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Não poderia ser em outra época ou em outro lugar. Na Itália de Marcello Mastroianni, na Roma da Fontana di Trevi, nos estúdios mágicos da Cinecittà e, claro, nas páginas dos tablóides do mundo inteiro, Elizabeth Taylor e Richard Burton se apaixonam. Começava ali, enquanto contracenam em uma das maiores produções audiovisuais já feitas, o primeiro grande romance midiático da história. 

Conhecido como “a fábrica dos sonhos”, o renomado estúdio italiano já havia sediado filmagens épicas, mas com aquela Cleópatra de Elizabeth Taylor a proporção era outra. De dia, o lendário diretor Joseph L. Mankiewicz empenhava energia para tentar conter — sem sucesso — todo o frenesi que circundava a produção do filme. À noite, as lentes dos paparazzi deixavam os estúdios e se voltavam para os bares e restaurantes localizados na famosa Via Veneto, onde as celebridades se encontravam para fazer da vida noturna romana um grande tapete vermelho. 

O dinheiro envolvido era estratosférico e, com a publicidade do caso entre Taylor e Burton, a exposição era sem precedentes. Mankiewicz definiu Cleópatra como “um dos três filmes mais difíceis que já fiz.” Nos pôsteres, a chamada poderia soar um tanto exagerada, mas era verdadeira: “O filme que o mundo estava esperando.” Todos de fato guardavam as mais altas expectativas — e, no meio do caminho, não foi apenas a rainha Cleópatra que o talento de Elizabeth Taylor consagrou. Com sua ajuda, a joia que todos estavam esperando também alcançou abrangência internacional, fazendo a Bulgari despertar fascínio mundo afora. 

Fundada em Roma, a Bulgari sempre esteve no centro de um contexto cultural muito intenso. Mesmo tendo uma longa história de excelência, foi a partir da produção homérica de 1962 que tudo mudou. Diferente de suas primeiras versões, de 1948, nos anos 50 a Serpenti Bulgari começou a adotar um estilo mais figurativo, com uma cabeça preciosa adornada com olhos de rubi, esmeralda ou diamante. Essa evolução culminou nos anos 60, quando as escamas da serpente foram articuladas com a ajuda de pedras preciosas e esmaltação colorida. Nestes anos inventivos, a Maison criou os primeiros relógios-joia Serpenti, com mostrador oculto na cabeça. 

Em 1962, tudo se alinhou, e a atriz mais famosa do mundo passou a usar a pulseira-relógio nos intervalos do set, como um precioso talismã que a mantinha ligada à personagem que interpretava. Quando Taylor a exibiu em uma publicidade para Cleópatra, a joia foi celebrada globalmente. A atriz era uma fã confessa da Maison italiana — para ela, ir a Roma era ir também à boutique histórica da Via Condotti. 

Com sua língua afiada, Richard Burton certa vez comentou: “A única palavra em italiano que Liz conhece é Bulgari.”

Daí em diante, o impacto da marca no mundo se tornou incomensurável. Tanto é que Andy Warhol, um dos artistas mais influentes dos últimos tempos, recomendava: “Quando estou em Roma, sempre vou à loja Bulgari porque é o mais importante museu de arte contemporânea.” 

Uma afluência de três personagens dessa magnitude é capaz de criar tendências sentidas por anos e anos à frente. Foi o que aconteceu com Cleópatra, Elizabeth Taylor e Bulgari, que, num inspirado acerto do destino, se juntaram para criar uma mística inimitável. 

Se a verdadeira Cleópatra usava cobras como ornamentos, as cobras estampavam muitos dos looks de Taylor. E se foi em Roma que a estrela de Hollywood se apaixonou pela excelência artesanal da Bulgari, foi na capital italiana que a atriz fez o mundo se apaixonar pela ourivesaria Bulgari, reconhecida pela seleção impecável de gemas coloridas em suas peças. Desse encontro, tal como Taylor e a rainha do Nilo, o encanto da Serpenti Bulgari reverbera até hoje como símbolos de emancipação, beleza e empoderamento. 

Em uma história mítica de tradição e vanguarda, a Serpenti completa 75 anos como um ícone venerado por inúmeras e distintas gerações. Nessa trajetória que desafia tempo e espaço, a serpente segue a sua essência voltada ao futuro, apresentando continuamente interpretações cada vez mais desafiadoras e estilizadas do seu clássico. Forjada em uma busca incessante pelo excepcional, a Serpenti Bulgari nos presenteia com uma fonte ilimitada de inspiração, tradição e inovação para os horizontes próximos e distantes.

O tema da 35ª Bienal de São Paulo, Coreografias do Impossível, cintila entre a provocação e a esperança. Provocativo porque evoca o que não pode ser, como uma lembrança das realidades que não têm o espaço para de fato se fazerem reais e acolhidas; esperançoso porque, ao evocar e reconhecer essas realidades, estuda com cuidado os passos de seu bailado invisível, tornando-as palpáveis — ou, ao menos, imagináveis. O evento é uma celebração da diversidade e da representatividade, ampliando o diálogo sobre questões fundamentais que vêm ganhando atenção, embora remontem a épocas passadas, que ainda estão longe de, efetivamente, passar.

Nas entranhas desse cenário, a mineira Luana Vitra desponta como uma voz capaz de tecer uma narrativa que domina o seu espaço geográfico e conceitual. Oriunda das tradições mineiras, seu trabalho é testemunha das histórias orais que ecoam os traumas indeléveis do passado escravista de onde sua família enraíza memórias.

Mas, antes de começar a me estender sobre Luana e sua instalação, Pulmão da mina, é importante citar o projeto espacial e expográfico desta 35ª edição, desenvolvido pelo escritório de arquitetura Vão. Para alcançar um fluxo de movimento na relação entre obras e pessoas, o grupo fez com que o vão central fosse inteiramente fechado pela primeira vez na história. A proposta nasce do desejo de não impor uma nova coreografia àquele espaço que já sediou tanto. Se pensarmos que nada é mais real do que o impossível, a ideia de jogar com o que ali já existia é bastante apropriada. É a inovação por meio da continuação. Mover-se com fluidez por entre as narrativas que desafiam as inviabilidades do nosso e de todos os tempos propicia uma imersão real — e tudo isso, em especial o diálogo com o espaço e o acúmulo de épocas, é importante demais para que Pulmão da mina fique ainda mais gravado na retina de quem o vê e na massa cinzenta de quem o pensa.

A instalação nos transporta aos séculos de economias extrativistas, marcadas por degradação ambiental e opressão. Nascida em Contagem, Minas Gerais, Luana leva à Bienal uma obra que dialoga com a sua terra e a sua história particular. A população escravizada que trabalhava nas minas do Brasil entre os séculos XVII e XIX enfrentava condições desafiadoras e degradantes: as jornadas não só eram exaustivas como se davam nos ambientes mais perigosos e as condições precárias iam da falta de higiene à falta de acesso adequado a alimentos. Como se não bastasse, havia ainda os riscos de desabamentos, doenças e exposição a elementos tóxicos.

Essa exposição era tanta que era comum que os mineiros levassem para dentro das minas um canário. O pássaro, frequentemente associado a cenários idílicos (a antípoda do que as pessoas escravizadas viviam dentro das minas), tornava-se uma espécie de sentinela, captando os indícios mais sutis de gases tóxicos. Quando sucumbiam ou agitavam-se excessivamente, ficava explícito que entrar ali era sinônimo de morte. Na falta de assistência humana, esse era um jeito eficiente de se detectar os perigos tóxicos. A prática, trazida por escravizados africanos traficados pelos bandeirantes paulistas, iniciou-se na região de Minas Gerais e se estendeu pelo Brasil.

A brutalidade do sistema escravista nas minas contribuiu para a formação de uma sociedade profundamente desigual no Brasil colonial, deixando um legado de exploração que perdura na memória do país. A instalação, com suas flechas-patuás de ferro e os canários, invoca caminhos que de algum jeito agora se encontram desbloqueados, nos guiando para as possibilidades que persistem nos lugares onde o eco do passado ecoa. As origens de Luana se amalgamam com a história da extração do minério no Brasil, e tudo se torna mais íntimo quando sabemos da tragédia de seu bisavô, vítima de silicose, doença pulmonar causada pela inalação constante da sílica cristalina. Ao adentrar o pulmão, ela enrijece as estruturas da caixa torácica, causando dificuldades na respiração. O bisavô de Luana não foi o único a ceder diante de tais circunstâncias, asfixiado por um sistema escravocrata que ainda hoje se faz sentir. Os traumas de uma família viram os traumas de um povo, que, por sua vez, viram os traumas de um país.

Para Luana, entender a subversão da ideia de dureza atribuída ao ferro, ou a qualquer outro mineral, é fundamental. Qual é a voz da prata? Do ferro? A partir do encontro com essas vozes, há muito a ser dito. A escolha dos metais é uma busca pelos timbres únicos de cada um. A instalação é uma espécie de reza entoada em harmonia com as matérias que a cercam. A artista torna-se uma sacerdotisa que conduz os olhares e as sensações por uma experiência espiritual, na qual a voz dos metais se une à sua própria essência. É raro ver uma instalação dessas dimensões (300 metros quadrados) sendo capaz de nos guiar por cada veio de suas narrativas, ainda que essas sejam recortes de um contexto histórico que nunca esteve no centro de debates. Reside aí a habilidade de fazer com que uma vivência específica seja do tamanho de quem quiser ver.

O metal não é o inimigo. No fim, não foi ele que deixou o ar cada vez mais rarefeito para um grupo de humanos (e alguns canários). Como a representação de um segmento natural que se defende quando vítima de uma extração desenfreada, se pudesse o metal se revoltaria contra os verdadeiros culpados. Entre séculos XVII e XIX, isso estava longe de ser possível. Agora, em pleno 2023, há uma chance maior de revolta e empoderamento a partir da comunhão com a terra e os capítulos que formaram a espinha dorsal brasileira. A história não apagará os senhores de escravo de seus autos, nem muito menos os muitos que sofreram em suas mãos e nunca tiveram direito a um nome, mas, com essas mesmas mãos calejadas e todo esse sangue despejado, a arte há de fazer pintar novas páginas.

O título Pulmão da mina evoca uma imagem poderosa. Como escolheu esse título e como ele encapsula tanto a história específica de Ouro Preto quanto questões mais amplas relacionadas à extração mineral?

Luana Vitra: Quando penso na mineração, acabo pensando no pulmão. Sempre que ouço a história do meu bisavô Domingos Zacarias, que morreu de silicose, eu penso no pulmão. No processo de fazer esse trabalho para a Bienal, me deparei com dois pontos que aparecem muito nos relatos das pessoas que trabalharam nas minas: a impossibilidade de respirar e o enxergar na ausência de luz. Ou seja, a falta de contato com o sol e o excesso do contato do pulmão com substâncias que podem ser danosas. A obra, então, trata exatamente da dor da possibilidade de não poder respirar, e do aviso que vem a partir do ar. Senti que o título precisava ter a presença do pulmão, porque tudo se comunica dentro da dinâmica de símbolos criada a partir da presença do ar. É pelo ar que se morre, e é também pelo ar que é conduzida a informação que afirma a possibilidade de continuar vivo.

De que maneira você percebe que sua obra dialoga com o tema Coreografias do Impossível, e como ela contribui para uma conversa mais ampla sobre narrativas por tanto tempo silenciadas e que, agora, ao menos um pouco, ganham as luzes da ribalta?

LV: Para mim, o impossível é a possibilidade de criação de outras ficções de mundo. O mundo, da maneira que está, foi uma ficção montada por um determinado grupo de pessoas. E, quando você conta uma mentira continuamente, ela passa a ser uma verdade. É aí que a criatividade aparece para desenhar outras outras possibilidades. Tudo que faço é a partir de uma não-aceitação do impossível. E, quando me relaciono com a minha própria vida, eu preciso sempre saber que a ficção em que vou habitar é realmente minha e não de um terceiro. Essa Bienal, ao convocar artistas que compartilham desse gesto criativo, responde a isso.

Eu sou também uma pessoa que coreografa sobre o impossível. A ideia de coreografia está muito presente no meu trabalho, principalmente pelo fato de eu ter iniciado minha carreira dentro da arte na dança. Frequentemente, vejo as composições que crio como coreografias. Muitas vezes, penso: como conduzir esse olhar para um determinado ponto da instalação? A ideia de coreografia me situa dentro da minha maneira de compor. E, quando eu penso em narrativas silenciadas, penso mais nas vozes minerais do que nas humanas. Penso na voz dos metais que puderam ter condutividade a partir dos corpos que trabalharam dentro das minas. Esses corpos podiam comunicar sobre eles, mas foram silenciados. Sinto que, em alguma medida, sou uma tradutora dessas vozes minerais. E os corpos que trabalhavam na mina também eram tradutores. Então, eu estou olhando para esses tradutores, mas principalmente para a voz do que se traduz.

Uma instalação dessas proporções chama muita atenção. E sabemos que, em se tratando de Bienal, não é pouca gente. Chega a ser emocionante ver uma história como essa ganhar tanto destaque e aceitação. Como você se sente com relação a isso?

LV: Tem sido muito especial perceber o alcance que essa obra tem tido, principalmente com crianças. Recebo muitas mensagens de professoras, o que me alegra muito. Sou filha de uma e ver a maneira com que a obra tem acessado o campo cognitivo sensorial das crianças realmente é um presente para mim, porque sinto que, crescer já ciente dessas histórias, cria uma nova coreografia sobre o mundo. Eu sempre quis fazer com que o olhar externo se virasse um pouco para as violências que são movidas sobre a terra de Minas Gerais. Na verdade, essa visibilidade se vira para Minas Gerais, mas não só para ela, e sim, para toda a terra que vivencia esse contexto da mineração.

Pulmão da mina nasce do pessoal e se torna universal? Ou o caminho é inverso?

LV: Acredito que todas as criações, por mais que nasçam de histórias universais, habitam antes uma dimensão pessoal, e esse trabalho não é diferente disso. Acho que o que fazemos no mundo tem esse vai e vem, que vai do pessoal para o universal, e do universal para o pessoal. É uma comunicação de tempos, pois mistura o presente, o passado, o futuro, como se tudo coabitasse o mesmo instante. Pulmão da Mina é o momento em que tudo se aglomera numa conversa entre temporalidades, e nessa dança o interno e externo se amalgamam.

Os metais, especialmente o ferro, desempenham um papel fundamental em sua obra. Na sua visão, como esses metais, tanto fisicamente quanto simbolicamente, podem ser agentes de transformação na compreensão das narrativas históricas e contemporâneas?

LV: Nós nos relacionamos com a história de uma maneira às vezes muito limitada. Eu situo minha história dentro da história dos metais, e sinto que isso complexifica os motivos da minha existência. Para acessar meu trabalho, é mais importante saber como o ferro nasceu do que saber sobre as vanguardas do modernismo. Para digerir um trabalho artístico será sempre mais necessário se relacionar com a história das matérias do que se relacionar com a história da arte, e quando digo isso não excluo minha relação com a história da arte, mas assinalo que os motivos que movimentam um trabalho são orientados por organismos mais complexos. Somos demasiadamente orientados pelo que foi consagrado oficial, mas a história das coisas sistematicamente esquecidas tem muito mais a dizer. As vozes minerais foram silenciadas e escutá-las hoje remonta à complexidade de um espaço narrativo que foi esvaziado. Então, os metais são importantes para mim e Pulmão da Mina é uma obra que se constrói a partir da narrativa deles. Entendo o ferro como a pele negra, porque essa matéria foi capturada pela indústria assim como o corpo negro foi capturado pela colonialidade, e sinto que a movimentação que ambos fazem para se desviar são semelhantes, e é a capacidade de transformação e complexificação que torna esses dois corpos incapturáveis.

Em Pulmão da Mina utilizei a prata e o cobre no corpo dos pássaros pelo fato deles serem os dois metais mais condutivos. Para mim o ar é um veículo de condução de informação. A partir desses metais condutores, o ar se faz presente na obra, e ao mesmo tempo, a presença do ar é um aspecto importante dentro da movimentação de liberdade de um corpo negro. A fuga que vem dos elementos é uma possibilidade de entender a química dos acontecimentos, e esse movimento de entender como a história pode ser contada a partir de movimentações químicas me interessa.

Sua instalação aborda tanto o passado quanto questões contemporâneas. Como você equilibra essas reflexões?

LV: Acho que sempre entendi o tempo como uma movimentação que se mistura. Como três rios distintos que amalgamam suas temperaturas, suas dinâmicas, suas cores. É como quando a gente observa o encontro entre o rio Negro e o rio Solimões, mas ainda adicionaria um terceiro rio a essa alquimia. Quando penso no que quero compreender ou enunciar, esse equilíbrio entre o que já foi, está sendo e ainda será, é algo muito natural para mim. Talvez seja a minha maneira de compreender as coisas. Meus trabalhos traduzem essa dinâmica dançando todos os tempos.

As ervas, as cuias e o azul anil parecem adicionar uma dimensão sensorial à sua instalação. Qual foi a proposta para o uso desses elementos e de que maneira eles contribuem para a experiência de Pulmão da mina?

LV: A comunicação do meu trabalho é elementar, é como uma tabela periódica. Vou para esse lugar mais puro da matéria, porque talvez seja nesse lugar em que está a comunicação de uma voz inaugural. Quando escolho essas matérias, tudo está muito ligado à comunicação do elemento. Esse é um trabalho que traz uma história muito densa, mas é possível sentir a criação de uma outra rota para essa densidade. As ervas vêm nesse sentido, de conduzir para um outro lugar; o anil aparece no sentido de limpeza; e as flechas são vetores, ações dos movimentos do trabalho. Nada de se dá por acaso.

A padronagem gráfica que o trabalho vai criando é um modo de comunicar. E pensar o trabalho como uma movimentação gráfica está presente em muitas culturas. Atualmente, estou vivendo na África do Sul, numa cidade chamada Durban, que é onde fica o reino Zulu. O povo Zulu possui um sistema complexo de comunicação a partir de padrões geométricos feitos a partir de miçangas. É a atribuição de significado a um símbolo, o que faz com que ele crie uma comunicação. Aqui aprendi esse modo com o qual a matéria pode comunicar afetividade. Pulmão da Mina é um movimento similar. É uma grafia, uma criação simbólica de um campo de elementos.

Há uma certa ideia de “cura” para o reino mineral que permeia o espaço geográfico da instalação. E isso pode valer para o meio ambiente, como um todo. Qual é, ou pode ser, o papel da arte nesse processo tão fundamental ao nosso viver contemporâneo?

LV: Há muitos anos, fiz uma oficina de dança com um coreógrafo chamado Benoit Lachambre. Me lembro que ele me disse que a função do bailarino era curar o mundo com a energia do nosso corpo. Ouvir isso fez com que eu voltasse minha percepção para minha própria prática artística e percebesse quais gestos de cura já estavam sendo movidos ali, tornando as minhas escolhas mais conscientes. Perguntei a mim mesma o que eu desejava curar e o reino mineral foi meu lugar de conexão, pelo fato de conviver diariamente com as serras de Minas Gerais destruídas pela mineração.

Nas artes visuais, é a relação com a energia da matéria que pode movimentar uma relação de cura. Não é à toa que a gente ergue uma imagem no mundo. As imagens têm forças e histórias profundas, sendo guardadas e transmitidas por muitos povos, por muitos anos. A imagem e a matéria têm um forte poder — e é esse campo que sinto ser meu lugar de atuação, é a força da matéria que eu sei manejar. Talvez esteja aí a minha contribuição para movimentar qualquer desestrutura para a última queda desse mundo que aos poucos decai.

#47Futuro AncestralCulturaSociedade

Uma experiência coronária da filosofia africana: amor, futuro e ancestralidade

A filósofa Katiúscia Ribeiro é a editora convidada da edição Futuro Ancestral.

“A espiritualidade, a vida espiritual nos dá força para amar”
— bell hooks

Amar sempre permeou o sentido primeiro da nossa existência. Em uma sociedade alicerçada pelo desamor, amar passou a ser o antídoto primordial para a manutenção da vida e para a promoção de um futuro vivo. Em Vivendo de amor, a escritora ancestral bell hooks sinaliza que as violências coloniais impactaram diretamente os povos africanos na diáspora, fazendo uma contenção do amor, construindo um modelo de humanidade moldado no não amor, para que se violentas sem e assim pudessem ser dominados. A epígrafe acima da autora é contundente e diz muito sobre as questões apresentadas ao longo desta conversa escrita. Ao afirmar que a espiritualidade “dá força para amar”, me atrevo a dizer que a extensão dessa força nos ajuda a seguir, a viver, a recriar e a modelar o futuro.

Amar é um sentido vivo nas filosofias africanas, pois está ligado à maneira como essas filosofias estão vivas em nossas vidas, correndo em nosso sangue, seguindo os ritmos compassados do coração. Para entender essas duas dimensões, do amor e das filosofias africanas, que são inerentes uma à outra, é preciso sentir. Sentir o soar do som que vem do coração, esse elemento sensorial que nos conecta com nossa maneira de perceber a realidade presente. É preciso sentir as águas que banham nossos espíritos, a terra que fertiliza nossas histórias, é preciso mergulhar no todo e sentir-se parte dele. Nesse sentido, a filosofia se conecta simbioticamente com a ancestralidade, sendo um exercício que começa na alma e se expande. Assim, para essa filosofia, é preciso abandonar a ideia restritiva da cosmovisão e assumir integralmente a agência[1] africana e a “cosmossensação”, um fazer filosófico que a partir dos sentidos traz à tona a necessidade de resgatar e valorizar o conhecimento ancestral africano como uma fonte de sabedoria e inspiração para a construção de um futuro sustentável e humano.

A filosofia africana possui elementos para uma “reontologização”[2] a partir do paradigma centrado no poder das narrativas cosmológicas e em suas complementaridades. Compreender esse paradigma passa pelo reconhecimento de que a relação harmônica entre os elementos são da ordem de “uma relação científica, uma ciência inteira de integração e harmonização da existência material da Terra com a existência humana, garantindo a saúde a longo prazo de ambas” (NEUSI, 2019, p. 4).

Nessa orientação cosmológica, o Ser se relaciona no interior do universo de uma forma íntima, tendo uma concepção de ser humano em sua totalidade física, espiritual e metafísica. A compreensão de qualquer fenômeno deve passar pela totalidade, por um todo organizado de acordo com “os ciclos da vida e os ritmos circulares da natureza” (MONTEIRO-FERREIRA, 2014, p. 177), o universo em perfeita harmonia e cuja manutenção é o próprio sentido da existência. Além disso, a totalidade implicada na cosmogonia africana é uma totalidade espiritual, e isso significa que existir é viver como um ser espiritual. Há, portanto, uma relação intrínseca de espelhamento entre a ordenação cósmica e o ser humano em suas relações sociais, de modo que a realidade material é entendida como uma manifestação espiritual, uma relação ancestral.

A ancestralidade aparece, nas realidades africanas, como um agente de reconhecimento e construção da realidade a partir do seu caráter de conexão. Uma base que sedimenta os modos culturais, que forma indispensavelmente os sistemas de valores e é a espinha dorsal de todos os elementos: culturais, sociais, educacionais etc. Essa noção ancestral, compreendida filosoficamente desta forma, corporifica e configura quem somos enquanto unidade, por isso pensar o futuro a partir das filosofias africanas desde os tempos imemoriais pode ser um caminho possível para repensar as relações da humanidade.

Esta edição apresenta um percurso alicerçado nas filosofias africanas e em cada texto exibido será possível perceber isso. Esta curadoria se responsabilizou por apresentar outras e novas noções de realidade e propostas de mundo que rompem com os muros do absolutismo ocidental. O absoluto é essa verdade inquestionável, esse saber imposto e incontestável, uma razão irrefreável à qual se supõe que devemos nos submeter. Entretanto, cabe a nós, estudiosos, pensadores e sociedade como um todo desenvolver a capacidade de questionar esses sistemas de verdade e estruturas sólidas e intransigentes de saberes na busca por novos horizontes.

Assim, as filosofias africanas, a partir da herança ancestral, são fundamentadas na ideia de que a vida humana está intrinsecamente ligada à vida dos antepassados e nela há respostas, exemplos, modelos, estruturas, epistemologias e caminhos para pensar e construir o futuro. Os ancestrais são seres espirituais que continuam a influenciar e guiar a vida dos vivos, transmitindo conhecimentos, valores e princípios que são essenciais para a sobrevivência e o bem-estar da comunidade, eles são filósofos além do espaço-tempo. Essa percepção de mundo valoriza a conexão entre passado, presente e futuro, reconhecendo a importância de honrar e preservar a memória dos antepassados como forma de fortalecer a identidade cultural e promover a coesão social.

Na incerteza do futuro, temos uma base sólida e muito bem estruturada no passado das filosofias africanas, ressaltando a importância de reconhecer e valorizar a diversidade cultural africana, entendendo que elas possuem um vasto repertório de saberes e práticas que podem contribuir para a resolução dos desafios contemporâneos.

Uma das principais contribuições para a construção de um futuro mais justo e igualitário está na valorização da comunidade e do coletivo. Ao contrário da visão individualista predominante na sociedade ocidental, que visa a noção de TER, temos nesse saber a noção do SER, enfatizando a importância do cuidado mútuo, da solidariedade e da cooperação como princípios fundamentais para nos conectar de volta à natureza e não mais tratá-la como o diferente. Mais do que a convivência harmoniosa entre os seres humanos e a natureza, é preciso reconectar a humanidade à natureza, nos colocar como parte dela.

No Brasil podemos tomar como exemplo a Filosofia Quilombista, apresentada por Abdias Nascimento, ou o pensamento contracolonial baseado nos saberes quilombolas do Mestre Nêgo Bispo, ambos presentes nesta edição. Essa perspectiva coletiva é essencial para enfrentar os desafios globais, como as desigualdades sociais, a degradação ambiental e a violência estrutural. Temos nos quilombos brasileiros um exemplo vivo, como reforça a Dra. em Filosofias Africanas Lorena Silva Oliveira: “O conceito quilombismo tornou-se uma ideia-força para o povo negro brasileiro, pois esses territórios são a maior referência de agência política, manutenção e valoração à vida, à ancestralidade e à liberdade”.

Outro aspecto relevante é a valorização da espiritualidade e da conexão com a natureza. Para os povos africanos, a natureza é vista como um ser vivo e sagrado, com o qual os seres humanos, mesmo sendo parte dela, devem estabelecer uma relação de respeito, cuidado e harmonia. Essa visão holística da vida é fundamental para repensar a forma como nos relacionamos com a terra e seus múltiplos ecossistemas. A urgência da sustentabilidade, no marco temporal do ocidente, não é uma questão nova aos povos africanos e originários, por isso podemos nos espelhar nesses povos, que em suas espiritualidades entendem a natureza como fonte, origem da vida.

Um dos aspectos mais importantes das casas de Àṣẹ no Brasil é a não dicotomia entre Ser/Universo, Humano/Natureza, relações de mutualidade que interligam todos os seres vivos, recompõem e promovem uma rede de colaboração entre todos. É no todo harmônico e equilibrado que ações de mulheres e homens, que concebem a natureza como elo de sabedoria, conhecimento e vida, transformam o presente e modelam o futuro. Esse conceito vivo do cosmos, presente nos terreiros de candomblé, é uma herança ancestral que compreende o universo como algo em sua totalidade quando está integrado também pelo espiritual.

Ancestralizar o futuro implica, portanto, em reconhecer a importância do passado na construção do presente e do futuro, valorizando a diversidade cultural africana, promovendo a solidariedade e o cuidado mútuo, estabelecendo uma relação de respeito e harmonia com a natureza e questionando os padrões de pensamento eurocêntricos. Essa abordagem pode ser uma fonte de inspiração e orientação para enfrentar os desafios contemporâneos e construir uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável. Por isso, cada texto desta linda edição é um convite de um vir a ser!

Uma das formas de colocar em prática as filosofias africanas da ancestralidade é por meio da valorização e promoção da cultura africana. Isso envolve o reconhecimento da importância das tradições, rituais, danças, músicas e línguas africanas como expressões culturais valiosas que devem ser preservadas e celebradas. Além disso, é fundamental garantir a inclusão e a participação ativa das comunidades africanas na construção das políticas públicas e na tomada de decisões que afetam suas vidas.

Outro aspecto importante é a educação, também em destaque nesta edição. É necessário incluir nos currículos escolares o estudo das filosofias africanas da ancestralidade, para que as gerações futuras possam conhecer e valorizar as riquezas dos conhecimentos ancestrais africanos. Além disso, é fundamental promover a diversidade cultural nas escolas, garantindo a representatividade e o respeito às diferentes culturas e tradições, como sinaliza o mestre João Paulo Ignacio nesta edição em um potente texto que nos convida a uma travessia de saber, educar e ancestralizar.

A promoção da justiça social também é um elemento central nas filosofias africanas da ancestralidade, encontrados em Maat[3], a figura de uma deusa negra, com um dos seus joelhos no chão, os braços abertos e uma pena de avestruz em sua cabeça, como coroa. Mas essa é apenas uma imagem alegórica que não define a complexidade de Maat[4], que, de princípio tão complexo e integrativo, não é possível traduzir em uma só palavra, mas sim em três: verdade, justiça e harmonia. Assim, na ancestralidade encontramos um modelo ético de uma justiça integrativa. Isso implica dizer que em combater as desigualdades sociais, econômicas e raciais, garantindo o acesso igualitário a recursos e oportunidades para todos os membros da sociedade. Além disso, é necessário enfrentar as estruturas de poder e os sistemas de opressão que perpetuam a marginalização e a discriminação das comunidades africanas e afrodescendentes.

Por fim, é importante ressaltar que pensar um futuro a partir das filosofias africanas da ancestralidade não significa ignorar ou rejeitar os avanços da ciência e da tecnologia ocidentais. Pelo contrário, trata-se de integrar diferentes formas de conhecimento, a partir de um paradigma pluriversal, reconhecendo a validade e a complementaridade de diferentes perspectivas. É necessário buscar um diálogo intercultural e interdisciplinar, que permita a troca de saberes e a construção conjunta de soluções para os desafios contemporâneos.

Em suma, pensar um futuro na ancestralidade é reconhecer a importância do passado na construção do presente e do futuro, valorizando a diversidade cultural africana, promovendo a solidariedade e o cuidado mútuo, estabelecendo uma relação de respeito e harmonia com a natureza e questionando os padrões de pensamento eurocêntricos. Essa abordagem pode ser uma fonte de inspiração e orientação para enfrentar os desafios contemporâneos e construir uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável.

Ancestralidade, enquanto princípio filosófico, é de ordem coronária sair do campo da materialidade racional e pensar com o coração, sentir com o coração e analisar a vida pulsante, que possibilita se reconhecer e continuar um legado que nasce a todo tempo e se mantém vivo no pulsar de nossa existência materializada em diversas ações e oralituras. Assim, aceite o convite com que a Revista Amarello lhe presenteia neste momento para refletir nossos rumos e sentidos de viver. Porque como sinalizei em outro texto há algum tempo: “Pensar a ancestralidade não está em compreender qual o sentido da vida, a partir de texto complexo e termos difíceis, está em viver em movimento com a vida, este eterno vir a ser, é uma roda, sem fim, porque o futuro é ancestral”.

Notas:

[1] A agência é a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana (…) estou fundamentalmente comprometido com a noção de que os africanos devem ser vistos como agentes em termos econômicos, culturais, políticos e sociais. O que se pode analisar

em qualquer discurso intelectual é se os africanos são agentes fortes ou fracos, mas não deve haver dúvida de que essa agência existe. Quando ela não existe, temos a condição da marginalidade — e sua pior forma é ser marginal na própria história (…) Os africanos têm sido negados no sistema

de dominação racial branco. Não se trata apenas de marginalização, mas de obliteração de sua presença, seu significado, suas atividades e sua imagem. É uma realidade negada, a destruição da personalidade espiritual e material da pessoa africana (ASANTE, 2008, p. 94). –

[2] Conceito apresentado pelo Me. e Teólogo Jayro Pereira, propondo uma reformulação no sentido de Ser a partir dos saberes ancorados nos saberes africanos.

[3] Maat é reconhecida como Ntr (Neteru), força simbólica feminina que organiza os princípios de justiça, retidão, equilíbrio, harmonia e reciprocidade; divindade suprema que governa a realidade e, para além da realidade, força motriz que organiza o universo. Suas 42 provisões são a base do Shetaut Neter, ciência espiritual da África antiga alicerçada nas leis físicas e naturais, responsável pela manutenção das ordens cósmica e social. Maat é filha de Rá, e estava ao seu lado no barco celeste quando emergiu das águas matriciais ao lado das demais neterus, sendo também conhecida como “o olho de Rá”. (Ribeiro, Katiúscia. Tese de doutorado. UFRJ 2022).

[4] A deusa Maat, usando uma alta pena de avestruz em sua cabeça como seu símbolo, era chamada de filha de Rá, ou o olho de Rá. Ela também era conhecida como dama dos céus, rainha da terra, senhora do submundo e amante de todos os deuses. Cenas rituais retratam reis egípcios apresentando uma estatueta de Maat aos deuses como um dom supremo. (OBENGA,2017, p. 24)

Bibliografia:

ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: Notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin. (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009a, p. 93-110.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

MONTEIRO, Ana Maria. Da Ontologia à Antropologia de Mata: A Dimensão Metafísica e Ética da Alma. 2014. Gaudium Sciendi, Número 6, 2014

 NEUSI, Kimani. “Humanity and the Environment in Afrika: Environmentalism before
the Environmentalists” in M. Muchie, P. Lukhele-Olorunju and O. Akpor (eds.) The African Union Ten Years After: Solving African

OBENGA, Théophile. Egypt: Ancient History of African Philosophy. In: WIREDU, Kwasi (Org.). A Companion to African Philosophy. Massachusetts: Blackwell Publishing, 2004. p. 31-49.

Revista

Futuro Ancestral — Amarello 47

A Revista Amarello comemora 14 anos de vida com o tema Futuro Ancestral. Na edição de número 47, recebemos como editora convidada a professora Katiúscia Ribeiro, especialista em Filosofia Africana, e o artista Aislan Pankararu em nossa capa.

Ancestralidade, nos lembra a filósofa Katiúscia Ribeiro, significa sair do campo racional e se permitir sentir com o coração:

“Pensar com o coração, sentir com o coração e analisar a vida pulsante, que possibilita se reconhecer e continuar um legado que nasce a todo tempo e se mantém vivo no pulsar de nossa existência. Aceite o convite com que a Revista Amarello lhe presenteia neste momento para refletir nossos rumos e sentidos de viver. Porque ‘Pensar a ancestralidade não está em compreender qual o sentido da vida, a partir de texto complexo e termos difíceis, está em viver em movimento com a vida, este eterno vir a ser, é uma roda sem fim, porque o futuro é ancestral’”.

Garanta a sua Amarello Futuro Ancestral aqui.

Cabeça quente, 2023.
Artes Visuais

Portfólio: Luísa Matsushita

Fotos de Edouard Fraipont.
Cortesia Galeria Luisa Strina.

Qual foi a última vez que você se deparou com humor nas artes plásticas? É coisa das mais raras, dessas que aparecem com a frequência de um eclipse — e um eclipse solar, não um eclipse lunar. 

Luísa Matsushita por Dennis Siqueira.

Vê-se por aí ironia, críticas mordazes, acidez opinativa, mas o humor, é bem verdade, não costuma dar as caras. Por algum motivo, em se tratando do mundo das artes plásticas, existe um preconceito que circunda a abordagem humorística, como se ela inevitavelmente fosse resultar em arte de menor escalão ou qualquer sandice que o valha. Desnecessário dizer que isso não faz o menor sentido. O humor é, e sempre foi, uma ferramenta humana para lidar com todos os tipos de sentimentos, ressoando leveza e abraçando as profundidades mais inalcançáveis. Felizmente, há quem desafie essa regra não escrita sem em nenhum momento deixar cair o nível de sua produção. 

Luísa Matsushita é uma dessas artistas, que, no auge de sua maestria, levanta as sobrancelhas e pergunta: “Se for autêntico e me representar bem… que mal tem?”

Turminha, 2023.
Caminhão de melancia, 2023.

Enquanto Lovefoxxx, líder da banda Cansei de Ser Sexy (CSS), convida quem estiver ouvindo a adentrar o seu universo e a compartilhar risos diante da desgraça e da glória, criando uma tapeçaria onde todos se sentem à vontade em sua própria pele — e, veja bem, ela já o fazia antes que isso entrasse nas demandas do mercado, no começo dos anos 2000. Até os dias de hoje, a cativante persona da vocalista, que nunca leva a si mesma demasiadamente a sério, cultiva empatia através de um espírito positivo e debochado. Prova disso é que, recentemente, o CSS foi a grande sensação do Primavera Sound São Paulo, mesmo com o festival contando com nomes de peso como The Cure e The Killers. A comunicação sincera com o público se inicia com sacadas líricas perspicazes e alguns sorrisos, criando uma troca verdadeira que se dá de igual para igual. 

Guarda-roupa, 2023.
Berimbau, 2023.

Algo similar acontece com suas pinturas. Transformar um guarda-roupa em reflexões sobre emoções e vivências não é tarefa simples. Ela realiza essa proeza com uma irreverência e assertividade tão marcantes que até mesmo aqueles que não se interessam por artes plásticas se sentiriam em casa.

Já pensou encarar uma pintura em uma galeria chamada Cebolão ou Todo mundo gosta de uma graminha? Até parece um desafio questionar a sinceridade de um processo artístico que resulta em títulos tão inusitados (Envelopa de vulva é outro que não deixa barato). Com sua música, chacoalhou de Glastonbury ao Japão; com seus quadros, cria mundos abstratos em que a estética se mistura com a leveza e a política dança com o cotidiano, tudo num samba equilibrado de formas e cores que evocam tanto precisão quanto espontaneidade.

Todo mundo gosta de uma graminha, 2023.
Carnaval nipo, 2023.
Jantar chique, 2023.

A qualidade de suas pinturas é, ao mesmo tempo, surpreendente e esperada, pois não estamos falando de uma mudança de cenário completa, incontornável, mas sim de uma progressão natural de sua expressão criativa. As duas vivências artísticas se complementam. O talento que flui por diferentes métodos de expressão vem do mesmo lugar. No interior de São Paulo, ela tirava inspiração até do céu e das árvores do matagal ao redor. E agora, toda essa sensibilidade se traduz em pinturas abstratas que misturam política, feminismo e um toque especial, e tão característico, de bom humor.

Cebolão, 2023.
Hambagu, 2023 (detalhe).

A sua primeira exposição solo, Se não for para chorar, eu nem saio de casa — realizada na Galeria Luisa Strina, em setembro e outubro deste ano —, é como um mapa emocional, onde cada pintura é uma casa nova, uma extensão de sua força criativa no mundo. Cada obra é um fragmento do universo interior de Luísa Matsushita. E, muito embora o apuro técnico esteja ali e esteja sobrando, nossos instintos criam uma sensação de que tudo vai além do visual, ecoando a mobilidade e a inalterabilidade de experiências vividas. 

Envelope de vulva, 2023.

Para quem acredita que a arte carece de espaço para o humor, Luísa Matsushita está aqui para desmistificar essa ideia. Ela transforma o ordinário em extraordinário, rindo na cara de qualquer seriedade que seria tida como o caminho natural. Se o melhor nome para um quadro for Envelope de vulva, que assim seja. Por essas e outras, as Luísas do mundo devem ser celebradas com intensidade. 

Até porque, se não for para rir ou chorar, ela nem sai de casa.

Jantar Chique, de Luísa Matsushita (2023). Cortesia Galeria Luisa Strina.

“Diariamente enfrentamos riscos de toda natureza”, escreve Nouriel Roubini em seu livro mais recente, Mega-Ameaças. “Alguns são de certo modo insignificantes. Existe a chance de errar e, ainda assim, seguir adiante como se nada tivesse acontecido. Caso eu invista US$100 em ações ordinárias, posso me dar ao luxo de perder parte ou o total da quantia. Contudo, se os riscos têm a probabilidade de causar prejuízos graves e duradouros, nós os chamamos de ameaças.”

O que, no mundo de hoje, pode causar prejuízos graves no curto e no longo prazo, constituindo essas grandes ameaças proclamadas por Roubini? As respostas não são das mais animadoras. Decerto, algumas já pipocaram na sua cabeça, por mais esperançoso que você seja. O primeiro lugar a que somos levados quando nos colocamos a pensar sobre esse tipo de coisa é, claro, o aquecimento global, que parece ter ligado uma contagem regressiva para o inevitável fim da humanidade e do planeta. E se essa última frase não foi suficientemente sinistra (deu para ouvir o som de trovão forte e a trilha sonora macabra de Bernard Hermann por aí?), aqui vai mais uma para fazer o cabelo da nuca de qualquer otimista levantar: as ameaças ambientais estão longe de ser as únicas que batem à porta. A verdade nua e crua é que uma análise fria sobre muitos aspectos do mundo contemporâneo vai levar irremediavelmente a conclusões devastadoras.

Às vezes, de tanta notícia ruim nos bombardeando, acabamos por adormecer nossas emoções quando lidamos com as muitas ameaças vigentes. Guerras não param de acontecer, calotas não param de degelar, economias não param de quebrar. No meio de tudo, a não ser que isso nos afete diretamente (como no caso, digamos, de uma pandemia), desenvolvemos uma impassibilidade. Por um lado, pode ser bom que não percamos a cabeça focando nossas energias tão somente em todo o mal que pode acontecer (se é que já não está acontecendo). Mas, por outro, fazer vista grossa também soa um tanto absurdo, pois é importante nos engajarmos em questões prementes tanto por termos algum poder de fazer algo para reverter uma situação ruim quanto para nos situar do que está acontecendo fora de nossas bolhas. Nesse contexto, Mega-Ameaças vem a calhar — ainda que seja um emaranhado de gatilhos, um verdadeiro teste àqueles que sucumbem à ansiedade quando diante de notícias alarmantes. 

Nouriel Roubini é um economista conhecido por seus diagnósticos sobre crises financeiras e economia global. Nascido na Turquia, ganhou a irônica alcunha de “Dr. Apocalipse” por falar publicamente, com tons de urgência, sobre um eventual colapso imobiliário dos Estados Unidos nos anos 2000 (isso antes da crise financeira global de 2008). A história, como bem sabemos, mostrou que ele estava correto e explicitou a perversidade e a ignorância daqueles que fizeram pouco de suas previsões. “Se eu pudesse escolher meu próprio apelido”, diz ele, “Dr. Realista parece mais apurado.” Considerando que já esteve certo em seus vaticínios, devemos ficar atentos ao seu livro Mega-Ameaças. Afinal, por mais tenebrosos que sejam, tais vaticínios não são delírios infundados. Muito pelo contrário: há um arcabouço lógico e teórico por trás de cada um deles. Embora a economia seja sua grande especialidade — ele, inclusive, atuou como economista-chefe do Conselho de Assessores Econômicos sob a administração de Bill Clinton na Casa Branca —, suas preocupações não se limitam apenas a essa área. Os avisos de Roubini podem ser assustadores, mas também são perturbadoramente plausíveis. 

Aqui estão algumas das grandes questões que ameaçam o mundo, comuns nas discussões de especialistas como Roubini:

Crises Financeiras: crises financeiras globais têm o potencial de causar recessões prolongadas e impactos duradouros nas economias, e não importa o quão sólida ela possa parecer. Essas crises geralmente se originam de especulação desenfreada, bolhas financeiras, endividamento excessivo e desequilíbrios comerciais. Um dos problemas provenientes e causadores de crises que mais preocupa é a estagflação (combinação pavorosa de estagnação e inflação). Com o crescimento econômico estagnado, desemprego e inflação ocorrem simultaneamente. Instituições financeiras desempenham um papel crucial nesse contexto, e a regulação financeira é vital na prevenção de crises futuras. Um exemplo notório de crise financeira global é justamente a de 2008, prevista por Nouriel Roubini e desencadeada pelo colapso da Lehman Brothers. Ela teve efeitos generalizados, incluindo uma recessão global, perda de empregos e queda dos mercados de ações.

Mudanças Climáticas: não tem como fugir do assunto: o aquecimento global causado pelas emissões de gases de efeito estufa representa uma das maiores ameaças para a humanidade. Isso resulta em eventos climáticos extremos, aumento do nível do mar, destruição de ecossistemas e ameaças à segurança alimentar. Reduzir as emissões e fazer a transição para fontes de energia limpa seria fazer o mínimo — e há quem diga que o navio da esperança já saiu do porto há tempos. A situação de Tuvalu, um pequeno país na Polinésia que corre o risco de desaparecer devido às mudanças climáticas e já se planeja para lidar com o próprio sumiço, ilustra bem o nível a que podemos chegar. Sinal dos tempos: o governo de Tuvalu anunciou que irá construir o país no metaverso, para que a população refugiada possa visitar o país quando quiser e, assim, preservar sua história.

Crescimento da Desigualdade: a crescente disparidade de renda e riqueza entre as classes sociais e os países é uma preocupação, pois pode levar a instabilidade social e política. O problema, evidentemente, não é de hoje, mas, conforme o tempo passa e pouco é resolvido, a questão vai se aprofundando e se procriando, o que, no fim, representa ameaças cada vez maiores. Políticas destinadas a reduzir a desigualdade incluem impostos progressivos, programas de bem-estar social e acesso à educação. Mas nada que é simples assim vem fácil. Um exemplo notável disso é o movimento dos “coletes amarelos” na França em 2018, um movimento espontâneo de pessoas vestindo coletes e protestando no país todo contra o aumento dos impostos sobre combustíveis e os custos de vida em geral.

Conflitos Geopolíticos: exemplos de conflitos não faltam. Você escolhe: Rússia versus Ucrânia, Palestina versus Israel, a guerra civil na Síria… E isso não só é lamentável para aqueles que estão no conflito, vivendo os horrores de uma guerra, pois os estilhaços ricocheteiam no restante do mundo. Como? Esses estilhaços atingem na forma de instabilidade regional, impacto na economia global, risco de conflito armado, refugiados e deslocamentos forçados, implicações para a segurança internacional, ameaças à cooperação internacional, e por aí vai. E a tendência é que eles continuem acontecendo, sempre com uma camada a mais de histórico e ressentimento. Toda e qualquer estabilidade econômica e social se vê prejudicada diante de tensões entre nações. Haja trabalho para a diplomacia de todos os países.

Tecnologia e Privacidade: os avanços tecnológicos trouxeram benefícios e, se usados corretamente, podem ser grandes aliados. Mas também levantaram preocupações sobre privacidade e segurança. A coleta indevida de dados, ciberespionagem e ataques cibernéticos representam ameaças à segurança nacional e à privacidade das pessoas. Não seria de se espantar que essas complicações incipientes se tornassem grandes querelas globais, originando sabe-se lá quais levantes. O escândalo de dados do Facebook-Cambridge Analytica em 2018, que recolheu informações pessoalmente identificáveis de até 87 milhões de usuários da plataforma, exemplifica como informações pessoais de milhões de usuários foram exploradas para fins políticos, destacando a importância da proteção da privacidade. 

Pandemias e Saúde Global: a vulnerabilidade global a surtos de doenças é uma preocupação séria. A falta de preparação, coordenação internacional e recursos para enfrentar pandemias pode ter consequências catastróficas. A pandemia de COVID-19, que começou no final de 2019 e ainda se faz sentir, é um exemplo marcante, resultando em milhões de mortes, perturbações econômicas globais e desafios de saúde pública em todo o mundo. Especialistas afirmam que é só questão de tempo até que a próxima ocorra.

Escassez de Recursos Naturais: parece um tanto óbvio que a exploração insustentável de recursos naturais, como água, alimentos e minerais, pode levar à escassez. Mas nem o aumento de consciência sobre o consumo sustentável foi capaz de conter a exploração indevida por grandes empresas. Ou seja, aquilo que é básico para qualquer vida humana está seriamente em risco. Em algumas regiões, o problema já se faz sentir e leva, inclusive, a outras complicações. A escassez de água no Oriente Médio, especialmente no Iraque, contribuiu para tensões geopolíticas e conflitos na região.

Desemprego Tecnológico: a automação e a inteligência artificial, que também podem ser aliadas se usadas corretamente, estão transformando a economia e podem levar ao desemprego em certas indústrias. É necessário esforço significativo para requalificar trabalhadores e adaptar políticas econômicas para uma força de trabalho em mudança. A automação na indústria manufatureira é um exemplo concreto disso, levando à perda de empregos em fábricas em todo o mundo e exigindo a reinserção de trabalhadores em novas ocupações.

Essas ameaças podem variar, mas todas elas têm o potencial de impactar profundamente o mundo. No final de Mega-Ameaças, Nouriel Roubini escreve: 

“Ao longo das próximas duas décadas, elas levarão a uma colisão titânica das forças econômicas, financeiras, tecnológicas, ambientais, geopolíticas, sanitárias e sociais. Todas essas ameaças são terríveis. Caso haja convergência, as consequências serão devastadoras. Resolvê-las exige um ajuste quântico para todos na Terra. Eu temo o que repousa além do próximo ponto de inflexão.
Já não há mais justificativas. Adias é capitular. O botão de soneca convida à catástrofe. As mega-ameaças estão avançando em nossa direção. Seu impacto abalará nossa vida e bagunçará a ordem global de formas até hoje jamais experimentadas. Aperte os cintos. Vai ser uma viagem atribulada em meio a uma noite tenebrosa.”

As palavras são fortes e um tanto performáticas. Mas de maneira alguma isso não quer dizer que sejam desarrazoadas. O momento é crítico, e isso vale tanto para os Drs. Apocalipse e Drs. Realistas quanto para os Drs. Otimistas. Se é que é possível acreditar num futuro auspicioso, ele só se formará a partir da mudança — e essa, convenhamos, parece distante. 

Cabeça quente, de Luísa Matsushita (2023). Cortesia Galeria Luisa Strina.

Uma terça feira trivial, comum como todas as outras. Cidade cheia, farol congestionado por uma obra no asfalto. Há um buraco no chão, não há o que fazer, é preciso parar. Observo os malabaristas da faixa de pedestres que jogam garrafas pet coloridas para o céu azul, sorriem passando pelos carros. Sigo dirigindo com lentidão, olhando com raiva para o relógio. Os transeuntes apressados, bandeiras de futebol penduradas à venda entre os postes, que estampam rostos de políticos em quem não acredito. Bem disse Cazuza: Meu partido é um coração partido.

Irrito-me com o barulho, o tempo que custa a passar, as buzinas. Não encontro nenhuma música que caiba dentro de mim. Escuto um podcast sobre aquecimento global, nem a humanidade cabe no planeta mais.

Pela janela, vejo lentamente um carrinho de supermercado se aproximar da esquina, o homem que o conduz está sem camisa. Leva na cesta do seu carrinho um cobertor cinza, velho enrolado, pedaços de madeira, sacos plásticos de lixo preto. Para, olha os malabaristas também. Não me vê.

Olho seu carrinho de aço e penso que talvez, essa seja sua casa. Como uma tartaruga, o homem leva sua casa junto com ele. Sua pele é marcada por cicatrizes, seus olhos são tristes. Seu lugar à margem da sociedade está estampado na sua presença, cabelos, unhas e pés descalços. Por onde andei com tanta urgência que me esqueci o privilégio que é ter um teto? Me culpo.

O cobertor velho se mexe e de dentro dele sai um filhote de cachorro. Focinho brilhante, olhos espertos. O homem estende a mão, pega o cachorro e começa a niná-lo, dançando com ele na calçada. Rodopia, sorri. Ele e seu bichinho são uma coisa só. A leveza do amor por alguns segundos me faz esquecer as marcas da rua que antes eu tinha visto nele. Agora o que eu via eram outras marcas, as marcas de um laço de afeto eram reveladas na ternura com que ele acolhia o tal filhote.

Um dia alguém ninou esse homem, penso. Esse gesto foi aprendido e está em algum lugar dentro dele, sendo replicado ali, na rua, a céu aberto. Houve um tempo em que esse homem não foi só abandono, um tempo em que cantaram para ele. Um dia ele morou no ventre de alguém e não na rua. E em algum espaço isso está preservado naquela existência tão carente de recursos e está sendo passado para um outro ser vivo.

Contemplo o dueto pela janela. O homem e seu amor são bonitos de se ver. O filhote junto a seu peito, aconchegado. Ele passa seus dedos sujos na testa do cãozinho, olhos que se fecham agradecidos.

O farol abre. No dia seguinte, a caminho do trabalho, procuro pelo homem e seu cachorro, mas encontro apenas as garrafas pet coloridas dos malabaristas.

Por vezes, quando passo pelo cruzamento, lembro-me desses dois. O amor é mesmo um malabarismo. Uma valsa bonita de se contemplar, que fica dançando dentro da gente. Lembrar desse sentimento é o que humaniza nosso coração partido. E aconchega, como uma canção de ninar.

Serenidade, de Odilon Moraes (2000). Em exposição de 09 de novembro a 16 de dezembro na Galeria Página.

As ilustrações que estamos acostumados a ver estampadas nas páginas agora ganham um novo âmbito: as paredes. Simples, e complexo, assim. Talvez a ideia soe um tanto estranha num primeiro momento, mas, na medida em que se pensa um pouco mais sobre o assunto, tudo começa a fazer sentido. Na verdade, começa a fazer muito sentido. Foi, então, com os bons eflúvios de uma ótima ideia e a bênção de toda uma comunidade artística enfim colocada em posição de destaque, que no mês de agosto a cidade de São Paulo ganhou sua primeira galeria de arte que olha para o livro ilustrado, dedicada à exposição e à comercialização de ilustrações. Idealizada por Isabel Malzoni, sócia-editora da Caixote, e localizada na Vila Madalena, a Galeria Página chega despertando muita curiosidade e interesse.

Ilustração de Dalton Paula para o livro “Homem-bicho, bicho-homem”, lançado pela Editora Caixote.

“Fui experimentando e fazendo livros”, conta Isabel sobre sua trajetória no mercado editorial, que já chega a dez anos. A busca constante pela inovação e a reivindicação ferrenha pelo próprio corpo de regras, dois conceitos tão importantes para a Caixote, foram fundamentais para consolidar o nome da editora — que ganhou prêmios Jabuti — e pavimentar o caminho corajosamente independente que levou até a Galeria Página. 

“O que a gente faz não é uma resposta, é um questionamento”, diz ela. “Se colocar a ilustração de um livro na parede, o que acontece?”

O livro ilustrado é o gênero literário feito pela soma do texto verbal, o visual e a materialidade do objeto. Esse tipo de livro só se faz completo com a leitura conjunta de todos esses elementos (nem sempre o texto verbal existe, aliás). A Galeria Página, portanto, surge quase como um estágio seguinte dessa leitura, a partir do desejo de extrapolar o potencial artístico do livro ilustrado e de valorizar os artistas que produzem essas ilustrações. Com as ilustrações expostas nas paredes, fora dos limites das páginas, há uma expansão sensorial e interpretativa que comprova a riqueza artística desses trabalhos. 

 A primeira exposição, que ficou aberta entre 10 de agosto e 23 de setembro, levou o nome de Padê: autores negros nos livros da Editora Caixote com ilustrações de Carol Fernandes, Dalton Paula, Larissa de Souza, Paty Wolff e Rodrigo Andrade. E vem mais por aí agora em novembro.

 Confira nossa conversa com Isabel.

Gostaria que você contasse um pouco sobre a sua experiência na Editora Caixote, que, se eu não estiver enganado, já chega a uma década. 

Isabel Manzoni: Isso, a gente já vai fazer dez anos.

É bastante tempo. Como foi esse período de crescimento da editora?

IM: É engraçado… Quando comecei a Caixote, jamais imaginaria que, dez anos mais tarde, eu estaria neste ponto. Se me dissessem que a gente ia fazer essa trajetória um pouco diferente, eu não ia acreditar. Tudo começou em 2013, quando eu fui para a Feira de Frankfurt, já com planos de começar a editora. Mas o primeiro livro da Caixote nasceu, de fato, em 2015. E eu só lançava livros digitais por aplicativo, de leitura multimodal. Fui bastante para o lado da inovação, porque foi uma das primeiras editoras a fazer esse tipo de livro no Brasil. Isso até 2019, quando eu publiquei o primeiro impresso. E, de lá para cá, já são 16 títulos de livros impressos.

Foi um percurso pouco usual. Normalmente, são as editoras de livro impresso que resolvem se arriscar no digital. Eu fiz o inverso, comecei me aventurando pelo digital. Fiquei fazendo isso durante cinco anos, até que parei e lancei o primeiro livro impresso. Deu super certo. Mas também não foi um livro que nasceu de uma forma muito óbvia.

Fiquei três anos produzindo e, na reta final, a gente ganhou um edital para fazer o impresso. Aí fizemos o impresso e lançamos tudo junto com uma encenação, que acontecia, principalmente, em festivais literários. Havia encenações sobre um trecho da história em que a gente usava, além das duas atrizes, a trilha sonora do aplicativo e as projeções das animações. 

A Caixote já nasceu com uma característica questionadora. E, por ser uma editora muito pequenininha, como ainda somos, nunca teve uma preocupação muito grande de se encaixar. Eu fui experimentando e fazendo livros. Essa liberdade foi, de um jeito natural, direcionando um pouco para as artes visuais. 

Qual foi o primeiro momento em que isso aconteceu?

IM: Acho que talvez esse primeiro momento foi quando a gente fez livros para crianças com textos inéditos de Itamar Assumpção. Ele faleceu já há 18 ou 19 anos, mas deixou livros escritos para criança nos cadernos dele. Eu fiz esses livros ilustrados pelo Dalton Paula, um artista visual super importante. Isso foi imediatamente vendido pela galeria dele para colecionadores de arte visual. 

Então, eu fui percebendo essa aproximação e a gente foi indo cada vez mais para esse lado. Daí eu lancei um livro juvenil chamado Uma Boneca para Menitinha e convidei a Larissa de Souza para ilustrar. No período entre a gente contratar ela para fazer e o livro sair, ela acabou tendo um boom e ficou em evidência, então foi ótimo. Acho que tinha uma coisa muito pessoal mesmo nas motivações que fizeram com que essa aproximação fosse acontecendo cada vez mais, era uma percepção minha de que havia um interesse muito grande das pessoas. 

Como essas experiências ajudaram a fomentar a vontade e as ideias que resultaram na Galeria Página?

IM: Está tudo muito interligado a como a gente faz livro ilustrado na Caixote, que é com esse entendimento de que o ilustrador é um coautor. A gente não faz como se fazia antigamente, e como ainda se faz em algumas editoras, com o autor do texto sendo o principal e o ilustrador como um agente secundário. A gente trabalha com livro ilustrado, que é um gênero que mistura as duas coisas, tanto o texto verbal quanto a narrativa visual. Elas são uma espécie de dança — e não se dança sozinho. Temos essa percepção do ilustrador não como algo que está a serviço de um texto, mas sim como esse trabalho artístico, autoral, autônomo. Para nós, no processo de fazer um livro, sempre é um impacto muito positivo quando se vê o livro impresso de fato. É sempre aquela coisa: Gente, que maravilhoso! Depois, claro, você vai fotografar isso, digitalizar, e a coisa vai mudando. Mas o impacto de ver aquilo no mundo é muito grande. 

A gente já tinha essa percepção fazendo os livros, de que aquilo de ter a ilustração diante de você era muito interessante. Há uma postura de reverência com relação ao trabalho artístico que você enxerga não só em adultos, mas também em crianças. É o tipo de coisa que faz a gente pensar: Talvez não seja só eu que ache isso massa, talvez outras pessoas também achem. E a gente foi testando isso. 

Expor os originais em lançamentos sempre gera muito interesse, inclusive o interesse de compra. Aconteceu assim no lançamento de um livro que a gente fez em Belo Horizonte. A gente expôs algumas ilustrações despretensiosamente e muita gente se interessou. E aí eu comecei essa conversa com os artistas, de olha, eu acho que tem um negócio aí, sabe? Acho que tem uma possibilidade. Aí em março deste ano, a gente lançou um livro que chama O que incomoda o touro não é a cor mas o movimento, do Renato Moriconi, um artista excepcional. É um livro ilustrado, um livro-imagem que não é infantil, feito todinho a carvão e que mostra a coreografia de um minotauro com uma bailarina que remete a uma coisa de toureiro. Nossa, é um livro difícil de fazer, no sentido de que, nos moldes atuais, acaba sendo de difícil encaixe. Não é literatura infantil, não é quadrinho… Como vender esse livro?

Pensamos: É um livro de arte, então vamos fazer uma exposição com isso e o lançamento vai ser uma exposição. Alugamos uma galeria aqui na Vila Madalena por um final de semana e montamos uma exposição. E foi muito interessante. Como era um autor já bastante conhecido da literatura infantil, bombou. Foi um acontecimento! A gente botou os originais para vender e conseguimos chamar a atenção das pessoas.

Mas como era essa exposição? Era o livro exposto, de fato, ou eram as artes separadas do livro?

IM: Eram os originais. É um livro feito de desenhos pequenos que, na sequência, parecem uma coreografia. Dá quase para escutar música, dá para ver essa dança acontecendo pela sequência de imagens. Os originais, a maior parte deles, são os desenhos no formato A5, pequenininhos assim, e ele tem uma sequência certa no livro. Mais de começo, meio e fim. Mas, na exposição, o artista pegou os mesmos desenhos, os originais, e propôs uma outra dança. 

Mesmos passos, outra dança.

IM: Exato. E o livro não tem palavra, é só imagem mesmo. Então, com as mesmas imagens, o significado mudou completamente, só de colocá-las em outro lugar e mudar a ordem original. No livro, elas acabam ficando presas, digamos assim, àquela ordem. Em uma galeria, essa ordem pode mudar diariamente. Era um teste, mas logo deu para ver que o interesse existia. Ao mesmo tempo, também tem um público a ser formado, porque não é o público necessariamente das artes visuais, não é o público que frequenta a galeria. Será que é o público que frequenta a livraria? Talvez. Mas e aí, o que fazer? Aí a gente começou a misturar as duas coisas. E agora a gente está nessa empreitada aí de descobrir quais são os caminhos para fazer isso acontecer.

Qual é a diferença entre livro ilustrado e livro com ilustração?

IM: O livro com ilustração é, por exemplo, livros de poesia que têm uma ilustração no meio. De fato, essa ilustração é algo que serve àquele texto. Há uma mensagem verbal e a ilustração chega ali tão somente para ilustrar, sem interferir muito. O livro ilustrado como gênero, que em inglês é chamado de picture book e no Brasil ficou assim livro ilustrado ou livro álbum, é um gênero em que o texto e a imagem necessariamente andam juntos. São indissociáveis. Um não é mais importante que o outro. A imagem é uma coisa e o texto vai contar outra. Na soma, tem a leitura final. Isso é muito comum na literatura infantil. Por isso que a gente chama de coautor. 

E aí dentro disso, você coloca o livro imagem também, que não tem texto verbal e a narrativa toda é feita a partir do visual.

Levar a ilustração a um outro nível, que é a galeria, é interessante, porque expande o público também. É quase que um desafio ao que está tão marcado na cabeça das pessoas. Estou errado ou a ilustração de fato ainda é tida como algo praticamente exclusivo de produtos infantis ou infanto-juvenil? 

IM: Esse costuma ser o destino do livro ilustrado: ser considerado literatura infantil. Aí a gente começa a questionar os porquês disso. Tem um ponto que é: quando você vai numa livraria, em especial no espaço infantil, você vai achar muito livro que não é infantil. Livros que só estão ali, porque não tem outro lugar em que eles se encaixam. Há uma produção, mas as nomenclaturas mais abrangentes, mais específicas, ainda não emplacaram. E agora eu acho que, com a Galeria Página, é uma questão de lutar pelo reconhecimento da ilustração, pelo menos a ilustração do livro ilustrado, como uma arte autônoma, potente e clarificante. Acho que expande realmente e aí uma coisa reverbera para outra. 

A exposição que a gente está agora chama Padê, que é uma exposição que nasceu em função de outra exposição. A gente decidiu começar assim, porque está acontecendo nesse momento, no Sesc Bom Retiro, a Karingana, que é uma exposição super importante sobre artistas negros na literatura infantil. Existe uma questão de racismo editorial muito forte e ninguém está se movimentando muito para lidar com isso, por isso o tema é tão relevante. E eles colocaram seis obras da Caixote lá. Eu acho isso tão importante, acho isso um marco para a literatura infantil. É algo que eu quero ecoar. 

Aí a gente montou a Padê com os originais, porque a exposição no Sesc não tem originais, eles fizeram com reproduções. A gente montou aqui com os originais desses livros feitor por artistas negros. A Padê, então, começa assim, um pouco referente à Caixote, mas também referente à uma problemática do mercado. Uma coisa alimenta a outra. 

Ilustração de Dalton Paula para o livro “Homem-bicho, bicho-homem”, lançado pela Editora Caixote.

Tudo se completa. Apesar de, há dez anos, você não ter previsto isso, de algum jeito faz muito sentido você ter chegado nesse lugar. A Galeria Página, no final, joga luz tanto sobre as ilustrações e ilustradores quanto sobre os livros, ainda que as páginas não estejam ali. 

IM: Quando você para e pensa, logo vê a importância imprescindível de quem ilustra. Se você tivesse outro ilustrador, por exemplo, o livro seria outro. Seria outro projeto gráfico, seria uma obra totalmente diferente. No projeto, é importante a escolha do papel, a escolha do formato. Tudo é importante para aquela experiência de leitura, que é diferente de um romance, por exemplo, que tanto faz se você vai ler no Kindle ou naquela edição específica. Isso não faz diferença na narrativa. Faz diferença como experiência, mas não na narrativa. No livro ilustrado, faz. E tirar as ilustrações das páginas transforma tudo de novo. Mesmo assim, por algum motivo, aquilo ainda é potente, mesmo que de outro jeito. Talvez aí esteja a explicação e a graça do que é arte. 

Então, o que a gente faz não é uma resposta, é um questionamento: se colocar na parede, o que acontece? 

Como vem sendo a resposta?

IM: Quando a gente abriu, aconteceu uma coisa muito interessante. São ilustrações de seis livros que estão expostos, todos eles já publicados, com exceção de um que ainda não tinha saído. A gente abriu dia dez de agosto e ele seria lançado no dia 12. Ou seja, ninguém conhecia a história do livro na abertura da galeria. Ninguém tinha lido, mas as obras referentes a ele estavam lá. A autora fez uns quadros enormes, lindos. E não é que foram os quadros que a gente mais vendeu? Uma loucura. Por quê? Porque aquilo faz muito sentido como ilustração. E, como a arte não é essa coisa que a gente consegue fechar, aqueles quadros fazem muito sentido na parede também. Essa é a magia.

O espaço, a disposição, isso muda tudo. Mas não necessariamente tira a força daquilo. 

IM: Eu vejo como dois tipos de encantamento: tem o encantamento que vem apesar do livro, a imagem pela imagem; e tem também, em outros momentos, o encantamento que vem também pelo que aquela imagem representa na história. Funciona nas duas instâncias. E, como há muitos ilustradores fazendo trabalhos incríveis, não é uma forçação de barra dizer que o que eles produzem merece estar na parede, sabe?

No Brasil, não há nada similar, mas tem alguma galeria fora daqui com essa proposta ou algo parecido?

IM: Pessoalmente, não conheço nenhuma. Mas sei que existe uma em Londres, que é famosa. Eles até vendem pela internet algumas coisas. Sei disso porque já pesquisei uma vez para comprar. E depois, pesquisando mais, descobri que existem algumas outras, tem no Japão, na Coréia. Tem um ilustrador famoso, Roger Mello, que transita muito ali no Japão e na Coréia. Não sei exatamente como elas funcionam, porque nunca visitei, mas sei que existem. 

Para achar o modelo aqui foi uma mistura do que a gente entende de livro como editora e de promover uma aproximação com outras galerias. Tive que aprender sobre como funciona a coisa de você ficar com as obras dos autores e como negociar este tipo de coisa em seu nome. Fui pesquisando nas galerias de arte contemporânea. 

E, claro, está tudo aberto para ser aprendido e vivido. Não tem nada fechado. Daqui a três meses, pode ser um negócio totalmente diferente. 

Sempre há aquela dúvida: propostas inovadoras geram mais interesse ou geram mais receio? Para você, qual dos dois é mais verdadeiro?

IM: Eu tenho as duas experiências. Fazer e dar certo, fazer e dar errado. Quando eu fiz os aplicativos de leitura multimodal, eles deram certo do ponto de vista de crítica. Mas não deram muito certo se pensarmos em termos de quantas pessoas de fato usaram. Eu comecei em 2013 a ir atrás e consegui fazer em 2015, mas o timing não foi dos melhores, porque, na primeira metade dos anos 2010, o iPad estava engatinhando, pouquíssima gente estava fazendo isso. Por isso, foi elogiado, ganhou inclusive Prêmio Jabuti. As pessoas me procuram até hoje para falar disso e, em literatura digital, a Caixote é referência. Mas, ao mesmo tempo, não foi algo que funcionou como empresa, financeiramente. Então, tive essa experiência de fazer algo inovador que, no fim, não deu muito certo.

Mas, no ano passado, lançamos um livro chamado Lá. É um livro objeto. O livro foi um grande sucesso, porque é uma caixinha que tem três explorações dentro e, conforme você vai abrindo e desdobrando as páginas, você vai andando, você vai indo mais fundo nas descobertas. Chega um momento em que você até lança um foguete. É uma graça. Ele é complicado de explicar, mas de ler e entender é fácil. Não tem uma pessoa que não compra o livro quando vê. Ou seja, experimentei e deu certo.

Me sinto autorizada a continuar experimentando. A Página agora está começando, não sei o que vai acontecer. Também espero estar aprendendo, mas eu acho que tem um chão ainda pela frente para entender o que ela é e o que pode ser.

Desses livros da Caixote, tem algum escrito por você?

IM: Eu lancei um livro esse ano. Chama Quanto bumbum!, que já tinha sido lançado na versão de aplicativo antes, mas agora fiz essa versão impressa junto com a Bruna Lubango, que é uma artista que eu adoro. Então, ele é muito diferente do que era como experiência digital. Lancei em maio. É a história sobre um bichinho que está percebendo que está rolando alguma coisa no entorno dele, mas não consegue enxergar, porque os bichos vão chegando e entrando na frente dele. Ele é pequenininho e, no final, ele só vê bumbum, porque é o que acontece com as crianças, que ficam uma parte grande da vida na altura da nossa cintura, vendo só bumbum. Deu super certo, até porque o título era chamativo, era algo para as crianças poderem brincar de falar a palavra bumbum, que elas acham a maior graça.

Eu também acho. Você falou e eu fiquei com vontade de sorrir, então está valendo para todos nós. Para finalizar: quais as próximas exposições da Galeria Página?

IM: Vamos abrir uma nova exposição de pinturas e ilustrações do Odilon Moraes, que é uma grande referência nacional em livros ilustrados. Ela se chama Odilon: Suas Pedras e Luas, e vai de 9 de novembro até 16 de dezembro. É uma exposição para se firmar mesmo como galeria e aí ver o que vai ser do ano que vem a partir dessas experiências.

Local: Galeria Página — Rua Purpurina, 307 – Vila Madalena, São Paulo, SP

Funcionamento: De quinta a sábado, das 11h às 18h30

Hambagu, de Luísa Matsushita (2023). Cortesia Galeria Luisa Strina.

O jogo da amarelinha não é apenas a realização literária mais célebre de Julio Cortázar (1914-1984), mas também, ao lado de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez (1927-2014), é um dos romances mais importantes e influentes tanto do boom literário latino-americano da década de 1960 quanto de toda a literatura moderna. Ou melhor… Seria a obra de Cortázar um único romance? Um único livro talvez sim, se pensarmos em termos físicos (ou de arquivos digitais), mas é mais preciso dizer que, neste livro, na verdade existem alguns romances. 

Julio Cortázar. Foto: Ulf Andersen.

Como o próprio Cortázar explica (aqui na tradução de Eric Nepomuceno) com sua “tabela de leitura”, uma breve instrução que precede o capítulo de abertura, “Este livro é, à sua maneira, muitos livros, mas é acima de tudo dois livros. O leitor está convidado a escolher uma das duas possibilidades seguintes: O primeiro livro se deixa ler na forma comum e corrente, e termina no capítulo 56(…) O segundo livro se deixa ler começando pelo capítulo 73 e depois na ordem indicada ao pé de cada capítulo.”

Em pleno 2023, ano que marca o aniversário de 60 anos da obra, a proposta ainda soa com frescor. A ideia de um leitor ativo que toma as rédeas da história se popularizou nas décadas seguintes no formato de livros infantis, nos quais as escolhas do leitor são feitas do jeito mais simples e didático possível, e também na forma de videogames e jogos que não necessariamente caminham de maneira linear, mas conforme as opções feitas por quem está jogando. Recentemente, usaram o formato na série Black Mirror, da Netflix. No caso dos romances, porém, isso nunca virou mainstream. Por incrível que pareça, a audácia do magnum opus de Cortázar ainda chama a atenção — e isso diz muito sobre duas coisas: sobre a literatura contemporânea e a força d’O jogo da amarelinha. 

As muitas promessas e projeções feitas em cima da literatura latino-americana talvez não tenham se concretizado. Ou talvez tenham, mas não pela brecha radical, revolucionária e anti-establishment aberta principalmente por Cortázar e Amarelinha, mas também por Vargas Llosa e Conversa na Catedral, García Márquez e Cem Anos de Solidão. Não virou moda quebrar as estruturas nessa escala, pelo menos não no nível de modificar tanto a experiência da leitura, pois, se o boom da literatura latino-americana se deu pelos leitores e não pelos editores (como, aliás, costuma acontecer com movimentos realmente importantes), quando essa lógica voltou ao seu estado natural de mercado ditando a produção, logo as ideias mais vanguardistas foram sendo estruturalmente cerceadas. 

Mas, de toda forma, a revolução foi televisionada (ou, no caso, impressa) e o caminho foi aberto, causando grande impacto. É como escreve Carlos Fuentes (1928-2012), outro autor de mão cheia que também fez parte desse momento de globalização da literatura latino-americana, em sua resenha de 1966:

Em suma, O jogo da amarelinha, na sua profundidade de imaginação e sugestão, no seu labirinto de espelhos negros, na sua irônica potencialidade através da destruição do tempo e das palavras, marca a verdadeira possibilidade de encontro entre o imaginário latino-americano e o mundo contemporâneo.

O jogo da amarelinha tem grande sucesso: é o equivalente latino-americano de livros como As Asas da pomba [romance de Henry James] e Suave é a noite [romance de F. Scott Fitzegeral].

Carlos Fuentes, 1966

O primeiro romance que existe em O jogo da amarelinha é lido de ponta a ponta, seguindo a tradição. Já o segundo, vai se formando pela leitura dos capítulos fora de sequência, de acordo com as instruções do autor. Os outros, podem ser montados a bel prazer por quem estiver lendo. Embora esse tipo de conceito estrutural e narrativo seja mais facilmente digerido pelos leitores do século 21, mais familiarizados com os experimentos literários pós-modernos, o alvoroço foi altamente positivo para o público que inicialmente recebeu Amarelinha. Era um abandono bem-vindo das regras rígidas de antes, uma fuga que exigia que o leitor saísse de qualquer zona de conforto. Assim, entre a polêmica e a apreciação, tanto o livro quanto o seu autor alcançaram imediatamente a fama e infâmia internacionais. Julio Cortázar, é verdade, já havia consolidado sua reputação como um escritor talentoso e inovador com tour de forcées como Bestiário (1951) e As armas secretas (1959). Sua escrita anterior, repleta de contos curtos e narrativas desafiadoras, sinalizava sua inclinação para a experimentação literária e sua capacidade de lidar com temas complexos. Mas O jogo da amarelinha foi sua grande catapulta para o reconhecimento global.

Na primeira leitura, o livro é dividido em duas seções principais, “Do lado de lá” e “Do lado de cá”, com uma terceira, “De outros lados”, que o autor afirma que o leitor “dispensará, sem remorsos”. O protagonista de O jogo da amarelinha é o boêmio Horacio Oliveira, escritor argentino radicado em Paris, desanimado com o fim de seu relacionamento com Maga. No início do romance, Oliveira é mostrado como uma alma perdida. Ele vaga pelas ruas de Paris procurando em vão a visão de Maga, torturado pela lembrança dela. Grande parte de seu tempo é passado com seus amigos, artistas fracassados e descontentes como ele. Essa convivência, no entanto, oferece pouca clareza ou paz e, assombrado pela memória de suas próprias falhas, Oliveira é incapaz de conciliar as peças do seu passado e presente. Na segunda seção, “Do lado de cá”, o pobre-diabo retornou a Buenos Aires, deportado, e foi morar com uma ex-namorada, ainda longe de resolver sua dor pela perda de Maga. Suas obsessões começam a ter terríveis consequências.

Embora a leitura deste primeiro romance seja linear, a narrativa não é nada simples, alternando entre capítulos na primeira e terceira pessoa. A primeira, no presente; a terceira, no passado. Dessa maneira, Cortázar desenvolve o personagem através de um processo de agregação e justaposição, com capítulos que nem sempre se prefiguram ou respondem diretamente uns aos outros e mudam no tempo, no espaço e na voz. Como Oliveira é um homem fragmentado, os recursos aos quais o autor lança mão são importantes para o desenvolvimento do personagem. É quando a inovação se preza a ir adiante, bem além do que somente sua proposta de rearranjar as bases sobre as quais se erigiam as fundações literárias, agregando não só exuberância à técnica mas também camadas metafóricas ao retrato. Toda a complexidade estrutural não tem a ver com um escritor que quer provar que pode escrever algo assim, que tem o desejo de se estabelecer contra alguém que dita as regras. Tem a ver, na verdade, com a experiência do personagem principal e do ensejo revolucionário de seu autor. Entre as idas e vindas de leitura, experiencia-se um pouco da irresolução de Horacio e um outro tanto da insatisfação de Cortázar, além de uma peregrinação profunda pelos estados mentais de ambos.

Oliveira mira no futuro mas inevitavelmente acerta o passado e, como resultado, não encontra um sentido unificador do presente ou de si mesmo. Nesse sentido, a primeira leitura do livro talvez prepare o leitor, tanto estruturalmente quanto tematicamente, para a suposta disjunção da segunda. O Oliveira da segunda leitura, ao contrário do primeiro, reflete não só sobre o sofrimento, mas sobre a capacidade de cura da arte e, em particular, da linguagem. Ou seja, o Oliveira da segunda leitura revela-se como um homem em busca — e, se alguém procura por algo, em algum nível existe a expectativa verdadeira de que, algum dia, não importa o quão distante ele esteja, se encontre o que está sendo procurado. O enfoque metafísico e metalinguístico da segunda leitura é favorecido pelo enigmático Morelli, personagem de filosofias similares às de Oliveira e Cortázar. Escritor, ele defende um novo tipo de arte literária, uma “narrativa que atuará como coagulante de experiências”, que criará, por sua vez, um novo tipo de homem ao criar um novo tipo de leitor, tornando-o “um cúmplice”, um companheiro de viagem.” Assim, o metafísico torna-se metaficcional, e o tipo de romance que o personagem defende é aquele que está nas mãos do leitor. Na superfície, portanto, o livro pode até parecer pessimista, mas, ainda que elenque frustrações e exaspere desesperos, a busca constante lida em qualquer versão denota a existência de uma esperança incorrigível.

Mas Cortázar, no fim, é um artista que prefere a provocação ao pronunciamento, então a busca de Oliveira na segunda leitura permanece sem solução. Melhor assim. Melhor ficar dentro do labirinto. O jogo da amarelinha não oferece conclusões definitivas ou delineadoras, apenas possibilidades.

Tudo em O jogo da amarelinha é um duplo fantasmagórico de si mesmo: cidades, personagens, culturas, até o próprio autor. Mas, na América Latina, a fantasia é história. A história como mudança não existe, há apenas a repetição compulsiva de atos rituais. Como Borges, Cortázar tenta pôr em movimento o tempo latino-americano através do fantástico. A Argentina, diz Cortázar, tem todo o futuro pela frente, e esta é a mais pobre das riquezas: eis a América Latina, em poucas palavras. Continuamente referidos às promessas do futuro, só poderemos responder com ficções se quisermos fixar o presente e sentir-nos vivos.

Carlos Fuentes, 1966

Publicado em 1963, o romance teve um impacto profundo. Além de suas inovações estruturais, também abordou questões políticas e sociais da época, lançando um olhar crítico sobre a realidade da América Latina. O livro foi publicado em um momento de agitação política da Argentina, que estava sob o regime autoritário do general Juan Domingo Perón (1895-1974). A atmosfera repressiva da época foi incorporada ao romance, e Cortázar, que era um crítico feroz do governo peronista, usou a literatura como uma forma de expressar o seu descontentamento. Com suas questões existenciais, filosóficas e culturais, O jogo da amarelinha refletiu a sensação de alienação e desilusão que muitos sentiam na época. A busca de Horacio Oliveira por sentido em sua vida é um reflexo da busca por sentido em um mundo em constante mudança que é, muitas vezes, absurdo e violento.

O livro ganhou um lugar de destaque no cânone literário latino-americano e tornou-se um marco da literatura contemporânea, não apenas na América Latina, mas em todo o mundo. 60 anos mais tarde, O jogo da amarelinha permanece uma obra essencial. Em um mundo onde o facismo parece sempre ter vez, é importante oferecer novas visões e extrapolar limites impostos explícita ou implicitamente. Ao abordar questões importantes e pulsantes de uma maneira nunca antes vista, Cortázar queria dar o poder na mão das pessoas e deixar que elas dominassem a própria narrativa, negando tanto o poder ditatorial de um autor quanto a passividade de um leitor. O jogo da amarelinha era um ato revolucionário, um grito altivo por mudança. 

Mudar a literatura e, quem sabe, mudar o mundo.

Meu dente de leite está sujo, de Luísa Matsushita. Imagem: cortesia Galeria Luisa Strina.

Não é necessário embarcar em muita abstração para vermos como o frenesi da era digital acarretou em uma aguda crise de atenção que permeia todos os aspectos das nossas vidas. Basta tomarmos as experiências pessoais como referência. Em um nível ou outro, seja você desta ou daquela faixa etária, seu nível de concentração não é igual ao que seria caso as distrações não fossem tantas. Cair no sono seria mais fácil, cumprir tarefas (domésticas ou profissionais) demandaria bem menos tempo, sentar para ver filmes ou ler livros seriam atividades consideravelmente menos heróicas. A era digital, com seu acesso imediato a dispositivos eletrônicos e mídias sociais, criou uma atmosfera de constante distração que debilita não apenas a nossa produtividade, mas também o nosso bem-estar. No fogo cruzado dos avanços tecnológicos e de uma profusão de informações verdadeiramente babélica, a habilidade de manter a concentração e o foco se tornou um desafio crescente em escalas micro e macro, afetando-nos enquanto indivíduos e enquanto corpos sociais. 

Como, então, controlar esse efeito sem que seja preciso se excluir do mundo?

Aproveitar o que esse aspecto hiperconectado da atualidade tem de bom, e conseguir não se afogar, seria o meio-termo ideal. Mas, enquanto o pêlo da nuca se arrepiar pelo pensamento aterrador de não conferir a notificação que acabou de chegar, a missão vai ser difícil. O imediatismo é uma demanda universal e, desde que bateu o ponto ao chegar para trabalhar, nunca mais largou a labuta. A multitarefa típica do que entendemos por digital — muitas vezes considerada valiosa — pode prejudicar a concentração, reduzindo a capacidade do cérebro de raciocinar em uma única tarefa por longos períodos ao mesmo tempo que rouba a eficiência das tarefas que são executadas de maneira concomitante. 

Se não nos concentramos nem diante daquilo que gostamos, o que isso faz de nós? Se estamos todos com as caras enfiadas no celular, como almejar por individualidades que nos definam? Estamos num estado de falsa produtividade, perseguindo debilmente os barulhos e vibrações que emanam dos celulares e computadores. Ainda que tais chamados não sejam atendidos, podem quebrar todo e qualquer fluxo de pensamento e, assim, diminuir a produtividade por vários minutos. Quando recobramos a atenção, coisa que somente com sorte chega a acontecer, uma nova notificação surge para nos derrubar novamente do cavalo.

De acordo com Johann Hari, autor do livro Stolen Focus, publicado em 2022, o típico trabalhador americano se concentra em uma determinada tarefa por apenas três minutos. E, em média, a cada dia nós tocamos ou verificamos nossos celulares mais de 2 mil vezes, além de gastarmos mais de três horas olhando para eles. Tarefas duram três minutos, enquanto viagens pelo celular se dão ao longo de milhares de toques, custando muitas horas diárias. Não à toa, fica quase impossível ler algumas páginas ou assistir a qualquer produção audiovisual sem que nossa atenção seja desviada. 

Além dos impactos na produtividade, a constante exposição a distrações digitais pode afetar negativamente a saúde mental. O estresse relacionado ao uso excessivo de dispositivos e à falta de concentração pode contribuir para a ansiedade e a sensação de sobrecarga. Mesmo quando não ouvimos os barulhos ou sentimos o aparelho vibrar, estamos sempre na expectativa da próxima novidade, fazendo com que, frequentemente, peguemos o celular gratuitamente, seja na esperança de nos deparar com uma notificação que não ouvimos, seja por mera força do hábito. Como pegamos o celular centenas de vezes ao dia, aquilo vira quase como um traquejo natural de nossa espécie — da mesma maneira que andamos de forma ereta e construímos edifícios cada vez mais altos. Há maneira melhor de usar nossos polegares opositores? 

Deixando a última pergunta de lado, vamos à outra: toda essa dificuldade de passar mais de três minutos fazendo algo, não seria tudo isso Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade? 

O TDAH é um tópico amplamente discutido e controverso nos dias de hoje, especialmente considerando a crescente dificuldade que enfrentamos para nos concentrar em tarefas diárias em um mundo cada vez mais repleto de distrações digitais — e a questão é outro ponto de discussão intrigante levantado por Hari em Stolen Focus

“De todos os tópicos do livro, este foi o que mais os cientistas que eu entrevistei discordaram. As evidências são muito claras de que existem algumas pessoas cujos genes as tornam um pouco mais vulneráveis a problemas de atenção. No entanto, a extensão em que esses problemas de atenção são causados pela biologia tem sido um tanto exagerada. Esta é a primeira sociedade humana que tentou fazer com que as crianças ficassem quietas durante oito horas por dia. Ninguém nunca fez isso antes porque é uma coisa absolutamente idiota de se fazer.

Então, acho que o diagnóstico de TDAH pode ser bom porque diz às crianças: ‘Isso não é culpa sua’. Mas acho que é prejudicial dar a eles uma história exclusivamente biológica, dizendo: ‘Isso é apenas um problema no seu cérebro’.”

Historicamente diagnosticado em crianças e adultos que exibiam sintomas como dificuldade de concentração, impulsividade e hiperatividade, o TDAH agora é colocado em um contexto mais amplo de atenção fragmentada. A abundância de estímulos pode tornar difícil manter o foco em uma única tarefa por longos períodos, algo que era mais comum em gerações passadas. Como resultado, muitos se perguntam se o TDAH não está mais para uma resposta adaptativa à nossa nova realidade digital. 

A complexidade do TDAH e sua relação com a sociedade moderna levam a uma série de debates e reflexões. É importante reconhecer que as dificuldades de concentração são uma preocupação generalizada, mas que nem todos que as experimentam têm TDAH. É crucial examinar o papel que o ambiente digital desempenha em nossa capacidade de concentração, pois, embora a tecnologia seja uma ferramenta poderosa, ela também pode ser uma fonte significativa de distração. Como sociedade, precisamos aprender a gerenciar nosso uso da tecnologia e a criar ambientes que favoreçam a atenção e o foco, independentemente do diagnóstico ou não de TDAH.

Naturalmente, as gerações nascidas nos anos 2000 estão no epicentro desse momento. É fácil imaginar o quão enraizada esteja a lógica digital em alguém que se desenvolveu justamente sobre essas bases, formadas na caldeira do caos contemporâneo. No entanto, mesmo aqueles que nasceram antes desse período também se veem jogados nesse mundo de distração. Talvez não sejam pessoas incapazes de desviar os olhos das dancinhas do TikTok e nem sejam pessoas viciadas em postar, postar e postar, mas, no fim, são igualmente dependentes das redes sociais e também as usam em larga quantidade. 

É o caso do próprio Johann Hari, na casa dos quarenta anos. Durante sua pesquisa para o livro Stolen Focus, tomou medidas drásticas para retomar o seu foco, isolando-se em Provincetown, uma vila em Massachusetts. Ele percebeu que sua capacidade de manter o foco estava em declínio e pôs em prática o plano radical de se desconectar de tudo. Apesar de bem-sucedido, de realmente ter conseguido sua concentração depois de três meses de isolamento, relata que, assim que voltou à vida normal, não demorou a retornar aos hábitos prévios e, antes que percebesse, estava com a concentração comprometida mais uma vez: 

“Houve muitos altos e baixos, mas fiquei surpreso com o quanto minha atenção voltou. Eu era capaz de ler livros oito horas por dia. No final do meu tempo por lá, eu pensei: ‘Eu nunca vou voltar a ser como eu vivia antes’. Os prazeres do foco são muito maiores do que as recompensas de curtidas e retuítes.”

A pandemia, é bem verdade, exacerbou esse problema. O estresse e a ansiedade levaram a uma constante sensação de vigilância, comprimindo a passagem dos dias em uma sequência turva pouco colorida e tornando a concentração um ato cada vez mais improvável. Além disso, nos tempos em que a COVID-19 nos forçou a ficar dentro de casa, a adoção de tecnologias e métodos de trabalho remoto foi acelerada, fazendo com que o desafio de manter o foco se transformasse em uma questão intergeracional, sendo impossível contornar o uso mais intenso de aparelhos. Mas há, afinal, uma alternativa? A proposta do autor é o que ele chama de “rebelião de atenção”. Passo um: reconhecer que nossa luta constante por atenção é influenciada não apenas por nossa força de vontade individual, mas também por fatores estruturais em nossa sociedade. Essa rebelião, portanto, começaria com a conscientização, ou seja, a compreensão de que a crise de atenção não é um problema pessoal, mas, como uma consequência das demandas da vida moderna, é algo que afeta todas as gerações. Daí adiante, refletir sobre qual é o melhor jeito para escapar das garras perniciosas da chuva de notificações. É concluir a partir do exercício de parar e pensar: eu não sou assim, esse eu que não consegue se concentrar é resultado do que estão fazendo de mim; e não, isso não está acontecendo apenas comigo, mas com todos que me circundam.

Muitos estão agora buscando maneiras de combater a crescente dificuldade de concentração. Estratégias incluem a prática de meditação, o estabelecimento de limites de tempo para o uso de dispositivos eletrônicos e a criação de ambientes de trabalho sem distrações. Reconhecer o problema e implementar estratégias para lidar com ele se tornou fundamental para a produtividade, a saúde mental e o bem-estar pessoal. Vai saber o que será do mundo de amanhã, certo? A tendência é que tudo se intensifique, então é melhor estarmos equipados mentalmente para o que vier. 

A crise de atenção é um problema de nossa época, mas também é uma oportunidade para refletir sobre o que realmente valorizamos na vida e sobre como podemos recuperar tudo aquilo que perdemos quando perdemos o foco — as miudezas, as especificidades e, em última análise, nossa humanidade. Como sociedade, é importante tomar medidas para preservar nossa atenção e manter vivo o que nos torna quem somos em um mundo cada vez mais conectado, que nos transforma em alvos amorfos de publicidade. Se você acha que está falhando porque não consegue se concentrar, saiba que, na verdade, isso está acontecendo com todos nós — e por grandes razões estruturais. A culpa não é sua (mas talvez o melhor seja não esperar a sentença do júri antes de começar sua fuga).

Na era do murmúrio, perdidos na cacofonia do virtual, nossas mentes vagam ao vento. Em um mundo de conexões instantâneas e notificações sem fim, a concentração se esvai e se torna quase inatingível. Com os olhos fixos nas telas, entregando-nos a esses ímãs de distração, perdemos o contato com o palpável: por uma boa parte do dia, esquecemos que estamos vivendo agora. Descobrir como chegar à introspecção quando a multitarefa nos consome é o que devemos almejar. Cada notícia, cada reel, cada meme, nos arrasta para longe do presente e a busca pela atenção plena parece uma batalha permanente. 

Mas, em meio a esse turbilhão de distrações, há um convite tímido à quietude, à contemplação, ao silêncio. Em um mundo que corre numa direção, por que não correr na contramão? Sem telas, celeumas ou brilhos que atacam os olhos. 

Em busca de um centro gravitacional, uma nova dimensão nos espera.

Justine Triet (esq.), vencedora da Palma de Ouro, em Cannes, com a atriz Sandra Hüller.

No cenário branco-neve de uma isolada cidade francesa, um menino encontra o seu pai morto. Assustado, ele chama pela mãe, a única pessoa presente na casa. Ela chega para constatar que o corpo estatelado na entrada não sobreviveu à queda da janela mais alta da residência. Quando a hipótese de um acidente é descartada, surge a questão: o homem se atirou ou foi atirado? No caso da segunda hipótese, a suspeita recai toda sobre a esposa. Cabe à justiça averiguar. 

Com essas breves linhas de descrição, o filme projetado em nossas cabeças é um suspense pretensamente obscuro, apenas mais um thriller de tribunal que se ocupa em fazer jogos de sombras e instigar o desejo de saber se a esposa matou ou não o marido. Essa seria a versão fraca de Anatomia de uma Queda. Talvez não fosse de todo ruim, mas seria aquele bem-bolado esquemático visto uma batelada de outras vezes. A versão que de fato existe do filme de Justine Triet, porém, é inteligente o suficiente para deixar as banalidades de lado e focar suas energias nas minúcias de um relacionamento conturbado, fazendo com que quase nos esqueçamos do possível crime e do possível suicídio. Afinal, as vidas daqueles dois indivíduos, aprisionados por e em si mesmos, pareciam condenadas já de partida. Este, sim, é um filme que vale ser visto e que faz jus à abertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e, claro, à Palma de Ouro de Cannes que recebeu em maio deste ano.

Sandra (Sandra Hüller) é uma escritora alemã bem-sucedida, altamente proficiente, que “trabalha sob quaisquer circunstâncias”, como ela mesma diz; Samuel (Samuel Theis), por sua vez, é francês e, em tempos idos, até foi escritor, mas agora, ainda que não se contente com o fato, é professor. Daniel (Milo Machado-Graner), 11 anos e vítima de um acidente que o deixou cego, é o filho do casal. Com Sandra e Samuel constantemente às turras, o clima geral do lar familiar não é bom — e saber disso é imprescindível para qualquer tipo de entendimento acerca da ocasião em que Samuel morreu. Em casa, enquanto Sandra dá uma entrevista e troca flertes com a entrevistadora, seu marido faz birra e coloca uma música no volume mais alto (destaque para a escolha surpreendente da canção: uma versão instrumental de P.I.M.P., hit de 50 Cent). Ela tenta disfarçar o incômodo com a atitude, dizendo para continuarem como se nada tivesse acontecido, mas não demora para que a entrevista tenha que ser interrompida, sendo deixada para outro dia. A partir daí, os eventos centrais se desenrolam.

Daniel sai da casa barulhenta para passear com o seu cão-guia, Snoop, e, ao voltar, vive o pesadelo de encontrar o pai inerte na neve. O que aconteceu no meio tempo? Samuel se jogou? Caiu? E onde estava Sandra enquanto isso acontecia? Essas perguntas, claro, serão exploradas ao longo de Anatomia de uma Queda — mas, felizmente, a coisa vai bem além. O filme não se atém somente à pergunta do que aconteceu nesse ínterim, mas também ao que levou à criação daquele cenário belicoso entre marido e esposa, estabelecendo uma tapeçaria matrimonial intensa e dolorida. Ele a culpava por não escrever mais, já que teve que se dedicar a mil outras tarefas enquanto ela se preocupava com a literatura e nada mais. Sandra, no entanto, parecia indiferente ao ressentimento palpável do companheiro, demonstrando uma frieza que protagonistas não costumam ter. 

Em um papel escrito especificamente para ela, atuação de Hüller se recusa a deixar sequer um momento irreal na tela, entregando tudo: a dubiedade necessária para que nada fique claro, a vulnerabilidade que se esperaria de alguém acusada de assassinar o próprio marido, a astúcia ardilosa que não faz muito de si apesar de ser gritante, o descaso impactante demonstrado aqui e acolá. Com sua personalidade merecedora de reprimendas, a personagem constitui um paradoxo sedutor: pode-se dizer que ela não é flor que se cheire, mas é assim que Sandra agrada o olfato. A empatia por ela não é criada a partir do exagero de cenas manipulativas, mas da retratação de alguém com matizes e timbres factíveis. O roteiro de Justine Triet e Arthur Harari, parceiros na vida real, é hábil em apresentar as nuances de sua personagem principal, mas os louros vão, sobretudo, para Hüller. Não é à toa que é tida como uma das mais interessantes atrizes do momento — se não a mais interessante.

Algo que contribui para que o filme destoe da expectativa criada por sua sinopse é o modus operandi do sistema legal francês, apresentando uma lógica diferente de julgamento. Estamos acostumados a ver julgamentos à moda estadunidense: uma testemunha por vez, cada advogado tendo os momentos certos para se pronunciar, participações pontuais dos juízes, “objection” para lá e “overruled” para cá. Isso para não falar dos argumentos finais sempre verborrágicos. Em Anatomia de uma Queda, o julgamento acontece com um quê bem menor de formalismos: testemunhas falam a bel prazer, chegando até a se defender prontamente de algo dito por outra testemunha, e as intervenções dos advogados não seguem as diretrizes do bastão de fala (pelo menos não de maneira tão rígida). Nisso, por mais tensos que sejam os relatos e o clima geral de uma cena, há momentos cômicos funcionais, vindos, em sua maioria, da juíza arbitrando o caso (interpretada pela francesa Anne Rotger). Contar com esses respiros rápidos é efetivo até para que a densidade, quando aparece, intensifique a sua potência. Para um filme que passa boa parte de suas duas horas e meia no tribunal, nada como recursos que possibilitem dinamismo e contrabalanceamento, criando um ritmo vivo e somando à poética conceitual.

A poética visual, no entanto, fica um tanto descompassada com inserções de imagens no estilo “cara de documentário” dignas de The Office (close-ups inclusos). Ainda que isso auxilie com a intimidade de algumas cenas e a comicidade de outras, causa estranhamento por nunca ser a tônica geral de uma sequência, nem mesmo as de tribunal. Se o objetivo era mesmo o de desconforto, ele não chega a ser tão forte a ponto de justificar a escolha. É o tipo de idiossincrasia que se percebe conscientemente ou não, mesmo que não se saiba identificar a origem do problema. De qualquer forma, o deleite advindo dos interrogatórios não se perde, sendo de todo jeito o pilar que sustenta o filme.

O caso segue: vemos reproduções em animação de como teria se dado a queda de Samuel, com projeções matemáticas que levantam hipóteses para corroborar tanto com o caso da promotoria quanto com o caso da defesa. Depois de anos de Lei & Ordem e tantas outras produções do tipo no cinema e na televisão, a isso estamos acostumados. Mas, no frigir dos ovos, o epicentro das investigações vira o relacionamento de Samuel e Sandra. Um psicólogo fala sobre as queixas que Samuel fazia sobre o casamento, o filho relata discussões que costumava ouvir de seu quarto, e por aí vai. O ápice dessa investigação é quando um áudio é colocado sob os holofotes. Com o intuito de criar um diário de registros para transformá-lo em um livro (ficcional ou não), Samuel gravava a maioria de suas conversas, fosse consigo mesmo, fosse com outras pessoas. Entre as gravações, está uma discussão acalorada com Sandra. Um arranca-rabo inicialmente verbal e posteriormente físico. Parte dela, ouvimos; outra parte, vemos em flashback, no momento mais poderoso do filme. Eis uma discussão de verdade e não uma desculpa para se encaixar frases de efeito ou esfregar uma metáfora na cara de quem estiver assistindo. Samuel não pode falar sua língua-mãe, o francês, e o mesmo vale para ela, que não pode falar o alemão. O inglês, então, é a língua em que se comunicam e, consequentemente, discutem. Fragilizado, ele joga a culpa de sua infelicidade em cima de Sandra, que, categórica, não assume qualquer tipo de responsabilidade. As traições antigas da esposa vêm à tona no meio do bate-boca e, nos segundos derradeiros do áudio, quando já não estamos mais no flashback e sim de volta ao tribunal, ouve-se o barulho da briga chegando às vias de fato.

Com intensidade similar às famosas discussões entre Scarlett Johansson e Adam Driver em História de um Casamento, de Noah Baumbach, a sequência é a apoteose de tudo que justifica a existência de Anatomia de uma Queda. Menos suspense, menos “fez, não fez”; mais relações humanas, mais “meu delírio é a experiência com coisas reais”. Duas pessoas que se relacionaram por um longo tempo, pais de um filho e de um enorme acervo memorial compartilhado, de repente (ou não de repente assim) se vêem aprisionados na queda contínua da própria história conjunta, escrita em uma língua que não pertence a nenhum dos dois — a da longevidade do amor. Aquela que deveria ser a linguagem de encontro acaba por virar uma arma que nada comunica se não a mágoa. Essa arma, que tem como pólvora os anos de existência, assassina ou comete suicídio? Se o cair pode se assemelhar ao voar, então os dois nascem do mesmo desejo de abrir as asas — pelo menos até que a queda atinja a superfície, quando fenecem deixando repercussões distintas.

Dentre os muitos dedos levantados por Samuel, ele a acusa de roubar a ideia que originalmente era de um romance seu. No tribunal, ela explica que nada roubou. Na versão dela, o que ele tinha era um manuscrito de vinte e tantas páginas cuja premissa Sandra adorava, mas que ele, no auge de sua frustração, simplesmente não conseguia levar para frente. Tendo achado a ideia “brilhante”, ela lhe perguntou se poderia escrever um romance tomando aquilo como inspiração — e, com sua proficiência característica, o fez com maestria. É, então, que a acusação começa a insinuar que ela usa a vida pessoal nos livros que produz, destacando uma passagem de uma obra que relata a morte do marido pela esposa. O jogo entre ficção e realidade que começa a se levantar, porém, não serve ao propósito de enturvar o caso da morte de Samuel. Não haveria lá muita graça em fazê-lo. Algo que fica da discussão é que cada um esbraveja de boca cheia sua leitura das coisas, não importa o quão contraditórias ou fantasiosas sejam. E é sobre esse aspecto quimérico dos relacionamentos que a bruma da incerteza é lançada. 

No caso de uma relação, de uma vivência conjunta, o que é verdade e o que não é? Como podem duas pessoas terem passado anos em união e, mesmo assim, terem interpretações tão distintas do que aconteceu nesse tempo? Toda a culpa que Samuel jogava em cima de Sandra era mesmo justificável ou era uma desculpa para suas frustrações? E quanto à auto-indulgência dela, o que dizer? Não é por acaso, portanto, que a atriz Sandra Hüller e o ator Samuel Theis interpretam personagens que têm os primeiros nomes iguais aos seus. É uma brincadeira sutil que adiciona uma nova camada ao faz-de-conta documental que às vezes vivemos, um detalhe bastante importante àquilo que o filme tem a dizer.

Com esse ponto de ficção/realidade já bem estabelecido, expandindo-se à subjetividade não só interpretativa mas também memorial — e fica a pergunta: interpretar seria, também, uma forma de lembrar? —, é difícil não sentir o peso do excesso quando bons minutos são gastos com um testemunho que Daniel decide fazer de última hora sobre uma ida ao veterinário com Samuel. Na viagem de carro, o filho escuta um discurso fúnebre de seu pai que, analisado em retrospecto, seria um bom indício de que as tendências suicidas estavam ali. Além de desnecessariamente conduzir para uma certa conclusão, a realizadora decidiu aproveitar o flashback para colocar o discurso do pai na voz inocente de Daniel, enquanto o menino relata o diálogo inteiro, para enfatizar a subjetividade daquele e de todos os outros testemunhos. Muito embora seja ótimo ver uma performance inspirada vinda de um ator tão jovem — Milo Machado-Graner brilha do começo ao fim —, o momento “verbete de significado” não precisava existir. E, para piorar, o excesso se faz presente com força redobrada, pois acontece logo quando o julgamento está próximo do fim, adiando a resolução e resultando em uma leve frustração.

Mas é seguro dizer que os méritos superam as imperfeições.

Até Anatomia de uma Queda, Justine Triet tinha dirigido filmes eficientes mas pouco ambiciosos, sendo Na Cama com Victoria, de 2016, o mais conhecido deles. Com essa sua última obra, não só a ambição existe como é alcançada. Talvez no pitch para vender o filme, bem diferente de seus outros, tenha dito que escreveu a quatro mãos uma mistura de Anatomia de um Crime, clássico de Otto Preminger estrelado por James Stewart, com História de um Casamento e Tár; ou, então, que pretendia fazer um comentário sobre o escrutínio das redes sociais de um jeito ligeiramente inusitado, retratando as diferentes perspectivas que mesmo as vivências mais pessoais têm. Seja como for, deu certo. Ainda que não tenha feito o suspense apelativo que teria sido produzido na Hollywood dos anos 1980 – 1990 com Michael Douglas no lugar de Hüller, Triet consegue pintar um quadro esbranquiçado de um amor exangue e levantar reflexões sobre o ressentimento, a cumplicidade, o fazer e o não-fazer literário, a maternidade e a paternidade, a multifuncionalidade das narrativas, os relacionamentos que caminham para frente e os que morrem na praia (ou na neve), tudo isso enquanto segura pelo colarinho e prende a atenção de maneira a dar inveja a muitos filmes. 

Impossível não se deixar cair — como, aliás, nos permitimos fazer com frequência quando o assunto é amor, cometendo um pouco de assassinato e um outro tanto de suicídio. 

Freedom from Want (1943), de Norman Rockwell, também conhecida como The Thanksgiving Picture ou I’ll Be Home for Christmas.

Em um momento emblemático da História, no início da década de 1930, dois dos maiores pensadores do século XX, ninguém mais ninguém menos que Albert Einstein e Sigmund Freud, trocam cartas. O contexto: do sentimento predominante de que era necessário instaurar mecanismos para refrear ensejos belicosos entre as nações — algo advindo do período posterior à 1ª Guerra Mundial —, nasce o Tratado de Versalhes, que, aos olhos perspicazes de Einstein e Freud, já dava demonstrações de seus resultados negativos. 

Guernica (1937), de Pablo Picasso.

Era o duelo entre os Aliados e o Eixo se desenhando para quem não tivesse medo de enxergar. Com consequências adversas pairando no ar, um prenúncio lúgubre esperando para acontecer em toda a sua potência, uma nova guerra surgia no horizonte. Ironicamente, desaguar no mais letal conflito da história da humanidade ia na direção contrária aos objetivos iniciais do Tratado. A constatação de que os tempos não eram assim tão pacíficos leva Einstein a refletir sobre os porquês de cairmos com frequência na vala nefasta do conflito bélico, ainda que a humanidade se entenda em constante evolução. Se somos capazes de tanto, por que não conseguimos parar de guerrear?  

Para aprofundar as reflexões e ampliar as portas da percepção, a convite da Liga das Nações e de seu Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, Einstein sugeriu a Freud uma troca de cartas em que cada um apresentaria seus próprios argumentos. Em se tratando de duas pessoas que não se satisfaziam com visões superficiais pré-fabricadas, obviamente a troca acabou levantando mais perguntas do que respostas — como toda boa reflexão. 

A correspondência icônica mergulhou nas complexidades da paz mundial e das razões subjacentes aos embates globais, debruçando-se sobre a questão Por que a guerra?, que, de tão simples, ecoa com força redobrada. O questionamento leva a lugares intrincados, provando que de ingênuo ele não tem nada. Mais de 90 anos depois, na medida em que o mundo continua a se deparar com conflitos sangrentos sem uma solução imediata aparente — para citar alguns: Ucrânia e Rússia, Palestina e Israel, Armênia e Azerbaijão, turcos e curdos —, a questão presente nas cartas segue sendo de enorme relevância. 

Einstein e Freud, a partir de suas diferentes áreas de especialização, buscaram compreender o âmago da faceta mais obscura da humanidade, aquela que é capaz de lançar bombas e obliterar vidas sem pensar duas vezes. Enquanto o físico defendeu a necessidade de uma autoridade mundial para evitar a devastação em massa, o pai da psicanálise explorou as raízes psicológicas da agressão humana. A correspondência deles lançou as bases para o pensamento que investiga as motivações por trás de conflitos armados, um tema que permanece urgentemente relevante (e sem resolução).

Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema virou questão de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos. Não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em lamentável fracasso.

Como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas, pessoalmente vejo uma forma simples de abordar o aspecto superficial (isto é, administrativo) do problema: a instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflito que surja entre nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanadas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, a aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos.

— Albert Einstein

É claro que o próprio físico questionou o que propunha, observando que um tribunal é uma instituição humana que, em relação ao poder de que dispõe, é inadequada para fazer cumprir seus veredictos, está muito sujeito a ver suas decisões anuladas por pressões extrajudiciais.

Em se tratando de guerra, nada é simples. Afinal, a equação aqui não pode ser exata. Olhando para o cenário geopolítico contemporâneo, muitos conflitos vêm à mente. 

Os atritos em Donbass, na Ucrânia, e a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 desencadearam uma crise que persiste até hoje. A narrativa é complexa e, claro, tem raízes históricas, políticas e étnicas. Desde sua independência em 1991, as relações ucranianas com a Rússia nunca estiveram nos melhores termos. Após a deposição do presidente da Ucrânia Yanukovych no mesmo ano da anexação, o leste do país virou palco de episódios lamentáveis, com forças ucranianas combatendo separatistas pró-russos apoiados pela Rússia na região de Donetsk e Luhansk. O resultado? Sanções internacionais contra a Rússia e uma crise humanitária com muitos deslocados internos e refugiados. Apesar de vários acordos de cessar-fogo e negociações, o conflito continua intermitente, mantendo tensões significativas nas relações internacionais. O começo de 2022 foi especialmente traumático, com a invasão russa ocorrida no mês de fevereiro e se estendendo por muitos ataques. Novos capítulos vão sendo escritos, sempre com novas camadas de complexidade e violência.

Zelensky acabou por se tornar um queridinho do Ocidente e Putin piorou ainda mais sua imagem aos olhos do resto do mundo. Mas pouco importa a popularidade de um ou de outro, pois nada muda o fato de que o embate ameaça a paz mundial — se é que podemos usar o termo sem qualquer tipo de ironia — e ocasiona na morte de inúmeros civis. Com a constante participação dos Estados Unidos nesse tipo de conflito, movidos por interesses políticos declarados, surgem as manchetes que farejam o início de uma nova guerra mundial. No fim, por mais que se estude e se compreenda os argumentos de todos os lados, há alguma motivação que realmente se faça valer?

Por mais válida que seja uma causa, é difícil achar justificativas plausíveis para o extermínio de milhares.

São muitos os antagonismos que tocam no mesmo diapasão, como o confronto entre Armênia e Azerbaijão, trazido à tona novamente em 2020. Mais uma vez, as feridas históricas e as questões territoriais serviram como principais fatores desencadeantes. As memórias de guerras anteriores ainda assombram a região, perpetuando o ciclo de violência. Também cabe lembrar o conflito entre turcos e curdos, alimentado por desafios culturais, históricos e políticos. A busca por autonomia e o desejo de independência colidem com os interesses nacionais turcos, resultando em conflitos persistentes. Nesses e em tantos outros casos, quaisquer soluções parecem inviáveis.

O conflito entre Palestina e Israel é outra chaga persistente, cindindo por completo a opinião pública, que abraça a totalidade de um lado e faz vista grossa para o que eventualmente possa estar errado em uma atitude ou outra do lado ao qual se é simpatizante. Embora suas origens remontem a décadas de tensões e disputas territoriais, as animosidades entre Israel e Palestina parecem ter a habilidade de se renovar. Ou seja, os porquês por trás da persistência dessa luta requerem uma análise não só profunda mas também contínua. É um conflito de longa data, enraizado em anos e anos de pura tensão. Israel pleiteia o controle total de Jerusalém, a Palestina reivindica a autonomia de seu Estado aprovada pela ONU. Além disso, a questão dos assentamentos israelenses na Cisjordânia continua sendo um ponto de conflito. Eventos como a escalada de violência em maio de 2021 agravaram ainda mais as complicações, com confrontos em Jerusalém Oriental, ataques de foguetes de grupos palestinos em Gaza e ataques aéreos israelenses. Apesar dos esforços de mediação, as questões centrais permanecem sem solução, tornando a contenda um dos desafios mais persistentes e multiformes da geopolítica global.

Tomando esses contextos, pensemos nas seguintes passagens, tanto de Freud quanto de Einstein:

As guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a outra seria inútil. 

— Sigmund Freud

Como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais: é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver.

— Albert Einstein

Seria o instinto de destruição capaz de sobrepujar toda e qualquer humanidade? As predileções emocionais e culturais certamente são. Einstein argumentou que a guerra era resultado da falta de controle político global, destacando a importância de um governo mundial para evitar conflitos em grande escala. Freud, por outro lado, explorou a natureza humana, desenterrando impulsos agressivos que precisavam ser canalizados de maneira mais construtiva. Quem verdadeiramente quer a guerra? A questão de classe está sempre presente em contextos bélicos, sendo que, é óbvio, as classes com menor poder aquisitivo tendem a sofrer mais. Nesse contexto, as palavras de Einstein e Freud ressoam em alto e bom som. 

A correspondência histórica entre dois dos maiores pensadores do século XX nos lembra que, embora a guerra seja uma realidade persistente, a busca pela diplomacia e a compreensão das raízes dos conflitos devem permanecer no centro dos esforços para um mundo mais harmonioso.

Em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.

E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das consequências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra.

Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.

—Sigmund Freud

Freud acreditava que o impulso agressivo fazia parte do nosso psiquismo e que era inerente à condição humana. Em sua visão, a paz era uma ilusão passageira, uma vez que os conflitos eram uma manifestação dos impulsos primitivos que residem em todos nós. A visão mais otimista de Einstein e a perspectiva mais sombria de Freud, juntas, oferecem um quadro detalhado do desafio global da paz. Curiosamente, o psicanalista morreria em 1939, pouco depois da Segunda Grande Guerra começar; ao passo que o físico viveria para ver o conflito inteiro acontecer, inclusive com uma bomba atômica sendo utilizada.

As guerras são manifestações extremas da condição humana, emergindo de um emaranhado de fatores que interagem entre si. São como choques de placas tectônicas nas quais tensões acumuladas ao longo do tempo finalmente encontram uma liberação explosiva. São o resultado de desavenças que não puderam ser resolvidas pacificamente, o acúmulo de nuvens escuras que antecipam uma tempestade. 

Talvez não seja possível responder por que as guerras existem — se nem mesmo Freud e Einstein conseguiram, fica claro que a questão é cabeluda. Fato é que a paz, viável ou não, sempre que se pronunciou, o fez a partir da capacidade de resolver desentendimentos por meio do diálogo e do respeito mútuo. Lamentavelmente, essa realidade soa como um canto que se escuta à distância. Bem à distância. 

Se vivos estivessem, o físico e o psicanalista seguiriam debatendo. Mas chegariam ao acordo de que existe a chance de vencer esse monstro que fica à espera na esquina, de maneira discreta mas notória, como uma ameaça constante. 

Para que se apague a iminência da próxima guerra, um mínimo de esperança vem a calhar.

Le Corbusier em 1950. Imagem: Sam Lambert/Architectural Press Archive/RIBA Collections

Le Corbusier (1887-1965) foi possivelmente o mais influente arquiteto do século XX. Não só o mais influente: o mais controverso também. Com o centenário de seu clássico manifesto Por uma arquitetura (Vers Une Architecture, no francês), vale refletir sobre o que a tapeçaria teórica e a prática contida na obra representou, e representa, para a arquitetura contemporânea. Tanto a obra em questão quanto a carreira de Le Corbusier foram construídas a partir de ideias realmente inovadoras, mas ideias que, de acordo com muitos especialistas (munidos, claro, com o distanciamento temporal), não tinham em vista o mundo assim como ele

Independentemente disso, fato é que há um pré-Corbusier e pós-Corbusier. Não é sempre que vemos esse papel de divisor de águas atribuído à uma única pessoa, e isso vale para qualquer área. Ou seja: controverso, sim; irrelevante, jamais.

Nascido em 1887 na Suíça, Le Corbusier começou sua vida profissional como pintor e designer de móveis. Foi em seus tempos de aprendiz de relojoeiro, aliás, que começou a desenvolver uma consciência de estrutura e sua apurada precisão, algo fundamental em tudo que produziu posteriormente. Seu interesse por arquitetura, o levou a se matricular na Escola de Artes de La Chaux-de-Fonds, onde estudou sob a orientação de Charles L’Eplattenier (1874-1946), um mentor crucial que o introduziu ao pensamento vanguardista da época. Em 1907, se embrenhou profundamente na cena artística parisiense ao se mudar para a capital francesa. Lá, trabalhou com arquitetos proeminentes, como Auguste Perret (1874-1954) e Peter Behrens (1868-1940), adquirindo uma compreensão profunda da aplicação de materiais modernos em projetos arquitetônicos. Essas experiências o ensinaram a enxergar beleza em uma abordagem funcionalista do design, quando a forma segue a função e não ao contrário — eis a filosofia que se tornaria um pilar fundamental da arquitetura moderna.

Le Corbusier não apenas revolucionou a forma física dos edifícios, mas também introduziu novos materiais e técnicas construtivas. Ele foi pioneiro em adotar o concreto armado como material de construção principal, o que permitiu a criação de estruturas mais esbeltas, abertas e flexíveis. Essa abordagem inovadora influenciou a estética da arquitetura moderna e contribuiu para a rapidez e eficiência da prática da construção. 

Tendo em vista essa sua veia radicalmente transformadora, logo se imagina que, por trás de tudo (ou na frente de tudo), houvesse uma pessoa detentora de um arcabouço teórico amplo capaz de estruturar ideias de maneira clara e sedutora. Além de seus projetos arquitetônicos e urbanísticos, Le Corbusier era um prolífico escritor e teórico — o que nos leva ao famoso Por uma arquitetura.

Publicado como livro há cem anos, em 1923, baseado parcialmente em artigos anteriores, Por uma arquitetura é um manifesto do modernismo que defendia a aplicação tecnológica a projetos de edifícios, tomando a beleza e a lógica das máquinas e da engenharia de viadutos, transatlânticos e silos de grãos como a mais importante. O manifesto também promove — há quem diga “acima de tudo” — o próprio Le Corbusier, como um homem (quiçá, o único) habilitado a dar vida ao novo mundo proposto. É um caso clássico de um egocentrismo que, de boca cheia, diz: “O mundo precisa disso e ninguém melhor do que eu para fornecê-lo”. Em defesa de Corbusier, se havia alguém que podia fazer isso à época, era ele. E, de um jeito ou de outro, Le Corbusier o fez. 

Usando combinações de fotografias, desenhos medidos e esboços, o livro mostra imagens de carros e aviões ao lado do Partenon e da catedral de Notre Dame, considerando as cidades como receptáculos inevitáveis de toda e qualquer tecnologia. Estabelece, assim, cinco princípios-mor de design, que propõem novas formas de construir cidades, com torres de 60 andares implantadas entre vastos jardins e campos desportivos, servidas por auto-estradas de múltiplas faixas, e também blocos de “vilas-apartamentos” de vários andares onde cada casa tem o seu próprio jardim.

Os cinco princípios são:

Os pilotis — Le Corbusier propunha elevar os edifícios do chão, apoiando-os em pilotis (colunas). Essa abordagem permitia a criação de espaços abertos no térreo, liberando o solo para jardins, estacionamentos e uma maior circulação. Os pilotis também enfatizavam a separação entre o edifício e o solo, criando uma sensação de leveza e permeabilidade visual.

A planta livre — Espaços internos de um edifício deveriam ser flexíveis e livres de paredes estruturais, possibilitando uma adaptação fácil dos espaços de acordo com as necessidades dos ocupantes. Com a estrutura sustentada pelos pilotis e sem paredes de suporte, os interiores poderiam ser organizados de forma mais eficaz.

A fachada livre — A fachada de um edifício não deveria mais desempenhar um papel estrutural. Isso permitia a criação de grandes janelas e uma fachada mais leve, enfatizando a relação entre o interior e o exterior. As fachadas poderiam ser projetadas com aberturas generosas para a entrada de luz e ventilação naturais.

A janela em fita — Janelas em faixas horizontais ao longo das fachadas dos edifícios. Simples. Isso não apenas fornecia uma vista panorâmica do ambiente externo, mas também garantia uma distribuição uniforme de luz natural em todo o espaço interno. Essa abordagem transformou a qualidade dos espaços interiores.

O telhado jardim — Le Corbusier acreditava na utilização dos telhados como espaços habitáveis ou de lazer. Essa ideia promovia uma melhor utilização do espaço e incentivava a integração da natureza na arquitetura. Os telhados podiam ser transformados em jardins, áreas de recreação ou até mesmo espaços para atividades ao ar livre.

A maneira como apresentava tais preceitos era também um grande chamariz. Um dos muitos motivos para o sucesso, a abrangência e a longevidade de Por uma arquitetura, é o fato de que a obra conta com um manancial de frases marcantes, dignas de serem usadas facilmente como um ardil que se leva na bolsa ou como palavras que estampam uma camiseta. A mais conhecida delas é a que diz, em tom futurista, que “Uma casa é uma máquina de morar”. Além dela, “A paixão faz das pedras inertes um drama” e “A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes dispostos sob a luz” também entram na lista de citações memoráveis e persuasivas. Para além desse caráter progressista da maioria delas, a veia frasista mostra a importância que mensagens fortes têm, em especial na apresentação de ideias inovadoras que não necessariamente tem uma aplicação prática boa e imediata.

Mas justiça seja feita: Le Corbusier colocou, sim, suas teorias em prática. Para citar algumas obras, ele projetou a Unité d’Habitation em Marselha, um monumental bloco de apartamentos que tirava do papel suas ideias sobre habitação coletiva. Temos também as Maisons Jaoul, um par de casas em um subúrbio de Paris construídas com tijolos de barro e abóbadas robustas. Muitos, no entanto, defendem que ele criou as regras para desrespeitá-las e, portanto, muito do trabalho posterior a Por uma arquitetura se distanciou do que o próprio preconizou anos antes. Mais tarde em sua carreira, especialmente de 1945 adiante, ele rompeu com seu apego a linhas limpas e formas primitivas, explorando concreto áspero e formas curvas de forma livre. Exemplo disso é sua igreja de Notre-Dame du Haut, no topo de uma colina, em Ronchamp, no leste da França.

Unité d’Habitation em Marselha, França. Imagem: Gili Merin

Goste ou não, Le Corbusier foi uma força criativa imponente — e, talvez, egomaníaca — que transformou para sempre a sua disciplina. Seus edifícios inspiraram admiração, às vezes devoção. Como todo ícone, também foi, e é, vigorosamente atacado, como um fanático mecanicista cujas ideias inspiraram torres desumanas e selvas de concreto. Sua visão de planejamento urbano às vezes negligenciava as nuances culturais e as necessidades específicas das comunidades locais. Se, a título de exemplo, analisarmos mais atentamente a ideia de erguer edifícios sobre pilotis para permitir que o jardim se estenda por baixo da residência, logo se percebe que ela é um tanto estranha. Pode mesmo haver um jardim natural sem chuva e luz solar? Simbolicamente, você poderia ver o pilotis como um dispositivo para separar o edifício do solo e uma negação da dependência da terra, ou mesmo como uma afirmação de domínio e controle sobre a natureza. 

Villa-Savoye. Imagem: Paul Kozlowski/FLC/ADAGP

Outro fator muito criticado hoje em dia é que os planejamentos urbanos de Le Corbusier tinham o automóvel como centro. A arquitetura do movimento moderno baseava-se na presunção de combustíveis fósseis baratos e ilimitados, além de outros recursos finitos. É claro que, somente 50 anos depois da publicação de Por uma arquitetura, a consciência começou a ser formada e tal ideia passou a ser questionada. Mas isso em nada ajuda a visão em retrospecto que, para o bem ou para o mal, se dá nestes tempos em que a nossa relação com a natureza é o principal desafio da continuidade humana. Enquanto tentamos, cem anos depois, fazer as pazes com o mundo tanto em termos ambientais quanto sociais, Por uma arquitetura utilizava uma linguagem de limpeza, limpeza e eficiência, de um tipo que tende a apagar tudo o que é esteticamente diferente ou espacialmente diferente. Na argumentação corbusiana, “diferença” ganha conotações extremamente negativas e problemáticas. 

Notre-Dame du Haut. Imagem: Luke Stearns

Além disso, seu envolvimento com regimes autoritários sempre levanta questões éticas e políticas. Ele se tornou cidadão francês em 1930, aliando-se à extrema-direita. Fez parte do comitê de urbanismo da França de Vichy, liderada pelo marechal Philippe Pétain (1856-1951), que colaborou com a Alemanha nazista durante a Segunda Grande Guerra. Argumenta-se que os envolvimentos políticos de Corbusier tinham menos a ver com ideais e mais a ver com uma estratégia para conseguir produzir suas ideias, percebendo que, para tanto, tinha que ter amigos poderosos que lhe concedessem licitações. Isso justificaria a troca de correspondência não só com Adolf Hitler (1889-1945), mas também com Benito Mussolini (1883-1945) e Joseph Stalin (1878-1953). A contra-argumentação, porém, é das mais simples: seja com qual propósito, apertou mãos que não devia.

A fala de Denise Scott Brown, pioneira da arquitetura e arquiteta pós-moderna, sintetiza bem a maneira como Le Corbusier é visto sob a ótica contemporânea: “Amo as casas dele, mas ele não entendia como as cidades funcionam.” Essa é uma boa amostra, acima de tudo, porque respinga para os dois lados, o da admiração e o da rejeição, duas instâncias bem presentes quando o arquiteto é mencionado atualmente em qualquer roda de discussões. Ela continua: “Ele olhou para Nova York e disse que, quando as ruas estão retas, a mente fica clara. Adoro isso, mas quando ele diz que tudo deve ser retangular, está completamente errado. Ele não sabia relacionar nada com nada, não sabia como funcionavam os sistemas de movimento. Le Corbusier escreveu que as cidades da Europa foram construídas por burros, com as ruas moldadas em torno dos seus trilhos. Ele insulta o burro, diz que ele é preguiçoso e anda em círculos quando deveria ir direto. Mas o burro segue o caminho que faz sentido, contornando uma elevação no terreno em vez de passar por cima dela, e é assim que se obtêm os lindos padrões das cidades antigas. O burro não é preguiçoso, é um funcionalista.”

Embora muitas de suas visões tenham enfrentado críticas e desafios práticos — não só no presente, mas desde que foram apresentadas —, elas deixaram uma marca duradoura no pensamento urbanístico e inspiraram discussões sobre como projetar cidades para atender às necessidades das pessoas e ao mesmo tempo preservar o meio ambiente. Diante do centenário de Por uma Arquitetura, é essencial reconhecer que Le Corbusier não apenas moldou a arquitetura moderna, mas também contribuiu significativamente para a maneira como pensamos sobre o espaço e o ambiente construído. Seu legado perdura como um testemunho de como a visão e a inovação podem transformar radicalmente nossa relação com o mundo construído, ainda que com problemáticas vindo de todos os lados. 

Onde quer que ele esteja — possivelmente em um projeto urbanístico que aplica à outra dimensão os 5 princípios-chave da arquitetura — deve estar pensando: “Qu’on parle de moi en bien ou en mal, peu importe.” Ou: “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim.”

Le Corbusier em 1953. Imagem: Willy Rizzo.

Era uma vez uma menina curiosa chamada Alice, que meteu o nariz onde não devia e encontrou-se perdida no país das maravilhas, que – diga-se de passagem – era também um país perigoso, com chapeleiros malucos, gatos risonhos e rainhas assassinas. 

Em dado momento, Alice se encontra encolhida a meros sete centímetros de altura. Uma lagarta fumando um cachimbo lhe diz, “um lado fará você crescer, o outro fará você diminuir”. Um lado de quê, Alice indaga. Do cogumelo, responde a lagarta. Alice mordisca o cogumelo, cautelosa. Ela diminui rapidamente, mas antes de desaparecer por completo, consegue mordiscar o outro lado. Ela cresce vertiginosamente, ficando com um pescoço enorme. Um pássaro lhe confunde com uma serpente e ataca seu rosto. Ela morde um pouco de lá e um pouco de cá do cogumelo, e assim volta ao seu tamanho normal.

Que cogumelo mágico seria esse, que dá à Alice o poder de crescer e diminuir? Que, em doses alternadas, lhe permite calibrar seu crescimento e lhe faz sentir-se normal em um mundo todo virado do avesso? É impossível saber o que Lewis Carroll, o autor do clássico da literatura infantil, teria a dizer sobre a recente onda de interesse nos cogumelos psicodélicos. Mas ao que tudo indica, podemos seguir a moral da história da Alice e seu cogumelo – o importante é acertar a dose.

Há milhares de anos, povos indígenas dos quatro cantos do mundo fazem uso de substâncias psicodélicas encontradas na natureza, em cogumelos, cactos, sementes, folhas e árvores, para fins cerimoniais e medicinais. No século XX, estas substâncias começaram a ser reproduzidas sinteticamente em laboratórios. Imagine o susto do suíço Albert Hoffmann, que “descobriu” o efeito alucinógeno do LSD após ingerir, sem querer, uma quantidade desconhecida do químico, quando trabalhava como pesquisador para uma empresa farmacêutica. Sua descoberta logo disseminou-se pelo mundo, despertando o interesse do campo da psiquiatria, ainda em seu início.

Os psicodélicos, cujo nome vem do grego psico (mente) e delo (visível), logo caíram nas graças da contracultura hippie. Consequentemente, muitos governos passaram a classificá-los como substâncias controladas, na busca de controlar o movimento paz e amor. Os anos 70 viram uma onda de proibição, e os estudos médicos com substâncias alucinógenas cessaram.

Agora, estão voltando com atenção ao tema. A mais recente onda de interesse espalhou-se a partir do Vale do Silício, onde profissionais criativos começaram a praticar a microdosagem, ingerindo uma dose tão pequena que os efeitos psicodélicos não são ativados, mas que supostamente traz benefícios como o aumento da produtividade, criatividade e energia, e afasta males como a ansiedade e a depressão. A prática foi ganhando adeptos, que buscam aumentar a performance no trabalho, mas principalmente por aqueles que visam melhorar a saúde mental.

Vivenciamos um momento em que a depressão e ansiedade estão saindo das sombras e sendo abertamente discutidas. A pauta da saúde mental está em alta. O uso de antidepressivos a partir da década de 1950 revolucionou o tratamento dos transtornos de humor, mas sabemos hoje que esses medicamentos podem causar efeitos colaterais adversos. A psiquiatria busca novas avenidas para tratar as milhões de pessoas sofrendo mundo afora, e um possível caminho é o uso de psicodélicos. Tanto os presentes na natureza, como a mescalina encontrada em algumas espécies de cactos e a psilocibina derivada dos cogumelos da Alice, quanto os fabricados em laboratório, como o MDMA, vulgo ecstasy, e dietilamida do acido lisérgico, o famoso LSD.

Mas o que diz a ciência sobre os supostos benefícios dessas substâncias? Infelizmente, não muito. Por enquanto, existem poucos estudos abrangentes, e aqueles realizados contam com uma amostragem pequena. Por serem substâncias altamente regulamentadas pela lei, estudos em que possam ser administradas em um ambiente controlado, como em um hospital, por exemplo, são poucos. A grande maioria dos testes, portanto, depende do autorrelato de pacientes. Estes, por sua vez, não são sempre de confiança, nem podem ser controlados para descontar o efeito placebo.

Sem estudos controlados, em que se possa padronizar o ambiente, a dosagem e eliminar outros fatores que possam influir o resultado, não há um consenso médico sobre os benefícios de tal tratamento. No Brasil a terapia com a microdosagem de psicodélicos não é regulamentada pelos órgãos de saúde, e, portanto, a sua prescrição médica é proibida. Além do mais, muitas das substâncias continuam ilegais por aqui.

É difícil dizer, portanto, qual o futuro do tratamento psiquiátrico com o uso de psicodélicos. Qualquer que seja, devemos lembrar que perder-se no país das maravilhas pode ser perigoso se não soubermos nos dosar. 

#46Tempo VividoLiteratura

Semente

Tradução de Cris Oliveira*

A tarde em que a vi coincidiu com a época em que os dias começaram a ficar estranhos, quando o sol se impregnava na pele em poucos minutos de andar na rua e o ar dava golpes repentinos de rajadas geladas, carregadas de pedrinhas fulminantes para os olhos e os lábios. As pessoas caminhavam rápido e em silêncio; a maioria cobria o rosto com toucas ninja, lenços ou pashminas para se proteger das pequenas e dolorosas pancadas. Ninguém sabia exatamente o que estava acontecendo, embora se suspeitasse que fosse algum fenômeno relacionado à mudança climática. O estranho era que as pedras, quase invisíveis, não danificavam nenhum tipo de tecido, mas queimavam e evaporavam em contato com a pele, deixando uma sensação de ardor e algumas marcas terríveis por horas. Havia quem dizia que eram cuspe do Diabo, um claro sinal do novo apocalipse. Outros acreditavam que eram migalhas das entranhas da Terra que encontraram algum canal por onde sair e conquistar um novo espaço. Outros ainda diziam que eram partículas dos polos que estavam derretendo e por isso vinham em chicotadas tão frias, para nos lembrar do desastre que havíamos causado. 

Entre tanta paranóia e incerteza, fiquei surpresa ao vê-la ali, deitada tão tranquilamente na grama do jardim da padaria, na esquina da minha casa. Alguns transeuntes olhavam para ela com o canto dos olhos e continuavam seu caminho. Eu não sabia muito bem o que fazer. Parecia que nada a perturbava, mas com certeza qualquer pessoa exposta ao sol e vento assim deveria sentir, no mínimo, alguma dor. Decidi me aproximar com a intenção de perguntar se estava bem, se tinha aonde ir, se necessitava ligar para alguém… mas seu estoicismo me inibiu e não consegui falar nada. Eu apenas fiquei olhando para ela por um bom tempo, como quem olha para uma panela com água no fogo esperando que comece a ferver.

Ela tinha os olhos fechados, embora não parecesse dormir: de repente sorria ou franzia a testa, ou mostrava a língua e lambia os lábios. Seus dedos brincavam com as pontas da grama fresca e de vez em quando se perdiam sob a terra seca. Usava um vestido de lã preta grossa com gola rulê e mangas compridas que mal chegavam aos joelhos e, como não usava  calça nem meia-calça, a parte descoberta de suas pernas, assim como seu rosto, estava uma bagunça por conta da estranha matéria microscópica e incandescente que o vento trazia. Eu podia ver as marcas avermelhadas na sua pele; umas mais intensas que outras, mas nenhuma cicatriz. Já tinha ouvido falar que as queimaduras provocadas por essas pedrinhas podiam causar até bolhas e manchas que desapareciam pouco a pouco, como se nunca tivessem existido.

Do seu lado tinha um saco, também preto, que parecia uma daquelas velhas trouxas de pano, que os habitantes do litoral faziam para guardar seus pertences quando não tinham malas ou mochilas e deviam abandonar suas casas para fugir dos furacões ou tsunamis. Chegavam às cidades mais próximas, onde já eram esperados em cafés, escolas e restaurantes de bairros mais populares. Ofereciam-lhes comida e espaços para dormir, mas a maioria passava as noites em claro pensando nos reparos que teriam que fazer quando voltassem para seus vilarejos. Não importava quão forte tivesse sido a destruição ou danos a suas casas; eles sempre voltavam. Por isso as pessoas das cidades os apreciavam e os ajudavam, inclusive com materiais de construção e suprimentos, porque sabiam que nunca se instalariam definitivamente com eles, na “sua” cidade. 

Nem esses vilarejos nem essas cidades existem mais. Agora fazem parte do oceano, que, com lambidas e baforadas marinhas cada vez mais terríveis, foi engolindo toda essa terra.

Que curioso que a mera presença desse saco me fizera recordar de coisas tão antigas.  No entanto, era inevitável me perguntar por que essa mulher trazia um saco como esse. De onde viria? Fugiria de alguém, de algo? Estaria de passagem para algum lugar específico? Estaria perdida?

Eu ia me aproximar um pouco mais, desta vez decidida a fazer-lhe uma dessas perguntas, quando ela abriu os olhos e começou a se levantar bem devagar. Acho que ela percebeu que eu estava ali porque notou minha sombra e imediatamente moveu a cabeça, também muito lentamente, em minha direção. Eu não pude conter um “Ai!” e uma expressão de franca surpresa ao ver seus olhos e seus cabelos tão longos. Pensei que seriam pretos, como os da maioria dos nascidos depois de 2025, mas eram da cor do vinho, sempre tinto, que a minha tia guardava nas estantes e que me convidava a beber sempre que se aproximava uma trovoada, para ver como balançavam as enormes copas das árvores em seu jardim.

A mulher sorriu com a minha reação e notei que seus dentes estavam cheios de terra. Senti uma espécie de repulsa e de repente não sabia se queria investigar mais. As perguntas se atropelavam na  minha cabeça, mas a única coisa que consegui articular foi “Cospe, cospe!”. Ela me olhou intrigada e, como se tentasse entender o que eu estava falando, ficou séria e então caiu na gargalhada, o que me fez perceber o quão absurdo aquilo soava.

— A terra não a machuca? — finalmente perguntei entre risos nervosos.

— Não… a você, sim? — ela me respondeu surpresa, com uma voz grossa e muito rouca.

— Bom, a verdade é que nunca comi terra, porque desde que me lembro, não experimentei nada que não fosse esterilizado ou lavado com água ozonizada, além do que na escola infantil as professoras eram muito duras com quem ousasse levar as mãos sujas de terra ou qualquer outra coisa à boca… Então não sei dizer se  machuca…

— Hum, que estranho que você nunca tenha provado. Talvez seja porque  não leva em conta tudo o que pode ser comido junto com ela: raízes, minerais, formigas, minhocas, cochonilhas e, com sorte, uma centopéia — disse sorrindo de novo, e pude ver que seus dentes estavam verdes, como se cobertos de musgo.

— Aaah… Nunca pensei nisso… É difícil para mim imaginar que posso colocar algo que vive debaixo dos meus pés na minha boca — respondi um pouco timidamente, escondendo meus olhos na grama, pois de repente fiquei com vergonha de ter hábitos alimentares tão convencionais.

Ela ficou um tempo em silêncio, atenta ao que se passava à sua volta como se fosse a primeira vez que se dava conta da rua e do alvoroço dos transeuntes, dos estabelecimentos meio arruinados e da decadência adormecida suspensa no ar. Sem se virar para me ver, com uma voz ainda mais grave,  respondeu:

— É compreensível, se teve que se acostumar a viver assim. 

Suas palavras atingiram meu estômago como um turbilhão de ar quente. Então fui eu que fiquei sem saber o que dizer, imaginando se havia algo além de “viver assim”; sem entender bem que, não só ela vinha de uma cidade ou talvez de algum país distante cujo nome eu não havia aprendido na escola, mas também que havia algo em sua natureza totalmente estranho à minha ou ao que eu conhecia até agora, que não era muito porque nunca ousei explorar territórios fora da minha zona de conforto.

O silêncio prevaleceu como uma bolha aerostática que inflou até trovejar, graças a uma nova onda de pedrinhas ardentes. Me cobri imediatamente com a pashmina que levava amarrada no pescoço como xale e, sem pensar, me ajoelhei ao lado dela para cobri-la também. Conforme me aproximei, porém, ela começou a emitir um misto de grunhido e gorjeio tão selvagemente animal que  paralisei,  deixando meus braços estendidos ao redor dela, como uma espécie de pássaro em pleno vôo. Enquanto a rajada passava, e sem coragem de  abaixar os braços nem de me levantar, pude sentir seu cheiro de umidade, de terra, de vários tipos de grama e um odor estranho que não consegui definir: algo que vinha de suas costas que me lembrava carne crua. Também pude ver pequeninos bichos rastejando em seu rosto como se estivessem em território familiar. Ela havia fechado os olhos novamente e não parava de grunhir/gorjear. Eu me perguntava cada vez mais ansiosamente quem era ela, de onde vinha, o que estava procurando; e ao mesmo tempo, percebendo seu desconforto diante da minha proximidade, avaliei se deveria levantar devagar para não incomodá-la mais, ou se seria mais fácil dar um pulo, fugir e esquecer o assunto.

A turbulência do ar começou a diminuir e resolvi me levantar e me despedir da maneira mais gentil possível. No entanto, assim que fiz o primeiro movimento, ela parou de grunhir/gorjear e me deteve, colocando a mão na minha bota. Escancarou a boca e soltou um uivo elétrico, como o de um pássaro noturno. Então de novo ela abriu os olhos e com a outra mão me pediu para sentar ao seu lado.

— Não vá ainda. Você pode me ajudar com uma coisa se prometer não ter mais medo.

— É difícil não me assustar se eu não sei porque você faz esses ruídos, porque você está cheia de bichos e terra, porque o ar não a afeta, ou o sol, ou…

— Muito bem, muito bem, já entendi sua estranheza. Sei que vocês são muito impressionáveis, mas não foi minha intenção. É a primeira vez que interajo com um dos seus. Não é que não tenham me visto antes, mas sim que ninguém se interessou pelo que eu faço aqui.

— Dos “meus”?

— Sim! Dos seus; sua raça, sua espécie! Você já notou que não sou igual a você. Digamos… Compartilho algumas generalidades fisiológicas, tenho um ciclo de vida muito parecido, conheço e entendo sua linguagem, embora minha capacidade reflexiva seja maior que a sua, mas meus hábitos e necessidades são diferentes…

— Mas…

— Não me interrompa. Quer ou não saber de onde venho e para que preciso da sua ajuda? — ela replicou entre zumbidos que pareciam sair de seus cabelos.

— Sim, sim quero, só que, como você disse, minha capacidade reflexiva me impede de discernir se você está inventando histórias, como a maioria dos nômades que perderam a certeza do que eram antes de viver em exílio permanente.

— Ah! Eu sei a quem você se refere. Nós os chamamos de desenraizados. Mas não, eu também não sou dessa espécie. Minha memória genética contém informações vitais que vocês descartaram muito rapidamente. Pertenço a uma colônia de hibridarius metaterrae que esteve por muito tempo contida, por assim dizer, entre os tímpanos de um arquipélago antártico há centenas de anos. É impressionante descobrir o que vocês fizeram com o mundo durante esse tempo, mas curiosamente graças a isso conseguimos sair de nossa hibernação; embora talvez eu preferisse ficar adormecida em estado latente até que todos vocês desaparecessem por completo. Felizmente, as habilidades que adquirimos entre o gelo, absorvendo o conhecimento de todo o reino naturae que se filtrou graças à água e aos minerais que nos mantiveram vivos, nos ajudarão a sobreviver à catástrofe que vocês e sua famosa  inteligência desencadearam… — disse isso olhando para mim ferozmente, pronunciando cada palavra como se a arrastasse para tirá-la da boca.

Por um momento fiquei com o pensamento febril, tentando processar tudo o que ela tinha dito, procurando uma resposta que não parecesse uma desculpa ou justificativa absurda, mas não havia forma de sair imune da acusação, mesmo eu tendo nascido há apenas 20 anos. Poderia ter dito a ela que o mundo já estava podre quando eu cheguei aqui e que tentei não infectá-lo mais ao interagir com ele, embora isso não me tirasse a responsabilidade autodestrutiva que herdei como parte desta espécie. Entre hesitações que pouco a pouco se formaram, só consegui dizer:

— Não pense que eu não sei que minha própria decomposição faz parte da decomposição desta terra, e que cada exalação, cada transpiração, cada resíduo orgânico ou inorgânico que eu produzo se acumula terrivelmente abaixo ou acima dela, sufocando-a até ela estourar…

— Eu sei que você sabe. Há algo em você que ainda resiste à onda de brutal indiferença, tão comum a seus semelhantes; percebi isso quando você quis saber o que estou fazendo aqui fora, e depois, quando quis me proteger dessa matéria que vem da minha própria casa. Por isso quero lhe pedir o seguinte – sorriu de novo com os dentes verdes para fora e pegou o saco que, descobri naquele momento, não era de pano.

— Ah… Achei que era aí que você trazia suas coisas. O que é?

— Hum… de alguma forma funciona como você imaginou. Eu não deveria ter tirado, mas queria muito sentir mais uma vez o frescor, a umidade da terra viva através de toda a minha estrutura nervosa e isso só poderia acontecer se eu libertasse minhas vértebras disto.

Não pude deixar de fazer um gesto de tremenda surpresa ou espiar atrás dela, mas ela desviou do meu movimento e continuou:

— Pedi para você parar de se assustar, lembra? Agora escute com atenção, porque o que você deve fazer é muito importante. Este –disse, segurando o não-saco diante de meus olhos– é o meu meio de transporte e comunicação com outras vias vitais, seja no subsolo, na água ou através do ar e, portanto, é essencial para que eu continue viva. Normalmente viajo com alguém mais e  nos ajudamos  mutuamente a removê-lo e a colocá-lo depois de absorvermos, através dos nossos cabelos, as informações necessárias de cada habitat que visitamos. Porém dessa vez Sirgog, meu  acompanhante, decidiu passar pelos espaços que vocês chamam de marginalizados e me pediu para esperar por ele aqui, mas  está demorando mais do que o esperado e preciso continuar minha jornada para  nutrir-me de outras moléculas. Tínhamos combinado que não retiraríamos nosso casco, mas como você vê certas curiosidades prevalecem. Pois bem, o que você vai fazer é o seguinte: vai inserir os dentinhos de cada válvula  da parte interna do casco na vértebra correspondente, cuidando para que todo o cabelo fique dentro, como se estivesse colocando um capacete. Eu cuido do resto, mas não tenho certeza se você quer ver isso – ela terminou, me entregando o que eu agora entendia ser seu maior tesouro.

A textura era diferente do que eu imaginava. Parecia um enorme grão de café, e as válvulas eram como bocas famintas de onde saiam dentinhos afiados, que procuravam desesperadamente algo para se agarrar. Depois de me entregá-lo, seus olhos cor de vinho tinto começaram a piscar como pequenas chamas, olhando para mim uma última vez antes de agradecer e se virar para  oferecer suas costas. Ela pegou seu cabelo muito comprido com as duas mãos e o ergueu no ar para que eu pudesse cumprir minha missão. De pronto fui envolvida pela intensidade do cheiro que havia sentido antes, vindo da pele descascada e da carne latejante, repleta de larvas que deslizavam entre raízes e filamentos nervosos. Movi o casco com muito cuidado para que as válvulas coincidissem com as vértebras, e senti como os dois materiais se reconheciam imediatamente, atraindo-se com exatidão. Então ouvi como os dentinhos perfuravam os ossos e trituravam a carne. Ela sinalizou agitando o cabelo para indicar que era hora de inseri-lo no casco, e assim que comecei a fazê-lo todo o seu corpo começou a tremer acompanhado de sons e palavras que eu não entendia, mas que ela repetia ritmicamente, como se fosse uma litania indispensável para a realização do ritual:

as varadeji in karnia

in nebula mineral

nérzerka majtre trália

asssshhhhiiiiiitrrrrééééjia

O movimento, a voz e o cheiro estavam cada vez mais fortes, mas me mantive firme e me certifiquei de que todo o cabelo estivesse bem guardado no casco, que gradualmente se apegava à pele até se prender como se fosse parte natural do seu corpo. Então eu vi como ela toda estava sendo desmembrada por dentro, como se os dentinhos e as bocas-válvulas a estivessem mastigando e engolindo, deixando apenas alguns coágulos de sangue, cartilagem e um pouco de pele na grama, que, por sua vez, começou a perfurar-se, atraindo para si a semente-casco para arrastá-la em sua jornada subterrânea. Fiquei ali olhando para o buraco, me perguntando o que aconteceria se eu começasse a cavar seguindo seu rastro. Imaginei que ela tivesse ouvido meu pensamento, porque em resposta senti uma nova lufada de ar mais frio e selvagem, me incitando a voltar para casa e pensar no que faria da minha vida agora que sabia que outras formas de existência eram possíveis.


Semente é um conto da escritora mexicana Iliana Vargas, originalmente publicado em português pelo projeto Filamentos, com edição de Angela Pontual e Sandra Abrano.

*Cris Oliveira (São Paulo, 1974) é bibliotecária, tradutora e escritora. Publicou o livro de poemas Escova de dentes (Paraquedas, 2023) e tem textos publicados em diversas antologias e revistas. Atualmente mora em Genebra, na Suíça, onde trabalha com gestão de coleções digitais e metadados.

Maurício Tizumba é um multiartista: instrumentista, cantor, compositor, ator de teatro, cinema e TV, além de empreendedor cultural. Nascido em Minas Gerais, é congadeiro e agente da cultura popular afromineira. Tizumba celebra 50 anos de carreira, arte e militância com mais de 50 produções, entre teatro, filmes e televisão, compondo uma imensa contribuição para a cultura brasileira. Está em cartaz no musical Viva o povo brasileiro, uma adaptação da obra literária de João Ubaldo Ribeiro com composições inéditas de Chico César.

Polivox — Falávamos do tema da revista, tempo vivido, e pensei sobre essa coisa de chegar aos 60+. O mercado de trabalho passa a se estreitar e as oportunidades somem. Por outro lado, você passa a ser uma bandeira. Esse corpo negro, que é um corpo alvo e que consegue virar o jogo através de seu ofício. Você atua, canta, toca, dança, empreende, participa do universo da arte e da espiritualidade. Nesses 50 anos de carreira, como você vê a sua influência no cenário de Belo Horizonte, onde é seu chão, o que você afirma até hoje, morando lá?

Tizumba — É interessante quando você fala isso, que, pra mim, quando eu comecei a trabalhar com arte e tal, tinha muita gente trabalhando, mas essas pessoas nunca dão visibilidade pra pessoas pretas, nunca deram na minha época. Hoje, graças a Deus, a gente tem a tecnologia, que mostra que tem muita gente fazendo coisas, tem muita gente da minha faixa etária, às vezes até mais velhos, fazendo coisas. Mas a visibilidade não vem como deveria vir. Eu tenho um grande apreço pelo Milton Gonçalves, por exemplo. Ele foi um camarada que entrou no mundo das novelas, foi um dos primeiros negros que eu vi dentro da televisão. E é também um grande ator. Eu não vi o mundo dele, onde ele trabalhou com teatro, mas, como empreendedor, ele deixou muita coisa também, trabalhou muito tempo como diretor. Aí estou falando de televisão, como poderia estar falando de esporte também, que os grandes nomes do esporte que a gente teve no Brasil, eles somem rapidinho, vão sendo esquecidos. O tempo vem e dão um jeito de sumir com a gente. Mas eu me neguei a sumir no espaço, mais em função da minha sobrevivência. Só sei mexer com arte, só sei trabalhar com arte, eu não sei fazer outra coisa, então eu vim à luta, sigo na luta pra fazer coisas. De repente eu não tenho a visibilidade de um artista global ou de um camarada que achou um outro caminho que rendeu a ele mais condições na vida. Eu aprendi muito cedo que o interessante é a gente ter sempre trabalho, seja ele na área que for, porque a gente tem a tendência também de achar que os pretos só vão conseguir sobreviver bem na arte. Então me dá até angústia quando escuto esse tipo de coisa. Hoje eu procuro falar muito disso pra que as pessoas não tenham que ser só artistas, mas que vislumbrem outras coisas. E essa coisa de se manter uma carreira longeva, a arte dá isso pra gente. No esporte é mais difícil, e tem outras profissões que te tiram rápido do mercado

Você começa com a música desde jovem.

Começo com a música com 15 anos, com 16 eu já estava fazendo teatro, no ginásio, na escola.

Como é a sua infância? A música acontece no seu terreiro, na sua casa?

Exatamente pelo terreiro de congado e pelo terreiro de umbanda. As músicas que eu cantava eram músicas de congado e de umbanda. Eu também tive meu período Jovem Guarda, que a gente escutava muito no rádio, às vezes assistindo televisão, televisão que, naquela época, a gente não tinha, era um objeto só mesmo pras classes mais abastadas. Então misturava as minhas músicas congadeiras com candomblé, com Jovem Guarda, com samba, com tudo que eu podia misturar.

Todas as influências.

Era uma outra época, também. Não me questionavam, e fui me transformando nesse artista que cheguei hoje, aos 65 anos, fazendo arte, trabalhando do jeito que eu quero. De dez em dez anos, essas cinco décadas [de profissão], eu consigo entender separadamente, claramente como que eu fui, tudo que eu fiz. Cada época minha teve uma história interessante à medida que fui me firmando enquanto artista. E hoje eu sei exatamente o que eu posso fazer dentro da minha carreira longeva. E eu entendo também os amigos que pararam ou desistiram, porque não é fácil. Às vezes é muito mais fácil a gente pegar um emprego ali, ter um salário mínimo mensal e garantido, que a arte nem sempre permite. Por isso eu comecei a inventar coisas.

É aí que nasce o empreendedor?

Porque, por exemplo, na semana que não tenho onde tocar, a comida vai ter que continuar entrando. Aí eu comecei a inventar coisas pra fazer. No teatro é mais difícil ainda você manter uma peça mensalmente, você ter seu salário. Então comecei a dar aula, que era coisa que eu achava que não tinha capacidade pra fazer.

Isso vem de quanto tempo para cá? Essa tomada de consciência?

No início, pensava que ia ficar famoso igual o pessoal da Jovem Guarda e ia ganhar dinheiro pra comprar uma casa pra minha mãe com 12 anos. Aí deu os 12 anos, a fama não veio, nem o dinheiro, aí eu fiz um voto: se não deu agora, com 14 anos eu consigo. Aí continuei fazendo mais dois anos. Quando a coisa não deu, eu fui trabalhar de engraxate, de outras coisas que foram aparecendo na minha vida. A partir dali eu já começo a correr atrás das minhas coisas. Acho que a minha consciência vem daí. Quando eu chego aos 18, já estou envolvido com o Movimento Negro Unificado, que chega em Belo Horizonte, e ali o discurso da gente muda, porque a gente sabe que se a gente não tinha uma casa, se não tinha uma comida digna, não era por causa da gente, era por causa de um sistema. Com 18 anos eu descubro isso, e a partir dali eu começo a trabalhar minha vida, tentando criar a possibilidade de ter coisas, de ter trabalho, porque eu sabia que os brancos não iam me dar. No final dos anos 80 eu começo a dar aula pra ter dinheiro. Eu já era um artista quando entra o axé, quando aparece o axé music na televisão, na Rede Globo. Em 1988, que dá os 100 anos da abolição, a Rede Globo pega todo o elenco, todos os artistas pretos, com Glória Maria, com todo mundo assim, e faz um evento bonito. Eu assistindo, eu via que tinha uma grande mentira naquela história, mas aquilo me dava força ao mesmo tempo, porque eram pretos que estavam ali. Por que eu achava que era uma grande mentira? Porque a Rede Globo, naquela época, não tinha representatividade relevante de artistas preto homem e preta mulher. E dali começam a aparecer essas possibilidades de núcleo.

Foram muitos movimentos políticos até acontecer essa mudança.

Eu não sou um camarada de televisão, mas a televisão é que ditava tudo, não tinha jeito. As pontas que eu fiz na televisão todo mundo via. Sabe aquelas pontas de 30 segundos? O cara me viu ali. No teatro, por exemplo, eu poderia ficar o ano todo e ninguém iria me ver. 

A TV está dentro da sala das pessoas. Quem vai sair pra ir até uma sala de teatro? Se isso não é fomentado e entendido como uma ação essencial para a sociedade, a diferença de relevância só tende a aumentar. 

Quando eu amplio a minha forma de trabalhar, por exemplo, eu mesmo passo a ser minha vitrine. Sérgio Pererê é muito engraçado, ele falava “Vamos lá, nós temos que ser o nosso próprio flyer”. Eu falava “Não, Pererê, eu sempre fui meu flyer”, mas agora dava a impressão que a minha impressora estava meio gasta, estava sem cartucho, já não estava aguentando imprimir mais. Porque chega uma hora que não dá pra você sair à noite todo dia, como quando é jovem. Eu desenvolvi também um trabalho que às vezes as pessoas me chamam só pra ir lá no lugar e dançar. Às vezes as pessoas me chamam lá só pra puxar um cortejo.

Você é um mantenedor dessa cultura afromineira, afro-ameríndia.

Eu fui nascido e criado dentro dessa história, e como artista que virei, me considero um artista vitorioso. Depois que a gente envelhece, eles tiram a gente rapidinho da cena. Na televisão sai ainda antes por causa das rugas. Hoje já me chamam pra fazer papel de avô. Hoje eu já sinto as dificuldades que a vida aos 65 dá pra gente, mas mesmo assim eu me esforço, eu pelejo na certeza. Esse último, eu achava que ia fazer um trabalhozinho de um velhinho e ficar ali, sentadinho num canto com três falas.

E no fim está suando a camisa.

A memória também já não é mais a mesma, mas com tempo e treinamento a gente chega. De agora em diante, eu tenho até que escolher o que vou fazer em função até da gente não pagar mico e continuar caminhando com dignidade.

Eu acho incrível isso, pois nesse momento você está atuando na peça Viva o povo brasileiro, na qual interpreta o Nego Leléo, e o quanto de características da personagem batem com as suas características de vida. E o quanto isso me parece um cruzo espiritual. Em algum momento as narrativas que vão chegando pra você vão fazendo sentido em relação a quem é você, então eu sinto que seu modo de enxergar o mundo e a sua vida… Ela caminha muito de acordo também com esses trabalhos, essas personagens que atravessam a sua trajetória.

Sim, tem horas que parece demais até. Com esse trabalho agora, do Viva o povo brasileiro, eu chego num momento muito bom da minha vida fazendo ele, da forma como estou fazendo, com o vigor que estou tendo pra fazer. E ele é medido. Eu não tenho mais condições de explodir ele como menino, vir correndo, virar uma cambalhota e cair lá na frente de pé. Mas envelhecer fazendo o que você gosta, aí é uma coisa de agradecer aos ancestrais, porque muita gente não tem essa possibilidade. Eu acredito que essa pode ser uma boa luta, envelhecer trabalhando. Mais do que nunca, a gente tem que batalhar contra esse padrão sem ruga, que é o mesmo que seguir ativo na sua profissão.

Hoje, quais os seus projetos que estão acontecendo ou o que estão por vir? 

Eu estou com três espetáculos. Um é o Herança, que eu fiz junto com a minha filha, Júlia Tizumba e Sérgio Pererê. É um espetáculo em que eu conto a história da minha avó, do meu tio, Pererê conta a história da avó dele, da mãe dele, e a Júlia conta a história da minha mãe, que é a vó dela. É um espetáculo muito interessante, que está sendo convidado pra participar de alguns eventos, então eu ainda vou trilhar com ele um bom tempo. Eu tenho um espetáculo já mais antigo, que é o Galanga. Eu venho trabalhando com ele desde 2012. E estou nesse espetáculo Viva o povo brasileiro, um musical inédito baseado na obra de João Ubaldo Ribeiro, no qual interpreto Nego Leléu, dirigido por André Paes Leme com trilha sonora original, composta por meu grande irmão Chico César. E ainda tem uma oficina minha permanente que acontece em Belo Horizonte.

Como é o nome da oficina?

Tambor Mineiro. A oficina nasceu pelo fato de eu ser congadeiro no cenário atual em que só se toca funk e samba. Quando cheguei em 1988 na Europa, o maracatu já estava lá quebrando tudo, o samba já estava lá quebrando tudo. Cheguei lá sozinho com meu tamborzinho e despertou muito o interesse. “O que é isso?” “É congada do Brasil.” “Congada do Brasil? “De onde é?” “De Minas Gerais.” “Na beira d’água?” “Não, distante d’água.” Porque essas coisas todas têm beira d’água, que eu chamo de tambores de beira d’água. Os tambores de beira d’água, de beira-mar, são os que vão longe, porque é mais fácil chegar nos litorais, que seja em Pernambuco, Maranhão. Cheguei lá sozinho, com um tamborzinho, em Berlim, pra tentar espalhar essa história do congado mineiro. Como essa música congadeira não entra pra música popular brasileira como entra o maracatu, como entra o axé music. Então hoje eu chego nesses lugares bem devagarinho, colocando sementinhas ali, às vezes umas germinam, outras o sol queima ou o bicho come, mas a gente vai continuar fazendo. Então tem alguns projetos de tambores em Berlim, em Munique. Está nascendo um na Áustria e outro na Suíça. 

Eu vi que você fundou uma companhia de teatro de rua, a Cia. Burlantins. O que a rua comunica, na passagem do transeunte, na relação com o morador do coreto da praça, é diferente da relação com alguém que se arrumou e foi para um teatro.

É, pega um bêbado, pega um louco, pega um cachorro. O cachorro entra na cena, aí você vai ter que contracenar com ele, o louco está lá, você vai ter que contracenar com ele. Então a Cia Burlantins nasceu em 96 pra fazer musicais de rua. E o primeiro musical que a gente fez foi O homem da gravata florida. Na montagem seguinte, a gente vai encontrar com Tim Rescala, daqui do Rio de Janeiro, que escreve pra gente uma opereta chamada O homem que sabia português. E depois ele escreve um terceiro, chamado À sombra do sucesso, tudo pra rua. A gente fez esses espetáculos todos no Parque dos Patins. É muito legal, porque a minha história com a rua vem desde a minha experiência como crooner de banda na Europa, nos anos 80. O projeto nasceu quando apareceram Regina e Marina na minha vida, duas cantoras maravilhosas, magníficas, e boas atrizes também. Regina ainda é mais atriz do que Marina. Aí a gente, com direção do Chico Pelúcio, que é do Grupo Galpão, rodamos o mundo com ela. Depois teve uma atrito, um desentendimento, a companhia ficou comigo e eu transformei ela numa companhia negra de teatro. E tenho vários projetos, como o Solo Negro, com o Hugo Germano.

O Solo Negro apresentou tanto teatro quanto música?

Dança, teatro, música, circo, tem tudo. E pra preto, só preto. Tem também o Tambor na Praça, que é patrocinado pela Unimed, vai fazer 13 anos. São tambores que a gente toca na praça, trabalha com os alunos, sempre convida um artista brasileiro pra ir lá e tocar a partir da sua trajetória artística. Além disso, tenho o Festejo do Tambor Mineiro, que é uma festa que eu faço trazendo grupos de congado de vários lugares do estado e junto com eles eu trago grupos de percussão também. A gente sempre leva um artista preto de algum lugar.

Tizumba, e sua filha? É a primeira vez que estão juntos em cena num projeto que não seja de autoria de vocês?

Está sendo interessante. É muito bom trabalhar com ela, porque o que eu vou falar, todo mundo vê: ela é muito boa de serviço, dedicada, estudiosa. Ela pegou o Tizumba só pra me homenagear, mas não precisava, porque é uma menina muito trabalhadora e acredito que ela vai envelhecer bem. Por quê? Além dela pegar o trabalho da forma que eu trabalho, por exemplo, ela direcionou esse estudo do teatro negro, essas coisas todas de negritude pra academia, então ela entrou pra academia levando isso. Ela fez mestrado em teatro negro, está fazendo doutorado em teatro negro. Ela continua, ela insiste na história. Então acredito que ela vai envelhecer bem também.

É lindo de ver, e tirando do romantismo também, porque você é a ancestralidade viva dela, ela catou aqui… Porque ela poderia também querer um outro caminho, mas ela catou e cata até hoje e diz “Ele é minha referência” e tal. Ela já alçou um outro voo nessa linhagem, que é ter adentrado a universidade, e você, desde o começo da sua fala, você fala: “Olha, não é que preto tem que ser só artista, não, a gente deve estar em todos os setores de criação, de tomada de decisão, de poderes”.

Tanto é que ela já sabia disso. Quando ela fez o vestibular pra entrar pro teatro universitário, ela fez escondida de mim. Não porque eu não queria que ela fizesse, mas é que a gente sabe da dificuldade que é pra se manter artista. Então tem dores. A dor em mim é a de sempre, mas nela eu não posso suportar. Isso é texto do Leléo: a dor em mim é a de sempre, eu manjo, eu vou, mas nela, caramba, não. É um negócio meio maluco a gente querer até canalizar as pessoas. A Júlia está trilhando o caminho dela do jeito dela, independente de mim. Quando ela veio, eu já trabalhava com a Sarau desde 2005. Quando ela veio fazer o teste pra Sarau, há seis anos, ela veio fazer um teste e eu só fiquei sabendo depois. Ela não usava ainda o nome Tizumba, ela usava o nome Dias. Deve ter uns três anos pra cá que ela começou a usar o Tizumba.

Esses passos vêm de longe.

É, esses passos vêm de longe mesmo. E eu tenho com a Júlia um amor muito grande, porque ela é filha única e aprendeu muita coisa comigo, e é isso que você falou, ela burilou muito do que ela aprendeu comigo. Eu fico até encantado às vezes com ela, pelo esforço, pela destreza de entender as coisas, pela esperteza no falar, no pensar. Eu já vejo que ela ultrapassou a minha história feita até agora. Eu tenho muito orgulho dela, da forma como ela trabalha. 

Você tem no seu ofício a voz como ferramenta. Como é essa coisa que dizem que a voz não envelhece?

Ela envelhece. Envelhece e muito. A diferença é gritante. É porque é uma coisa que está dentro da gente, e aqui a gente está sempre escutando essa mesma voz. Escuta o Jorge Ben Jor de 60 e escuta o Jorge Ben Jor de hoje. Ou escuta o Jorge Benjor de 80, você vai ver a diferença de 60 pra 80, 20 anos depois.

Acho que tem a ver com o fôlego e a quantidade de ar.

Sim, eu costumo dizer até mesmo pra esses cantores líricos, por exemplo, que têm que ter muito fôlego pra cantar na ópera, por exemplo. No final, eles têm muito estudo para levantar palato, abrir as costelas pra diafragma, eles têm muita ginástica pra isso. Mesmo assim eles envelhecem, o palato deles não vai ter força pra levantar porque envelhece, não tem jeito. Quando a gente vai ficando velho, por exemplo, uma coisa que aparece na gente muito é o vibrato. Hoje eu ando numa luta danada, vigiando, toda hora o vibrato vem.

Pra apoiar.

Pra apoiar. Eu tenho que cuidar pra usar ele o mínimo possível. Quando eu começo a falar isso é porque, caramba, eu já cheguei aos 65 anos. Acho que chego bem, feliz com o meu trabalho, com as coisas que eu já fiz. Eu estava fazendo um cálculo agora. Com essa, são 36 peças de teatro.

E shows, e filmes, e cortejos.

Filmes, são 28.

E aulas, e vivências.

É, é muita coisa.

A Bienal de São Paulo de 2023 acontece entre os dias 6 setembro e 10 dezembro, prometendo causar um impacto verdadeiro na cena artística. Ao lidar com assuntos urgentes por meio da expressão artística — e incluindo a presença de coletivos diversos —, o tema-mor do evento é provocativo e esperançoso: Coreografias do Impossível. Sob a curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, a Bienal deste ano se anuncia como uma celebração da diversidade e da representatividade, ampliando o diálogo local e internacional sobre questões fundamentais que vêm ganhando cada vez mais atenção na sociedade, embora remontem a épocas passadas.

Nahene Wakame (2022), do coletivo MAHKU.

O tema escolhido vocifera ousadia e reflexão ao abraçar a ideia de estudar e desafiar o impossível em suas mais variadas formas e contextos. Há muitos mundos inviabilizados para pessoas negras, para pessoas trans, para povos originários, para tantas pessoas em condições menos privilegiadas, e as tais coreografias podem ser vistas tanto como o maquinário social que fabrica impossibilidades quanto como os passos transgressores que contestam toda e qualquer vontade alheia de encurtamento de promessas. A impossibilidade da vida em liberdade plena, as desigualdades sociais e as violências totais são algumas das pautas tratadas pelas obras expostas. Além de abordagens que eventualmente tratem do tema como estudos psicossociais menos ou mais metafóricos, o mote permite que os participantes transcendam a noção linear e ocidental do tempo progressivo, convidando o público a uma jornada poética e crítica por entre as inúmeras manifestações artísticas.

Nesse contexto, a presença significativa de coletivos na 35ª Bienal de São Paulo — que chega a dezenas dentre os 120 participantes — enxerga e valoriza a importância da produção artística colaborativa. Se a diversidade e a inclusão são ideias que estão intrinsecamente ligadas com tema principal, nada como um punhado de coletivos para simbolizar e fazer valer a abrangência de perspectivas, advindas das mais distintas vivências. Grupos de artistas que se unem em torno de algo em comum, compartilhando ideias, processos criativos e recursos têm o poder de criar um universo colaborativo que, em si, é uma demonstração de fibra, de partida sendo uma espécie de levante contra muitas narrativas normativas excludentes tomadas como o padrão a ser seguido. Eles proporcionam um ambiente de cooperação e troca, onde as habilidades individuais de cada membro se somam para criar obras multifacetadas. A formação desses coletivos pode ocorrer a partir de afinidades temáticas, interesses compartilhados, identidades culturais ou de questões sociais que desejam abordar por meio de suas obras.

Há muitos exemplos de coletivos nacionais interessantes, cujo trabalho é essencial para se pensar em amanhãs mais acolhedores, que estarão presentes na Bienal: o MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin) é um dos principais agentes no cenário da arte indígena contemporânea brasileira; o Sauna Lésbica é um projeto coletivo que busca celebrar corpos dissidentes; o Zumví é um coletivo de fotógrados negros com objetivo de fazer imagens da cultura afro-brasileira; e o Cozinha Ocupação 9 de Julho é um projeto de cozinha coletiva em um prédio ocupado pelo MSTC – Movimento dos Sem Teto do Centro, em São Paulo.

Sauna Lésbica (2019). Foto de Marina LIma.

E, dentre os participantes internacionais, o Archivo de la Memoria Trans (AMT) é um projeto colaborativo e independente gerenciado por travestis e pessoas trans da Argentina que reúne imagens e histórias sobre a história recente da comunidade trans no país. Enquanto que o The Living and the Dead Ensemble é um grupo de artistas, performers e poetas do Haiti, França e Reino Unido, produzindo textos, performances, filmes e instalações. O Grupo de Investigación en Arte y Política (GIAP), do México, realiza uma série de escritos, apresentações, exposições e atividades sobre estética e autonomia, interessando-se em investigar o valor das poéticas que chegam aos beirais dos movimentos sociais, especialmente os de raiz indígena.

É interessante constatar também, diante da lista de artistas que vão participar da Bienal, como a aceitação e reconhecimento dos coletivos artísticos mudou consideravelmente nos últimos tempos, refletindo uma transformação nas práticas curatoriais e no modo como o mundo da arte enxerga essas produções coletivas. Antes vistos de forma marginalizada ou, no mínimo, menos valorizada em comparação com artistas individuais, os coletivos passaram a ser reconhecidos como espaços fundamentais de resistência, inclusão e diversidade no cenário artístico atual. Sua atuação desafia as normas estabelecidas, impulsionando um movimento de descentralização do poder e democratização da arte.

A importância dos coletivos em eventos de larga escala como esse reside em sua capacidade de proporcionar uma pluralidade de olhares e abordagens para temas sensíveis, como as questões raciais, os desafios enfrentados pelas pessoas trans e as lutas dos povos originários. Cada coletivo contribui com suas perspectivas particulares, tornando a exposição um espaço dinâmico e enriquecedor, onde as obras se entrelaçam em um diálogo intenso.

O projeto espacial e expográfico desenvolvido pelo escritório de arquitetura Vão também se mostra fundamental para abrigar a diversidade e a multiplicidade de expressões artísticas presentes na Bienal. O espaço físico se torna uma plataforma inclusiva, que acolhe as obras e propicia ao público uma experiência imersiva e reflexiva diante das Coreografias do Impossível. Além de representar uma nova era para a instituição, a 35ª Bienal de São Paulo promete se tornar um legado duradouro na história da arte, inspirando gerações futuras e redefinindo os limites do que é possível na expressão artística. O evento oferece aos visitantes a oportunidade única de se moverem por entre narrativas que desafiam as impossibilidades do nosso tempo, incitando reflexões profundas e propondo novas perspectivas para o mundo contemporâneo.

Em suma, a 35ª Bienal de São Paulo se consolida como uma plataforma significativa para a convergência de artistas, ideias transformadoras e diálogos incisivos sobre as questões mais prementes do nosso tempo. Ao celebrar a presença significativa de coletivos, a Bienal celebra a multiplicidade de vozes que, unidas, dançam as Coreografias do Impossível, lançando luz sobre a necessidade de um mundo mais inclusivo, igualitário e sensível às diferenças.

Confira nossa conversa com o Coletivo Curatorial da 35ª Bienal de São Paulo:

Shakedown (2018), de Leilah Weinraub. Film still. Cortesia da artista.

Quais foram os caminhos que levaram à temática coreografias do impossível e como ela, assim abrangente, se conecta com as urgências do mundo contemporâneo?
Coletivo Curatorial — Habitamos um mundo no qual desafiar aquilo que parece ser impossível é uma tarefa cotidiana: noções de justiça, igualdade racial e de gênero, crises ambientais, desigualdades sociais, disputas políticas e direitos básicos, são um bom exemplo destas impossibilidades. A ideia de mover-se livremente nos espaços, é portanto, historicamente, uma das principais coreografias do impossível e são esses sistemas de controle que nos impedem de conhecer diferentes perspectivas capazes de criar diálogos e aproximações com aquilo que nos parece ser diferente. Através de modos diversos de expressão, a arte é espaço que fomenta estas novas ideias e modos de olhar, antecipando debates, estratégias e ampliando a nossa capacidade de ver e perceber o mundo.

As coreografias do impossível na 35ª Bienal de São Paulo foram moldadas através de um profundo olhar para as complexidades e contradições do mundo contemporâneo. Observamos as transformações sociais, políticas e culturais em curso e buscamos explorar as tensões entre o possível e o impossível, o visível e o invisível, o real e o imaginário. Esta abordagem nos permite abraçar as urgências do mundo atual, dando voz a uma ampla gama de questões e perspectivas que muitas vezes desafiam os olhares convencionais. De forma poética e ampliada, compreendemos a coreografia como um conjunto de movimentos que exacerbam os limites normativos e estabelecidos, que considera nossas diferentes trajetórias, formações, áreas de atuação e que, sobretudo, buscou criar estratégias que nos permitissem encarar os desafios institucionais e curatoriais inerentes a um projeto desta envergadura, gerando continuamente suas próprias relações, tempos e espaços.

Mas também partindo do interesse em compreender como o conceito de coreografia tem sido ampliado, por meio de sua capacidade de incorporar, refletir e questionar o contexto social em que vivemos. O impossível, por sua vez, refere-se às realidades políticas, legais, econômicas e sociais nas quais essas práticas artísticas e sociais da 35ª Bienal estão inseridas, mas também à forma como essas práticas encontram alternativas para contornar os efeitos desses mesmos contextos.

Falando em abrangência, é interessante de se pensar temas que norteiam mas que, de maneira alguma, definem. Talvez seja essa a magia: paradoxalmente, a partir do que é impossível, abrir muitas possibilidades. Vocês acreditam nisso? Existiam outras opções que seguiam lógica similar?
CL — Ao escolher o “impossível” como ponto de partida, abrimos um espectro de possibilidades que transcende limitações predefinidas. Essa escolha permite que artistas e coletivos explorem territórios inexplorados da criatividade, liberando-se das restrições tradicionais. Quando falamos em “impossível” e coreografias do impossível, estamos nos referindo a políticas do movimento e movimentos políticos que conversam com produções artísticas. Nos interessa pensar como as formas expressivas e estéticas desses artistas são impactadas e transformadas pelas próprias impossibilidades do mundo em que vivemos. Neste sentido, um dos principais desafios passa por pensar uma política e uma poética de exibição que mantenha a integridade destes contextos impossíveis

Em um evento de grande escala como esse, de que maneira se dá o processo de seleção dos participantes? Estamos falando de centenas. Como garantir que os participantes representem de fato uma variedade de questões e perspectivas dentro do tema proposto, evitando repetições?
CL Nosso objetivo foi criar uma edição livre de categorias e estruturas limitadoras. Nos reunimos para criar um grupo horizontal, sem a hierarquia de um curador-chefe ou a homogeneidade de um coletivo, dissolvendo, assim, as estruturas hierárquicas e promovendo contribuições igualitárias de todos os membros. Incorporamos essa fluidez em nosso processo de seleção de artistas, buscando uma multiplicidade de participantes. Nossa lista inclui um amplo espectro de formas artísticas e vozes de todo o mundo. Acreditamos que os lugares de onde partimos informam a nossa produção artística e o modo como nos expressamos no mundo, características que compõem as coreografias do impossível e o conjunto de obras reunidas na exposição.

Compreendemos que a arte é um elemento fundamental para a saúde das nossas relações, por ser um espaço que desafia aquilo que sabemos, as regras e as estruturas tradicionalmente restritivas que historicamente resultaram em diversas formas de opressão. As coreografias do impossível nos ajudam portanto a perceber, que todos nós, em maior ou menor grau, diariamente encontramos estratégias que desafiam o impossível, e são elas as ferramentas que encontraremos nas obras dos artistas, para fazer possível o impossível.

Delirar o racial (2021), de Davi Pontes e Wallace Ferreira.

Há um número expressivo de coletivos entre os participantes. Isso foi uma proposta pré-estabelecida ou foi uma coincidência, com a temática Coreografias do Impossível levando inevitavelmente a essa característica de seleção?
CL A presença significativa de coletivos entre os participantes não foi uma proposta premeditada, mas sim um resultado natural da pesquisa curatorial. A tônica temática das coreografias do impossível considerou os coletivos como resposta às complexas interações entre os indivíduos e as comunidades em um mundo em constante mudança.

Vocês acreditam que exista alguma diferença na forma com que coletivos e artistas individuais são recebidos?
CL Coletivos e artistas individuais são igualmente valorizados em nossa abordagem curatorial. Reconhecemos que todos têm papéis únicos na expressão artística e na abordagem das questões e urgências contemporâneas. A recepção varia de acordo com a singularidade de cada contribuição para o diálogo proposto pela Bienal.

De que maneira o projeto espacial e expográfico da mostra, desenvolvido pelo escritório de arquitetura Vão, foi pensado para acomodar as expressões artísticas de diferentes coletivos?
CL O projeto espacial e expográfico meticulosamente criado pelo escritório de arquitetura Vão foi concebido para acomodar a multiplicidade de expressões dos coletivos e artistas. A arquitetura foi desenhada para espelhar a dinâmica das coreografias do impossível, criando espaços de encontro e interação específicos para cada obra ou participante. A jornada dos visitantes é marcada por momentos de fluidez e retração, bem como de contração e expansão. O espaço se torna uma coreografia em si, determinando o ritmo no qual os visitantes interagem com ele, influenciando a velocidade e pausas, colocando os visitantes como protagonistas na relação construída com o ambiente.

Weavers of Time (2013), de Geraldine Javier.

Qual é a mensagem por trás de abordar questões como diásporas, povos originários e desigualdades por meio da expressão artística?
CL A diáspora enquanto contexto e ancestralidade, enquanto cosmologia e ferramenta, é fundamental por permear a história e a cultura de diferentes regiões do mundo. Ao abordá-la na Bienal de São Paulo, afirmamos que estas suas relações são incontornáveis ao debate contemporâneo, para pensarmos como suas práticas artísticas e sociais criam estratégias para existir em contextos impossíveis.

É possível redefinir os limites do que é possível na expressão artística, como diz José Olympio da Veiga Pereira, presidente da Fundação Bienal de São Paulo?
CL A arte tem a capacidade de questionar as estruturas estabelecidas ao produzir mais perguntas do que respostas. É esta dinâmica de aprendizado coletivo que nos interessa. A arte tem o poder de expandir horizontes, desafiar convenções e inspirar a imaginação. Através da Bienal, esperamos proporcionar um ambiente onde artistas e público possam explorar juntos os territórios inexplorados da criatividade e da reflexão crítica.

Karla Tenório e filha em cena de “Eu deveria estar feliz”. Foto: divulgação

Falar sobre depressão pós-parto é sempre um desafio. Não importa quantos anos vêm e vão, não importa o quanto tenhamos avançado em alguns debates sociais — essa ainda é uma doença tabu. Eis a braveza de Eu deveria estar feliz, um filme que segue a jornada de quatro mães que viveram depressão pós-parto e que, a duras penas, conseguiram superá-la através do afeto. O documentário de Claudia Priscilla aborda a questão de maneira franca, entrelaçando as realidades de mulheres que compartilham as suas experiências sem medo de dosar verdades ou manifestar qualquer vulnerabilidade. Cada uma delas viveu um processo íntimo distinto para se curar, com durações e características muito próprias. Talvez não haja uma fórmula propriamente dita para enfrentar uma crise dessas, mas o apoio das redes de afeto, a espiritualidade e a ajuda médica parecem ser imprescindíveis. Mesmo que uma em cada quatro mães no Brasil sofram pela doença, tratar do assunto é ter que se rebelar contra o caráter retrógrado intrínseco da sociedade, que parece incapaz de se desfazer de um corpo de ideias ultrapassado sobre maternidade.

Karla Tenório e filha em cena de “Eu deveria estar feliz”. Foto: divulgação

É um alívio, portanto, para todos nós, ver um documentário mergulhar no tão complexo universo do tema e de todas as possibilidades de cura. 

O filme lida com a dor, é verdade, mas, acima de tudo, é um estudo sobre as especificidades do amor, de como as relações humanas não são — e nem deveriam — ser simples ou unidirecionais. Claudia Priscilla conduz tudo no máximo da intimidade, compreendendo que a maternidade é uma experiência radical que inevitavelmente move as pessoas para um novo lugar e também se debruçando sobre o quão difícil pode ser se reconhecer depois desse rol de rupturas. É uma celebração não espalhafatosa (no melhor sentido) de quem essas mulheres realmente são e, consequentemente, das pessoas que existem por trás de cada mãe do Brasil e do mundo. No fim, o processo de reconstrução que se segue à depressão pós-parto é turvo e não linear. A materialidade de ser mãe tem o poder de fazer renascer, mas, para tanto, também precisa morrer em outros lugares.

Das quatro mães de Eu deveria estar feliz, temos Lorena Nonato de Oliveira, que é professora e doula. Sempre quis ser mãe, mas não no momento em que engravidou, quando estava noiva e cursando Engenharia. Logo que voltou para casa com seu bebê, passando os dias na cama, começou a questionar a relação com sua família, sua religião e sua profissão. Decidiu fazer um curso de doula e se descobriu na enfermagem obstétrica. Barbara Tupinikim, outra personagem, é engenheira florestal. Para ela, o grande baque foi o parto. Teve o filho no hospital e ficou muito tempo em trabalho de parto, tendo que optar pela cesariana. A recuperação da cirurgia foi pesarosa e, entre a felicidade de estar com o filho e a tristeza que sentia, foi difícil assimilar tudo. Na primeira semana em casa, se deu conta de sua depressão. Durante esse processo, ficou cuidando de plantas medicinais, atividade que deu início ao seu processo de cura. 

Lorena Nonato de Oliveira em cena de “Eu deveria estar feliz”. Foto: Divulgação

Temos também Fernanda Corrêa Laham, arquiteta. A segunda gravidez foi bem diferente da primeira: teve que fazer cesariana. Quando levaram o bebê para fazer os primeiros procedimentos, começou a rezar, com medo de que houvesse algum problema. A partir daí, Fernanda desenvolveu um comportamento que as pessoas no geral não esperariam de uma depressão pós parto: desenvolveu uma relação simbiótica com o filho, não se permitindo estar longe dele. Já Karla Tenório é atriz. Sua gravidez foi desejada e planejada. O parto natural foi em sua casa, acompanhado de uma doula. Tudo estava dentro do esperado — exceto pela surpresa de que, depois de tudo, ela não estava feliz. Aliás, muito pelo contrário. Todos em volta achavam que ela estava dando conta de tudo, porque ela de fato vinha atuando como se fosse a mãe perfeita, mas nada cessava o sentimento de vazio. Considera que começou a melhorar depois de quatro ou cinco anos, ao chegar à conclusão de que a culpa de sua tristeza não era de sua filha. 

Os quatro casos ajudam a exemplificar a amplitude de reverberações tanto da depressão pós-parto quanto da maternidade e dos caminhos de cicatrização. Ao contrário do que ainda acreditam muitas pessoas, são inúmeras variáveis e, infelizmente, a sociedade joga uma culpa cruel nessas mães. É como diz Karla: “A culpa não é dos filhos e sim da construção social e da maternidade compulsória, que também faz parte da construção social.” E ter alguém dizendo isso em voz alta carrega um quê de revolução.

A narrativa de Eu deveria estar feliz segue a toada empática característica da obra de Claudia Priscilla, já expressa em trabalhos anteriores de sucesso, como Bixa Travesti. Confira nossa conversa com a cineasta:

A maternidade, enquanto construção social, pode ser um fardo. Você vê como proposta do filme apresentar a ideia simples, mas revolucionária, de uma maternidade não tão idealizada?

CP: Eu acho que um dos pontos importantes do filme é falar justamente desse lugar da idealização da maternidade e da importância da desconstrução desse papel social que aparece num certo momento, numa certa cultura. E, junto com isso, desconstruir a maternidade compulsória que é esse sentimento, essa ideia de que a mulher é completa quando a mulher é mãe. Então, acho que é extremamente necessário tocar nesse assunto, porque o tempo inteiro existe essa romantização da gravidez, do parto, e poucas pessoas trazem abertamente essa experiência na realidade. Tem uma coisa que a Bárbara fala no filme que eu gosto muito, ela diz que Sim, é uma coisa sagrada e complexa. Por isso, não é só boa.” Nem toda experiência que a gente coloca como importante é boa e as experiências radicais são muito complexas, podendo acontecer de acordo com cada corpo, de acordo com cada mulher. Eu acho que a maternidade é uma experiência única.

Como foi a seleção das mães?

CP: O maior desafio de um documentário são as personagens. A etapa de pesquisa é uma etapa fundamental. Então, a Sara Estopa Zoli ficou dois meses trabalhando nisso e eu acompanhei muito de perto esse processo, porque a gente estava atrás de mulheres com perfis diferentes. A gente tem um tema que as une, que é o ponto de contato, que é a depressão pós-parto, mas o que me encanta são os lugares e os momentos em que elas se diferenciam, onde a gente vê e percebe os escapes possíveis dentro de um mesmo tema.

Muito embora sejam mulheres bem distintas entre si, de cidades e contextos socioculturais diferentes, todas elas carregaram culpa por não estarem exultantes diante da nova prole. No meio de tudo, a culpa parece ser um fator-comum da depressão pós-parto. Com base nas pesquisas feitas para o filme, você diria que isso é verdade? 

CP: Tem aquela máxima que diz Nasce um filho, nasce uma culpa. E a culpa é essa ideia de ter podido fazer diferente, ainda que isso nem sempre seja possível. E a culpa também é esse lugar que engessa, que imobiliza e que perpassa a experiência da maternidade. A culpa cruelmente é uma parte integrante da maternidade. Nesse momento, nessa sociedade em que a gente vive, não estar feliz depois que se tem um filho é não poder expressar isso. Eu acho que a gente entra numa questão moral que é muito pesada, com um pensamento de que uma boa mãe é uma mãe que ama, é uma mãe que está feliz, é uma mãe que está exultante com o nascimento do filho. Já a mãe que não está… Bom, ela é uma má mãe. 

Então, a gente vai para essa questão moral, que gera um conflito interno e externo muito grande. Por isso eu acho esse um dos grandes motivos desse silenciamento, dessa tristeza, dessa depressão pós-parto, dessa experiência aqui. Às vezes, ela pode não ser bacana. Muitas vezes, ela não é. É um caminho tortuoso. A gente sempre fala muito que é necessário parir uma mãe e, com frequência, parir essa mãe demora. E tem vezes que isso nunca acontece. Isso pode simplesmente não acontecer. É isso, a gente é uma sociedade que não está preparada para esse tipo de questão no papel social da mulher mãe.

Esse é um filme que lida, entre outras coisas, com uma dor muito forte. Como abordar um sentimento difícil como esse sem gerar desconfiança e, ainda assim, respeitar a sua própria visão para aquilo? Ainda assim, chegar em lugares relevantes para quem estiver assistindo.

CP: O meu maior obstáculo foi, sem dúvida, o tema. Como acessar essas mulheres? Eu tinha certeza que eu estava acessando uns lugares de dor e talvez eu estivesse pedindo para elas as piores memórias que elas tinham, memórias que eram muito dolorosas. Então, para isso, a gente começou a criar uma relação de cumplicidade e de confiança. Antes de abrir a câmera, eu já tinha conversado com cada uma delas algumas vezes. A gente já tinha pensado juntas como a gente construiria o fio narrativo de cada uma dessas histórias. Foi esse esse processo de trazê-las para perto também do filme, da criação do filme. Eu acho que isso foi muito importante.

A sensibilidade vista na condução do filme vem de um lugar pessoal seu, a partir de uma própria experiência pós-parto (mesmo que não de tanta dor), ou simplesmente da experiência de ser mulher?

CP: Eu acho que eu tenho em comum com elas essa vivência da radicalidade da maternidade. Foi um paradigma na minha vida. Eu me encontro ali mesmo. Eu não tive depressão pós parto, mas, ainda assim, eu me vi naquelas mulheres, sabe? Tinha algum lugar que eu entendia muito bem do que elas estavam falando. Alguns lugares, sim; outros, não. Eu acho que a maternidade foi um ponto que me deixou muito próxima do tema. Claro, tem a questão da mulher, que antecede também a maternidade e é também esse lugar da maternidade compulsória. Desde criança, a gente ganha boneca e, quando vai ter filho, tem sempre essa expectativa. Eu passei por esse antes também e quis vivenciar essa experiência. Poderia ter sido diferente, mas ter vivido eu acho que me conecta muito com elas. Encontrei espelhos ali.

Registrar o dia a dia dessas mães, rodeadas de afeto, é um dos pontos altos do filme. Qual foi o pensamento por trás dessa opção de filmagem?

CP: Essa é a questão central do filme: acompanhar o dia a dia delas. Conversei com cada uma para entender o que, e como, a gente iria gravar. Entender o que é importante dizer sobre essas vidas. E um outro ponto que eu acho fundamental que é um dispositivo que eu chamo de encontros: propus para elas que fizessem encontros e conversas sobre o tema com pessoas que transmitissem segurança para elas. Eu acho que essa intimidade traz muita profundidade para esse tema. Eu acho que essas conversas chegam em lugares que talvez uma entrevista não chegasse. E eu acredito muito nesse lugar da intimidade, nesse lugar dos encontros, desse lugar que também some a diretora entrevistadora, sabe? É um lugar que eu estou ali, delegando, propondo uma conversa entre pessoas e registrando isso. É um espaço que eu gosto muito.

Todos os relatos são muito francos, eles soam como verdadeiros e sem amarras. Para muitas pessoas, vai ser a primeira vez que verão mães sendo assim tão sinceras. Você atribui isso ao clima da filmagem, o contexto do mundo atual, ou a necessidade incontornável de se falar sobre o assunto?

CP: Eu acho que faz parte desse tempo em que a gente está problematizando esses papéis sociais da mulher e a maternidade. É um lugar central para a gente entender muito do que é a nossa sociedade. A maternidade, a reprodução, o trabalho gratuito… Sinto que a gente começou a olhar o papel social da mulher de outros ângulos. A gente começou a deflagrar o uso desse corpo que o capitalismo faz e sobrevive. Falar sobre isso tudo faz parte desse momento.

O que fazer daqui adiante para que a depressão pós-parto esteja cada vez mais em pauta? 

CP: A depressão pós-parto é um assunto tabu. Acredito que, quanto mais falada ela for, mais pessoas serão alcançadas. Isso pode estar na literatura, que tem livros bacanas que falam disso; no cinema, com mulheres conversando com outras mulheres sobre a realidade das maternidades. Eu acho que isso é um lugar bonito de construção entre as mulheres. Eu acredito que um filme tem uma potência para se levantar discussões sobre temas complicados e, junto com o nosso documentário, teve um lançamento de um aplicativo para auxiliar mulheres em depressão pós-parto. Esse aplicativo foi desenvolvido pela equipe da Unifesp e pode ser baixado gratuitamente. A gente está fazendo sessões especiais do filme para ONGs e entidades ligadas ao tema, além de estar também tramitando um projeto de lei em Brasília para homologar o Dia Nacional de Combate à Depressão Pós-Parto. 

Então, assim a gente está, aliado ao filme, fazendo outras frentes para ir cavando esses espaços de conversas sobre o tema.  


*O filme está disponível no serviço de streaming Globoplay.

#46Tempo VividoSem editoria

Dois e dois são dois: Dom Filó e Helena Theodoro

por Revista Amarello

Dom Filó, é o carioca Asfilófio de Oliveira Filho, engenheiro civil, jornalista, produtor cultural e cine-documentarista. Nos anos 70, foi um dos mentores e protagonistas do Movimento Black Rio. É responsável pela Cultne.TV, primeiro canal da televisão brasileira dedicado à cultura negra e idealizador do Instituto Cultne, maior acervo virtual de audiovisual de cultura negra da América Latina, que reúne mais de 3.000 horas de conteúdo audiovisual autoral e inédito, ao longo de mais de 40 anos de registro e memória do Movimento Negro contemporâneo. 

Helena Theodoro nasceu no dia 12 de junho de 1943. É professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e integra a Coordenadoria de Experiências Religiosas Tradicionais Africanas, Afro-brasileiras, Racismo e Intolerâncias Religiosas (ERARIR), do Laboratório de Histórias das Experiências Religiosas. É Conselheira do FUNDO ELAS, o único fundo brasileiro de investimento social voltado exclusivamente para a promoção do protagonismo das mulheres. Responsável pela biografia de Martinho da Vila, Helena é uma referência na pesquisa sobre cultura negra, carnaval, samba e arte.

Helena — Quando olho para trás, o que acontece é que me percebo no hoje. Hoje eu sou uma senhorinha de 80 anos que teve a felicidade de nascer de um casal de militantes negros, Jurandir Theodoro e Lea de Araújo Theodoro, que me deram desde muito cedo a noção de ser uma neguinha de classe média com uma responsabilidade muito grande, com a consciência de que a maioria da comunidade negra no Brasil era negra e pobre, e que a gente tinha que fazer muita força pra mudar essa situação. Papai era economista, mamãe era intérprete de inglês, e eu deveria lutar o tempo inteiro para conquistar o conhecimento do mundo judaico-cristão sem perder as referências dos nossos saberes negros africanos, que tinham mais de dez mil anos e que eram a fonte do saber e do conhecimento do mundo. Eu procurei seguir os passos deles, me formei professora no Instituto de Educação, estudei 11 anos de piano, seis de balé, estudei francês, eles sempre me apoiando muito, porque eram fundadores do Renascença Clube, eram apoiadores do Teatro Experimental do Negro, inclusive, sócios apoiadores da orquestra do maestro Abigail Moura, que era uma orquestra afro-brasileira, com instrumentos africanos, música afro-brasileira, e me deram uma referência muito grande de toda uma militância daquela época, os anos 50, 60. De almoço, participar de feijoadas em casa de Sebastiana Arruda, de todo o pessoal que fundou o Renascença, que conheceu todo o movimento da família da minha mãe, que era família salgueirense — meu primo Dauro era compositor do Salgueiro e minha avó fazia roupa pras baianas do Salgueiro. Minha tia Alice, mãe do meu primo, tinha uma família muito grande, muito festeira. Foi numa das festas, inclusive, que aprendi a dançar com Dondom, que jogava no Andaraí, que virou até samba de Nei Lopes. E foi uma experiência de infância muito boa e muito consciente de todo o processo racista e autoritário desse país, com um pai que tinha uma formação muito boa, era de esquerda, além de estar ligado a todo um processo da Maçonaria e que fazia questão absoluta de me colocar sempre a par do que estava acontecendo no Brasil e no mundo. Minha mãe o acompanhava, escrevia poesias pra Ciência Popular e, professora de inglês, acompanhava o movimento dos negros norte-americanos. Então eu tive uma infância muito voltada para a música popular brasileira e para conhecer as coisas que você, Dom Filó, me propiciou na juventude — o soul, algumas coisas que eu já conhecia da minha infância, da relação da minha mãe, que cantava muito bem em inglês e que conhecia os Estados Unidos, os negros americanos, além das músicas negras de Angola. Depois eu me formei em direito, fiz pedagogia, mestrado em educação e doutorado no setor luso-brasileiro, comparando a filosofia de um terreiro nagô em relação ao ideal de pessoa com a escola idealista alemã. Concluindo, da visão mais ampla, muito mais abrangente da comunidade negra em relação às pessoas do que do mundo judaico-cristão. Eu escrevia também pra Rádio MEC, fazia programas voltados pra cultura negra, fui militante do movimento negro por muito tempo e comecei no programa Tarde Estudantil, depois criei uma série de programas valorizando o samba, Samba na palma da mão, programa Origens, com mestre Didi, de Salvador, radiofonizando contos africanos, falando dos orixás, falando da nossa tradição negra no Brasil, da nossa resistência, entrevistando as grandes lideranças do movimento negro, inclusive você, Dom Filó, com todo seu trabalho, Lélia González, Maria Beatriz. Sou professora universitária, dando uma disciplina sobre o princípio feminino nas diferentes tradições negras no Brasil, levando pra dentro da universidade a sabedoria negra, a filosofia negra e toda literatura da comunidade negra. Porque um país só cresce quando olha para quem o habita, e a educação no Brasil não é feita pra brasileiros pretos. 

Filó — Assim como você, Helena, eu também sou filho de um casal negro. Esse casal é de origem bem humilde, tradicionalmente família pobre. Sou da segunda geração, porque a primeira geração foi exatamente o pai, meu avô, que foi um escravo livre. Ele, como escravo livre, junto com um médico branco grego, formava uma profissão que na época era o médico legista. Então tinha o prático, que era o meu avô, e tinha esse médico, que era grego, e os dois formavam a medicina legal. Eram tão amigos, tão unidos que meu pai resolveu homenagear esse médico, e esse médico, por sua vez, também homenageando meu pai, cedeu que meus tios e meu pai tivessem nomes de origem grega. Então entre meus tios tem lá o Aristóteles e o Benjamin, e tem o Asfilófio, que foi meu pai, e agora eu herdei esse nome também. Originalmente de Minas Gerais, meu pai veio para o Rio de Janeiro trabalhando como mecânico da polícia, onde conheceu minha mãe, que trabalhava como empregada doméstica para uma família de Laranjeiras. Eu vivi toda a minha adolescência praticamente embaixo do Morro do Jacaré. Então a minha relação com a família preta era muito próximo da comunidade do Jacaré e, ao mesmo tempo, com o asfalto, como a gente chamava, porque eu morava no asfalto, morava na rua Paim Pamplona, onde hoje é a Favela do Rato. Eu lembro que era garoto, era complicado, comia muito angu, até hoje eu não consigo comer angu, era angu todo dia, era angu doce, angu salgado, tudo de angu. Ainda tinha que fazer angu pro cachorro. Quando chegou os meus 18 anos, se dá meu letramento racial. Aí eu viro um ativista, por conta do racismo. Já na Escola Técnica Nacional, prestes a entrar na universidade, eu começo a circular no estado do Rio de Janeiro e ver as coisas acontecendo. E quando você vê, você começa a ganhar conhecimento. Nessa época eu começo a frequentar o clube que você citou, Helena, o Renascença. Aquele pólo de negros ali faz com que haja uma inspiração a mais, ou seja, a gente pode juntos, a gente pode fazer algo, a gente pode crescer. E, na minha época, eu via assim. Roda de samba do Renascença bombando, comandada por Elizeth Cardoso, nascendo ali João Nogueira, Beth Carvalho, Martinho da Vila, Roberto Ribeiro, Agostinho Silva, grandes orquestras.

Helena — Que tempo bom, não é, Filó?

Filó — Tempo maravilhoso.

Helena — Eita tempo maravilhoso de Renascença, Deus do céu.

Filó — Baile do Azul e Branco, Baile de Primavera, os grandes bailes. Só que tinha uma juventude que, como toda juventude, todo jovem, quer buscar algo mais, sempre está propondo algo mais. E surge, dentro do Renascença, um grupo que desenvolve uma companhia de teatro. Olha só o pessoal envolvido nessa companhia, pilotado pelo saudoso Haroldo de Oliveira, que aos 14 anos já estava na tela com Rio 40 graus. Então Haroldo de Oliveira cria essa companhia e traz Zózimo Gugu, Cléa Simões, Jacyra Silva, Léa Garcia, cria Geraldo Rosas, cria Cidinho, Antônio Pompêo, José Araújo, Zezé Motta, e por aí vai. Esse grupo foi a minha grande inspiração. A partir daí o Renascença cresce, e nós vamos para o movimento soul. O movimento soul me envolve de tal maneira que eu começo a ter o letramento racial a partir de duas frentes, já como ativista, já pensando em movimento negro, tendo ali o professor na Cândido Mendes. Tinha um grupo que se reunia na Universidade Cândido Mendes e tinha um professor, eu esqueci o nome dele agora.

Helena — Joel Rufino, José Maria Nunes Pereira, o grande Zé Maria.

Filó — José Maria Nunes Pereira. Ele fez a cabeça, foi muito importante.

Helena — Eu fui do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Cândido Mendes. A vantagem da maioridade é, primeiro, a gente, como preto, conseguir chegar vivo e lúcido a uma idade mais pesada. É um negócio muito bom poder olhar pra trás e ver como a gente conseguiu continuar participando e dialogando com outras gerações e com jovens, filhos, netos, bisnetos. É uma glória muito grande, porque, pra Lei dos Sexagenários, do tempo da escravidão, era uma brincadeira que ninguém conseguia chegar aos 60 anos. O tempo de longevidade da comunidade preta era 35 anos. Aos 40 anos as pessoas já estavam praticamente acabadas. E a gente tem uma tradição muito grande de ter esperança, alegria de viver, não é, Filó?

Filó — Exatamente.

Helena — O que foi a grande lição que eu tive? Eu tive uma infância muito parecida com a sua, do ponto de vista do carro, do seu pai ser mecânico, porque o meu avô era motorista de praça na Praça Saenz Peña. Minha família é toda tijucana. Ele tinha um Ford Bigode preto por que ele tinha o maior carinho. Ele lustrava aquele carro como ninguém. Tinha sido cozinheiro de navio, tinha aprendido, ele chegou a ser cozinheiro de almirante, aprendeu a fazer comidas sofisticadíssimas. Tanto que, na minha infância, ele foi morar conosco depois que ficou viúvo e me ensinava todas as coisas de comida, de entrada, de pratos principais. Eu gosto de cozinhar até hoje. Cozinha pra mim tem cheiro, cara e gosto de avô. E ter avô é muito bom.

Filó — Eu não tive contato com meu avô. Eu tinha as matriarcas. Por exemplo, sabe quem é que convivia com a gente? Ela se foi agora, nossa querida Léa Garcia. 

Helena — Nem fala. A Léa Garcia faz parte da história da minha vida, ela era amiga da minha mãe. Eu conheci Léa Garcia quando tinha 12 anos. Senti  demais a perda dela, porque hoje estou usando o teatro como meio de mostrar a vivência da comunidade preta. Então eu fiz uma trilogia das matriarcas falando na primeira mãe de santo, que está com a Vilma Melo. A gente vai encenar uma nova temporada agora em setembro no Glauce Rocha. Tivemos uma temporada no ano passado, no Centro de Cultura Laura Alvim, tivemos uma outra temporada agora em agosto no Teatro Ipanema, e em setembro vamos ter uma outra temporada no Glauce Rocha, no centro da cidade. E nessa trilogia das matriarcas eu coloco a visão de mulher no princípio feminino bantu Jeje-Nagô, que é a visão da mulher sagrada que faz do seu corpo um verdadeiro altar, secreto, porque ela tem o segredo da vida, da maternidade e da política, porque ela resolve as coisas através do papo.

Filó — Esse papo, você está falando agora, eu viajei lá atrás. Antes de vir pra Pequena África, a tia Henriqueta morava perto do Cristo, aí tinha uma cachoeira, eu lembro disso até hoje, era garoto, e a gente colocava todo domingo toda a família que estava no Rio de Janeiro pra ir pra casa dela. Aquele mesão comprido cheio de comida. Todo mundo sentava, comia, aí tinha aquelas falas, e tinha uma vitrola. A vitrola era pra depois ouvir Nelson Gonçalves, aquelas coisas todas.

Helena — A mesma coisa na casa da minha tia Pequenina. Todo final de semana a gente ia na casa de uma tia. Tia Pequenina morava perto da gente, no Lins, mas a família da minha mãe era basicamente da Tijuca, e tia Alice morava na Rua Dona Maria, na casa do Dalmo da Salgueiro. Tinha um quintal grande, e a família toda se reunia nos aniversários, no Natal, na casa de tia Alice. E ainda tinha uma variação, o primo Sussinha, que morava na Ilha do Governador, casado com tia Conceição, que eram da União da Ilha, escola de samba. Porque eu sou salgueirense desde que me entendo por gente, porque a família toda era salgueirense. Através do meu primo Luiz Cláudio, que era compositor, que eu conheci o Franco e os compositores da União da Ilha do Governador, e era uma farra esse encontro. As comidas de tia Conceição à beira-mar e as festas na casa da tia Alice, onde todo mundo se reunia, comia, e com Santinha, que era a grande inspiradora de todas as mulheres, do Dondom, que jogava no Andaraí. E Dondom organizava as coisas com as crianças, ele fazia concurso de dança, ele era de um elegância!

Filó — Sabe qual era a roupa da época? Eu lembro que os coroas chegavam com S120, linho.

Helena — Olha, o meu tio Valdir andava num chique, porque eram todos negros urbanos, sindicalizados, lutando por reforma agrária, por direitos trabalhistas, era todo mundo muito consciente da política nacional. Eu tive uma vivência com negros muito militantes. E eles se reuniam nos almoços dançantes com Moacyr Silva no Clube Municipal.

Filó — Bons tempos. Eram grandes orquestras.

Helena — Ia a família toda, inclusive as crianças. A gente ia nos bailes dançantes.

Filó — Severino Araújo.

Helena — Severino Araújo. Eu tenho fotos do meu pai, da minha mãe, dos meus tios, de todo mundo dançando. Alegria sempre fez parte da minha história. Tanto que eu chego aos 80 anos com muita alegria de viver, porque tive uma lição na minha vida toda no sentido de saber que a vida é feita de coisas boas e ruins, mas que se a gente se ativer às coisas ruins, a gente perde o prumo.

Filó — Exatamente. Você quer ver uma coisa interessante? Na minha família, ninguém tinha curso superior, o grande lance era ser professora ou enfermeira-chefe do Hospital Gaffrée e Guinle, esse era o top. Eu fui o primeiro da família a ter curso superior. Disseram “você tem que ser” e eu assumi aquela responsabilidade. Eu vou fazer o que eles querem, eu tenho que fazer, mas o meu negócio era música, meu negócio era teatro. Mas eu fiz, me formei, etc. Só que chegou uma hora que eu falei: “Eu vou pra outra praia”. “Mas como é que você vai sair de A pra B?” Eu falei: “Eu vou fazer uma ponte”. Aí fui fazer cursos. Naquela época eram cursos de extensão que se chamava. Aí eu fiz Escola Superior de Propaganda e Marketing, na década de 90, FGV, pra justificar que não estava parado. Mas sempre caindo mais pra humanas. E não parei mais.

Helena — É isso. Eu também fiz universidade, mas nunca deixei de acompanhar essa vertente da alegria, da arte e da cultura, porque toda quinta-feira mamãe ia pras conferências da Academia Brasileira de Letras. Ela escrevia, adorava cantar, a família toda salgueirense ou na União da Ilha do Governador, a relação direta com a música, com o samba. Mamãe adorava cantar, uma voz linda.

Filó — Helena, não sei se aconteceu contigo… Teve uma fase que meu pai queria porque queria que eu tivesse o curso de datilografia.

Helena — Foi o primeiro curso que eu fiz.

Filó — Eu lembro que tinha lá uma tampa em cima daquela máquina Olivetti ou Remington, eu lembro até hoje, “asdfgh”, espaço, tinha que bater…

Helena — Não é só isso, não. Não é só datilografia, não. O papai e a mamãe diziam: “Pra você mandar, você tem que saber fazer, não tem que pensar que vai ser neguinha de classe média, dondoca. Não, você tem que saber quanto custa”. Eu aprendi a cozinhar, fizeram de tudo pra eu aprender a costurar, eu aprendi a costurar até fazendo aqueles modelos de papel, e cortando no papel, mas eu detesto costurar, uma coisa que eu não gosto é essa parte de roupa. Do resto tudo eu gostava muito. Cozinhar eu cozinho até hoje, gosto muito. Mas essa coisa de cozinhar, arrumar a casa, fazer uma boa faxina, fazer uma boa comida, deixar a casa toda nos trinks, aprender a receber as pessoas e achar sempre muito bom fazer boa de boca, sabe? Oferecer almoços, jantares, sempre comida fazendo parte de todo um processo de encontro, de pensamento, desenvolvimento. “Ah, queremos elogiar alguém? Vamos fazer um almoço, vamos fazer um jantar.” “Vamos reunir a família? Vamos sair pra fazer um almoço conjunto, vamos almoçar na rua, vamos fazer alguma coisa.” Sempre sabor e saber juntos.

Filó — Era muito coletivo.

Helena — Muito. Coisa tribal mesmo, vem da nossa ancestralidade. E havia um processo muito grande de interação, porque minha mãe era amiga de Léa, tanto que quando eu estava falando da trilogia que eu fiz, o Mãe santo foi com a Vilma Melo, que é um monólogo, conta um pouco da minha história, a perda do meu filho, e de todas as mulheres que sofrem uma série de discriminações, mesmo conseguindo galgar altos postos. O primeiro, Mãe Santo, fala sobre isso, que a gente diz que não é mãe de santo, é mãe do santo, somos mães, somos mulheres que têm relações com o mundo tendo muito prazer em sermos mulheres. Na segunda peça, Mãe baiana, dona Léa gravou com a gente o vídeo, e ela só aceitou fazer Mãe baiana, que é um diálogo entre avó e neta, porque era comigo. Porque ela estava com uma peça em São Paulo, e ela tinha que regravar Os arcanjos na Globo quando ela terminasse a temporada dela em São Paulo. Aí no final do ano passado ela leva um tombo e quebra a bacia e tem que ficar em cadeira de rodas. A gente tinha pensado nela. Nesse segundo semestre nós primeiro gravamos, e a gravação com ela foi maravilhosa, fizemos uma vídeo-peça com um tempo menor do Mãe baiana e gravamos com ela. Ela é maravilhosa. Tanto que nós oferecemos de graça e vamos continuar oferecendo nessa temporada lá no Glauce Rocha, antes do espetáculo da Vilma, gratuitamente para o público, o Mãe baiana com dona Léa Garcia e Luana Xavier, que é a neta da Chica Xavier. E a gente vai tratar nesse Mãe preta exatamente de um papel muito político, integração das diferentes gerações, da visão do mundo capitalista, que deixa as pessoas mais velhas colocadas de lado, enquanto na nossa tradição negra os velhos representam livros. Quando uma pessoa mais velha falece, é uma biblioteca que se queima, essa é a nossa visão. Então, nas nossas famílias, a gente ouve os mais velhos, a gente conversa com eles. Inclusive, dentro da universidade eu tenho feito muito isso, fazendo com que os jovens bolsistas entendam que não adianta entrar na universidade e entrar no matching do mundo judaico-cristão de olhar pro mais velho como sendo aquele que está ultrapassado, porque o jovem tem resposta pra tudo. É preciso entender que nem sempre a gente pode enfiar o pé na porta, que a ponderação, que a sabedoria tem o seu espaço e é muito importante. Nós somos apenas jovens há mais tempo.

Filó — Agora, Helena, mais próximo da ancestralidade.

Helena — Exatamente.

Filó — Sempre que eu estou com essa garotada, fico provocando eles, porque eu acho que é o caminho. Provocá-los significa que eles vão realmente partir pra continuar nosso legado. Agora, eu questiono eles com o seguinte: “Você aprende todo esse conhecimento, vai pra universidade, aprende isso tudo, vai, sai da universidade, vai pro mercado de trabalho e não devolve nada pra comunidade, de fato?”. Entendeu? Isso aqui é o nó. Então não adianta, saiu da comunidade, cresce, mas não devolve de fato.

Helena — Exatamente. Porque o sistema estabelece uma relação não comunitária. Eu sou porque nós somos. Fica parecendo aquela coisa da meritocracia, quando, na verdade, há interesse de você calcar determinado esporte ou estar em determinados lugares. Inclusive, a educação tem estado muito numa caminhada não de pensamento crítico, mas de você dizer o que é conveniente. Se as pessoas aprendessem a ser sinceras e a dizer exatamente o que pensam, o mundo seria muito melhor. Mas todo o processo educacional brasileiro ensina as pessoas a dizerem o que é interessante, conveniente para manter o seu status e pra ser bonzinho diante de quem interessa.

Filó — Vou provocar você. Você é sábia, essa resposta só você poderá dar com propriedade. Onde estaremos daqui a um século, nós, negros? Quer dizer, quem vem aí, pode ser que a gente volte aqui.

Helena — Tenho certeza que daqui a um século nós, negros, estaremos lutando ainda para que esse mundo nos deixe ser como somos. Por quê? Veja bem, um século são cem anos. Nós tivemos… Eu estou com 80 anos, faltam 20 pra completar um século, mas eu nasci em 1943, quando acabou a Segunda Guerra Mundial. Eu nunca imaginei que a gente pudesse ter uma guerra novamente, nos dias atuais, como a gente está tendo na Ucrânia, o ataque de Ucrânia, de Rússia, as torres gêmeas de Nova York, determinados aspectos de violência. Se você olhar a vida nos anos 50, ela era um pouco menos violenta do que agora. Então qual é a perspectiva que a gente tem do desenvolvimento do mundo? Se continuarmos cuidando apenas do desenvolvimento tecnológico, sem pensar no desenvolvimento das pessoas, se cada vez mais as pessoas forem tratadas apenas como dados num papel ou pontinhos num mapa, eu acho que a gente acaba chegando no Planeta dos Macacos, acaba destruindo, o que a gente já está fazendo com o meio ambiente. Então vê, a gente já está tendo calorão no inverno, uma friaca incrível no inverno no Brasil como a gente nunca sentiu.

Filó — Em 24 horas nós tivemos um calorão e, agora, 20°C.

Helena — Um calorão como a Europa nunca sentiu.

Filó — Uma loucura.

Helena — Incêndios, nevascas, chuvas torrenciais, todo um problema de desencontro, porque o homem não se olha como natureza e, na verdade, Filózinho, nós somos o ar que respiramos, nós somos a água que corre no nosso corpo, é o nosso sangue, nossos hormônios. Nós somos a terra, ela constitui nosso corpo e nossos órgãos, e nós somos o calor gerado pelos movimentos desses órgãos e pelo batimento cardíaco. E como é que a gente, no mundo judaico-cristão, tem a qualificação de homem e natureza? Homem é a natureza.

Filó — Você tocou em uma questão central que parece ainda hoje silenciada: o homem não se vê como natureza.

Helena — Não se vê. Se o ser humano não pensar na importância do afeto, da amizade, em como é bom olhar você, como é bom lembrar as coisas todas que a gente viveu na nossa juventude, como é interessante a gente poder trocar com os nossos jovens e entender… Meu Deus, que pena Mc Marcinho ter ido tão cedo, como é importante o hip-hop. Isso não impede de eu ser uma mulher beethoviana, ter estudado 11 anos de piano, entender de música clássica, gostar de ópera, sair sambando na avenida, fazer enredo pra escola de samba. Porque todos esses elementos mostram diferentes momentos na vida da humanidade: a música clássica é uma música antiga, que estava lá atrás como os ancestrais, mas toda sabedoria que a gente tem no mundo moderno é a partir de coisas que vêm de outros lugares. Então é importante a gente entender que se não nos voltarmos para a humanidade da humanidade, se a gente não colocar o sentimento como sendo básico e fundamental, se a gente aprender a não sorrir, a não olhar as coisas desarrumadas e entender que a gente passou por ali, é muito bom. Do que adianta estar sempre tudo muito bonitinho, arrumadinho, no lugar, se a gente não souber que nós não temos todas as respostas, que a gente precisa do outro pra crescer? 

Filó — Ouço você e olho para trás. Quando penso no que mais mudou no meu tempo vivido, fico em dúvida. Mas aí me vem a certeza do que não mudou. Vou te dizer uma coisa que não mudou desde a minha primeira chegada neste mundo: o afeto familiar, a questão da família. Pode acontecer o que acontecer, a família flutua na vida humana. Acho que a família vai nos moldando, a família nos molda. Isso que eu trago de diferencial nessa trajetória toda.

Helena — Eu assino embaixo. Porque meu marido, meu filho, meus netos, meus primos, meu pai, minha mãe e meus avós continuam fazendo parte da minha vida hoje, no sentido de que eu não posso estar aqui se não fosse meu pai e minha mãe. As coisas que eu faço hoje, se eu não me reportar ao meu avô, à minha preocupação com a educação… Pensando que hoje nós temos cotas, temos uma universidade um pouquinho mais aberta, mas ainda muito fechada, muito retrógrada, tem muito que caminhar, muito o que fazer. Mas respeitar o outro, independente de ser longevo que nem eu ou não, saber que eu aprendo com ele, que eu tenho necessidade dessa relação com outra pessoa, porque nenhum ser humano é uma ilha, a gente precisa realmente ter contato com outras pessoas, diversidade é riqueza. E eu fico entendendo como as pessoas ficam tão nervosas de verem outro diferente. Por que tanto preconceito com homem trans, mulher trans, com LGBTQIA+, por que isso? Cada um tem que ser feliz ao seu modo, e a gente deve respeitar o outro, que é diferente da gente, porque cada um de nós é completamente diferente. E a família nos ensina isso, como gostar do outro apesar das diferenças, apesar dos pesares. Só a família nos ensina isso.

Filó — Verdade. E há a família na qual nascemos e a família que construímos e formamos, com amigos e amores.

Helena — Concordo plenamente com você. Inclusive no sentido da nossa tradição, que é a família extensiva. Você é minha família, você é um irmão, você é um elemento que faz parte da minha vida, da minha história. É um prazer muito grande encontrar você. Pode não ser da família biológica, mas é da minha família afetiva, como diz Martinho. Nós temos um éthos comum, nós temos um axé comum, que é um sentido dessa harmonia entre as pessoas que impede a guerra, que impede a disputa, que faz com que a gente possa entender que uns são muito bons numas coisas, outros são muito bons em outras, mas todos são absolutamente necessários.

Era 13 de janeiro de 1854 em Santo Amaro. Nascia Hilária Batista de Almeida. Desde muito jovem, Hilária já se destacava por seus feitos. Com apenas 16 anos teve  papel fundamental na criação da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, no Recôncavo baiano. As irmandades eram organizações que agregavam indivíduos de diversas origens sociais, estabelecendo laços de solidariedade que se organizavam com o propósito de promover a devoção a um santo padroeiro e também para fins beneficentes para os membros que se comprometeram a participar das atividades da irmandade. Os benefícios oferecidos – como assistência em caso de doença, invalidez ou morte – variavam de acordo com os recursos disponíveis na irmandade, sendo proporcionais às posses financeiras de seus membros. Num período de total ausência de direitos e políticas voltadas para as populações negras, as irmandades foram essenciais na garantia da dignidade destes indivíduos. Essa irmandade, que é fundamental nas historicidades negras até os dias de hoje, faz parte do seu legado. Como filha de Oxum, foi iniciada nas tradições religiosas da nação Ketu na casa de Bambochê.


Aos  22 anos, mudou-se  para o Rio de Janeiro, onde construiu uma nova família ao casar-se com João Baptista da Silva, um funcionário público. Segundo relatos históricos, tiveram quatorze filhos. Ela continuou a seguir as práticas e os ensinamentos religiosos na casa de João Alabá,  onde foi Mãe Pequena. Hilária passa a ser conhecida por outro nome. E, assim, firma-se o legado cultural e religioso de Tia Ciata.


Ciata finca raízes na região que hoje conhecemos como centro do Rio de Janeiro. Morando primeiramente na Pedra do Sal, passando pelo Beco João Inácio, posteriormente residindo no número 304 da Rua da Alfândega, com passagens pelas ruas General Pedra e Rua dos Cajueiros. Entre 1899 e 1924, residiu na Rua Visconde de Itaúna. O centro da cidade do Rio de Janeiro tem muito de Ciata. Durante esse tempo, ela desempenhou um papel crucial na solidificação do samba carioca e tornou-se uma figura de destaque nas comunidades negras da Pequena África e do Rio de Janeiro como um todo.

Ciata desempenhou um papel crucial como uma das tias baianas pioneiras na introdução da tradição das baianas quituteiras no Rio de Janeiro. Essas mulheres, as tias baianas, foram responsáveis ​​por estabelecer esta tradição e por uma estética própria e africanizada, com suas roupas coloridas, colares, contas e pulseiras enquanto mantinham uma base sólida religiosa e política que permeava suas atividades. Foi nos quintais de baianas como Tia Ciata que nasceu o samba, e nesses mesmos espaços eclodiram movimentações culturais e simbólicas que forjaram identidades negras na diáspora brasileira. Considerado o primeiro samba, “Pelo telefone” foi composto numa roda de samba no  quintal-terreiro de candomblé de Tia Ciata.

O século XX teve seu início marcado por uma grave crise habitacional. A população aumentou, e a quantidade de habitações não. Nessa equação, os mais fragilizados faziam parte da população de baixa renda. Isso resultou no aumento constante da superlotação e na interferência das casas alugadas. A ausência de habitações populares a preços acessíveis forçou uma grande parcela de trabalhadores com baixo poder aquisitivo a viver em condições insalubres e precárias, amontoados em casas e cortiços no antigo centro da cidade. Essas eram habitações coletivas que tinham deixado uma marca profunda na paisagem urbana da cidade ao longo do século XIX, sendo alvos da chamada “ação modernizadora” da República. A localização central desses cortiços despertou grande interesse entre os setores envolvidos na especulação imobiliária, que viram ali uma oportunidade de negócios lucrativos. Além disso, as teorias higienistas viam nos cortiços a grande causa para epidemias de doenças respiratórias, contagiosas e toda sorte de má saúde que assolava a cidade. Era um caso evidente de racismo e preconceito de classe mascarado de política pública de saúde e urbanização.

Segundo essa perspectiva, dos cortiços emanavam não apenas doenças e epidemias, mas também indivíduos desocupados, dependentes químicos, praticantes de jogos de azar, delinquentes, pessoas embriagadas e “marginais”. Consequentemente, esses locais eram vistos como territórios perigosos, habitados por indivíduos com potencial para representar ameaças. Assim, era necessário traçar estratégias para conter essa população e os efeitos por ela causados na cidade. Começa o processo de erradicação das habitações populares por meio de sua remoção física e deslocamento de seus moradores da área central da cidade. O primeiro alvo da ação de demolição da modernização republicana foi o famoso cortiço conhecido como “Cabeça de Porco”. Situado na Rua Barão de São Félix, era o maior cortiço da cidade. Os cortiços e seus moradores deveriam abrir espaço para a construção de amplas avenidas destinadas ao trânsito comercial e para a edificação de novos edifícios de escritórios, armazéns, cafés, teatros e cinemas. Porém, não houve preocupação com os novos locais de moradia desta população e nem foram propostas políticas de longo prazo para resolver as questões de habitação no Rio de Janeiro.

Assim, famílias inteiras que precisavam manter-se próximas da região central para trabalhar, começaram a subir os morros. Como os moradores tinham as mesmas origens dos que habitavam os antigos cortiços – é importante notar a carga de preconceito embutida em toda essa “História” – os estigmas subiram o morro também. Então, para as elites, era imperativo exigir a luta que havia começado contra os antigos cortiços, uma vez que o “adversário” – ou seja, as “classes perigosas” – permanecia o mesmo, apenas se manifestando em maneira e localidade diferentes. Começa assim uma série de movimentos, às vezes incisivos e diretos e por vezes ambíguos, para “resolver o problema das favelas”. Um que merece destaque foi promovido pelo prefeito à época: Pedro Ernesto. Ele foi um dos pioneiros em adotar uma política de aproximação com as favelas e seus moradores, registrando as dificuldades enfrentadas e, ao mesmo tempo, buscando capitalizar politicamente a partir dessas mesmas adversidades. Um exemplo disso: Pedro Ernesto tinha pelo menos 100 afilhados em várias favelas da cidade e se colocava como uma espécie de intermediário entre os interesses dos moradores de favelas e o governo. Esse mesmo Pedro Ernesto foi figura emblemática e importante para pensarmos a história das baianas no Brasil.

A partir de 1929, o poder público começa a organizar o carnaval popular, que acontecia em periferias da cidade e também era visto como manifestação cultural das ditas “classes perigosas”. Cortiço, favela, carnaval e baiana têm muito em comum. Nesse processo são definidas as rotas dos desfiles, o apoio financeiro às associações, bem como a criação de estatutos e regulamentos para a distribuição desses fundos, e é nesse contexto que se firmam no âmbito carnavalesco figuras como a baiana e o malandro. Em 1933, o prefeito Pedro Ernesto criou a ala das baianas nas escolas de samba, através de decreto de lei. Assim, ela passa a ser oficialmente incorporada aos desfiles das escolas de samba. Desde então, o grupo de baianas passa a ser elemento significativo que dialoga entre a tradição e as inovações dos carnavais das escolas de samba. Essa ala carrega não somente uma tradição carnavalesca. Ela simboliza também um pedaço da história do Brasil e apresenta um repertório estético específico.

O uso do termo “baiana” para se referir às mulheres negras trabalhadoras da Bahia começou a surgir no final do século XIX e foi associado mais ao estilo de vestimenta de origem africana e às tradições culturais que essas mulheres mantinham, como suas crenças em religiões afro-brasileiras e habilidades culinárias, do que à sua procedência geográfica. As baianas extrapolaram as fronteiras de cidades, estados e países. A representação da baiana é formada por elementos visuais que se relacionam com a variabilidade  de contextos sociais e históricos.

O traje tradicional da baiana, tal como conhecemos atualmente, é composto por diversos acessórios e elementos visuais diversos, incluindo uma saia longa e redonda, que por vezes esconde uma anágua ou armação. Saia essa enriquecida com rendas, turbante ou torço na cabeça, pano da costa, batas rendadas e balangandãs. Essa vestimenta é uma evocação às roupas usadas pelas “tias baianas”, mulheres que migraram da Bahia para o Rio de Janeiro com suas famílias, muitas das quais eram vendedoras de acarajé e iguarias, e que estabeleceram comunidades com sua própria expressão cultural nesse novo ambiente e fizeram brotar, em seus quintais, ervas, incidência política e muito samba.

Assim como o primeiro samba, “Pelo Telefone”, o Império Serrano nasce na casa de uma mulher negra, liderança local, Dona Eulália do Nascimento. Fundou-se em 23 de março de 1947, durante uma reunião na Rua Balaiada, número 142, no Morro da Serrinha.

A agremiação surge de uma dissidência da escola de samba Prazer da Serrinha. Entre os seus fundadores há nomes essenciais no cenário do samba carioca como Sebastião Molequinho, Elói Antero Dias, Mano Décio da Viola, Silas de Oliveira, Aniceto Menezes, Antônio dos Santos (Mestre Fuleiro) e Eulália do Nascimento. O nome “Império Serrano” foi sugerido por Sebastião Molequinho e faz alusão ao Morro da Serrinha. As cores da escola, verde e branco, foram escolhidas por Antenor Rodrigues de Oliveira. O símbolo do Império é a Coroa Imperial Brasileira. São Jorge é reverenciado como o santo padroeiro da agremiação.

E é essa miscelânea que nos leva à Avenida Edgard Romero, 114, em Madureira, no Rio de Janeiro. Lá, Geni Lopes, presidente da ala das baianas, recebe-nos com sorriso e braços abertos. Chegar ao Reizinho de Madureira – forma carinhosa de chamar o Império Serrano – e ser recebida pelas baianas é como mergulhar num mar verde e branco. Cheio de histórias, movimentos, cheiros e sorrisos. As baianas são o coração de qualquer Escola de Samba, e no Império Serrano não é diferente. São senhoras, idosas, mães, avós, tias que carregam a ancestralidade e o axé do samba. A ala teve muitas personagens emblemáticas como Jovelina Pérola Negra, Tia Maria do Jongo e Dona Ivone Lara. Segundo Marta D’Oyá, baiana do Império:

“A baiana é a mãe do samba e o Império sempre foi uma escola democrática, cantando a democracia. Nós tivemos mulheres importantíssimas na ala das baianas. Se estamos aqui é porque essas mulheres botaram o pé. Elas foram pastoras da escola, foram baianas. O samba só era aprovado quando passava pelas pastoras. Pastoras e baianas sempre andaram lado a lado. A religiosidade que existe aqui é muito forte. Isso tem que ser falado.

”Assim, agradecemos as Yabás Dalva Reis (59 anos), Sônia Conceição (68 anos), Lucia Iara (65 anos), Márcia Helena (60 anos), Marta D’Oyá (56 anos),  Lucimar da Silva (61 anos), Maria de Lourdes (67 anos), Maria Elisabeth (75 anos), Maria Lúcia (74 anos), Sandra Maria (69 anos), Regina Antunes (79 anos), Vera Lúcia dos Reis (68 anos), Vera Lúcia Cunha (61 anos), Geni Lopes (57 anos) e Vera Lúcia do Nascimento (76 anos). São essas algumas das guardiãs do samba imperiano e, mais do que isso, guardiãs da história, do tempo e da memória daquelas que plantaram a semente da cultura brasileira.