Toco o interfone, aguardo alguns minutos numa esquina da rua Conde de Irajá, na parte mais estranha e confusa, de frente para um posto de combustível que funciona dia e noite abastecendo carros movidos a gás. O lugar está cheio de taxistas e motoristas de aplicativo conversando aos berros, com seus carros amarelos e azuis, pretos e prateados, com faróis de xenônio brancos ofuscantes, lanternas vermelhas, laranjas e bigorrilhos verdes reluzentes. Rafael Plaisant desce para abrir o portão e, enquanto subimos os lances de escada para seu apartamento-ateliê, noto que seus braços e pernas são repletos de tatuagens; uma caveira na mão esquerda, uma cigarra no antebraço direito, uma caravela numa das canelas, uma flor na panturrilha direita. A sala da casa é tomada de objetos de origens e usos dos mais variados: uma antiga vitrola acoplada a uma imponente televisão de 40 polegadas, uma luminária de alumínio industrial bastante grande e desproporcional adaptada e localizada sobre uma mesa de jantar, um par impecável de cadeiras Wassily, um sofá surrado, porém confortável, de desenho genérico de frente para a TV. Plantas trepadeiras bastantes comuns convivem com exemplares mais exuberantes. As paredes são completamente cobertas por gravuras compradas em leilões online, objetos de artistas autodidatas, pôsteres e trabalhos de artistas amigos. Isso tudo num cômodo de dezoito metros quadrados.
Atuando como tatuador há duas décadas, o exercício do desenho e da pintura sempre correu paralelamente a seu trabalho nos estúdios mundo afora. Ele revela, no entanto, que o isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19 foi o evento determinante para pôr em primeiro plano sua prática artística. Impossibilitado de tatuar e, ao mesmo tempo, cada vez mais mergulhado nos processos de pintura, Plaisant começou a utilizar o Instagram para tornar visível sua recente produção. Alguns meses e diversas pinturas vendidas depois, suas obras foram notadas na rede social por um jovem galerista nova-iorquino, que imediatamente propôs uma mostra individual, ocorrida no meio do ano de 2021.
Nas palavras do artista: “Em minhas obras, proponho explorar texturas e movimentos visuais em pinturas abstratas que evocam certos elementos simbólicos multiculturais e ancestrais. São composições simétricas, marcadas por profusão formal, que buscam discutir os limites entre as ambições universais das linguagens abstratas em contraste com suas vocações vernaculares, populares e pop. A pesquisa também tem como base certos ritmos da arquitetura déco, brutalista, do imaginário da ficção científica, dos quadrinhos psicodélicos e da arquitetura experimentalista e do anti-design dos 1960-1970”.
Estar diante de uma pintura de Rafael Plaisant é se defrontar, portanto, com um conjunto bastante heterogêneo de referências visuais e conceituais associadas simultaneamente. Mas que organização visual seria capaz de acomodar tal quantidade de elementos?
Plaisant parece, não sei se por alguma reminiscência de sua formação em arquitetura, criar um sentido de ordem baseado em composições sempre simétricas e geometrizadas. O artista consegue, dessa maneira, seja por justaposição ou sobreposição, acomodar formas abstratas, passagens tonais, acordes cromáticos e elementos lineares de maneira a produzir, apesar de toda a profusão de elementos, um sentido contemplativo, quase de transe, em suas composições. Podemos pensar nelas como grandes plantas urbanísticas de cidades impossíveis, como janelas de naves espaciais que cortam paisagens áridas, ou, ainda, como diagramas religiosos de alguma seita de origem obscura.
Suas composições abstratas remetem, por outro lado, às clássicas máquinas de pinball multicoloridas, muito comuns até pouco tempo atrás nos fliperamas de qualquer cidade do mundo. É importante salientar que Rafael é de uma geração de artistas que pertence à passagem da era analógica para a digital. Viveu, como vários de nós, uma primeira metade da vida ainda sob a égide da mão, o que pode explicar outra parte importante de sua prática: o fazer manual extremamente meticuloso. Seu método de construção passa, na grande maioria das vezes, pelo lançamento de um grande plano de fundo policromático, que é, dia após dia, sobreposto por elementos geométricos e lineares adicionados de maneira aleatória e equilibrados por seus equivalentes espelhados. Uma espécie de jogo de cartas que vai sendo reorganizado a cada nova rodada. Tudo isso guiado pelo uso de réguas e mascaramentos que ajudam e evidenciar, em suas estruturas, arestas muito bem definidas.
É importantíssimo ressaltar o papel da cor em seus trabalhos. Novamente, podemos perceber que o jogo baseado em certa aleatoriedade guia os movimentos do artista. Quero dizer, com isso, que sua articulação, longe de ser um golpe de sorte, funciona mais como uma improvisação musical, em que a nota cromática ou acorde anterior propõe uma pergunta visual que é respondida pela nota ou acorde seguinte. Dessa maneira, acordes bem equilibrados, baseados em analogias cromáticas ou de temperatura, são surpreendentemente associados a cores fluorescentes e hipersaturadas, formando articulações de cor imprevisíveis.
Por fim, talvez faça pouco sentido continuar tentando nomear a multiplicidade de sentidos proposta nas composições do artista. Como toda boa pintura, a obra de Rafael Plaisant se constitui fundamentalmente pela força de sua intrigante presença.
Esta conversa foi feita em duas partes. A primeira aconteceu na exposição Choro, de Antonio Kuschnir, durante uma visita presencial guiada pelo artista. Com generosidade, Antonio foi compartilhando a subjetividade das imagens, tela por tela. É a primeira vez que ele faz uma exposição tão grande. Aos 21 anos, é o artista mais jovem a ocupar o Museu de Arte Contemporânea de Niterói.
A segunda parte foi uma conversa virtual com o curador, Victor Valery, de 27 anos. Como ele está em São Paulo, optamos pelo vídeo. A distância, entretanto, nos aproximou. Conseguimos furar a frieza da tela, e adentramos no calor dos assuntos.
Foi fundamental decantar a visita física para reviver o tema, dias depois. Aos modos da pintura, oscilar entre a proximidade e o recuo. Durante o texto, os dois diálogos se complementam. Juntos, conseguiram expor 72 telas no Salão Principal do MAC de Niterói. Em todas elas, há o jorro da vontade – encarnada no jorro pictórico e no jorro de lágrimas.
A semente de toda essa série foi meu primeiro desenho de choro, em setembro de 2018. Foi quando o museu nacional pegou fogo, e vimos ele arder ao vivo. No meu caso, além da dor coletiva, sofri intimamente, pois minha mãe é antropóloga e trabalhou lá por 13 anos, com pesquisa. Passei grande parte da minha vida acompanhando isso. Quando as chamas arderam, a gente sabia exatamente o que estava sendo queimado. Registros únicos de línguas indígenas que já foram extintas, por exemplo. Não tinha cópia, acabou. Foi uma perda para o Brasil, para a humanidade. Foi muito traumático. Eu nunca tinha pintado choro, nem desenhado. No dia seguinte do incêndio, eu estava na aula, rabiscando… Sabe aquele desenho que a gente faz meio no automático? Quando vi, tinha desenhado o museu pegando o fogo, e um rosto no primeiro plano. Era uma pessoa com a boca aberta, a língua para fora, aos prantos. Pensei: acho que tem alguma coisa aí. E o futuro foi provando que essas tragédias – e choros – não iam parar.
Mas o choro já é uma elaboração, de certa forma. Muita gente não consegue chegar até o choro. Eu tenho dificuldade de segurar, então tive que aprender a chorar, mesmo em público.
Também prefiro tirar de mim do que perpetuar. Engraçado, eu não choro em público. A pintura chora por mim, ela coloca muitas coisas para fora. Também não lembro dos meus sonhos, é muito raro. Mas eles vêm parar nas telas. Um psicólogo me falou isso um dia, e eu acredito.
Eu gosto muito de pensar no choro como extensão da gente, como parte do corpo. Depois de tanto isolamento, sinto que estamos voltando a revalorizar uma arte mais táctil, mais aqui-agora: pintura, escultura, teatro.
É uma necessidade humana, criar imagem com o corpo, sentir e expressar com o corpo. Mas eu acho que o teatro, como o cinema, tem um tempo marcado. Já a pintura não tem essa limitação. Você dá o tempo dela.
No sentido de você escolher se vai contemplar por segundos, horas ou anos?
Sim. Por ser estática, parece eterna. O David Hockney fez uma imagem que é muito emocionante, sobre a estaticidade. É uma cena com dois homens conversando e, acima deles, um leopardo imenso está prestes a atacá-los. Mas o leopardo não vai chegar, porque é uma pintura. O leopardo está preso, para sempre, no ar. Assim como essas figuras ao nosso redor, que nunca vão parar de chorar. Vão estar para sempre presas na tela, para o bem e para o mal. Eu gosto muito disso.
E tem uma liberdade muito grande, não só de congelar o tempo, mas de criar o que não existe.
A pintura cria um universo próprio. O Matisse tem uma história muito famosa, de quando ele pintou uma mulher com uma sombra verde, no meio do rosto. Ele estava expondo num salão, muito no início, e chegou um visitante e disse: “O senhor está maluco, pintando mulher verde”. Matisse respondeu: “Isto não é uma mulher, isto é uma pintura”.
É curiosa essa perseguição do que é real, né? Como se não existisse a imaginação, a expressão livre.
Sim. É do humano querer expressar qualquer coisa que seja. Não à toa, quando alguém quer adoecer um povo, a primeira coisa que tira é a educação, a cultura. É o primeiro alvo dos ataques. Lembro que, quando criança, as aulas de arte eram meu refúgio. Com sete anos, eu entrei em um curso de artes no Parque Lage e nunca mais parei. Mas foi no ensino médio, quando comecei a estudar História da Arte, que compreendi a jornada e me enxerguei como parte dela. Tive uma professora que me disse: você tem que ter um caderno e andar com ele sempre, para desenhar todos os dias. Eu acatei, e comecei a preencher um caderno por mês. Percebi que era o meu caminho. Ou isso, ou nada. Senti que não tinha escolha.
E então você foi para a universidade, estudar Artes?
Isso. Eu escolhi estudar na Escola de Belas Artes da UFRJ, pois queria ter acesso a um ensino mais clássico, aprender a técnica. Conhecer os artistas, as épocas, fazer estudos, cópias. Queria ter tempo e espaço para treinar meu olhar e minha mão. Eu acho legal quem lê cinco livros do Foucault e do Deleuze antes de pintar uma tela, mas meu caminho é outro. Eu me conecto com a materialidade, com o ofício; gosto de ler sobre arte a partir dos escritos dos artistas, das autobiografias. Gosto de aprender com quem faz, com quem enfrentou crises semelhantes às minhas, em outras épocas. Ler os relatos em primeira mão.
E você costuma anotar suas ideias, processos? Você também registra seu trabalho de ateliê?
A pintura é meu diário. Eu não escrevo muito, mas pinto todo dia. Se alguém quiser ver como foram meus pensamentos em tal ano, é só pegar as pinturas, na ordem. Elas vão dizer mais sobre mim, e sobre o momento, do que eu.
Mas você persegue temas específicos ou retrata o próprio cotidiano?
Eu acredito na arte como uma grande história de amor. Tem coisa mais transcendental e de difícil entendimento do que o amor? E mesmo assim a gente sente, a gente sabe que sente. E a pintura também é difícil, a gente tem dificuldade com tudo, passa séculos na mesma questão. É uma coisa que vem da gente, que nós criamos, e que não conseguimos compreender. Mas não é só sobre o bom do amor. Há prazeres e agonias. Então não estou interessado em fazer uma pintura que seja puramente bela, seja lá o que isso for. A série Choro aborda temas sombrios, mas eu adicionei cor. Eu não queria cair nas obviedades da pandemia, botar todo mundo de máscara. Eu queria tratar de coisas maiores, mais abertas, questões que atravessam os tempos.
Mas você acabou pintando algumas cenas bem atuais, sobretudo naquela parede que mostra muitas interações com telas e celulares.
Eu gosto de pintar natureza morta, e considero o celular uma natureza morta. É muito cinza, melancólico como um dia nublado. E gelado. É feito para juntar, mas muitas vezes separa. Quase todas as telas dos celulares que pintei estão vazias. Elas são o black mirror, quando a gente olha se vê refletido no nada, no preto.
É uma espécie de luto? Você chega a atacar o celular, em algumas telas.
Eu gosto muito dessa ideia do celular golpeado, sangrando. Acho divertido, pois poucas pessoas estranham. É um objeto tão humano que a gente pensa “ah é, se a gente matar, ele vai sangrar”. É a humanização do objeto e a objetificação do homem. Isso é do Marx, inclusive. Lembro que me marcou. Ele fala sobre as inversões da sociedade, que levam à alienação.
E essa coisa dos celulares serem meio angulosos, tipo umas pirâmides tortas?
Tem a ver com a perspectiva reversa, que é um conceito que eu tenho estudado, não tanto quanto gostaria. Mas é basicamente assim: você tem a perspectiva renascentista, que tem o ponto de fuga lá no final e tudo converge para ele – é geométrico, mostra os objetos em tamanhos proporcionais; acho que surge por causa da arquitetura, para ser possível projetar –, mas tem muitas imagens que seguem outra perspectiva, tipo os ícones bizantinos, que têm o ponto de fuga em outro lugar. Ele não está fixo no infinito, longe da gente. Está apontado para frente, está aqui, em nós. Como se nossos olhos fossem o ponto de fuga. As coisas abrem, como se você pudesse se mexer em volta do objeto. Os cubistas usaram muito isso. O David Hockney, aos 84 anos, está explorando a perspectiva reversa também.
Mas está para além do visível?
Sim, depende da experiência. Acho que a pintura é um dos meios pelos quais você pode chegar um pouco mais perto do invisível. Sinto que, se existe algo próximo do divino, é a arte.
(Enquanto percorrem a galeria)
É legal esses observadores que você coloca. Aquela figura na porta lembra Velázquez.
Gosto desse exercício das múltiplas visões. Não só o que a gente está fazendo agora, olhando para as pinturas, mas essa metalinguagem. Uma figura olhando para outra, dentro da tela. Ou a figura olhando para o celular, e o celular olhando de volta, e as diferentes implicações que isso tem.
É um jogo de espelhos, né?
Exato. Quando é bem-feito, é maravilhoso. Não sei se você conhece o primeiro capítulo de As palavras e as coisas de Michel Foucault; ele fala sobre o quadro As Meninas, de Velázquez, que você citou. E olha que é raro eu ler e indicar um texto que não seja feito por artista. Mas esse é muito bom. Ele aborda a relação dos olhares, esse jogo do espectador virar personagem. Você, ao mesmo tempo, é obra e não é obra.
Essa aqui remete ao seu autorretrato e lembra aquele cavalo do Picasso. Muito forte essa coisa de a língua ser tão afiada que vira um punhal.
A destruição é, primeiramente, autodestrutiva. Essa língua com a lâmina mostra isso, né? Por mais que você tente perfurar alguém, antes você será perfurado. Eu gosto muito de olhar para a história, para o que já foi feito. Assumir isso. O Matisse é minha inspiração suprema, e ele nunca pintou uma cena violenta. Uma vez, ele foi chamado para pintar uma cena de violação, mas não conseguia resolver a imagem. Também me comovo muito com Bourgeois, Picasso, Portinari, Goya, Rubens – estes últimos representaram a barbárie muito bem.
(A partir de agora, o passeio fica também virtual, com a participação de Victor Valery, o curador)
Victor: O Antônio provavelmente conversou com você, na visita, sobre o projeto curatorial e a expografia.
A gente começou a visita pelo lado esquerdo, sentido horário. Eu entendi a primeira parede como o lugar das obras mais icônicas, atemporais. E tem pinturas de anos diferentes, um panorama mesmo. Aí, depois disso, tem esse outro momento, que é um estilhaço do assunto, né? Tem muitas telas, na parede toda.
Isso. A gente quis cobrir ao máximo, nos inspiramos nos grandes salões do século XVIII, que tinham obras do chão ao teto, de diversos tamanhos e autorias. Tem um apanhado plural, que vai de 2019 até 2022, como se o Antônio fosse muitos artistas ao mesmo tempo. Vai ter natureza morta chorando, escultura chorando, gente chorando. Vai ter chaga, sangue, retratos, paisagens. Um pouco de tudo que ele produz. Depois, vem a parede da tecnologia: todas as pinturas com celulares, computadores, eletrônicos. E, por fim, a última parte, que tem o maior painel, intitulado Apocalipse. Quando conseguimos definir que seria no MAC, eu combinei com o Antônio: “Vamos fazer uma coisa muito grande?” Começamos a conversar sobre mitologia, os sete pecados capitais, a Arca de Noé – ele estava numa fase de pintar animais. Depois veio a interferência dos doze trabalhos de Hércules e das dez pragas do Egito. Talvez seja uma das melhores obras produzidas por ele, até hoje.
Acho que foi a tela que olhamos por mais tempo. A gente se aproximava, se afastava. Até nos sentamos no banco. Antônio comentou que dá vontade de andar dentro, sentir os bichos todos, as plantas passando. Ou exercitar o olhar: semicerrar os olhos e entrar na abstração. E aí vira outra coisa. Um mergulho na matéria, na cor. No lugar da onça, surge uma mancha amarela com pontos pretos. São tantos detalhes, que a contemplação fica meio infinita, né? O olho mergulha na imagem, como se fosse o corpo a mergulhar. Adentra fundo, sem tocar. Vi que, em muitos textos sobre a exposição, a questão dos celulares e tecnologias ganham destaque. Mas eu gosto da forma como ele vai trazendo questões históricas. Imagens que são às vezes bíblicas, às vezes pagãs. Imagens míticas, com aflições que estão aí desde os primórdios. É mesmo uma grande odisseia. Quando o Antônio descreveu tudo que estava ali, na tela do Apocalipse, fiquei espantada. Parecia impossível uma composição unir tantos mitos. O que mais me chamou a atenção foram as pragas, remetendo à pandemia, à COVID-19. Mito tem disso, né? Mostra que a história está sempre se repetindo, em uma grande espiral. E, por falar em espiral, eu percebi que ele desenha as feridas e chagas nesse formato. São quase galáxias. É interessante pensar uma ferida como uma galáxia; mostra a imensidão, a desproporção da dor. E, em suma, a galáxia é uma espiral, um vórtex. De certa forma, toda dor pode ser lida como um vórtex sem saída, uma espécie de espiral que vai te puxando para baixo. E, quando Antônio perfura isso, com a lâmina, vem o jorro do sangue – e o jorro do pranto – em uma ruptura que promove certo alívio. Então o choro não vem como ápice da tristeza, mas como sintoma da transformação, como explosão do vórtex.
É um efeito oposto ao que imaginamos, porque achávamos que as pessoas não visitariam por ser triste demais. A diretora de comunicação do MAC me perguntou: “Como é que a gente vai divulgar essa abertura? ‘Venham chorar com a gente?’”. Mas, no fim, vendo a reação do público, tem gerado mais ânimo do que tristeza.
Eu fiquei com uma sensação forte de alívio. Como se as pinturas de Antônio fossem um convite à catarse. Saímos de lá com esse banho de choro, 72 telas esguichando na gente. E o sangue, das cenas mais trágicas, não parece trágico. Dá alívio também. É uma espécie de sangria, de cura. Mas o maior alívio foi quando vi a imagem do celular sendo morto. Um celular é um grande vórtex, né? É quase hipnótico. Então fiquei impactada com as imagens que rompem isso. E com as ferramentas que rasgam, perfuram.
E tem as lâminas nas línguas. Isso aparece até no autorretrato dele. Estar vivo é sofrer, é meio assim. A gente nasce aflito e vai morrer aflito. Mas eu gostei muito disso que você falou, sobre a exposição não gerar dor, mas alívio.
E não acho que é uma sensação só minha. Eu estava vendo as selfies das pessoas na exposição, e tem muita gente tirando fotos com as telas, sorridentes. E elas posam como quem está na frente de uma cachoeira, são fotos vibrantes. Tem uma coisa solar na visita.
Eu também notei, e achei incrível isso. Ou quando as pessoas imitam as feições de dor, debochando do trágico, com humor.
E tem os dois painéis, que foram pintados coletivamente e que são bem leves. Um, inclusive, fica suspenso pelo teto, e o outro cobre a parede do museu, diretamente. Achei interessante que, nesses painéis, não há figuras humanas, nem objetos. É uma grande estampa, como se o choro tivesse virado esse mar de choros. E tem muitos traços circulares, espiralados.
E as paredes do MAC, apesar de serem retas, têm qualquer coisa de circular. O teto é curvo, e a pintura central puxa a atenção para o meio do salão. Então as pessoas olham as obras desenhando um giro com o corpo.
A própria arquitetura do museu também, né? Para chegar ao salão do MAC, Oscar Niemeyer desenhou aquela rampa errante, com um trecho espiralado. Ele tinha essa conexão com a espiral; no Palácio do Itamaraty tem uma escada bem icônica nesse formato. E soube que, nos anos 50, ele projetou uma enorme espiral de concreto que seria o símbolo supremo da cidade de São Paulo. Mas o concreto do monumento não resistiu à angulação e desmoronou. Precisaram cobrir com juta e gesso. A obra acabou sendo descartada. Muita gente fala do Niemeyer como o herói das curvas sinuosas, inspiradas no corpo feminino, no erotismo. Mas deram pouca atenção a outro Niemeyer, vulnerável ao fracasso, preso no vórtex – ou na Aspiral rumo ao céu, que ruiu.
No MAC, a espiral é coberta por um tapete vermelho.
Tão vermelho quanto o sangue das perfurações de Antônio.
A última tela da exposição, após o Apocalipse, é a primeira pintura de choro que ele fez. O começo da jornada está no final, sugerindo que fim é começo – de outro ciclo. Outra espiral.
Você acha que a fase choro vai retornar?
Ele não está mais pintando os choros, por enquanto. Mas eu não acho que o choro vai acabar agora. Se a gente pensar que os quadros foram pintados de 2019 a 2022, imagino que, no futuro, algo vá fazer ele ressuscitar essa estética de choro e ressignificá-la também. Isso eu acho interessante. Entender para onde que vai. Pois, enquanto a vida está aí, o choro não para de ser uma latência, né?
É. Choro é água, vai continuar a fluir, como um rio que corre. É natural da água encontrar caminho (ou redemoinho).
Nos últimos anos, Xadalu Tupã Jekupé tem se destacado com uma das mais potentes vozes da arte contemporânea no Brasil, pois vem desenvolvendo uma trajetória que evidencia seu compromisso com a descoberta de si em consonância com a vocalização de temas tão caros à nossa atualidade, como o enfrentamento da obliteração sistemática das culturas e das genealogias guaranis, tocando as disputas territoriais e as políticas de morte direcionadas contra os povos indígenas.
Sua relação com as ruas se dá a partir da coleta de materiais recicláveis para sustento familiar, seguida pelo primeiro emprego como gari na Prefeitura de Porto Alegre, onde a periferia e o ambiente urbano despertaram sua atenção para as dinâmicas sociais que instauram-se nas grandes capitais. Isso o levou a uma pesquisa sobre os apagamentos e distanciamentos genealógicos, a uma odisseia em busca de autocompreensão, o que seria impossível sem a análise da história do Brasil e das políticas de mestiçagem. Em suma, ele recuperou sua identidade guarani-mbyá, que havia sido sobrepujada pelos processos coloniais ainda presentes hoje.
Entre seus projetos recentes, podemos destacar a residência realizada no Instituto Inclusartiz (Rio de Janeiro), que resultou em Tekoa Xy ‘A terra de Tupã’, exposição de inauguração do Centro Cultural do Instituto, seguida de intensa agenda de exposições, como a individual na Fundação Iberê Camargo (Porto Alegre), Antes que se apague: territórios flutuantes, título homônimo de seu vídeo desenvolvido nessa mesma residência em 2021, onde retorna à beira do Rio Ibirapuitã evocando narrativas e imagens de sua genealogia matrilinear, entrecruzando três gerações na reconstituição de episódios da década de 1940. Este ano, ele também inaugura duas individuais em São Paulo; a primeira, integrando a programação de inauguração do Museu das Culturas Indígenas, seguida por uma individual no Centro Cultural São Paulo, ambas concomitantes à sua participação em coletivas como Histórias brasileiras no MASP e o 37º Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna. Atualmente, ele trabalha em outra individual para a reabertura do Museu Nacional de Belas Artes, dando início a uma nova etapa, guiada por uma revisão histórica de suas coleções e práticas museais.
Esses projetos são marcados pela presença de obras como a instalação Invasão Colonial meu corpo nosso território (2019), que poeticamente entende seu trabalho como meio de divulgação em prol da proteção coletiva, colocando em evidência o genocídio dos povos indígenas iniciado com a colonização das Américas, mas enfatizando a atualização da violência letal por meio de invasões, garimpo e grilagem, e Nhemongarai (2019), que integra a série Cosmovisão, na qual aborda a complexidade da realização de rituais devido ao aumento expansivo das plantações de organismos geneticamente modificados (OGM). Logo, a invasão das plantas sem variabilidade genética nas plantações da sua comunidade acabaram por esvaziar o poder místico do milho, que anteriormente era um elemento central nos rituais de conexão com o mundo espiritual.
Em Nheru Nher´y (2021), Xadalu Tupã Jekupé realiza um processo arqueológico, revirando a relação entre os povos indígenas e os assentamentos católicos no Sul do Brasil e reformulando traços de monumentos arquitetônicos que exemplificam o triunfo da cultura católica sobre as comunidades locais. Assim, elabora uma instalação protagonizada pelas cabeças que sustentam a Catedral Metropolitana de Porto Alegre, alertando que a cidade foi sobreposta aos que ali habitavam, efetivando um exercício de retomada próximo ao de trabalhos anteriores, nos quais ele remarcava territórios no centro da cidade como áreas indígenas, restituindo espaços de comércio da produção cultural após a expulsão dos artesãos pelas forças estatais.
As obras atualmente em cartaz na Fundação Iberê Camargo trabalham temas relacionados às cosmogonias guarany-mbyá, criando cenas relacionadas aos episódios que geraram o mundo como conhecemos, apresentando perspectivas para além dos tradicionais modos de compreensão pautados tanto pelo cientificismo cartesiano quanto pelas narrativas originadas nas religiões cristãs. Assim, elabora uma perspectiva outra sobre o modo como a gênese pode ser narrada e amplia os modelos de compreensão poética do presente, tornando-se um condutor da comunicação entre os juruá (não indígenas) e sua comunidade. Mais do que uma narrativa em prol da ampliação do acesso às histórias narradas à beira da fogueira com os anciãos da sua comunidade, ele nos apresenta uma antítese a Ulisses e distintas escalas de separabilidade entre os seres, propondo o entendimento de um sistema que considera a reconexão com a natureza, pequenos anseios de equiparação entre as matérias que compõem universos visíveis e invisíveis. Fagulhas que anunciam um novo tempo que se instaura.
Na última década, a representação de minorias políticas na mídia se tornou um assunto com muito espaço e alguma tração. Muitos também apontam, no entanto, que a moeda da “representatividade” pode ser uma armadilha, valorizada de maneira isolada. Grandes corporações como a Disney estão mais do que dispostas a incorporar minorias como protagonistas, às vezes encenando narrativas de emancipação política, mas isso tende a se dar de uma maneira que suaviza conflitos e arestas.
Do ponto de vista da crítica, a valorização do cinema negro, por exemplo, na forma de uma “tokenização” (para falar como o crítico e produtor Bernardo Oliveira), periga apenas estender o velho circuito de apropriação capitalista da criatividade popular, como tanto se fez no século XX com a música negra em particular.
A bandeira da “representatividade” não pode ficar restrita a botar dentro da tela pessoas diferentes daquelas de sempre (ou, mesmo, a colocá-las por trás das câmeras). Tampouco pode ser reduzida a uma camada de conteúdo, em que qualquer narrativa de empoderamento seja vista como um gesto emancipador. A diversidade precisa alcançar todo o circuito, e não só a superfície, se quiser se fazer valer.
Não sou exatamente um especialista nesta questão. O que estudo, além de literatura, é comunicação e tecnologia, teoria de mídia, o campo que alguns, como o inglês Matthew Fuller, chamariam de ecologia dos meios de comunicação. Essa é a dimensão que quero invocar aqui.
Representar, afinal, não é só atuar, escrever, dirigir uma cena. Produtores, editores, donos de revista e jornal, todos estão implicados em gestos de representação. Não só estes, mas ainda programadores de plataformas, engenheiros de dados, gestores públicos, servidores de agências de controle. Se a nossa vontade é democratizar nossa comunicação, equalizar nossos canais culturais, a diversidade implicada do circuito precisa ser repassada de cabo a rabo.
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O pensador canadense Marshall McLuhan disparou o campo anglo-saxão dos estudos de mídia nos anos 60 propondo que o “o meio é a mensagem”, ou seja, a forma com que a informação chega importa tanto quanto o conteúdo. Muniz Sodré, professor da UFRJ e um dos mais notáveis teóricos brasileiros da comunicação, retoma e amplia essa ideia dizendo que a televisão não é só um modo de transmitir um conteúdo, mas é uma forma de vida, parte integral da composição de um novo tipo histórico de ambiente imersivo e interativo. O mesmo poderia ser dito das nossas plataformas atuais.
Por isso mesmo, Sodré também nos adverte há tempos que, dentro desse espraiamento progressivo da tecnologia sobre a sociedade, os atos políticos genuínos envolvem a possibilidade de quebrar a forma midiática dominante. Justamente porque vivemos hoje no interior de plataformas digitais, torna-se cada vez mais importante a necessidade de contrabalancear o poder das coreografias que nos regem por meio da introdução de outras – criando forças de distribuição que preencham os intervalos deixados pelas formas dominantes, por exemplo, ou mesmo (nos casos em que isto é impossível ou pouco estratégico) arranjando formas de utilizar as plataformas dominantes atuais de modo “errado”, em direções contrárias àquelas que seus parâmetros esperam.
Não que seja fácil. Afinal, como argumentam teóricos como Friedrich Kittler e Wendy Chun, os dispositivos digitais tendem a reproduzir as estruturas de poder que os produziram. Neste sentido, vários dos problemas que enfrentamos hoje em nossa ecologia digital atual já se encontravam latentes na formação da cultura do Vale do Silício. A chamada “ideologia californiana” se consolidou durante as décadas de 80 e 90 na forma de um utopismo digital com inspirações diluídas da contracultura dos anos 60, mas centrado sobretudo no poder do usuário como consumidor, em interfaces cada vez mais fáceis de usar e na crença do poder libertário da informação conectada em rede.
Tanto as primeiras redes de TCP-IP (como a ARPANET) quanto o protocolo de transferência de hipertexto (desenvolvido no CERN) eram infraestruturas públicas de pesquisa, desenvolvidas dentro de um espírito científico colaborativo (ainda que com um pano de fundo militar). Mas a visão que triunfou desde a década de 90, sincronizada com o triunfo político do neoliberalismo, foi a da privatização progressiva da internet, tomada como uma nova fronteira a ser conquistada por empreendedores titânicos. Depois do estouro da primeira bolha especulativa, no final do milênio, tivemos a expansão acelerada, principalmente a partir da década de 2010, do tamanho e do valor de um punhado de plataformas e redes sociais.
Algumas tentativas de manter a visão utópica da internet como um bem comum continuam aí, mantendo-se como podem (Wikipédia, a lista Net-time, Scihub, etc.), mas, fora da pálida possibilidade de intervenção estatal para quebra dos monopólios, o cenário para uma internet mais diversa não anda muito animador.
Além dos riscos já notórios à democracia e à competição, a concentração extrema do poder digital na mão de um grupo muito pouco diverso de pessoas leva a uma série de pontos cegos e distorções graves, reforçando patologias sociais já existentes (desde erros no reconhecimento facial de pessoas não brancas ao uso de algoritmos de Big Data em direito penal).
A questão urgente de ampliar a diversidade na tecnologia, portanto, não deveria se concentrar em buscar incentivos para criar um Steve Jobs negro, ou um Mark Zuckerberg que acontece de ser uma mulher latina, mas em promover publicamente uma cultura técnica de inovação sistêmica e coletiva, uma ecologia digital democrática em que figuras românticas nocivas como o bilionário visionário não tenham o espaço que ainda têm hoje.
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A pandemia escancarou de maneira escandalosa o tanto que a saúde de uma sociedade depende da saúde de suas redes de comunicação. Não só o Brasil, mas quase todo o mundo dito desenvolvido teve muita dificuldade em fazer com que as pessoas acreditassem nos especialistas e seguissem as recomendações científicas, mesmo num caso de vida ou morte.
O negacionismo teve concentração intensa na extrema-direita, mas o fato é que se espalha por toda a sociedade, dos mais aos menos escolarizados, dos hippies aos fascistas. A crise de credibilidade e confiança em especialistas e instituições não é bem um problema técnico de comunicação, no sentido de ser algo que se resolveria com um sistema melhor de publicidade e checagem de fatos (embora essas coisas possam ajudar, em alguns contextos). Aponta para uma cisão social muito mais profunda. O fato, que a pandemia tornou mais claro do que a eleição de 2018 já havia tornado, é que hoje vivemos em bolhas de informação que mal se tocam, preenchidas por valores e imagens radicalmente antagônicos.
Parte do desafio, hoje, de comunicar a gravidade da emergência climática, por exemplo, parece derivar da dificuldade profunda de criar laços de credibilidade numa ecologia midiática tão pulverizada. Num mundo em que o dinheiro fala mais alto do que tudo, com camadas diversas de publicidade dominando o discurso público, as pessoas têm todos os motivos concebíveis para serem paranoicas com o que ouvem por aí. Tampouco podemos ficar tão surpresos assim com a falta de credibilidade em especialistas em geral, quando tanto espaço nos canais das correntes dominantes é dado para tecnocratas cínicos que defendem os interesses de sempre, mesmo nas situações mais absurdas, diante dos sinais mais extremos. Num mundo assim, fica difícil simplesmente pedir para as pessoas acreditarem nas instituições e pronto, sem deixar claro que algumas delas precisam, de fato, ser transformadas radicalmente.
Na maior parte do século XX, o modelo midiático dominante foi o dos meios de massa, em que um único “mainstream” (ou corrente dominante) era concentrado em alguns poucos canais de informação. Desde o início do novo milênio, esse modelo de concentração midiática em alguns canais dominantes com capacidade grande de controle do que circula vem sendo substituído, aos poucos, por uma ecologia de meios muito mais dispersa (mesmo que perigosamente concentrada num punhado de plataformas).
No Brasil, as novas camadas de comunicação digital recobrem um país ainda marcado por uma profunda concentração midiática de caráter oligárquico, tanto regional quanto nacionalmente. Apesar da proibição legal explícita, é de amplo conhecimento o controle oficial ou extraoficial que inúmeros políticos eleitos em cargos do executivo e do legislativo têm de concessões de rádio e de televisão, por todo o Brasil. Além disso, um pequeno punhado de jornais e canais de televisão, concentrados no Rio de Janeiro e em São Paulo na mão de poucos grupos e famílias, ainda se compreende como constituindo a opinião pública relevante, no sentido de formadora de consenso político (mas com uma força que parece ter minguado bastante nos últimos anos).
Com todos os seus limites e problemas, a internet de fato trouxe um começo de equalização do acesso à informação (mesmo que precária e ainda bastante parcial), principalmente a lugares profundamente desiguais como o Brasil. Num país onde tudo está tão concentrado na mão de poucos, não se pode desprezar a potência radical de democratização que a internet ainda pode trazer, por baixo dos jardins fechados das plataformas.
A solução para a torre de Babel atual de desinformação não pode ser um retorno à banda estreita e concentrada de antes, mas é claro que tampouco pode ser uma ecologia totalmente horizontal em todas as direções, sem mediadores e especialistas, sem regulamentação e responsabilidade legal, sem alguns nódulos concentrados e canais institucionais robustos.
Críticos e curadores precisam ainda ter o seu lugar, mas não como implementadores de uma tecnocracia vertical em bloco, moralistas de ocasião ou sacerdotes de distinções sociais arcaicas fantasiadas de apreciação cultural. Críticos devem ser sensores e não censores, sugere Kodwo Eshun. A equalização geral dos canais culturais é totalmente necessária, é para ontem, mas não pode querer dizer a dissolução de tudo numa mesma massa pastosa e entrópica – que seja, antes, o triunfo da diferença, com todo seu ruído, toda sua amplidão.
Em A negra de… (La Noire de…, 1966), obra-prima do cinema senegalês dirigida por Ousmane Sembène, uma garota de Dakar é levada, por um casal de burgueses europeus, para trabalhar como babá em Antibes, na Côte d’Azur. Oferece de presente aos patrões aquilo que as línguas europeias designam sob o nome fetiche (palavra francesa originada do português feitiço) – no caso, uma máscara ritual. Característica da sociedade iniciática Kore, da etnia Bamana, essa máscara é dotada de um poderoso significado em sua cultura de origem. Aqueles que a portam, ensina a sabedoria Kore, detêm conhecimento para renascer como homens completamente formados. Nada disso, entretanto, transparece aos patrões franceses. Eles apenas acrescentam aquele – aos seus olhos – estranho objeto a tantos outros que ornam suas paredes, como se fosse mais uma cabeça de animal empalhada após a caça. Fetichizam o fetiche, transformando-o em signo de curiosidade antropológica e de distinção cultural.
Essa máscara e sua dimensão simbólica, tal como exploradas no filme de Sembène, ecoam em nossos debates contemporâneos sobre a restituição, por nações europeias, de objetos de arte africanos surrupiados às suas terras originárias.
Tal discussão, decerto, não é nova. Remonta ao contexto de descolonização, entre os anos 50 e 70. A primeira formulação oficial de um pedido de restituição parte da Nigéria, em 1972. Desde então, o tema converteu-se em uma polêmica mais ou menos constante, que conhece períodos de arrefecimento e de recrudescimento. Os anos 70 foram movimentados nesse sentido. Em 1973, o presidente do Zaire, Mobutu Sese Seko, denunciou na ONU a “pilhagem bárbara e sistemática” dos tesouros culturais do continente. O Festac ’77 (Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana), realizado em Lagos, em 1977, com a participação de nomes como Wole Soyinka, Miriam Makeba, Stevie Wonder e Gilberto Gil, foi marcado pela controvérsia da máscara da Rainha Idia, esplêndida peça em marfim do Benin guardada no Museu Britânico. Autoridades inglesas recusaram as solicitações de empréstimo emanadas pelos organizadores do evento, temerosas de que ela não retornasse. As reclamações africanas ganharam ainda mais publicidade no ano seguinte, quando Ahmadou-Mahtar M’Bow, diretor da Unesco, enunciou um apelo pela devolução do patrimônio cultural às nações espoliadas. Em resposta, a imprensa europeia publicou caricaturas com imagens dos salões do Louvre vazios.
A querela reacendeu na virada dos anos 2010 aos 2020. Emmanuel Macron, presidente da França, deu-lhe o impulso inicial. No Burkina Faso, em 2017, proclamou que a “herança africana não pode existir somente em coleções privadas e em museus europeus”. No ano seguinte, seu governo recebeu um contundente relatório defendendo as restituições de peças obtidas por meios fraudulentos ou violentos. Macron realizou seu propósito, em 2020, ao devolver obras importantes a Madagascar, ao Senegal e ao Benin, aonde chegaram sob fanfarras.
Iniciada na França, a discussão não deixou indiferentes outras nações europeias. Em 2021, a Alemanha assinou, em Lagos, um acordo para a devolução de peças adquiridas de forma violenta, as quais integrarão o acervo do Museu de Arte Africana Ocidental de Edo, na Nigéria. A Bélgica remeteu à República Democrática do Congo um inventário com obras originárias de sua ex-colônia, facultando pedidos de restituição. Movimentações semelhantes observam-se na Holanda. São atos que ganham seu pleno sentido em uma época que vive os impactos político-morais do Black Lives Matter e dos protestos massivos decorrentes da morte de George Floyd, nos Estados Unidos.
Tem-se uma noção mais precisa da justiça dessas restituições quando se pensa na ferocidade das potências europeias ao se lançaram sobre tesouros africanos e asiáticos, entre outros. O saque do magnífico Palácio de Verão, a noroeste de Pequim, em 1860, durante a Segunda Guerra do Ópio, pelas tropas da Rainha Vitória e de Napoleão III, é, ainda hoje, um tema sensível na China. Essa catástrofe cultural irreparável exigiu milhares de soldados britânicos, dedicados ao aniquilamento total dessa Versalhes oriental, sob as ordens de Lord Elgin (célebre espoliador dos mármores do Partenon). Motivou, à época, o retumbante protesto de Victor Hugo, o que lhe valeu homenagens dos chineses: “Um dos vencedores encheu seus bolsos, e o outro, vendo isso, encheu seus cofres; e voltaram para a Europa de braços dados e rindo. Essa é a história dos dois bandidos. […] Diante da história, um dos dois bandidos se chamará França; o outro se chamará Inglaterra”.
Tal receita de pilhagem e destruição não se restringiu à China. A África também sentiu seus efeitos nefastos. Foi assim que, em 1874, o reino de Ashanti, em Gana, viu seu maravilhoso palácio de Kumasi despojado e reduzido a cinzas pelos britânicos. Mais tarde, o mesmo destino funesto foi reservado ao palácio da cidade do Benin, na atual Nigéria, em 1897. Essa série de roubos não ficou restrita ao século XIX. Ainda em 1924, um jovem rapinador francês foi condenado por haver subtraído baixos-relevos a um templo no Camboja, para vendê-los no mercado negro. Poucos anos depois, ele se revelaria como um dos maiores romancistas do século XX: André Malraux. O mesmo Malraux terminaria sua carreira como o mais notável Ministro da Cultura de todos os tempos e como uma das estrelas do gabinete de De Gaulle (além de um entusiasta das artes então ditas “primitivas”).
Apesar de terem como fundo um passado tão pouco honroso, os atos de restituição recentes deixam questões em aberto. A presença de peças africanas, asiáticas, oceânicas ou pré-colombianas – adquiridas por meios dignos ou ignóbeis – em solo europeu contribuiu a fazer conhecer essas culturas, primeiramente, como objeto antropológico, mas também, ao longo do tempo, como portadoras de um valor humano (estético, religioso, intelectual) em nada inferior às mais altas criações dos colonizadores.
A própria arte europeia, em fins do século XIX e na primeira metade do XX, bebera em fontes japonesas, astecas, africanas e indianas, na busca por renovação. Isso equivalia a reconhecer nas criações “bárbaras” ou “primitivas” virtudes que as estéticas ocidentais desconheciam ou negligenciavam – donde a importância da “arte negra” no cubismo ou da escultura mexicana para os surrealistas. Esse poderoso influxo em sentido contrário, da periferia ao centro, não continha apenas uma poderosa carga transgressora, ao subverter hierarquias racistas e coloniais. Também concorreu ao desenvolvimento de uma consciência de humanidade partilhada, refundando-a em bases mais igualitárias.
A depender do modo como são realizadas, as restituições contemporâneas podem manter e aprofundar esse caráter universalizante, por reconhecerem no sujeito outrora colonizado uma identidade própria e uma autonomia inalienável no trato com seu legado cultural, em pé de igualdade com o sujeito outrora colonizador. Podem também, por outro lado, reforçar uma tendência inquietante do nosso tempo, a de uma etnicização da cultura, que valoriza um objeto cultural na medida em que ele é expressão de um certo modo de vida particular, preferencialmente marginalizado ou subjugado, em detrimento do testemunho de que ele pode ser portador dos poderes da criação humana em sua vasta e variegada gama de realizações.
Por isso, de maneira a radicalizar a dimensão universalizante e libertadora das nossas restituições, deve-se admitir que elas, por si sós, não bastam. Tendo na memória as violações do período colonial, uma ampla cooperação entre as nações ricas e pobres deveria organizar-se, de forma a permitir que uma infraestrutura segura e adequada se estabeleça nos países mais frágeis para acolher aquelas porções do seu patrimônio outrora saqueado criminosamente.
Também caberia questionar: por que deveria haver apenas a arte africana ou pré-colombiana ou oceânica nos museus da África, da América Latina ou da Oceania? Se pensarmos em um horizonte universal a ser construído entre os povos – quem sabe, nossa única esperança em meio a tantas guerras autodestrutivas – por que provincianizar os acervos dos museus periféricos, ao passo que o Louvre ou o Museu Britânico ou o Metropolitano têm suas belas alas sobre distintas regiões do mundo, constituindo-se em instituições “universais” e enciclopédicas? O que há nas telas de um Rubens, nas estampas de Hiroshige ou numa escultura Gupta que as tornaria menos aptas a falar ao homem africano do que os bronzes do Benin ou as máscaras Dongo? Uma utopia universalista sonharia com a possibilidade de que todos os homens pudessem tomar posse, em condições de igualdade, não apenas de sua cultura originária, mas do conjunto da experiência humana, em suas mais distintas e longínquas expressões.
Em 1953, Chris Marker e Alain Resnais realizaram As estátuas também morrem (Les Statues meurent aussi), belíssimo filme-ensaio com imagens sublimes de estátuas africanas. Tinham em mente uma pergunta provocadora: por que elas estavam num museu antropológico e não num museu de belas artes, como o Louvre? Em nossa época, poderíamos nos perguntar também, provocativamente, não apenas por que bronzes beninenses estão em Londres, mas também por que não é provável vermos um Turner ou um Van Dyck na Nigéria ou na Guatemala.
O cinema brasileiro pós-Retomada, ou seja, pós-Cidade de Deus (2002), encontrou formas múltiplas de expressão, alcançando uma pluralidade pouco vista até então. Entre as tendências mais significativas do período estavam as dos documentários e aquelas que buscavam o que Beatriz Jaguaribe chamou de choque do real. Nesse contexto, ganharam espaço as produções que faziam uso de imagens hipernaturalistas e as que apostavam nos planos longos emulando o tempo real, em uma ideia de fluxo, para repetir o termo usado por Luiz Carlos Oliveira Júnior. Mas, mesmo nesses filmes que objetivavam revelar a carne do mundo, como escreveu Jaguaribe, a intenção invariavelmente era provocar um “espanto catártico” no espectador. A realidade choca, mas sua representação pode chocar ainda mais, para certo cinema nacional do início do século XXI.
Entretanto, parece ter havido um momento em que nem o espanto dava conta de representar o vivido. Notadamente a partir da virada para a década de 2010, ganharam corpo vertentes de reflexão sobre o real a partir do irreal. Filmes como A alegria (de Felipe Bragança e Marina Meliande, 2010) e Trabalhar cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011) despontaram abrindo caminhos imediatamente percorridos por outros cineastas e núcleos de produção adeptos da distopia como ferramenta para pensar a realidade. Como se, depois do hiper-real, depois do fluxo que se aproximava ao real, depois do choque, apenas o absurdo fosse suficiente para retratar o país e o mundo hoje.
Isso para parte do cinema nacional, evidentemente. Mas parte significativa. Tanto que, aos poucos, essa vertente foi se mostrando multifacetada, com projetos estéticos bem distintos entre si, dos longas-metragens de gênero, como o musical Sinfonia da necrópole (Juliana Rojas, 2014) e o terror Morto não fala (Dennison Ramalho, 2017), os dramas com apelo fantástico, tal qual A febre (Maya Da-Rin, 2018), e os títulos de caráter ensaístico ou experimental, a exemplo de Riocorrente (Paulo Sacramento, 2013).
Nesse conjunto, chama atenção Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014), um filme que tem a realidade chocante como ponto de partida na conformação de um imaginário distópico. O pressuposto é o de um documentário: personagens reais convivem com as sequelas das agressões sofridas alguns anos antes em uma festa de black music na qual policiais, em uma batida, mandaram os brancos deixarem o local antes de espancar os negros presentes (o título do filme é a citação literal da ordem de um desses policiais). Contudo, na sucessão de acontecimentos da trama, em uma mudança surpreendente com relação à premissa, a narrativa acaba por incorporar elementos da ficção científica. Enquanto acompanha a vida de Chockito (que perdeu uma perna na ocasião e passou a ganhar a vida como artesão, usando sucata para produzir próteses para outros mutilados) e Marquim da Tropa (que ficou paraplégico e, como DJ, revisita o trauma fazendo música), o diretor também apresenta ao espectador Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), sujeito que vem do futuro em busca de provas das atrocidades cometidas pelo Estado contra excluídos. Não há discrepâncias nessa passagem de um registro a outro, visto que o real e o delírio ficcional mostram-se ambos absurdos. E a construção visual os aproxima. A “nave espacial” de Dimas, por exemplo, é um mero contêiner, compatível com o entorno pobre, e as luzes coloridas caóticas em seu interior remetem a ambientes que nada têm a ver com a imagem de um porvir asséptico e purificado das ficções especulativas mais deslumbradas do passado. Há coerência entre a desolação material daquelas vidas e as subjetivações que essa condição produz.
Há de se considerar que é difícil compreender tamanha brutalidade. Mais do que isso, é complexo representá-la, no sentido freudiano e, também, estético. Adirley Queirós, um homem negro vivendo na Ceilândia, próximo aos seus protagonistas, encontrou uma maneira inusitada de fazê-lo, que aproxima o universo fílmico do real ao mesmo tempo que ressalta seu afastamento de qualquer lógica humanista. Quanto mais real, mais tudo aquilo parece ser irreal. É quase uma afirmação de que a realidade é a própria distopia, e vice-versa.
É interessante pensar Branco sai, preto fica sob essa chave, oito anos após seu lançamento. Por um lado, o longa se integra a um movimento de ocupação de espaços por parte de minorias e ao avanço da luta antirracista ao longo das últimas duas décadas; por outro, pode ser visto como um libelo denuncista das reações contrárias a esse movimento e a essa luta, reações estas que se confundem com a ascensão do bolsonarismo no país. A questão é que, em 2014, o bolsonarismo ainda era discreto, talvez imperceptível, se comparado às proporções que atingiu nos anos seguintes. A contundência do filme, por isso, destoa de grande parte de seus contemporâneos, mostrando-se mais próxima, nesse sentido, de produções posteriores, lançadas à medida que as denúncias de racismo e violência de Estado adquiriram maior urgência, sobretudo conforme os anos 2020 se aproximavam – e Bolsonaro chegava ao poder no país.
Um dos exemplos mais notáveis dessa “filiação”, por assim dizer, de Branco sai, preto fica se dá com Medida provisória (Lázaro Ramos, 2021). Esse filme começa em um registro realista, ainda que com atuações e encenação que lembram o falso naturalismo comum às telenovelas brasileiras, para só a partir do segundo terço da narrativa mergulhar na ideia distópica de expulsão compulsória dos cidadãos brasileiros de “melanina acentuada” rumo ao continente africano. Chama atenção, de cara, o não uso dos termos “preto” e “negro”, em um princípio de negação da raça e, consequentemente, do racismo. “Tenho empregada ‘melaninada’, até amigos assim”, afirma uma personagem branca lá pelas tantas, incorporando o discurso corrente que busca diminuir o preconceito de cor como problema social – sem se dar conta de que o está escancarando. Embora essa sofisticação do texto (a matriz é a peça teatral Namíbia, não!, de Aldri Anunciação, 2011) perca algo de sua profundidade na adaptação à linguagem cinematográfica, trata-se de um espelho rico e contundente da sociedade na qual Medida provisória foi gerado: uma sociedade que perpetua o legado de desigualdade e dominação de classe herdado dos tempos de escravidão a partir de estratégias discursivas que incluem uma falsa harmonia no convívio coletivo. Negar o racismo é um “anti-antirracismo” – disfarçado, sublinhe-se.
Outra frase do filme de Lázaro Ramos, esta proferida pelo protagonista Antonio (Alfred Enoch): “Será que a gente nota quando a História está acontecendo?”. É uma espécie de grito a defender que a distopia representa a realidade do Brasil atual. A narrativa também se conecta com episódios pontuais do noticiário recente, sendo o mais proeminente, talvez, aquele que faz a votação da aprovação da medida governamental de expulsão dos “melaninados” do país um simulacro da sessão do Congresso que terminou por afastar Dilma Rousseff da Presidência. O próprio desenvolvimento dessa proposta autoritária de expulsão do território nacional se dá com alguma semelhança do real na medida em que, inicialmente, não se apresenta como tal, e sim como um incentivo, vá lá, respeitoso – basta citar o anúncio oficial veiculado na TV apresentado ainda no primeiro ato do filme: “Seja quem você quiser, viva de acordo com sua raiz. […] Você que quer uma reparação social pelos anos de escravidão: o governo por um Brasil mais justo lhe oferece muito mais: a oportunidade de voltar para a África”. Também na ficção se pode dizer que, até certo ponto, não era possível imaginar o radicalismo de algumas ideias da extrema-direita, apesar dos sinais emitidos previamente.
Quando, em fuga, Antonio e André (Seu Jorge) berram, passos apressados e câmera na mão, que “esse vídeo é para o mundo inteiro nos ouvir: a vida no Brasil está insuportável”, eles estão fazendo um comentário que efetivamente funciona mais como comentário do real do que como construção da ficção que o representa. E isso já bem próximo do desfecho do filme, ou seja, no auge do delírio distópico. Como se a hiper-realidade outrora alcançável pela aproximação do real, via choque ou fluxo, passasse a ser acessada pelo afastamento delirante da fantasia.
Por mais que pareça controverso, por mais que seja relativo apenas à parte da produção, é assim, criando distopias, que o cinema nacional tem pensado o Brasil hoje.
Amar é um ato de descoberta. É um sentimento progressivo e expansivo; é construção e nunca determinação. Como nota o filósofo Byung-Chul Han, o eros, por meio de sua força universal, interliga o existencial, o artístico e o político e “mantém de pé a fidelidade do porvir”. Ou seja, a existência do seu amanhã jamais pode ser predefinida sem que levemos em conta a atividade e a disposição daqueles que se relacionam. Mas, como sabemos, muito do que já foi e é definido como “amor” vem da construção social de um determinado período histórico e seu contexto. O amor romântico, por exemplo, que conhecemos tão bem, vem se impondo desde o surgimento do modo de produção capitalista e a definição da propriedade privada, em que o homem se impõe à mulher e a restringe a seu domínio como forma de assegurar a hereditariedade de seus filhos e a transferência de bens pelas gerações. Muitas formas de controle e dominação dos corpos se manifestaram ao longo da história – e, é claro, também a resistência a elas.
Desde pelo menos a segunda metade do século XX, a busca pela liberdade amorosa ganhou corpo em forma de movimentos civis políticos, de medicina, de ciência e como cultura: o movimento hippie, a contracultura, o amor livre, a pílula anticoncepcional, o feminismo, Stonewall, o sufrágio universal etc. Em meio a tantos avanços, como é que amamos hoje?
Para o filósofo transgênero Paul Preciado, as ideias e formas de viver e se relacionar que emergem na vida pública com esses eventos são responsáveis por uma crise epistemológica relativa a como a sociedade passa a perceber a diferença sexual. Novas comunidades e novos tipos de famílias, divergentes do modelo heterossexual e monogâmico, tiveram um impacto sobre a educação e o comportamento das novas gerações. As discussões sobre os corpos e os gêneros entraram na pauta do dia, abrindo um leque de possibilidades não normativas para que alguém defina sua identidade. A existência e as relações têm a porta da jaula do binarismo aberta: se conheça e seja quem você quiser ser, é possível.
Ainda que uma onda conservadora venha ganhando forma ao redor do globo em pleno ano de 2022, seja através do governo ou de uma determinada religião, seja pelo conservadorismo ou pela violência, temos avanços consolidados com relação à política pública para mulheres e cidadãos LGBTQIA+. Se, por um lado, Estados tentam barrar certas ações que poderiam ser simples, como regulamentar a educação sexual nas escolas públicas; por outro, produções artísticas e culturais continuam quebrando tabus e paradigmas: séries como Pose e Sex Education; as paradas gay ao redor do mundo; a ascensão de artistas, no Brasil, como Laerte, Pabllo Vittar, Gloria Groove, Johnny Hooker, Liniker e tantos outros.
Duas dessas produções me chamam atenção para pensar o amor nesses nossos tempos de cólera. Em 2017, Hooker e Liniker lançaram a música “Flutua”, uma história de amor gay em que o verso “ninguém vai poder nos dizer como amar” ganhou enorme projeção e foi cantado inúmeras vezes a plenos pulmões. Nos muitos vídeos da música sendo executada em performances públicas, como no festival Rock in Rio, vemos pessoas emocionadas, que tomam o verso como lição ou que o tem como gatilho para situações passadas de violência física ou psicológica, bem como pessoas que apoiam a assertividade da ideia e/ou que vivem em uma bolha em que independência da escolha amorosa não é problema. É certo que a canção marcou o final dos anos 2010, e o refrão que vem do título da música transmite-nos uma sensação de leveza em contraste com as questões colocadas pelos demais versos: fluir em meio às adversidades.
Em 2019, estreou no Netflix a série britânica Sex Education, atualmente em sua terceira temporada, que aborda de forma suave e divertida os conflitos e dúvidas sexuais de adolescentes entre 15 e 17 anos, mas também de seus pais e professores. Seu enredo não se limita a abordagens superficiais sobre sexualidade e gênero, abordando mais do que o L e o G da sigla LGBTQIA+. Por isso mesmo, dialoga de forma mais efetiva com seu público real. Em uma cena da série, a personagem Ola, negra, de cabelo curto, que usa roupas que podem ser consideradas tanto masculinas quanto femininas, busca entender sua própria identidade ao ter um relacionamento hétero sexualmente frustrado e passar a ter sonhos homoeróticos com uma colega da escola. Pesquisando na internet e conversando com o personagem Adam, ela se descobre “Pansexual”. Adam, cujo estereótipo podemos definir como o do hétero padrão, passa a se descobrir como bissexual, o que mantém em segredo para sua família e comunidade, até que começa a tratar do fato publicamente. Seu histórico inclui praticar bullying contra o personagem gay e negro Eric, um garoto nigeriano que gosta de se maquiar, usar salto, peruca etc. A terceira temporada da série foi uma das mais assistidas da plataforma de streaming, com quase 900 milhões de visualizações e aprovação de cerca de 80% da crítica.
Tais números nos levam a crer que o verso cantado por Liniker e Hooker nos trazem alguma verdade: “eles não vão vencer […] ninguém vai poder nos dizer como amar”. A presença tão constante do sexo no imaginário e no cotidiano dos adolescentes da série (e, como sabemos, na vida real), que acabam se conhecendo muito mais cedo do que os adultos com quem convivem, nos leva a refletir sobre a observação de Preciado: as gerações seguintes à chamada revolução sexual não se adaptam à normatividade, pois lidam com a essência plural do amor e do ser humano de maneira mais aberta e com muito mais informação do que as anteriores. Seria a Geração Z mais apta ao amor livre? Isso é bom ou ruim? Vai acabar com a família nuclear?
O que estudiosos da questão vêm mostrando é o contrário. A psicanalista Regina Navarro Lins, autora de mais de 10 livros sobre relações amorosas, expõe em sua obra que é saudável nos abrirmos às novas formas de amar e torná-las públicas. Disso depende a felicidade de pessoas que estão casadas mas não sentem mais desejo sexual pelo(a) parceiro(a); ou que têm desejo por mais de uma pessoa; que querem viver uma experiência sexual independente do parceiro(a) ou junto com ele(a) e mais outro(a)s; que, por medo de julgamentos, acabam deixando de lado sua vida sexual e, junto com ela, o apreço pela descoberta, pela aventura, pelas novas e velhas amizades, pela autoestima e a própria felicidade. Se os modelos familiares se ampliam e são aceitos, ao contrário de sua extinção, eles ganham força. Como dizem, é nos jovens e nas crianças que nossas esperanças são plantadas, pois é neles que vemos florescer novas primaveras.
A arquitetura brasileira é uma arquitetura marcada por contrastes, tensões e imposições. Há marcos rígidos, regras e estilos que construíram cidades (e países inteiros), mas como isso opera quando o território é campo de disputa, quando o espaço é marcado – e mantido – pela colonização? Como reagimos ao fato de que as pedras portuguesas, ainda chamadas assim, constituem os calçadões ‘brasileiros’ mais icônicos?
Após a invasão portuguesa, iniciou-se a ocupação com arquiteturas de defesa. Imitando outras colônias além-mar, os portugueses povoaram o litoral com fortificações. Ao redor dos fortes, vilas se formavam em padrão ortogonal, como um tabuleiro de damas – conhecida como malha romana. São Vicente, Olinda, Salvador e o Rio de Janeiro seguiam essa lógica de forte e vila, respectivamente fundadas em 1532, 1535, 1549 e 1567.
Nas outras capitanias, centros mineradores e fazendas, o crescimento das urbes não seguiu nenhuma ordem predeterminada. Ainda no século XVI, a Casa-grande, sistema patriarcal de colonização portuguesa do Brasil, foi a lógica formal que deu origem ao maior número de cidades.
Gilberto Freyre, no prefácio à 1ª edição brasileira de Casa-grande e senzala, observou que a Casa-grande não deve ser entendida sem a relação diacrônica estabelecida com seu oposto basilar, a Senzala. Mesmo após a Abolição da Escravatura, o patriarcalismo escravocrata ainda dita a moral brasileira.
Tal afirmação pode ser respaldada pela jovem capital, elaborada pelo urbanista e arquiteto Lúcio Costa. Apesar de ter sido inaugurada em 1960, o nome Brasília foi sugerido em 1823, por José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Lúcio Costa, em seu projeto para o concurso de Brasília, o enaltece. A frase de encerramento de seu memorial diz: “Brasília: Capital aérea e rodoviária, Cidade parque. Sonho arqui-secular do Patriarca”. Ao retomar um desejo do século anterior, Costa se aproxima do modus operandi de Juscelino Kubitschek, presidente responsável pela construção da capital. Ambos conciliam passado, presente e futuro, partindo de um contexto ideológico histórico para justificar as intensidades do projeto moderno.
Em Retórica e persuasão no concurso para o Plano Piloto de Brasília, Cristiano Arrais diz que Lúcio Costa “conseguiu convencer os jurados e o próprio presidente da república, de que a sua proposta era a única possível de representar o momento histórico pelo qual passava o País. Levando-o, portanto, à vitória.”
No Museu Histórico de Brasília, o primeiro da capital, é possível ver o trecho de Lúcio Costa gravado nas paredes subterrâneas de concreto – revestidas de mármore. Mesmo local que possui uma escultura enorme, em granito, da cabeça do Juscelino Kubitschek.
As questões coloniais possuem forte aderência na construção da nova capital. Em 1957, no Relatório do Plano Piloto de Brasília, Lúcio Costa afirma: “Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial”. Também diz que seu desenho nasce do “gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.
Talvez o primeiro ato arquitetônico colonial tenha sido justamente a cruz fincada na areia, em Santa Cruz de Cabrália, no ano de 1500. 457 anos depois é fincada uma cruz na futura Brasília, a 1.172 metros de altitude, no canteiro central do Eixo Monumental. Nesse ponto mais alto da cidade, foi realizada a Primeira Missa da nova capital, em 3 de maio de 1957. Mais de mil pessoas participaram dessa celebração que marcou o batismo da nova capital.
Essa questão missionária aparece de forma institucionalizada até hoje. No site do Senado Federal, há uma notícia de que Santo italiano profetizou a construção de Brasília, ainda no século 19: “Entre os graus 15 e 20 havia uma enseada bastante longa e bastante larga, que partia de um ponto onde se formava um lago. Disse então uma voz repetidamente: – Quando vierem a escavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a terra prometida, de onde jorrará leite e mel. Será uma riqueza inconcebível”.
A vinculação com o sonho do santo existiu desde o começo da construção da capital, tanto que, após a cruz fincada, a primeira obra de alvenaria a ser erguida foi a Ermida Dom Bosco, uma pequena capela em forma piramidal, projetada por Oscar Niemeyer e localizada às margens do Lago Paranoá.
A característica ‘catequizante’ da nova capital, acaba por contrastar com a ideia de progresso. Tal paradoxo descreve a visão da época, incorporada por muitos, inclusive Lúcio Costa. Apesar do frescor modernista e da originalidade de seus projetos, o mesmo espelha atributos coloniais e tradicionais, de forma concreta e ideológica.
Um dado importante para entender Lúcio Costa: ele foi funcionário do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, cujas atividades se iniciaram em 1937, ano em que mergulha na fusão entre o moderno e a tradição. Em 1938, publica inúmeros artigos para a Revista SPHAN, na qual diz que “o engenhoso processo de que são feitas a arquitetura colonial – barro armado com madeira – tem qualquer coisa do nosso concreto-armado”. E, “assim como o mobiliário dos mestres da vanguarda moderna europeia, o mobiliário jesuítico colonial também era leve, simples, estável e, assim como suas construções, era concebido segundo as proporções humanas.”
Entretanto, partindo da ideia de que a colonização sedimentou – inclusive com concreto – moldes para o Brasil, como podemos olhar através das paredes, ou até mesmo derrubá-las? Como compreender os limites e questionar os fundamentos racializados e coloniais da arquitetura moderna brasileira? Como desfazer o sinal da cruz?
Para seguir nas interrogações, aproximo o presente texto ao ensaio recente de Paulo Tavares, intitulado com a pergunta: “Lúcio Costa era racista?”. No posfácio do livro, Roberto Conduru observa:
“Ao longo do tempo, o elogio ao colonizador foi sendo matizado no pensamento de Costa. O eco das ideias de Gilberto Freyre em sua obra teórica, a partir da década de 1930, particularmente um entendimento menos negativo da miscigenação étnica constitutiva da sociedade brasileira, é outro indício de como suas ideias se transformaram à medida em que o arquiteto se reposicionava no meio cultural brasileiro. (…) Não se pode reduzir Lucio Costa às suas visões racializadas e colonialistas. Elas fazem parte de um agente cultural complexo como a sociedade a partir da qual ele atuou. E, como tal, devem ser analisadas com rigor crítico, longe de mitificações enaltecedoras ou aviltantes. Não se deve, contudo, escondê-las, escamoteá-las ou esquecê-las. Explícitos ou implícitos, ressaltados ou silenciados, racialidade e colonialismo são fatores cruciais na estrutura social brasileira que precisam ser enfrentados em seus variados domínios, entre os quais o campo da arquitetura e de sua crítica, com vistas à construção de outro mundo, igualitário e não racializado. O ensaio de Paulo Tavares é uma interrogação necessária.”
Enquanto não arquitetamos boas respostas, que ao menos fiquemos com o vão livre de uma boa questão.
“Lembro-me como se fosse ontem que há cerca de três anos eu estava na Polônia, com temperaturas de cerca de menos 15 graus, sentado numa escrivaninha com folhas em branco, algumas tintas, uns poucos pincéis, e uma profunda crise sobre o ato e o significado de pintar. Além de uma mulher que me amou profundamente, tive a sorte de ter como companheiros os versos de Wallace Stevens, que me confortavam dizendo, numa livre tradução: “Jogue fora as luzes, as definições. Diga o que você vê na escuridão”. Mas não é fácil dizer o que se vê, muito menos na escuridão! No entanto, parecia que ele tinha escrito isso para mim, para aquele instante, reverberando até o presente momento quando do início da leitura de As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga (Shitao). A princípio, essas anotações filosóficas sobre o ato de pintar me reportaram a reminiscências da infância, quando, curioso pelos discos de meu pai, ficava muito intrigado ao ouvir Gil cantando “se oriente rapaz”. Talvez agora eu entenda um pouco melhor o que ele quer dizer com isso! Talvez muito de minha trajetória agora esteja fazendo sentido, em especial essa espécie de caosmogonia com essa matéria escura que plasma muito dos meus anseios, angústias, belezas e insurreições do espírito. Afinal, há cerca de quinze anos exploro o nanquim como principal matriz para minhas pinturas e não havia encontrado nada parecido no quadro do pensamento estético ocidental que pudesse me amparar tão vivaz, pictórica e espiritualmente como agora. Ainda não saí das primeiras páginas, ainda abismado, lendo e relendo cada palavra como se fosse um abracadabra. Até quando, não sei, mas por ora sinto-me tão forte e obstinado como uma formiga!”
(texto extraído de uma postagem de Luís Augusto no Instagram)
Bruno Cosentino – Estou vendo o cenário onde você grava as músicas que posta…
Luís Augusto – Aqui é o “terraço”. Não é nem cenário… De vez em quando eu coloco aqui um quadro para fingir que tem um cenário, mas você vê que o negócio é muito mambembe, gambiarras…
Bruno Cosentino – Mas é assim que funciona o mundo: na gambiarra. E, Luís, está tudo bem contigo?
Luís Augusto – Está tudo bem, está tudo muito bem. Tudo muito ótimo.
Bruno Cosentino – Poxa! E por que está tudo muito ótimo?
Luís Augusto – Está tudo ótimo no sentido de quando a gente encontra o nosso ritmo nos nossos afazeres e coordena as coisas e as coisas vão dando certo. Talvez seja uma visão otimista e talvez eu seja otimista mesmo. Então é isso. Trabalhando muito, focado, e vamos levando. Tá muito bom, sobretudo porque estamos com saúde.
Bruno Cosentino – E o que está dando certo?
Luís Augusto – Você sabe que eu trabalho em muitas frentes e cada uma, apesar de serem diferentes, é complementar. Às vezes escrevendo alguma coisa ou pintando alguma coisa que suscita outra. Então vou fazendo essas teias, e acho que estou num período muito bom, muito fértil, depois de um período difícil, para todo mundo, pandemia… Foi uma outra configuração com que a gente teve que se conformar, e agora estamos principiando essa abertura e acho que estou enfrentando isso de maneira bem positiva.
Bruno Cosentino – Quando você diz “abertura”, essa abertura significa o quê, principalmente? Encontrar as pessoas?
Luís Augusto – Também. Eu digo porque, agora, estou como dirigente em uma escola pública aqui em São Pedro [da Aldeia]. Fiquei dois anos sem ver os adolescentes. De repente, estou ali, no front, com sei lá quantas crianças, sei lá quantas demandas. E para mim isso também foi muito positivo. Voltar a se relacionar e estar vivo, sabe? E adolescente traz isso, né? Eles são muito vivos. Eles estão numa fase muito legal da vida, e isso transborda para a gente, e isso te dá um gás. Você chega exausto, mas te dá um gás.
Bruno Cosentino – Ficou muito claro para mim que o lance de encontrar as pessoas é o motor da nossa energia vital. A troca erótica é fundamental, a gente já sabia disso, mas durante esta pandemia fomos cobaias involuntárias desse experimento social que provou isso para mim. Quando saí na rua depois de muito tempo, só de ver as pessoas, pessoas que eu nem conhecia, só isso já me injetava um ânimo, um tesão na vida. Por isso que eu te perguntei… de ver pessoas.
Luís Augusto – É! E, por exemplo, eu tive a oportunidade de ir ao Rio [de Janeiro], ver Juçara Marçal, Kiko Dinucci, experiência de ouvir música alta… Eu saí de lá transformado, sabe? Voltei para São Pedro — uau! E eu nem lembrava de…
Bruno Cosentino – Quando você fala que está dando tudo certo, pelo que imaginei, é que você tá conseguindo fazer as conexões entre a pintura, a música, me parece que estar dando certo tem a ver com essa concentração e que estimulada por uma reconfiguração dos nossos hábitos, de poder estar novamente no meio da gente, enfim, é um pouco isso, né?
Luís Augusto – Com certeza. O fato de você experimentar o mundo traz essa experiência para o ato da sua criação artística. Seja ela econômica, social, espiritual, você está em trânsito com essas coisas todas, em devir com essas coisas todas, e, quando você para para se concentrar e produzir alguma coisa, certamente passa por essas experiências. Muitas vezes são trampolins para outras experiências. Aí, já dentro do plano estético da obra, seja em um quadro, o que você pode ver, onde é que esteve para conseguir fazer essa imagem? A partir de onde ele foi e onde conseguiu chegar com isso?
Bruno Cosentino – Você tira muitas coisas da vida objetiva para suas canções e pinturas, como “objetos achados” no mundo, ou é um processo de fantasia alimentado mais internamente?
Luís Augusto – É difícil falar sobre isso porque nós somos conexões com todas as coisas que nos atravessam. Dizer o que é o dentro e o que é o fora neste caos talvez seja até muito pretensioso. Já é difícil a gente falar “eu” — eu o quê, brother? (risos). Mas, sim, essas coisas despertam. De repente, você toca aquele acorde e fala: “Isto parece com fé!” (cantarola) e vai… A intuição também grita! Não sei (risos).
Bruno Cosentino – Luís, você, pouco tempo atrás, fez uma postagem no Instagram em que falava que estava lendo um livro. Qual era o livro? De um oriental?
Luís Augusto – Sim, o Shitao [As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga]. Eu ainda estou lendo.
Bruno Cosentino – Quero perguntar duas coisas para você sobre essa postagem. Nela, você dizia que a leitura do livro estava te ajudando a sair de uma crise criativa, e aí eu queria que você falasse que crise foi essa e o que tinha no livro que te fez tomar o impulso para sair dessa?
Luís Augusto – Sim. Você sabe que, anyway, eu sou um outsider em arte. Eu não tenho praticamente nada registrado ainda, especialmente em música, no máximo uma parceria com o [Negro] Leo, que a Ava [Rocha] gravou, que é a canção Hermética. E um registro de uma apresentação na Audio Rebel. Mas em breve nós vamos lançar um EP — lá para meados do ano, está em fase de finalização e mixagem. Mas eu tive uma vivência que me permitiu encontrar muitas pessoas ao longo da vida. E os encontros estão imersos no processo de desenvolvimento da nossa vida, o que a gente vai seguir, o que a gente vai fazer, e eu sempre fui muito ligado à arte; em alguns momentos eu me dediquei de maneira mais intensa, ou não, à produção. O ano de 2008 eu considero que foi um ano muito marcante, porque foi muito produtivo. Eu estava sob muitos estímulos também, especialmente intelectuais. Eu ainda fazia faculdade de filosofia, era estagiário no setor de antropologia.
Bruno Cosentino – Quantos anos você tinha nessa época?
Luís Augusto – 2008, devia ter uns 24 anos. E eu consegui uma bolsa no Parque Lage também. Pude estudar lá. Foi o período, certamente, em que pude produzir mais. Naquele ano, eu tinha ouvido de um professor, o saudoso João Magalhães, que para você se considerar um artista plástico, um pintor, precisava ter pelo menos umas 500 obras. E eu me coloquei a meta de fazer pelo menos 500 naquele ano. Claro, diferentes tamanhos. Mas me propus. E consegui, sabe? Eu então estava muito certo disso. Mas a gente estabelece certas certezas às quais não pode se apegar, né? Ao mesmo tempo, eu estava vivendo há quase oito anos no Rio de Janeiro, e eu sou um cara do interior, de São Pedro da Aldeia. E não parei durante esses oito anos. É como se eu tivesse saído da minha cidade uma pessoa e fui indo e não sabia mais quem eu era. Eu só estava indo. E tudo aquilo me minou. Eu lembro até do início de um livro do Paul Nizan, que foi um companheiro do Sartre na École Normale, o Aden, Arábia, em que ele começa falando assim: “Tudo ameaça um jovem de destruição, o amor, o afastamento da família”. E naquele período eu tive que voltar, por n questões. E eu pensei, sinceramente, que essas coisas iriam ficar por terra. Sei lá, filosofia, arte, eu realmente me propus a uma outra coisa que não isso. Mas o tempo foi me mostrando que não. Você fala “só uma pinturazinha hoje” (risos)… E eu adaptei muita coisa. E durante esse período eu tive que me adaptar porque eu estava no interior. Então passei a produzir imagens para a internet. Sendo que você vai sozinho durante muito tempo. É como se você fosse andando num deserto e sem poder beber água ou mesmo vivendo uma grande apneia.
Bruno Cosentino – Você ter se sentido sozinho vem do fato de que não estava mais na cidade grande, tendo contato com muita gente, é isso?
Luís Augusto – Também. Eu não sou um faquir, um anacoreta, eu sou um artista. E, poxa, você tem que pagar conta, você tem que comprar um bom pincel, um bom nanquim, um bom papel, cordas para o violão. E essas coisas foram se acumulando e você não tem muito como fugir… Claro que eu já me perguntei: “Por que você não faz NFTs?” Mas, pô, não é assim que o mundo funciona, né?
Bruno Cosentino – O que é NFT?
Luís Augusto – NFT é esse negócio de certificação digital, incluso obras de arte. Eu não estou excluindo a possibilidade, diga-se de passagem. Estamos aí abertos à oportunidade. Estou me estendendo, talvez…
Bruno Cosentino – Se estenda, Luís. Assim que vai ser bom.
Luís Augusto – Tá bom… Você está num deserto, você produz, algumas pessoas — poucos amigos seus — veem, confirmam, dão likes, OK, mas você não tem acesso ao circuito, ao mercado de arte, sabe? Mas ao mesmo tempo fui desenvolvendo uma série de técnicas para esse tipo de produção de imagem para a internet. Voltei ano passado ao Parque Lage, graças a uma bolsa ofertada pela Anna Costa e Silva, no curso “Práticas artísticas de vida”, que me ajudou muito também não só a pensar a imagem, mas tem me ajudado a pensar, digamos, performaticamente essa imagem. Tenho produzido audiovisuais, cheguei até a te mandar, não foi? Conheci uma mulher maravilhosa e nós viajamos juntos alguns anos atrás e aproveitei para visitar os museus, ver alguns dos grandes mestres, que foi um grande incentivo. Eu estava um pouco descrente. Por mais que você produza, você fica descrente. Mas, quando você vê outras obras, você começa a encontrar os diálogos do seu trabalho com isso aí. E há muito tempo eu me dedico, por mais que eu não tenha me formado em filosofia, eu me dedico aos estudos de estética, na medida do meu possível, e eu sempre tive certa desconfiança com a teologia da arte ocidental. O Deleuze fala sobre isso, sobre se sentir estrangeiro em sua própria língua, sabe? Então eu me sinto, às vezes, um estrangeiro; pensar, por exemplo, num negro brasileiro especialista em nanquim… uma ponte afro-asiática! E aí entra o Shitao. Ele é um pintor do século XVII, se não me engano, eu por acaso o encontrei, talvez porque me interesso, sempre que possível, em buscar novos ares e o Oriente, o nanquim — começa por aí, minha obra é quase toda a partir do nanquim —, e, em certa medida, as manifestações estéticas são espelhos dos cultivos espirituais de suas civilizações. E eu acho que o Shitao veio me iluminar um pouco nisso. Ele é um cara muito interessante, foi um monge de uma família de nobres, mas a família foi assassinada durante uma guerra civil ou um conflito de interesses, e ele foi colocado e criado desde a infância em um mosteiro zen. Ele se desenvolve no budismo, depois se converte ao taoismo, e ao mesmo tempo é um profundo conhecedor do confucionismo, ou seja, as três principais matrizes chinesas. Então, ele faz um tratado filosófico sobre a criação artística, que é um tratado de pintura, mas no sentido filosófico, sendo uma síntese desses três berços da matriz espiritual chinesa. E isso tem me feito olhar para a tradição, do pouco que eu vejo dessa cultura, com ainda mais respeito e humildade. Ele faz uma síntese dessa milenar tradição estética em torno do conceito de um único traço de pincel, através do qual você consegue criar ou recriar a multiplicidade do mundo. Essa é a minha interpretação. Ele destoa dos tradicionais tratados estéticos por não se ater tão somente aos aspectos técnicos, mas sobretudo aos espirituais — o que dá o sopro, insufla a criação. É muito interessante. E isso tem sido tão bom, ver um outro horizonte que não a história do niilismo, sabe? (risos)
Bruno Cosentino – Eu entendo você perfeitamente. Luís, você claramente é um artista que não pode separar o que você faz artisticamente de um desejo de espiritualidade — é o que eu entendo, e tudo que você fala me confirma isso. Queria que você falasse se é isso mesmo. Qual é a importância da espiritualidade e a conexão com a sua arte? Existe alguma filiação? Foi bonito isso que você falou, de você ser um negro brasileiro que trabalha com nanquim, que faz essa ponte inusitada com o extremo Oriente, mas, ao mesmo tempo, quando você canta e nas suas canções, tem muito blues, e aí você está evidentemente no lugar do Atlântico negro.
Luís Augusto – Minha formação foi protestante. Eu nasci e fui criado, por parte de minha mãe, em uma igreja batista, em São Pedro da Aldeia. Fui batizado, inclusive. Quando adolescente, em um momento de muita crise, eu falei: “Deus existe! Jesus está aí e eu vou me batizar”, sabe? E me batizei. Aí, tempos depois eu pensei: “Cara, não mudou muita coisa, não” (risos). A dúvida continuava, sabe? E nesse período — eu devia ter 12 ou 13 anos — decidi que eu ia fazer filosofia, porque achei que poderia ter alguma resposta em relação a isso.
Bruno Cosentino – A verdade vos libertará — pela via do conhecimento, da teologia negativa…
Luís Augusto – Tipo isso, exatamente. E eu não sei… na verdade, talvez eu esteja até mais perdido… mas a questão da espiritualidade ou pelo menos a maneira como a gente lê a fé, a crença… Como falar isso? Eu não sei qual pensador fala que Deus está em todas as coisas ou há um sopro de Deus em todas as coisas, algo do gênero. E me é muito peculiar quando eu me dedico a ler algo, seja um poema, seja um texto sufi, seja um santo cristão; independentemente da crença ou da forma como isso se manifesta, a partir do momento em que você é capaz de partilhar aquilo com o mínimo de simpatia, é possível você alcançar aquilo… Talvez tenha essa ideia de vasos comunicantes. Esses vasos se comunicam. A gente, quando fala de espiritualidade, parece que tá esquecendo o corpo, especialmente quando a gente pensa nessas coisas materializadas, seja uma canção ou uma apresentação… “Ah, o Luís se manifesta com o corpo daquela maneira”, sei lá. Digo isso porque tenho fé na vida. E, a cada momento que a gente tem consciência disso — quando não é levado por uma certa mecânica, a qual nos aliena da percepção da vida pulsando, da liberdade que nos é ofertada a todo momento, da possibilidade de compartilharmos mais afeto —, tudo isso eu acho que é envolto nessa espiritualidade, porque espiritualidade é uma prática, não é uma crença. Ela pode até vir junto da crença, mas é antes de tudo uma prática. Por isso você encontra ateus bons. Por isso você encontra evangélicos filhos da puta. Não que todo evangélico seja filho da puta ou que todo ateu seja bom (risos).
Bruno Cosentino – E como essa espiritualidade se manifesta esteticamente nas suas canções e pinturas?
Luís Augusto – Por exemplo, eu lembro que pude fazer um estágio voluntário no Jardim Botânico, com a Fátima Gil, uma mulher incrível. Ela me recebeu com entusiasmo e carinho, e a gente passeava pelo jardim conversando sobre um autor chamado Rupert Sheldrake, um biólogo e filósofo que defende uma tese sobre ressonâncias mórficas, que seriam, digamos assim, o aparato pelo qual há a chamada morfogênese, o nascimento das formas. Então, alguma coisa só nasce a partir do momento em que há um campo que nutre aquela forma. Se você pensar platonicamente, há uma ideia e você necessita de um campo no qual ela se materializa naquela forma — não é apenas no campo biológico. No caso do nascimento de uma planta, o desenvolvimento, a modificação a partir do momento em que há um elemento aleatório, que, uma vez que surge, faz com que haja a possibilidade de se reproduzir, se replicar e dar origem a um outro modo do ser. No caso da pintura, muitas vezes elas são informes, não têm forma, mas sugerem possibilidades. E eu acredito estar justamente como um médium desse ambiente, desse meio ambiente.
Bruno Cosentino – Quando você fala do traço do pintor, de um único traço em que você reconhece numa unidade a diversidade, ou quando você fala de encontrar as formas que geram outras formas, isso me soa como a busca por um rito que reinstaure, a cada repetição — e você falou da importância da prática, de fazer 500 pinturas —, a unidade mítica da origem, a partir da qual são geradas as diferenças. A espiritualidade da qual falamos, que eu acho que tem a ver com essa unidade na diversidade e passa pela natureza e por suas formas exuberantes, cores, etc., mas também pela igual exuberância das pessoas, de cores, formas, personalidades, sentimentos, complexidades e tudo mais. E esta é a minha segunda pergunta em relação àquela postagem. Você diz que estava ali pintando, lendo o livro do Shitao, na Polônia, acompanhado de uma mulher que te amava. Qual a importância de se sentir amado por uma mulher?
Luís Augusto – Na verdade, a viagem foi três anos atrás e o encontro com Shitao foi neste ano, mas a recepção de sua obra, que ainda estou lendo (risos), me reportou aos sentimentos de incerteza que me assombravam durante a estadia na Europa e as perspectivas que esse autor tem nutrido em mim. Deixa só eu responder uma coisa que você falou do retorno a essa unidade. Não está somente no retorno a esse uno, mas no sentido mesmo da repetição como prática da diferença, até porque eu desconfio que haja uma espécie de evolução criativa. Talvez haja rastros de diferença desse uno. Enfim, quanto à presença do amor, é fundamental, no sentido de que eu sempre fui uma pessoa muito só, apesar dos muitos amigos. E ter esses momentos é de muita alegria e regozijo. Você me perguntou da importância do amor da mulher, mas eu digo que não é só no sentido sexual, mas da relação com o feminino. Se não me engano, é Lucrécio que fala que o deus da guerra… Você espera só um minutinho? [Vai buscar algo] Perdão, é porque essa referência é genial, tem a ver com essa questão — “Faze, entretanto, que por mares e por terras, tranquilos se aplaquem os feros trabalhos militares; só tu podes obter para os mortais a branda paz, visto que é Marte, o senhor das armas, quem ordena esses feros trabalhos de guerra, e é ele quem muitas vezes se reclina em teu seio, vencido pela eterna ferida do amor, e erguendo os olhos para ti, inclinando para trás a nuca roliça, fica deitado como que suspenso de teus lábios, e apascenta de amor seus olhos ávidos. E tu, ó deusa, enquanto ele repousa, o enlaças com teu corpo sagrado, soltas dos lábios tuas doces palavras e pedes para os romanos, ó cheia de glória, a plácida paz.” Isso é Lucrécio [Da natureza das coisas], muito bom. O feminino é uma outra perspectiva dentro de um mundo absolutamente estruturado no viés patriarcal, e essa percepção só é possível quando você consegue enxergar essas potências, esse aprendizado que o feminino traz. E a isso eu sou muito grato, pelo amor que eu cultivei e do qual eu colhi.
Bruno Cosentino – Eu me identifico muito com tudo que você fala, Luís, além de gostar das suas pinturas e canções e da sua performance. Afora isso, me sinto identificado com o seu jeito de pensar e estar no mundo. Você já falou aqui um pouco da ponte Brasil-África-Oriente que você é. Pensando nesse cosmopolitismo que você encarna, muitas de suas canções são em inglês. Você também sabe pronunciar como um francês falaria. Qual é a sua relação com as línguas estrangeiras? Você ouviu esses caras cantando inglês, você aprendeu, estudou?
Luís Augusto – Inglês eu estou estudando até hoje. Quando era adolescente, adorava o rock, e me intrigava não poder saber as letras. Eu tive o inglês da escola, mas é uma outra coisa. Por n motivos — tanto sociais, quanto… — eu não consegui. E eu sempre tentei correr muito atrás. O francês era mais fácil. Eu não sei falar, mas eu consigo ler, principalmente literatura filosófica, em que os termos são mais enxutos. No romance, eu não me atrevo. Victor Hugo, não! E falo espanhol, não bem, e leio espanhol e pratico atualmente. Eu descobri um site muito bom chamado Conversation Exchange, em que você troca línguas: a pessoa sabe uma língua e quer aprender a sua. E eu estou numa dessas. Então, tenho treinado. E o meu inglês foi isso… Eu sempre tive uma admiração pela língua, até por conta do imperialismo do qual fomos assaltados — desculpe, mas sou fruto disso. E uma coisa engraçada era que, pelo fato de eu não saber, quando comecei a ter uma base um pouco melhor, comecei a construir as canções, porque na minha cabeça eu às vezes tinha certas melodias que cabiam melhor em inglês, e começou a ser uma prática, de estudar e desenvolver algo que eu conseguisse realizar. E eu tenho, na verdade, hoje, me dedicado um pouco mais até às canções em português. Eu falei: “Poxa, daqui a pouco vão me chamar de vendido”. O cara nem começou e já se vendeu, sabe? (risos) Mas é porque eu acho que são dois modos de composição muito diferentes. Eu adoro línguas e eu tento encontrar a minha música naquela língua.
Bruno Cosentino – Quem você ouviu muito, seja brasileiro ou estrangeiro, que você fala: “Porra, isso está em mim”?
Luís Augusto – Certamente, Jimi Hendrix; Gilberto Gil, com toda a certeza; Negro Leo, não só pela música, mas pelo que vivemos juntos, de amizade; uma cantora que me marcou muito, que eu ouvi pouco, mas ouvi muito um disco dela, que me fez pensar: “Caracas! Isso também é cantar!”, Yoko Ono, aquele disco Fly, muito, muito maneiro; e Noel Rosa.
Bruno Cosentino – Você falou que, apesar de ter ouvido pouco Yoko Ono, ela te marcou bastante. Eu quero saber o seguinte… Eu tenho uma relação com a arte de experimentação formal sempre muito decisiva; no entanto, não é aquilo que eu vou ouvir diversas vezes na minha vida. Pelo contrário. Existe até uma lógica inversa. Aquilo que eu vou ouvir muito, com o que vou ter uma relação vertical, será a arte muito bem acabada formalmente, mas que não pese a mão na inovação ou experimentação ou que não seja de vanguarda, para usar esse termo mais antigo. Para você, isso faz sentido?
Luís Augusto – Pois é, especialmente com música, talvez. Depende muito do meu humor. Especialmente de humor para criar. São raras as vezes em que eu paro para ouvir música apenas. Mas eu geralmente produzo em função da música. Às vezes, música clássica, coisa que eu ouço muito, para leituras, ou então para pintar. É praticamente certo que eu esteja ouvindo algo quando eu pinto. Eu sempre ouço música. É uma relação muito viva.
Bruno Cosentino – Eu percebo que no seu processo criativo estão bem presentes duas forças: o improviso e a construção. Como se dá a tensão entre essas duas forças?
Luís Augusto – Elas são complementares. Mas é uma questão de energia também. Qual é o grau de energia com que você está? Às vezes, eu termino de cantar uma canção e fico ainda uns cinco minutos pulando, aconteceu alguma coisa ali… A questão é fazer esse negócio acontecer. Claro que, em uma canção, você precisa de um tempo para experimentar palavras, você tem aquele jogo de “isso vai encaixar, não, volta, vamos lá”. Mas você tá ainda nesse exercício do transe. Eu não descarto a questão do transe, do ritual; no meu caso é vir aqui, sentar nesta cadeira, estendo um braço está meu violão, estendo o outro está meu pincel, e qual é a energia daquele dia também? É nela que eu vou fluir. E tem coisas no processo que eu me censuro: “Não é por aí que eu quero ir”. Às vezes você coloca uma palavra e pensa: “Vou ser mal interpretado, não é isso”. Você vai percebendo e vai dando a forma até o momento em que você diz: “É isso, não tem mais como. Lavo minhas mãos!”
Bruno Cosentino – E esse disco que você gravou na [Audio] Rebel, fala dele.
Luís Augusto – Esse é um disco que junta algumas das minhas composições desses últimos 10 anos, praticamente. Tem a produção do Bernardo [Oliveira], do [Negro] Leo e dos músicos que me acompanham, do [Eduardo] Manso, do [Renato] Godoi, do [Felipe] Zeni; os caras fazem tudo. E tem também o Vovô Bebê e o Felipe Ridolfi. O nome do projeto é Amefrican Grunges. É um disco de rock. Foi gravado na Audio Rebel semanas antes da pandemia. Nós tínhamos uma perspectiva, e o disco está agora ganhando forma dentro dessa temporalidade. Foi um dos momentos mais radicais da minha vida. Foi quase como entrar num Boeing e decolar. Os caras são muito bons e foi uma experiência incrível, além de ter sido a primeira vez que eu fui pro estúdio. O engraçado é que tínhamos feito dois ensaios, sexta e sábado, e sentamos a pua na segunda, terça e quarta para gravar. Eu gritei horrores no sábado e fiquei sem voz. Então, foi uma loucura! Chegou domingo, e de dois em dois minutos eu aplicava própolis na garganta. Acho que o resultado vai ficar bem legal. Tem uma sonoridade bem única e os meninos são incríveis. Em meados do ano deve estar saindo pelo selo do Quintavant [QTV].
Bruno Cosentino – Eu queria voltar em um lance. Eu lembro que, quando você fez a capa do meu disco, você foi lá em casa, a gente conversou bastante, e você me disse que estava fazendo um corre de mostrar as suas pinturas para algumas galerias. E, no início do nosso papo aqui, você falou que é um outsider e que a questão do mercado de artes é complicada. Sabemos que o mercado nada tem a ver com o fazer artístico e tampouco é sua função principal avalizar ou legitimar a qualidade da produção — ainda mais no mercado de artes, em que a especulação mercantilista come solta. Eu quero saber de você o que deu daquela sua investida nas galerias? E outra coisa: quanto estar fora do mercado de arte te afeta?
Luís Augusto – Uma questão: o que eu tenho de divulgação do meu trabalho deve-se principalmente à música. Foram capas de discos que eu fiz, entendeu? Praticamente isso. Capas para você, para o Chinese Cookie Poets, para o Negro Leo e para o Vovô Bebê. Participei no máximo de uma coletiva no Parque Lage, de serigrafia, em 2008, e participei dessa do ano passado, do Parque Lage, dos alunos.
Bruno Cosentino – Você também fez o cenário do Chinese Cookie Poets [banda formada por Marcos Campello, Felipe Zenícola e Renato Godoy].
Luís Augusto – Fiz o cenário e fiz um cenário também pro Leo, lá no Odeon… ficou bem bonito! Minhas aparições no campo foram essas. E, de fato, tentei. Eu tinha uma pessoa que conhecia o campo e me conduziu a ir falar com algumas galerias. E não deu em nada. Não sei como é, mas não foi. Ou seja, nem quando eu tinha as costas quentes… Então, participar você quer participar, no sentido de que você quer escoar as coisas. Você quer que vejam, que discutam. Você acha que tem alguma coisa para dizer, para além de ficar fazendo post no Instagram para os seus amigos. Legal, os seus amigos gostam de você, parabéns! Mas a gente tá falando de encontrar outras pessoas. Quero poder encontrar um público, ouvir o que as pessoas têm a dizer sobre aquilo. E você precisa divulgar. Não é só uma questão de vaidade, no sentido de: “Aí, vou fazer um nome e vender obras a 100 milhões de reais!” Não se trata disso. Tanto é que eu continuo a produzir, apesar disso. Eu não sei qual o critério.
Bruno Cosentino – Você não sabe o critério?
Luís Augusto – Eu realmente não sei, mas, que tem, tem. Não é claro.
Bruno Cosentino – Eu concordo com o que você disse. O desejo de escoar o que a gente faz para um público numeroso ou que pelo menos vá para além dos amigos também obedece para mim a uma função religiosa da arte. O Tolstói tem uma definição de arte que eu acho bonita. Ele diz que a arte é como se fosse uma língua, mas, diferente das palavras, que usamos para comunicar ideias, a arte comunica sentimentos e sensações. E ele diz que, por isso, quanto maior o contágio — isto é, a quanto mais gente chegar —, mais êxito terá a obra. A tensão acontece porque esse desejo, muito genuíno, de partilhar o que se faz é um desejo que passa pelo contexto comercial de economia de mercado, cujos preceitos são outros — inclusive, e cada vez mais, por uma questão sociológica forte, dos contatos, do networking, dos feats, etc.
Luís Augusto – Claro que uma das coisas que me prejudica muito é o fato de estar no interior. Porque uma das dinâmicas é você ir às galerias, vernissages, você aparecer e se apresentar. Tem essa coisa do presencial, que com a pandemia deu uma desterritorializada. Agora as pessoas estão revendo esses espaços tanto físicos quanto virtuais. Então se deve também a isso, à distância, eu não posso negar. Eu estou em São Pedro da Aldeia, na região dos lagos.
Bruno Cosentino – La cena soy yo [risos].
Luís Augusto – Eu não posso dizer que eu conheço todo o mundo, mas não é tão grande.
Bruno Cosentino – Luís, obrigado, adorei falar contigo.
Aquilo que é visto socialmente como lixo, para muitos é subsídio de sobrevivência ou criação artística. Impulsionados pela grande crise argentina de 2001, quando a pobreza e o desemprego atingiram patamares nunca vistos naquele país, o escritor Washington Cucurto e os artistas visuais Javier Barilaro e Fernanda Laguna criaram em 2003 o projeto Eloísa Cartonera. Em meio a um cenário no qual inúmeros argentinos saíram às ruas para recolher papelão e outros materiais descartados, Eloísa Cartonera iniciou uma editora de livros com capas feitas de papelão coletado, vendidos a preços populares.
Eloísa Cartonera tem como política a aquisição do papelão diretamente de cartoneros/as — em portuguêscatadores/as — por um preço superior ao que seria pago pelo posto de coleta, a fim de transformá-lo em livros de poesia, contos, drama, literatura infantil, novelas e peças de teatro. As capas são pintadas à mão, uma a uma, tornando cada livro único. Os/as cartoneros/as, além de serem responsáveis pela matéria-prima do trabalho, são incentivados/as a pintar as capas e a criar seus próprios livros.
Em um país com uma economia dilacerada, Eloísa Cartonera insurgiu da destruição enquanto potência ativa para a vida. Uma potência que se alastrou mundo afora, chegando hoje a cerca de 300 Cartoneras situadas sobretudo na América Latina. Cabe mencionar que muitos desses coletivos editoriais funcionam de forma intermitente, sendo que aproximadamente dois terços do total se encontram em plena atividade.
No Brasil, o primeiro projeto de uma editora Cartonera foi iniciado em 2007 com o nome de Dulcinéia Catadora, após dois meses de trabalho colaborativo entre a artista e escritora Lúcia Rosa, o catador Peterson Emboava, que atualmente trabalha como fotógrafo, come integrantes do Eloísa Cartonera, durante a 27ª Bienal de São Paulo. Diferentemente dos demais coletivos, que seguem a se nomear por um nome próprio, geralmente feminino, acompanhado de “Cartonera”, Dulcinéia Catadora adota a tradução do espanhol para a língua portuguesa, a fim de trazer maior identificação com os membros do grupo.
Desde 2010, Dulcinéia Catadora tem como base de trabalho a Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis do Glicério (CooperGlicério), localizada embaixo do viaduto Paulo VI, na região da Sé, centro de São Paulo. O projeto se destaca entre as Cartoneras por realizar todo o processo editorial dentro de uma cooperativa e ter catadoras como a maioria de seus integrantes. Outro diferencial é a publicação de livros de artistas. Entre os autores publicados estão escritores como Plínio Marcos, Alice Ruiz e Manoel de Barros e artistas como Fabio Morais, Lúcia M. Loeb, Paulo Bruscky, Elida Tessler, Roger Colom e Thiago Honório, além das próprias integrantes do coletivo.
Grande parte do conteúdo dos livros publicados por Dulcinéia Catadora, como em muitas outras editoras Cartoneras, tem seus direitos cedidos por seus autores, que ganham 10% dos livros feitos,; de forma que isso também corrobora para que seu valor comercial siga muito abaixo do mercado. É certo afirmar que os livros de artistas são vendidos a preços irrisórios, ainda mais quando comparados aos valores comercializados pelas galerias de arte. “Isto é, o livro leva uma capa de papelão, muitas vezes apresentando conteúdo contestatório. Há a finalidade de ser acessível, pois queremos alcançar a maior quantidade possível de pessoas. O livro não foi feito para entrar no circuito da arte, para pertencer a colecionadores. Não é essa a intenção”, comenta Lúcia Rosa.
Sem passar por nenhuma mediação, os livros são vendidos em feiras de impressos ou diretamente, por membros da Dulcinéia Catadora. O valor das vendas é essencial para a complementação de renda dos/as catadores/as. Atualmente, o projeto tem participação ativa de Andreia Emboava, Maria Dias da Costa, Eminéia dos Santos, Maria Silva e Ágata Emboava, que trabalham diariamente na reciclagem, e Lúcia Rosa. De 2007 até hoje, foram publicados 142 títulos, com tiragem média, de 50 a 100 unidades. Por alto, o projeto já vendeu mais de 15 mil livros, a maioria deles a 15 reais.
Além de publicar livros, Dulcinéia Catadora trabalha com outras linguagens artísticas, como, por exemplo, performance, instalação e instalação urbana. Já realizou projetos no SESC Pompeia e na Casa das Rosas, em São Paulo, bem como participou de coletivas no Museu de Arte do Rio (MAR); Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia (MuBE), em São Paulo; Casa do Povo, também na capital paulista; Museu Murillo La Greca, em Recife; e Museu de Arte Contemporânea de Niterói, entre outros. Em 2018, Dulcinéia Catadora participou do projeto Cartonera Publishing, e seus livros, encontrados em inúmeras bibliotecas dos Estados Unidos e de outros países, passaram a integrar o acervo das bibliotecas de Londres e Cambridge, na Inglaterra. É importante ressaltar que não apenas os trabalhos do coletivo circulam por esses espaços, mas também seus membros.
Concomitantemente à produção editorial e artística, temos uma atuação das Cartoneras na área de educação e formação de novos coletivos. Da mesma forma que o coletivo paulista surgiu após um trabalho colaborativo com Eloísa Cartonera, muitos grupos — como Catapoesia (MG), Severina Catadora e Mariposa Cartonera (PE) e Kuvaninga (Maputo, Moçambique) — foram criados após oficinas ministradas por Dulcinéia Catadora. Assim como sugere Walter Benjamin no ensaio O autor como produtor (1934), a lógica Cartonera faz com que catadores/as se tornem produtores/as de novos/as autores/as catadores/as e autores/as de sua própria obra literária e de arte.
Notam-se, então, alguns “desvios” desencadeados por aquele papelão que em um primeiro momento é lido de forma equivocada e simplista como lixo: 1) papelão descartado entra para o circuito da literatura e das artes visuais; 2) os/as catadores/as atuam como artistas, escritores/as, editores/as e oficineiros/as; 3) os livros são vendidos por valores acessíveis; 4) o projeto gera renda para uma das classes mais vulneráveis de trabalhadores autônomos; 5) os/as catadores/as circulam por ambientes previamente negados à sua condição social; 6) é construído um ciclo de emancipação da produção, em que o/a autor/a é produtor/a de novos/as autores/as.
Por fim, “para além de forjar trilhas alternativas que veiculam a produção literária contemporânea, absorvendo escritores não inseridos no mercado editorial”, como menciona Lúcia Rosa, é lindo ver como as Cartoneras conseguem transformar a destruição em arte e potência de vida.
Na cabana com quarto, sala, cozinha, cabana cujo aluguel consome dois terços da minha renda mensal, às margens do lago Rixdorfer, das ovelhas e das pombas, dos traficantes africanos sem acesso ao mercado de trabalho e das águias de pedra, eu deito as folhas do jornal na mesa, leio sobre plebiscito em que 56,4% dos eleitores de Berlim decidiram expropriar conglomerados com mais de 3 mil apartamentos e casas. “Esta é a nossa cidade, é a nossa casa”, reclamam locatários e organizadores da iniciativa pela “ressocialização” da moradia em Berlim.
Eu fecho o jornal. Olho a pilha de livros na mesa. No topo está Walden, e, na abertura do texto, o indiciamento de Henry D. Thoreau à sua época, quando o “pobre homem civilizado” devia trabalhar metade da vida para comprar casa que pudesse chamar, legalmente, de sua. O homem selvagem vive em choupana modesta, mas pelo menos é sua choupana, sua propriedade — sem contrato de aluguel, fiador, reajustes conforme inflação. Progresso? As casas melhoraram, mas não os habitantes das casas, ainda aprisionados em “opiniões sobre si mesmos” e em práticas sociais irrefletidas. Thoreau se cansou da sociedade, de suas convenções, e foi viver no bosque.
Por dois anos, dois meses e dois dias, Thoreau viveu mais precisamente em Walden, perto de águas verdes e azuis, esquilos e corujas, pinheiros e mirtilos, numa cabana que ele edificou, por menos de 29 dólares (sem correção monetária), telhas, reboco, “com um sótão e um armário, uma janela grande de cada lado, dois alçapões, uma porta e uma lareira de tijolos no lado oposto”, e três cadeiras: “uma para solidão, duas para amizade, três para sociedade”. Thoreau não se isolou na natureza (ele construiu a cabana perto da família, no terreno de Ralph Waldo Emerson): ir ao bosque, in the woods, significava dar passo atrás, ou adiante, a uma “civilização exterior”. Significava observar, emancipar-se de condições dadas, pensar, viver desperto, alerta. Construir a casa significava obedecer “às leis do seu próprio ser” — e, se preciso, desobedecer a leis que prescrevem votar, mentir, bajular, sabujar vizinhos para vender sapatos, apólice de seguro, casas arquitetadas por gerentes de banco e outros gerenciadores da vida alheia.
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Na pilha de livros, está ainda Asorigens do totalitarismo, obra na qual vivi por anos, meses, dias, e Hannah Arendt alertou sobre o “perigo de que uma civilização global, universalmente inter-relacionada, possa produzir dentro de si bárbaros ao forçar milhões de pessoas a condições que, apesar de todas as aparências, são condições de selvagens”. O perigo era que essa civilização se expandisse tanto a ponto de não restar nenhum canto “incivilizado” aonde fugir, onde se refugiar. Essa civilização de nacionalismos, imperialismos, totalitarismos ejetou humanos de suas fronteiras, colocou-os em rotas de fuga, campos de trânsito, guetos, dizimou-os não pela intenção maligna deste ou daquele governante, mas pela essência mesma de políticas geradoras de “seres humanos nus” — sem casa, sem proteção governamental, sem direito a asilo.
Com as sociedades de apátridas, “associais”, displaced, o projeto civilizatório passou do “mal-estar” ao não-estar. Assim, em face aos abismos abertos em 1939, 1941, 1945, ao deslocamento e desaparecimento de milhões, Arendt pediu novas leis e novos princípios, e buscou novos exemplos para reestabelecer a decência humana. Um desses exemplos era o pária. Membros da minoria europeia “por excelência”, párias como Heinrich Heine e Franz Kafka tinham começado “emancipação por conta própria”, sem ideologias, dogmas, programas revolucionários predefinidos — sua revolta era fundada em “seus próprios corações e mentes”.
Os párias pressentiram forças mortificantes de suas épocas, enxergaram as “correntes subterrâneas” (Kafka) e sentiram o “cheiro do futuro” (Heine). Profetas negativos de “tempos sombrios”, acusaram, artisticamente, a censura, os livros queimados (prelúdio a pessoas queimadas), a aliança entre racismo e burocracia em violência jurídica operada por “ninguém”, guerra, deportação e outras “selvagerias” politicamente organizadas. E pensaram, e falaram sobre a ansiedade apátrida. “Quem não tem pátria”, Kafka escreveu a Milena Jesenská, “tem de pensar o tempo inteiro em buscá-la ou construí-la”, pensar sobre estabelecer residência em Praga, Berlim, Tel Aviv, onde for, desde que se possa viver como escritor ou garçom numa polis onde pessoas não sejam pisoteadas como baratas.
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Na cabana em Walden, perguntando-se sobre as “leis essenciais da existência humana”, Thoreau afirmou, entre elas, “alimento” e “abrigo”. Então, se comer e ter um teto para descansar são — ou deveriam ser — condições humanas básicas, como podemos apoiar sociedade cuja maioria não possui título de propriedade, onde se ingere açúcar demais ou calorias de menos, afixa-se placa de “Proibido Entrar” em florestas frutadas, arregimentam-se vidas para invadir e morrer no México, açoitam-se costas cansadas pelo trabalho forçado em plantações de algodão e promovem-se guerra e escravidão com impostos públicos?
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Ano passado, eu fui a bosques e pedras polidas da Croácia participar de seminário intitulado A condição desumana, em que falei sobre a capacidade do pária de captar “correntes subterrâneas”, usar o nariz para “cheirar desumanidade” — e não apenas “dispensar catarro”, como Joseph Roth disse de escritor exilado em Paris nos anos 1930. Na apresentação, eu me lembrei das sessões por Skype com Fred Dewey, no início da pandemia, quando líamos A marcha Radetzky e deliberávamos sobre como resistir ao “espírito do tempo” e, se possível, acusá-lo. Quando eu falava em Hegel e “complexidade”, Fred protestava: “Não é simples? Quem quer beber água intoxicada, quem quer despejar bombas ou ter bombas despejadas sobre si?” Quem quer dormir em estacionamento, endividado, barraca sob a ponte, comunidade costeira ameaçada pelo nível de oceanos, quem quer morar em casa prestes a desabar?
Não é simples? “Simplifique, simplifique”, Thoreau propôs. Com isso, ele — não um ermitão apolítico, talvez um pária voluntário — iniciou sua jornada “extra-vagante”, pôs-se a vagar por casa e vida liberadas de pressões sociais. Era como se o livro da experiência em Walden, o diário da casa, dissesse aos visitantes: não seja uma função profissional, vá ao bosque e escute a linguagem pré-metafórica do vento, neve, sol (“estrela da manhã”), das formigas. Escute o lamento silencioso de escravos, de índios mortos. Discipline o olhar, perceba “a extensão infinita das nossas relações”. Pegue emprestado um machado, construa sua cabana, ocupe prédio abandonado, funda comunidade onde se transacionam beecoins. Desobedeça a Estados escravistas e militaristas, retire apoio a práticas que você considera injustas. Pense no corpo, na coruja, no oceano, na cidade, na cidade no outro lado do oceano, pense em você e no conceito de humanidade como casas que precisam ser edificadas, protegidas, governadas e, de tempo em tempo, despertadas por rebeldes.
Publicada em outubro de 2021, a obra Banzeiro òkòtó, da jornalista gaúcha Eliane Brum, nos conduz a uma profunda reformulação das concepções de corpo, natureza e futuro. Já na escolha do título, Eliane nos convida, ou melhor, nos impõe através da linguagem a nos afastarmos do óbvio.
Segundo os povos do Xingu, banzeiro é o trecho mais perigoso e desafiador de um rio. Banzeiro seria um ponto de onde nem sempre é possível voltar — o ponto de não retorno. Encarar o banzeiro é se lançar na incerteza. Já òkòtó é uma palavra de origem ioruba, que representa um caracol que se move em espiral — o sem fim.
A narrativa apresentada pela autora é repleta de depoimentos, relatos próprios e vivências extremamente palpáveis, físicas. Utilizando as palavras da própria Eliane, “a Amazônia literaliza tudo”. A partir das conexões sensoriais com a Amazônia, a jornalista nos permite assistir à reconstrução de sua própria existência. Curiosamente, essa reconstrução não se deu a partir do campo teórico-acadêmico; é através de seu próprio corpo que nasce o entendimento de que este e a natureza ao seu redor são indissociáveis.
Essa indissociação entre a humanidade e a natureza está na base da construção de saberes ancestrais não ocidentais, como os dos povos indígenas e africanos. Esses saberes datam de muito antes da invasão deste território hoje chamado Brasil. São culturas que nascem com e da terra.
Em diálogo com a perspectiva dos povos amazônicos que costuram toda a obra, trago o exemplo da filosofia dos povos Bantu, que compõem o sangue que corre nas veias de grande parte da população deste país.
Henrique Cunha Júnior, pesquisador e professor titular da Universidade Federal do Ceará, descreve em seu artigo NTU a maneira como os povos Bantu compreendem as correlações entre humanidade, comunidade e natureza. Ele diz:
“NTU é o princípio da existência de tudo. Na raiz filosófica africana denominada Bantu, o termo NTU designa a parte essencial de tudo que existe e tudo que nos é dado a conhecer a existência.
A população, a comunidade, é expressa pela palavra Bantu. A comunidade é histórica, é uma reunião de palavras, como suas existências. No Ubuntu, temos a existência definida pela existência de outras existências. Eu, nós existimos porque você e os outros existem; há um sentido colaborativo da existência humana coletiva. A organização das línguas Bantu reflete a organização de uma filosofia do ser humano, da coletividade humana e da relação desses seres com a natureza e o universo.“
Para compreender a complexidade da floresta é preciso praticar NTU. É preciso se sentar para aprender com os mais velhos, e não me refiro apenas aos anciãos: me refiro a comunidades inteiras que, geração após geração, mantêm viva a sabedoria milenar de escapar do banzeiro e construir o futuro.
O corpo
Temos empregado o termo “desconstrução” para definir o movimento de ruptura com paradigmas político-sociais engessados e ultrapassados para a busca de uma evolução. Como uma cobra que troca de pele ou uma lagarta transmutando em borboleta, temos também o poder da mudança através da destruição do antigo corpo.
A partir de sua experiência com os povos indígenas, quilombolas e comunidades ribeirinhas da região Amazônica, sobretudo de Altamira, no estado do Pará, Eliane se desconstrói, mas não apenas dos valores e convicções adquiridos durante toda uma vida cercada dos privilégios que o contexto urbano proporciona em uma estrutura cartesiana e eurocêntrica. Ela se permite deixar desmoronar o corpo de mulher branca, sulista e de classe média para se tornar floresta. Eliane narra esse esfarelar do corpo citando os sintomas físicos que experimentou:
“Desde que me mudei para a Amazônia, em agosto de 2017, o banzeiro se mudou do rio para dentro de mim. Não tenho fígado, rins, estômago, como as outras pessoas. Tenho banzeiro. Meu coração, dominado pelo redemoinho, bate em círculos concêntricos, às vezes tão rápido que não me deixa dormir à noite. E desafina, com frequência sai do tom, se torna uma sinfonia dissonante, o médico diz que é arritmia, mas o médico não sabe de corpos que se misturam.
A Amazônia não é um lugar para onde vamos carregando nosso corpo, esse somatório de bactérias, células e subjetividades que somos. Não é assim. A Amazônia salta para dentro da gente como num bote de sucuri, estrangula a espinha dorsal do nosso pensamento e nos mistura à medula do planeta.“
O leitor, ao se entremear às páginas do livro, também é tomado por essa sintomática urgência de novo corpo. Procura tocar os pés no chão, tatear a pele, sentir o ar adentrando as narinas. É como se já não coubéssemos em nossa estatura. Precisamos buscar a terra para fincar nossas raízes para que então possamos, em coletivo, crescer e gerar frutos. Esse é o tipo de leitura que nos faz perceber que a individualidade urbana é estéril.
Amazônia mulher
“Não é possível citar tantas vezes a palavra “virgem” e seguir adiante como se estivesse tratando do preço do pão. “Virgem” não é uma palavra qualquer, porque carne. Na Amazônia como na vida das mulheres está intimamente ligada à destruição. Não apenas à destruição de uma barreira como o hímen, mas pela destruição que se dá pelo controle, pelo domínio dos corpos. A escolha da palavra “virgem” para se referir à floresta e a outros ecossistemas ainda não totalmente dominados por homens, como representação do fascínio por um corpo “natural” e “selvagem” e “intocado”, ilumina as relações de poder que levam a Amazônia para cada vez mais perto do ponto de não retorno.“
O trecho acima, que abre o capítulo “Amazônia mulher”, ilustra o uso magistral que Eliane faz da linguagem e das analogias para trazer à narrativa a imagem de uma Amazônia feminina, um corpo-floresta com traços de pureza “intocada”.
Corpos femininos em uma sociedade patriarcal capitalista são tidos como objetos de servidão, além de oportunidades de exploração para manutenção das relações de opressão, seja da estrutura machista sobre as mulheres, seja da opressão humano-empresarial-capitalista sobre a natureza.
Ao invadir o território amazônico, os colonizadores impuseram sobre a mata e todas as vidas que a integram sua violência disfarçada de projeto civilizatório. A violação dos corpos de mulheres indígenas e a destruição paulatina da floresta caminham juntas no decorrer dos séculos, nos lembrando mais uma vez da indissociação entre humanidade e natureza.
Pensar a Amazônia como o corpo de mulher está para além do olhar limitado e predatório do modelo patriarcal. Para entender a Amazônia, seus mistérios e, sobretudo, seu poder, é necessário olhá-la com olhos de fêmea, é preciso aprender a decifrar o segredo fértil das águas dos rios. A Amazônia é ventre parideiro de mundos possíveis.
Do banzeiro para o futuro – A potência na desestrutura
Banzeiro òkòtó é uma obra necessária para os nossos tempos, trazendo denúncias fundamentais para o avanço do debate sobre a questão ambiental no Brasil. O trabalho de Elaine é também uma ferramenta de resistência, um amplificador das vozes dos povos amazônicos que há tanto têm gritado por socorro. Ele traduz para nosso idioma a linguagem da mata, que se reivindica enquanto corpo vivo e sagrado.
Vivemos um momento crítico, quando inúmeros retrocessos ambientais protagonizados pelo atual governo federal ameaçam as perspectivas de vida de nossos descendentes. Nosso Legislativo apresenta “pacotes de destruição” em prol de um “futuro” que visa apenas ao lucro com a expansão do agronegócio, custando a vida de milhares de indígenas que lutam pelo direito a suas terras, custando a vida de milhares de animais, ou, como prefere a autora, de não humanes que queimam na mata. Não haverá retorno do banzeiro sem que façamos demolir as estruturas, a começar por nós mesmos. Que deixemos cair por terra o corpo que naturaliza o fim.
Os povos do Xingu sempre souberam escutar o rio, respeitando o momento em que ele se deixa atravessar ou que manda recuar. Que aprendamos com eles a potência que há em retornar ao passado quantas vezes for necessário para que se garanta o amanhã.
Em uma das cenas iniciais do clássico O homem de mármore (1977), filme do polonês Andrzej Wajda, a jovem cineasta Agnieszka invade uma área restrita do Museu de Varsóvia. Lá, foram ocultadas pelo governo comunista estátuas de heróis passados do regime. Ela filma as formas robustas e colossais de um daqueles homens de mármore esquecidos num porão. Era a estátua de Mateusz Birkut, um operário enaltecido em prosa e verso pelo comunismo polonês nos anos 50 por suas qualidades de trabalho, até que, subitamente, seu nome desapareceu da arena pública — consequência de alguma inobservância à linha dura do Partido. Agnieszka pretende, com um documentário, recuperar a memória desse ex-herói proletário caído discretamente em desgraça. Sua filmagem da estátua abandonada serve para contrapor a grandeza de sua glória à dimensão de sua queda.
Estátuas abatidas: o tema evoca imagens recentes, que ganharam o mundo no ano I da pandemia. Na sequência do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, em maio de 2020, eclodiu uma onda de contestações a monumentos em homenagem a figuras ligadas ao passado escravagista e colonial, que foram ou vandalizados por manifestantes ou retirados por autoridades, em regiões tão distantes quanto as Américas, a Europa, a África do Sul e a Ásia. Movimento semelhante ocorrera pouco antes na América Latina, durante o estallido social que sacudiu o Chile em 2019. Gravações impressionantes mostravam multidões enlaçando e derrubando, em festa, estátuas de Pedro de Valdivia, conquistador espanhol do século XVI que foi um dos algozes dos povos mapuche, ainda hoje marginalizados na moderna sociedade chilena.
Templo de Bel, na Jordânia
E, no entanto, os Valdivias e os Confederados americanos decapitados e arrastados pelo chão em triunfo por manifestantes diferem em tudo daquele homem de mármore adormecido que Agnieszka filma às escondidas num porão de museu na película de Wajda. No caso do herói proletário Mateusz Birkut, não se tratava de uma mudança política e cultural, mas do apagamento da memória de um indivíduo por um Estado totalitário também responsável pela sua construção como ídolo das massas, tendo em vista apenas seus próprios fins políticos. Por isso, ao longo do filme, Agnieszka luta constantemente contra as resistências da burocracia comunista para recuperar os registros orais e visuais, dispersos ou ciosamente ocultados, da ascensão e do declínio de Birkut, refazendo uma memória incômoda aos donos do poder na Polônia dos anos 1970.
Não é esse silencioso descarte o destino reservado no mais das vezes às estátuas dos ídolos de ontem durante as grandes mutações coletivas. Essas dão lugar frequentemente a destruições públicas e altissonantes. No contexto religioso, são famosos os iconoclasmos bizantino do século VIII e protestante no século XVI. Bem entendido, a demolição dos ícones não se limita ao cristianismo e é conhecida também no hinduísmo e no islamismo: acessos recentes e dramáticos de fúria iconoclástica atingiram os Budas de Bamiyan (no Afeganistão, em 2001, pelos talibãs) e as ruínas sírias de Palmira (em 2015, por ordem do Estado Islâmico). As grandes convulsões políticas também são cenário favorável a atos públicos de destruição. Foi assim com os reis e santos golpeados pelos partidários da Revolução Francesa no século XVIII, com as estátuas de Saddam Hussein depois da invasão americana de 2003 ou ainda com as efígies de Lênin desintegradas a marretadas pelos ucranianos nos protestos da Euromaidan, em 2014.
A conclusão é clara: tão importante quanto a transformação política ou cultural empreendida é marcar os corações e as mentes com imagens dos velhos símbolos do passado doravante reduzidos a pó. Daí que essas demolições assumem um caráter de rito coletivo catártico, quando não — e especialmente em nossas sociedades — espetacular. Trata-se de reforçar exatamente aquilo que os dirigentes comunistas no filme de Wajda queriam apagar: a memória. É como se não bastasse a estátua desaparecer. Sua conversão em ruína, à vista de todos, anuncia um novo tempo, e, por isso, esse gesto deve ser lembrado. A estátua alvejada é simbólica e memorável mesmo quando deixa de existir.
Podemos nos perguntar, então, de que grandes mudanças os catárticos iconoclasmos de 2019 e de 2020, midiatizados ao extremo em milhões de câmeras de celular e nas plataformas digitais de todo o mundo, seriam representativos.
Trata-se de transformações que são profundas e, provavelmente, sem retorno. O modelo que opõe univocamente o Ocidente e o resto se mostra obsoleto frente a uma realidade mais e mais porosa. Não é que as hierarquias entre as democracias liberais afluentes e regimes distintos (de democracias disfuncionais a autocracias), com níveis de desenvolvimento econômico e humano menos brilhantes, tenham desaparecido. A situação nova é mais sutil: com o fim dos impérios coloniais europeus dos séculos XIX e XX, aqueles que eram o resto do mundo — árabes, indianos, africanos, latinos — estão mais e mais presentes no próprio Ocidente, nos centros das antigas metrópoles, em suas grandes instituições, em suas capitais.
Nessa nova configuração, mais saliente nas metrópoles cosmopolitas habitadas pelas classes superdiplomadas, não surpreende que as estátuas de figuras ligadas ao passado colonial sejam alvo de protestos de toda ordem, inclusive de vandalismo. Os cidadãos citadinos dessas grandes democracias pós-coloniais devem sentir diferentemente do que o fizeram as gerações anteriores, mais homogêneas etnicamente, as homenagens a Cecil Rhodes ou a Leopoldo II. Afinal, foram eles os opressores das comunidades outrora colonizadas das quais vieram populações que estão concretamente ao redor do cidadão citadino contemporâneo, como seu colega de faculdade indiano, seu vizinho senegalês ou argelino, quem sabe mesmo aquele ou aquela com quem se casou e teve filhos. A agressão pública dessas estátuas, em momentos de crise, seria uma forma de assinalar que algo mudou duravelmente na comunidade regional ou nacional.
Não seria diferente em países das Américas. Seu estatuto de antigas colônias, sua construção como nações a partir de uma situação de submissão política, social e racial, e em seguida sua conversão em nações democráticas (imperfeitamente?) includentes de minorias outrora inferiorizadas — todos esses fatores trazem à questão das estátuas inflexões ainda mais dramáticas, por se tratar de um combate a traços constitutivos de sua própria formação histórica. Seria por isso, quem sabe, que esses movimentos de 2019 e 2020 tenham aparecido tão cedo no Chile e nos Estados Unidos?
A questão que se coloca é saber se a derrubada é a única resposta que democracias às voltas com minorias étnicas outrora marginalizadas podem dar à existência de estátuas associadas ao passado colonial. Certamente, não é possível nem desejável seu apagamento em surdina, como o que ocorre em O homem de mármore — a memória da opressão passada é precisamente o que se quer preservar, como arma para sua superação. Não seria conveniente conservar fisicamente essas estátuas, permitindo-se, ao mesmo tempo, jogar com seu sentido?
Isso equivaleria a convertê-las de monumento em monumento histórico. Desse modo, elas perderiam seu caráter de homenagem coletiva ao suposto grande homem do passado, construtor da glória nacional às custas dos antepassados daqueles que hoje devem ser integrados à nação, em igualdade com as populações etnicamente dominantes. Poderiam ser sujeitas a intervenções de caráter artístico ou pedagógico com o objetivo de informar, de educar, de examinar, de deslocar o sentido do monumento da celebração à contextualização e à crítica.
Sabemos que a preocupação patrimonial é ampla o suficiente para abarcar, como herança comum da humanidade, não só palácios, parques e igrejas, mas também prédios e estátuas feitos com sangue e com lágrimas. A Casa do Terror, em Budapeste; o campo de Auschwitz, na Polônia; ou o sítio arqueológico do Cais do Valongo, onde desembarcavam africanos escravizados no Rio de Janeiro, são exemplares importantes dessa modalidade dolorosa do patrimônio, podendo servir a rememorar não só os oprimidos, mas também os opressores e os mecanismos da opressão.
A guerra das narrativas, o contexto histórico e os debates na pós-modernidade, o epistemicídio, o silêncio, a invisibilidade e o apagamento. P. Palavras que andam sempre em conjunto quando o assunto é a descolonização.
Estamos no tempo presente, e meu recorte propõe, através da máquina do tempo que aqui é a escrita, levar o leitor e a leitora às linhas transtemporais do passado, nas confluências de Afromodernismo Brasileiro, Arte Negra Contemporânea, Arte Negra Pós-Moderna, Afropresentismo e Afrofuturismo.
Estudo de Quatro Cabeças, de Artur Timóteo (Acervo: Museu Afro Brasil)
Por meio desta máquina vou tecer um recorte específico: a Semana de Arte Moderna Negra. Afinal, a palavra como registro é história, e a história é a visibilidade tangível entre a ficção e a realidade — ou seja, Afrofuturalidades, “juntas ou separadas, coexistindo e tendo como relação principal a produção de linhas temporais e multiversos. Em duas dimensões: na realidade e na ficção, e na construção de futuros reais ou ficcionais”. Na realidade desta confabulação, pergunto: o que seria do discurso de modernidade sem a presença de registros históricos sobre africanos e afrodescendentes em arte, ciência e tecnologia, na construção de um discurso de universalidade? O que hoje significa a apropriação que invisibiliza, deturpa e cria um universalismo abstrato sobre a modernidade?
Não concorda com meu pensamento? Bom, estou aqui para te provocar a pensar, então para isso relaciono alguns registros históricos da África: a matemática; o fractal africano; Sona; o Osso de Ishango; Odu Ifá – o criptograma de 0 e 1; Kitembu, o tempo; o cosmograma bacongo e a calunga; Nabta Playa, o primeiro sítio arqueoastronômico; jogos de mancala; a Pedra de Roseta; os adincras… De onde vêm essas memórias há muito mais.
Toda a tecnologia, a ciência, a arte e os demais conceitos das modernidades oriundos da pioneira cultura africana atravessaram o Atlântico junto a homens e mulheres forçadamente escravizados num processo histórico desumano, pessoas cuja sobrevivência esteve condicionada a preservar laços com o sincretismo, com a oralidade e com a sabedoria ancestral de sua história — história esta apropriada culturalmente, cientificamente e tecnicamente. Até o objeto mais pós-moderno que uso neste momento para digitar, conhecido como computador, remonta à África, afinal a tecnologia de mineração do ouro é conhecimento africano, e sem ouro um computador ou dispositivo móvel nem sequer liga. Muitas inquietações, não é?
Vamos apertar um botão de nossa máquina do tempo e chegar a 13 de fevereiro de 1922, em um Brasil que se consolidou nas lutas abolicionistas, um país em que populações originárias, africanas e afrodescendentes confluíram seus direitos de autonomia, sociedade, autoria, liberdade, cultura, tradição, política, economia e ancestralidade como justiça social oriunda da escravidão forçada. Nesse cenário, os povos afrodescendentes decidiram se reunir para visibilizar a modernidade na arte negra, afinal estão com o tempo focado para tal, tendo em vista a realidade de justiça social que vivem nessa confabulação em 1922. O ponto de partida para a Semana de Arte Moderna Negra no Brasil, de 1922, foi o ano de 1910 (viajamos novamente), com a renovação artística negra baseada em três conceitos: a literatura antiescravista; a ciência geodésica, por meio dos estudos e desenhos gravitacionais das regiões brasileiras; e a pintura, por intermédio das cenas em movimento.
Na literatura, a referência principal é a escritora Maria Firmina dos Reis, que em sua obra antirracista humanizava a história de africanos e afrodescendentes em situação de escravidão. Como mulher negra, Maria Firmina também se tornou uma referência histórica. A seu lado na literatura, Lima Barreto, com sua presença efetiva na Academia Brasileira de Letras, popularizou a crítica social literária do antiescravismo.
Nas artes visuais, destaque para o pintor e decorador Artur Timóteo, que propôs o movimento como uma relação da afrocentralidade figurativa, em um fluxo contínuo de temporalidade imagética.
Já na ciência, o protagonismo negro se deu por intermédio da primeira base geodésica do País, desenhada pelo grande Teodoro Sampaio, geógrafo, engenheiro, escritor e historiador brasileiro que trabalhou no Museu Nacional.
Inspirada por essas influências renovadoras que não apagavam o passado, pautavam o antiescravismo, recuperavam as memórias ancestrais, promoviam justiças sociais e se direcionavam ao futuro, em 1921, após conquistar medalha de ouro na disputa de cantoras do Instituto Nacional de Música, a cantora Zaira de Oliveira ganhou uma viagem à Europa para acompanhar os artistas afro-europeus que estavam recuperando e devolvendo para a África os bronzes do Benim, as máscaras de Tchokwe e os inquices indevidamente alojados em museus europeus. No mesmo período, pôde acompanhar a devolução de importantes referências históricas da América Latina, especificamente de povos originários. De lá, Zaira foi para os Estados Unidos encontrar seus amigos vanguardistas do Renascimento do Harlem, entre eles a escultora Augusta Savage, que a convidou a criar uma ficção sônica sobre suas obras. Após conversar em um jantar com W.E.B. Du Bois e Marcus Garvey sobre o Pan-Africanismo, decidiu ir à África conhecer o rei da Etiópia, Haile Selassie, que conduzia com êxito o único país africano não colonizado.
Zaira de Oliveira
Motivada por tanta consciência mítica afrocêntrica, Zaira voltou para o Brasil em 1922 e, com o esposo Donga, responsável pela gravação do primeiro samba brasileiro, decidiu ocupar o Theatro Municipal de São Paulo e realizar a Semana de Arte Moderna Negra, em uma perspectiva afro-brasileira da ancestralidade, das africanidades, do antiescravismo e do antieugenismo, reverberando a arte, a ciência e a tecnologia africanas e afrodescendentes.
Reuniram-se no Theatro Municipal as comunidades quilombolas brasileiras, os clubes negros, as congadas, os jongos, os terreiros de candomblé, a Mãe Menininha do Gantois, o psiquiatra Juliano Moreira, os artistas visuais Teodoro Sampaio, Arthur Timóteo, Benedito José Tobias, Heitor dos Prazeres e João Timóteo da Costa, entre outros grandes nomes, em uma cosmovisão afro-brasileira.
Foi a semana que revolucionou a arte brasileira e confluiu desmembramentos culturais, artísticos, tecnológicos e científicos em vários ciclos, e essas experiências foram passando por gerações. Aqui calibro a máquina do tempo transtemporal para 1945, quando Enedina Alves — que na infância assistiu a toda a programação da Semana — se formou em engenharia. Também aponto a máquina transtempo para a produção artística de Rubens Valentim, como experiência dessa convergência estética que viveu na infância em 1922, e também para os clubes negros dos anos 1960.
Já nivelo esta máquina temporal para te levar ao Museu de Arte Negra de Abdias do Nascimento e ainda elucido sua potencialidade na confluência da revolução cultural, científica e tecnológica, assim como o “Quilombismo”. Achego a máquina transtempo para 1970, os bailes Black Power, o Cinema Negro. Da mesma forma para “Amerifricanidades” e o pretoguês da mineira Lélia Gonzalez, que também foi uma das fundadoras do Olodum; para as ““teorias críticas” da filósofa Sueli Carneiro; para o “Tempo Espiralar” de Leda Maria Martins; para as geografias afrocentradas de Milton Santos; para a física aplicada das cientistas Sônia Guimarães e Zélia Ludwig.
E aconchego esta máquina do tempo transtemporal no Quilombo do Ciberespaço, que faz sua vocalização no agora como um tempo confabulado no contratempo da reexistência histórica na manutenção de nossas ancestralidades como a proporção da pós-modernidade negra na confluência do agora e do amanhã.
Toda a história africana e afrodescendente de arte, ciência e tecnologia são é real, assim como as personalidades negras citadas aqui também o são. Viajamos por vários lugares, não é? Esse é o transtemporal das Afrofuturalidades, a Sankofa do “volte e pegue”, nas linhas do tempo do pensamento. O Afrofuturismo Brasileiro se insere nessa história, sendo “arte, ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente. Especificamente, o que foi negado historicamente, a participação e a presença de africanos e afrodescendentes na construção do conhecimento ‘universal’. Os desdobramentos conceituais são fundamentais às relações com a temporalidade (passado, presente e futuro, ou a transtemporalidade), bem como a busca pela afrocentralidade e sua forte relação com o ciberespaço (as transições da globalização, o processo crítico a esta, ao mesmo tempo que a facilidade ao acesso de informações sobre o continente africano e suas narrativas históricas em conexão com suas relações na diáspora, dependendo de uma pesquisa em bancos de dados de sistemas de aprendizado).”
Fiz um documentário com ficção/realidade na sua mente. Entendeu por que precisamos das Afrofuturalidades, do Afrofuturismo, do Afropresentismo e do Africano Futurismo na educação do quilombo pós-moderno que está dentro e fora do ciberespaço?
Mundo é uma daquelas palavras enganadoras. Acreditamos estar de acordo quando dizemos “mundo” ou “fim do mundo”, mas no mais das vezes o que fazemos é entrar em um terreno de equivocações que podem ser fatais. Apenas a história moderna da filosofia ocidental oferece uma miríade de sentidos para o conceito. Kant, por exemplo, concebia o mundo como a natureza teleologicamente organizada, isto é, orientada para fins da razão humana. Para Hegel, trata-se do processo da transfiguração da natureza pela história, a que ele chama de Espírito. Marx, leitor e crítico, afirmava a indissociabilidade entre consciência e matéria no mundo histórico, produzido, por sua vez, pelo trabalho humano a partir da natureza. E há ainda Heidegger, para quem mundo é o campo de sentido compreendido pela existência humana. Como se pode ver, em nenhuma dessas concepções mundo e planeta são sinônimos.
Seria redundante retomar cada um desses autores para saber o que disseram a respeito de animais, plantas e outros; como se pode inferir a partir do seu entendimento de mundo, este é eminentemente humano — isto é, embora as concepções divirjam entre si, situam-se no mesmo terreno. Quando falamos, portanto, em fim do mundo nessa ou nessas cosmologias, estamos falando do fim do mundo humano. Nesse sentido, a catástrofe ambiental estaria sempre relacionada à possibilidade da manutenção da espécie. Mas ainda não é tão simples. Poucas vezes a humanidade é ou foi considerada a totalidade dos entes designados como Homo sapiens. Variações de raça, gênero, classe, a separação entre selvagens e civilizados e outras cindiram a espécie, determinando quem é mais ou menos humano. Essas diferenças fazem e fizeram muita diferença. Se no conceito moderno de mundo cabe exclusivamente a humanidade, o conjunto humanidade é menor que o de espécie.
Ailton Krenak usa a expressão “a humanidade que pensamos ser” para dar conta de certa noção de existência e modo de vida muito arraigados em nosso imaginário. O antropoceno seria a marca dessa humanidade que se crê fixa, que crê a Terra como pronta de uma vez por todas e o mundo como sendo para o Homem ou dele. É só de dentro da estória solipsista do mundo enquanto clube humano que podemos pensar que a catástrofe é um ato da espécie que ela sozinha pode mitigar.
Para Krenak, mundo, ou melhor, mundos são o resultado de um sistema de relações resolutamente metamorfo. A separação entre humanidade e natureza não faz sentido; ou seja, a separação entre mundo e natureza tampouco o faz. E tudo não só é passível de se tornar outra coisa mas também está sempre se tornando outra coisa. Essa é a memória ancestral dos povos:
As diferentes narrativas indígenas sobre a origem da vida e nossa transformação aqui na Terra são memórias de quando éramos, por exemplo, peixes. Porque tem gente que era peixe, tem gente que era árvore antes de se imaginar humano. Todos nós já fomos alguma outra coisa antes de sermos pessoas. […] Os ameríndios e todos os povos que têm memória ancestral carregam lembranças de antes de serem configurados como humanos. Quando os povos originários se referem a um povo como “uma nação que fica de pé”, estão fazendo uma analogia com árvores e florestas. Pensando as florestas como entidades, vastos organismos inteligentes. Nesses momentos, os genes que compartilhamos com as árvores falam conosco e podemos sentir a grandeza das florestas do planeta (trecho de A vida não é útil, 2020).
Essas estórias têm o poder, nos dirá o autor em Antes, o mundo não existia (1992) , de “criar o mundo de novo, limpar o mundo”. Se é assim, é porque elas são capazes de ativar o parentesco que há não mais entre a humanidade que pensamos ser e “os outros” separados por abismos, mas sim entre povos que não cessam de diferir e se encontrar. Vistos daqui, os conceitos filosóficos de mundo do primeiro parágrafo formam um conjunto mais homogêneo do que se poderia suspeitar. E — não nos enganemos — eles são etnoespecíficos: mencionei apenas autores alemães.
Do que se fala quando se fala em fim do mundo, portanto? Essa não é uma pergunta original, mas segue basal. Trata-se da explosão do planeta até que vire poeira? Do fim absoluto das condições materiais que tornam possível a vida humana, a extinção do Homo sapiens? Da transformação dessas condições materiais, de modo que talvez um novo paradigma de vida surja? Da extinção de certos povos humanos? De povos extra-humanos? Do fim das condições que tornam possível o modo de vida da humanidade que pensamos ser? Não é uma questão nada simples; no entanto, processos que concorrem para cada uma das possibilidades acima estão atualmente em curso. Talvez precisemos de mais questões para nos orientarmos, como, por exemplo: o que importa para nós (e quem forma o conjunto “nós”)? O que importa para outros povos, humanos e extra-humanos? Como sabê-lo?
Recorramos a um mito fundador de uma das versões do mundo habitado pela humanidade que pensamos ser, aquele constante do capítulo 3 do Gênesis, quando Adão e Eva comem do fruto da árvore da sabedoria, conhecem bem e mal e se tornam mortais. Deus então amaldiçoa a serpente, subordina a mulher ao homem e conclui, no versículo 19: “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado”. Sabemos como esse mito nutriu, no Ocidente, concepções de mundo positivamente ligadas ao trabalho. Mas Antonio Bispo dos Santos vê nessa mesma passagem um ato de terror cometido por Deus: a terra é amaldiçoada ao mesmo tempo que Adão e todos os descendentes, não importa o que fizerem. Nunca mais podendo comer o que a terra dá naturalmente, essa humanidade é eternamente separada da terra e danada ao trabalho. Daí surge a cosmofobia, “doença psíquica”. O embate criado entre homem e terra é, para Bispo, o disparador do desastre ambiental: com pavor do cosmos maldito, o homem se fecha em um mundo-cidadela onde a assim chamada natureza deve permanecer de fora. O trabalho, entendido como uma operação exercida sobre ela por um alienígena, é domínio, domesticação, objetificação.
Se encontramos hoje a expressão “guerra de mundos” sendo usada para se referir à catástrofe, devemos entendê-la como uma guerra pelo sentido do mundo, dos mundos. E que não se pense que esse é um problema abstrato, pois trata-se de como e com quem mundificar — herdar, recriar, se desfazer. De tomar partido de alguns modos de mundificação e ser contra outros. Isso envolve viver e morrer, literalmente viver e morrer como vemos hoje diante da sexta grande extinção, do ataque a povos indígenas e de tantas misérias que atingem grupamentos humanos e extra-humanos assimetricamente.
Alguns mundos estão definitivamente mais ameaçados que outros; a desflorestação, os processos acelerados de extinção e a diminuição de populações nos dizem a mesma coisa. Toda a relação cosmofóbica da humanidade que pensamos ser com a natureza, o planeta e seus outros habitantes dá testemunho de que a manutenção da concepção moderna de mundo será fatal para a maioria dos habitantes do planeta. Esse é o enorme problema de nossa época. De nossas e de muitas, muitas mais outras vidas.
O título deste artigo vem de Moon rock, canção de Dory Previn de 1973. A artista explicou que, em meio à exaltação dos astronautas, ela não conseguia parar de pensar sobre como a Lua se sentia, com pedras sendo levadas dela. Na letra, Previn começa lembrando o mito de que a pedra teria sido a primeira arma, mas especula que também pode ter sido o primeiro presente, criando uma ambiguidade que diz respeito a duas distintas concepções de mundo: “uma inimiga ou amiga/ O modo como o mundo começa/ é o modo pelo qual ele termina”. Isto é, o modo pelo qual concebemos um mundo, como o cultivamos, com quem e em quais condições, com quais afetos, é um dos fatores que vai determinar como tal mundo acaba, mesmo que seja pelas mãos de outrem. No momento do fim, é-se povo, comunidade ou, por exemplo, horda zumbi? Não podemos esquecer também das necessárias habilidades de rexistência. Nosso mundo é fundado sob o signo do dom ou da usurpação? Previn passa então à cena da chegada à Lua, “uma anfitriã muito graciosa de um convidado mal-agradecido” — o astronauta agradeceu os amigos em Houston, a família, os patrocinadores, a humanidade, menos a Lua. Ela então se pergunta, e eu a cito, finalizando:
Será que houve algum antigo astronauta que pousou nesta Terra? Será que ele agradeceu este belo planeta azul Será que ele a fez saber o seu valor? E será que algum antigo embrião viu o que o astronauta fez? Porque a maneira como você trata a senhora idosa é a lição, a lição, a lição que você ensina à criança E será que aquele antigo astronauta pouco antes da decolagem roubou um souvenir como arma? Ou será que ele recebeu, recebeu, aceitou-o como um presente?
“Toda a relação cosmofóbica da humanidade que pensamos ser com a natureza, o planeta e seus outros habitantes dá testemunho de que a manutenção da concepção moderna de mundo será fatal para a maioria dos habitantes do planeta. Esse é o enorme problema de nossa época. De nossas e de muitas, muitas mais outras vidas.”
Neste excerto, redigido com base na palestra “A criação de si como obra de arte”, proferida na Universidade Federal de Uberlândia em setembro de 2013, esboçarei um caminho no sentido de apreender a função da obra de arte como algo que não é mera expressão de uma invenção humana, diferente de sua invenção científica, moral ou religiosa. Quero partir da ideia de que a arte funciona como a vida. Ela é vida, desde que a vida seja intensa. E uma vida intensa é diferente de uma vida que apenas desenvolve, ou desdobra, qualidades ou propriedades inatas e formadoras do caráter humano.
A vida intensa implica uma atitude. Implica uma atividade, num sentido raro. E por “sentido raro” quero dizer que só podemos ser ativo na medida em que efetuamos algum tipo de realidade a partir das forças que nos constituem e que nos atravessam. Forças que, em seu modo de efetuação, são contempladas por um plus de força, por um excedente de força, por uma produção de força pela própria força — pela produção da própria potência que atravessa essa força.
Como diria Spinoza: quanto mais eu penso, mais eu posso pensar. Quanto mais eu posso pensar, mais eu penso. Quanto mais eu penso, mais eu posso pensar. É um círculo virtuoso, e não um círculo vicioso. Um círculo virtuoso da potência. Da mesma forma em relação ao corpo: quanto mais eu sou uma potência de mover, mais eu movo. Quanto mais eu movo, mais potência de mover eu tenho. Eu conquisto mais potência de mover.
Para esta vida ativa, que coincide com a arte, é necessária uma afirmação. Não uma afirmação linguística (dizer “sim”), tampouco uma afirmação psicológica ou moral, pois a moral pressupõe, também, uma negação — a moral nega que este mundo seja perfeito, nega que a natureza e a realidade sejam autossuficientes. Assim, há um “não” na existência moral. Esse “não” já é a mediação feita por um acontecido que toma o lugar da potência de acontecer.
Ora, como esse ser fixado no acontecido, no passado — como diz Nietzsche: com o seu olhar de caranguejo, com essa visão retrospectiva e ressentida —, como esse ser voltaria a confiar no acontecimento? Esse ser que só vive o já vivido, ou o ainda por vir, vive no passado ou no futuro, mas nunca o devir. Ele é um ser sem devir, por isso se torna um ser do devir reativo. Ele ainda segue na mudança, no tempo, mas, quanto mais o tempo passa, mais fraco, mais doente, mais impotente, mais miserável, mais decadente se torna. É essa condição humana que leva Heidegger a acreditar que o homem é um ser para a morte.
É necessária, portanto, uma afirmação no sentido ético. A ética, sim, seria uma força seletiva, cujo horizonte afirmativo faria com que as modificações de nós mesmos retornassem sobre nós em forma de mais potência, de mais energia, de mais força.
Então, essa afirmação não tem nada a ver com essas instâncias do homem a que me referi antes, mas é o próprio modo de viver que se constitui como afirmação. Viver de um modo tal, que esse modo se torne afirmação da diferença que nos constitui e que exprima nossa singularidade. A singularidade é um modo necessário do acontecimento de nós mesmos para que sejamos ativos e criadores. A singularidade é, na verdade, uma razão de potência de nossa existência. Se existir implica criar existência, e se nossa essência é potência de criar realidade e de fazer emergir o novo, é preciso encontrar essa razão de potência — sem a qual não há criação de si na existência.
“A singularidade é, na verdade, uma razão de potência de nossa existência. Se existir implica criar existência, e se nossa essência é potência de criar realidade e de fazer emergir o novo, é preciso encontrar essa razão de potência — sem a qual não há criação de si na existência.”
A singularidade afirmativa da ética não vê o bem e o mal enquanto princípio ou origem de alguma coisa. O bem e o mal são efeitos de nosso bom ou mau jeito de existir. Bem e mal são projeções e ilusões de transcendência. Existem o bom e o mau jeito de se relacionar com a existência. Existem o bom e o mau uso que faço daquilo que me acontece. Essa é a escolha ética, que não tem nada a ver com a escolha (isto é, negação) moral.
Ao contrário do que a moral prega, a realidade é perfeita. E o que é a realidade que se apresenta para nós na existência? É aquela que somos capazes de apreender: cheia de sofrimento, cheia de dores, cheia de miséria, cheia de mal, de morte. Mas a visão reduzida que temos dela, em virtude do modo rebaixado de viver, faz com que façamos um péssimo uso da dor e do sofrimento, utilizando-os como testemunhas de que a vida é um erro, ou que a existência é imperfeita.
O homem moral é esse ser incapaz de dizer sim. Não adianta dizer que niilista é aquele que nega Deus ou que é o ateu porque não acredita no outro mundo. Ele próprio está afirmando outro mundo, porque acha que este é insuficiente. Quem é o niilista de fato? É aquele que nega a suficiência da realidade ou da natureza e acredita em outro plano de realidade. A realidade só tem um plano, apesar de esse plano ser múltiplo e ter dimensões infinitas. Tudo que existe é imanente a um único e mesmo plano de realidade. A invenção de outro mundo transcendente é só um sintoma para dividir este mundo em dois: o do bem e o do mal, ou do verdadeiro e do falso.
O mais importante não é dividir a realidade em existência aparente e ideal transcendente. O que importa é dizer sim (eticamente) a todo acaso, inclusive ao pior deles. É necessário estar preparado e forte. Há que se fortalecer, há que se produzir a si mesmo. Isso é próprio da obra de arte.
A obra de arte, do ponto de vista ativo, essa arte intensa que se iguala à vida intensa — e não à vida extensa, reativa, fraca —, não só produz as condições de existência e se produz através delas, como também produz a própria existência. Ela estiliza a existência. E, uma vez que a obra de arte estiliza a existência, é necessariamente política. E aqui temos uma política à altura do acontecimento que é viver: a política da vida ativa, a política da intensidade. A arte como força, além de estética, plástica e ética, é uma força política e de combate.
A obra de arte cria, portanto, uma zona de vitalização. Ela não é feita para divertir e sim para intensificar. Ela não é feita para distender, ou relaxar, e sim para tensionar. Ela não é feita para afrouxar, ela é feita para esticar o arco e tensioná-lo. É para isso que essa arte é feita: para fazer a diferença e criar eternidade na existência. E nós somos feitos desse mesmo estofo.
“O mais importante não é dividir a realidade em existência aparente e ideal transcendente. O que importa é dizer sim (eticamente) a todo acaso, inclusive ao pior deles. É necessário estar preparado e forte. Há que se fortalecer, há que se produzir a si mesmo. Isso é próprio da obra de arte.”
Assista à palestra “Criação de si como obra de arte”, proferida por Luiz Fuganti na Universidade Federal de Uberlândia, neste link.
Ele foi ousado, demasiadamente ousado. E a ousadia, cedo ou tarde, cobra seu preço. O homem que desejou demolir os impedimentos ao desenvolvimento da potência humana não teve uma vida fácil. O contexto era o início do século XX. Certas figuras proeminentes na Europa estavam mergulhando nos estudos da psique humana. O viés era da ciência moderna. A psique e sua potência vital estavam prestes a ser analisadas pela razão e testadas por métodos e aparelhos. Potencial filho pródigo do movimento psicanalítico, Wilhelm Reich rapidamente se torna o filho contestador: foi repelido pelo Partido Comunista por ser psicanalista, e repelido pelo círculo psicanalítico por apoiar ideias de revolução social. Mas ele quis desestabilizar ainda mais. Esticou a corda, contestando o modelo teórico psicanalítico.
Por que os pacientes que passavam pelo processo terapêutico, tornando-se conscientes de suas dinâmicas neuróticas, permaneciam com sintomas?
Suas pesquisas culminaram no desenvolvimento da noção de potência orgástica. Enquanto não fosse recuperada a capacidade de vivenciar um orgasmo pleno, capaz de descarregar completamente a carga de excitação sexual, a neurose permaneceria tendo uma fonte de alimentação.
Mas ele ainda não estava satisfeito. Para reposicionar a importância do ato sexual na saúde psíquica, Reich precisou resgatar algo que havia sido perdido naquele contexto: o vitalismo.
A força vital, como o elemento que conecta corpo e psique, reaparece na cena teórica e mesmo em seu laboratório com um novo nome: orgone.
Com psique e soma reunidas, seu processo de leitura do ser humano em adoecimento passa a incluir a couraça corporal como um fenômeno de bloqueio do fluxo de energia no corpo físico, associado ao conflito psíquico que sustenta a neurose. O adoecimento e a saúde voltam a ser, simultaneamente, físicos e psíquicos.
Agora, sim, chegou a hora da demolição! Tendo um modelo integrativo de corpo e psique, e definindo a couraça como a expressão corporal de conflitos psíquicos, a prática terapêutica tem o dever de quebrar essas couraças, de forma ativa, até incisiva. Para que o ser humano resgate a saúde plena, é necessário o rompimento dos bloqueios ao fluxo da vida, com o tratamento dos afetos associados aos conflitos, para que então a potência orgástica se manifeste, conduzindo o ser humano a seu lugar de direito no mundo, em plenitude de prazer, de vida, de saúde.
Seu caráter revolucionário repercute. Se você achou que ele ficou satisfeito em criar um sistema terapêutico, enganou-se. Ele ousou mais: empurrou as fronteiras para uma proposta de revolução social, que chamou revolução sexual.
A proposta de Reich implicava no reposicionamento radical da importância do ato sexual humano como elemento que define saúde ou doença, caráter que somente havia sido proposto por medicinas das antigas civilizações da China e da Índia.
O passo seguinte foi elaborado pela noção de praga emocional,a disseminação de afetos patológicos, transmitidos como vírus, entre sujeitos encouraçados, que passam a constituir o próprio tecido social. A sociedade encouraçada.
E que tal se pudéssemos quebrar as couraças não somente na clínica individual, mas também na sociedade como um todo? Bem… Para isso teríamos de fazer o coletivo resgatar sua potência orgástica. Um projeto com tons dionisíacos que influencia em sua época certos projetos educativos, como a escola Summerhill.
Tal projeto exige a demolição da moral sexual da época, algo que ele compreende como expressão do próprio encouraçamento. Em sua obra A irrupção da moral sexual repressiva, Reich elabora a gênese e a história da moral, sugerindo que sociedades desencouraçadas, ou menos encouraçadas, já habitaram este planeta, apontando a viabilidade de seu projeto.
Antes de contar o fim da história, eu gostaria de propor um mergulho em outra dimensão da expressão da energia sexual: a criatividade artística. Afinal, o deus do êxtase também regia algumas formas de arte, como a música e o teatro. Para antigas religiões que tinham na energia sexual a expressão do divino, como o taoismo ou o tantrismo, a criação de um novo ser ou de uma obra de arte tem na energia sexual a sua fonte, apenas diferenciada por sua densidade.
Como professor e terapeuta, acompanhei a trajetória de desencouraçamento de diversos artistas, e faço aqui uma sugestão para que observem esta proposição: quanto mais desencouraçado o artista, mais pleno de sua potência orgástica, menos haverá em suas obras expressões inconscientes de suas próprias neuroses, e mais seu público será tocado por uma potência que incita a vida.
De volta a Reich. Um homem como ele não poderia ser deixado à solta. Fio muito desafiador. Sua proposta de demolição foi muito ousada. Ele foi perseguido, e até mesmo preso. Sua obra permaneceu desqualificada por muitos anos, sendo resgatada a partir dos movimentos contraculturais do fim dos anos 1960. Teve destino semelhante ao próprio Dioniso, conforme Eurípides retrata n’As bacantes: “Ao se aproximar da cidade, os cidadãos se sentem ameaçados pelo caos que ele pode promover. Ele precisa ser preso”.
A humanidade não anda em linha reta. As revoluções deixam suas sementes, para que as futuras gerações as plantem. Como disse Chico Buarque em sua canção Tanto mar, referindo-se a revoluções bem-sucedidas e outras censuradas:
Foi bonita a festa, pá Fiquei contente Ainda guardo renitente um velho cravo para mim Já murcharam tua festa, pá Mas certamente esqueceram uma semente nalgum canto de jardim
Desde sempre conheço o trabalho de Elza Soares. Digo “desde sempre” porque me recordo de, pequena, ouvir uma voz rouca na sala de casa e depois vir a saber que era dela. Lembro de, por volta do ano 2000, ficar impactada com a interpretação de Elza em seu vestido tubinho preto, em um DVD de Jorge Aragão, interpretando a canção Malandro. Me recordo também de sentir medo e tristeza ao, ainda adolescente, ouvir Elza cantar Meu guri, de Chico Buarque. A voz rouca e forte cortava o ar da sala da casa na rua Silva Vale, no Rio de Janeiro, cantando:
Chega estampado, manchete, retrato com venda nos olhos, legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço fazendo alvoroço demais O guri no mato, acho que tá rindo Acho que tá lindo de papo pro ar Desde o começo, eu não disse, seu moço Ele disse que chegava lá Olha aí, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí
E, sempre que possível, nesse trecho da música eu fechava os olhos e pedia dentro de minha cabeça: “Tomara que papai ou mamãe tire essa música. Eu não quero ouvir. Eu não quero sentir essa dor”. Ainda muito jovem, a verdade da voz de Elza me invadia. Mexia comigo num lugar que eu ainda nem acessava conscientemente. Eu ainda não tinha a reflexão política que tenho hoje, mas dentro de mim e dentro da minha família toda pretinha eu tinha pavor de que meus irmãos ou um filho meu tivessem o mesmo destino do “guri de Elza”. Entendo que a arte tem papel político e de reflexão. De mexer com as nossas entranhas mesmo. E Elza fazia — e faz — isso com maestria.
Em 2018 eu pude tocar em Elza. Num mundo pré-pandemia, onde o toque físico era cotidiano, Elza pegou em minha mão. Em dois momentos distintos. Um deles no Festival Mulheres do Mundo, realizado pela Redes de Desenvolvimento da Maré na praça Mauá (Rio de Janeiro), e outro no MAR de Música, programação musical do Museu de Arte do Rio. Nas duas ocasiões eu era a apresentadora do show de Elza. Eu ia chamar seu nome. Frio na barriga, noites sem dormir, textos escritos e reescritos… Como anunciar a voz que entrava em minha alma na infância? Como chamar a Mulher do Fim do Mundo? E o fiz com todo o meu coração, respeito e admiração. Ao fim da apresentação, na entrada para o palco, Elza pegou na minha mão e disse: “Muito obrigada pelas suas palavras”. E pude olhar nos seus olhos e ver Elza Soares. Mas também vi Elza Gomes da Conceição. Em sua humanidade e imensidão.
Elza Gomes da Conceição nasceu mulher negra, num Rio de Janeiro racista e desigual. Elza é — mesmo não estando mais em vida em seu corpo físico — uma mulher de demolições. Seu local de nascimento nos leva a uma fissura no espaço-tempo. A multiartista nasceu em uma favela que não existe mais. Hoje conhecida como Vila Vintém, no bairro Padre Miguel, Rio de Janeiro, a favela Moça Bonita foi palco de estreia de Elza no mundo. Posteriormente, Elza e seus dez irmãos foram morar num cortiço no bairro Água Santa. O cortiço, também numa favela, foi alvo de políticas higienistas, como vários outros no Rio de Janeiro.
Tanto a favela quanto o cortiço são formas de habitação ocupadas majoritariamente por pessoas negras e pobres. São soluções de moradia surgidas na ótica da necessidade de sobrevivência ante um Estado que pouco avança em políticas públicas para habitação, racismo e desigualdade social. Os locais onde a multiartista nasceu e foi criada são essenciais para pensarmos a ótica de demolição que permeou sua trajetória, bem como a de várias mulheres negras.
Os territórios são espaço de construção política e subjetiva, articulando aspectos históricos, sociais e culturais. Os territórios também revelam perspectivas políticas ao longo de nossa formação como sociedade. O Estado brasileiro sempre desenvolveu uma relação ambígua em relação aos territórios de favela — por vezes paternalista e assistencialista, por vezes genocida e destruidora. As primeiras ações do Estado em favelas partiam do pressuposto de que esses espaços eram problemas sociais que precisavam ser resolvidos. A favela deveria ser retirada da paisagem carioca. As favelas foram vistas e apresentadas à sociedade como um impeditivo do progresso. Exemplo disso foi a destruição do Morro do Castelo, justamente no contexto do centenário da independência do Brasil, sob a alegação de que era necessário modernizar a cidade. A narrativa pública construída colocava a favela — e seus moradores — como sinônimo do atraso. Em 1947, o jornal Tribuna Popular escreveu sobre a Vila Vintém, que estava surgindo:
“A Vila do Vintém é a mais nova das favelas do Rio de Janeiro. Está nascendo agora. São centenas e centenas de trabalhadores escorraçados da cidade pela crise de moradia. Gente cujo salário insuficiente não lhe permite, sequer, morar numa “cabeça de porco”. Naqueles terrenos que a princípio diziam ser da prefeitura e, agora, já afirmam ter outro dono, a viúva Pinheiro Machado, a favela cresce espantosamente com o trabalho diário dos moradores. Não custa nada: é só chegar, armar quatro esteios de bambu, cobrir com folhas de zinco e pronto, está construída a nova moradia. (Jornal Tribuna Popular, 1947, p. 4).”
As “centenas de trabalhadores escorraçados” são povo de Elza. As moradias narradas em um tom carregado de preconceito são similares ao lar onde Elza nasceu. O universo apresentado pelos jornalistas, políticos e figuras públicas na época constrói o Planeta Fome, de onde Elza saiu diretamente para os programas de calouros e palcos do mundo todo.
A contribuição de Elza neste plano extrapolou o campo da música. Ela se tornou uma das principais referências quando falamos na luta por igualdade racial e de gênero. De “A carne mais barata do mercado é a carne negra” (canção A carne, gravada por Elza em 2002) a “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim!” (canção Maria de Vila Matilde, gravada pela deusa-artista em 2015), Elza inspirou lutas por todo o Brasil. Fruto disso são os diversos coletivos e instituições de movimentos sociais autodenominados “Elza Soares”.
Atualmente moram mais de 15 mil pessoas na Vila Vintém. O local é reduto de movimentos de resistência cultural, especialmente em relação ao samba. Na região estão localizadas duas grandes agremiações do carnaval carioca: a Unidos de Padre Miguel e a Mocidade Independente de Padre Miguel (Mocidade que, em 2020, homenageou Elza com o enredo Elza Deusa Soares). Elza foi louvada em vida no mesmo chão onde deu seus primeiros passos. Vinda de uma realidade de desigualdades históricas, demoliu preconceitos, cercas e muros. E construiu caminhos para que quem vem possa passar.
Brasil, enfrente o mal que te consome Que os filhos do planeta Fome não percam a esperança em seu cantar Ó nega! Sou eu que te falo em nome daquela Da batida mais quente O som da favela É resistência em nosso chão Se acaso você chegar com a mensagem do bem O mundo vai despertar, Deusa da Vila Vintém Eis a estrela Teu povo esperou tanto pra revê-la.
(Samba Enredo 2020 da Mocidade Independente de Padre Miguel)
Em uma sociedade cada vez mais complexa e operada pelo caos, fala-se muito de conceitos como equilíbrio e resiliência — duas palavras muito compatíveis com a visão de mundo que construímos em sociedade: uma visão mecânica, simplista e temporalmente limitada. A realidade da vida não é mecânica; ela é multifacetada, dinâmica, imprevisível e antifrágil.
Antifragilidade é um conceito o qual temos dificuldade de alcançar, tanto que foi necessário criar um neologismo para descrevê-lo.
Para Nicholas Taleb, a vida é essencialmente antifrágil, e o conceito de antifragilidade não remete àquilo que resiste, ou que é resiliente — termo emprestado da física para explicar a capacidade que um material tem de mudar de forma e retornar à forma original —, mas àquilo que se fortalece com a adversidade.
Em uma visão antifrágil, aquilo que desafia o sistema pode fazer o sistema evoluir — da mesma forma como um nadador melhora suas habilidades ao enfrentar um rio com correnteza —, e uma espécie adapta-se às condições do ambiente tornando-se algo completamente novo ao longo do tempo, como explica a teoria da evolução.
As coisas construídas pelo ser humano também evoluem, mas isso ocorre por intermédio da fagulha de vida projetada pela consciência e inteligência humana. Um carro, isoladamente, não é antifrágil: ele não se fortalece, nem melhora sua estrutura, quando exposto a um terreno acidentado; ao contrário, ele se desgasta e aos poucos vai perdendo funcionalidade. No entanto, os carros com um todo melhoram a cada nova geração, procurando incluir todas as inovações possíveis para responder aos desafios e necessidades enfrentados para cumprir sua função.
É importante perceber que a vida, sendo um sistema aberto e multidimensional, existe como vida dentro de vida em dimensões cada vez maiores e mais complexas, da bactéria à Gaia como um planeta vivo. Nosso corpo, por exemplo, vive em simbiose com milhares de espécies de bactérias — só no intestino carregamos o equivalente a 10 vezes mais bactérias do que células no corpo.
Quando somos infectados por um micro-organismo patogênico e tomamos um antibiótico, eliminamos tanto a doença quanto a proteção e função simbiótica de muitas dessas bactérias, diminuindo nossa imunidade e causando, no decorrer do tempo, um processo de evolução e resistência desses seres àquela substância — um problema muito sério de saúde pública chamado resistência microbiana. A destruição generalizada desses micro-organismos causada por um antibiótico de amplo espectro salva vidas individuais, mas pode ter consequências arrasadoras a longo prazo para a espécie.
A complexidade da vida envolve relações muito delicadas, intrínsecas, conduzidas por uma força que se ocupa da continuidade de seu próprio desdobramento, sem nenhum apego ou preocupação com uma espécie específica ou um ser individual.
Pertencentes a uma classe que chamamos insetos sociais, as formigas de correição movem-se como um único ser, formado por milhares de formigas. E, como corpo coletivo, o formigueiro sacrifica formigas para atravessar um curso de água e constrói as paredes de um lar temporário com os próprios corpos individuais. Para esse corpo coletivo, os indivíduos não podem existir sem o formigueiro, e assim se perdem indivíduos para que o formigueiro permaneça.
A relação que temos com a natureza é posta, não é opcional; cabe a nós reconhecer a inseparabilidade das coisas. Somos resultado de milhões de anos de evolução da vida que se desdobrou na teia que somos em coexistência. Nesse sentido, tudo é interdependente e tudo dança a mesma melodia, tão silenciosa quanto misteriosa.
Há uma frase de Johann Wolfgang von Goethe que diz algo como: “A vida criou a morte para criar ainda mais vida”.
O movimento contínuo de renovação vai muito além do ser humano: ele está no núcleo da vida, em cada célula de nossos corpos. É ele que torna possível a vida complexa, renovando o micro para que o macro continue a prosperar. Um exemplo disso é a apoptose, processo de morte celular programada, que ocorre em benefício do sistema vivo. A palavra apoptose provém do grego “vir abaixo”, sinônimo de demolição. Quando uma célula sofre um dano irreparável ou corre o risco de uma mutação que a desviaria de suas funções esperadas no sistema, ela entra em um processo de autodestruição controlada que permite que o corpo se recicle e mantenha um funcionamento harmônico. Células também morrem por processos não programados, por uma via que chamamos necrose, em que a morte celular prejudica o sistema e coloca em risco seu equilíbrio.
No âmbito da vida, a destruição de algo pode ser tanto aquilo que sustenta e possibilita a existência quanto aquilo que determina seu fim, dando início a outros ciclos de transformação e continuidade. A vida é um sistema aberto, e todo sistema aberto precisa não só de construção. Neste fluxo, o bastão da força vital é passado de um ser para outro ser, de dimensão para dimensão, e circula impulsionado pela roda da morte e do nascimento, como um pulsar do existir.
Quando uma forma de vida complexa se desfaz, a morte de um indivíduo impulsiona uma explosão de vida em inúmeros outros, que pegam o bastão e levam adiante a energia e a transformação, continuando o ciclo.
Desde o início de uma vida humana, no processo de embriogênese, é a destruição que esculpe nossos corpos. As mãos, por exemplo, são formadas a partir de um bloco único de células esculpidas por uma força, ou melhor, informação — aquilo que dá forma, que direciona a apoptose das células em pontos específicos, abrindo os espaços entre os dedos.
A informação não possui energia, não ocupa espaço, não está sujeita às leis da matéria; também não pode ser destruída, nem ao menos faz sentido dizer que foi criada. Apesar disso, ela flui através de tudo, moldando o mundo material e a si mesma, assim como as sequências de DNA constroem as células, que fazem evoluir as informações do próprio DNA ao longo do tempo.
Talvez, da perspectiva da vida, haja apenas transformação. Não se perdem degraus ao subirmos uma escada; os degraus são a própria possibilidade de sustentação da subida. O que seria de nós sem as experiências que nos desafiam, que nos tiram de nossa ilusão de controle? Eu diria que, no todo, a morte impulsiona a vida, e o caos gira a roda da evolução, e a informação flui por entre os seres, evoluindo e moldando as várias camadas da existência, e a demolição é tão preciosa quanto a construção. Porque o novo nasce do antigo, e a vida é um contínuo nascer-morrer-evoluir.