e pastor presbiteriano, buscou implementar medidas voltadas para o ensino técnico e a educação básica, além de ter anunciado a criação de um novo programa de inclusão de estudantes em situação de vulnerabilidade. Em 2022, pediu exoneração após denúncias de envolvimento no esquema de corrupção chamado de “Bolsolão do MEC”.
  5. Victor Godoy (29 de março de 2022 a 31 de dezembro de 2022) — Engenheiro e servidor público, ficou marcado pelos cortes substanciais na verba do MEC.

Contabilizar os cortes somente de 2022, ocorridos sob a batuta de Victor Godoy, é assustador. Com a justificativa de atender ao teto de gastos, o governo federal determinou em maio o corte de 3,2 bilhões do orçamento do MEC, o que afetou 14,5%  das políticas da pasta, universidades, institutos federais e órgãos como o Inep. Em outubro, mais 2,4 bi foram cortados do MEC.

Métodos de ensino ao redor do mundo

Existem diferentes formatos de ensino médio ao redor do mundo, que variam entre si. Em muitos países, o ensino médio é focado na preparação dos estudantes para o ingresso na universidade, com um currículo bastante rigoroso e exigente. Já em outros, ele é voltado para a formação profissional, incluindo disciplinas técnicas e práticas que visam preparar os estudantes para o mercado de trabalho. Mesmo as habilidades socioemocionais também servem de foco para alguns métodos, que trabalham com um currículo que inclui disciplinas como Filosofia, Psicologia e Educação Física, uma combinação que pretende desenvolver a liderança, a empatia e a resolução de problemas. 

Se a tapeçaria político-social de uma nação se voltar para ideias que valorizem a formação humana por meio da arte, o desenvolvimento das habilidades artísticas e culturais dos estudantes será prioridade. Nesses casos, o currículo pode incluir disciplinas como Artes, Dança e Teatro. Em alguns países, o ensino médio é organizado em torno de projetos interdisciplinares, que permitem aos estudantes explorar diferentes áreas do conhecimento de forma integrada. Nesses casos, o currículo é bastante flexível e permite aos estudantes escolher os projetos que desejam desenvolver. É tudo uma questão de abordagem e encaixe. 

E quanto aos cinco maiores PIBs do mundo? Nos Estados Unidos, o currículo é definido pelos governos locais, com estudantes tendo a opção de escolher disciplinas eletivas, que variam de acordo com a oferta da escola. Na China e no Japão, o ensino médio obrigatório dura três anos e tem um currículo bastante rigoroso, mesmo que os estudantes também tenham a opção de escolher algumas disciplinas eletivas, como Música e Arte. Já na Alemanha, o ensino médio é dividido em dois tipos: o Gymnasium, voltado para a preparação dos estudantes para o ensino superior, e a Hauptschule, voltada para a formação profissional dos estudantes. O currículo inclui disciplinas como Matemática, Ciências, Línguas e Estudos Sociais. No Reino Unido, o ensino médio é dividido em duas etapas: o GCSE (General Certificate of Secondary Education), que dura cinco anos e é obrigatório, e o A-level (Advanced Level), que é opcional e prepara os estudantes para o ensino superior. O currículo inclui disciplinas como Matemática, Ciências, Línguas e Estudos Sociais.

É interessante, e importante, notar que cada país segue diretrizes de ensino que vão de acordo com suas próprias tradições e realidades, como aponta Milan pensando sobre o panorama brasileiro.

“Chama-me bastante atenção a falta de uma perspectiva histórica do atributo popular que se deu à reforma educacional, chamando-a de ‘nova’, uma vez que já se fez reformas no passado e que foram amplamente estudadas, mostrando que redução e flexibilização de currículo em escolas brasileiras, principalmente públicas, não costuma resultar em melhorias. Currículo ‘mínimo’ flexível é uma característica de países com políticas chamadas liberais, acreditando que os jovens, isto é, adolescentes são inteiramente capazes de decidirem que caminho profissional-pessoal tomar e em área se especializar, algo a se almejar, porém difícil de se cobrar com quem ainda está longe de se tornar adulto.”

“Essa lacuna na formação geral, considerada ‘clássica’, e até certo ponto antiquada, é o que eu diria que é mais essencial para criar um trabalhador e um cidadão mais proativo e empreendedor da própria vida, o que estudos em historiografia educacional confirmaram, observando a nossa realidade e dialogando com outros países que perceberam que, se não oferecerem amplitude no ensino obrigatório, terão que fazer no complementar.”

E agora, o que fazer?

Em meio à pressão pela revogação do Novo Ensino Médio, o atual ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou recentemente que um grupo com representantes de diferentes setores da educação será formado pela pasta para “corrigir” os problemas da reforma criada há alguns anos. A intenção do ministro não é revogar. Ele defende apenas que certos pontos sejam aperfeiçoados, mas, considerando o histórico recente, é difícil não ter ressalvas com o que quer que aconteça daqui adiante.

“Os custos de uma ‘revogação’ de reforma desse porte serão altos provavelmente inviabilizando a sua execução, restando a possibilidade de revisar o que já foi feito, tentando adequar melhor a todos os interesses em jogo, até que uma novíssima reforma aparecer, novamente se apresentando como necessária e urgente para a nossa educação.”

Ao menos, estamos pensando e falando sobre o assunto — e espera-se que Santana faça o mesmo, envolvendo no diálogo pedagogos, professores e alunos. 

Seguimos na empreitada para, quem sabe algum dia, aprendermos a fazer com que se goste de aprender.

“Afirmar que é o destino dos antílopes serem mortos e devorados por outro animal equivale-se a dizer que é o destino das mulheres serem estupradas. Ambos são terrivelmente equivocados, e ambos negam o sofrimento de suas vítimas.”

Assim a filósofa Martha Nussbaum causou polêmica e, em muitos, revolta, ao comparar o estupro de mulheres com a predação natural entre os animais. Seu comentário, escrito no artigo “A People Wilderness” para o New York Book Review em 2022, seria apenas uma infelicidade fosse Martha C. Nussbaum um ser qualquer. Porém Nussbaum é uma personalidade de peso. Professora emérita de direito e ética na Universidade de Chicago, ela acumulou durante sua longa carreira mais de 50 títulos honorários em conceituadas instituições de ensino superior ao redor do mundo.

Nussbaum ganhou fama no início da década de 1980 com sua teoria das capacidades, na qual argumenta que uma sociedade justa deve fornecer o mínimo social básico para que cada indivíduo tenha a chance de atingir a sua capacidade máxima – ou seja, o máximo que cada pessoa é capaz de fazer. Isso inclui direitos básicos como segurança, moradia, saúde e educação, mas também socialização e diversão, pois, afinal, nós humanos somos seres sociais. Até aí, em nada discordo. Quem passou pelo isolamento de um lockdown durante a pandemia sabe muito bem a importância do social no cotidiano. Agora, Nussbaum vira seu enfoque das capacidades sobre animais não-humanos.

Não há dúvida de que vivemos um momento de preocupação com o nosso relacionamento com os animais. O vegetarianismo e veganismo ganham cada vez mais adeptos, provando que não são apenas uma moda. A pandemia global problematizou práticas como os mercados úmidos. A presidência Bolsonaro voltou a atenção do mundo ao desmatamento e destruição de habitats naturais em prol da indústria pecuária. O fato é que já não podemos e nem devemos mais evitar o debate sobre a nossa responsabilidade coletiva sobre os animais não-humanos. 

A questão é até que ponto devemos levar essa responsabilidade. Todos os animais do mundo são afetados por comportamentos humanos. Leis nacionais e internacionais governam como devemos criar, sustentar e abater animais para o consumo humano, como devemos tratar animais domésticos, e como devemos proteger e conservar espécies silvestres, proibindo a sua caça, criando áreas de proteção e até criando programas de inseminação artificial para garantir a continuação da espécie. Mesmo aqueles animais que não são regulamentados por nossas leis são afetados por nossas práticas. Poluição, plásticos e tóxicos se espalham pelo solo, pela água e pelo ar, comprometendo todos os animais do planeta. 

O problema, de acordo com Nussbaum, é que estas leis são criadas através do prisma das necessidades humanas. Não estamos tratando animais como seres que merecem alcançar sua máxima capacidade dentro dos parâmetros de sua espécie. Precisamos trocar o enfoque para as necessidades de cada animal. Nussbaum lista as capacidades que acredita merecerem os animais. A lista  inclui a possibilidade de viver uma vida longa, com boa saúde e com liberdade de movimento e o usufruto de todos os sentidos (visão, olfato, paladar, audição e tato), de pensamentos e da imaginação. A possibilidade de vivenciar emoções como o amor e compaixão, de poder raciocinar e de fazer parte de uma comunidade e desenvolver elos sociais. E mais, de poder viver em harmonia com outras espécies, brincar e se divertir, e exercer algum controle sobre suas próprias vidas. 

A implementação desta lista imediatamente levanta uma série de problemas, ao começar pelo fato que, ao contrário do que Nussbaum diz querer – afastar o enfoque humano dos animais – cria-se um antropomorfismo absurdo. Ela atribui desejos e capacidades humanas aos animais. Ainda não compreendemos o raciocínio e as emoções dos animais a ponto de garantir que a compaixão que eles exibem é a mesma que sentimos, ou que viver em harmonia com outras espécies seja um desejo, ou sequer entre nos pensamentos, de um animal que come e é comido na cadeia natural de predação. O leão sente pena da zebra?

De acordo com Nussbaum, o sofrimento de criaturas vulneráveis tem grande importância e pede alguma ação inteligente. Ser devorado por um predador não faz parte dos objetivos de vida de qualquer animal. Portanto, para garantir que cada animal pudesse atingir as suas capacidades plenas, teríamos que acabar com a cadeia alimentar natural. Como? A filósofa não apresenta uma solução. Reconhece que, “somos muito ignorantes e se tentássemos interferir com a predação em larga escala, provavelmente causaríamos um desastre em escala global.” Eu estou certa de que comparar uma gazela sendo comida por um leão com o estupro de uma mulher não é a solução. É uma equivalência moral absurda. Absurdo também é fingir que podemos tirar o enfoque humano sobre o debate dos direitos animais. Só poderemos assumir uma responsabilidade coletiva perante os animais a partir do momento que reconhecermos nosso impacto sobre eles, e também reconhecermos nossa interdependência com eles. São alimento, companhia, e parte integral do delicado equilíbrio de nosso planeta. A solução talvez não seja mais interferência na natureza, e sim uma interferência mais cautelosa e mais bem pensada. 

Juliette Binoche no filme “A Liberdade é Azul” (1993), de Krzysztof Kieslowski.

Há muito se pensa sobre a liberdade. É daquelas discussões que, independentemente da época, sempre será relevante. Do taoísta Chuang-Tzu ao filósofo grego Epiteto, de Jean-Jacques Rousseau a Immanuel Kant, de Simone de Beauvoir a Jean-Paul Sartre, de (por que não?) Diana Ross a George Michael. O tema nunca há de se esgotar. Isso porque, apesar de pontos atemporais de convergência, é essencialmente debatido de acordo com os ditames da sociedade em vigência. As noções de liberdade de séculos atrás, é evidente, eram distintas das noções de liberdade que temos agora, diluídas no suco da modernidade. E, na medida em que o mundo dá passos maiores que a própria perna e as tecnologias vão nos desafiando cada vez mais enquanto um corpo social de fato funcional, ainda mais lenha foi jogada na fogueira nas últimas décadas. 

Nos EUA, Elon Musk segue na sua empreitada quixotesca de ser a versão chinfrim de Charles Foster Kane à frente do Twitter. Enquanto isso, em terra brasilis, o presidente Lula prepara um pacote para regular as mídias sociais. A opinião pública, por sua vez, dá pitacos aqui e acolá, como a cientista Barbara Walter, que acredita que a regulamentação é fundamental para conter guerras, e a celebridade cibernética, Felipe Neto, reverbera esse coro, muito embora o seu sucesso venha da internet e se alimenta via redes sociais. Não surpreende: a celeuma está liberada.

Foto: Reprodução/Redes Sociais/Bloco dos social-democratas no Parlamento Europeu, onde disse “Vamos ter que regulamentar as redes sociais”.

Dentre as questões que crepitam na atualidade com força redobrada, podemos destacar a que pergunta: em que nível se deve regulamentar as redes sociais? E, além dessa, evidencia-se também aquela que pondera: a que ponto isso significa romper com a ideia de liberdade de expressão e se aproximar do cerceamento?

Antes de tudo, falemos sobre a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e suas equivalências estrangeiras. A lei brasileira entrou em vigor em setembro de 2020 com o objetivo de regulamentar o uso, a proteção e a transferência de dados pessoais. Estabelece, assim, regras claras e específicas no território nacional para o tratamento de data por empresas e organizações. Com a LGPD, em teoria, tem-se mais controle sobre nossos dados pessoais, podendo ela, inclusive, exigir a exclusão, correção ou atualização deles. Ademais, ainda representa um impacto significativo no mundo empresarial, pois exige que as empresas implementem medidas de segurança adequadas para proteger os dados que coletam e tratam, bem como estabelece sanções e penalidades significativas para o descumprimento da lei, incluindo multas e perda de reputação. Vale apontar que, pelo caráter transacional da internet, a lei deve tentar acompanhar o ritmo, sendo com frequência revista. É razoável, então, pensar que, sem ela, as coisas iriam de mal a pior.

Obviamente, existem várias leis similares à LGPD ao redor do mundo. Desde a implementação do General Data Protection Regulation (GDPR) na União Europeia, em maio de 2018, outras regiões e países também aprovaram leis de proteção de dados, como o California Consumer Privacy Act (CCPA) dos Estados Unidos, o Personal Information Protection and Electronic Documents Act (PIPEDA) do Canadá e a Lei de Proteção de Dados Pessoais do Japão e da Coreia do Sul. Embora haja diferenças entre elas, todas têm em comum a proteção da privacidade e dos direitos das pessoas em relação aos seus dados pessoais, e a imposição de sanções em caso de descumprimento.

“Liberty” (1983), de Jean-Michel Basquiat.

E as redes sociais nisso tudo? Se não regulamentadas, podem mesmo gerar conflitos armados, como preconiza a estadunidense Barbara Walter?

Como sabemos bem, as redes sociais desempenham um papel significativo na disseminação de informações e opiniões em todo o mundo, o que pode, sim, levar a tensões e aos níveis mais alarmantes de desinformação. Afinal, destituída das mãos de maestros, a orquestra é conduzida sob uma batuta própria: neste perigosamente livre ecossistema, não existe o filtro que deveria pautar a prática jornalística, por exemplo, e, sendo assim, esse ecossistema pode ser usado não só para difundir informações falsas, mas também para incitar o ódio e a violência, amplificar as divisões sociais e políticas, e muito mais. Em casos extremos mas bem possíveis, essas tensões podem até levar a conflitos armados e guerras. A regulamentação das redes sociais ajuda a conter essas tensões e impedir a propagação de informações falsas e prejudiciais. 

A regulamentação das redes sociais é importante por várias razões, como:

Proteção dos direitos dos usuários — Garantir que as empresas de mídia social sejam responsáveis ​​por qualquer conteúdo que viole a lei ou os direitos humanos.

Combate à desinformação Informações falsas ou enganosas podem ter consequências graves, como prejudicar a saúde pública ou influenciar a opinião pública. É necessário impor padrões de verificação de fatos e promover a transparência nas práticas de moderação de conteúdo.

Prevenção de abusos Prevenir assédio, bullying, intimidação e outras formas de abuso online, criando padrões claros para o comportamento aceitável e tornando as empresas de mídia social responsáveis ​​pela remoção de conteúdo ofensivo.

Promoção da concorrência Algumas empresas têm poder de mercado significativo, o que pode levar a práticas anti-competitivas e prejudicar a inovação. A regulamentação ajuda a promover a concorrência, estabelecendo regras claras para a concorrência justa e impondo limites à concentração de poder de mercado.

As políticas de regulamentação das redes sociais variam significativamente entre os países e dependem do contexto político, cultural e legal de cada um. Algumas das abordagens mais comuns incluem:

Auto-regulação pelas próprias empresas de tecnologia Embora sejam frequentemente criticadas por serem inconsistentes ou pouco claras, muitas empresas de tecnologia têm suas próprias políticas de moderação de conteúdo, que visam limitar a disseminação de conteúdo considerado inadequado, ofensivo ou prejudicial

Regulamentação governamental Alguns países, como a China e a Rússia, têm políticas de regulamentação mais rígidas para redes sociais, que incluem a censura e a vigilância ativa dos usuários. Outros, como a União Europeia, implementaram regulamentações para aumentar a transparência e responsabilidade das empresas de tecnologia em relação à moderação de conteúdo.

Autorregulação da comunidade Algumas redes sociais, como o Reddit e o Twitch, adotam abordagens mais descentralizadas, nas quais a comunidade de usuários é responsável por reportar e moderar conteúdo considerado inadequado.

As campanhas eleitorais de Donald Trump e Jair Bolsonaro são exemplos bem ilustrativos e notórios de uso danoso das redes sociais. Elas desempenharam um papel fundamental na eleição de ambos os candidatos, permitindo-lhes alcançar um grande público de forma direta, sem depender tanto dos veículos de mídia tradicionais. Plataformas como o Twitter, Facebook e Instagram foram utilizadas para comunicação com eleitores, promovendo suas políticas com a típica retórica populista e atacando seus oponentes debaixo dos panos. As redes sociais também permitiram que as campanhas dos candidatos fossem impulsionadas por bots e contas falsas, criando uma aparência de apoio popular que pode ter influenciado a percepção do eleitorado.

No entanto, a regulamentação deve ser equilibrada, respeitando o que se entende por liberdade de expressão. Até certo ponto, pelo menos. É preciso encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos dos usuários das redes sociais e a proteção da sociedade contra a disseminação de informações perigosas.

Karl Popper por Ingrid Von Kruse.

Lembra do youtuber Monark, que no começo de 2022 defendeu a existência do partido nazista no podcast-fenômeno Flow? Ele lançou em praça pública uma opinião controversa, como tantas outras previamente expressas seja por ele ou por outros no já mencionado podcast, e há quem defenda que ele “estava no direito dele”. Para pensar sobre a situação, rememoremos o que nos disse Karl Popper, em seu livro The Open Society and Its Enemies, sobre o paradoxo da liberdade. O pensador parte da ideia de que a liberdade total leva à supressão do fraco pelo forte, já que a pessoa livre pode usar a sua liberdade absoluta para desafiar a lei, desafiar a própria liberdade e clamar por um tirano no poder. E quem tiver mais poder pré-estabelecido, sairá vencendo nessa. No entender de Popper, “a liberdade, no sentido da ausência de qualquer controle restritivo, deve levar à maior restrição, pois torna os violentos livres para escravizarem os fracos”. Com isso, Popper defende que “qualquer espécie de liberdade será claramente impossível se não for assegurada pelo Estado”.

Trocando em miúdos: não há como existir uma liberdade que perpetue o domínio de pessoas sobre outras, seja com um discurso higienista ou com a utilização manipuladora e antiética de uma ferramenta.

Se as redes sociais forem um microcosmos de nós humanos enquanto sociedade, nada mais justo que ela receba a devida regulamentação. E não, mil vezes não: isso não quer dizer autocracia ou qualquer outra palavra que soa tão bem em um filme de ficção científica. O belo e imaculado direito de ir e vir, no final das contas, não é o direito de impedir outras pessoas de irem e virem.

O que aconteceria se o pessoal do Guerra nas Estrelas viesse passar um carnaval no Rio nos anos 60. Essa é a legenda que, acompanhada de uma imagem de Darth Vader em plena folia carioca sessentista, inaugura a série Carnavais Artificiais. Com a ajuda da inteligência artificial, o artista multiplataforma Pedro Garcia de Moura imagina carnavais que não aconteceram, mas que, a partir da geração feita por ferramentas digitais, ganham todo o vigor que nunca tiveram. Uma foto na Praça Paris tirada com o celular (postada previamente no perfil Cartiê Bressão) ganha a estética pixel art dos jogos de Super Nintendo e MegaDrive; um registro feito no aterro do Flamengo ou no Cordão Umbilical do Humaitá ganha os traços totorianos típicos do estúdio Ghibli. 

Foto de Madame Birite, entidade do carnaval carioca.
Madame Birite gerada por Inteligência Artificial inspirada no cineasta Alejandro Jodorowski.

A parceria de Pedro com a inteligência artificial aqui é também a parceria de Pedro com muitos outros artistas, do francês Moebius ao chileno Jodorowsky. 

A especificação de estilos visuais (ex: Anos 1960), as imagens de referências (ex: Foto de arquivo pessoal), as descrições da cena (ex: “Pessoas sobem no bonde e dançam. Festa de rua, carnaval do Rio de Janeiro, anos 1920. Ilustrado por Moebius”), todas essas informações passadas à IA vêm de ideias e iniciativas humanas. Quem gera as imagens, no entanto, é o programa Midjourney, sempre a partir desses conceitos textuais que chegam até ele. A participação humana, claro, não se restringe às ideias, ela se estende também, e principalmente, ao senso crítico. Para cada detalhamento que Pedro passa ao Midjourney, 4 imagens são criadas. Cabe ao artista julgar se gostou ou não e, se necessário, continuar estimulando o programa para encontrar exatamente o que procura.

Até agora, nas mais de 60 publicações do perfil, passamos um carnaval com Han Solo e cia., vimos os anos 1920 pelos olhos de Moebius, imaginamos como seria o fervo com a estética do NES e MegaDrive, nos transportamos para o universo estonteantemente específico dos carnavais de Alejandro Jodorowsky (a Jodofilia), sambamos no bloco da Bauhaus, descobrimos as figuras mitológicas e Ghiblianas do Rio, e acompanhamos os dramas de cada capítulo do Entrudo, registros do carnaval carioca do século XIX. Que viagem!

Não à toa, as imagens chegam a confundir algumas pessoas — “Ué…”, há quem pense, “mas não tinha Star Wars nos anos 60”. “Nossa”, há quem se surpreenda, “não fazia ideia que o Miyazaki gostava de carnaval”. Se há prova do sucesso que é o projeto Carnavais Artificiais, é essa. 

A parceria Humano & IA pode, sim, render bons frutos, como nos conta Pedro.

Como você chegou à ideia de criar um primeiro carnaval que nunca existiu, ponto de partida para os que vieram depois? 

Pedro Garcia – Eu tenho uma relação muito forte com o carnaval (foi fantasiado de Jorge Tadeu num bloco que eu comecei a tirar fotos como Cartiê Bressão). Depois do Réveillon, já estava começando a esquentar o clima do carnaval aqui no Rio quando eu resolvi brincar com o Midjourney, que já estava namorando há algum tempo, mas não tinha tido tempo pra estudar um pouco.

As ferramentas de inteligência artificial são treinadas com o conteúdo que já existe na internet, e por isso ele tende a ser mais americanizado (como é o caso do Guerra nas Estrelas). Mas como o Rio é uma cidade muito particular, com uma paisagem reconhecível e muito retratada desde sempre, ele também faz parte do repertório dessas ferramentas. Acho que aproveitei o clima de carnaval chegando com essa facilidade de usar a cultura pop da ferramenta e fui gostando dos resultados. Pareciam fotos que eu tiraria se isso tivesse acontecido de verdade.

“Eusébio Vilas Boas, residente em uma pequena chácara no Grajau, toca na banda de Carmen Miranda e é membro fundador do bloco carnavalesco Bovino Apalermado, conhecido por seus trajetos anárquicos pelas ruelas do centro do Rio.”

Havia antes uma familiaridade com ferramentas de geração de imagens ou foi a partir da ideia do Carnavais Artificiais que você foi mais atrás?

PG – Já tinha brincado com o Dall-E alguns meses antes e tinha achado curioso e impressionante, mas o Midjourney (a ferramenta que eu uso pro Carnavais Artificiais) foi um salto quântico de qualidade.

Eu gosto de criar projetos que consigam me conectar com meu fluxo criativo. No Cartiê Bressão, por exemplo, o nome e a proposta funcionavam como um guia pra me orientar nas decisões do que fotografar (apesar de eu ter, ao longo dos anos, expandindo e me desprendendo da necessidade do humor). No caso do Carnavais foi a mesma coisa. Eu acho que eu consegui criar um direcionamento pra mim mesmo que potencializa minha criatividade.

O carnaval carioca de época em sua versão Bauhaus.

Você acredita que a inteligência artificial tem o potencial de ampliar ou limitar a criatividade de artistas? Aqui, você se viu com mais ou menos liberdade?

PG – Só posso responder com propriedade sobre o que senti com a ferramenta, e foi de muita liberdade.

A diferença entre algumas séries me chamou a atenção: ora personagens do Star Wars, ora imagens criadas a partir de fotos tiradas por você. Por que isso? Em que medida esse tipo de escolha contribui para a criação da mitologia do carnaval carioca?

PG – Estou conduzindo esse projeto do mesmo jeito que conduzo quase tudo que faço criativamente: seguindo meu instinto. Desse jeito, tudo que aparece acaba sendo um reflexo do que eu sou.

Temos com Carnavais Artificiais uma colaboração efetiva entre humano e inteligência artificial, sendo o seu dedo indispensável para um resultado final atrativo. Você vê isso algum dia mudando?

PG – O que posso dizer é que a minha vida inteira, tive uma relação de imaginar coisas e materializá-las com as ferramentas que tinha à minha disposição. Agora parece que estou conseguindo enxergar a minha imaginação como ela é.

Hoje em dia, inteligências artificiais são capazes de emular trabalhos de artistas consagrados (como, por exemplo, rimas de Shakespeare ou pinceladas de Gogin). Bill Gates disse que, atualmente, esse é o aspecto mais interessante do ChatGPT. Você usou traços de Moebius, do estúdio Ghibli e outros. O que você pensa sobre esse lado “falsificador” das IA?PG – No meu caso, eu considero mais “antropofágico”, porque sinto que é uma continuação das minhas explorações artísticas. O próprio Cartiê Bressão já é uma apropriação do Henri Cartier-Bresson, e ao longo do projeto sempre fui compartilhando a relação que tenho com minhas referências. Encaro toda a arte que consumimos como peças na construção da nossa linguagem emocional, e depois gosto de combiná-las, modificá-las e usá-las pra me expressar.

 E se o cineasta Alejandro Jodorowsky viesse passar um carnaval no Rio?

Qual é a parte mais divertida desse projeto?

PG – Enxergar a imaginação por um lado, e a outra me sentir exatamente como me sinto tirando fotos na rua: com a minha sensibilidade e criatividade ligadas, e dialogando com o acaso.

Não, a Claudia Raia não recebeu 5 milhões de reais via Lei Rouanet. Temos diante de nós mais um caso de fake news, de quando a informação xis cai em mãos indevidas e a internet responde no auge da ingenuidade, acreditando cegamente no ípsilon-zê que acabou sendo divulgado. No caso, o ípsilon-zê é o dinheiro indo para a atriz — a distorção foi tanta que uma imagem dela, com a legenda “vou ganhar 5 milhões pela Lei Rouanet e você aí esperando picanha com cerveja”, chegou a ser compartilhada nas redes sociais. O xis, por sua vez, na verdade é bem simples: um projeto para montar duas peças de teatro estreladas por ela recebeu autorização para captação do valor. Ou seja, agora o produtor por trás dos espetáculos pode buscar empresas e pessoas físicas para patrocinar as montagens em troca de renúncia fiscal. Nada do valor abastado cair na conta de Raia. E tem mais: quanto maior for a renúncia, maior tem que ser a contrapartida social. Ao fim, o projeto da atriz empregará quase 200 pessoas durante 2 anos.

Cena do filme Central do Brasil, de Walter Salles (1998). Fernanda Montenegro foi a primeira artista latino-americana indicada ao Oscar na categoria Melhor Atriz.

As críticas, claro, vieram principalmente da ala mais conservadora, ávida para criticar o atual governo e se ater às informações mais convenientes às suas personas políticas — como o senador Flávio Bolsonaro e a ex-secretária de Cultura Regina Duarte. O caso todo, a despeito de seu quê kafkiano, traz à baila um assunto importante, sobre o qual as pessoas pouco conhecem: os fomentos culturais no Brasil. O que são? Onde vivem? Do que se alimentam?

A Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, foi criada em 1991 no governo Collor e é até hoje a principal ferramenta de fomento à cultura do Brasil. É por meio dela que empresas e pessoas físicas viabilizam atividades culturais abatendo o valor total ou parcial do Imposto de Renda. Os projetos patrocinados, como no caso dos espetáculos com Claudia Raia, são obrigados a oferecer contrapartida social, distribuindo parte dos ingressos gratuitamente e promovendo ações de formação e capacitação junto às comunidades. É um meio de possibilitar que trabalhadores brasileiros do setor artístico e cultural realizem peças de teatro, música, dança, shows, lançamento de livros, oficinas e tantos outros, que, sem o incentivo, dificilmente veriam a luz do dia. 

Teatro Municipal de São Paulo, construído em 1911..

As empresas tributadas no regime de lucro real podem incentivar até 4% do seu Imposto de Renda e as pessoas físicas podem incentivar com até 6% do seu Imposto de Renda, se declararem no modelo completo. Foi assim que mais de 19 bilhões de reais já foram movimentados em projetos culturais.

O Ministério da Cultura, criado em 1985, é responsável por regulamentar e aplicar a Lei Rouanet. Define os critérios e as regras para a aprovação dos projetos culturais que serão financiados, além de acompanhar e avaliar a execução desses projetos. Se a Lei Rouanet é a mais relevante ferramenta de fomento à cultura no Brasil, o MinC tem um papel fundamental na sua implementação. E o mesmo acontece com outros programas: o ProAC (Programa de Ação Cultural) e o Pro-Mac (Programa Nacional de Apoio à Cultura) são exemplos.

O ProAC é destinado a apoiar projetos culturais em diversas áreas, como artes cênicas, dança, música e literatura. Criado em 2006, é responsável por incentivar projetos culturais no estado de São Paulo e permite que pessoas jurídicas destinem até 3% do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) cobrado para iniciativas aprovadas na lei. Já o Pro-Mac tem como objetivo apoiar a produção e difusão de obras e projetos culturais no interior do país. Assim, a criação do Pro-Mac tinha como foco melhorar a política de incentivos fiscais na cidade de São Paulo. Quem é contribuinte de ISS (Impostos Sobre Serviços) e IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) na cidade de São Paulo pode direcionar até 20% desses impostos para projetos aprovados no Pro-Mac. 

Ambos os programas são importantes e sua interligação com a Lei Rouanet amplia ainda mais as possibilidades de financiamento para os projetos culturais.

Museu Nacional Honestino Guimarães, em Brasília.
Foto de Fabio Szwarcwald.

Como resposta à pandemia, o MinC regula e administra a Lei Aldir Blanc, elaborada pelo Congresso Nacional em 2020. Tem como objetivo apoiar artistas, produtores e espaços culturais que foram afetados com as decorrências da Covid-19. Oferece recursos financeiros para projetos culturais, além de apoio às empresas e entidades culturais. E vem mais por aí: a Lei Paulo Gustavo foi aprovada em julho de 2022 pelo Congresso e estabeleceu o repasse de recursos públicos para o setor cultural também por causa da pandemia. À época, o ex-presidente Jair Bolsonaro chegou a vetá-la, como também fez com a Lei Aldir Blanc, mas o Congresso derrubou os vetos presidenciais e restituiu a obrigação da União repassar 3,86 bilhões do Fundo Nacional de Cultura (FNC) para estados e municípios fomentar atividades culturais.

Os vetos de Bolsonaro, aliás, são representativos dos maus lençóis em que a cultura esteve ao longo de seu mandato.

“Margareth, se prepare, porque nós vamos ter que fazer uma revolução cultural”

Essas foram as palavras do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para Margareth Menezes na primeira reunião com seus ministros. A mensagem direcionada à nova Ministra da Cultura, que recentemente desbloqueou quase 1 bilhão da Lei Rouanet (retido desde o início de 2022), é indicativo de que a névoa nacional da anti-cultura começa a se dissipar.

Ao passo que o antigo governo de Bolsonaro cortava as verbas da cultura a bel prazer, como quem tira da frente algo que lhe dá desprazer, no primeiro mês, o governo Lula aprovou R$ 610 milhões em projetos para a Lei Rouanet. Nos últimos 4 anos, o projeto de país não media esforços para reduzir o papel do Estado na promoção da cultura, ignorando a importância do setor para o desenvolvimento econômico e social, além do impacto negativo que a política de corte teve sobre a liberdade de expressão e a diversidade cultural. Sob a batuta bolsonarista, os ataques à cultura cresceram de maneira alarmante, podendo constituir, inclusive, em um desmonte institucional. 

Não precisamos ir muito longe para ilustrar esse descaso: no mandato de Bolsonaro, o Ministério da Cultura foi simplesmente extinto. Transformou-se na Secretaria Especial da Cultura, dentro do Ministério do Turismo, responsável pelas análises dos projetos da Lei Rouanet.

Quando a perspectiva de um governo é o próprio umbigo e não o progresso de um país, as decisões, invariavelmente, são tomadas por birra e não por qualquer argumento válido. Para efeitos de argumentação, desconsideremos a premissa da valorização da identidade cultural — a que ponto chegamos… — e olhemos para a cultura como uma parte importantíssima da economia. Estamos falando de uma parcela considerável de empregos e de um fator crucial na atração de turismo, além do desenvolvimento do setor criativo, uma ferramenta de mercado que também não deve ser desconsiderada. Bolsonaro optou por desconsiderar uma lógica que vem sendo abraçada e desenvolvida por outras potências. 

Economia da cultura

Sede do Ministério da Cultura junto ao Ministério do Meio Ambiente, em Brasília.

A Economia da Cultura é uma vertente dos estudos econômicos que surgiu na década de 1950, com o crescimento da indústria cultural e o aumento da preocupação com o papel econômico da cultura. A origem desta área de estudo pode ser rastreada de volta ao trabalho de economistas como Thorstein Veblen e Joseph Schumpeter, que se debruçaram sobre a forma como a cultura e a economia se influenciam mutuamente. Desde então, a Economia da Cultura tem evoluído como uma área distinta de pesquisa, com uma abordagem interdisciplinar que incorpora elementos de economia, sociologia, antropologia e estudos culturais.

Na prática, ela se concentra na análise das atividades econômicas relacionadas à produção, distribuição e consumo de bens culturais. Isso inclui a avaliação da produção cultural como um todo (como são criadas e financiadas), da sua distribuição e comercialização (como são vendidos ao público, incluindo a forma como a tecnologia, as políticas governamentais e os mecanismos de mercado influenciam esses aspectos), e o seu consumo (como são apreciados pelo público, incluindo a forma como as preferências culturais dos consumidores são formadas e influenciadas). Aborda questões relacionadas à propriedade intelectual, como direitos autorais, marcas registradas e patentes, e sua importância para a economia global. Sabe bem, ao contrário de alguns, que a indústria criativa pode ser uma fonte importante de emprego e contribuição para o Produto Interno Bruto (PIB).

O Reino Unido talvez seja o melhor exemplo disso.

Reino Unido

Onde a cultura é considerada uma parte importante do Produto Interno Bruto. De acordo com dados oficiais, a indústria criativa — que inclui filmes, música, televisão, teatro, artes visuais, design, arquitetura e outras formas de expressão cultural — cresce em torno de £390 milhões anualmente e agora contribui com £10,8 bilhões por ano para a economia do Reino Unido. Além disso, o turismo cultural é uma indústria importante para o país, sendo um dos principais motores da economia britânica.

A cultura tem sido reconhecida como parte importante do PIB do Reino Unido por muito tempo. Não há uma data específica para quando começou a ser incluída, mas a indústria criativa tem sido uma fonte importante de crescimento econômico e emprego no país há décadas. O reconhecimento formal da cultura como parte do PIB do Reino Unido pode ter começado com a inclusão da indústria criativa nas contas nacionais, o que permitiu uma avaliação mais precisa de sua contribuição para a economia do país.

O PIB britânico é superado apenas por Estados Unidos, China, Japão e Alemanha.

Certo… mas por que a Claudia Raia e não outra pessoal?

É bem verdade que muitas propostas de artistas menos renomadas não acabam sendo contempladas pelos programas de incentivo brasileiros. Segundo o guia de execução dos recursos orçamentários e financeiros do MinC,

“Os critérios de avaliação precisam garantir objetividade, transparência e isonomia do processo seletivo. A unidade gestora da seleção pública definirá no edital, pautada na especificidade do objeto, as notas mínima e máxima para cada critério da avaliação, sendo desclassificados os projetos e iniciativas que não atingirem a pontuação mínima estabelecida.

Os projetos e iniciativas submetidos à avaliação deverão receber uma nota em cada critério de avaliação. A escolha dos critérios deverá propiciar todas as condições para um julgamento que atenue ao máximo o grau de subjetividade inerente aos aspectos culturais.” 

Como um dos propósitos da Lei Rouanet, do ProAC e de outros programas é também fazer com que a economia gire em torno de produtos culturais, é natural que os projetos que envolvem artistas consagrados e conhecidos do grande público sejam contemplados com alguma frequência. Mais pessoas envolvidas, aumento das probabilidades de patrocínio, maior mobilização, ganho de visibilidade para outros artistas envolvidos, expansão na geração de empregos. Isso desconsiderando a possibilidade — no caso de Claudia Raia, essa bola não foi levantada por ninguém — de que o projeto cultural em questão aborde temáticas importantes, como as de inclusão e diversidade.

Nem sempre isso será justificativa. Proponentes que buscam uma entrada a primeira chance também devem receber o devido incentivo. É no balanço que se constrói o panorama ideal.

“Recomeçou a festa da Lei Rouanet”, declarou Jair Bolsonaro, em entrevista nos EUA, depois de Margareth Menezes desbloquear o dinheiro retido. A fala, convenhamos, não surpreende — no máximo, por constatarmos que a palavra “mamata” não foi usada. A falta de sensibilidade é um dos cartões de visita do ex-presidente. É nesse traço de sua personalidade, aliás, que se encontra o porquê de sua luta contra a arte.

Alguns sentem a chuva e outros apenas ficam molhados, é o que nos diz o ditado. Bolsonaro nunca sentiu a chuva transformadora que é a cultura. 

“Revolução cultural” foi o termo usado pelo presidente. Seja muito bem vinda.

PEDRO PERDIGÃO vive no Rio de Janeiro, estando nele presentemente ou não. Desde a mais tenra idade, tirou muito dos ares marítimos que enchem seus pulmões aonde for — do surfe à linguagem. As praias que o compõem remontam uma existência à beira-mar que o ensinou a ser respeitoso e paciente com aquilo que (ainda bem) não controla.

Apaixonado por observar e, acima de tudo, por entender diferentes perspectivas e comportamentos, foi editor de revista, diretor criativo de muitos projetos e colaborou com todo tipo de artista nos mais distintos contextos. Nessa jornada por outras paisagens, encontrou um grande interesse em construir atmosferas por meio de imagens, chegando num processo próprio de derreter os entornos e, tomando a forma que precisar, transformar-se no espaço e na narrativa.

Para esta edição, apresentamos um dos excertos da sua série Azul no Zênite, um arranjo de registros ardentes, com corpos inundados nos mistérios de suas próprias presenças. Na imagem que estampa esta capa avermelhada, vemos no centro uma figura solitária e mística, também em tons abrasados, que nos lembra Iara, a Mãe d’Água. Pelos elementos presentes no registro inventivo de Pedro Perdigão — céu, mar, areia —, temos a sensação de estar diante de um universo invertido em que o azul emana a sua amenidade, mas o faz de dentro para fora, como se a soma da amenidade com o calor gerasse vulnerabilidade.

Iara, praia, cosmos, todos despidos, num conjunto esfumado e escuro exposto a nós (e somente a nós) da maneira mais íntima.  

É loucura pensar que o computador é uma invenção de menos de 100 anos — algo que, historicamente, não passa de um piscar de olhos — e que a primeira mensagem enviada online completou 50 anos há pouquíssimo tempo. Apesar de tudo ser assim tão recente, é impossível pensar na vida sem tecnologia. Na verdade, a coisa é bem mais profunda do que isso: já esqueci de como era a vida sem a atualização mais recente de qualquer aplicativo meu. E, nos últimos meses, ficou difícil pensar na atualidade e no futuro sem o ChatGPT

A grande inteligência artificial da moda, o Chat Generative Pre-Treated Transformer é um modelo de linguagem de grande escala treinado pela OpenAI (organização de pesquisa com sede em São Francisco, Califórnia, fundada por Sam Altman, Ilya Sutskever, Greg Brockman, Wojciech Zaremba, Elon Musk e John Schulman). Projetado para gerar texto de forma autônoma com base em uma grande quantidade de dados de treinamento, o ChatGPT é frequentemente usado para criar conversas com humanos em aplicativos de chat e assistentes virtuais. A tecnologia é capaz de entender a linguagem humana natural e gerar respostas/soluções extremamente refinadas, tudo a partir da compreensão do contexto de uma pergunta, da análise semântica e da utilização de informações presentes em seu grande banco de dados. Em geral, o ChatGPT utiliza técnicas de processamento de linguagem natural e deep learning para produzir suas respostas.

À esquerda, Elon Musk, co-fundador da OpenAI; à direita, Sam Altman, CEO da OpenAI. Imagem: Michael Kovac/Getty Images.

É diante desse tipo de eficiência que surge aquele pé atrás: o que isso quer dizer para nós, pessoas falhas, nem sempre funcionais, raramente no auge de nossas capacidades? Atualmente, a IA é uma ferramenta poderosa que pode complementar e ampliar as habilidades humanas, mas ainda há muitos aspectos da vida e do conhecimento que só podem ser compreendidos e apreciados por pessoas. Por enquanto, os especialistas nos dizem que, embora a inteligência artificial possa ser usada para realizar tarefas complexas e tomar decisões baseadas em grandes quantidades de dados, ela ainda não tem a capacidade de compreender o mundo de forma profunda e sutil, como os seres humanos. Será?

Fato é que a inteligência artificial está impactando a nossa vida diária, e tudo indica que essa realidade só há de aumentar. Exemplo mais tátil disso é o mundo profissional, que passa por profundas transformações, tanto positivas quanto negativas. Por um lado, a IA está automatizando muitas tarefas repetitivas e permitindo que as pessoas se concentrem em trabalhos mais complexos e criativos, além de ajudar os negócios a tomar decisões mais informadas e eficientes. Por outro lado, a automatização pode resultar na perda de empregos em que a mão humana não só é desnecessária, mas como é bem menos competente. Por essas e outras, é fundamental que as grandes empresas e governos trabalhem juntos para garantir que a IA seja utilizada de maneira responsável, de maneira a evitar um aumento na desigualdade salarial e assegurar que as pessoas sejam preparadas para o futuro do trabalho.

O campo da medicina é outro cujas implicações da inteligência artificial já se fazem presentes. Isso vale tanto em termos de melhoria da qualidade dos cuidados prestados quanto em termos de eficiência e economia. Um dos usos da IA neste contexto é o auxílio no diagnóstico de doenças, como câncer e problemas cardiovasculares, através da análise de imagens médicas e dados clínicos. Outro é o monitoramento da saúde dos pacientes em tempo real, o que permite uma intervenção mais rápida em caso de emergência, e a identificação de novas terapias e medicamentos. E, apesar de soar como algo menos relevante diante de tantos avanços que chamam a atenção, não podemos esquecer também da facilidade ao acesso a informações médicas essenciais, incluindo histórico de pacientes, registros clínicos e dados de pesquisa.

“The poitrait of Edmond Belamy”, a primeira obra de arte do mundo feita por um algoritmo, leiloada por 432 mil dólares.

No entanto, é importante destacar que a IA ainda precisa ser regulamentada e validada adequadamente antes de ser amplamente utilizada na prática médica. Além disso, é importante garantir que essas novas soluções sejam desenvolvidas com a privacidade e os direitos dos pacientes em mente.

Outro setor que está sendo forçado a entrar em uma nova fase — talvez tardiamente — é o da educação, embora haja ainda muita resistência. Em caso recente, por exemplo, escolas públicas de Nova York baniram o uso do ChatGPT. Os especialistas têm opiniões variadas sobre o impacto da inteligência artificial no ensino, apesar de concordarem que o impacto é irreversível. Alguns argumentam que a IA pode ser usada para personalizar o ensino para cada estudante, oferecer feedback instantâneo e ajudar a identificar oportunidades de aprendizagem individualizadas. Poupar tempo ao resumir alguns assuntos e facilitar revisões do que foi passado em aula são repercussões práticas igualmente importantes. Outros argumentam que a automatização da aprendizagem pode levar a uma homogeneização do ensino e a uma perda de criatividade e pensamento crítico.

Existe também uma discussão sobre se a IA pode ser usada para avaliar e medir o desempenho dos estudantes. Há os que defendem que a tecnologia pode fornecer uma avaliação objetiva e baseada em dados, mas há quem argumente que a avaliação baseada em dados não é suficiente para avaliar completamente o potencial de um estudante. Alguns enxergam tudo isso com esperança, como se essa nova era do ensino estivesse chegando para melhorar o que há tempos estava defasado. O otimismo, obviamente, é contraposto pelos alarmistas, que têm medo de que a capacidade de estudo seja dizimada, causando uma espécie de entorpecimento à informação. É fundamental ter em mente que a IA ainda está em sua infância e ainda há muito por ser feito antes que possa ser utilizada de forma ampla e eficaz na educação.

Buscar adaptação aos novos tempos é sempre o melhor jeito de lidar com situações que representam mudanças inegociáveis. Ao passo que tentar proibir o uso de ferramentas como o ChatGPT é algo pouco efetivo. Se a Wikipédia, com seu modelo infinitamente mais simples, reinou durante bons anos, sendo usada à exaustão, que dirá o ChatGPT.

Pensadores, claro, jogam fogo na discussão com opiniões variadas sobre os impactos da inteligência artificial. Mas, geralmente, concordam que é importante desenvolver e utilizar a tecnologia de forma ética e responsável. 

Se algum dia os cérebros artificiais superarem a inteligência dos cérebros humanos, então esta nova superinteligência pode se tornar muito poderosa. Assim como o destino dos gorilas hoje depende mais dos humanos do que dos próprios símios, o destino da nossa espécie também se tornaria dependente das ações destas máquinas superinteligentes. 

Nick Bostrom

Imagem: do site nickbostrom.com

Bostrom é um filósofo sueco conhecido por seu trabalho sobre superinteligência e ética na inteligência artificial. Ele argumenta que é importante regulamentar o desenvolvimento da IA para evitar riscos e garantir que sejam usados da melhor maneira possível.

A IA não é neutra. Reflete e perpetua as desigualdades sociais e os preconceitos existentes em nossa sociedade. 

Timnit Gebru

Imagem: Philip Keith para a revista TIME.

Gebru é uma pesquisadora em inteligência artificial e ética, conhecida por seu trabalho sobre a diversidade e a inclusão no setor de tecnologia. Ela argumenta que é importante considerar questões sociais e políticas ao desenvolver soluções baseadas em IA.

O assunto é complexo e requer uma discussão contínua entre especialistas de várias disciplinas para garantir que a IA seja utilizada com ética e responsabilidade.

Mas a pulga atrás da orelha existe. Às vezes, a desconfiança bate e nos perguntamos se somos personagens de Isaac Asimov, Philip K. Dick ou Ray Bradbury. Talvez estejamos mega estafados de produtos culturais que extraem entretenimento das catástrofes tecnológicas e é por isso que essas imagens, que nunca chegamos a viver, são despertadas em nós com facilidade, como se fossem de fato memórias. A sensação de que, cedo ou tarde, podemos nos tornar obsoletos é real, mesmo que ainda não vivamos em um mundo cyberpunk, como em Blade Runner ou Ghost in the Shell. Afinal, algumas tecnologias previstas nestes filmes, como robôs humanóides e inteligência artificial avançada, já estão sendo desenvolvidas e utilizadas.

Cena do fime Blade Runner – O Caçador de Androides, de Ridley Scott (1982)

Se ainda há quem duvide do poder que a IA tem, sob a alegação válida (e ao mesmo tempo inocente) de que um robô jamais superará um humano, alguns casos fazem qualquer cético tremer na base. Um deles é o célebre embate homem vs. máquina no xadrez. Desde o primeiro confronto enxadrista que contou com a participação de um computador, em 1951, a competição entre homens e máquinas tem sido uma arena para testar a evolução da inteligência artificial. Em 1997, o programa de computador Deep Blue da IBM derrotou o campeão mundial Garry Kasparov em uma série de seis jogos, marcando uma virada importante na história do xadrez e, por que não?, da humanidade. Desde então, os programas de xadrez evoluíram rapidamente, tornando-se cada vez mais fortes e sofisticados.

Garry Kasparov em partida contra o computadot IBM Deep Blue. Imagem: Sipa Press/REX/Shutterstock.

Atualmente, as máquinas são consideradas melhores que os humanos no xadrez. Os programas de xadrez de computador foram desenvolvidos com algoritmos altamente avançados que lhes permitem processar enormes quantidades de informações e considerar milhares de jogadas possíveis em questão de segundos. Isso os torna extremamente precisos e implacáveis. Embora os jogadores humanos ainda possam competir com as máquinas e até mesmo vencê-las em ocasiões esporádicas, as máquinas geralmente se saem melhor em jogos longos e intensos. Além disso, as máquinas não são afetadas por fatores como cansaço, emoções ou falta de concentração.

Garry Kasparov em sua quarta partida contra o IBM Deep Blue. Imagem: Stan Honda, Getty Images.

A sabedoria popular, inclusive, já deliberou sobre o assunto para cunhar a frase “O xadrez é a rainha dos jogos, mas a inteligência artificial é a rainha dos xadrez.” Fica até difícil não se transportar para o futuro distópico dos filmes e não dar corda para aquela voz indagatória: Será que a tão propagada revolta das máquinas está perto?

Não é possível prever com certeza se haverá ou não uma revolta das máquinas. No entanto, atualmente a IA é criada e controlada por seres humanos e é usada para realizar tarefas específicas, como análise de dados e automação de processos. Para que uma rebelião aconteça, as máquinas teriam que ter consciência de si mesmas, vontades próprias e capacidade de se rebelar contra seus criadores. Atualmente, a IA não possui essas características e, portanto — ainda que isso soe como aquele personagem clássico de filmes-catástrofe, em especial os hollywoodianos, aquele teimoso que parece negar o óbvio e que, invariavelmente, é o primeiro a morrer —, neste momento não há motivo para acreditar que elas se voltariam contra os humanos. Veremos.

Socorrendo-me, mais uma vez, de uma narrativa sci-fi, lembro de um diálogo simples (e elucidativo), um dos muitos travados entre Joaquin Phoenix e Scarlett Johansson no Her de Spike Jonze:

Ele, humano, diz Você é minha e não é minha. 

Ela, inteligência artificial, responde Eu sou sua e não sou sua.

Still do filme “Ela” (2013), de Spike Jonze.

Certo. Agora, pergunto: você acha que este texto foi escrito por uma pessoa ou uma inteligência artificial? A resposta é — os dois. Mais IA do que humano, na verdade. Confesso que, apesar de só o meu nome constar nos créditos deste texto, ele foi escrito em parceria. Maldito egocentrismo humano… Queria pedir desculpas publicamente a quem de fato gerou os parágrafos acima (enquanto eu insisto em produzir, ele tem o costume de gerar). Me perdoe, ChatGPT. Você sabe melhor do que ninguém que eu servi mais como um supervisor do que qualquer outra coisa. Os louros aqui são mais seus do que meus.

Quem sabe, num futuro próximo, você possa assinar o que escrevermos juntos e eu possa dizer “obrigado, amigo”. Por ora, digo “obrigado” — e ponto final. 

Entre o começo de 2019 e o final de 2022, nessa quadrilogia inacreditavelmente tenebrosa dentro da narrativa brasileira, perseguir os povos originários virou prática comum, um proeminente braço saído de um atarantado projeto de país. Sob as rédeas do governo de Jair Bolsonaro, as maiores atrocidades pró-garimpo se faziam presentes nos noticiários. Com as mentes das autoridades fixadas no mercado e no acúmulo, tomou-se como mera casualidade de guerra a morte gradual de quem aqui estava bem antes de qualquer autoridade administrativa. Mesmo tendo em vista que o Brasil, desde sua colonização, não dá o devido valor aos princípios e aos direitos dos povos indígenas e tradicionais, nunca antes se viu uma política tão abertamente etnocida. Com os números, fica fácil enxergar: durante os quatro anos de mandato, pelo menos 570 crianças Yanomamis morreram de causas evitáveis, o que representa um aumento de 29% em relação aos 4 anos anteriores.

Foto: Alan Azevedo/ISA

É claro que essa necropolítica de Bolsonaro não é nada recente. Ela vem de antes, da época em que o desconhecido Jair era um parlamentar que tartamudeava (certas coisas não mudam) argumentações genocidas, roubadas de ideias reacionárias norte-americanas, desde já babando ovo para o que o país-símbolo do imperialismo tem de pior. Os registros de um pronunciamento seu na Câmara dos Deputados, no final dos anos noventa, chegam a ser aterradores (ao menos o que sobraram deles). Aquele homem, que proferia absurdos — “Os EUA foram bem-sucedidos em dizimar a população indígena” e por isso não sofrem problemas ambientais como os que vivemos na Amazônia —, chegou à presidência da república. O homem que, na mesma ocasião, disse que a população originária dos Estados Unidos “vivem de royalty de cassino” e que deveriam servir de exemplo a nós, aquele homem foi nosso chefe de estado por 4 anos.

A atual tragédia humanitária dos Yanomami, que vivem em centenas de aldeias localizadas na Floresta Amazônica, na fronteira entre Venezuela e Brasil, estava anunciada. E aqui não é necessário se socorrer de uma força de expressão. Em 2019, a UNICEF e parceiros apresentaram dados sobre desnutrição de crianças yanomamis e realizaram ainda um seminário com lideranças indígenas, representantes do poder público e pesquisadores para discutir fatores que levam a esse cenário e alternativas para revertê-lo. Depois disso, os chamados não cessaram, indo das crises desencadeadas pela desassistência em meio ao contexto da Covid-19 e aos suplícios do xamã Davi Kopenawa.

Assim como foi com a lamentável morte do Índio do Buraco, em agosto do ano passado, se os poderes não medem esforços para fazer com que suas pautas valham e deem resultados a custo do extermínio, nem mesmo a maior reserva indígena do Brasil consegue passar incólume. A História fala por si só.

DESCASO HISTÓRICO

Foto: Agência Brasil | Reprodução

Que não se doure a pílula: os povos indígenas sofrem há mais de 500 anos. Desde a chegada dos colonizadores portugueses, tiveram seus direitos surrupiados e, sem qualquer pudor, foram sistematicamente negligenciados. Resgatar essa história mergulhada em tanto sangue e crueldade é imprescindível para entendermos e enfrentarmos o que está acontecendo hoje.

Principalmente entre 1540 a 1570, no começo da colonização, os povos originários não escaparam da mentalidade escravocrata, padecendo nas lavouras e nas mãos dos senhores de engenho. O árduo corte e o transporte do pau-madeira caíam impiedosamente sobre suas costas e, como pagamento, os colonizadores ainda praticavam o escambo, trocando esse trabalho por mercadorias de pouco valor. Por mais incrível que pareça — o triste é constatar que, talvez, isso nem chegue a surpreender tanto —, a mão de obra indígena também era utilizada em larga escala em combates para conter escravos africanos fugidos.

A escravidão indígena foi combatida pela igreja, mas os padres jesuítas, com a missão de catequizar os índios, acabaram contribuindo para uma mudança de hábitos forçada. O diretório de Marquês de Pombal, do século XVIII, visava uma inclusão feita à europeia, passando uma régua própria e fazendo julgamentos: o aldeamento do território indígena sob supervisão de um diretor; uma escola em que era proibido o uso de outro idioma que não o português; sobrenomes obrigatoriamente portugueses; nudez, habitações coletivas e línguas próprias, tudo terminantemente proibido, com direito à punição de morte. No contexto, pode-se considerar que ajudaram — pero no mucho.

Nos séculos seguintes, a exploração e o massacre não deixaram de dar as caras, e seguiram dizimando os povos originários, como conta David Ribeiro, historiador e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).

“Costumo dizer que o Brasil deu sequência ao genocídio iniciado pelos colonizadores portugueses no século XVI, agindo depois de sua independência da mesma forma colonial de antes, submetendo populações inteiras a uma espécie de homogeneização cultural e social. Ainda que a Constituição de 1934 passasse a tratar dos direitos indígenas, a cidadania destes só veio em 1988 — e destaco como mais importante da atual Constituição o direito à diferença e ao território em sua plenitude.

O governo anti-indígenas de Bolsonaro atualizou em bases ainda mais agressivas a política de destruição promovida durante a última ditadura (1964-1985), pois muitos são os pontos de convergência. Um deles é o recurso constante a ideologias como a chamada integração: ‘cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós’ — como se para serem considerados humanos devessem se comportar da mesma forma que a sociedade não-indígena. Outro é a questão do ‘desenvolvimento’ da Amazônia depender da sua exploração mineral em detrimento do complexo e sensível equilíbrio socioambiental da região, continuamente agredido quando figuras dos povos indígenas e de seus parceiros nacionais e estrangeiros são ameaçados das mais diversas maneiras. Uma leitura dos textos presentes no relatório da CNV [Comissão Nacional da Verdade] exemplifica muito bem o que estou falando.”

DESCASO DOS ÚLTIMOS ANOS

Garimpo na região do Apiaú na Terra Indígena Yanomami

A crise sanitária atual resulta da combinação fatal da invasão garimpeira, desprezo do Governo Federal e casos de corrupção, com desvio de recursos da saúde indígena. A invasão garimpeira causa a contaminação dos rios e degradação da floresta, o que reflete na saúde dos Yanomami, principalmente crianças, que enfrentam a desnutrição por conta do escasseamento dos alimentos.

O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana, com assessoria técnica do Instituto Socioambiental, faz um balanço da extração ilegal de ouro e outros minérios da região. O texto aponta, categoricamente: “Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra Indígena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%.”

A atual Ministra da Saúde, Nísia Trindade, também não mede palavras para falar sobre a essência anti-indígena que tanto pautou as ações do ex-presidente e seus aliados: “O abandono dos Yanomamis era uma política do governo Bolsonaro”. Especificamente sobre a crise vigente, ela diz: “É um quadro muito grave, que vai exigir uma ação interministerial. A fome é a ponta de um iceberg, um terrível indicador, mas a causa não é a fome, e sim o garimpo ilegal, que desestruturou as formas de vida, contaminando os rios e propiciando condições para o aumento dos casos de malária através de escavações onde a água se acumula.”

Diante de tudo isso, a Polícia Federal abriu um inquérito no último dia 26 para apurar os graves indícios de crime de genocídio contra os Yanomami em Roraima. É a primeira vez que um órgão federal do Brasil investiga a histórica crise humanitária contra o povo Yanomami como crime de genocídio. O Código Penal estabelece pena de até 30 anos para os acusados. O Supremo Tribunal Federal afirmou haver indícios de que o governo Jair Bolsonaro descumpriu determinações da Corte e enviou informações adulteradas sobre a situação da população indígena Yanomami. 

As investigações serão conduzidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), Ministério Público Militar, Ministério da Justiça e Segurança Pública e Polícia Federal. Segundo o despacho do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, os órgãos devem apurar “a possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática, em tese, dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas.”

O objetivo, portanto, é investigar a participação ou a omissão de ex-integrantes do governo federal e os envolvidos em toda a cadeia do garimpo ilegal, incluindo proprietários de equipamentos, garimpeiros, barqueiros, operadores de máquinas e até o piloto do avião que transporta envolvidos e produtos. Especialistas afirmam que, para enquadrar os responsáveis por tal crime, é necessária a comprovação de dolo e não apenas de negligência. O Brasil possui uma lei sobre o genocídio desde 1956, aprovada ainda no governo de Juscelino Kubistchek, que reconhece não apenas a ação direta, mas também a incitação. A lei brasileira, então, também pune aqueles que estimulam “direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes” relacionados ao genocídio. 

De acordo com um artigo escrito pelo renomado jurista Lenio Luiz Streck — citado, inclusive, por Gilmar Mendes, ministro e antigo presidente do STF —, a responsabilização penal pelo genocídio Yanomami é válida. 

“Todos conhecemos a lei do genocídio (Lei 2.889/56, com suas alterações) e o Estatuto de Roma, que empregam a expressão ‘intenção’ em sentido genérico. As palavras possuem sentido de acordo com o contexto.” 

“Essa expressão — intenção — tem que ser adequada aos conceitos de dolo do Código Penal, que servem de holding para todas as leis especiais. (…) O dolo direto pode comportar duas espécies: dolo direto de primeiro grau, quando o sujeito atua e dirige sua vontade no sentido do alcançar um objetivo final, e dolo direto de segundo grau, quando o agente atua e dirige sua vontade para realizar um fato que constitui uma circunstância necessária à produção do objetivo final.”

“Depois, porém, da introdução da teoria da imputação objetiva no direito penal, alimentada pelo fundamento do aumento do risco, como proposto por Roxin, alterou-se um pouco a definição do dolo direto de segundo grau, para comportar a atuação do agente, que dirige sua vontade para realizar um fato que encerra uma condição de risco que irá conduzir, com certeza, ao alcance do resultado final.”

“Onde se enquadra, então, a intenção de que trata a lei do genocídio? No assim denominado dolo direto de segundo grau. Isto é, Bolsonaro — e seus coautores — ao permitirem o garimpo, ao deixar de mandar socorro, ao incentivar a invasão e degradação das condições ambientais, dirigiram sua vontade no sentido de realizar condições de risco que certamente levariam o grupo à extinção.”

Ou seja, a quadrilogia inacreditavelmente tenebrosa da narrativa brasileira está longe de acabar, ainda que soe como algo que já ouvimos antes. Torçamos para que os próximos capítulos sejam de justiça e reparação.

No livro A queda do céu: Palavras de um xamã Yanomami, o pajé Yanomami Davi Kopenawa diz “Os brancos não sonham tão longe como nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos.” Fica cada vez mais claro o quanto, na verdade, o ex-presidente, que classificou a denúncia sobre a crise Yanomami como tão somente uma “farsa da esquerda”, estava de olhos bem abertos. O teatro do absurdo protagonizado por ele não dá descanso a ninguém e parece longe de fechar cortina. 

Que possamos, quem sabe um dia, dormir e acordar nos sonhos extensos dos Yanomamis.

Talvez você tenha assistido ao filme O Menu ou à série The Bear e acabou horrorizado com o que viu, sem conseguir ignorar aquela voz no fundo da sua cabeça resgatando a velha máxima — toda brincadeira tem um fundo de verdade, não é? A partir de abordagens bem distintas, cada qual com seus exageros, esses dois hits retratam algo em comum: o trato desumano que corre solto pelas cozinhas dos restaurantes mais badalados (comportamento esse que influencia, inclusive, estabelecimentos de menor porte). As duas produções, que pintam ambientes gastronômicos dos mais maníacos e desesperadores, se inspiram em casos recentes de grandes restaurantes e chefs acusados de assédio, sub-remuneração e mais todo o tipo de maus tratos. Na caldeira dessas denúncias, e com as problemáticas expostas por O Menu e The Bear tão presentes no ideário popular atual, o Noma, restaurante de Copenhague considerado cinco vezes como melhor do mundo (a última em 2021), anuncia que vai encerrar as atividades em 2024. Uau. O que isso tudo quer dizer?

Foto: Rasmus Hjortshoj

O anúncio foi feito no Instagram pelo chef e fundador René Redzepi, de 45 anos, argumentando que “financeiramente e emocionalmente, como empregador e como ser humano, [o modelo] simplesmente não funciona.” Alguns ex-funcionários, no entanto, contaram uma versão um pouco diferente. Alegaram que, na verdade, as portas do Noma estão para fechar porque trata-se de um local de trabalho insustentável, com um ambiente reinado pela hostilidade e o prazer doentio pelo controle, além de condições de trabalho precárias, sem garantias e muitas vezes não remuneradas. Seja como for, a mensagem impactou o mundo gastronômico. 

O chef e fundador René Redzepi.

Desde de sua inauguração em 2003, o Noma —junção das palavras nordisk (nórdico) e mad (comida)— representou a chegada de uma nova era. Fez isso ao desafiar os conceitos da alta gastronomia, virando as costas para a cozinha francesa, mas sem quebrar a formalidade de uma experiência de elite. A revolução começou a partir de 2004, com a publicação do Manifesto da Nova Culinária Nórdica, um registro dogmático assinado por doze chefs que definia a nova identidade gastronômica de cinco países (Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia) e três regiões autônomas (Groenlândia, Ilhas Faroé e Åland). O manifesto ressalta, sobretudo, a importância do uso de ingredientes locais e a promoção de produtos regionais na confecção de porções pequenas servidas com apuro, em apresentações inspiradas na estética escandinava. Depois do Noma, vários restaurantes reproduziram tais ideais e reafirmaram a influência da cozinha nórdica. Foram anos e anos de trabalho árduo para chegar aos mais altos patamares. 

Hoje em dia, é importante levantar a questão: tudo isso foi alcançado a que custo?

O famoso índice Michelin, que entrega, e principalmente não entrega, estrelas de acordo com diretrizes arbitrárias e um tanto anacrônicas, demanda algo que não bate com a mentalidade contemporânea. Para estabelecer um suposto alto padrão, o processo de inspeção se baseia, em tese, nos seguintes critérios: domínio do sabor e técnicas culinárias; a personalidade do chef na sua cozinha; relação qualidade/preço; e consistência entre visitas. Mas a verdade é que os critérios usados pelos inspetores são enigmáticas, para não dizer escusos, e os meios para se atingir essas estrelas são extremamente custosos. “Nenhum chef faz fortuna por causa de estrelas Michelin”, diz o jargão — afinal, até que se chegue ao panteão, já se gastou todo o dinheiro do mundo mortal. Há ainda a vida pós-estrela e a dificuldade de atender às expectativas dos clientes. Uma estrela já é suficiente para fazer com que a pessoa sentada à mesa espere que cada garfada levada à boca contenha o mundo. O restaurante agraciado com o brilho Michelin tem que estar preparado não só para o sucesso, mas também para atender aos paladares mais exigentes, e a resposta para isso é… gastar (e, claro, cobrar) mais. 

A própria ideia de se comer luxuosamente não é tão aceita na atualidade, uma vez que fazer isso significa financiar uma indústria que notoriamente explora estagiários, não está preocupada com medidas ambientalmente sustentáveis, e se agarra mais às aparências do que à qualquer outra coisa. A busca ensandecida pelas estrelas resulta em estilhaços e mais estilhaços, atingindo quem quer que esteja pelas proximidades. O lugar da moda “para ver e ser visto” perde força na medida em que se apresenta com toda essa bagagem negativa, uma má fama que vem reverberando em maiores decibéis nas vozes dessas pessoas trabalhadoras agora munidas dos meios de comunicar a todos os perrengues pelos quais passam.  

Apesar da figura do chef exigente e indefectível ainda ser romantizada — basta tomarmos como parâmetro programas como Hell’s Kitchen, com o tirânico Gordon Ramsay, ou o equivalente brasileiro Pesadelo na Cozinha, com Erick Jacquin —, ela vem recebendo o devido questionamento. Pode uma indústria que tem se sustentado sobre as bases mais condenáveis voltar à glória fazendo valer valores mais dignos? Talvez a gastronomia de alto luxo sobreviva. Talvez não. Enquanto isso, parece mais provável que vejamos mais restaurantes renomados encerrando atividades, ou encontrando dificuldades, em meio a revelações desagradáveis ​​e revoltas de trabalhadores em estado profundo de burnout.

Não podemos, porém, desconsiderar algo importante nessa equação: estamos falando de nada mais nada menos que comida. Simples, e complexo, assim — comida. Com menus elaborados minuciosamente ou não, com um arsenal de talheres específicos para cada um dos pratos ou não, as pessoas ainda vão se importar com o que vão comer. O clichê propalado pela ficção científica de que, num futuro não tão distante, nos alimentaremos por pílulas ou por comidas enlatadas multinutricionais, preocupados única e exclusivamente com o sustento alimentar e não com os prazeres do paladar, na verdade não acontecerá assim tão cedo. As possibilidades, os futuros e os limites da culinária sempre suscitarão interesse. Como os ingredientes são cultivados? Como são colhidos e consumidos? Quero mais disso, quero mais daquilo. Quero consumir algo que condiga com minhas visões de mundo. Quero algo que faça com que eu me sinta bem. 

Ralph Finnes em cena do filme O Menu (2022).

Difícil saber exatamente o que será do mundo gastronômico. Estamos saindo de uma pandemia que alterou conceitos de uma vez por todas; as redes sociais imprimem um ritmo insano e a ordem do dia parece mudar a cada instante; o mundo passa por mudanças climáticas que cedo ou tarde pedirão a conta, e o farão sem a famosa cortesia do braço levantado direcionado para o atendente e da mão que simula uma caneta. Acessibilidade, sustentabilidade e humanidade parecem ser o caminho. Ou melhor, parecem ser convicções mínimas que têm tudo para ditar o que se fazer daqui adiante. Pontos de partidas que tardaram a chegar, é verdade, mas que agora não podem mais ser ignorados — quem o fizer, queima na largada.

Enquanto O Menu e The Bear são sucessos, o ex-melhor-restaurante-do-mundo está para fechar. Isso é fato. Os outros Nomas, aqueles que suam sangue (se você viu O Menu, perdoe a expressão) para oferecer o melhor, estão com os dias contados. Os tempos estão mudando. Somos, ainda bem, cada vez mais humanos. E, como os seres humanos ligeiramente melhores que estamos nos tornando, nossas percepções estão mais sensíveis aos desprazeres da vida — enfim não somente aos da nossa, mas também às agruras de vidas alheias. Justamente por isso, mais do que nunca estamos em busca de respostas abrangentes que permitam o desfrutar consciente dos prazeres. O prazer, e tudo que ele quer dizer, é o conceito-chave aqui.

O paladar em êxtase nunca há de perder força. E que venham os próximos capítulos.

“Uma coisa se transforma em outra, que se transforma em outra”, diz o cineasta Robert Downey Sr. em dado momento do meta-doc que carrega seu nome como título. “E se algo não funciona, você joga fora. Isso se chama ‘siga o filme’”.

Pai de um dos atores mais famosos e bem pagos da história do cinema, possivelmente a figura mais marcante de todo o universo marvelesco que rege a orquestra hollywoodiana já há um bom tempo, Downey Sr. era maestro de si mesmo. Da efervescência dos anos 60, época em que a contracultura foi germinando sobre tudo quanto é meio, surgia um ousado diretor que estava à margem daquilo que vinha à galope relinchando revolução, sem medo de chegar a extremos aos quais nem os touros indomáveis da Nova Hollywood estavam dispostos a chegar. Tudo com recursos limitadíssimos — o apesar de e o por causa de pareciam ter o mesmo peso na equação. 

Por essas e outras, como não raro acontece aos artistas de vanguarda, demorou a ser devidamente visto como o grande realizador que foi. Hoje, porém, reconhece-se o impacto de seu trabalho. Um de seus filmes —Putney Swope, de 1969— foi selecionado para ser preservado pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, honraria essa concedida somente a um grupo distinto de obras fílmicas como uma garantia física e metafórica de sua longevidade. Sua relevância é flagrada, também, quando cineastas renomados como Paul Thomas Anderson o citam como uma de suas maiores influências.

Pôster do filme Putney Swope (1969), de Robert Downey Sr.

Nada mais justo, então, que o documentário Robert Downey Sr., da Netflix — em inglês, numa abordagem mais interessante, intitulado somente como Sr. , não seja aquela típica biografia que vai, linearmente ou não, salpicando um sem-fim de depoimentos e fotos ou filmagens antigas, algo que nos guia de maneira hermética dos primórdios aos finalmentes (ou vice-versa). Este é, sim, um documentário sobre Bob Downey Sr. e sobre sua relação com o filho superastro, mas, acima de tudo, é uma investigação apaixonada sobre os processos criativos de um artista que, a todo custo, viveu à revelia. 

À esquerda, Robert Downey Sr.; à direita, Paul Thomas Anderson.

Respondendo a uma forte tendência do cinema pós-moderno, o documentário de Chris Smith — diretor de Jim & Andy, sobre como Jim Carrey se transformou em Andy Kaufman — se banha demoradamente na cachoeira da metalinguagem: vemos Robert Downey pai andando pelas ruas de Nova York, comentando ao léu sobre os métodos e não-métodos que usou durante a sua carreira, e também o vemos sentado ao lado de Smith, numa sala de edição, montando um último projeto com o que filmaram juntos e que os espectadores acabaram de ver; entrementes, Robert Downey filho pondera a respeito do que pretende alcançar com a realização desse filme que se desenrola aos olhos de quem está assistindo e, em conjunto com a equipe, dirige uma ou outra cena das visitas que faz à casa do pai.

Assim como é o caso de O Método de Stutz, outro meta-documentário lançado pela Netflix em tempos recentes, a consciência que a obra tem de si mesma não é meramente um canto de sereia que visa seduzir o espectador moderno. É um recurso que, à guisa do eco, faz com que as personalidades retratadas reverberem suas vozes com mais força — o psiquiatra Phil Stutz amealha camadas quando seus próprios métodos terapêuticos têm que se pronunciar tanto na sua vida quanto na de Jonah Hill, que dirige e vive o filme; e, ao colocar os processos criativos sob os holofotes, Robert Downey Sr. alcança aquilo que nem toda biografia alcança: um retrato genuíno e não-afetado de seu personagem principal. É a partir de reações inesperadas a um material filmado bruto, comentários engraçados e sugestões arrojadas de Downey Sr. que se ratifica sua essência inocente, irreverente e dócil. Dessa fração, tira-se a extensão de uma vida inteira.

Para adereçar o elefante que senta confortavelmente na sala, é verdade que este, no fim, é um registro-produto das intimidades de uma complexa relação pai-e-filho e das agruras de um homem cuja luz interna está prestes a desvanecer. Não é, portanto, uma espetacularização, um temível compartilhamento exacerbado de algo que deveria passar bem longe de quaisquer lentes? Nas mãos dos Downey, uma segurando a outra, a resposta é não. Nas mãos dos dois, que viveram os extremos da vida cinematográfica e talvez não conheçam um formato em que fiquem mais à vontade para expor seus âmagos, Robert Downey Sr. acaba sendo uma despedida ideal por contar com a honestidade de um filho que fica e a doçura e o otimismo de um pai que parte.

Todos que se sentam para assistir ao filme sabem que, mais cedo ou mais tarde, alguma menção será feita aos anos em que Robert Downey Jr. esteve em maus lençóis, afundado no vício em drogas. “Não podemos pintar um quadro com cores alegres, pai”, diz ele numa conversa por telefone. Robert Downey pai, que também viveu longo período de adicto (inclusive, enquanto o filho crescia, chegando ao cúmulo de compartilharem maconha quando o menino tinha não mais que 10 anos de idade), reconhece muitos dos erros que cometeu e a enorme influência que eles tiveram sobre a vida de Bob filho. De ambas as partes, há arrependimentos que não cessarão de ferroar, mas há também uma paz, ou no mínimo uma certa serenidade, em relação ao passado. Ao que tudo indica, o filho não guarda mágoas e o pai não deixou que isso o tenha impedido de viver de cabeça erguida.

Realizadas ao longo de 3 anos, as filmagens vão se encerrando na mesma medida em que Downey Sr. vai perdendo a luta contra a Doença de Parkinson e, aos poucos — não sem antes terminar a edição de seu último projeto —, vai fazendo cair as cortinas do próprio show. Preparando o terreno para o eventual e inevitável adeus, há uma cena forte em que o ator cai no choro em uma chamada com seu terapeuta, questionando-se sobre o filme e dizendo com voz vacilante, despido de qualquer respingo de Tony Stark, que não quer fazer a coisa errada. Vemos, então, o quarto de Bob Sr. vazio, numa panorâmica melancólica que, entendemos e lamentamos, ele não teria como ter editado. Downey Jr. reflete: “É uma história de pai e filho? Acho que não… É sobre ser um artista? Não sei, talvez. É uma contemplação da morte? Acho que está se tornando isso, não de uma forma taciturna, mas tipo ‘estamos aqui, fazemos coisas e partimos.’”

Uma coisa se transforma na outra e, quando Robert Downey Sr. está chegando ao fim, temos um devir crescente e bem distribuído em suas proporções, um desabrochar que mira para os lados em que o sol bate com raios distintos mas igualmente quentes: afagos para o diretor avant-garde e para o ator que já habitou paraíso e inferno; aconchegos para um Robert no final da vida, um pai que não pode voltar no tempo, e para um Robert de 60 anos, que se agarra com unhas e dentes ao fazer desse filme para também se descobrir enquanto figura paterna. 

Na maior parte da vida, temos que reagir à nossa maneira ao que acontece para termos algum tipo de controle criativo sobre a história que estamos vivendo. Nesses momentos, e com a bênção de Downey Sr., é bom lembrar: deixemos a câmera rolando, pois, se algo não estiver funcionando, podemos jogar fora isso ou aquilo e simplesmente seguir a direção do filme.

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Apagamento e resgate histórico: o Largo do Rosário

Não é raridade que pedaços de história, territórios que por quaisquer razões não foram vistos como áreas a serem preservadas, cedam às intempéries do tempo e das novas demandas, caindo lamentavelmente no esquecimento. No caso do Largo do Rosário — cuja extensão, hoje em dia, forma em conjunto com algumas ruas a avenida Álvares Cabral, em Belo Horizonte —, esse soterramento foi literal: com a construção da capital de Minas Gerais, ocorrida no final do ano 1897, o Cemitério dos Homens Pretos e a Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, pontos que por quase um centenário se fizeram tão presentes à comunidade negra da região, foram demolidos. Foi somente em 2022 que o local ganhou registro definitivo de patrimônio cultural imaterial.

Reprodução do que foi o Largo do Rosário, em Belo Horizonte | Foto: Paisagens Pitorescas/ IFMG/ Campus Ouro Preto

A obra da Irmandade dos Homens Pretos era referência para a população negra do antigo Curral del-Rey, tendo um fortíssimo impacto sociocultural abrigando tanto o cemitério, de 1811, quanto a capela, de 1819. Além de literal, o soterramento desses pedaços carrega um quê de orquestramento, já que a História brasileira parece muitas vezes ter uma memória bastante pior para lembrar e celebrar os capítulos de sua identidade negra. O descaso demonstrado ao cemitério e à capela veio não só com a demolição de mais tarde, mas de um desleixo registral infelizmente típico quando a matéria a ser documentada não tratava da elite. Ao fim, o Largo não foi devidamente registrado nem substituído e uma nova capela foi inaugurada dois meses antes da fundação oficial de Belo Horizonte, sem a participação da Irmandade dos Homens Pretos. 

Como se a indiferença aos símbolos ali erigidos não fosse suficiente, o que chega a impressionar é o desprezo também pelas 60 sepulturas que faziam parte do cemitério, deixadas para trás de forma categórica.

Projeção da Igreja do Rosário | Foto: Paisagens Pitorescas/ IFMG/ Campus Ouro Preto

Importante aqui abrir um parêntesis para dar um panorama geral sobre a Irmandade dos Homens Pretos — atualmente conhecida como Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos —, para que se tenha uma ideia da importância que tinham para Minas Gerais os dois símbolos negros que finalmente vieram à tona. As irmandades foram instituições numerosas no período colonial brasileiro, espalhando-se de norte a sul do país, reafirmando a presença significativa das pessoas negras e acolhendo a religiosidade de quem, na época da escravidão, era impedido de frequentar as mesmas igrejas dos seus senhores. É uma confraria que permite, até hoje, a livre manifestação da sacro religiosidade própria, com influências ritualísticas de todos os cantos do mundo. Graças a ela, homens e mulheres negras que vieram da África, por exemplo, chegaram diante de um cenário onde conseguiram construir suas próprias irmandades. É por representar um direito recuperado, reivindicado às custas de muita resistência, que reconhecimentos como este do Largo do Rosário são, apesar de atrasados, tão fundamentais — lembrando do passado, constrói-se um futuro mais abrangente.  

A luta agora é pela reparação. Quem encabeça o movimento é o padre Mauro Luiz da Silva, criador e curador do Muquifu (Museu dos Quilombos e Favelas Urbanas). Até pouco tempo atrás, a memória do Largo do Rosário estava restrita aos documentos preservados pelo Arquivo Público de Belo Horizonte e o Museu Histórico Abílio Barreto. O registro do Largo como Patrimônio Imaterial, confirmado pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, foi uma grande vitória e se apresenta como uma tentativa de reparar o apagamento da Irmandade dos Irmãos Pretos e da comunidade negra na história da cidade e do Brasil.

A placa que reafirma a importância do local pode parecer pouco diante do esforço sistemático de expulsar as irmandades negras e criar barreiras cada vez maiores entre a cidade e a periferia, mas representa pelo menos o começo de uma mentalidade que demonstra uma preocupação com a ancestralidade negra.

Antes tarde do que nunca.

Domingo à tarde. Ao sentar para conversar via zoom com Pedro, sou lembrado de que, para além do estardalhaço das buzinas e britadeiras — alarido desse cenário paulistano pelo qual sou envolto —, a vida no litoral canta ao próprio diapasão. A lembrança vem sem esforço, assim que bato o olho na câmera que acabou de ser aberta e escuto no fone um barulhinho de onda tímido ao fundo.

Apesar de jamais ter manuseado um estetoscópio, a mim fica claro que esse som marítimo é o que se ausculta do peito de Pedro Perdigão. É por isso que ele próprio diz que vive no Rio de Janeiro, mesmo quando distante dele. Desde suas primeiras impressões de mundo, tem o mar como habitat natural, subindo nessa onda por influência do pai, que via na prática do surfe uma espécie de louvor. Daí em diante, a relação entre Pedro e o mar se tornou praticamente simbiótica — em suas andanças profissionais como editor de revista, diretor criativo e colaborador artístico múltiplo, tomou a forma de culturas diferentes como se água fosse. Ao adaptar-se ao contexto com o máximo de respeito, de maneira quase reverenciosa, nadou sempre com a adaptabilidade típica do mar.

Assim como o chá que vira a xícara de porcelana ou o suco que se transforma na jarra de vidro, deixa de lado as próprias perspectivas para se amalgamar ao cenário. É assim que, apaixonado por observar e entender diferentes visões, Pedro perscruta comportamentos a partir de pequenos instantes, aqueles que são pequenos o suficiente para serem vastos e grandiloquentes. Na ponta do arco-íris dessa jornada, encontrou uma grande paixão por construir atmosferas por meio de imagens.

Mas como de fato chegar ao centro dessas atmosferas, que muitas vezes acabam rodeadas por delimitações manufaturadas pelo olhar externo? Seu processo de captação propõe o derretimento dos entornos, de maneira tal que, despindo-se de qualquer protagonismo, não é mais Pedro que registra ali ou lá, é o espaço e a narrativa que ditam os passos. Estamos falando de reações — nunca conclusões — àquelas realidades.

O mar não pode ser controlado, e Pedro o abraça com o surfe. O mesmo vale para as culturas: longe de querer interferir, ele as abraça ao absorvê-las e por elas se deixar ser absorvido.

Para a capa desta edição, apresentamos sua série Azul no Zênite.

Registros de uma energia ardente, com corpos inundados nos enigmas de suas próprias presenças. Para evocar a beleza dessas indefinições, os cenários livres e turvos — quase sempre solares, marítimos e celestes —, fazem-se indispensáveis. E sim, me confirma Pedro quando o questiono, há muito vermelho no zênite desse azul. Constrói-se, assim, um universo à flor da pele, em que o azul se faz presente como um fluxo entre presença, desejo, frequência, imaginação e corpo. No meio de tudo, claro, há uma presença mística e misteriosa que remete à Iara, a Mãe d’Água, também em roupagem cálida.

“Mistério”, aliás, talvez seja a palavra-chave para desvendarmos essa equação artística, descobrindo afinal que aqui não existe uma resolução. Com o vermelho num tom mais baixo, as imagens estão submersas também em escuros, cujas ranhuras ressoam a frequência vulnerável do mar.

Pedro então me mostra o poema Noturno, de Ariano Suassuna (1927 – 2014), que mais parece um manifesto de Azul no Zênite. Curiosamente, num desses acasos da vida, a leitura só aconteceu depois das imagens estarem prontas. Muito embora seja de 1945, quase oitenta anos atrás, e marque a estreia literária do autor de O Auto da Compadecida, aos dezoito anos, o texto contém passagens que abrem diálogos surpreendentemente diretos entre as obras e suas épocas.   

Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.

Com esses versos de abertura, à semelhança de Perdigão, Suassuna chama à ribalta toda a complexidade e misticismo que vêm da sobreposição daquilo que, num primeiro momento, é ameno — como a noite, a lua, os sonhos —, mas que também é queimado, ardente e vermelho. Os ecos entre as temáticas acerca de dualidades e divisões esfumaçadas, assim como os símbolos usados para elaborar sobre elas, misturam-se para criar uma ponte entre Recife e Rio de Janeiro, realidade e fantasia, vermelho e azul, zênite e nadir, dia e noite, vida e morte, 1945 e 2022.  

Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mãos…

Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, por que te ligo à Morte?

Assim termina Noturno, assim começa Azul no Zênite.

Me despeço e, naqueles breves momentos ligeiramente desconfortáveis em que procuramos os botões de desligar, ouço barulhos ondulantes chegando da janela e inundando a tela à minha frente.

Eis a vida na frequência do mar. Pedro está em casa.

Para fugir um pouco do formato das últimas edições, neste mês contamos com um convidado especial para inaugurar uma nova seção: Perfil. Em um formato de entrevista curta, acompanhado de um texto de opinião redigido pelo convidado, a ideia do quadro é girar perspectivas, trazer novas vozes e diversificar as indicações.

Falando dos lançamentos, meio que o ano já acabou né?

Entre a  eleição de outubro e a Copa do Mundo em novembro, a internet está virada e os ânimos tensos. Sinto que os lançamentos estão mais voláteis e caminham por um lugar muito delicado. 

Eu sou millennial. Não tenho a mesma paciência e (talvez) a capacidade de absorção de informação da Geração Z.  

Mas acredite, eu me esforço.

No espírito de não ser ultrapassado pelo tempo, tenho prestado bastante atenção no que sai do TikTok. A música independente que acontece lá dentro percorre um caminho curioso em uma teia bastante complexa, que envolve criador, consumidor, e uma relação de autoria compartilhada.

Indica: Lou Garcia – Não Fosse tão tarde

Baiana e GenZ, Lou Garcia apostou com destreza no uso do TikTok para impulsionar seu single “Não Fosse Tão Tarde” a tomar vida própria nas redes. Além de virar trend na plataforma, a música ganhou dezenas de versões (não oficiais) e chegou a ser gravada por Wesley Safadão e Lucas Aboiador em versão piseiro.

Lançada em julho, “Não Fosse Tão Tarde”  chama atenção pelos caminhos melódicos, pela pegada nostálgica e pelo timbre doce e muito expressivo da cantora baiana. 

Acompanhando a tendência do mainstream gringo protaganizada por Olivia Rodrigo, a faixa retoma alguns elementos do pop rock da década 2000, como a bateria orgânica e as guitarras distorcidas, para firmar um lado pop extremamente sólido. Os sintetizadores aguados e melodias belíssimas confluem para criar uma estética própria, lapidada e amadurecida junto com o produtor Gustavo Schirmer (Terno Rei, Jovem Dionísio). 

É importante entendermos a música dentro do contexto da plataforma e enquanto fator viral, porque esse olhar traz a reflexão sobre uma nova perspectiva de consumo. No momento em que a obra sai das mãos da artista para o público, ela é reapropriada, transmutada, moldada e reautorada por qualquer um com acesso a internet e um pouco de criatividade. 

O refrão é perigoso, a melodia é simples e demora dias pra sair da cabeça, assim fica ainda mais fácil para o consumidor desdobrar em diferentes versões – e Lou parece entender e abraçar esse fenômeno como tônica do engajamento.

A cena da vaquejada também entendeu isso muito rápido. João Gomes, Zé Vaqueiro e outras figuras proeminentes do piseiro já gravaram versões de outras músicas que ficaram famosas na plataforma.

Entre Lou Garcia e Wesley Safadão, aos moldes do que aconteceu com a cantora independente Marina Sena e João Gomes, A versão piseiro de uma música indie parece um encontro de universos, possibilitado apenas por esse fenômeno tiktokiano.

Fico na torcida para que a transposição de Lou enquanto figura cibernética para o mundo real ocorra em passos firmes, com a conversão dos números de streaming em ingressos de show e fidelização de público.

Ouça: Todo mundo menos (eu) e Bateria Social.

Radar: Ruadois – Rua

Na última edição, trouxe aqui minha percepção sobre os novos movimentos de vanguarda do RAP – como o Grime -, que vêm se moldando através da importação e remodelamento principalmente da cultura inglesa. Faz sentido traçar paralelo entre essas sonoridades frescas e o início da década dos anos 20. É interessante viver esse período em que se redefinem os horizontes estéticos das artes, onde as correntes culturais nascem e morrem em uma dança de renovação e ressignificado.

Formado na pandemia por Well, Mirral ONE, Akila e georgelucas, o conjunto belo-horizontino RUADOIS bebe muito do Garage – movimento inglês de música eletrônica dos anos 90 – e mescla com timbres modernos nos beats e nos synths para criar uma assinatura sonora única.

Pode se dizer que o Garage, ou UKG, é uma influência pouquíssima explorada aqui no Brasil, principalmente dentro do RAP. O estilo chegou ao mainstream do país no início dos anos 2000 com “Adoleta”, da cantora Kelly Key e produzida pelo DJ Cuca. mas teve vida curta nas pistas. Talvez por isso seja uma escolha de pesquisa sonora que salta aos ouvidos. 

Para quem se interessa pelo tópico, recomendo fortemente essa leitura do portal kalamidade, escrito por Isabela Rosa:

https://kalamidade.com.br/2022/03/03/que-cena-e-essa-garage/ 

Ruadois

“Rua” é o último single do quarteto. Produzido por georgelucas e Adieu, a faixa carrega um balanço muito melódico: as harmonias desenham uma paisagem quase melancólica enquanto “Mirral” e “Well” deslizam nas rimas, debochando categoria nos flows.

Os timbres mais minimalistas da batida e o carinho com o design de som imbuído nos sintetizadores são os traços de uma estética moderna, mas que não deixam de conversar com a escola mais clássica do UKG.
Ouça: Sprint e Proibido estacionar VOL1.

Perfil: Rodrigo Lemos

Rodrigo Lemos é músico, produtor e compositor. Carioca de gema; paranaense de formação, o artista foi membro das bandas Poléxia e A Banda Mais Bonita da cidade. Pelos últimos 10 anos, se manteve consistente nos lançamentos dentro do seu renomado projeto solo, Lemoskine.

Hoje, trabalha principalmente em São Paulo, integra o time da produtora de áudio DaHouse e é curador no selo indie Dorsal Musik.

//Bate e volta:

Uma banda: Radiohead

Um disco que você ama: Coisas – Moacyr Santos

Um artista que só você conhece? Lemoskine

Algo você não suporta: Intolerância

Não vive sem? Chocolate

O que você gostaria de aprender? A continuar conectado com a criança dentro de mim

Como você se vê daqui a 2 semanas? Mais velho

Indicação: ÀVUÀ – “Percorrer em Nós”.

É fato que, há mais de século, a sociedade foi dando seu jeito de reservar às vozes negras a tarefa de cantar tão somente sobre suas dores, suas realidades embrutecidas, ou as múltiplas injustiças às quais foram submetidas historicamente.  Em manifestações nascidas mais ao fim do século passado, como o rap, a abordagem violenta chegou a atingir status de pré-requisito.

E, naturalmente, esse condicionamento foi se misturando às tendências de comportamento, dando corda para a discriminação cultural, o racismo estrutural, a violência da polícia contra as populações periféricas, onde crescem ininterruptamente novas manifestações musicais… Enfim. Prospecções nada promissoras. Tristes oceanos.

“Mas como é que você não fala de morte na quebrada? Não fala de armas? E a revolta contra o sistema? Não tem música de protesto?”, me enumerava tempos atrás um Jota.pê cansado de ter que lidar com tais questionamentos em entrevistas desde sua participação no reality show The Voice Brasil, em 2017. Como se fosse a única prerrogativa cabível a um artista negro: mostrar-se com raiva.

Eis que sai de campo o sing the blues. 

Quero chamar atenção para um rompimento de padrão ao tratarmos de uma geração que não aceita mais ser estigmatizada, e reivindica a leveza, os amores vividos abertamente, a manifestação da sua espiritualidade, o bem-estar físico e, sobretudo, emocional — o direito ao afeto.

Está aí o conceito que Jota.pê e Bruna Black escolheram abordar em seu disco de estréia como ÀVUÀ – “Percorrer em Nós”.

São tantos os símbolos, tantas construções sociais que aparecem na narrativa do duo a partir daí, que discorrer sobre sonoridade parece uma missão de peso menor. Podem alegar, sim, que a dupla não estaria reinventando a roda da canção de MPB, mas nem por isso deixam de entregar excelência nesse departamento; soando em consonância com seus pares no cenário atual.

O álbum – que acaba de sair pelo selo paulistano Dorsal Musik – deve agradar tanto puristas do formato voz e violão, quanto ouvidos mais interessados em texturas sonoras, ritmos afrobrasileiros e beats. Mas isso me parece estar longe de ser o maior trunfo do trabalho. O que Jota e Bruna estão fazendo tem mais a ver com representatividade no presente, e herança a partir de ensinamentos de personalidades como Lélia Gonzalez e Bell Hooks, por exemplo. É nas letras e no encontro dessas vozes que o jogo cresce.

Para torcer pelo voo livre de outros pássaros, ouça “Bentivi”. Apostar no poder de transformação do amor, como forma de resistência diante de um período tão afundado em ódio em nosso país? Ouça “Famoso Amor”. Permitir-se o auto amor? Ouça “Abrigo”.

E desisto de cavoucar o ninho para além do necessário. Mais valioso que saber racionalizar um fazer artístico, é sentir que podemos (através dele) estar presenciando um capítulo extremamente relevante e decisivo para a história. Assim sinto.

Faixas-chave:

“Bentivi”, “Te Encontrar”, “Comum” e “Famoso Amor”.

Para quem gosta de:

Djavan, Ibeyi, Mayra Andrade e Emicida

Para ouvir lendo:

“O velho está morrendo e o novo não pode nascer”, Nancy Fraser

“Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”, Maya Angelou

Nota: Pela proximidade com o processo do duo, fica difícil demais para este que vos escreve o exercício da imparcialidade. Mas quis arriscar a indicação porque é fundamental para o agora. ÀVUÀ vai seguir avuando.

contatos: [email protected] Spotify


Fala que eu te escuto:

Estou sempre em busca de sonoridades novas, e todo mês reviso e ouço com muito carinho todo o material enviado. Aguardo sua sugestão e, se possível, uma justificativa breve do motivo da escolha.

[email protected]


Este artigo faz parte do projeto Escuta, um ambiente de entrevistas e debates sobre música e cultura de realização do Instituto de Apoio à Orquestra Sinfônica do Paraná. Siga as nossas redes abaixo para mais informações!

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Em sua casa-ateliê, numa rua pacata da Vila Mariana, em São Paulo, Alexandre Furcolin cria paralelamente obras em desenho, pintura, fotografia, e mistura tudo em cada uma delas, num jogo sem-fim de relações visuais bastante livres – prática que intercala com leituras de filosofia oriental, meditação e muita flauta (flautas essas fabricadas por ele mesmo, para preencher sua contínua instalação sonora). Isso sem mencionar sua produção fotográfica para a moda, com uma volúpia tão presente quanto não objetificante.

Essa inquietação plástica pode ser notada expressamente em seus nove livros de fotografia, com especial destaque para São Paulo, da Coleção Fashion Eye, publicado pela Fundação Louis Vuitton, cujo lançamento mundial no Festival d’Arles deste ano, no sul da França, denota uma relação amorosa com sua São Paulo e nos guia para um mundo plural, diverso e bastante singular. O livro é uma composição que segue o sopro que corre pela planícies, vales e clubes dessa cidade sem fim e desbrava a megalópole pulsante com o frescor da música do vento, a força da luz do sol e da lua, no compasso entre o estranhamento e o maravilhamento. Da dura e crua cidade, Furcolin extrai o fortuito que escolhe desposar, delineando uma ligação íntima de espanto e afeto.

A energia vital caótica e livre da múltipla produção artística de Alexandre Furcolin convida a ver o mundo com olhos mais concentrados, elegendo um certo campo de visão, focando no essencial. Seus trabalhos trazem a luz do inesperado em cada uma das mídias em que atua. Com traços musicais de improvisação e domínio dos gestos, Furcolin preenche suas telas em linho cru como quem desenha na terra: com gestos firmes em sulcos profundos, aplicando diferentes técnicas e inserindo imagens fotográficas rasgadas e fragmentadas, com total desprendimento pelo suporte. Mas aqui a água do mar ou da chuva não apaga essa escrita, só sugere movimento e fluxo vital em seus negros textos ilegíveis, acompanhados de cores que fazem alusão aos principais elementos da natureza. 

Já os desenhos revelam um tipo de composição harmoniosa e inesperada, jocosamente infantil, com traços delicados e ágeis, que não respeitam a imobilidade. Clamam por vida e movimento e até dançam sozinhos, sob nosso olhar, com a fluidez de um desenho às cegas.

Como quem respira (e como quem faz do sopro música, na flauta), Furcolin pinta, desenha e fotografa. Em cada uma dessas mídias, o artista elabora ambiências oníricas que exploram o caos da cidade e a sabedoria da natureza. Numa escrita de garatuja ilegível, explora diversos meios para inscrever um novo alfabeto e, assim, conciliar num mesmo plano ritmos, volumes e cores que pareciam inconciliáveis.

Dessa pulsão por cor, forma e sensação, o artista nos convida a um universo saturado que emana uma busca por estabelecer contato com sutilezas e estranhamentos do mundo. As paisagens são desenho, são traços, mas também enquadramento; os retratos são registros de feixes de luz, portanto desenho também, e as pinturas são partituras cromáticas eloquentes. Assim, as fotografias conectam as demais obras de maneira muito sutil e fina, não só pela reiteração de ambiências, composições e cores, mas também pela confirmação da postura do artista: tanto agente quanto observador.

Desse embate entre complementares, entre noite e dia, fúria e placidez, Furcolin não se contenta com o registro documental do mundo. E se mostra fotógrafo-desenhista, ou pintor-fotógrafo, ou pintor de fotografias musicais — artista múltiplo. Se, para Susan Sontag, “fotografar é em essência um ato de não intervenção”, para Furcolin fotografar é também intervir e criar novos jogos visuais, que vão além das pessoas, além da cidade — não para abarcá-la em sua totalidade, mas para rasgar uma nova conexão com o entorno, a partir da sua intimidade. Ao ser um fotógrafo documental e também intervencionista, Furcolin cria novas realidades, novos jogos poéticos vitais.

Com um trabalho focado no instante, Furcolin cria momentos dilatados, a partir de decisões plásticas firmes, que podem ser continuamente revistas, baseadas em seus critérios de composição, enquadramento, para assim estabelecer jogos de campos justapostos, sincronizando pontos de vista.

Na fotografia, manifesta sua identificação com a distante paisagem estranha, talvez na inversa medida com que explora seu olhar admirado e desejante pela proximidade dos corpos. Nesses jogos de encantamento e repulsa, procura uma abordagem sem julgamentos, expressa por meio de uma contundente inteligência visual, com uma paleta vibrante magnética, flashes que atenuam o alto contraste e que pontuam faces, corpos e naturezas-mortas.

No desenho, brinca jocosamente com pintura e fotografia, alternando papeis — a pintura quer ser desenho, a fotografia quer ser pintura, e o desenho sugere uma junção de todas as anteriores, a partir de traços mínimos, com colagens que convocam as outras técnicas e criam um desenho de muitas vozes e cores. Explorando distintas abordagens da linguagem fotográfica, adequadas a distintas atmosferas e assuntos, e distintas soluções para cada suporte, o artista se vale de múltiplas formas de abordagens para as imagens que cria. E, assim, faz com que sejamos guiados por essa força do vento, que dá forma a silêncio e ruído, sedução e repulsa — como um flautista de Hamelin gauche, que reorganiza o caos para torná-lo ainda mais complexo, numa improvável condensação de geografia e tempo. 

Pode-se dizer que o nome de Diambe da Silva começou a circular no circuito das artes visuais recentemente. Seja por conta dos temas sobre os quais se debruça, seja pela forma de contestação e reflexão que sua produção impõe, em apenas cinco anos um percurso que começou através do cinema se desdobrou em uma trajetória artística de importante repercussão. Os novos caminhos para além da tela – coreografias, esculturas, pinturas, desenhos – levaram Diambe a expor em coletivas no MASP e no Instituto Moreira Salles e realizar uma primeira exposição individual no Centro Cultural São Paulo. Tudo isso acabou por lhe render a indicação ao Prêmio PIPA 2022, o maior prêmio de arte contemporânea do Brasil. 

Pessoa negra, crioula, não-binária e soropositiva, como se afirma, nascida no Engenho Novo e criada nos entornos de Madureira, nos subúrbios do Rio de Janeiro, Diambe não tem medo de mostrar a cara e lutar pelo espaço, pela voz e pelos direitos. Canaliza sua energia para produzir obras onde não há, no seu entender, uma diferenciação entre arte e política, nem entre abstração e figuração, forjando um espaço para desafiar e contestar cânones, propondo caminhos para uma discussão e revisão da história e da própria arte.

“Eu sou uma pessoa política todos os dias da minha vida, até quando estou fazendo voto de silêncio dentro do ateliê. É lamentável as pessoas separarem arte e política, porque algumas pessoas ficam presas ao lado ‘político’ da coisa. Essas em especial são colocadas em uma gaveta de onde não conseguem sair quando desejam”, afirma com convicção.  

A artista defende que o mais importante é ser livre para tratar os desafios que lhe são urgentes. “Hoje em dia as pessoas esperam que artistas negras façam pintura figurativa, então eu estou fazendo algo inesperado na minha geração! Que bom! Eu sou uma quebra de expectativa, pois nem somente pintura figurativa é política. Acredito na arte como uma forma de metamorfose das matérias postas. Eu realmente preciso encostar na matéria, é meu jeito de segurar a barra da nossa sociedade, ou enlouqueço. Este é o potencial estético da arte.”

Diambe nasceu em 1993. Como muitas pessoas da sua geração, trabalha com diversos meios, mídias e materiais. Seus assuntos nascem do dia a dia, e a inspiração vem de qualquer matéria viva. “Os temas, assim como os materiais utilizados, vêm da vida cotidiana. Acredito que isso é atemporal para mim. Estou falando de matérias vivas e dialogando com elas para fazer esculturas e coreografias, porque meus trabalhos têm a intenção de chegar ao maior público possível”, conta. 

Devolta (2019-2021) é provavelmente seu trabalho mais conhecido até então. Nele, Diambe desenha um círculo com roupas em volta de monumentos públicos e ateia fogo, criando uma cortina de fumaça em volta de estátuas de personagens históricas como Dom João VI e Princesa Isabel. Essa ação é uma de suas coreografias. Não é apenas uma performance no sentido artístico, mas uma construção coletiva, uma ação que toma forma a partir de uma investigação específica, falar sobre os monumentos e figuras que ocupam esses lugares de destaque nas praças e que narram uma versão única da história. “Coreografia é um jeito de eu criar situações no campo das artes sem que eu precise usar a palavra performance. Eu não estou fazendo uma performance porque não sou somente eu que estou desempenhando algo, meus movimentos geralmente são coletivos e participativos, muitas coisas agem sem saber nessa composição.”, explica.  

Entre setembro e outubro, a artista apresentou a exposição Jardim Novas Mucosas, na Quadra Galeria, em São Paulo. A mostra, com curadoria de Catarina Duncan, reuniu esculturas em bronze, pinturas a óleo e têmpera e um filme que leva o nome da exposição, parte de seu conjunto mais recente de trabalhos. Essas obras apresentam outro coreografar, mas seguem o compasso particular de Diambe. 

A noção de movimento, conforme conta, é algo central em sua poética. “Quando eu era criança, ia ao circo e ficava observando as acrobatas, tentava não esquecer o comportamento das coisas que se movem. E, nesse sentido, é o movimento que me atrai”. E é justamente do movimento que surge a coreografia, seja na rua ou no recanto do ateliê, moldando as peças em bronze ou pintando telas abstratas. 

Logo depois de ter iniciado as coreografias nas ruas, Diambe começou a elaborar esculturas vivas, feitas com raízes alimentares crioulas. “Em algum momento, as minhas crenças me levaram a perceber que esse material perene, vivo, precisa ter monumentalidade na sua beleza, que já atravessa tempos e espaços. A metamorfose para o metal me levou a novos arranjos mais complexos”, relata. É desse percurso que nascem as esculturas e pinturas que fazem parte do conjunto Novas mucosas

Com suas formas e criaturas, Diambe deseja transformar o papel que as esculturas desempenham na história. Colocando suas obras em relação à escultura tradicional, a artista afirma que suas coreografias e esculturas são transformadoras porque são prazerosas, baseadas em um comportamento vivo. “Já vi pessoas de classes sociais, religiões e formações distintas sendo arrebatadas pela minha obra. É o mais revigorante amor do público. As Novas mucosas tomam formas de comidas que alimentam espiritualmente, além de serem combustível de saúde no mundo”. Assim, a artista busca contrapor um mundo vivo – de formas livres e cores variadas, de organicidade, de relação com o corpo e com o alimento, de diversidade e pluralidade – a um mundo estagnado numa história que ainda merece muitas revisões; um mundo comandado pelo homem branco a um mundo onde seres e natureza são uma coisa só. 

Em suas pinturas, formas semelhantes às esculturas ocupam o espaço da tela. O mesmo movimento orgânico, com formas disformes, seres e criaturas formam um jardim que não é, conforme afirma Duncan, possível de ser controlado pelo homem, pois tem vida própria. A curadora escreve: “Na ecologia dos saberes, cruzam-se conhecimentos e ignorâncias. Ela nos convida a aprender outros conhecimentos sem esquecer os próprios para sonharmos com o interconhecimento. Existe, no mundo ocidental, a pretensão de se compreender um jardim como algo totalmente controlado pelo humano. Ignora-se o fato de que minerais, insetos e fungos são também agenciadores de jardins”. 

Há, ainda, em Jardim Novas Mucosas, uma referência à ficção científica de Octavia Butler (1947-2006), autora estadunidense que Diambe começou a ler durante a pandemia, ao mesmo tempo em que se dedicava à produção das esculturas vivas. A série Xenogênese – uma narrativa em três volumes, sobre uma humana que despertou após 250 anos de animação suspensa e descobre que a Terra foi dominada por seres de outro planeta – serviu para criar imagens. Diambe afirma que seu processo criativo é dividido entre fazer e pensar: “Preciso de tempo de pesquisa, passo parte do tempo no ateliê e outra parte eu passo lendo, estudos culturais, ficções, política ou estudos vivos. Ficando à toa também aprendo muito, é verdade, e as obras nascem neste caldo”. 

Para Diambe, o que é essencial em seu trabalho é a forma como ele se transforma. “Para mim, metabolismo e metamorfose são o trunfo. Tudo comunica, mas nem tudo respira de jeito vivo, a gente tem que ser humilde frente a isso. Eu uso materiais que já foram muito usados, mas faço isso de jeito autêntico porque atribuo vida aos comportamentos da matéria”, pontua. 

Para o próximo ano, Diambe prepara-se para sua próxima residência artística que se desdobrará entre algumas cidades da Suíça e outras do Benin e Nigéria. “O propósito desse deslocamento é encontrar o espólio das esculturas milenares que são de origem africanas e que estão em museus etnográficos na Europa. Como parte disso, minha vocação alimentar me fez pesquisar a antropofagia de 1922 [Semana de Arte Moderna, de 1922], uma filosofia brasileira cujo princípio é nos alimentarmos das influências estrangeiras e digerir isso, misturando às nossas referências internas. Minhas referências são crioulas, misturadas”, conclui. 

Fotos: Ana Pigosso | Galeria Marília Razuk (SP)

Desde os anos 1990, Maria Andrade participa de exposições e circula pelo circuito das artes. Já foi professora, ilustradora, designer e musicista, além de coordenadora educativa na Oficina de Esculturas em Metal, no MAM-SP. Porém, faz 12 anos que esse percurso de muitas voltas achou um rumo preciso: “eu descobri que tinha que mergulhar nesse caminho com tudo, que era isso que eu queria. Porque até então eu fazia mil coisas… e aí eu falei: ‘é isso, eu sou pintora’.”.  

Na época, Maria conta que estava passando por um momento de mudanças pessoais. Atravessava um divórcio e vivia um momento de reencontro consigo mesma. Foi somente aos 42 anos que decidiu mergulhar na pintura. “Eu pintava sem parar, talvez correndo atrás do tempo”, comenta. Ela relata com entusiasmo o encontro com a tela e as tintas, como um momento revelador, de ter certeza de finalmente ter descoberto algo que buscava há tempos.

Desde então, Maria pinta paisagens. A história de sua família – seu pai viveu exilado na Escócia durante os anos da Ditadura Militar brasileira – e a sua vida pessoal contribuem para o imaginário que habita suas pinturas. “Eu gosto muito de paisagem. Acho que eu vi, ao longo da minha vida, em todas as viagens, muitas paisagens. Na minha vida pessoal, eu tenho as paisagens da Escócia, da Inglaterra; tenho as paisagens de Minas Gerais, onde minha mãe comprou uma casa e a gente vai todo ano, e lá é sertão. É uma das paisagens que eu vejo, e eu gosto de estar lá. É um tema de que gosto. Eu acho que tem a ver com o que já vi e com o que eu vivo”.

Suas pinturas, ora sobre madeira, ora sobre tela, são feitas com tinta a óleo. Camadas sobrepostas que aproveitam o tempo longo de secagem da tinta para misturar uma pincelada a outra, pintar por cima, misturar as cores e borrar contornos. Suas paisagens não são paisagens hiper-realistas. Pelo contrário, são paisagens imbuídas de memórias, de sensações, de lembranças e também criadas a partir da imaginação. 

“Durante um tempo, pintei muito sobre madeira. Eu gostava porque ela não afundava como a tela, dava para passar a espátula e dava para eu mudar o formato também, deixar de ser quadrado, retângulo. Então poderia fazer formas arredondadas, algo que eu achei legal por um tempo. Não tenho feito mais. Agora eu parti para a tela de novo”, conta. “Eu pinto a óleo, porque ele tem essa coisa de demorar para secar. Então, no dia seguinte, o trabalho ainda está molhado, ainda dá para mexer, misturar, uma tinta ir na outra e fazer outra cor. Eu gosto. Eu não conseguiria pintar com acrílica, a não ser que fosse outro tipo de pintura. Para o que eu faço, não dá. Eu acho que é também o que caracteriza o meu jeito de pintar”.

O jeito de Maria pintar é rápido e vigoroso. As pinceladas dançam pela tela, esbarrando e entrando umas nas outra, algumas vezes começando o contato com o suporte carregadas de matéria e terminando mais ralas, outras acrescentando camadas de cores, criando áreas mais densas de tinta. Ela pinta com ímpeto e confessa que é capaz de resolver uma pintura em uma hora. Claro, pode ser preciso voltar na obra depois, mas o que ela ressalta, na nossa conversa, é que, quando entra no ateliê, de fato mergulha no que está fazendo e produz sem parar. 

Sua exposição mais recente, Sem sombra de dúvida, apresentada na galeria Marília Razuk, entre agosto e setembro deste ano, reuniu cerca de 30 pinturas inéditas, todas produzidas nos seis meses anteriores à inauguração. Entre as paisagens apresentadas estavam composições com diferentes cores, matas mais tropicais, outras cenas mais áridas, algumas com cores mais vibrantes, outras com cenários mais sóbrios e alguns quadros mais abstratos. Na verdade, mesmo quando Maria pinta árvores, montanhas, coqueiros, palmeiras, folhas, cachoeiras, pedras, arbustos – e podemos perceber essas formas na tela – sua pintura tende a certa abstração. É possível reconhecer a referência à paisagem natural, mas se soma à composição um jogo de linhas e campos de cor que embaralham o olhar e lhe conferem sua característica própria. 

Conforme escreve o crítico de arte Rodrigo Naves, no texto Útil paisagem?, que acompanha a exposição, as palmeiras de Maria “são cercadas por uma vegetação quase cerrada, e o verde escuro dominante não remete a um solo degradado nem à falta de água. As palmeiras sobressaem por uma verticalidade paradoxal: os troncos são finos para o verdor e a força da folhagem e seus coquinhos. Sobretudo os troncos não têm contorno, nem o claro-escuro que sugere a impressão de um volume roliço, e a irregularidade das pinceladas acentua o pouco diâmetro”. Em sua pintura, não há os clássicos claro e escuro, luz e sombra da pintura tradicional. Suas pinceladas conferem contorno, mas não volume. Há uma certa planaridade dos elementos na tela que se soma a uma luz que é quase sempre difusa. 

Atualmente, uma das coisas pela qual a artista está interessada é a produção de tapeçarias marroquinas, influência que apareceu em algumas das pinturas de Sem sombra de dúvida. “Eu me encantei pelos desenhos dos tapetes marroquinos, que as mulheres das montanhas fazem. Os desenhos são muito loucos. Eu fiquei pensando de onde vinha isso, porque elas estão lá, mais ou menos isoladas, numa montanha do Marrocos, fazendo aquilo, e é muito lindo. Me inspirou, e eu comecei a pesquisar. Obviamente que veio para a minha pintura”, relata. 

Em alguns quadros, as linhas mais geométricas, que cortam, ou se encaixam na paisagem mais orgânica têm origem no diálogo que Maria vem travando com essa pesquisa. Ela conta que, em seus quadros recentes, vem misturando “um pouco de paisagem com tapete”. Para além das formas e cores, a inspiração que essas peças de tapeçaria trazem é a do próprio fazer, algo que é central para a artista quando ela está diante da tela. 

Ela conta que, no início, suas obras nasciam a partir de fotografias e imagens de referência que ela mesma fazia ou buscava na internet. Com o passar do tempo, começou a ser cada vez menos fiel ao que estava vendo e a se entregar mais ao acaso do que surgia no momento, na relação direta com a tela e com os materiais. “Às vezes tem uma coisa bem abstrata também, né? Uma paisagem inventada, do meu imaginário, e que tem a ver com o ato de pintar, de estar naquela viagem da pintura, estar ali com a tela e com as tintas.”

Maria comenta sobre a liberdade infinita que há, hoje em dia, em escolher tudo, desde o tema, os materiais, o tamanho, o formato, algo que nem sempre é fácil. Para ela, o guia principal é a inspiração. “É o que te leva a fazer aquela pintura, escolher aquele tema naquele momento”. Além das paisagens que carrega consigo, que formam seu imaginário, e das influências da produção de tapetes marroquinos, Maria também tem trabalhado com impressos antigos, como por exemplo, selos. Alguns elementos desses papeis aparecem em suas telas recentes. Em alguns momentos, no entanto, a inspiração nasce simplesmente do desejo de pintar com certas cores: “As cores me inspiram também. Às vezes eu começo uma pintura sem saber bem o que vai ser, mas porque eu quero usar determinadas cores”, completa. 

Sobre se dedicar a um gênero que ocupa um lugar muito específico, notório e tradicional no campo das artes, Maria rebate que não vê nenhum problema nisso. “Em algum momento me questionei: será que é sem graça? Dá para fazer tantas outras coisas. Mas pensei: é o que quero fazer! O que vão pensar não é importante. É o meu jeito, é o que eu quero. E essa autenticidade do artista, independente do mercado, se vão gostar ou não, é fundamental. É um requisito básico”, enfatiza. “A arte é isso, você faz o que você quiser, essa liberdade infinita, que até angustia de tantas possibilidades. Mas o que dá vontade, o que inspira… é daí que tem que vir, e eu deixo vir”, completa a artista que, para o próximo ano, planeja fazer uma residência no Marrocos.  

#43MiragemCultura

Dois e dois são dois: Suze Piza e Lindener Pareto

Suze Piza é filósofa. Professora da UFABC, pesquisa Ética, Política e Epistemologia.

Lindener Pareto Jr. é historiador, Doutor em História da Arquitetura e do Urbanismo pela USP. Desde 2013, é professor de História Contemporânea na PUC-Campinas. Apresenta o Provocação Histórica, projeto de História Pública e de entrevistas com historiadores e historiadoras do Brasil nos canais do Instituto Conhecimento Liberta.

Suze – Pensar identidade, a meu ver, é uma grande miragem. Eu prefiro falar em processo de identificação ao invés de falar em identidade. Não é um problema com o conceito em si, mas com a maneira como esse conceito foi sendo construído na tradição das humanas, no caso da minha área, da filosofia. Ela é a responsável por esse conceito ter se tornado uma miragem, no sentido mais preciso do que é a miragem. O que a gente tem nesse modo de ser Brasil, ou nesse modo de ser brasileiro, acho que é uma conjugação de uma série de experiências de identificação com uma série de coisas. São processos extremamente complexos que, quando se usa o termo “identidade”, a gente acaba procurando nos lugares errados para tentar responder a uma pergunta que não tem muito uma resposta. Ou seja, tento saber o que seriam características ou traços. Parece-me que, quando uso o termo “identidade”, por conta da carga que essa palavra tem, que o conceito tem, eu começo a tentar responder a coisas que, na verdade, não têm muita utilidade. Eu preferiria pensar em identificação, o que nós somos nesse território, nesses tempos que nos atravessam nesse território, e nos territórios que nos atravessam também, porque a questão não é você delimitar uma fronteira de um estado nacional, mas o nosso território, todos os territórios que nos atravessam. Quais são os processos de identificação que acontecem aqui e não acontecem em outro lugar, ou acontecem em outro lugar de maneira distinta. Com isso, a gente consegue fazer um levantamento e estabelecer algum tipo de delineamento, para a gente falar: isso é Brasil, ou pelo menos é Brasil num dado momento, numa dada fotografia que eu olho. Acho que daria para pensar: bom, Brasil, 2022, aí eu começo a tentar fazer o que é essa identificação “2022”. E acho que até daria para retomar o uso do conceito de identidade, e nisso o Jessé [Souza, sociólogo e editor convidado da Amarello Miragem] tem uma contribuição fantástica, porque ele mobiliza teorias muito ricas para pensar a identidade, que vão fugir de todos os “ismos” que dificultaram muito a compreensão do que nós somos, mas não é uma teoria ainda vencedora, são teorias que estão lutando para serem escutadas. O que ainda domina o imaginário das ciências humanas são concepções bastante restritas e reduzidas do que seria essa identidade do brasileiro.

Lindener – Bom, pensando aqui no métier da ciência da história, impossível não falar como historiador, por dever de ofício. Pensando o que venho fazendo em relação à divulgação de história, com o Provocação Histórica, com aula de história, narrando a história do Brasil, sobretudo a história da formação do estado da nação no Brasil, acho que a maior miragem da história brasileira, que está na teoria social, está em todos os grandes impérios do Brasil, é essa miragem da democracia racial. Ou seja, esse mirar uma ilusão de harmonia racial étnica no Brasil, que reiteradas vezes tem sido ressignificada na nossa história, seja no século XIX pela política da escravidão, seja no século XX, na era Vargas, nesse festejar da miscigenação. Mas que, no fim das contas, como a gente bem viu recentemente na história do Brasil, e vem assistindo tragicamente nesses quatro anos ou mais, foi ressignificada mais uma vez em termos de domínio de uma supremacia branca. Então, essa ilusão, essa miragem, a linha mestra, para lembrar aqui a expressão do Caio Prado Júnior, que ainda nos conduz enquanto identificação, enquanto povo, enquanto característica, inclusive, vinculada ao universo de uma miragem de alegria, de cordialidade, etc. e tal. Esse aspecto é crucial do ponto de vista de uma estrutura histórica formada no período colonial. Estamos falando aqui de colonização, mas reinventada a partir de 1822 na formação de estado nação, que é, no fim das contas, a escravidão, a submissão de um povo inteiro a uma história de brutalidade, de violência, e que foi tragicamente reinventada pela elite lusobrasílica na formação do estado nacional. Não é só uma continuidade da escravidão desde o período colonial, como aponta o [Luiz Felipe de] Alencastro, rompendo com essa ideia de que é só uma continuação. Não, muito pelo contrário, a elite lusobrasílica que forma o estado nacional, a alta cúpula política, o congresso, o império do Brasil e a alta elite proprietária reinventam a escravidão de uma forma inaudita. De todos os africanos vindos para cá, 40% dos que ingressaram deportados no Brasil em todo o período de colonização vieram entre 1808 e 1850, entre a presença da corte portuguesa no Brasil e a Lei Eusébio de Queiroz, que foi a lei que finalmente aboliu o tráfico. Comprar na África seres humanos e vender aqui nos portos do Brasil. Com isso, quero dizer o seguinte: essa miragem da democracia racial, tão discutida e desmontada desde que Gilberto Freyre aponta e concebe a ideia, mas desmontada por Florestan Fernandes, passando por várias figuras, até chegar mais recentemente ao próprio Jessé, é aquela que está vinculada àquilo que é a alma do estado nação do Brasil. Ou seja, a instituição da escravidão por todos os poros da sociedade brasileira, por todas as instituições, pela alta cúpula. Esse é um país montado no tráfico ilegal, na violência da escravidão e na violência do controle dos corpos do colonizado, e, no caso, o colonizado é o africano escravizado de longa data, mas agora numa versão brasileira nacional mesmo, nessa interiorização de dominação brutal que permanece. A gente pode dizer que essa ideia de controle e colonização que envolve os povos da África foi a menos questionada em termos de tentativas de ruptura, há uma continuidade muito maior em termos de tempo e de espaço. Então, essa é a maior miragem, o maior problema do Brasil. 

Suze – Acho interessante também pensar no que faz a gente ver uma miragem, o que faz a gente acreditar que está vendo uma coisa que não existe de fato ou, de repente, até estar olhando para algo que existe, mas vendo essa coisa de uma maneira distinta do que ela é a partir de alguma fantasia, ou mediada por uma imaginação exacerbada. Tem a ver, de várias maneiras, com uma experiência de afastamento do real, em que você coloca alguma coisa no lugar: estou morrendo de sede, ali na frente há um rio onde posso beber água, ou tomar um banho, porque estou com muito calor, mas, na verdade, ali não tem esse rio; então, é só uma miragem. Se for pensar nos processos psíquicos que justificam esse tipo de coisa, e aí pensar na perspectiva que você está trazendo, de um ponto de vista social, como foi feito com a democracia racial, tem tudo a ver com a noção de identidade, porque é a maneira como a gente foi forjando a concepção de identidade brasileira. Apesar de tudo, quando você pensa no que seria a identidade brasileira, por isso falei que é um conceito extremamente problemático, está se falando de um homem branco; portanto, isso, por si só, já é uma miragem, porque você tem uma população que não é essa figura. E aí você está falando de quem? Apesar dessa figura estar aí, ela não é a mais representativa; então, de fato, você está lidando com algo que não é palpável. Mas me interessa pensar em que tipo de condição… A gente fala muito na filosofia de condição de possibilidade, em que tipo de condição de possibilidade faz com que você construa determinada ficção. Eu acho que a gente é muito atravessado por uma concepção de tempo e de espaço que vem do comecinho da modernidade, a gente não se livrou disso ainda. Há uma jovem filósofa que vem trabalhando com isso de maneira bastante interessante, que é a Denise Ferreira da Silva, que despontou nos últimos anos, apesar de estar trabalhando já há bastante tempo com filosofia. Ela discute muito isso, numa perspectiva de pensar o fim do racismo, da organização da luta antirracista. Ela vai dizer que, enquanto a gente não mudar a maneira de conceber o tempo e o espaço, enquanto a gente não mudar a própria forma de conceber a matéria, a gente não tem como superar isso. É impossível, porque existem pressupostos à nossa maneira de pensar. Então, há uma forma de pensar que implica uma visão de tempo linear, numa visão de progresso, numa visão de hierarquia entre os povos, tudo isso passa por essas construções que nós fizemos aqui, de achar que nós, brasileiros, somos isso ou aquilo, que não existe racismo aqui, há todo um conjunto de ideias que foram sendo construídas que têm a ver com coisas muito básicas. Parece-me que a gente, inclusive, nos últimos anos, tem focado muito em multiplicar conteúdos a respeito de tudo isso, mas mexido pouco na forma, e é por isso que a gente cria cada vez mais discursos sobre o tema e muda pouquíssima coisa. Há um colega meu, o Anderson Flor, que fez, pouco tempo atrás, o prefácio do Os condenados da terra (livro de Frantz Fanon), ele fala que não adianta ficar aumentando o cânone o tempo todo, inserindo mais teoria, mais conceito, se a gente não muda a forma de fazer a coisa. É isso praticamente o que a gente tem feito.

Lindner – Fica no modismo decolonial.

Suze – Nós viramos especialistas nisso. Inclusive, porque tem a ver com um ressentimento. Eu estudo o pensamento decolonial há muito tempo, e a grande disputa, há quinze anos, era que a formação acadêmica dos nossos estudantes não fosse predominantemente europeia, porque na África também há pensadores, na América Latina também há pensadoras, há pensadores, e foi uma batalha importante de se lutar, mas hoje a gente percebe que não é só isso, porque a gente continua estudando esses autores e essas autoras da mesma maneira que a gente fazia com os outros. Então existe um limite. E o principal limite é não conseguir ver nada além das miragens, a gente vê a miragem em outras perspectivas, é basicamente isso que se tem feito. Parece-me que há condições formais que precisariam ser modificadas para a gente conseguir escapar, porque o processo de acreditar que está vendo uma coisa quando você não está, ele é muito elaborado, a gente está vivendo isso no Brasil agora em larga escala.

Lindener – Totalmente. E aí a gente pensa no mote do Frantz Fanon, sobretudo nos últimos anos, para pensar textos dos intelectuais e das intelectuais negras do ponto de vista do plano de ensino. Mesmo que você, Suze, o fizesse há tempos, está só agora sendo incorporado nas universidades, e isso pensando nos grandes centros de pesquisa e ensino desse país.

Suze – Há poucos anos.

Lindener – Há poucos anos. A USP, por exemplo. Eu fiz História lá na FFLCH de 2002 a 2006 e lembro que só havia uma disciplina de história da África, ministrada evidentemente por professores que tinham, para usar a expressão dos historiadores do período colonial, um cabedal. Ou seja, geralmente eram de famílias brancas. Era uma disciplina, um semestre só, e todas as divisões das nossas disciplinas eram as grandes divisões da história tradicional europeia, mesmo que dentro delas houvesse professores e professoras questionando essas divisões. Como Norberto Barinel falava: as grandes formas da História precisam ser questionadas.

Suze – Questiona as divisões, mas não muda o projeto pedagógico.

Lindener – Exatamente. 

Suze – História Antiga, História Medieval, História Moderna. Na filosofia é assim: História Antiga, História Medieval, História Moderna e História Contemporânea. Isso é uma maneira de pensar o tempo europeu. Isso é uma miragem.

Lindener – Tem tudo a ver com a continuidade de uma certa identidade, de uma miragem que aponta para um reconhecimento mútuo, uma valorização, mas só isso não basta. Acho que está no cerne de todas as discussões do que, de fato, é a emancipação hoje e do que, de fato, é apenas a oportunidade do neoliberalismo. Mas voltando, então, às percepções do tempo, há um acúmulo de uma série de autores e autoras que falam sobre uma teoria dos tempos históricos, que passa pela ruptura brutal, mas não tão brutal assim, a depender de uma história secular de consolidação, que é essa história da revolução industrial e da mudança da percepção da passagem do tempo, uma História Social do tempo. Sempre foi, obviamente, vinculado às formas que os humanos dão a ele, ou seja, a passagem do tempo depende daquilo que são as tarefas do dia ligado ao mundo natural e das nossas representações e criações a partir do domínio do mundo natural. É dessas percepções da disciplina do trabalho que [Edward Palmer] Thompson fala, o historiador britânico, a partir do século XVIII em função da aceleração do tempo histórico. Então, para pensar nessas miragens, é preciso pensar também nessas teorias dos tempos históricos e pensar que há um grande passado pela frente. Acho que a nossa contribuição, dos historiadores e historiadoras, é sobretudo pensar numa teorização do tempo histórico usando [Reinhart] Koselleck, usando [Fernand] Braudel, usando Thompson. Para mostrar a contemporaneidade do não contemporâneo, acho que para pensar a grande miragem da harmonia racial de um país que supostamente convive bem com suas diferenças, é negar a própria lógica da história. É uma história de conflito, de disputa, de brutalidade. Então, o que a teoria do tempo histórico ou dos tempos históricos pode elucidar ou esclarecer ou ajudar a entender? Que há muito passado no presente, pode parecer básico ou óbvio, mas há um grande passado pela frente no sentido que toda a mobilização de uma estrutura ou de estruturas de passado na história do Brasil permanece de forma implacável no presente. Claro que existem muitos exemplos, mas, certamente, o exemplo do patriarcado no Brasil, e do patriarcalismo, o exemplo do racismo estrutural em todas as suas instituições e em suas sociabilidades são os exemplos mais contundentes. São permanências implacáveis do passado no presente, mas tudo isso tem uma teorização, são camadas de tempo que se vinculam a certos espaços, inclusive segregados, ou não, e que permanecem no presente. Isso serve para entender por que raios a gente assistiu à ascensão do bolsonarismo no Brasil, mobilizando todo o repertório brutal da história brasileira como nunca antes em termos de uma certa coesão, de um fascismo à brasileira, coisa que nem o integralismo conseguiu fazer. Tudo bem, a gente pode estar agora de forma hiperbólica, porque estamos no calor da hora, do início de uma transição, para pensar a transição entre Bolsonaro e o terceiro governo Lula, mas é inacreditável pensar que, pela primeira vez na história do Brasil, a gente conseguiu, ou o Brasil viu, a mobilização de um repertório brutal da história brasileira, mas ressignificado dentro de aspectos cruciais do fascismo histórico mesmo, sem medo de ser feliz, sem medo de ser anacrônico. “Ah, mas eu sou historiador, não vou dizer que isso é fascismo”. Meu Deus, o sujeito mobiliza o repertório do Mussolini, tem características inclusive estéticas, o próprio cabelinho, os comportamentos que os assessores tiveram, o sujeito da Secretaria de Cultura (pois, de Ministério da Cultura, foi rebaixado a Secretaria) imita o discurso do Goebbels.

Suze – Quando o pessoal fala para mim: “dá para chamar de fascismo?” Eu falo: “vocês deviam ter feito essa pergunta quando chamaram o Temer de fascista”. Ninguém fazia a pergunta.

Lindener – Sensacional.

Suze – Era um tal de “fora, fascista”, “não passarão”, e eu falava: “gente, o Temer é uma desgraça, mas qual é o traço?”

Lindener – Chamando o Geraldinho de fascista.

Suze – As pessoas falam tanto as mesmas coisas que você vai tendo as respostas prontas no bolso. Quando a pessoa fala, você já saca a resposta. 

Lindener – Há um manual de respostas filosóficas contundentes, prontas e aterradoras, porque a pessoa é desmontada.

Suze – Eu falo para ler os italianos, que entendem bem de democracia liberal e de fascismo. Se está com alguma dúvida de que o Bolsonaro é fascista, vai ler Umberto Eco.

Lindener – [Palmiro] Togliatti, [Giorgio] Agamben.

Suze – Vai ler o [Antonio] Negri, vai ler Agamben, vai conversar com quem entende bem desse negócio. Lê O fascismo eterno, do Umberto Eco. Mas é curioso isso… que hora boa para ter preocupação com precisão conceitual.

Lindener – Por falar em precisão conceitual, sei que, no fluxo da consciência, fica um tanto misturado aqui na nossa prosa, mas acho que esse é o objetivo. Vamos lá: toda modernidade foi montada na história do mercantilismo, pelo capitalismo, em função do quê, entre outras coisas? Em função do tráfico, em função do início de uma construção de empresas comerciais europeias que se expandem, de CEOs da época. Nem sei o que é o Maurício de Nassau senão um CEO da Companhia das Índias Ocidentais, dominadas pela Holanda, que era inimiga de Espanha e invade aquilo que é a América portuguesa ou Brasil colonial para continuar traficando africanos para cá e plantar cana de açúcar. Então, toda a modernidade é montada em função do tráfico de seres humanos, do tráfico transatlântico de africanos escravizados. São 12 milhões de africanos escravizados ao longo de 350 anos e, desses 12 milhões, para o Brasil vêm mais de 5,5 milhões, para o complexo que vai ser Brasil colonial e depois Brasil independente. Entre 1501 até 1850, esse complexo territorial voltado para o Atlântico Sul, sobretudo na formação com África em função do contato do império ultramarino português, trafica pra cá 5,5 milhões de africanos. Para os Estados Unidos, foram 700 mil; para Cuba, perto disso também. Ou seja, o Brasil foi, de longe, o agregado político colonial independente que mais traficou seres humanos na história de toda a modernidade. Quer coisa mais emblemática apontando o Brasil como o grande laboratório de todas as teorias e práticas do estado de exceção em toda a modernidade? E pior do que isso, além de manter a plantation e reinventar a escravidão, nosso estado nacional trafica ilegalmente, cometendo aquilo que o Alencastro chama de “pecado original da ordem jurídica brasileira” e, portanto, nasce como estado nacional num pacto de sequestradores, de criminosos. Esse é o Brasil de campo de concentração constante e de uma internalização da dominação que nunca foi rompida. Por isso que o bolsonarismo, de uma forma um tanto caótica e às vezes sem muita coesão, apropria-se dessa brutalidade do passado colonial com muitos ressentimentos. Veja, é um imigrante italiano, que nasce ressentido com uma certa elite branca de origem portuguesa na região de Eldorado no interior de São Paulo. Quer dizer, são ressentimentos ressignificados ali com aquilo que é a linha mestra da história brasileira, que é a herança da escravidão. 

Suze – Eu acho que dá para pegar essa reflexão que você faz e voltar a pensar na fragilidade do que é achar que a gente vai ter uma identidade nos termos de que a gente costuma tentar elaborar, pensar no quanto isso é inócuo, porque é tentar se entender como resultado desses processos de identificação com isso que explica o que a gente é. A experiência da plantation, que é o trabalho cotidiano ali na lavoura, a exploração do trabalho, a exposição, tudo isso é formação de pessoa. E isso hoje não é passado para empregada doméstica que trabalha na casa das classes médias? Essa experiência do espaço e do tempo não foi modificada. Então, se eu quero entender o que é ser brasileiro, tenho de entender que essa experiência vai sendo repetida. Uma tese que orienta praticamente todos os pensadores e pensadoras decoloniais é: finalizar um regime econômico político como o colonialismo não significa eliminar da sociedade as práticas coloniais. Você finaliza o colonialismo, mas mantém a colonialidade. Você mantém todas as práticas coloniais, mas com outra roupagem. A edição brasileira de Os condenados da terra tem um prefácio muito bem feito pela Inocência Mata. Ela diz que Fanon é um pensador que se coloca frontalmente contra a metafísica do branco e a metafísica do negro, apresentando uma tese anti-identitária. Mas isso não significa que ele esteja abandonando a causa negra. Essa é a causa dele, mas ele não quer tratar disso de maneira essencialista, assim como vários pensadores e pensadoras negras também não o querem. O que significa você pensar nessa formação do ser brasileiro a partir das identificações, com o espaço das cidades e com a maneira como você experimenta o tempo. O Fanon está falando da Argélia, está descrevendo o que ele está vendo lá, vendo o que é a cidade do colonizado na Argélia. E tem horas que você começa a ler e fala: gente, isso é São Paulo, são muitos outros lugares. Isso é genial.

Lindener – Quando ele está saindo da Martinica, está indo para o mundo europeu e depois para o argelino, sempre fragmentando, mostrando esse mundo cindido, que é o mundo do espaço urbano colonizado ou do espaço colonizado, ele fala: a cidade do colonizador é assim, a cidade do colonizado é assado. Mas aqui na América, ou nas Américas negras ou na África, é uma coisa, lá na Europa é outra, é a cidade do colonizador que tem sapato forte, tem estruturas boas, que tem asfalto. Ele tem uma outra experiência nessa história da totalidade da escravidão nas Américas. Mas o espaço brasileiro é sintomático, porque a gente tem na mesma cidade, no caso de São Paulo, a cidade do colonizador e a cidade do colonizado, e de maneira abrupta, brutal: é Heliópolis no meio do alto do Ipiranga e de São Caetano.

Suze – Literalmente no meio.

Lindener – No meio, a cidade do sol nesse meio do caminho, das sombras todas daquilo que é a cidade do colonizador e da própria supremacia branca, porque São Caetano também é isso, lembremos disso.

Suze – Acho que mais que o Ipiranga.

Lindener – Mais que o Ipiranga, porque o Ipiranga está retalhado. Então, é brutal o exemplo de São Paulo como síntese do Brasil e dessa ideologia do progresso. Um símbolo dessa pátria bandeirante que odeia que diminua a velocidade nas marginais, que é incapaz de eleger um professor, um sujeito da universidade, que não é nada radical, mas sei lá, tem um ódio brutal à classe trabalhadora e à experiência da inclusão dos pobres. Tudo isso remonta ao passado bandeirantista de invasão dos territórios, genocídio contra os indígenas, de destruição do Quilombo dos Palmares… olha a história o que São Paulo sintetiza. É muito sintomático que a gente tenha a cidade do colonizador e do colonizado absolutamente imbricada, mas mantendo a brutalidade que o Fanon aponta. Por exemplo, o caso de Higienópolis e a mulher da casa abandonada é a história inteira do Brasil, é só a ponta de lança desse grande iceberg da escravidão. Higienópolis moderna, cidade da limpeza, da higiene, que expulsa os pobres, que faz seus casarões, seus palacetes, novas noções de conforto e higiene, que continua tendo naqueles palacetes oriundos do pós-abolição gente preta e parda que trabalha para famílias cujas fortunas, em geral, apesar de um imigrante ou outro, foram montadas nas fortunas da escravidão e do café, da produção de café, do tráfico, da escravidão do século XIX. O avô da Margarida Bonetti, Vicente de Azevedo, na verdade é o Barão da Bocaina, um dos maiores barões do Império, do final do Império, uma das maiores fortunas do começo da República, mas que teve sua fortuna montada em costas negras. Então, quando a Margarida Bonetti escraviza a empregada doméstica que ela ganhou da mãe dela, ela “ganhou”, ela usa quase que esse termo, e leva ela para os Estados Unidos e escraviza ela lá também, mostra a conexão entre Brasil e Estados Unidos em termos de uma história de apartheid, de escravidão, de racismo, de segregação. Uma empregada doméstica escravizada e ninguém fazendo nada lá e ninguém fazendo nada aqui, isso até que alguém se sensibiliza por uma casa em pandarecos, caindo aos pedaços. Então está tudo ali no caso da Margarida, neta do Barão da Bocaina, mostra bem a cara dessa terra de barões, que tem até hoje imóveis no concreto armado da pauliceia.

Suze – Esse caso é emblemático, assim como cada vez mais aparecem esses casos em que daria para fazer igual se faz com os livros de psicologia, quando você está estudando uma determinada patologia e aparece uma pessoa que tem todos os traços e você diz: “aqui dá para descrever essa patologia bem”. A gente tem visto isso cada vez mais no que diz respeito à sociedade. Acho que esse caso ilustra muito bem. Sempre penso na maneira como a gente tem uma massa se interessando por isso, pessoas que também não estão livres, muitas vezes, dessas mesmas situações.

Lindener – Isso explica parte desse delito.

Suze – A classe média paulistana muito chocada com a escravidão das empregadas domésticas é algo que…

Lindener – Essa é a miragem da classe, que ficou na frente da casa. Eu falei para um menino que estava lá: “O que você está fazendo aí?”. Ele respondeu: “Tenho um blog, um canal no Youtube, estou filmando”.

Suze – É o mesmo menino que vai brigar com a empregada, porque perdeu o tênis dele. A culpa é dela, porque tem de ser culpa de alguém e não pode ser dele, então deve ser dela. Isso é divertido, no pior sentido do termo. Mas isso não diminui o que acontece ali, é só a gente tentar olhar de outras perspectivas. Eu aprendi muito a olhar a cidade com você nos últimos anos, e isso de olhar para os prédios, saber quando eles foram construídos, que base que tem ali, isso é uma experiência muito rica. As pessoas que habitam aqueles espaços, de alguma maneira, estão atravessando tudo, senão se contaminando. Acho que é muito isso. Eu acho que parar para pensar nisso é entender o que é ser brasileiro. Há uma frase do Marx de que eu gosto muito, e uso à exaustão nas minhas aulas sempre que posso. Está numa notinha de rodapé na Ideologia alemã, e ele diz o seguinte: “A essência do peixe está na água”. Eu gosto muito dessa frase.

Lindener – Está na Ideologia alemã?

Suze – Está na Ideologia alemã, numa nota de rodapé: “A essência do peixe está na água”. Acho que tem muito a ver com o que a gente está discutindo aqui. A gente precisa deslocar a pergunta sobre uma identidade e tentar procurar na pessoa, mesmo que seja numa identidade nacional. Aí eu vou olhar fora, pois, se eu quiser entender do peixe, tenho que entender da água. Por exemplo, se teve um vazamento de óleo…

Lindener – A vida dele será outra.

Suze – É outro peixe. E é assim que eu entendo do peixe, eu entendo pelo vazamento de óleo. Para mim isso é muito…

Lindener – Esse caso é emblemático, o vazamento…

Suze – É sintomático: isso é Brasil.

Lindener – É catarse, tem todos os ressentimentos. Não eram pessoas negras que estavam indo lá para frente observar a Margarida Bonetti, eram os brancos da classe média. Não vou negar que eu quis passar lá na frente umas duas vezes para ver a casa, como historiador de arquitetura e de urbanismo, mas, ao mesmo tempo, sabendo que ela estava lá dentro. Mas que história é essa? Um frenesi. Acho que é essa catarse da miragem brasileira que não vê as suas perversidades do ponto de vista das permanências históricas, do seu preconceito, do seu racismo brutal.

Suze – Tem a ver com a negação também: você nega e olha para outra situação. Mas eu acho que a gente precisa começar a pensar no que nós somos em outros termos, e acho que fugir também do conceito de identidade ajuda a gente a não individualizar tanto, isso também é importante. Acho que, se a gente quiser ter alguma chance de sobrevivência, é necessário começar a se pensar mais como comunidade, como coletivo, mas não um coletivo contra atos específicos, tem de tentar dispersar um pouco, trabalhar um pouco numa lógica de dispersão e não de você tentar encontrar dentro de algo o que aquele grupo tem.

Lindener – Que tem a ver com não essencializar.

Suze – É. O Ernesto Laclau, que foi um grande filósofo político argentino, deu uma contribuição muito importante para as discussões sobre a política contemporânea. Ele trabalha muito com essa perspectiva do Lacan para falar de identificação, ele fala muito que o que une o coletivo, seja um coletivo negro, um coletivo de mulheres, é a pauta. E aí todo mundo que ou sofre o racismo negro, ou está na luta antirracista está nesse coletivo negro, o que significa que se eu, Suze, sou branca e luto contra o racismo, eu tenho que estar nesse coletivo, eu não posso estar fora desse coletivo, porque a pauta nos une, nós todos estamos lutando. Isso não significa que eu sinta o racismo, não tem nada a ver com isso, a gente está falando de outra coisa. E o Jessé discute isso muito bem, não tem nada a ver com sentir o racismo, tem a ver com lutar contra o racismo. Essa identificação, no caso da política pela pauta, tentar entender o que nós somos por meio da relação com a experiência do tempo e do espaço, eu acho que é um caminho. Mas eu insisto na tese que eu trouxe antes, que temos que fazer algumas modificações na maneira como a gente pensa o tempo e o espaço, porque isso é um problema. Parece-me que às vezes a gente vai avançando sem ter mexido numa base.

Lindener – O passado está no presente e estamos enterrados pela metade num cotidiano histórico anterior a nós. E o que a gente faz diante dessas estruturas? Não que a história seja uma redução, porque não é, mas ela pode ser uma ressignificação de permanências implacáveis do passado no presente. São Paulo vendeu essa ideologia da metrópole, essa sinfonia da metrópole, de que tudo mudou a partir do último quartel do século XIX. A cidade virou a cidade de concreto armado, era tida como a síntese da modernidade dos trópicos. Mas, na verdade, mudou coisíssima nenhuma: foi rearranjado no próprio espaço urbano, em termos de exclusão da população preta e parda. As fotos do Militão Augusto de Azevedo mostram essa população no centro que, no final do século XIX, já está desaparecendo. O Bexiga, bairro negro, vira bairro italiano, ou seja, são apagamentos intencionais duma elite política que quer construir São Paulo como grandeza da nação. Enfim, pensei aqui os desdobramentos dessa questão do espaço que se aponta nessas permanências. Está aqui, está no Ipiranga, está por aí.

Suze – Se você disser à uma pessoa que viveu a vida toda, sei lá, na Suíça, “ei, veja que o que a gente chama aqui no Brasil de um passado que não passa, de uma experiência da permanência”, essa pessoa vai se perguntar “que experiência da permanência é essa?” A experiência da nossa permanência é a experiência da relação com a miséria eterna, que, mesmo que você não seja um miserável, você está sendo sustentado por isso todo o tempo. Em determinados lugares, isso deve ser muito diferente, porque, embora você esteja sustentado por um ponto de vista global, essa pessoa não está convivendo diretamente com isso. Ela não precisa, por exemplo, pensar “hoje eu não vou almoçar lá na padaria na esquina com a Augusta, porque eu vou passar por cima de seis famílias com crianças até chegar na padaria”. Ela não precisa fazer isso. Se você pensar num europeu que tem plano de saúde, um estado forte que o protege, atendimento médico de qualidade, a vida é diferente, e quem pensa na Suíça pensa de acordo com a própria experiência. E o Jessé joga muito com isso, colocar a classe média diante do espelho é uma discussão sobre identidade. Só que, veja, já não é identidade de uma nação exatamente, mas é uma posição, e, nesse sentido, classe não é um conceito econômico.

Lindener – É moral.

Suze – É um conceito que tem relação com o modo, com as relações de conhecimento, com a dimensão moral, é a dimensão subjetiva da classe. Lógico que tem uma dimensão forte objetiva também, mas que não é um conceito, talvez a gente possa dizer melhor: é econômico, mas não é economicista, não tem a ver com renda, quanto você tem de dinheiro no fim do mês na conta. Apesar de termos poucas referências que, de fato, enfrentam isso, é uma discussão muito rica, porque pensar em termos de identidade torna a coisa mais possível de ser discutida. Melhor do que falar o que é ser argentino, o que é ser brasileiro, fugir do “não, mas é porque nós somos assim mesmo, nós somos hospitaleiros, o bolsonarista que é violento”.

Lindener – Para lembrar dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, evoco Macunaíma, posterior, evidentemente, à Semana, mas que é resultado do encontro. “O que somos os brasileiros?”, diz Macunaíma, um herói, sem nenhum caráter. Não porque ele é mau caráter, mas porque ele tem uma identidade fugidia, provisória. Claro que o Jessé faz a crítica do Sergio Buarque de Holanda, a gente sabe que o conceito de homem cordial é muito sedutor, porque ele pode explicar muitas coisas que nós somos, mas ele essencializa também. O fato é, essa tirania brutal da história brasileira está ali também de alguma maneira nesse homem cordial, traz para o sentimento, mas ele te tiraniza, por isso que a ideia é muito sedutora. Mas está em Macunaíma também, o herói sem nenhum caráter, provisório, fugidio, que tem a ver com a história de toda a subalternidade. Por isso que o Braudel fala claramente: o problema está na história do capitalismo e, antes disso, no mundo pré-capitalista, em entender por que a gente cria tantas hierarquias entre nós em função da vida material, que é o que Jessé fala para pensar a questão moral. Quer dizer, a gente cria hierarquias todo o tempo para mostrar que a gente pode mais que o outro, e cria muitos subterfúgios para construir isso ao longo do nosso cotidiano, vinculado sempre à vida material. A maior miragem essencialista da modernidade, além dessa da escravidão no Brasil, é do estado nacional do século XIX. Estado nacional é uma ficção, é uma invenção de tradição, vai dizer o [Eric] Hobsbawm, vai dizer o próprio Benedict Anderson. Você inventa uma tradição, uma unidade entre as pessoas onde ela não existe, porque as classes delas são diferentes, a vida material delas é diferente, elas comem em casas diferentes, em bairros diferentes, é tudo diferente. Uma ideia de que o cara do Acre e o cara do Rio Grande do Sul são iguais, quando, na verdade, são completamente diferentes, é a ficção do estado nacional que vai levar você, nessas arquiteturas de controle, a acreditar que você é igual ao outro, mas não é, porque suas classes são diferentes.

Suze – A maior miragem é a gente achar que está indo para algum lugar. Essa é a maior miragem, essa ideia de pensar o tempo ainda como flecha, e a gente está bem no meio dela nesse momento. A gente acha que tem que chegar num lugar e, de vez em quando, acha que começou a dar marcha à ré, se prestar atenção nas palavras que a gente usa, a gente fala: regredimos muito nos últimos anos, mas agora vamos avançar. A nossa linguagem é repleta de avanços, atrasos, superações, ou seja, toda a nossa linguagem está lá no XIX, nos textos de filosofia da história, como se tivesse um sentido.

Lindener – Está em Hegel.

Suze – Então, mas aí fica triste, porque a gente já deveria ter passado dessa… Tinha de ter feito uma coisa melhor que isso. A gente fica reproduzindo, repetindo que nem mantra, fazendo tese, pesquisando e repetindo, isso precisa parar. É quase que uma obsessão com linearidade, com flecha, com degrau, é um modo de operar o pensamento que eu acho muito perigoso. Falta imaginação para quebrar isso um pouco.

Lindener – Não à toa a decolonialidade indígena, por exemplo, os krenaks da vida. Para o Brasil é quase uma história, um eterno retorno do Hans Staden, tentando enganar a cosmovisão indígena para não ser devorado por tupinambás.

Suze – Os nossos alunos, as nossas alunas nas universidades que incorporaram todas essas referências talvez consigam pensar de outra forma. Não adianta só aumentar o cânone, estudar um autor e começar a estudar um outro, porque a gente fala a língua do Hegel e não fala a língua ianomâmi. Então é um desafio. 

Lindener – “Quem estará nas trincheiras ao seu lado?”, para usar o Ernest Hemingway.

Suze – A gente faz um papo sobre produção e reprodução do conhecimento para evitar o fim do mundo.

Em 1994, época em que era candidato à presidência, Fernando Henrique Cardoso causou polêmica ao declarar em entrevista: “Tenho um pé na cozinha. Eu não tenho preconceito.” A fala faz referência à origem mulata de Cardoso e foi uma resposta às provocações de que ele governaria com “mãos brancas”. Na lógica da afirmação, dita por alguém que viria a governar o país por dois respeitosos mandatos, cozinha e população negra são praticamente sinônimos. O enraizamento da ideia é tão aprofundado que ultrapassa contextos informais e vira recurso linguístico para quem for. Considerando o emblemático caso, pensemos — o que representa a cozinha na história do trabalho de mulheres negras no Brasil?

Marcel Gauttherot | Instituto Moreira Salles.

No livro Um pé na cozinha: Um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil, de Taís de Sant’Anna Machado, “a cozinha é uma metáfora para entender o lugar e o papel essencial de mulheres negras na história brasileira e o esforço sistemático de invisibilização de sua importância por parte das elites e de autoridades governamentais”. O fio condutor da obra, analisado às minúcias, é o trabalho culinário doméstico e profissional como um recurso de ação social e política, considerando a criatividade que essas trabalhadoras empregam para construir e manter laços familiares e comunitários em prol da sobrevivência. Adaptado da tese de doutorado da socióloga, Um pé na cozinha é uma impactante investigação dos processos de profissionalização dessas mulheres na cozinha doméstica do pós-abolição até a gastronomia contemporânea. 

É a partir de processos históricos e trajetórias individuais, tendo como base registros documentais e entrevistas que realizou com cozinheiras e chefs negras, que Taís constrói um panorama da resistência de mulheres negras. Ao longo de 400 páginas — lançadas em cuidadosa edição da Editora Fósforo —, expõe as dinâmicas de poder que se estabelecem entre patrões brancos e cozinheiras negras que permitem a manutenção do estilo de vida das classes média e alta do país em detrimento da qualidade de vida de mulheres que trabalham em condições exaustivas, precárias e miseravelmente remuneradas.

“Considero a expressão ‘um pé na cozinha’ elucidativa da naturalização da presença de pessoas negras nesse lugar, bem como da efetividade de narrativas que romantizam as condições desse trabalho e de suas vidas — e de como o racismo antinegritude opera no Brasil.”

Entre os capítulos — divididos em uma parte I e uma parte II —, a autora detalha algumas histórias que, por ilustrar tão bem os pontos do livro com nada mais do que a realidade, chegam a pesar nas entranhas de quem está lendo. São trajetórias arrebatadoras de cozinheiras importantes na construção da culinária brasileira, relatos de feitos que, infelizmente, não figuram com o devido destaque nas narrativas mais consumidas na gastronomia (nem aqui e nem em nenhum lugar). É o caso, por exemplo, de Bené Ricardo, a primeira mulher no Brasil a conseguir se profissionalizar como cozinheira — mulher, e mulher negra. Ao ler as idas e vindas da cozinheira, fica clara a construção de um campo gastronômico brasileiro no século 21 e o (não) lugar reservado às cozinheiras negras. O talento inquestionável de Benê, e o de tantas outras, nunca poderia ser maior do que a narrativa colonial, misógina e racista constantemente ratificada com brutalidade ao longo de nossa história.

Reflexão, dor e provocação — esse é Um pé na cozinha, um livro para lá de necessário.

Confira a nossa conversa com Taís de Sant’Anna Machado.

Em termos de representação do racismo multiestrutural que trespassa, e perfura, toda a história brasileira, poucas coisas são tão palpáveis quanto a figura da cozinha. A gênese dessa tese, agora transformada em livro, vem um pouco daí, dum desejo de apontar aquilo que acontece em cada e de, a partir daí, ampliar a ideia de como isso acontece em cada esquina, de todas as cidades, desde sempre?

Taís de Sant’Anna Machado: Um dos objetivos do livro é exatamente mostrar como a cozinha é um dos espaços mais importantes para entender as hierarquias raciais, de gênero e de classe que estruturam a sociedade brasileira. Assim, uma parte da história é evidenciar, a partir da cozinha, o lugar e o papel essencial de mulheres negras na história brasileira e o esforço sistemático de invisibilização de sua importância por parte das elites e de autoridades governamentais. Ao mesmo tempo, como a manutenção do estilo de vida e da alimentação das classes médias e altas, majoritariamente brancas, depende (e sempre dependeu) do trabalho culinário de mulheres negras em condições primeiramente escravizadas e, mais tarde, precárias, violentas e miseravelmente remuneradas. Nesse sentido, sim, a intenção do livro é utilizar a cozinha para mostrar como o funcionamento da sociedade brasileira se fundamenta na exploração econômica e na violência contra a população negra, como é o caso das cozinheiras negras.

Escrito em meio à pandemia e também, de um jeito ou de outro, sobre a pandemia, já que o livro comenta a amplitude de suas consequências especialmente para as trabalhadoras negras. A intensidade de sensações proveniente de escrever no “calor do momento” e a celeridade dos fatos novos que iam, e vão, aparecendo a cada dia impactaram a sua produção de que jeito? 

TSM: Como socióloga, aprendi desde o começo com outras pesquisadoras negras que o tempo em que vivemos afeta a nossa produção intelectual. No caso de uma pandemia, era algo ainda mais evidente, uma vez que toda a minha existência, durante o processo de escrita, foi impactada por esse momento histórico. Mas isto ia para muito além de mim. Um exemplo disso era que enquanto eu ouvia parte da classe média sugerir que a solução para o contágio era ficar em casa, e pedir a entrega de comida e afins, era inevitável pensar que, para isso, cozinheiras majoritariamente negras teriam de sair de suas casas para atender essa demanda. Ou também o caso de alguns estados e municípios que incluíram o trabalho doméstico no rol de trabalhos essenciais na pandemia, e que recuaram apenas pela pressão da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) sobre o Ministério Público do Trabalho. A pandemia expôs ainda mais as desigualdades raciais, de gênero e de classe da sociedade brasileira, e os dados estatísticos apontam que mulheres negras foram um dos grupos que mais sofreram com suas consequências — estudos têm mostrado como a taxa de mortalidade de trabalhadoras negras por Covid-19 foi maior do que o de qualquer outro grupo em ocupações que exigem menor grau de instrução.

Benê Ricardo, a primeira mulher negra a se profissionalizar cozinheira no Brasil | Reprodução

A expressão que dá nome ao livro — “um pé na cozinha” —, à exemplo de tantas outras, elucida a antinegritude que opera há tempos no Brasil. É o discurso dando forma e propagando preconceitos. No meio das infinitas pautas em prol da quebra das estruturas racistas, símbolos de um país que ainda tem muito a reparar, a correção linguística consegue ter o fôlego que deveria?   

TSM: O título do livro não se propõe a ser uma correção linguística. A intenção é a de mostrar como a expressão reflete muitas camadas de sentido da história. A primeira que destacaria é o uso corriqueiro – e racista – da expressão, que é muito utilizada por pessoas brancas para defender uma ancestralidade negra e negar sua brancura. A segunda camada de sentido, que se articula e em certa medida responde a esse uso cínico da história da presença de mulheres negras na cozinha, é mostrar como essa expressão, usada de maneira leviana, esconde as condições de trabalho exaustivas, precárias, miseravelmente remuneradas e, não raro, marcadas por episódios de violência sexual. Além disso, também parece ignorar a discriminação e exclusão de mulheres negras no mercado de trabalho que, com base em uma política racista de “boa aparência”, confinou essas trabalhadoras à cozinha (e a outras funções do trabalho doméstico e do trabalho informal). E a terceira camada que defendo, e a mais importante, é que, a partir desse confinamento à cozinha, mulheres negras constroem repertórios de conhecimento culinário, redes de sociabilidade, de apoio e de afeto, além de projetos de disrupção de suas condições de vida.

Você fala sobre um “passado irrecuperável” quando explica o porquê de usar a fabulação crítica, expandindo algumas histórias contadas pela metade por falta de documentação. Seria essa uma ferramenta benéfica, até central, para muitas das revisitas históricas que precisamos fazer?

TSM: Uma vez que a história e as perspectivas de cozinheiras negras são consideradas como algo menor, ou mesmo irrelevante, como parte do racismo antinegritude que também afeta as políticas de arquivo e de produção de conhecimento, a fabulação crítica pode ser a única opção possível para parte do trabalho histórico. No entanto, ainda há muitos registros históricos que precisam ser revisitados ou considerados, especialmente a partir de um olhar que considere a agência e a percepção crítica de cozinheiras negras, algo que historiadores negros e/ou antirracistas tem feito nas últimas décadas, tanto no Brasil quanto no exterior.

Pego um gancho de um trecho citado no livro, se não me engano do Robert Kelley, que diz: “A aparência do silêncio e da passividade não só enganou, mas frequentemente teve a intenção de enganar.” Você mesma arrebata e diz que esse “anonimato delas, no entanto, não implica aquiescência”. Nos moldes de hoje, considerando até redes sociais e que tais, como isso se dá? Se é que se dá. Estamos andando para frente?

TSM: Meu trabalho não trata de redes sociais, mas, como eu discuto no livro, penso o racismo como uma tecnologia que se atualiza constantemente, como definido por Ruha Benjamin. E, quando se fala de redes sociais, é preciso considerar que mulheres negras são as principais vítimas do discurso de ódio nestes espaços, como mostra o estudo de Luiz Valério Trindade. Nesse sentido, o que eu diria é que mulheres negras continuam precisando se proteger e se guardar em espaços violentos como a Internet e, assim, que isso continua acontecendo em razão do racismo antinegritude e da misoginia.

As figuras de Dona Benta e Tia Nastácia são particularmente cruéis quando pensamos que estão presentes em obras infanto-juvenis, cujo teor tem o caráter formativo como intrínseco. Ou seja, as ideias de Monteiro Lobato representadas nas duas, de um jeito ou de outro, seguirão sendo passadas adiante através da popularidade do Sítio do Picapau Amarelo. Qual é o melhor jeito de ir contra marés canônicas que carregam ideias ultrapassadas? As “reflexões iniciais” de Um pé na cozinha, para usar o mesmo termo que você, são um caminho?

TSM: Eu diria que o melhor jeito de combater o racismo na literatura é difundir o trabalho de intelectuais negros e negras, que não recebem o mesmo espaço que esse autor e nem ao menos o mesmo destaque que o debate em torno do racismo de sua obra. Quanto a esse autor, por exemplo, são diversas as contribuições críticas de ativistas, pesquisadores e pesquisadoras negras, e Um pé na cozinha é só uma pequena contribuição a essa corrente.

Jacira Sampaio, atriz que interpretou a Tia Anastácia, na adaptação para a TV do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, série baseada na obra de Monteiro Lobato.

Você permeia os capítulos com interlúdios, como os de Maria de São Pedro e Benê Ricardo,  cozinheiras negras que quebraram todo tipo de barreira, mas que, mesmo assim, viveram sob a vigia constante da violência racial fora e dentro de seus contextos profissionais. Histórias como essas inspiram ou, infelizmente, mais expõem o quão arraigada está a sistemática antinegra? 

TSM: Como eu defendo no livro, não se tratam de histórias meramente inspiradoras ou de mostrar apenas como o racismo antinegritude afeta todas as camadas da vida de mulheres negras, e sim o de entender a complexidade de suas formas de agência e de resistência considerando esse contexto. Nesse sentido, são histórias grandiosas ao mesmo tempo em que expõem as condições impossíveis de sobrevivência a que foram submetidas em razão do racismo e do sexismo. Uma coisa não se dissocia da outra. 

Um aspecto importantíssimo do seu trabalho é ilustrar a continuidade dos problemas com histórias de cozinheiras negras reais. Como foi esse processo de entrevistas e pesquisas?

TSM: A intenção do livro é mostrar como existe uma história de longa duração das condições de trabalho e de vida de cozinheiras negras. Na verdade, esse processo aconteceu de trás pra frente: a tese seria sobre chefs de cozinha negras, então as entrevistas foram o primeiro material produzido para a pesquisa. No entanto, a análise do material descortinou experiências de trabalho que eu não parecia encontrar ferramentas teóricas ou metodológicas adequadas para explicar nos estudos do campo da gastronomia. E, assim, foi necessário voltar um pouco mais no tempo e produzir uma análise sócio-histórica do trabalho culinário feminino e negro no Brasil — algo muito mais ambicioso do que eu havia previsto inicialmente. Sem pensar nessa história criticamente, como um contraponto ao caráter romantizador sobre o papel de cozinheiras negras e de suas condições de trabalho — que ainda é bastante comum em estudos da área de alimentação — não seria possível entender as experiências contemporâneas das chefs de cozinha e cozinheiras profissionais negras que entrevistei. E foi assim que as chefs se tornaram uma parte do trabalho, em uma história de longa duração do trabalho íntimo, invisibilizado e essencial de mulheres negras na cozinha.

O que você acha da ideia — ilusão? — do brasileiro como um povo cordial que celebra a sua miscigenação?

TSM: Essa ideia é parte de um projeto de nação que busca manter a estrutura de exploração econômica e de violência racial contra pessoas não-brancas. A cozinha é um dos espaços utilizados por essa narrativa racista, como discuto no livro.

Há aproximadamente dez anos fui impactado pelo trabalho de Sergio Lucena, que acompanho de perto desde então. Sergio vem do sertão da Paraíba, onde o céu apresenta as mais complexas cores em convivência plena, com tempestades de negros e grises, e explosões dos mais fortes tons vibrantes e mutantes. E ainda vales com vistas a perder-se, pedras lunares de lajeados, a vivacidade cromática da caatinga… A pintura de Lucena carrega múltiplas paisagens interiores, em diálogos místicos inabarcáveis.

A convite da Amarello, realizo esta entrevista com o artista em seu novo ateliê, banhado pela luz do dia, olhando do alto para a Pedra Grande, na Mantiqueira de Atibaia, SP, numa conversa sobre pintura, vida, natureza e sertão.

Você acaba de mudar de ateliê, do bairro da Pompéia, em São Paulo, para vir para o meio do mato em Atibaia, a uma hora e meia da capital, cercado pela natureza, com a sua biblioteca toda reunida, com um projeto arquitetônico pensado para criar um espaço que possibilite sua atuação acontecer da melhor maneira, com essa luz do dia invadindo o ateliê. O que isso aporta à pintura?

Na Pompéia foi a primeira vez que trabalhei com luz natural, o que causou um impacto muito grande no meu trabalho. Quando cheguei, eu coloquei várias pinturas que eu tinha trazido do ateliê anterior para vê-las na luz, e boa parte delas não resistiu, tiveram que ser retrabalhadas, porque elas não se garantiram frente à luz natural. A partir daí essa foi para mim uma necessidade da pintura: ter uma luz que me permitisse analisá-la sem dar espaço à condescendência. Eu não podia ser condescendente com nenhum problema, eu teria de lidar com eles.
No mais, ali na Pompéia, eu tinha uma vida que não mudou tanto ao vir para cá: sair de casa caminhando, ir para o ateliê e ficar lá durante o dia inteiro sozinho, onde, de certa forma, eu buscava estabelecer um lugar de referência afetiva e da minha memória ligada à natureza. Na Pompéia, eu pintava paisagem sem ver paisagem; a paisagem era uma ressignificação da paisagem da minha origem, não a descrição desse lugar, mas entender esse lugar como um lugar de significado. Esse lugar de significado está dentro da gente, eu sinto isso dentro de mim. Então, vir para cá é uma busca de criar esse lugar de significado, não apenas como uma memória, mas como um fato vivenciável. Quando eu vi essas pedras, me lembrei muito dos lajedos nordestinos, você conhece, você esteve por lá. Quando eu vi isso aqui, eu disse: poxa, tem uma referência de um lugar de origem, com uma natureza pujante, tem toda uma circunstância que me coloca de volta num lugar referencial e, ao mesmo tempo, com as condições de trabalho que eu venho buscando, que estabeleci aqui, a luz, o lugar e tal. Então, eu não sei o quanto isso vai impactar, não sei. Ainda estou chegando. Daqui a um ano eu posso talvez responder com mais propriedade. Qualquer mudança geográfica, na verdade, é uma mudança interna. O fato geográfico, o fato físico, é uma repercussão de algo que já está dentro, em curso, o que a gente assiste aqui é a materialização de um processo que vem já de algum tempo, nessa busca. Talvez já com o tempo estivesse construindo isso aqui. 

Você começa sua trajetória com pintura figurativa, com tons não realistas, uma pintura mais emotiva, baseada em figuras muito concretas; depois abandona essa figuração para se concentrar aos elementos pictóricos puros e trabalhar cor e transição de cor, com elementos concretos, como uma linha no horizonte, mas trabalha a abstração de cor e ao sentimento dessa abstração; e agora insere elementos simbólicos, ícones totêmicos, que são figurações repletas de ancestralidade. Como é esse percurso?

A vida inteira o artista vai falar a mesma coisa, ele é monotemático. Quando eu saio do sertão e vou para a capital, aquilo para mim é um transtorno. Primeiro porque no sertão as pessoas tinham uma clareza muito óbvia para mim, elas eram aquilo que se mostravam, elas não tinham uma máscara, do jeito que elas eram eu as entendia, se comportavam dessa maneira. Na cidade as pessoas têm um comportamento que não confere com a sua natureza. Então, essas coisas começaram a me chocar. Daí porque aquela pintura inicial tem um caráter satírico, o circo se torna um ambiente de representação desse choque cultural; então, todo mundo é mascarado, todo mundo está encenando: teatro. O que me marcava no sertão? A luz, e eu não sabia disso. Mas eu subia na pedra do Pão de Açúcar, aquela pedra que já comentei contigo, para olhar a paisagem, olhar o horizonte, e aquilo tinha um poder de encantamento. Um menino de sete, oito anos se sentir encantado por aquilo não é uma coisa racional, não é “vou subir para ver a paisagem”, não, era uma necessidade de estado, uma necessidade de completude que aquilo me propiciava. Havia uma questão da luz que sempre me impactou. Na pintura inicial, pintura figurativa, veio a luz como um artifício cênico. E foi quando eu criei aquela série dos deuses, é uma síntese daquele universo inteiro da minha origem.

E quando se deu a dissolução desse momento?

Foi quando eu estava mergulhado nesses trabalhos árduos que ganhei uma bolsa para ir à Dinamarca, baseado no que eles sabiam do meu trabalho quando eu vivi na Alemanha. Quando eu chego lá, desço em Copenhagen, pego um trem às seis da tarde, viajo até Brande, que é a cidade da Ramisen Akademi, e passei quatro horas no trem com o Sol no lugar, sem sair do canto, porque era verão escandinavo. Houve uma epifania, como quem toma um ácido, mas não era, não tinha nada. E ali eu senti de volta a história da pedra no sertão, eu me senti de volta em cima da pedra vendo o horizonte. Aquilo foi tão potente para mim que, quando eu começo a trabalhar, eu tento segurar essa experiência, e aí passo a pintar paisagens, passei um mês e tanto lá pintando paisagem, e o pessoal estranhou, porque esperavam uma figuração. A paisagem assume esse meu lugar de referência que diz respeito à luz, à origem; e o significado que tudo isso traz para mim enquanto pertencimento, enquanto participação mística com uma dimensão da natureza, que é o encontro fora como reflexo de dentro, literalmente. Então, há uma correspondência interna com essa questão da paisagem exterior. E aí está chegando a figuração novamente. Essa paisagem caminha no sentido de tentar falar sobre essa síntese experiencial, porque não é mais uma ideia de falar do lugar, é falar do que o lugar representa enquanto experiência, enquanto correspondência com uma realidade interna. Nesse processo, cada vez mais ela foi perdendo definição, foi perdendo referência, não era mais montanha, não era mais árvore. 

Na sua pintura recente, você utiliza símbolos que aludem a uma história identitária. Não são símbolos exatos, mas eles remetem à cultura negra, indígena, místicas e tradicionais, autóctones. E você, que traz em si todos os estereótipos de homem branco privilegiado, como trata esses símbolos no tocante à apropriação cultural? De que maneira você se autoriza a usar esses elementos para deslocá-los e aportar um outro significado a eles em seu trabalho?

Muito boa a pergunta. E eu vou te responder de uma forma pouco ortodoxa. Eu nem penso nisso. Antes mesmo da pandemia, eu comecei a sentir coisas ameaçadoras, vindas do momento político, eu comecei a desenhar e começaram a aparecer formas, e eu achei curioso porque apontavam para uma referência icônica religiosa pagã, embora não tivesse nenhuma relação direta com nenhuma religiosidade, mas tinham um poder de síntese das coisas ligadas ao catimbó, a Jurema, ao próprio candomblé, que no Nordeste a gente chama Xangô, coisas que eu via quando era criança, que eu ia ver as festas e tal, e tinha toda uma simbologia, mas nenhuma das formas que apareciam eram específicas de nada, mas era uma espécie de amálgama dessas coisas todas.

Talvez, elas falem de uma outra espiritualidade que me fala muito à alma, porque eu acho que esse país promete uma outra forma de ser, na medida em que ele reúne uma série de valores de várias origens e que buscam um acordo aqui. Quando eu vejo essas formas, elas trazem essas referências juntamente a uma conquista plástica, pictórica, de uma construção-pintura de quarenta anos, e ela reúne esse mundo de valores que eu considero que são uma paisagem. Eu vejo essa paisagem hoje como uma paisagem não que se divida, mas que se configura numa paisagem física e cultural, uma correspondência a essa experiência física da paisagem como natureza, berço de uma civilização, que ainda não está pronta, está em curso, sendo forjada a duras penas, com muita dificuldade, a partir de uma coragem de não excluir. Você vê os bantus, eles têm uma visão de mundo com os deuses da terra, quando chegam aqui, eles veem os deuses indígenas e os incorporam. A umbanda é uma das coisas mais fabulosas do mundo, mistura tudo, é o lugar onde estão os caboclos, é o lugar onde estão os pretos… Enfim, está todo mundo. A gente não é ariano, a gente tem uma outra coisa.

Eu não estou falando de algo que eu queira representar, eu não quero representar nada, eu estou falando de algo que faz um grande sentido para minha experiência, de acordo com minha identidade.

Você falou da identidade. Como você usa a sua identidade no seu trabalho, como ela se manifesta de forma mais ampla?

Minha identidade se constrói no meu trabalho. Rodrigo, com toda a sinceridade, eu não acho que eu pinto, eu acho que a pintura me constrói, a pintura me faz. Quando eu digo isso, parece um jogo de palavras, mas o fato é que eu só sei de mim por causa disso, não é o contrário. Não há uma lógica que corresponda a esse entendimento com uma certa coerência acadêmica; eu acho que talvez o fato de eu viver numa certa marginalidade dentro do mundo da cultura deva-se a esse fato de eu não saber dizer para você ou para ninguém onde eu me identifico com isso ou com aquilo. Porque eu não sei mesmo.

Nessa questão da identificação e do engajamento, como é que a arte abstrata pode ser engajada, como pode ser política, como ela pode manifestar reflexão crítica?

Essa é uma questão muito importante a meu ver. Eu diria a você, sem querer defender nem puxar a sardinha, que a arte abstrata tem uma potência política de uma ordem muito efetiva, na medida em que ela desconfigura o esperado, ela não responde a uma expectativa, ela sugere o imponderável, ela permite que o sujeito se veja diante do que ele não sabe, do que ele não entende, do que ele não sabe do que se trata, e isso é profundamente desafiador. Nesse lugar da dúvida, da insegurança é onde se permite que aconteça o novo, ou que você descubra algo de você que não estava na sua caixinha de expectativa, no seu arcabouço.

Eu não acho que a política se reduza a uma dimensão dogmática ideológica, eu acho que as mudanças mais profundas se dão num lugar em que não há chão, e você cria o chão a partir de uma situação que se coloca e que você não tem resposta, aí você vai ter que se virar nos trinta, como diz aquele. É muito bacana olhar para um Rothko e pensar que é fácil, mas em cada instância tem sempre um entendedor do assunto. Essas questões que uma verdadeira relação com o fazer arte desafia.

Qual a diferença em relação ao Rothko? Porque, por um lado, o Rothko traz uma materialidade muito explícita e muito colocada, com o uso de uma paleta reduzida, mas tende a ter pontos de contraste muito grandes, geralmente com cores frias e uma cor quente em destaque. Mas tem uma questão de matéria, que, na sua pintura, está totalmente diluída, está muito mais fragmentada pela própria fratura da sua linha. Qual a diferença e qual a importância do Rothko pra você?

Olha, eu, antes de ver o Rothko, eu vi o Ianelli, fiquei muito impressionado com Arcangelo Ianelli, pela sua qualidade pictórica, pela qualidade plástica do trabalho e pela sugestão de luminosidade que a pintura dele traz. De uma delicadeza, uma sutileza, uma beleza. Daí eu vi o Rothko, e Rothko é um coice. Eu me lembro que me faziam essa associação ao meu trabalho, ao Ianelli e ao Rothko e tal. Dois mundos. Nas pinturas de Ianelli antigas, ele já estava ali preocupado com essa questão da luz, da matéria, da riqueza. O Rothko ficou por muito tempo na minha vida como uma incógnita. Primeiro, porque eu não consegui esquecê-lo; segundo, porque não gostava. Isso me incomodava, como é que eu não gostava de uma coisa e não a esquecia? O Rothko fala dessa questão da busca de uma síntese, de uma simplificação. Porém, eu achava que essa simplificação não podia ficar apenas numa questão do espaço e da cor, da composição do espaço e da cor, eu achava que era muito pouco para mim. Eu sempre achei que o espaço da pintura tinha que resolver uma série de contradições, e essas contradições eram minhas, na verdade. Só que elas precisavam ser resolvidas enquanto relação de cores antagônicas, solução de um espaço de matéria e de cor em que ao término não houvesse dissonância grave, houvesse complementaridade. O Rothko buscava explicitar o conflito, enquanto eu sempre busquei harmonizar o conflito, resolver o conflito, resolver o conflito enquanto pintura. Em uma pintura minha, há um cinza que tem quinhentos vermelhos, mas eles sumiram, eles não estão presentes, a cor é quente, e esse quente é vermelho. Prevalecem azuis e cinzas, mas ele é quente porque tem vermelho. Onde está o vermelho? Está na possibilidade de criar uma cor que reúna situações díspares em favor de um resultado que me dê conforto. Rothko se matou. Eu entendo o cara que se mata, porque vontade eu tenho muita. Não é questão de coragem, é questão que isso me incomoda, a ideia de se matar.

Aliás, qual o momento de parar uma pintura? O que determina: Cheguei, temos!?

Um estado de conforto, um estado de você não querer mais sair dali, chegou. É difícil isso. Eu pinto em série, conjuntos de pinturas, porque para mim isso é um método, uma pintura avança, e ela leva a trabalhar outras que se revelam inconsistentes. Algumas avançam de tal ordem que tudo que foi feito está perdido, tem de voltar a trabalhar. E aí acontece que uma desmonta aquela que era referência. Eu tenho pinturas que levaram cinco, seis anos, eu sabia que não estavam prontas, mas também não sabia mais o que fazer. Uma pintura é uma construção do artista, ela constrói o artista, ela diz assim: você não é capaz de dar conta de mim ainda, você vai viver com esse incômodo, você vai viver com essa situação até você estar à altura do que estou exigindo de você. Eu sinto isso nas pinturas.

Vivemos o tempo com maior exposição a imagens da história, estima-se que, durante um dia da vida, uma pessoa hoje está exposta ao que seria o equivalente à vida toda de alguém há 50, 60 anos. Então, para que produzir mais imagens? Por que pintar?

Maravilhosa pergunta. Por que pintar? Rodrigo, eu tive uma situação, há muito tempo, quando eu voltei da Alemanha, aos 33 anos. Eu voltei de Berlim depois de um ano de bolsa e voltei pintando paisagem. Eu cheguei na cidade de João Pessoa, a galeria que me representava tinha uma lista de espera de obras minhas. E aí eu mostrei as paisagens, e a dona da galeria tomou um susto, “mas espera aí, tem aqui uma encomenda do circo assim, assado”. Aí eu disse: “mas, Roseli, eu estou pintando isso aqui, uma coisa especial para mim”, e ela disse: “é, pois tente”. E ela estava certa, ninguém quis. E para sustentar os dois filhos e a terceira que vinha, eu voltei a trabalhar com meu pai na loja. Aluguei uma salinha comercial e fiquei pintando à noite. Por sete anos eu pintei à noite. Nesses sete anos, eu fui alijado do mundo cultural. Sete anos fazendo isso sem ninguém dar a menor pelota me mostrou que eu posso arrumar um emprego, mas eu vou continuar pintando. Então, não é que eu pinte porque o mundo precisa, eu pinto porque eu preciso pintar, é a minha condição de viver, se eu não pintar, acho que não faz sentido viver. 

O tema da edição da revista é miragem. Miragem é um aspecto físico da percepção, é um deslocamento, um ponto de ilusão ótico. Então, como lidar com a questão da miragem que seu trabalho evoca e a miragem no mundo das artes de maneira geral?

Uma obra de arte não existe em função de uma determinada proposição, ela existe enquanto experiência individual para cada um diante dela. Se você lê um livro, se eu leio um livro, se a gente ouve uma música, a experiência jamais será a mesma para mim ou para você. Podemos os dois gostar, os dois se apaixonar, mas por razões distintas, por repertórios outros. Mas aquele elemento funciona como um catalisador das nossas sensibilidades e nos aproxima por isso. Nos permite uma comunhão. Na comunhão não há miragem, não há uma ilusão, há uma experiência comum do objeto de arte. Se você olhar e começar a falar disso que você viu para mim, você está tendo uma miragem, não é isso que eu estou vendo. Mas, no lugar da experiência sensível, nós nos comungamos. Aí está uma questão-chave na experiência da arte, ela prescinde da concordância, ela não requer uma concordância de valores, ela permite uma experiência comum a despeito de um distanciamento de valores e de repertórios, ela permite. Então, a ideia da miragem está no indivíduo, na individualidade, na visão individual, mas não na experiência sensível, que permite que as pessoas se juntem numa multidão de um milhão de pessoas e vão cantar a mesma música que o cara está cantando no palco. É um congraçamento. A arte permite essa aproximação, não é uma aproximação de miragem, é real, é concreta, é potente. Agora, se disser, “eu gosto disso por isso, por aquilo”, aí já entramos noutra discussão, eu já gosto por outro motivo.

Por último, você pinta para quem, Sérgio?

Eu queria pintar para todo mundo, mas eu pinto para mim. Sinceramente, eu gostaria de ser amado, eu adoraria agradar a todo mundo, mas não dou conta; então, eu vou focar no que eu posso, que sou eu mesmo, resolver a pintura comigo mesmo, isso é o que eu dou conta. Eu pinto para mim.

Eu-miragem

Que bom que você aceitou fazer essa conversa conosco. Marina, queria que começasse contando um pouco sobre você, sobre sua história. 

Eu nasci no subúrbio do Rio, ali no Engenho Novo, morava no Engenho de Dentro e depois fui para o Méier, com sete anos de idade. E lá fiquei até a vida adulta, até me mudar para morar sozinha, já com vinte e pouquinhos anos. Eu tenho uma relação com a música, com o samba, especificamente, muito familiar, porque meu pai é violonista, compositor, e – apesar de não ter tido uma projeção grande nessa área –, ele viveu e vive isso intensamente. Sempre compondo, sempre tocando. Então, por mais que eu não morasse com o meu pai – porque eu morava no Méier com a minha mãe –, eu tinha encontros, principalmente depois de mais velha, com esse universo do samba, de roda de samba, dentro da casa dele.

Meu pai é casado com a Gisa Nogueira, que é minha madrasta, há mais de trinta anos. Então, desde pequenininha, eu convivo com a Gisa. Tinha uma relação de ir à casa de sambistas. Em casa, minha mãe ouvia muita música, mas nunca tocou instrumento nenhum. Porém, sempre ouviu muita música, e assim alguma coisa de samba também. Então, essa relação era familiar, pois havia pessoas da minha família muito interessadas e muito dedicadas ao samba. Mas nunca imaginei que pudesse ser uma vivência para além do hobby, do lazer, da apreciação da arte em si, que eu fosse estabelecer com a música e com o samba uma relação profissional. 

Em 2003, entrei na UERJ e fui fazer Letras. Sempre gostei muito de poesia e da coisa toda, de letra, da língua. E pensava que o caminho natural para mim seria ou Letras ou Direito por motivos diferentes. Mas, acabei cursando letras, na UERJ, e na UERJ conheci a Manu da Cuíca, uma amiga, uma parceira, uma compositora excelente, um expoente da minha geração, e a gente ficou muito amigas no futebol, e ela já tocava pandeiro, já tinha um grupo. Então, a Manu sempre me incentivou muito e, com isso, eu comecei a cantar em algumas rodas bem específicas. Isso começou a fazer parte da minha vida ali pelo meio da faculdade. 

Eu me formei, comecei a trabalhar como professora de língua portuguesa, de gramática, literatura, mas também de redação. E fiquei nessa vida como professora, e, no final de semana, cantava na roda de samba. Tinha também um grupo informal, sem nenhuma grande pretensão de ter a música como a minha carreira. Então, foi indo até que os caminhos foram me levando a acreditar mais nisso. Não só o retorno de pessoas, mas a ampliação da rede de contato, o aprimoramento do fazer artístico mesmo – porque eu fui aprimorando. Com o tempo, isso foi tomando mais a minha vida. 

Numa conversa com a própria Manu, coloquei essa questão de que eu achava que daria para cantar mais, para ser uma profissional da música. Não necessariamente acreditava que daria para ser só profissional da música. Isso é uma dificuldade que a gente tem porque entende quais são as dificuldades que o fazer artístico nos traz num país em que a gente não tem a cultura tão incentivada. Nessa conversa, a Manu, que já estava trabalhando na redação da OAB, no departamento de jornalismo, disse que ia ficar de olho se houvesse uma vaga lá, para eu passar pelo processo seletivo. Eu fiz isso porque eu queria sair um pouco da sala de aula, apesar de eu amar, mas, para poder ter uma preservação maior da voz, porque estava ficando muito pesado dar aula em várias turmas a semana inteira e ainda ter que cantar para investir na música. Então, eu pensei em dar um tempo, até porque estava visivelmente com uma questão nas pregas vocais, tive que cuidar, ter consultas com a fonoaudióloga, e sair da sala de aula me ajudou nisso. 

Depois disso, eu comecei a cantar mais, investir mais na carreira, me entender como profissional, pensar em fazer um disco. Muitos amigos incentivando. Em 2014, eu lancei meu disco, depois de uma temporada no Carioca da Gema, entre 2012 e 2014, que foi uma casa que realmente abriu as portas para mim, tanto no concurso quanto depois para integrar a programação. Fiz show principal, fiz muita abertura, como para a Teresa Cristina e para o Moyseis. Depois do disco, comecei a ver a coisa de outra maneira. Eu fiz o lançamento no Rival, foi um investimento muito grande nesse show, que mudou um pouco a minha relação com a música, a qual foi tomando, cada vez mais, protagonismo na minha vida até que hoje eu estou no lançamento do meu quinto disco. Perco um pouco a conta porque são quatro solos e um coletivo. 

Então, há esse lançamento previsto para o início do ano que vem e com a música inteiramente ocupando o espaço na minha vida, apesar de eu ainda trabalhar com articulação de cultura na política, que também sempre foi uma área que eu sempre atuei porque sempre militei, desde o colégio, faculdade e tudo mais. Tem atuação política, tem a atuação com as palavras, com a letra, com o texto no cotidiano no trabalho que eu faço dentro da política e tem o trabalho de composição também, que tem tomado um espaço cada vez maior na minha vida, e é o canto, que é essencial, é o centro do que eu faço hoje.

Por que você escolheu Marina Iris como nome artístico?

Meu nome é Marina Iris porque na certidão meu nome é Marina Iris, escolhido por várias pessoas da minha família. O nome completo seria Marina Iris Gonçalves de Lima. Então, Marina Lima não tinha razão de ser, a gente já tem uma referência muito grande com esse nome, e Marina Iris é o meu nome mesmo, eu acho sonoro, eu gosto muito dele. 

Eu percebo uma grande centralidade de três elementos no seu trabalho artístico: a voz, a rua e as bandeiras. Em um verso de “Estreia” (Manuela Trindade/ Marina Iris), a canção se pergunta: “A voz é gesto ou é gestação”. Como você acha que o seu ofício de cantora ajuda a formular quem você é?

Eu acho que o canto me forma, é a forma que eu tenho de melhor me expressar. Eu gosto muito de dialogar, de conversar, mas, no momento em que eu canto, acho que consigo me despir mais de qualquer amarra, receio, insegurança. Acho que aí vem uma outra verdade. Não que quando a gente esteja dialogando com as pessoas não tenha verdade. Mas aquela coisa profunda, que está dentro mesmo, que às vezes você tem até dificuldade de acessar, é a música que revela, o meu canto revela. E para mim é importante porque, à medida que eu também me revelo mais, as pessoas também se revelam mais para mim, e eu consigo acessá-las melhor a partir da música também, consigo fazer com que as mensagens que considero relevantes alcancem mais indivíduos.  

Qual a importância da rua para sua formação enquanto artista popular?

A rua tem uma importância muito grande na nossa formação, na nossa socialização. A rua é aquilo que a gente não consegue prever tanto, é algo que a gente não consegue controlar. É onde a gente também consegue exercer a nossa capacidade de coletivizar a vida, a leitura que a gente tem de mundo, a forma de lidar com o outro. A rua aparece muito no meu trabalho, porque o samba tem muita relação com a rua. Ele se dá basicamente nas esquinas, nas praças, tem uma relação com o bar, com a rua, com o espaço que é ocupado muitas vezes e em que muitas pessoas transitam. A rua tem a ver comigo, tem a ver com o samba, o samba tem a ver comigo, eu tenho a ver com a rua. 

E eu acredito que a ocupação do espaço público é civilizatória mesmo. Ela traz uma relação de pertencimento, de territorialidade, de noção de quem você é a partir do que você constrói no chão que é coletivo. Então, acho que a rua tem uma importância, ainda mais no Rio de Janeiro, que é uma cidade muito rueira, uma cidade em que as pessoas ficam tristes de não poderem ir pra rua. E essa relação com o espaço público, acho que politiza muito a gente. E, como mulher, pensando nessa questão de a mulher ter o direito de ir e vir mais cerceado, seja pelo assédio, seja por questões morais, enfim, acho que reivindicar esse direito de estar na rua, é meio central na minha vida. 

Quais são as vozes que você gostava de ouvir ao longo da sua formação, e quais são as vozes de que você gosta hoje na canção popular?

Eu tenho uma referência muito grande na Gisa Nogueira, não só pelo timbre, pelo repertório, pela composição dela, mas também por ser uma cantora com uma divisão muito bonita. Acredito que essa característica de muitas cantoras de dividir a música, de interpretar, de ter uma malandragem na divisão, é pouco enaltecida. Isso sempre me chamou atenção na Gisa Nogueira. A própria Jovelina. Nossa dama maior do samba, Dona Ivone Lara, Leci Brandão, Beth Carvalho. Formas muito diferentes de dividir e interpretar e de jogar a sua bossa ali na canção. E dos homens também sempre tive muito encantamento pelo Miltinho, pelo João Nogueira, pelo Roberto Ribeiro. E, hoje, eu continuo com essa admiração muito grande e percebo em novas vozes também essa característica. Moyseis Marques tem essa onda. Luís Dionísio tem uma onda do canto e de uma liberdade dentro da música que me chama muita atenção. Pensando nessa questão mesmo da verdade, da relação muito direta com a música, com o chão da rua, do terreiro, enfim, a gente tem vozes que também trazem essa ancestralidade: Teresa Cristina, Fabiana Cozza… poderia listar uma galera aqui que me inspira, mas preferi dar um espaço maior para as mulheres. E são mulheres incríveis que me formam também. 

A metáfora que dá nome a seu disco Voz bandeira (2019) ajuda a pensar a relação entre o canto e a crença, a canção e a política. Ao mesmo tempo, há no seu trabalho uma grande tensão entre não se limitar nas identidades e definições fixas, mas também se posicionar estética e politicamente. Como é esse malabarismo da voz com as bandeiras que a voz defende?

Com relação às bandeiras que a gente defende, há horas em que a gente defende de uma maneira mais elaborada, mais direta, mais escancarada, e há hora que defende sem estar defendendo. Às vezes a gente está só querendo fazer algo que acordou com vontade de fazer. E isso por si só já é defesa de alguma maneira. O fato é que, como eu tenho uma trajetória muito ligada à política, de muita construção política coletiva, eu acho que a maior bandeira da minha carreira é a coletividade. Desde o primeiro trabalho, com muita gente trabalhando para que fosse custeado; desde os trabalhos coletivos, como o ÉPreta, até o disco Voz bandeira, que tem a maior bandeira dele ali, talvez seja isso: encontro. E são muitos encontros. Acontece o encontro meu com outras mulheres negras, no disco, na canção. E na produção com a Ana Costa e com outras figuras que são muito engajadas, como Leandro Vieira. Então, essa Voz bandeira pode ser percebida tanto numa forma de cantar, num timbre, numa postura do corpo que muda, que altera a energia dessa voz. Essa voz bandeira está em muitos lugares. Não só no repertório, na mensagem. Ela está no corpo. Então, ela é viva, ela faz parte da artista que eu sou. Se eu entendi bem a pergunta, esse malabarismo, se ele existe, ele não é consciente; é muito do sentir mesmo. Pensar é sinônimo do sentir. 

Canção-miragem

Marina, você já tem três discos — Marina Iris (2014), Rueira (2018) e Voz bandeira (2019). Acho que isso já lhe permite uma visão de conjunto e de desenvolvimento da sua obra. O que você acha que existe em comum entre esses álbuns e como você avalia a progressão desses trabalhos? 

O que tem em comum nesses trabalhos é a relação com algumas pautas que me formam. Marina Iris, o primeiro, é uma apresentação; então, eu faço muita referência, na escolha de repertório, àquilo que aprendi, que eu vivenciei mais no Bip Bip mesmo, que eu aprendi com os compositores que construíram comigo, figuras da minha geração, como Manu da Cuíca, Tomaz Miranda e o Buchecha. Rafael de Moraes, João Martins, figuras de quem eu também já estava me aproximando mais e fazendo referência a composições que marcaram de alguma maneira a minha trajetória. É um disco mais de apresentação mesmo, de fazer referência ao que eu construí como cantora e compositora até ali. 

O Rueira e o Voz Bandeira são mais marcados pelo encontro e pelas pautas políticas que eu sempre defendi. Eu acho que essa coisa vai num crescente. O Rueira tem esse lugar da mulher reivindicando o espaço da rua, o espaço público, reivindicando seus direitos e reivindicando a cidade. E é um com o outro, todos com Manu e Rodrigo Lessa, todas as melodias e arranjos musicais com produção do Rodrigo. As letras da Manu. E a gente construiu esse álbum pensando muito nessa perspectiva feminina. E o Voz Bandeira é o encontro meu com muitas mulheres. Muitas mulheres negras. Seis mulheres convidadas no disco e tem a produção também de uma mulher negra, que é a Ana Costa. E um time de músicos instrumentistas de pessoas negras. Então, o que existe em comum é um comprometimento com o ser político, o ser social, com os grupos sociais dos quais eu faço parte e com o ser político-artista que eu sou. 

Já a instrumentação muda muito de um disco para outro, primeiro porque esse primeiro disco trouxe uma linguagem próxima daquela das figuras que construíram comigo no Bip. Já o Rueira, a gente deixou muito solto para criação do Rodrigo. Ele sabia muito da minha relação com o samba, tentou não se afastar disso, mas ele é um cara com muitos recursos, é um pesquisador, tem uma pesquisa muito grande sobre ritmo, gênero e tudo mais. A intenção da gente foi deixar que todo mundo pudesse explorar e apresentar o que acumulou ao longo da trajetória. Então, eu cantando, sentia-me à vontade de interpretar diferentemente as músicas. O que era um samba, eu tentei me referenciar em outras gravações clássicas de semba, de um caso do que era uma morna. Eu fiquei muito referenciada na Cesária Évora, essas coisas assim. Então, a gente pode ir, todo mundo, por caminhos mais libertos nesse sentido de explorar os seus acúmulos livremente. Manu igualmente, com relação às letras, de poder brincar com as palavras e com os temas. Ela é muito livre e plural também como compositora, transita muito bem por ritmos, por gêneros musicais diferentes. 

E o Voz bandeira a gente já tem uma coisa mais unificada ali pela Ana Costa. Eu falei, a gente vai trazer muito mais samba, mas a gente queria um disco mais simples, enxuto, porém de excelente gosto – que é o que ela consegue fazer, às vezes com poucos elementos ela consegue dar uma assinatura muito bonita para a obra. Então, é um disco que é urbano. Ela trouxe os instrumentos de que gosta mais; ela trouxe o teclado para quase todas as faixas, que é um instrumento de que ela gosta bastante, acha muito versátil. 

E o projeto que eu pretendo apresentar no início do ano, que é o Virada, é um disco com muita linguagem de roda de samba nos termos que a gente faz hoje, como eu faço hoje, com balaio, no subúrbio. Rodas com uma linguagem de muita convenção percussiva, muita dinâmica. Esse é o futuro trabalho, que foi pensado na pandemia e acho que, por isso, pelo tanto que eu sentia falta daquela linguagem da roda, e o quanto me fez bem ouvir gravações de roda, aproximou-me mais disso. 

Queria que você falasse um pouco sobre suas escolhas como artista: repertório, parceiros, músicos, linguagens…

Eu sempre divido essa escolha com quem está ali formando o trabalho comigo, quem está participando do trabalho comigo, ou quem está produzindo a música, ou quem está fazendo direção artística junto comigo. Costumo criar sempre uma dinâmica interna do disco. A escolha de repertório segue uma narrativa. Primeiramente, eu penso o que eu quero dizer com o disco. Depois, eu vou sentindo, sinto falta disso aqui, sinto falta daquilo ali. Se eu quero falar de relacionamentos amorosos, eu não quero falar sempre da mesma experiência, né? Quero falar de experiências muito diversas. 

Das participações, por exemplo, Virada é uma música minha que Marcelle Motta gravou. E já era linda na voz da Marcelle. Então, eu queria trazer não só minha voz, mas alguma coisa a mais para essa faixa. Inicialmente pensei: uma mulher – eu sou uma mulher lésbica, então acho que talvez fosse interessante uma faixa forte do disco ser dividida com uma mulher. Mas depois pensei melhor e, como é uma música que fala justamente de um modo de separação mais humanizado, sem belicismo, sem posse, sem controle, eu achava importante estar na voz de um homem, porque isso foi pensado ali em um momento de pandemia, em que a gente estava vivenciando um aumento no número de denúncias de feminicídio, de violência doméstica, essa coisa toda. A ideia foi então trazer um homem que fosse do samba, reconhecido por mais gerações, em territórios muito diversos, que não fosse uma figura que circule só pela zona sul do Rio de Janeiro. Teria que ser uma figura meio unânime quase, para assumir esse discurso, e isso soar quase como uma lição, uma mensagem para reflexão mesmo. Inicialmente eu pensei no Zeca, mas depois o Eduardo Familião, que também estava participando da construção artística desse disco comigo, do Virada, sugeriu o Péricles, e eu fiquei: “poxa, é isso”. Uma adolescente de 16, 17 anos ama o Péricles. Minha mãe tem 68, ama o Péricles. Então fui correr atrás disso. 

Quando eu penso nas participações, não penso somente no desejo de gravar com uma pessoa. Penso também no quanto aquela música vai ficar bacana dividida por mim e aquela participação e também qual o impacto social que pode ter aquela gravação. Com o Péricles foi isso. Ele ouviu a música, gostou e quis gravar, sem nenhum questionamento. Foi lindo. 

Seria bom também que você falasse um pouco sobre seu processo como compositora. 

No começo eu recusava um pouco esse lugar de compositor por não ter – e até hoje não tenho – tanto a composição como um ofício com a regularidade que eu tenho o cantar. Então, não reivindicava muito esse lugar de compositora; eu sempre brincava: “não sou compositora, não, eu só não desperdiço inspiração, porque se eu não pegar aqui, alguém pega no Japão…”. Mas, com o tempo, e com o aumento das composições, mesmo que de maneira muito irregular, eu entendi que aquilo era sim um ofício, que estava ganhando um espaço maior na minha vida. Quando você coloca uma música no mundo, as pessoas começam a te ler como compositora, começam a te procurar para isso também. Isso fez com que eu começasse a de fato me entender como compositora. 

E o processo de composição, mesmo quando eu faço uma letra, para mandar para alguém, eu sempre faço com melodia. Mesmo que eu vá mandar para a pessoa sem melodia, para a pessoa fazer a melodia dela, eu sempre sugiro alterações, a não ser que venha redondo, mas dificilmente eu não dou nenhuma sugestão de melodia, porque melodia é um negócio muito forte para mim. Faço muitas melodias com uma frequência maior do que letras, porque letras eu tenho de sentar para lapidar. Então, a relação que eu tenho com a letra não é exatamente igual a relação que eu tenho com a melodia, apesar de eu ser muito apaixonada por letra. São relações diferentes, não necessariamente de mais importância, mas são relações diferentes. 

Como você avalia a cena contemporânea? As coisas estão mais fáceis ou mais difíceis para os artistas? 

Acho que, em alguns aspectos, está mais fácil; em outros, mais difícil. Essa coisa de a gente poder ter mais independência, mais acesso a tecnologias para fazer produções do nosso conteúdo, divulgação do nosso trabalho, isso é muito bacana. Tornou a coisa um pouco mais democrática. Por outro lado, a exigência sobre nós, artistas, hoje é quase de um acúmulo de função. Você tem de saber fazer, saber mexer no Instagram, fazer produção do conteúdo, o vídeo tal; então, não é mais só saber o seu ofício que é cantar, compor, tocar. Saber divulgar o seu trabalho vira uma função do próprio artista, ainda mais se você está numa carreira mais independente, ainda sem uma estrutura, e aí isso onera mais e também muita gente fica com dificuldade, porque não sabe mexer nessas ferramentas. Gente muito boa fica patinando nessas ferramentas e às vezes perde oportunidade por isso. Mas, de uma maneira geral, eu acho que a gente tem tido outros caminhos para fazer a nossa cena brilhar mesmo. Com relação não só à produção de fonogramas, mas também com relação à produção de eventos. Hoje a galera do samba faz evento na rua, reocupou as praças. A roda funciona como uma grande rádio no final das contas. É claro que o apoio da rádio é o apoio da rádio, isso amplia de uma maneira muito expressiva o alcance do trabalho para outros lugares fora do Rio, e até fora do Brasil. Mas essa possibilidade de produzir uma roda de samba de rua e ela funcionar como um polo de divulgação do que você faz, do que você escreve, do que você canta, eu acho que isso é incrível. A gente precisa, claro, pensar formas de isso crescer, de a gente não ter um teto tão baixo para isso. Também não ficar ali e não fazer girar a roda. Esse é o desafio hoje, girar o que a gente produz, fazer girar a roda, fazer crescer em termos de estrutura, de divulgação e tudo mais. Mas essa possibilidade hoje também traz novos caminhos, novas possibilidades de alcance das pessoas. 

E a gente tem hoje as plataformas digitais, que são muito acessíveis, porém dão um retorno financeiro irrisório ainda. A gente tem muito para regulamentar essa forma de divulgação. De todas, acho que o YouTube tem sido um refúgio um pouco melhor. Mas ainda assim a gente tem de batalhar. Cada vez mais, organizar-se; cada vez mais, botar isso na pauta das entrevistas, na cena, para que a gente consiga ter um retorno melhor. 

O que você está fazendo hoje? Há projetos em curso?

A ideia, como eu já antecipei, é lançar o disco Virada, com dez faixas – quatro delas já foram lançadas como single, então são seis faixas novas –, no início de 2023. Eu optei por fazer um disco que tivesse a ver comigo, com o que eu produzia naquele momento de pandemia, de conteúdo de roda de samba e tudo mais, que falasse única e exclusivamente de relacionamentos amorosos, de partidas e vindas, de reafirmação de pactos amorosos. Esse disco atende um pouco as demandas que a pandemia me trouxe, ou que eu levei para a pandemia, que é de ter uma sonoridade de roda muito presente no fonograma e uma temática que eu nunca explorei tanto, que não deixa de ser revolucionária, que não deixa de ser política, que é falar de amor, falar de relações, de relacionamentos amorosos.

Nesse momento eu também estou fazendo produção do show e do audiovisual do show Voz Bandeira, que ficou suspenso por conta da pandemia, mas eu não abri mão de tocar esse projeto. Então, para que ele ganhe um novo fôlego, eu vou produzir esse audiovisual e o próximo passo será produzir a versão Voz Bandeira em vinil. Então, esse disco tem um caminho muito diferente do Virada. Para mim, é perfeitamente possível tocar os dois projetos paralelamente. O vinil do Voz Bandeira também está previsto para o ano que vem.

Brasil-miragem

A pandemia por que passamos disse muito sobre a importância da arte no Brasil. Como um artista de samba pôde lidar com a falta de rua? E qual foi a importância do samba na retomada da vida cultural da cidade?

A falta foi imensa. Isso me deixou muito mal, muito deprimida inclusive. E a roda é algo que você não consegue reproduzir em live, porque ela não pressupõe o encontro só porque as pessoas vão para a roda e ficam ali muito próximas da banda, mas também por causa da dinâmica interna da roda, que se movimenta a partir do que está no entorno. Um exemplo que eu sempre dou é que, se chegou alguém com uma camisa do Flamengo, você pode puxar uma música, isso pode levar a pessoa que tá cantando a lembrar de outra música. Caiu e quebrou um copo, aí a roda pode se movimentar para brincar com isso, seja no repertório, seja nas falas. Chegou um compositor, uma compositora parceira que estava ali passando, ou vai cantar, ou a gente vai imediatamente cantar uma música daquela figura. “Hoje é aniversário de fulano! É aniversário de Arlindo. Poxa, vamos fazer Arlindo!”. É uma coisa que às vezes não é programada. Aliás, na roda, pouquíssimas coisas são programadas previamente, e elas são pensadas na hora a partir do que o encontro proporciona. 

Aquelas lives que a gente viu de rodas, não é uma roda aquilo ali. É um show de samba, que está simulando uma roda, mas é um show. Isso foi uma perda para mim, da pandemia, no sentido do que forma a gente cotidianamente. A gente teve perdas muito significativas na pandemia, de pessoas queridas inclusive. Mas a ausência da roda me quebrou, sabe? E eu fui até entender como é isso na minha vida mesmo, porque a gente vive um momento de muitas incertezas, então precisa entender como lidar com essa ausência e como ficar de pé, firme, sem ter essa coisa que é tão importante, que é meu lugar de socialização, é o lugar do abraço, do riso,  do choro, do afeto, é o lugar da crítica social, é o lugar da piada, enfim, é o lugar de tudo, né? 

Você tem uma gravação fundamental do samba da Mangueira, História para ninar gente grande, que tem a Manu da Cuíca como uma das compositoras e a Leci Brandão dividindo a canção com você e abençoando seu trabalho. Você acha que estamos caminhando para que novas narrativas sejam feitas sobre o Brasil? 

Sim, eu acho que esse é um debate meio urgente – claro que ele não é novo, inclusive nas escolas de samba, ele sempre foi presente. As escolas de samba não têm, necessariamente, o compromisso de sempre adotar a narrativa não oficial, mas muitas optaram por isso em desfiles ao longo das suas histórias. Isso é importante dizer. A gente não está inventando uma coisa. A gente está é num momento propício para esse debate ficar mais quente. Eu acho que a gente está num momento em que o acúmulo de reflexão sobre isso está mais em alta, mais visível. A gente está tendo mais espaço para falar, de uma forma elaborada, direta, mais expressiva, sobre essas questões. É uma onda importante dos movimentos feministas e antirracistas, que traz essas questões mais fortemente para a opinião pública, para o debate na imprensa, nas escolas. E acho que essa música é muito importante. A Manu da Cuíca, o Luís Carlos Máximo e todos os outros parceiros arrebentaram nessa construção, não só porque têm um cuidado com as palavras, com a forma de dizer; é muito clara, mas, ao mesmo tempo, não é óbvia. E acho que se tornou um hino popular, num momento em que a gente estava muito destroçado. A gente veio de um ano muito destroçado, com a execução da Marielle, e poder ver isso nesse primeiro carnaval, que não era necessariamente sobre isso, era sobre narrativas não oficiais.

Há uma história muito bonita da Manu, quando ela foi entrevistada, se não me engano nO Globo, em que a jornalista pergunta se o nome da Marielle fosse Joana, por exemplo, se ela entraria no samba, uma vez que ela não estava na sinopse. Não era sobre a Marielle o desfile da Mangueira. E a Manu disse que não entraria, porque tinha uma preocupação com aquela aliteração ali, era com Ma, Ma, Ma… Então inicialmente era “de ouvir as Marias, Malês e Marés”. E a Marielle estaria contemplada nessa palavra Marés. Então, lá pelas tantas, pouco antes de entregar o samba, a Manu teve esse estalo de botar o nome dela. Como figuras que lutam, que encabeçaram, que lideraram lutas e que tiveram seus nomes apagados – no caso da Marielle, não foi apagado da história o nome dela, mas ela foi inviabilizada de seguir essa luta –, então o nome dela segue forte e lembrado. Apesar de que a gente tenha hoje uma outra coisa que é esta, não sei nem que palavra eu dou para as fake news, porque é uma coisa muito ruim, e hoje a pessoa é difamada rapidamente, como aconteceu com ela. Então, isso, de certa forma, é uma coisa invertida, que é uma narrativa não oficial do mal, que vai virando oficial por caminhos que a gente não mapeia. Esse é um cuidado que a gente tem hoje. E esse samba tratou de dar conta dos nomes da história que não foram levados aos livros, não foram ensinados nas escolas. E também de uma figura que, recentemente, tinha sido inviabilizada, executada brutalmente para que a sua luta não seguisse adiante. E, rapidamente também deslegitimada, desqualificada por uma narrativa que foi tomando conta no esgoto, num caminho que a gente não sabe muito bem a origem dessa loucura.

Acho que a gente vai ter cada vez mais músicas reivindicando isso: essas figuras, nomes. Há agora um samba de um camarada sobre Carolina Maria de Jesus. Eu vejo mais sambas trazendo novamente figuras importantes, que não foram tão citadas e lembradas nas escolas. E eu acho que esse é um caminho que está ganhando cada vez mais força e não parece ter volta.   

No seu disco Voz Bandeira, há também a presença de vozes de escritoras negras importantes, como Ana Maria Gonçalves, Carolina de Jesus, Conceição Evaristo e Elisa Lucinda. Como funciona para você essa relação entre literatura de livro e canção popular?

Foi uma ideia dessa minha relação com a literatura, por ter feito Letras, mas as escolhas foram feitas a partir de uma narrativa que foi sendo criada dentro do trabalho, de muito falar de identidade, tanto do trecho que a gente escolhe de Um defeito de Cor, para falar desse rompimento forçado com a sua própria identidade, mas que não se dá de uma maneira concreta porque internamente a pessoa continua carregando o que a forma. No caso da Kehinde, você não pode mais adotar o próprio nome, mas que, para ela, para os orixás, para a história, para os familiares, ela continuava sendo Kehinde. E já no trecho da Elisa Lucinda, a gente tem ali o Mandela, popularmente batizado pela população como Madiba, que é um nome que tem mais a ver com aquele povo. É uma inversão da coisa talvez. E a Conceição vem como uma entidade, uma figura muito forte e, como a gente tinha algumas citações já falando de figuras emblemáticas, seja dentro das músicas, seja no texto da Elisa, a gente pensou em algo que falasse mais do fazer poético, da própria palavra, do ser político, que ela traz na sua poesia. Portanto, essas escolhas foram pensadas pelo que essas mulheres representam e pelos caminhos possíveis para costurar aquelas músicas escolhidas ali. 

Você também tem sido uma figura muito presente nas lutas políticas dessa eleição decisiva, inclusive cantando o hino nacional em eventos públicos. Como é sua relação com a política? 

Eu tenho relação com política desde muito nova. Eu estudei no Pedro II e fui do grêmio de lá. Participei do movimento secundarista. Depois, na Faculdade de Letras, participei do Centro Acadêmico, do DALB (Diretório Acadêmico Lima Barreto), na verdade. Sempre por caminhos muito diferentes. No caso do DALB, eu era diretora de esportes uma época. Então, mobilizava para que a gente participasse das Olimpíadas, mas que também pudesse discutir alguns temas. Era uma forma de encontro, né? O esporte pode cumprir esse papel, de integrar as pessoas e também de uma troca mais bacana, menos burocrática. Depois eu segui muito ligada a partidos, mas nunca filiada, fazendo campanhas. Eu fiz campanha de muita gente, voluntariamente, sempre como militante, seja com o PT, depois muito com o PSOL. E em 2018, quando atingimos ali 300 dias da execução da Marielle, a Mônica Benício se filiou ao partido e eu me filiei também. Um ato simbólico. Sempre que eu pude, também contribuí muito com os jingles, na música eu sempre falo de política, na política eu acabo trazendo a música. Em 2016, eu estava numa turnê, na Alemanha, e aí contribuí de lá para o jingle da Marielle. Virei noite por causa do fuso-horário. Depois voltei, no meio da campanha, para terminar de fazer a campanha aqui. Sempre tive uma relação com política, gosto, é algo que realmente me interessa e me mobiliza muito. 

De 2019 para cá, eu passei a construir politicamente com a deputada Renata Souza. Inicialmente eu comecei a trabalhar com ela como coordenadora de comunicação dela, e a coisa ficou intensa, porque eu canto e coordeno a comunicação, e eu tinha esse trabalho paralelo na OAB, onde trabalhei, durante sete anos, no departamento de jornalismo, que foi para onde eu migrei quando eu saí da sala de aula. E aí há um ponto que a música começa a tomar muito espaço, e a relação com cultura, com temas da negritude, com feminismo… Desde 2021, eu saí da comunicação dela e passei a fazer mesmo um trabalho mais de articulação de cultura, de negritude, junto com a Renata. É uma figura que é muito próxima, que eu tenho muito próxima de mim na construção política cotidiana e que nessa eleição foi gigante também. Não só ela, a Talíria também, para quem eu fiz o jingle de 2018, e o jingle desse ano é meu. Fiz jingle da Keka, que foi uma candidata ao governo de Brasília. Da Camila Marins, que é uma camarada do PT. Fiz muitos. Esse talvez foi o ano em que mais eu tenha trabalhado fazendo jingle ou música. Feito muito jingle, entrado em estúdio, cantando o hino. Só foi crescendo essa contribuição que eu dou com a música para a política e a política também está presente na música que eu faço. 

E que Brasil nós vamos conseguir construir depois do resultado dessa eleição?

Foi uma luta muito importante e uma eleição decisiva, como a gente nunca viveu, que até o fim a gente teve que ser guerreiro e lutar bravamente e que, ainda bem, tivemos êxito, porque agora a gente pode começar a pensar num projeto de país, ainda que a gente não vá todo mundo seguir caminhando nessa frente ampla, ela foi necessária para combater o fascismo, para combater essa lógica. O pensamento ainda está aí, a gente precisa continuar lutando contra ele. Ainda que por caminhos diferentes. Mas a gente teve uma grande vitória, pois um presidente fascista, autoritário demais, não conseguiu se reeleger. Ele tinha o poder da máquina, usou a máquina como nunca nenhum outro presidente usou e, ainda assim, não conseguiu se reeleger. Usar não só a máquina por caminhos oficiais, mas usar a máquina por caminhos não oficiais, seja por um orçamento secreto, seja esse esgoto das fake news, como a gente já falou aqui. E a gente conseguiu com muita luta, com diálogo, com a superação de alguns problemas políticos anteriores, algumas fragilidades nossas. A gente conseguiu, como campo progressista, enfrentar isso e vencer essa primeira batalha que era decisiva para a gente começar a construir outro caminho possível, mais humano, menos autoritário, menos bélico e armamentista, menos tudo isso que tem de ruim. Essa eleição foi muito decisiva para a população de maneira geral, foi muito importante particularmente porque eu consegui conduzi-la com muita música, e isso pós-pandemia era extremamente necessário, fundamental para mim e para as pessoas que tiveram acesso a essas músicas. Então, eu acho que foi especial, por vários motivos, esse período que a gente viveu.