No documentário Narciso em férias, Caetano Veloso faz um comovente depoimento sobre o período em que esteve preso, durante a ditadura militar brasileira, no final dos anos 60. Em um relato extremamente sincero e emocionante, o cantor se refere tanto ao gozo quanto às lágrimas como expressões muito íntimas e sagradas: fluidos da alma — como se o ápice da dor e do prazer pudesse se concretizar e ganhar expressão no mundo externo, transformando em matéria algo que pertence ao íntimo.
Durante os primeiros dias de encarceramento, Caetano encontra-se numa solitária, incapaz de dormir, chorar e muito menos se masturbar. A carne fibrosa que lhe ofereciam como alimento era jogada ao lado da latrina e não lhe apetecia, levando-o a comer cada vez menos. “Eu não conseguia sequer me tocar, não estava erotizado, apenas dormia e duvidava da vida que eu tinha levado até então. Era como se nada daquilo que acontecesse fora da prisão pudesse sequer um dia ter existido. Passei a duvidar do que era ou não real.”
O cantor estava em num tamanho estado de desvitalização e apatia que só conseguia dormir. Foi quando o colocaram numa cela com outros presos que ele fez amizade com um guarda também baiano, começou a ver outras pessoas, ouvir música, dormir numa cama com lençóis e travesseiro e teve retomadas as visitas íntimas de sua esposa, saindo daquela condição mortífera. “Fui voltando a me erotizar.”
Em uma dessas visitas, Dedé (a agora ex-esposa) lhe traz um exemplar da revista Manchete, e ele vê a imagem do planeta Terra pela primeira vez. A volta do erotismo é acompanhada pelo prazer de reconstruir conexões com o outro, as palavras e o diálogo. A partir dos laços que foram surgindo, o cantor foi se enganchando novamente na vida, e toda potência criativa, antes adormecida, desperta novamente. O pulso ainda pulsa, como cantaram os Titãs.
Anos depois, o compositor escreve a letra da canção Terra, que possui uma narrativa bastante sensual, descrevendo nosso planeta como o corpo de uma mulher: quando eu me encontrava preso / na cela de uma cadeia / foi que eu vi pela primeira vez / as tais fotografias / em que apareces inteira / porém lá não estavas nua / e sim coberta de nuvens.
Para estarmos pulsantes e vivos precisamos do outro. O isolamento pode ser mortal. Valter Hugo Mãe, no livro A desumanização, escreve: “O inferno não são os outros (…). Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer”.
Bella Baxter, a personagem de Ema Stone no filme Pobres criaturas, vai despertando para o prazer de estar viva, de pensar e ser livre a partir do movimento de se apropriar de seu erotismo, de seu corpo, de se excitar. Seu desejo de conhecer o mundo e sair de uma situação de cobaia aprisionante nasce a partir dessa sexualidade que vai dominando seu ser. Curioso esse movimento do desejo erótico como algo que se apropria, se apossa de um corpo, para então mostrar-lhe seus limites e sua liberdade. Não é por acaso que o filme começa branco e preto e termina colorido: enquanto Bella era prisioneira, apenas uma experiência científica, seu mundo era branco e preto; conforme vai descobrindo o mundo, percebendo seu erotismo e fruindo dessa experiência, seu universo antes desvitalizado ganha cores, ritmo e sabores. Até a postura da personagem, antes encurvada, vai mudando ao longo do filme, para a de uma mulher de peito aberto, porte altivo, que se encanta com a beleza de um fado, com o ritmo de uma canção. Erotizar é colorir.
Na mitologia grega, Eros (que significa desejar com muito amor) era o Deus do amor e do erotismo, um dos filhos de Afrodite com Ares. Ele é normalmente retratado em pinturas acompanhado da mãe. Na mitologia romana, ele passou a ser chamado de Cupido. Em ambos os contextos, sua principal função é unir as pessoas por meio de sua flecha mágica, e flecha simboliza a ligação, aquilo que fura, que se insere no corpo de alguém. Imagem mais que apropriada, afinal, é o erotismo o que nos empurra em direção ao outro.
Já a bela jovem Psiquê era mortal e, ainda que fosse a mais bonita das irmãs, a mais temida entre elas — exatamente por sua beleza —, por isso não conseguia se casar, sendo condenada à solidão. Consultando os oráculos, os pais da jovem entristeceram-se pelo destino da filha, e foram aconselhados a vestirem-na com trajes de núpcias e colocarem-na no alto de um rochedo para ser desposada por um terrível monstro. Na verdade, tudo fazia parte de um plano da vingativa Afrodite, que sofria de inveja da beleza da moça. Eros, que antes obedeceria a mãe matando Psiquê, ao encontrá-la fica fascinado e casa-se com ela. Num percurso repleto de desafios e desencontros, os dois terminam juntos, o que resulta num mito que representa o amor ideal: Eros representando do amor, e Psiquê, a alma.
Eros e Tânatos são conceitos fundamentais na teoria psicanalítica de Sigmund Freud. Eros representa a energia relacionada ao instinto de vida, amor e criatividade, a força que nos impulsiona a buscar conexões emocionais e construir. Tânatos, por outro lado, é a energia ligada ao instinto de morte e destrutividade, estando ligado à agressão, à impulsividade e, de certa forma, à busca pelo fim da tensão e do sofrimento. Freud acreditava que essas duas forças opostas operam dentro de cada indivíduo, influenciando seu comportamento e suas escolhas, e as nomeou pulsão de vida e pulsão de morte.
Para o psicanalista inglês D. W. Winnicott, um bebê não existe sem a mãe, isto é, quando nascemos, somos investidos afetivamente e, aos poucos, conforme vamos nos desenvolvendo, vamos nos sentindo um. Antes disso, porém, fomos dois, foi preciso que alguém nos banhasse de libido e afeto. Quando nascemos, nosso corpo é erotizado, despertado e colorido pelo amor de quem nos recebe no mundo. É nesse sentido que Freud diz que o bebê é erotizado pela mãe, pois recebe dela um contorno afetivo. A mãe vitaliza o bebê, desperta-o para a vida, celebra seu corpo, seus pedaços, lhe dá contorno afetivo. Como diz Freud, um bebê sem um cuidador não passa de um pedaço de carne. Talvez por isso Eros seja sempre retratado ao lado de sua mãe, a Deusa do amor, da beleza, do desejo e da fertilidade.
José Bertoluci, no livro O que é meu, afirma: “Nascemos e morremos sós, é certo; porém chegamos ao mundo cercados de cuidados, de gestos, palavras e toques que nos marcam para o resto da vida”.
O que nos desperta para o viver é essa libido despejada em nós, como uma chuva afetiva que nos marca e dá contorno; ela é nosso combustível da chama vital, é a centelha que ilumina nosso trajeto vida afora. Sem erotismo, perdemos a vitalidade, o pulsar, a excitação, o encantamento. Eros é aquilo que movimenta as famosas “borboletas no estomago”, e sem a benção desse Deus imortal, nossa energia vital fica encarcerada, ficamos intoxicados, estamos condenados à escuridão — somos pedaços de carne perto da latrina.
Os ruídos começaram quando usuários da nova ferramenta de geração de imagens da Gemini, inteligência artificial da Google, notaram algumas coisas surpreendentes. Ao pedir para o programa gerar imagens históricas, eles receberam resultados que são impossíveis ou improváveis nos contextos solicitados. Papas católicos e cavaleiros medievais representados como mulheres asiáticas, hordas vikings compostas por homens negros. As imagens que mais causaram controvérsias vieram da experiencia de um usuário que pediu que o gerador criasse imagens de “soldados alemães em 1943”. O que Gemini gerou foi um homem negro, uma mulher asiática e uma mulher indígena vestindo o uniforme do exército nazista. Apenas uma imagem gerada foi de um homem branco.
Os ruídos viraram um dilúvio e logo vieram as acusações de que a Google havia passado dos limites, criando uma ferramenta que ignora a autenticidade histórica em prol de uma agenda política e social woke. O termo vem do vernáculo afro-americano e tem suas origens no ativismo racial nos Estados Unidos, que adotou a frase “stay woke” — fique acordado, com os olhos bem abertos ao que está acontecendo — para gerar consciência sobre justiça racial e social. A partir de 2014, após o movimento Black Lives Matter, o termo foi adotado mais amplamente, se tornando hoje bordão de causas socialmente liberais, como o feminismo, o ativismo LGBTQ+, a política de gênero e outras.
O bafafá com a Gemini revela uma verdade desconfortável. No começo da onda da inteligência artificial de código aberto, ou open source AI, com a explosão do ChatGPT e do dall-e, havia ainda uma crença de que o código, uma série numérica de zeros e uns, seria uma ferramenta objetiva. Porém, o que fica cada vez mais evidente é que ele contém as falhas dos humanos que os programam. Criamos um viés nos sistemas de IA que produzem resultados tendenciosos, que refletem e perpetuam os preconceitos humanos, incluindo a desigualdade social histórica e atual. O viés pode ser encontrado nos dados de treinamento inicial, no algoritmo ou nas previsões que o algoritmo produz. Em resumo, não escapamos dos nossos preconceitos e injustiças, apenas ensinamos a IA a repeti-los.
As imagens geradas pela Gemini foram fruto de uma tentativa, quiçá bem-intencionada, de corrigir problemas que haviam observado em suas rivais, que sofreram críticas por falta de inclusão e diversidade, além de racismo. Quando, por exemplo, usuários da OpenAI escreviam um prompt — a descrição da imagem que gostariam de ver — solicitando imagens de profissionais como médicos ou advogados, os resultados eram quase sempre de homens brancos. Em contrapartida, ao colocar o prompt “pouco profissional”, muitas vezes as imagens geradas eram de mulheres ou homens negros com penteados estilo “afro”. Mas, ao tentar evitar essas mesmas falhas, a Gemini, programada para a inclusão e diversidade, criou seus próprios problemas.
Um desses problemas é que, ao reescrever a história através de imagens fantasiosas, acabamos apagando verdades que deveríamos estar confrontando. Ou seja, ao artificialmente introduzir diversidade onde ela não existia, negamos a sua falta e cometemos uma injustiça contra todos os grupos que sofreram (e muitos ainda sofrem) exclusão por cor de pele, gênero, preferência sexual, crença religiosa, e assim por diante. Apagamos deles não apenas uma história de dor e de vitimização, mas também de resiliência, sobrevivência, beleza e superação.
Outro problema é que o debate sobre o preconceito artificial fica tomado por um conflito ideológico — você é ou não é woke? —, e nisso acabamos ofuscando as consequências reais de uma inteligência artificial preconceituosa. A IA, hoje, se encontra em muitos âmbitos de nossas vidas, mas esse é apenas um começo. Logo ela estará presente em praticamente todos os cantos. Existe, portanto, urgência em encontrar uma solução para a inclusão e diversidade nesses sistemas. Digo não a imagens de mulheres como Papa até termos uma mulher como Papa. Não devemos reescrever a história como ela nunca foi. Mas isso não quer dizer que podemos deixar de corrigir preconceitos enraizados nas ferramentas de IA. Não faltam exemplos desse preconceito, desde ferramentas diagnósticas que não conseguem identificar lesões em pele negra porque foram treinadas exclusivamente com imagens de pele branca ou jovens presos equivocadamente porque as tecnologias de reconhecimento facial, treinadas para reconhecer expressões e traços em rostos brancos, têm dificuldades em distinguir traços negros.
Para encontrarmos uma solução viável, teremos que, primeiramente, admitir, e não negar, que as máquinas que programamos carregam nossas falências e nossos preconceitos. E teremos que usar uma inteligência real e humana para reconhecer que ainda temos um longo caminho de tentativa e erro antes de poder esperar que a IA corrija todas as falhas da humanidade.
Alguns momentos privilegiados na arquitetura podem ser considerados eróticos. A fresta, que corrompe a continuidade do plano e anuncia uma intimidade que explode de dentro para fora, te convidando a penetrá-la com o olhar. Ou o grande salão vazio, sobre o qual se imagina todo tipo de atividade lúdica e libidinosa, tal qual o corpo deitado aguardando que o corpo ereto o fecunde, ação fálica por excelência. Ou então a mesa de pedra da cozinha, superfície lustrada desenhada pelos veios da terra, sobre a qual se estica a massa e debruçam-se os corpos quando vitimados pelo desejo que surge incontrolável no meio do tempo da cocção. A verdade é que todo e qualquer objeto e espaço podem abrigar o erótico.
Se duvidam, vamos fazer a prova pelo inverso. Vamos imaginar como seria uma arquitetura não erótica: uma caixa de concreto de piso a teto, com uma grande janela de vidro. Não há um sofá de couro, um tapete para aquecer os pés, um jogo de luzes para criar claros e escuros ou um quadro nas paredes para aludir à fantasia. Esse espaço anticorpóreo, indigesto, áspero, frio e tedioso não seria o compartimento ideal para o sadomasoquismo? Não seria o desconforto, agora televisionado através da janela que vira pano de vidro, um espetáculo ao acesso dos voyeurs que assistem o corpo agonizante? Não seria a janela, antes fonte de luz e vida, uma película frágil de separação que eviscera o corpo privado e o transforma em objeto de divertimento?
Daí conclui-se que o erótico, na arquitetura, não permite correlação direta entre forma e conteúdo. Um quarto recoberto de pelúcia rosa com buracos e dildos distribuídos pela parede não é, necessariamente, mais erótico que uma monótona sala de espera de dentista. Da mesma maneira, o excesso, tão associado àquilo que é voluptuoso e sexual, não caracteriza imediatamente uma arquitetura LGBTQIAP+, e muito menos o rigor plástico define um espaço másculo e racional. Essas correlações não são mais que processos históricos de fixação de valores sobre determinadas formas espaciais. O quarto de decoração estoica —cama, armário, poltrona — não é masculinista porque prescinde do excesso, mas porque a cultura definiu que o racional pertence ao âmbito do masculino e o irracional (excesso, ornamento, acumulação, emoção etc.), do feminino. E é nessa binariedade de qualidades do espaço que a arquitetura participa como dispositivo sexual. A tipificação do espaço é resultado de um processo histórico dado através da arquitetura.
Assim, poderíamos dizer que todo espaço arquitetônico é erótico. Recuperando a qualidade tátil da arquitetura da qual fala Walter Benjamin, é no ato desatento de circular pelo ambiente construído que nosso corpo o absorve. A arquitetura traz consigo sempre a dimensão corpórea do espaço. Seja o corpo abstrato, idealização clássica que constrói o lugar a partir do corpo perfeito, ou o corpo exterioridade, pura zona de contato, sistema de pele-sobre-pele, atrito por vezes violento, de existência do ser no mundo. Mas, em sendo sempre erótico, poderíamos realmente dizer que o arquiteto ou a arquiteta produz a dimensão erótica do espaço, ou esta estaria presente nas camadas profundas de seu ofício, inacessíveis a ele ou a ela mesmos?
Talvez seja na dimensão cotidiana do fazer arquitetônico, labor repetitivo, corriqueiro, estafante, que surja o mistério, a pulsão libidinal da vida. Como qualquer fazer humano, a arquitetura, nos maus dias, me é ingrata, relação tóxica. Mas, nos bons dias, eu e a arquitetura temos uma imensa tarde de lascívia, sob um eterno sol das cinco. O erótico no projetar diz respeito a dois momentos-chave que antecedem a edificação em si: a encomenda, interlocução inicial da arquitetura com o mundo, condição prévia de sua feitura, e, ato contínuo, a necessária reconexão da mente com a mão, ignição do ato criativo. A figura do gênio intempestivo do filme Vontade indômita (1949), a arrogância antissocial do designer em O homem ao lado (2009) ou mesmo o infinito vigor criativo de Ariadne no filme A origem (2010) não passam de ficções que não encontram reverberação no real. Todo gênio, por maior que seja, sempre trabalha com um universo de pessoas, equipes, indústrias, cronogramas, expectativas, etc. É impossível produzir arquitetura sozinho.
Projetar é sempre projetar para e com alguém. Ação coletiva, diplomática, entre cliente, empreiteira, loja de materiais, condomínio, cidade, etc. As determinantes materiais são o vento contra o qual ou em favor do qual se projeta. Mas nunca são suficientes para explicar a arquitetura. A criação luta a contrapelo para reimaginar o drama humano. E, em verdade, quanto mais essas disposições econômicas, sociais, culturais e políticas se transformam em fundo, e não figura, mais a intuição toma conta do processo criativo. As maiores obras são imaginadas no desconhecido, um desconhecido circunstanciado. É um caminhar no escuro, mas um escuro que é este escuro, e não aquele. Emudecer a materialidade do mundo e transformá-la na carne mesma do edifício que nos lançamos a projetar. Transformar o ato racional de análise no ato criativo de síntese, passando, ou melhor, gestando essa difícil contradição no corpo do arquiteto criador. Mais do que em qualquer outra arte, a arquitetura gera essa tensão fundante a partir da qual criador e criatura se mesclam. Ela não simplesmente reproduz suas condições de produção, mas produz ela mesma as possibilidades de uma nova existência. E, nesse processo irracional de racionalidade, nos reconectamos com o erótico da vida. Como algo que transborda o desenho e se projeta sobre nós, a arquitetura transmuta-se em desejo, imaginação e, encarnado, experiência do prazer. O que fazemos interpela o interlocutor a participar de seu próprio processo de ocupação e desfrute, completude, deciframento, constituindo uma relação dialógica de afeto, um diálogo amoroso.
Quanto à conexão entre pensamento e ação, mente e mão, cabe evocar a questão fundante da reflexividade da “mão que toca a outra mão” de que fala Merleau-Ponty. Nessa cena, torna-se quase impossível dissociar a mão que toca da mão que é tocada. Não existe mais o quiasma entre sujeito e objeto, sujeito e mundo. No caso da concepção cerebral que, via memória muscular da mão, desenha-se sobre o papel, estamos falando também de reflexividade, já que o grafite na folha só existe como fato material a partir da ação do corpo integral. O ato criativo é sempre um ato de retorno ao corpo que se dobra sobre si mesmo. O delírio é dissociação, mas o deleite é estar em completude, corpo-mundo. O desenho é então expressão desse regozijo, e não mera técnica de representação. Exprimir significa tornar pulsante essa conexão que temos desde crianças, mas que a vida nervosa na cidade capitalista faz divorciar-se do ser. Nesses raros momentos de conexão cérebro-muscular é que me deito, em riste, sol manso na pele, e gosto de ser arquiteto.
Por que as pessoas se importam tanto com a vida dos outros? Não que elas estejam realmente interessadas em você, mas nunca deixam passar algo que lhes incomoda. Uma mulher de meia-idade dormindo de pijama no carro com a boca suja de iogurte. Isso é algo tão perturbador assim? Elas poderiam simplesmente seguir seus caminhos e cuidar das próprias vidas ao invés de fingir que se importam. E eu, sinceramente, não tenho escolha; preciso me justificar, inventar qualquer história, ou as coisas podem ficar bem complicadas.
Todos os dias crio relatos variados. Eu já disse pra um policial que bebi martínis demais depois de um vesperal com velhas amigas da faculdade, por isso acabei pegando no sono dentro do carro. Pra um homem que se dizia padre, expliquei que briguei com meu marido e que preferia morrer a ter que voltar pra casa. Já contei pra uma advogada bem-disposta a me ajudar que, na verdade, eu gostava de me esconder no banco do carro pra ter um pouco de privacidade, já que a minha filha tinha muitas crianças em casa e minha novela era sagrada. No geral, todos acreditavam em qualquer coisa que eu dizia.
E o iogurte? A gosma branca escorrendo em meu rosto era um ponto bem difícil de encaixar nas minhas explicações estapafúrdias, mas ninguém estava realmente interessado em boas histórias. No geral, todos apontavam para a própria boca, usando o indicador no canto dos lábios bem arreganhados em o — um sinal para que eu pudesse perceber a sujeira no meu rosto. Eu fingia espanto e me limpava rapidamente usando o antebraço. Era suficiente. Todos, absolutamente todos, partiam depressa depois disso. Eu colocava as mãos no volante e fingia que ia ligar o carro.
Se não estavam realmente interessados, por que eles simplesmente não passavam pelo meu velho Celta com seus narizes empinados e seus tênis esportivos e seguiam, saudáveis e indiferentes, com suas vidas? Seria mais fácil pra mim. Mas era sempre isso, alguém sempre queria ajudar a pobre senhora sozinha e em apuros. Depois que partiam e eu podia ter certeza de que não havia mais ninguém por perto, começava o meu dia. Eu saía do carro, me espreguiçava bem e, antes de fazer qualquer coisa, descia para um mergulho no mar.
Pular sete ondas era sagrado, além de me benzer com um ramo — o dia de ramos era sagrado pra mamãe. Sem isso eu não era capaz de prosseguir. Morar em um pequeno carro estacionado em uma avenida à beira-mar pode parecer algo idílico pra alguns, mas, no geral, é bem perigoso. Por isso fiz amizade com Fumaça, um mendigo já acostumado a dormir no calçadão da praia e que sempre me ajudava a tirar o mato que crescia em torno dos pneus em troca de um pacote de salgadinhos. Essa pequena vida tão delicada que se insinuava em um objeto feito de petróleo e aço poderia colocar tudo a perder. Ele também ficava de olho no Celta enquanto eu ia fazer o meu trabalho na loja de conveniências que ficava a apenas trinta passos de onde meu carro estava estacionado.
Fumaça era conhecido e temido. O corpo coberto de fuligem dos carros que passavam furiosos na avenida davam a ele uma aparência fantasmagórica. Ninguém se atrevia a mexer com ele, nem os policiais. Louco! Quando ele tentava se aproximar, davam algum dinheiro e deixavam pra lá. Como eu precisava passar o dia inteiro dentro da conveniência, a minha amizade com ele foi fundamental pro meu novo estilo de vida. Pra ele também: nos últimos anos, ninguém mais andava com moedas no bolso, tudo virou pontos acumulados em um cartão de plástico e transferências online.
No começo, quando eu ainda atuava sozinha, meu veículo foi diversas vezes saqueado, e viaturas locais tentaram rebocar o que eles chamavam de lataria esquecida. Mas depois da minha parceria com o fantasma as coisas começaram a dar certo: o meu Celta ocupava eternamente a mesma vaga sem maiores problemas, e Fumaça sempre dava um jeito para que não parecêssemos assombrações ocupando um automóvel em ruínas.
O dia ia ser longo. Eu precisava ganhar dinheiro suficiente pra comer durante duas semanas. Fumaça ia fazer um pequeno procedimento cirúrgico, e eu prometi ajudá-lo. Ele iria dormir comigo no carro enquanto se recuperava, só assim eu poderia cuidar dele. Eu já produzia conteúdo pras redes sociais há mais de um ano, e tinha pegado a manha de como conseguir mais grana, caso fosse necessário parar por uns dias. Estava disposta a pular o almoço para bater a minha meta de pontos.
Fazer dancinhas na internet. Foi o próprio Fumaça que me deu a ideia quando viu o celular na minha mão. Dava algum dinheiro. No começo achei que seria humilhante, mas me acostumei rápido e até peguei gosto pela coisa. Meu conteúdo era basicamente sobre nutrição para idosos, e o meu forte era propaganda de iogurte. Nos últimos dias com a minha mãe, isso era praticamente tudo o que ela podia comer, então eu tinha me tornado especialista em sabores, marcas e detalhes nutricionais: desnatado, integral, saborizado, sabor idêntico ao natural, kefir de leite, sem açúcar, vitaminas adicionadas, sem lactose, com pedaços de frutas.
Na conveniência da praia, era o produto que mais vendia, junto com algumas modalidades de frozen, e eu combinei com o dono uma parceria de divulgação em troca da utilização dos seus produtos e do cenário da loja pra fazer os meus conteúdos. Comecei o vídeo da manhã com um boomerang de um desnatado de morango com trilha sonora de Sidney Magal. O meu sangue fervepor você! ativava a libido da mulherada, e as vendas iam muito bem. Durante minhas performances, era bem comum juntar uma roda de clientes empolgados com o meu pequeno espetáculo, e, às vezes, eles até participavam da dança. Ajudava muito no engajamento. Eu mal sabia que meu quadril podia se movimentar, mas, fazendo as dancinhas todo santo dia, não só aprendi a rebolar como compreendi os diferentes gostos musicais do meu público, e até alguns passos que eram sucesso na rede, como desenrola, bate e joga de ladinho.
Eu tinha consciência de que todo o sucesso vinha do ridículo de uma mulher da minha idade dançar para ensinar componentes nutricionais de produtos alimentícios pra idosos. Mas funcionava. Eu batia os pontos necessários e conseguia boas transferências pra minha conta. Tudo o que eu precisava era comer e dormir em paz no meu Celta. Até o fim dos meus dias. Era pedir muito? Mas a doutora Glória tinha que aparecer justamente naquela avenida, naquela praia, naquela loja de conveniência com seus insuportáveis tênis de corrida:
— Doutora Thereza?! — Eu fingi que não era comigo e continuei firme no Ooohhhh eu te amo! Eu te amo, meu amor! Iogurte no alto, derrama um pouco na boca. — Sim! É ela! Eu tenho certeza! — ela comentou com o marido, que analisava algumas opções de energéticos. O homem me encarou com um olhar de repulsa e continuou indiferente na análise de uma opção de pêssego com morango que tinha nas mãos. — Doutora Thereza?
Eu continuei firme. Tinha esperança de que a pequena multidão ao meu redor a impedisse de continuar a investigação, mas ela não se intimidou. Afastou algumas pessoas e ficou bem na minha frente. Eu não parei. O iogurte escorria pelo meu corpo. Caprichei no rebolado. Alguns aplaudiam, outros gritavam vai, vadia!, e eu dançava enquanto parodiava a canção: fonte de proteínas de alto valor biológico, cálcio, fósforo, vitaminas do complexo B. Glória estava em choque.
Ela tinha sido minha chefe, mas isso já fazia uns dez anos. Uma mulher silenciosa e de uma gentileza agressiva. Conhecida e importante executiva no ramo da indústria alimentícia local. Da última vez que a vi, ainda não tinha rugas tão profundas nos olhos e seu bigode chinês não era perceptível. Ela jamais faria procedimentos no rosto, era do tipo que acreditava na discrição absoluta. Quando fui conversar com ela sobre a licença para acompanhar o tratamento da minha mãe, ela sorriu levemente, disse claro! e retomou a atenção na tela do computador. Fala com a Susana do RH e não esquece de entregar todos os arquivos. Nós trabalhávamos sob a pressão de um rigoroso e detalhado contrato de sigilo, e em mais de vinte anos de casa eu jamais havia deixado qualquer informação vazar. Entreguei tudo. Ao final da licença a que tinha direito já sabia que seria demitida.
Eu preferi acompanhar os últimos dias da minha mãe. Erámos só nós duas. Papai morreu jovem, de infarto, pra completo alívio de mamãe, que pode usufruir ainda de alguns anos de liberdade. Eu nunca quis me casar, focada no trabalho e na minha independência, como ela havia me ensinado. Mamãe até tinha uma pequena poupança, que fez escondida por segurança, e gostava de costurar, mas nos últimos tempos as pessoas preferiam comprar roupas prontas em um famoso site chinês. Eu também tinha minhas economias, então poderíamos ficar confortáveis durante anos, mas a doença foi longa e agressiva. Não quis que ela sofresse um único dia. Quando tudo acabou, só me restou o Celta. Mamãe adorava esse carro. Nós passeamos e viajamos muito nele pelo interior do país. Foram dias felizes.
Quando o grupo de pessoas se dispersou e eu pude guardar meu equipamento — luz, um pequeno microfone de lapela e tripé do celular —, ela se aproximou de mim e, com a sua costumeira gentileza, me intimou:
— Você precisa parar com esses vídeos.
O marido a observava de longe, no caixa, com uma sacola de energéticos variados e dois frozen, um de morango e outro de kiwi.
— Você devia levar um iogurte natural — respondi. — Esses frozen são só química, como você bem sabe.
Ela olhou para o marido com ar de reprovação. Ele passava o código de barras dos produtos no autoatendimento; acrescentou ainda duas barras de chocolate com amendoim.
— Você sabe que o nosso trabalho exige sigilo absoluto. Por que você está fazendo esses vídeos? — ela questionou.
— Nosso trabalho? Vocês me demitiram. Há anos!
— Você não estava mais batendo as metas da empresa… E faltava muito às reuniões presenciais.
— A minha mãe ficou doente. Vocês sabiam disso. Em vinte anos de casa eu nunca falhei com a empresa. — Me virei, peguei a sacola com meus equipamentos e continuei: — E os vídeos são só iogurtes. Só venda de iogurtes! Afinal, todos precisamos vender, não é?
Pensei em levar alguma comida pro Fumaça enquanto aquela mulher desagradável ia embora. Peguei dois pacotes de salgadinhos de milho, dois refrigerantes e dois copos com macarrão instantâneo. Decidi almoçar. Depois voltaria para bater as minhas metas do dia.
— Agora você come essas coisas? Nem parece que conhece de perto a indústria.
— O que é que você tem a ver com a minha vida? Eu como o que eu quiser! Trabalho com o que quiser! Agora sou dançarina e como comida de pacote! Não tenho mais relação alguma com vocês! Vocês me demitiram! Quando a minha mãe estava com câncer! Câncer, porra! — Todos da conveniência me olharam depois do xingamento, e Glória, que detestava escândalos, me puxou para fora da loja. Ficamos na calçada, encerrando a discussão no sol quente.
— Você sabe que não pode fazer esses vídeos. Está no seu contrato! Discrição! É a reputação da empresa que está em jogo. Você foi uma de nossas analistas mais influentes durante anos! Vai manchar a imagem da empresa.
— Problema de vocês! — De longe eu já avistava o meu Celta e só pensava em entrar no carro e dividir os salgadinhos com Fumaça.
— Nós vamos te processar!
— Pode processar!
Eu saí andando e ela veio atrás de mim. Chegamos as duas em frente ao meu carro. Ela não queria largar do meu pé. O marido estava logo atrás dela, a uns cinco passos largos de distância, esperando a confusão terminar. Ele mordia um pedaço da barra de chocolate e olhava firme para o mar. O pescoço rígido.
— Quanto você precisa pra parar de fazer os vídeos?
— Eu não quero nada de vocês! — Eu abri a porta do carro e entrei. Ela fez que ia entrar junto, mas hesitou e tapou o nariz.
— Você mora aí agora?
— Olha só, o que é que você quer de mim? Diz logo e vai embora.
— Se o seu problema é dinheiro, eu posso te ajudar. Você só não pode mais ficar fazendo esses vídeos.
— Ah! Santa doutora Glória! Vai me ajudar! Que amor! Mas quando a mãe da funcionária mais produtiva da empresa estava com câncer, quem pensou em ajudar? Ninguém! Demissão! Na lata!
— Olha só, Thereza, foi um erro nosso, mas agora estamos dispostos a corrigir. Vamos te pagar uma indenização por tudo o que você passou…
— Eu não quero nada de vocês! Nada! — Eu gritei com tanta força que Fumaça, que estava ao meu lado no banco, ficou assustado. Glória continuava na beira da calçada. A testa suada, as sobrancelhas arqueadas. Ela realmente estava preocupada com a repercussão dos vídeos. A doutora Thereza compartilhando segredos industriais com dancinhas na internet. O marido parecia impaciente, mas continuava aguardando sem reclamar. Apenas olhava para o mar.
— Já sei! Tem algo que você pode fazer por mim. — Vi os olhos da minha ex-chefe ficarem cheios de esperança. Ela se aproximou do carro, colocou o rosto na janela do carro e conteve o impulso de tapar o nariz.
— Você pode dar um beijo no Fumaça!
— Você tá de sacanagem? — ela perguntou, surpresa, e revirou os olhos.
— É brincadeira! Mas, falando sério, se você conseguir um emprego pro Fumaça eu paro com os vídeos.
— Não… — Fumaça murmurou logo atrás de mim.
— Eu dou um beijo nele! — Glória sussurrou e olhou para o marido, que seguia aguardando sem virar o rosto em nossa direção e comendo o chocolate.
— Hahaha! Eu sabia! — Abri a porta do Celta. Ela pulou por cima do meu colo e ficou ao lado de Fumaça. O marido indiferente.
— Se você queria a sua vingança… — Ela me encarou com o seu sorriso gentil de sempre. — Vai ter! Mas depois, nada de vídeos. Combinado?
— Combinadíssimo! — respondi, empolgada.
Fumaça abriu a boca, e Glória quase vomitou no banco do carro. Além do cheiro, ele tinha estranhos pontos esverdeados nos poucos dentes que lhe restavam. Ele não hesitou e lhe deu um longo e molhado beijo. Quando ela saiu do Celta, vomitou.
— Espero que você cumpra sua parte no nosso acordo. Eu vou ficar de olho — ela disse, e saiu apressada, limpando a boca com a barra da blusa. Pegou a sacola do marido com violência e partiu, não sem antes tomar uma golada generosa de energético e cuspir tudo logo em seguida.
Fumaça me olhou espantado. Ele não era de falar muito, mas eu sabia que estava preocupado. Como eu iria conseguir dinheiro agora? O cheiro da purulência de seus pés estava cada vez mais forte.
— Não se preocupa. Ela nunca vai me achar. A internet é um mundo, e eu conheço os algoritmos. É tudo uma questão de ser recomendada para a pessoa certa.
Depois do incidente, decidi mudar o meu Celta de lugar e Fumaça, meu fiel fantasma, quis vir junto comigo. Achamos um lugar perfeito logo no fim da praia. Distante, solitário e perto das estrelas. Como sempre, havia muitas lojas de conveniência ao redor.
“Vêm até nós; passam-nos os cendais, fazendo uma escrita leve na superfície, vão até o fundo e lá traçam letras fortes, cercadas de diabruras”. Assim se descreve uma das diversas uniões eróticas que proliferam no livro Rosa mística, da uruguaia Marosa di Giorgio. Aqui mãe e filha se unem a figos sacrodiabólicos, dotados de “dois pênis vermelhos, arroxeados”, “um para cada uma”. Em outra parte, uma menina conhece a “dor sexual” e o “prazer sexual” ao se tornar a senhora do Furão, do “furão”. Adiante, uma jovem ama um planeta, com seu membro “enorme, de pura esmeralda”. Outras ainda gozam com um bicho, uma figura, seres informes e sem nome. Mais além… Daria para agigantar a lista, tantas são as possibilidades concebidas pela imaginação indômita de Marosa.
Não à toa seu livro — em tradução de Josely Vianna Baptista — inaugura a coleção de escritos eróticos Sete Chaves, lançada pela editora Carambaia com curadoria de Eliane Robert Moraes. Se o mote da coleção são as “inumeráveis” “portas e comportas lúbricas” abertas por Eros, os contos de Marosa não nos permitem esquecer que, nesse domínio, os caminhos “se bifurcam, e logo se bifurcam outra vez” — e que a escrita erótica potente deixa-se afetar pela abertura, furor e multivalência do desejo sexual. Voltamos ao início: como o sexo-escrita apresentado em um dos textos de Rosa mística, a autora nos oferta uma “escrita leve na superfície”, mas com “letras fortes, cercadas de diabruras”. Vejamos.
O mundo construído por Marosa di Giorgio remete aos contos de fada, às fábulas, à infância. À semelhança dos contos maravilhosos, o tempo é ancestral; o cenário é o bosque, o jardim; as personagens — quase sempre crianças ou moças — deparam-se com animais humanizados, monstros e outros seres fantásticos. Muitas vezes, o tom manifesta uma ingênua candura. A inocência convive com o terror, entretanto. Os parceiros assediam, fuçam, devoram, despedaçam, desejam matar muitas das protagonistas nas 40 narrativas breves da primeira parte do livro, “Lumínile”. A experiência é ambivalente: a dor e a vergonha são simultâneas ao prazer; a vítima, beneficiária da crueldade. Em “Rosa mística”, narrativa longa que encerra a coletânea, a protagonista é perseguida, humilhada, martirizada – e assim goza, “ascendendo ao céu”. Nenhuma ingenuidade. A perspectiva infantil convive com o olhar provecto de quem dá a ver, pela hipérbole, a violência de Eros.
Essas “letras fortes” revelam outras diabruras. Talvez a mais fascinante delas seja a erotização da escrita. Eros, em Rosa mística, desestabiliza não só o sexo. O erotismo faz a linguagem delirar. Estamos diante de textos de gênero fremente, degenerados. Os contos da primeira parte do livro tocam o lirismo, com maior ou menor intensidade. Por vezes, a fruição da camada sonora da língua aproxima o texto do poema em prosa: “Só a amapola, a sós denunciada, rosada rosa, cravo de si mesma, engenhoca em gazes, tule sem donas e jardineiro querubim”. Em outros momentos, a prosa se torna verso, em uma franca metamorfose:
“E elas iam copulando de modo leve e fulgurante. Lá nas alturas, um pouco mais perto do céu.“
Até a estabilidade narrativa está abalada. As personagens irrompem, somem, sofrem abruptas transfigurações ou se desdobram sob o domínio de um corpo tornado alteridade tirânica, com uma “sede imensa”. Os narradores — ainda quando externos — questionam seu saber, fecundam dúvidas: “já?”, “(como era?)”, “o que vai acontecer?”. A ação avança ora aos sobressaltos, ora em vaivéns — tudo um “escorregadio sim e não”. O tempo vacila: pode ser “de dia e de noite; escuro, claro”. O cenário é instável: “em frente e ao longe”, “próximas e distantes” nomeiam idêntico e diverso espaço. A separação entre a paisagem e as personagens também se dilui. Natureza, pessoas são atraídas pela mesma pulsão erótica. De um lado, a “senhora” pode estar unida, por um vínculo invisível, desejante, ao que a cerca — palavras ou coisas: a cogumelos que crescem “numa abside do quarto”, “com uma fragrância sexual, leve”; a palmeiras, “aqueles menires rombudos, de pura palha”; à descrição de berinjelas, “potentes, escuras” e “o sumo de um amargor delicioso”. De outro, o vigor da natureza compete com os parceiros da “senhora”: o influxo de um arco-íris, “próximo e potente”, causa vergonha; os gorjeios que circundam a “atividade carnal” inquietam, apavoram, fazem perder a potência viril. O mundo ganha corpo. O corpo se transforma aos eflúvios do mundo.
Nesse universo onírico — em que isso é aquilo —, a consistência da linguagem estremece. Jogos eufônicos e paronomásias geram expressivas metamorfoses do corpo feminino. A vulva se transverte em uma “valva desmesurada”; o corpo — “todo diabolizado” — ganha “valvas por toda parte”; a senhora por fim vira “uma valva enorme, inteira”. Tal deriva, atraída por analogias sonoras, expande a porosidade da mulher ao salientar as profusas possibilidades eróticas propiciadas pela abertura ou pelo fechamento de seu sexo. Mais: o gozo do significante realça a dissolução das identidades rígidas em Rosa mística. A vulva é “vulvo”, assim como ela “era homem e mulher”. Comumente prefixo, o “vulvo” perde sua fixidez, libertando-se para participar de forma autônoma das frases e cenas eróticas.
A sintaxe é outra a agitar os sentidos. Marosa várias vezes omite o sujeito das orações — agente e objeto indiscerníveis. Em outros momentos, a interrupção da frase sustenta a coexistência do duplo sentido, que a narrativa não vem a pacificar:
“— Você já se entregou, imagino. Há esposas que permanecem virgens.
— Eu não — respondeu ela.”
Virgem ou entregue? Difícil definir, quando se sabe que a perda da virgindade — como qualquer alteração do corpo em Rosa mística — é reversível, incerta: “Não. E sim”. Os sinais de pontuação transtornam, da mesma forma:
“— Me deixe, vamos beber alguma coisa, um pouco de leite, de santidade. Eu vou para um altar do qual não voltarei. Mais.Ele ficou meio atordoado, mas lhe fincou um dente outra vez.”
Não voltar mais, pedir mais: desejo e resistência se identificam nessa mimese equívoca, pontuada por incertezas e ambivalências. Não raro a indefinição é um convite à imaginação libidinosa. Nomeada de forma imprecisa, a cena erótica se abre à fantasia de leitoras e leitores, estimulados a elaborar o que seriam essas “outras coisas miúdas, como botões de rosa para cá e para lá. Dessas coisas que dão felicidade”. O assombro pode decorrer da nitidez, por outro lado. O sexo aparece frequentemente às claras. “O realismo da narração contrasta, porém, com a irrealidade das cenas narradas”, conforme bem notou Eliane Moraes em seu posfácio à edição. Os parceiros são incomuns: botânicos, animalescos, monstruosos, diabólicos, divinos, planetários. Justo essa extravagância alimenta o prazer:
“Comeu o que havia ali entre as pernas dela. Por fim, ele a possuiu com o focinho. Ela se aventurava, ronronava, sea justava a ele e dizia: — Meu Deus, que focinho!… Meu Deus, que focinho!…”
O sexo — descomedido e extraordinário — aproxima-se da devoração da parceira, alimento diminuto para uma lubricidade insaciável. O corpo feminino, por sua vez, expande-se, com pedaços “situados um pouco longe dela, separados”. E transborda, expelindo flores, sangue, ovos, leite, pérolas:
“(…) os pequenos seios com violetas nas pontas, e que deixava sempre nus para exibi-los, como faziam todas as virgens nesse lugar.Ele arrancou com a língua as violetas, e saiu outra coisa de dentro do mamilo, uma penugem, umas perolazinhas prateadas, que ele tirou, com o pênis, de cada mamilo; copulou com os dois.”
Todo aberto a Eros, o corpo da mulher é difusamente penetrado. Repartido, ele se exprime: o ânus grita “doces gemidos”; os mamilos “cochicham”; a vulva parece chorar. Não se trata de simples metáforas para os efeitos ordinários do sexo. No universo ficcional de Marosa, as alomorfias orgânicas denotam fantásticas oportunidades de gozo — vividas pelas personagens como experiências familiares, embora insólitas.
No centro do vórtice que tudo transforma, Eros corrói os referentes sociais e as distinções consolidadas. O cotidiano lá está, pervertido; os tabus, corroídos pela exuberância do desejo. O casamento se aproxima do puro coito ou do rapto sem resgate. A maternidade confina com o monstruoso, amiúde autogestada e geradora de seres informes. Os significantes sagrados são igualmente subvertidos pelo erotismo: “Diabo” e “diábolo” são cambiáveis; “zonas benditas”, “zonas malditas” se equivalem; a mulher confirma ser a Divindade enquanto “requebra o traseiro” e “apoia as tetas no chão”. Ascende-se à experiência mística: as alturas sagradas descem ao baixo ventre.
Eros blasfemo, mas não só: antes desenfreado, ubíquo. Para Marosa, “tudo o que existe está erotizado, tem um relâmpago visível, ou não, permanente”. Esse erotismo onívoro — irrepetível e eterno a uma só vez — é a surpreendente diabrura de Rosa mística.
A ideia de pecado permeia diferentes culturas e religiões ao longo da história humana. Apesar das variações nas definições e crenças específicas, a ideia central do pecado geralmente se refere a transgressões contra normas sociais, leis divinas ou princípios éticos. Discutir e – principalmente – questionar as origens e desdobramentos da ideia de pecado nas sociedades é fundamental para compreendermos aspectos da moralidade, do direito e das estruturas sociais.
Em sociedades anteriores à era cristã, o conceito de pecado estava frequentemente ligado a tabus e crenças animistas. Ações que violassem a ordem considerada natural ou ofendessem os espíritos ancestrais eram vistas como pecaminosas e podiam trazer malefícios à comunidade. Com o advento das ditas “primeiras civilizações”, leis e códigos religiosos codificaram o comportamento moral, definindo quais ações eram consideradas pecaminosas e puníveis.
Analisando diferentes culturas de forma comparativa, podemos identificar alguns temas comuns relacionados ao pecado: a violação de regras ou normas sociais, como leis, costumes ou tabus, frequentemente vista como um ato pecaminoso; a noção de impureza, que consiste em ações que “contaminariam” a pureza física ou espiritual do indivíduo ou da comunidade; a ofensa, uma vez que o pecado também pode ser entendido como uma ofensa a uma divindade ou à ordem moral estabelecida; e a ideia de intenção, que estaria por trás da ação e também seria importante na determinação do pecado. Ações realizadas com má intenção são geralmente consideradas mais graves do que aquelas feitas por engano ou ignorância.
Porém, para além desses aspectos em comum, a ideia de pecado em diferentes sociedades encontra outro ponto de contato: a demonização de determinados corpos, grupos e comportamentos.
O ditado “não existe pecado do lado de baixo da linha do Equador” logo vem à mente quando discutimos essa noção. Ele apresenta um enigma que intriga e fascina. Alguns o interpretam como um reflexo da repressão sexual imposta pelas instituições religiosas, especialmente durante o período colonial. A Igreja Católica, com seus dogmas e costumes rígidos, teria sufocado a expressão natural da sexualidade, criando uma atmosfera de “ascetismo e moral dogmática”. Outros defendem a ideia de que ele celebra a liberdade e a naturalidade da sexualidade no Brasil. A miscigenação e a herança cultural indígena e africana teriam criado um ambiente mais permissivo, em que as diversas formas de expressão sexual são aceitas e incorporadas ao ethos nacional.
O dito popular não deve ser interpretado como uma verdade absoluta. O “pecado” é um conceito religioso subjetivo e varia de acordo com cada crença e cultura. No Brasil, como em qualquer outro lugar do mundo, existem diferentes níveis de religiosidade e moralidade, e, em nosso caso, deve-se adicionar uma camada densa, que foi basilar na construção da ideia de “pecado nos trópicos”: a colonização.
A ideia de pecado permeou a colonização e a escravidão de negros africanos — e posteriormente crioulos — e indígenas nas Américas, tecendo um manto de culpa e sofrimento que ainda hoje se faz sentir. Para os colonizadores europeus, imbuídos de uma visão etnocêntrica e religiosa, os povos nativos e africanos eram considerados “inferiores” e “pecadores”. Essa crença serviu como justificativa para a brutalidade da invasão e da exploração, legitimando a subjugação e a desumanização dos colonizados.
A crença na anarquia moral “abaixo do Equador” impulsionou aventureiros europeus do século XVI a cruzarem o mar em busca de um lugar livre das convenções do Velho Mundo. Guiados pela cobiça por poder, mas também pela fascinação pela transgressão, esses aventureiros desembarcaram nas Américas, onde seus desejos foram colocados em prática em forma de um expurgo colonial com vítimas muito bem definidas.
Desde o início da colonização, a narrativa do pecado original foi utilizada para justificar a dominação. Segundo essa visão, os povos nativos e africanos carregavam o fardo da culpa herdada de Adão e Eva, condenando-os à inferioridade e à servidão. Essa crença serviu para deslegitimar as culturas e a fé dos que foram colonizados, reforçando a ideia de que estes precisavam ser “salvos” pela fé cristã e pelos valores europeus.
A escravidão era vista como um castigo divino pelos pecados dos negros e indígenas. A brutalidade do sistema escravocrata, com seus castigos físicos, as humilhações e a subjugação psicológica e cultural, era justificada como uma forma de “purificação” e “redenção”. A desumanização dos escravizados se materializava a partir da coisificação desses indivíduos, uma vez que grande parte dos colonizadores os consideravam “coisas” sem alma, desprovidos de qualquer direito ou dignidade. Em Uma história do negro no Brasil, Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho afirmam que:
Na ideia dos europeus, o tráfico era justificado como instrumento da missão evangelizadora dos infiéis africanos. O padre Antônio Vieira considerava o tráfico um “grande milagre” de Nossa Senhora do Rosário, pois, retirados da África pagã, os negros teriam chances de salvação da alma no Brasil católico.
O conhecimento sobre a organização social da colônia nos primeiros séculos é fragmentado. As principais fontes de informação são os relatos dos jesuítas e dos viajantes europeus. Essas narrativas, muitas vezes carregadas de preconceitos, retratam os indígenas como seres “ingênuos” e “selvagens”, necessitados da “salvação” e do “aculturamento” pelos colonizadores Assim, a Igreja Católica desempenhava um papel fundamental na perpetuação da ideia de pecado como justificativa para a colonização e a escravidão. Missionários atuavam como agentes de colonização, catequizando os povos nativos e africanos e impondo-lhes a fé cristã. A educação religiosa era utilizada para doutrinar os colonizados, inculcando-lhes as ideias de culpa e a submissão.
Ao contrário do que se possa imaginar, a demonização dos indígenas no período colonial não se baseava unicamente na crença de que eles eram adoradores do diabo. A visão predominante entre os jesuítas, como Cardim e Anchieta, era a de que os indígenas eram “pouco endemoniados” e, em sua maioria, praticavam uma “ingênua irreligiosidade”. Embora reconhecessem o uso da dita “feitiçaria” entre os indígenas, os jesuítas argumentavam que essa prática não era resultado de um pacto com o diabo, mas sim uma forma de lidar com doenças e outros problemas. Para eles, a falta de conhecimento sobre Deus tornava impossível a crença no diabo.
O que realmente inquietava os colonizadores era a aparente falta de leis e regras que regulassem a vida dos indígenas, especialmente no que diz respeito à sexualidade. A nudez, a poligamia e o “canibalismo” eram práticas que chocavam os valores europeus e reforçavam a visão do indígena como um ser “animalesco”, “selvagem” e “monstruoso”. A demonização dos indígenas era parte de um processo mais amplo de construção da alteridade, que visava justificar a dominação colonial. Ao negar aos indígenas a sua humanidade, os colonizadores se colocavam em uma posição de superioridade moral e religiosa, legitimando a conquista e a exploração dos seus territórios.
Primeira missa no Brasil, Victor Meirelles. 1859-1861. Óleo sobre tela.
O Brasil colonial foi palco de um intrincado jogo de poder entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica. A Reforma Protestante, com seu desafio à hegemonia papal, impulsionou a Contrarreforma e a criação do Tribunal do Santo Ofício, conhecido como Inquisição. Essa instituição, com seus tentáculos espalhados por Portugal e seus domínios, buscava reprimir qualquer forma de heresia e dissidência religiosa.
Os primeiros cronistas europeus que chegaram ao Brasil ficaram chocados com a nudez e a aparente falta de pudor dos indígenas. Para eles, essas características eram provas da “vassalagem” que os indígenas prestavam ao diabo.
Fernão Cardim, um jesuíta que inicialmente viu inocência na nudez dos indígenas, comparou o interior das ocas a um “labirinto infernal”. O fogo, aceso dia e noite, era a única “roupa” que os indígenas usavam. Cardim ficou particularmente perturbado com a dita promiscuidade em que viviam. Cem ou duzentas pessoas viviam em uma única oca, “sem repartimento algum ou divisão”, cada casal em seu rancho, mas “todos à vista uns dos outros”. Para ele, era como se estivessem sempre em público, “fazendo o que lhes aprazia”. A liberdade dos povos indígenas era um insulto aos colonizadores.
Os jesuítas no Brasil colonial consideravam os costumes matrimoniais indígenas “falsos” e “pecaminosos”. A poligamia, a instabilidade das uniões e a considerada infidelidade eram práticas que contrariavam a moral católica. Para “civilizar” os indígenas, os jesuítas os pressionavam a se casar na forma e sob as regras da Igreja. O casamento era visto como um instrumento fundamental para aculturar os indígenas e integrá-los à sociedade colonial. Através do matrimônio, os jesuítas buscavam impor a monogamia e a indissolubilidade do casamento, controlar a sexualidade e a reprodução, transmitir valores e costumes cristãos e sedentarizar os indígenas e integrá-los à comunidade. Instituições como a família e o casamento são muito mais do que meras formações afetivas ou relacionais; são — ou podem ser — ferramentas de dominação de corpos e mentes.
No contexto da colonização, a família era vista como a pedra angular da sociedade e a principal responsável pela perpetuação da fé católica. A Igreja, através da Inquisição, intervinha na vida privada dos colonos e indígenas, ditando normas de conduta e punindo severamente qualquer transgressão. É curioso observar que essa linha argumentativa retornou às bocas e mentes no Brasil contemporâneo, em discursos inflamados pela extrema direita, que, mesmo que não tão profundamente vinculada ao ideário de pecado colonial, não abriu mão de perseguir determinadas existências que já eram alvo de repressões ao longo da história, como mulheres, pessoas LGBTQIA+, negros e indígenas.
Ao longo da história colonial brasileira, os africanos foram frequentemente retratados como seres lascivos e incontinentes, entregues aos “vícios da desonestidade”. Essa visão distorcida, presente em autores como José de Anchieta, Fernão Cardim e André João Antonil, servia para justificar a escravidão e reforçar a dominação colonial. Segundo esses autores, os africanos eram naturalmente inclinados à “fornicação”, excedendo em lascívia os “brutos mais libidinosos”. Essa caracterização, além de negar a diversidade cultural africana, ignorava as complexas relações de poder e as condições precárias de vida impostas pela escravidão.
Os jesuítas também acusavam os senhores de engenho de contribuir para a “licenciosidade” dos negros. Ao permitir o ócio, negar a educação religiosa e recusar-se a casá-los segundo a Igreja, os senhores criavam um ambiente propício ao pecado. Ao mesmo tempo em que condenavam a sexualidade dos negros, os jesuítas denunciavam a hipocrisia dos senhores que mantinham relações sexuais com escravizadas e geravam filhos “mestiços”. Essa crítica evidenciava uma face importantíssima para pensarmos a construção da ideia de pecado: a contradição entre a moral cristã pregada e a realidade da sociedade brasileira.
A ideia de “lascívia negra” se atualizou e perseguiu os passos das populações afro-brasileiras. O termo “cor do pecado” é largamente utilizado para se referir a pessoas negras, dentro da ideia de que estas seriam capazes de corromper os demais indivíduos e os arrastar para atos pecaminosos. Essa percepção aparece também em materiais artísticos, como filmes, telenovelas e canções. A música Da cor do pecado, com letra de Bororó, apresenta uma descrição sensualizada do corpo de uma mulher negra, associando-a à maldade e ao pecado. Essa visão, presente também na obra de Gilberto Freyre, reflete a concepção colonial que liga a mulher negra à sexualidade exacerbada. A letra da música destaca a cor da pele da mulher como algo pecaminoso e desejável. O corpo “moreno” é descrito como “cheiroso e gostoso“, “delgado” e “de fazer tão bem”. O beijo da mulher é “molhado” e “escandalizado”, e suas palavras “com graça” escondem a “maldade da raça”.
Ainda na interseção entre o pecado e o gênero, é importante observar que, ao longo da história, as mulheres foram frequentemente representadas como figuras pecaminosas e tentadoras, desde Eva, no Jardim do Éden, até as bruxas perseguidas na Idade Média. Essa construção social, baseada em estereótipos e misoginia, serviu para justificar a subordinação das mulheres e a violência contra elas.
A crença no pecado feminino se traduziu em diversas formas de perseguição e controle ao longo dos séculos. As mulheres foram silenciadas, excluídas da vida pública e privadas de direitos básicos. A sexualidade feminina era vista como algo perigoso e que precisava ser controlado, resultando em práticas como a castidade imposta, o casamento forçado e a punição de mulheres consideradas “adúlteras” ou “sem moral”.
Também perseguidos pela invenção da noção de pecado foram aqueles que apresentaram dissidências com relação à cisgeneridade e à heteronormatividade em suas relações e existências. Por mais que os dogmas cristãos façam parecer que práticas homoafetivas, por exemplo, são recentes, é importante reconhecer que elas não são um fenômeno novo ou singular. Registros históricos demonstram a existência de práticas e relações homossexuais em diversas sociedades antigas, como no Egito, na Grécia e em Roma. A diversidade de expressões sexuais e de gênero era vista como parte da natureza humana, e não necessariamente como algo pecaminoso ou anormal.
Com o advento do Cristianismo, a partir do século I d.C., a homossexualidade passou a ser considerada um pecado grave. Passagens bíblicas foram interpretadas como condenações à prática homossexual, dando início a um período de perseguição e repressão que se estenderia por séculos. Durante a Idade Média, a Igreja Católica Romana desempenhou um papel fundamental na demonização da homossexualidade. A Inquisição, tribunal religioso criado para punir hereges e pecadores, perseguiu e condenou milhares de pessoas por práticas homossexuais. As punições variavam de chibatadas e humilhação pública até a pena de morte. No período moderno, a partir do século XVIII, a homossexualidade passou a ser objeto de estudo científico. No entanto, a medicalização da homossexualidade a classificou como uma doença mental, reforçando o estigma e a marginalização.
Nas últimas décadas, diversos países avançaram na legislação e no reconhecimento de direitos para a comunidade LGBTQIA+ — a homossexualidade foi descriminalizada e o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado em vários países. No entanto, ainda há muitos desafios a serem superados. A homofobia, a transfobia e o preconceito ainda são realidades presentes em muitas sociedades sob a égide do pecado e da moral.
Assim, ao longo do tempo, a ideia de pecado foi utilizada como um instrumento poderoso para justificar a dominação, a opressão e a violência contra diversos grupos sociais. A análise crítica dessa construção social revela como o pecado foi inventado para servir aos interesses de elites e grupos hegemônicos. É fundamental, portanto, desconstruir a ideia de pecado como algo inerente a determinados grupos ou determinadas práticas. O pecado é uma construção social, utilizada para controlar e oprimir. Respondendo à pergunta que intitula este texto, podemos ousar pensar que o pecado foi inventado para manter uma estrutura sólida e rígida de poder e desigualdade.
Sara Hana —A Silvia Machete é essa multiartista, cantora, compositora, performer, formada em artes circenses, e eu fico muito curiosa pra saber… Como foi a infância da Silvia, quem foi a Silvia quando criança?
Silvia — Eu tenho uma história interessante, que eu só concluí que é interessante há pouco tempo. Eu sou a filha mais velha da minha mãe e a filha mais nova do meu pai. Sou filha única do meu pai e da minha mãe, e juntando tudo, com todos os outros irmãos, eu sou a do meio. Então eu tive as dores e as delícias de estar nessa posição, de ser uma criatura que abriu portas pros meus irmãos, que teve uma educação um pouco mais severa, mas, ao mesmo tempo, foi muito paparicada pelo lado do meu pai, porque eu era a caçula, menina, meu pai já tinha dois filhos bem mais velhos, e acho que essa forma como você é tratada dentro da família com certeza te dá caráter. Também essa família partida. Minha mãe teve um relacionamento com meu pai, me tiveram, logo depois ela já estava em outro casamento, teve outros filhos, viagens. Eu nasci em Minas Gerais, minha mãe nem morava em Minas Gerais, ela foi do Rio pra Minas Gerais pra fazer o parto. Até hoje eu penso: como assim, uma pessoa grávida de nove meses sai do Rio de Janeiro de carro e vai pra Minas Gerais? Porque tinha um tio que era obstetra, era esse o combinado. Aí eu nasci, e voltando pro Rio, meu pai e minha mãe foram morar na Argentina. Então já começamos com experiências de mudanças bem radicais, de país, de língua, enfim, era tudo uma novidade.
Interessante, você já é do mundo desde muito cedo.
Total, isso é outra coisa que você demora pra realizar também, você está acostumado a transitar em lugares longínquos. Eu acho que isso também influencia sua personalidade, o caráter da pessoa.
Sem dúvida.
E dentro de uma família bem criativa, bem artística. Meu pai era jornalista, minha mãe era jornalista, os dois envolvidos com política, política do Brasil, política internacional. E os filhos do meu pai, do primeiro casamento, os dois são músicos, o Doca e o Ivan. Então também teve essa proximidade com a música muito cedo. Meu pai, excelente cantor, tocava um violão maravilhoso e ensinou todas as irmãs da minha mãe a dançarem. Era um cara muito carismático, professor de português no fim da vida, e muito especial, um homem muito querido, muito amado. E um homem mais velho, meu pai era 25 anos mais velho que a minha mãe. E ele morreu cedo, então eu tive um pouco menos de contato com ele do que eu gostaria, mas era uma relação gostosa, apesar de ser aquela coisa de mãe separada, de pai de final de semana… Mas, ao mesmo tempo, o marido da minha mãe, com quem ela se casou depois, foi uma pessoa também que me adotou por completo, e eu aceitei isso e me senti muito incluída nessa nova família que foi surgindo.
Acolhida.
É, minha mãe escolheu muito bem os homens com quem ela se relacionou. E aí o Edmar foi esse pai pra mim durante uns dez anos, e aí eu tive mais uma irmã e um irmão, depois minha mãe se separou de novo e aí ela casou com o Jorge, com quem ela está casada até hoje, e a gente ama o Jorge, o Jorge ama a gente, a gente tem uma relação muito boa. Eu me sentia uma criança meio só, pra te falar a verdade, nesse turbilhão de gente, a minha mãe workaholic total, meu pai mais ausente no dia a dia, e eu tive que me virar bastante pra conseguir as coisas. Porque era muita gente, pais muito ocupados, prioridades. Eu e minha irmã e meu irmãozinho menor, a gente classe média carioca, com empregadas, a gente foi criado pelas empregadas, porque minha mãe trabalhava, meu pai, todo mundo trabalhava, não tinha essa. Mas, claro, também minha avó, a mãe da minha mãe, minha avó Marielza tinha cinco filhos, então era uma coisa assim, aquela casa lotada de gente. Minha mãe teve muito apoio dessa rede de mulheres também. Família interessante, são feministas, mas também machistas. Tem os dois lados da moeda, analisando as escolhas das minhas tias, da minha mãe. Mas eu sinto que elas fizeram tudo que sempre quiseram fazer na vida, sem depender dos homens, eu sinto isso. Minha mãe, imagina, nem casou com meu pai, foi lá e teve um filho nos anos 70, já era bem avançadinho isso.
Tem muito de uma construção social imposta sobre esses corpos.
Total. Tem milhões de coisas que eu discordo das opiniões da família, na nossa geração, eu e meus primos, a gente tem várias ideias diferentes e opiniões diferentes dos nossos pais e tios. Acho que eu sempre fui uma criança meio sozinha, não era muito da galera, nunca fui da galera, sempre fui uma outsider, até continuo sendo, na verdade. Eu sou totalmente sozinha, gosto de ficar sozinha, só consigo fazer o que eu faço porque eu sou sozinha. Claro que eu tenho uma entourage de pessoas que trabalham comigo, mas não tem nada a ver com a minha vida íntima, minha vida privada. Eu tenho meio pavor de andar em grupo, eu gosto de estar com poucas pessoas, gosto de coisas íntimas, gosto de ter atenção e dar a minha maior atenção a uma de cada vez. O que também é um pouco louco, porque, ao mesmo tempo, quando subo no palco, tem muita gente assistindo, e eu preciso comunicar e estar com todo mundo ali igualmente, então é muito interessante.
É aí que entra a artista.
É, cara, vira uma chavinha ali, que é como entreter quem está ali naquele momento, todo mundo vendo o que está acontecendo no palco e todo mundo reagindo ao mesmo tempo, todo mundo sentindo, recebendo a energia de quem está no palco, seja na atuação, com a música, existe uma ação e uma reação, e o que volta pra mim da reação do público é também uma força que vai gerando essa máquina criativa, de como não se comportar no palco, eu acho que o palco é o lugar onde eu mal me comporto, eu posso me comportar mal ali naquele momento.
Você é uma artista que transa muito bem variadas linguagens, você leva pro palco performances muito criativas, é humorada até quando propõe uma performance mais intimista. Você joga muito bem com a sua sensualidade, e a experiência na rua sem dúvidas agregou em suas construções cênicas. A rua e a cena, lugar onde se estabelece uma teia com as pessoas, transeuntes que estão indo para o trabalho, estão indo buscar a filha na escola ou atrasados pro cursinho… Como que você enxerga isso?
É muito doido esse negócio da rua, porque fazer a rua é tão difícil, exige uma paciência, uma resiliência, porque é muito humilhante também, você é ignorado, o tempo inteiro está sendo ignorado. É um negócio assim, te deixa muito casca-grossa, você aprende coisas sobre as pessoas que é difícil. E, ao mesmo tempo, não tem escola melhor que isso. Mas é “se fode aí que daqui a pouco a glória virá”.
Alô, glória, dá pra chegar logo?
Chega logo, pelo amor de Díos. Nossa, cara, a rua é sinistra, é a maior escola que tem. Eu ainda fui sortuda, eu fui pra Europa, onde isso ainda é aceitável, onde as pessoas estão na rua por opção, não por necessidade. Então tem uma mentalidade, mais respeito por parte do público, mas, mesmo assim, imagina, uma mulher na rua, mesmo eu tendo meu parceiro, que compunha a dupla de malabarista e acrobata, nossa, a quantidade de vezes que eu fui ofendida e desrespeitada e tal. Mas me deixou muito dura. Eu sou meio punk, na verdade, eu não dou… Diz a minha terapeuta que eu sou muito doce, mas eu acho que só pra quem me conhece mesmo. Não abro muito espaço. E eu acho que isso tem a ver com a rua, sabia? Eu não dou muita intimidade.
Você encontrou um mecanismo de defesa.
Total. E uma coisa muito boa, me deixou com os pés no chão, muito pé no chão, muita consciência do que está rolando à minha volta, porque, quando você está na rua, você tem que estar muito ligada no que está acontecendo. Te deixa atenta. Então acho que também tem isso, você está meio num survival, modo sobrevivência também, sabe?
E a jornada como compositora, seu contato com a música? Você tem dois irmãos músicos, seu pai era uma pessoa altamente musical… Quando é que você descobre o desejo e tem o impulso de se lançar musicalmente, como isso ocorre?
É muito louco, eu sempre gostei muito desse lance da música, cantei no coral da escola, fui de grupos de música de jovens no Rio, tinha aula de violão, tinha aula de canto. Fiz aula de violão no Antonio Adolfo, no Rio, essas coisas todas. Sempre tive essa experiência de estudar e de me apresentar no palco, desde pequena. Eu acho que isso aí é tipo um vício. É um vício você estar na frente do público, é uma delícia. Eu acho que também tem a ver, o motivo pelo qual eu fiz isso também, foi por conta dessa infância meio sozinha. Como que eu vou chamar atenção? Como que eu vou conseguir ter os olhos das pessoas à minha volta em mim? Eu acho que também tem um pouco a ver com isso.
Então é um processo muito orgânico, também.
É, eu acho que sim. A gente vai concluindo ao longo da vida, porque as coisas acontecem, porque eu faço o que eu faço, é muito doido isso. Eu acho que sim, tem uma falta ali, um buraquinho, aí a gente preenche estando na frente de um público.
Preenche dando.
É, sim.
Nessa jornada são sete álbuns lançados?
Mais ou menos, porque tinha esse lance de lançar DVD, eu não conto isso como um disco. Eu tenho quatro álbuns de estúdio e estou indo pro quinto agora, que vai se chamar… É a trilogia Rhonda, esse é o segundo disco da trilogia e vai se chamar Invisiblewoman, Mulherinvisível, essa história de ser compositora. Eu sempre escrevi poesia, sempre gostei muito dessa parte, de escrever, redação, estou pensando lá atrás, como que isso veio. Como eu já tocava violão, escrevia umas musiquinhas lá do jeito que eu escrevia, mas nunca levei muito a sério isso, não. Isso aí era um hobby. Eu acho que continuo não levando a sério, mas é o que eu achei pra fazer e amo fazer. Aí encontrei o Alberto Continentino, que é meu parceiro nas músicas, e acho que a gente faz as músicas mais lindas. Então eu me sinto meio sortuda. Era uma brincadeira escrever e tocar violão, e eu inventei de gravar um disco. Eu tinha 30 anos, já tinha dado meu rolê pelo mundo inteiro fazendo show de rua. E aí eu estava numa relação já há muito tempo, me separei e vim pro Brasil. Eu saí de Nova Iorque e vim passar um tempo aqui no Brasil e acabei ficando. E foi aí que eu gravei o meu primeiro disco, Música safada para corações românticos. Caraca, gente, é muito tempo, socorro. Isso foi em 2008, quando voltei.
Aí corta pra 2020, o lançamento de Rhonda, que, aliás, é um álbum deslumbrante, é lindo desde a arte gráfica até a textura da tua voz, as melodias.
É lindo.
E um disco todo em inglês… Eu entendo muito pouco, quase nada de inglês, mas, desde pequena, sempre ouvi música americana nas rádios.
É, todo mundo, a gente tem a cultura de ouvir música americana, a cultura americana domina o mundo, pro bem e pro mal, tem coisas horríveis e tem coisas maravilhosas. Como no Brasil, tem coisas maravilhosas e tem coisas horríveis; como na França, tem coisas maravilhosas e tem coisas horríveis. Eu sou a favor de misturar tudo. Tem um monte de gente que torce o nariz, eu cantando em inglês, como se estivesse traindo a minha pátria. Pelo amor de Deus, eu não preciso fazer… Posso fazer a música que eu quiser. A essa altura do campeonato, as pessoas querem julgar a língua que você está cantando, mas…
Querem cristalizar você, porque talvez seja um trabalho que te destaca numa atmosfera muito diferente do que você vinha tendo com as performances anteriores. Quando, na verdade, isso é um marco de uma nova fase da artista, de uma nova fase de vida.
Exato, todo artista pensa nisso. E quer isso, quer uma nova fase, não quer o mesmo papel pra sempre.
E Rhonda nasce de quais desejos? O que a Rhonda quer comunicar, além disso que a gente falou?
Eu acho que rola um romantismo, todas as músicas são de amor, e totalmente pessoais. Na verdade, Rhonda é muito parecida comigo, muito mais íntima minha. Eu, no meu pessoal sou, muito mais Rhonda, mas também sou muito a mulher dos bambolês e da pomba e tudo, tem uma mistura aí de desejos. Mas são canções românticas, basicamente. O que não sai muito do primeiro disco, que era Músicas safadas pra corações românticos. E aí continua sendo. Eu sou uma romântica, essa é a verdade. O Amarante falou uma coisa sobre isso, escreveu uma frase muito linda. Ele falou: “eu sou romântico demais pro meu próprio bem”.
As onze faixas do disco foram compostas antes e durante a pandemia, não é?
É. Na verdade, foi composto no ano que precedeu a pandemia.
2019.
É, foi 2020. Em 2019 eu compus, gravei e estava previsto pra ser lançado no início de 2020, só que teve a pandemia e só foi lançado no meio de 2020. Eu mudei pra São Paulo, falei: “nossa, essa cidade…”. Me senti em outro país, de tão diferente que era do Rio, o ambiente. E aí isso me reaproximou do estrangeiro, e aí foi um passo muito pequeno pra começar a escrever poesia em inglês. Porque estava ali na ponta da língua esse inglês, é minha segunda língua, morei muito tempo fora, fui casada, me comuniquei, briguei em inglês.
Tem intimidade.
Muito íntima dessa língua que se escreve muito bacana pra música pop, a música radiofônica. É o maior barato. Aí tem essa coisa também de muitas pessoas me perguntarem “mas você quer entrar no mercado internacional?”. Não, gente, não é isso. Adoraria, legal. Imagina, jamais poderia. Se eu quisesse entrar no mercado internacional, era melhor que eu fizesse um disco de samba, bem brasileiro. Essa coisa de cantar em inglês porque quer ir pro mercado estrangeiro… Não tem nenhuma música mais internacional do que a música brasileira. Ela está por todos os cantos do mundo, e eu sei disso, porque eu já estive nos quatro cantos do mundo e tem sempre música brasileira tocando nos supermercados, nas lojas, nos restaurantes e em tudo mais.
Sem dúvida. Se utilizar de outro idioma que não o português deve ter sido um desafio gostoso e ao mesmo tempo, pensando na cena, na atriz, traz outras camadas pra construção dessa persona, revela outras Silvias Machete.
Isso, cara, é um acessório maravilhoso, porque… Ainda mais quando você canta em inglês, a sua voz está colocada de outra forma, você articula sua boca de outra forma, você soa de outra forma. Então é um ótimo… Como se fala? É uma super ferramenta pra montar personas, personagens, bem legal.
Então Rhonda parece ter tido alguns desafios: um álbum lançado em plena pandemia que teve seu show num palco dois anos depois. Uma narrativa que passeia entre o jazz e o soul, inteiramente em inglês… No show a Rhonda se comunica com o público em inglês, tem essa brincadeira. Você até já falou um pouco, mas qual é a sua percepção da recepção do público brasileiro?
Tem de tudo, é legal. Nessa brincadeira, depois as pessoas vêm falar em inglês comigo, maior barato, muito engraçado. É uma grande piada, na verdade.
É teatro, isso.
Sim! E o teatro é isso, teatro é brincadeira, você vê a palavra teatro em inglês, play, é brincadeira, as pessoas estão brincando ali. E é isso que estou fazendo, estou brincando, eu brinco com a minha nacionalidade, eu brinco com a minha sexualidade, eu brinco com meu corpo, eu brinco com o público, eu trago o público pra dentro dessa brincadeira, e eu sei fazer isso por conta da experiência da rua, que a gente também brinca na rua. Acho maior barato. As pessoas escrevem pra mim em inglês no Instagram, é uma piada maravilhosa sem fim.
Infinita. Essa liberdade pra brincar de ser ridículo.
É, Rhonda é completamente ridícula, é absurda. É muito bom.
E sobre a sua parceria com Alberto Continentino, quem produziu o disco foi…
Foi o Lalo Brusco e o Alberto, e as músicas são minhas e do Alberto.
Alberto é teu parceiro de muito tempo, teu parceiro mais recorrente?
Não, o Alberto é meu amigo há muito tempo, a gente já tocou em show juntos, já gravamos juntos muitas vezes, ele é esse cara, ele é o músico dos músicos, o Alberto realmente é um grande baixista, toca com Caetano Veloso e muitos outros artistas, e ele não toca comigo, a gente só compõe as músicas. Junto com Lalo Brusco, eles produziram esse disco, Rhonda, e produziram esse que vai ser lançado em abril. A gente gosta de pensar, e a gente concluiu que realmente é um trabalho a três pessoas, temos aí três cabeções fazendo esse lance acontecer. E, claro, convidando nossos músicos inspirados pra tocar no disco.
E você está prestes a lançar um novo disco, como você falou, o segundo da trilogia Rhonda?
Isso.
Se você quiser contar um pouquinho sobre Invisiblewoman, dar um spoiler…
Invisiblewoman é mais pop, com certeza, do que o Rhonda, e ele continua tendo muito romantismo, mas tem músicas maravilhosas pra dançar também, tem umas três faixas excelentes pra dar uma mexidinha no esqueleto. Então eu sinto que a Rhonda botou um pé, ela está num bar bebendo um drinque agora, ela está animadinha, diferente do Rhonda primeiro, que estava realmente mais denso, um mood mais comprimido sexualmente, ela está mais presa, ela está bem apaixonada. Aqui ela já está tipo firulando, dançando mais, mais felizinha, mais aberta. Tem algumas músicas lindas, a gente fez uma música pro Burt Bacharach, que é um músico que faleceu ano passado, um dos músicos mais românticos pra mim, a gente fez uma música pra ele que é lindíssima, se chama Abracadabra, que é um casal se olhando juntos no espelho e se perguntando o que esse espelho enferrujado fala sobre eles e como você mantém uma relação com uma pessoa, o que faz você ficar numa relação, como se rega um amor, como se cuida desse amor. É uma música bem bonita. E tem música pra minha cachorrinha, que faleceu há um ano e meio atrás, Salomé. A Invisiblewoman é uma música super dançante, deliciosa, e bem política, eu fiz essa música por conta dessa coisa da mulher ser invisível muitas vezes, a maioria das vezes, dá uma raiva isso, nossa senhora. Então é uma música bem-humorada e tal, gostosa de dançar, mas ela tem um significado ali, bem a gente, pelo menos eu acho. Tem uma frase que ela fala, que é a famosa frase “don’t tell me to relax”.
Please!
Don’t tell me to relax. E essa coisa do olhar do homem não enxergar as mulheres, só enxergar quando elas são objetos sexuais. Essas coisas.
Conteúdo exclusivo da Amarello Eróticaversão digital.
Pensar em erotismo é pensar em como as diferentes sociedades se relacionam com o corpo.
A estrutura social patriarcal cristã se estabelece a partir da criação de tabus, do distanciamento da humanidade de si própria e de uma relação de pertencimento à natureza. O objetivo é tornar-se santo, superior e distante das coisas terrenas.
Nesse contexto, às mulheres, sobretudo, foi atribuído o lugar de cuidado e servidão à figura masculina. Afinal, Deus é homem.
O processo de colonização que estabeleceu a hegemonia eurocristã foi bem-sucedido, porque conseguiu colonizar, além de territórios, mentes e corpos, e paulatinamente apagar outros formatos de organização social.
Minha conversa com Mãe Flávia Pinto se dá a partir de uma troca em que nos interessa pensar o erotismo sobre a perspectiva do matriarcado, do axé, das iabás.
Como as mulheres têm se relacionado com a sua própria sexualidade? O que os orixás nos ensinam sobre energia sexual? Como o patriarcado e o capitalismo nos castram?
Vamos descobrir juntas a seguir.
Conta pra gente quem é Mãe Flávia Pinto.
Mãe Flávia Pinto — Sou uma mulher preta de 48 anos, mãe de três filhos, favelada, nascida na Vila Vintém, Padre Miguel. Sou socióloga, escritora, autora de quatro livros. Sou ganhadora do Prêmio Nacional dos Direitos Humanos por ter idealizado e coordenado a primeira pesquisa de mapeamento dos terreiros, que identificou casos de intolerância religiosa no país. Sou ex-coordenadora de diversidade religiosa da Prefeitura do Rio de Janeiro, sou gestora pública, mestranda em sociologia política, especialista em políticas de gênero. E também atuo dentro do sistema prisional, sendo a única mãe de santo em todo o Brasil a oferecer assistência afrorreligiosa. Atendo duas unidades prisionais, e nem preciso dizer que a maioria das mulheres que estão no sistema carcerário são pretas. Então, estou falando pra mulheres que têm a mesma origem que eu, e levo pra elas o resgate da ancestralidade.
Em algum momento da diáspora, forçaram o desencontro com a nossa cultura, e é através de mulheres, e homens também, que a gente faz o retorno dessa consciência cívica. Eu digo “cívica” porque, pra mim, hoje, a iniciação nas religiões afrorreligiosas é um ato político. Eu fazia parte de um povo e fui trazida pra outro lugar. Por mais que a gente esteja aqui desde 1500, este não é o meu território de origem, mesmo que eu tenha ancestrais aqui. Não tem como eu voltar ao continente africano agora e pedir repatriação, porque eu não vou saber nem de que nação eu era e de que país eu sou. A única forma de voltar pra África é através do estudo dos valores civilizatórios africanos.
Considerando essas suas facetas, onde se encaixa o erotismo?
MFP — Em todas. Eu sou uma mulher livre. Em nossa cosmologia, as mulheres não eram castradas: Oyá, Oxum, Iemanjá, Nanã, Obá e outras divindades femininas não foram castradas. Depois que eu fui estudar a cosmologia africana iorubá, entendi o porquê de eu nunca me enquadrar nesse modelo da mulher recatada e do lar. Desde cedo, fui rotulada como “piranha”, e carrego esse título orgulhosamente, pois ser piranha é ser uma mulher livre. Tenho mais de 30 anos de vida sexual ativa, o que me coloca em posição de quem vivencia. E não abro mão da minha sexualidade, do meu erotismo, isso é inegociável. A cosmologia dos orixás, o Itan, não menciona a abstinência sexual. Eu acho legal você estar numa relação com afinamento energético e corporal, mas a gente precisa entender que são oito bilhões de pessoas no mundo, e nem todas se conhecem fisicamente, principalmente as mulheres que na infância foram abusadas, ou foram ameaçadas de ser, e tiveram que conviver com aquela tortura, botando a sexualidade num outro lugar. Desconstruir esses tabus é parte do meu trabalho atendendo mulheres.
Quando a gente fala de orixás femininas, principalmente na umbanda, a gente percebe uma reprodução das categorias da santa cristã, como se elas não tivessem malícia, sensualidade. Mas quando a gente vai estudar a fundo, principalmente na perspectiva iorubá, tudo isso está ali na base. Como você vê a essência das iabás?
MFP — Oxum foi a primeira iabá a ir pra guerra. Ela, filha Orunmilá, pediu pra ir. Quando chegou, viu a violência e se perguntou o que estava fazendo ali, mas aí o que Oxum fez? Começou a fazer comida, porque comida é nutrição e fortalecimento. Começou a botar feitiços na comida, e o exército dela foi ficando mais forte, desenvolvendo mais imunidade, ficando mais descansado e saudável. Depois, ela pediu pra ir embora, mas não deixaram, e ela ficou observando a guerra. Foi então que teve uma ideia. Fez uma comida cheia de feitiço e mandou que levassem na tribo rival, do outro lado do rio. Aí ela foi para o rio com seu espelho, chamado de abebé, se banhou toda de mel e começou a dançar e cantar. Enquanto fazia isso, os homens da tribo rival foram se aproximando. Ficou todo mundo embasbacado olhando Oxum. Aí sentiram o cheiro da comida, comeram e ficaram sonolentos. Nisso, se orientando pelo espelho, ela foi dando sinal pro exército dela ir avançando. A tropa dela foi e pegou os rivais sem condições de batalhar. Com esse ataque, ganharam a guerra. Isso quer dizer que o abebé, e todo o erotismo de uma mulher, não são instrumentos só de vaidade, são de poder. Sem disparar uma arma, usando o erotismo, Oxum ganhou uma guerra.
Na umbanda, as pombagiras transgridem o modelo da castração, com a sabedoria de dominar as emoções e o prazer. Das suas experiências como mulher e sacerdotisa, qual é a importância de nos aproximarmos do que elas nos ensinam sobre empoderarmos nosso gozo?
MFP — Primeiro, é importante entender que a pombagira não é um orixá. Ela não é Exu, ela vem dentro de uma energia derivada de Exu. Os espíritos que se manifestam como pombagira viveram. Foram seres humanos como eu e você. E, normalmente, eram mulheres transgressoras, mais pra frente, que não queriam casar sem amor nem ser castradas. E aí essas mulheres eram expulsas de casa e, como não tinham trabalho, só podiam viver no prostíbulo. Ao desencarnar, algumas delas, por terem acumulado conhecimento, vão ser preparadas para atuarem como entidades. Mas acho que tem muita gente mal resolvida sexualmente manifestando pombagira. Nunca precisei das pombagiras pra ser mulher. Sou mulher pra caralho sem elas.
Às vezes, a pessoa vai com a intenção de buscar, por exemplo, um parceiro ou uma parceira enquanto, para trazer um caminho de autoconhecimento e prosperidade, existem muitas outras coisas que precisam ser trabalhadas por uma pombagira.
MFP — Esse negócio de pombagira fazendo amarração, sendo que ela sofreu na mão de homem, é contraditório. Você não precisa da pombagira pra trabalhar a sexualidade, é equivocado trabalhar isso. Acho que ela vai curar pessoas com problemas e dores de violência, de violações que aconteceram a partir desse uso equivocado de como o sexo se estabelece na cultura patriarcal. Acho que ela está nesse lugar. A gente acaba subestimando e despotencializando a pombagira ao colocar ela num lugar de só ser a pessoa que vai resolver o problema sexual dos outros.
Há mulheres que vêm escrevendo sobre nossa sexualidade, sobre gozo, sobre os nossos corpos.A gente tem a Carol Rocha, a Carmen Faustino, que têm se proposto a escrever contos eróticos, como um registro escrito. O que você acha disso?
MFP — A escrita é uma ferramenta que nós usamos há muitos anos. Escrever com as palavras do colonizador é doloroso, porque inúmeras vezes a gente sente dificuldade de expressar o que está pensando, e hoje eu entendo que isso tem a ver com a linguística. A minha língua nativa não é o português, é o iorubá. Então, a minha psique ainda pensa iorubá, mas eu tenho que expressar o português. Eu falo de maneira que as mulheres faveladas me entendam, que as mulheres presas me entendam. Não abro mão da gíria, não abro mão do palavrão. Pode não ser bonito, mas foda-se, as minhas manas, que vêm do mesmo lugar que eu, vão me entender. Tanto o que eu falo quanto o que eu escrevo. Quando elas leem e dizem pra mim que entenderam e que transformou elas, pronto, pra mim fez todo sentido.
A mulher é criminalizada antes mesmo de se tornar criminosa pelo sistema patriarcal capitalista. Para compreender a sexualidade, é essencial compreender esse sistema que nos silencia. A primeira vez que eu entrei na cadeia pra falar com mulheres, eu cheguei às nove da manhã. Nesse presídio, tinha um salão, então muitas delas faziam curso de unha e cabelo. E aí as mulheres foram passando por mim com cabelo arrumado, pintadas, perfumadas, tudo feito com truque, já que lá não pode entrar nada disso. Chegaram montadas e falavam: “Oi, Mãe Flávia, prazer, bênção”. Aí eu entendi que quem estava passando por mim era Oxum, Iemanjá, Iansã, Obá, Iyami Oxorongá. Ou seja, nada reprime mais uma mulher do que não poder se arrumar. E, como a gente se arruma pra alguém ver, ali eu era o evento. Morreu uma Flávia naquele dia e nasceu uma outra mulher, porque entendi o quanto o patriarcado assassina os nossos homens e nossas mulheres. O homem se torna um monstro patriarcal e assassina a mãe do filho, e quando não assassina de tiro ou facada, assassina psicologicamente, emocionalmente. E quantas mulheres não vão parar presas se defendendo desse agressor? Então, observar que a gente tem a terceira maior população carcerária do mundo em números gerais, e a quarta população feminina, é algo que a gente tem que entender quando está falando sobre sexualidade. Quantos vieses estão atravessando a sexualidade dos corpos dessas mulheres até levar elas ao encarceramento?
Não dá para tratar o erotismo de forma isolada. Tem capitalismo, patriarcado, cárcere… Chama atenção nessa história o quanto essas mulheres privadas de liberdade buscam, da forma que podem, não abrir mão de sua vaidade, porque o sistema prisional quer descaracterizá-las.
MFP — Nossos homens reproduzem misoginia, ódio, violência. E quantas mulheres ficaram caladas porque o homem faz ela entender que ele só dá atenção sexual a ela se ela for bonita? Ela fica ali quieta pra receber o quê? Uma migalha, que é o momento do ato sexual, quando ela é tocada. Esse erotismo não é o reproduzido pela cosmologia iorubá. Não é. Então, se a mulher se coloca nesse lugar, ela não vai se encontrar com essas iabás.
Como trabalhar isso?
MFP — É se desconstruir e se reconstruir o tempo todo! E, claro, escolher referências. Vou trabalhar minha questão erótica olhando pra Madonna? Não, gata, não é olhando pra Madonna, é olhando pra mulheres felizes. No meu livro, Salve o matriarcado, eu falo: se você não sabe fazer com você, você não vai saber fazer com outra pessoa.
Há um homem deitado no sofá, de costas para o espectador. Há outro homem deitado no sofá — ou seria o mesmo?— sobre o colo de uma mulher, cujas roupas são feitas de pintura e esparadrapos. A mesma cena íntima se repete algumas vezes, num interior geométrico feito de azuis e verdes. Ela lê um livro. Às vezes ele também lê. Há um abajur. Dentro de algumas pinturas, outras pinturas, como um caleidoscópio.
Por meio da repetição — de gestos, cenas, personagens e cores —, a artista Lia D Castro deixa evidente a dimensão reflexiva das pinturas e dos encontros que elas representam, tanto no sentido de espelhamento quanto no de contemplação e pensamento. Em uma delas, há a citação de bell hooks: “O amor é uma combinação de cuidado, compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança”, que acompanha as bordas da parede. Talvez todos os trabalhos de Castro estejam ancorados no amor. Não o amor burguês, que muitas vezes se confunde com exploração de gênero, mas aquele definido por hooks em Tudo sobre o amor, que é também “um espaço de despertar crítico e de dor” que é ativo, colaborativo e cúmplice — no processo da pintura ou da fotografia, nos encontros e nas trocas sociais, afetivas, financeiras, criativas e criadoras.
Além de artista, Castro é também intelectual, educadora e trabalhadora sexual, entre muitas outras coisas. Os retratos são de seus amantes e clientes, com os quais estabelece uma relação de intimidade e compromisso. Leem juntos. E ela nos convida a adentrar as cenas, como se fôssemos cúmplices daquele momento tranquilo, que em nada lembra o estigma social que recai sobre corpos e corpas dissidentes e sobre trabalhadores/as sexuais.
Talvez as obras sejam o inverso de uma sociedade estruturada por hierarquias sociais, raciais, territoriais e de gênero, ou representem o desejo de desmantelar esse “contrato” profundamente violento. É como se restituíssem a humanidade de sujeitos socialmente indesejáveis, repelidos, invisibilizados e mortos. Nas obras de Castro, vemos pessoas atravessadas por histórias e afetos, gente que gosta de descansar, de perder-se em pensamentos e devaneios, de estar perto de objetos bonitos, amigos, amores.
Dito de outra forma, as obras de Lia D Castro são um convite à criação de existências e histórias íntimas, à partilha de um lugar de afeto com as pessoas representadas, à empatia de também sentir vontade de desfrutar um momento de descanso, pausa e preguiça. Talvez elas funcionem como um espelho: nos implicando naquelas histórias como testemunhas de uma série de relações que a sociedade insiste em silenciar. Já não há inocência; as obras nos ensinaram sobre o amor.
— Os trechos acima fazem parte do texto originalmente escrito para a exposição da artista na Galeria Jaqueline Martins, entre fevereiro e março de 2023.
A arte sempre serviu como uma ponte entre o tangível e o transcendental, entre o mundano e o divino. Independentemente de serem os humanos que se aproximam das divindades ou o contrário, o que realmente importa é o fator metafísico de criar algo de valor artístico elevado. É a coexistência de mundos dentro de outros mundos. Nas obras de Gustavo Nazareno, essa essência transcendente se manifesta com um canto pictórico singular, tomado de influências do Candomblé e mistérios de Exu, o mensageiro dos orixás.
Originário de Três Pontas, Minas Gerais, Nazareno é um dos artistas brasileiros mais promissores do momento, já tendo desenvolvido uma maturidade artística impressionante para seus 29 anos de idade. Não é exagero dizer que, em seu nível de detalhamento e suas fusões entre sacralidade e sensualidade, há um quê quase davinciano: “Acredito que minhas andanças pelo mundo da fotografia, junto às inspirações nas pinturas renascentistas, me fizeram desenvolver um olhar extremamente apurado para criar uma imagem, ou melhor, me fizeram sentir a necessidade desse olhar apurado para estar verdadeiramente satisfeito com uma imagem”. O embasamento técnico, surpreendentemente adquirido por meio de seus estudos autodidatas sobre anatomia, é uma verdadeira proeza. Não é necessário ter olhos treinados para percebê-lo. Mas sua ascensão meteórica no cenário artístico não se resume apenas à sua excelência técnica.
O enorme sucesso vem sobretudo de sua habilidade de transcender fronteiras culturais, criando narrativas que ressoam com uma audiência global. Como, se não por puro talento, conseguir expor trabalhos que percorrem os ritos ancestrais africanos e a mitologia dos orixás em lugares como Inglaterra, na tão fria e enevoada Londres? Chega a ser interessante ver o mundo se rendendo à sua profunda conexão espiritual com os orixás do panteão Iorubá. “Minhas imagens”, revela o artista, “sempre retratam passagens que escrevo sobre os orixás, manifestadas em corpos humanos dentro de um universo místico e singular que habita minha mente”. De algum jeito, sua mensagem é forte o bastante para reverberar mundo afora, fazendo com que o espaço que vem conquistando seja um espaço não só artístico, mas também político: “O que trago para o tangível são as emoções desses corpos, estabelecendo uma conexão política significativa para mim”.
No cerne de sua obra reside Exu, o orixá das encruzilhadas, das dualidades e das comunicações, comumente relacionado à sexualidade e à virilidade. Se figuras católicas já foram retratadas à exaustão de forma magnânima e sensual, Nazareno apresenta um jogo de sombras com Exu em toda sua grandiosidade, ora provocador, ora sedutor, mas sempre imponente. “Sou profundamente inspirado pela missão de capturar esse aspecto dual de Exu, essa entidade simultaneamente divina e mundana, pura e profana, através do véu de sombras que emprego em meus desenhos e pinturas.” Assim, ele exalta a sexualidade de Exu a partir de um tributo aos corpos. Considerando-se um filho do orixá, conclui que “era inevitável que essa essência se refletisse no meu trabalho.”
No âmago da sua missão de resgatar narrativas outrora silenciadas e propor uma nova relação com o passado, outra figura emerge com recorrência: Maria Padilha. Como uma das mais populares pombagiras, ela não apenas personifica a sedução, mas também a resolução dos dilemas relacionados ao corpo e aos desejos humanos. Assim como Maria Madalena foi elevada à categoria de símbolo de sensualidade e redenção no Renascimento, Nazareno realiza o mesmo feito ao dar vida às entidades do Candomblé, infundindo nelas uma aura de poder e magnetismo que ressoa através das cores vibrantes e dos traços marcantes de suas obras.
Como uma voz que evoca a ancestralidade, é capaz de repensar a história da arte e ainda lançar um novo olhar sobre as filosofias provenientes da diáspora, além de destacar a riqueza e a diversidade das tradições afro-brasileiras. E, batendo de frente com o racismo religioso que ainda persiste na sociedade, chama a espiritualidade para dançar uma coreografia alternativa difícil de ignorar, que celebra e valoriza tanto a herança quanto a identidade negra.
À medida que o mundo começa a reconhecer o nome Gustavo Nazareno, podemos ter certeza de que ainda veremos muitos orixás dançando entre pincéis e cores em telas que se fazem de portais para outras dimensões, onde a espiritualidade e a humanidade se entrelaçam em um espetáculo de luz e sombra. Pois, como ele próprio diz, “Eu sou de Exu da cabeça aos pés”.
Que Exu receba suas oferendas de braços abertos. O mundo dos mortais, sabemos, já escutou o Laroyê.
O anúncio do presidente da França, Emmanuel Macron, sobre a apresentação de um projeto de lei em maio para legalizar a eutanásia no seu país levanta uma série de questões complexas. Essas questões, que abrangem religião, ética, moral e filosofia, têm dividido opiniões ao redor do mundo. Enquanto os defensores da prática destacam a importância do alívio da dor e do sofrimento insuportáveis para o paciente, assim como o respeito à sua autonomia pessoal, os opositores ressaltam a inviolabilidade da vida humana e o risco de maus usos e abusos. O debate, longe de ser simples, é uma trama intrincada que envolve múltiplas perspectivas e sensibilidades.
A proposta delineada por Macron destaca uma série de critérios rigorosos para a elegibilidade da eutanásia. Ela seria permitida somente para adultos plenamente capazes, que enfrentam uma doença incurável e potencialmente fatal a curto ou médio prazo, e cuja dor não pode ser aliviada. Essa perspectiva, centrada na autonomia do paciente, vem acompanhada de medidas de segurança para resguardar aqueles que poderiam se encontrar em situações de vulnerabilidade, como menores de idade e pacientes com condições psiquiátricas ou neurodegenerativas, os quais não seriam elegíveis para o procedimento.
A proposta também aborda o processo de decisão, exigindo o consentimento médico e estabelecendo critérios claros para a avaliação dos pedidos de eutanásia. A lei enfatizaria a importância do consentimento do paciente em lucidez plena, juntamente com a opinião médica e critérios bem definidos, para garantir que o procedimento seja realizado de forma ética e responsável. A atual legislação francesa, a exemplo da brasileira, considera a eutanásia ativa um crime, resultando em penas severas para aqueles envolvidos. Isso tem levado cidadãos franceses com recursos que buscam morte assistida a procurar países vizinhos onde o procedimento é permitido.
O caso do celebrado cineasta Jean Luc Godard, que optou pelo suicídio assistido na Suíça em 2022, foi um deles, assim como o casal de idosos que estampou muitas manchetes ao redor do mundo ao morrer de mãos dadas em uma eutanásia dupla ocorrida na Holanda. O projeto de lei busca mudar esse cenário, oferecendo uma estrutura legal para a tomada de decisão dentro da França, proporcionando assim uma opção para aqueles que desejam terminar sua vida de forma digna e controlada. A icônica cantora francesa Françoise Hardy, que está com câncer severo aos 80 anos, chegou a fazer um apelo a Macron para a implementação dessa possibilidade.
Rita Lee, que faleceu aos 75 anos, cogitou a eutanásia após ser diagnosticada com câncer no pulmão em 2021. Foi convencida pela família a desistir da ideia. “Por mim tomava o ‘chazinho da meia-noite’ para ir desta para melhor. Que me deixassem fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e consciente. Queria estar atenta para logo recomeçar meu caminho em outra dimensão. Sou totalmente favorável à eutanásia. Morrer com dignidade é preciso”, escreveu Lee, em Outra Biografia.
Casos como esses mostram que existem pessoas que veem a euntanásia como uma espécie de acolhimento ao sofrimento de quem não possui outra solução, como um meio de tornar aquele fim o mais confortável possível. É claro que, nesses relatos, há um fator socioeconômico importante que não deve ser deixado de lado. São pessoas que tinham acesso aos melhores tratamentos e que, portanto, tinham ouvido dos mais gabaritados médicos que não havia mais chances. É necessário, portanto, pensar em equidade de acesso à saúde. Se o suicídio assistido não for de fato a última opção, se os recursos de uma pessoas não possibilitarem que todas as opções de tratamento sejam colocadas em prática, ou ao menos consideradas, então a vontade individual da pessoa se torna mais uma conveniência do que uma necessidade.
É importante, aliás, deixar claro que existe a eutanásia ativa, ato médico realizado com aval que leva à morte desejada pelo paciente; o suicídio assistido, quando o próprio paciente conduz o ato que leva à sua morte; e a ortotanásia, que se caracteriza pela suspensão do tratamento de um paciente terminal, popularmente conhecida pelo “desligar dos aparelhos”. A polêmica é praticamente inevitável quando qualquer um desses é mencionado.
A iniciativa de Macron, por mais criteriosa que seja, levanta questões sobre os limites da intervenção médica, o papel do Estado na regulação dos métodos de eutanásia e a necessidade de garantir a proteção dos direitos dos pacientes mais vulneráveis. Sendo ou não aprovada, o debate sobre a eutanásia continuará a desafiar sociedades ao redor do mundo, exigindo uma reflexão cuidadosa sobre questões éticas, morais e legais que moldam nossas políticas de saúde e bem-estar.
Quando conectamos essa discussão à problemática do etarismo, ela ganha uma dimensão ainda mais profunda e complexa. Enquanto a eutanásia trata diretamente do direito à morte assistida e à dignidade no fim da vida, o etarismo confronta os preconceitos e estereótipos associados ao envelhecimento, moldando a maneira como a sociedade encara tanto a morte quanto o processo de envelhecimento em si. Do ponto de vista daqueles que estão envelhecendo, o etarismo representa um preconceito contra a própria existência, alimentado pela desconfiança nas habilidades físicas, emocionais e sociais dessas pessoas, tanto no ambiente profissional quanto na esfera familiar. Dessa forma, o etarismo priva muitos indivíduos de sua dignidade, mesmo quando ainda têm condições de aproveitar plenamente suas vidas. Em outras palavras, a dignidade acaba comprometida pela discriminação relacionada à idade — e esse é um dos argumentos centrais nos discursos pró-eutanásia.
Por essas e outras, o preconceito relacionado à idade acaba tendo peso no debate. O ideal de juventude eterna promovido pela mídia e pela cultura contemporânea muitas vezes marginaliza e desvaloriza as pessoas idosas, criando uma pressão social para que se escondam os sinais naturais do envelhecimento e perpetuando a ideia de que a velhice é algo a ser temido e evitado a todo custo. Na Amarello Tempo Vivido, edição que tem o assunto como fio condutor, a jornalista Vânia Goy escreve que “há essa ideia, especialmente no universo de beleza, que envelhecer merece desculpas ou disfarce.” E destaca, ainda, o resultado dessa noção errada tão inserida no ideário social: “Faz, sobretudo as mulheres, em busca da juventude eterna, sentirem vergonha ou lamentarem quando as rugas aparecem, a menopausa dá as caras, o corpo e a libido se transformam em comparação aos 20 e poucos anos.”
Nesse contexto, a discussão nos faz pensar sobre o valor da vida em todas as suas fases. O etarismo muitas vezes se reflete na forma como os idosos são tratados no sistema de saúde e na sociedade em geral, influenciando até mesmo suas decisões sobre o fim da vida. A falta de respeito pela autonomia e pela dignidade dos idosos pode resultar em uma negação do direito à morte assistida, mesmo em casos onde a pessoa idosa esteja sofrendo de uma doença incurável e enfrentando uma qualidade de vida precária. Por outro lado, somos lembrados da importância de valorizar e respeitar a experiência e a sabedoria que os idosos trazem para a sociedade.
Ao discutir a legalização da eutanásia, é essencial considerar, claro, os aspectos médicos, econômicos e éticos, mas também as questões sociais e culturais que moldam nossa percepção do envelhecimento e da morte. Promover uma cultura de respeito e valorização dos idosos é fundamental para garantir que todas as pessoas tenham o direito de tomar decisões sobre sua própria vida, incluindo o direito de morrer com dignidade quando enfrentam doenças incuráveis e sofrimento insuportável.
No Brasil, como não podia ser diferente, a eutanásia permanece como um tema controverso e altamente debatido. Embora a prática seja proibida no país, existem movimentos que, assim como a proposta do presidente Macron, defendem sua legalização em certos casos, especialmente quando se trata de pacientes terminais ou em situações de sofrimento irreversível. O embate entre aqueles que apoiam e os que se opõem à eutanásia reflete a complexidade moral e ética envolvida, bem como as diferentes perspectivas religiosas, culturais e filosóficas sobre o direito à vida e ao controle sobre o momento da morte.
A discussão começa no âmbito jurídico e se estende à bioética e ao biodireito, estâncias em que são avaliados princípios como beneficência, não maleficência e autonomia do paciente. Questões relativas à dignidade humana, ao sofrimento físico e psicológico dos pacientes e à qualidade de vida são consideradas essenciais nesse debate. A busca por uma abordagem mais compassiva e humanizada diante do sofrimento extremo de pacientes em estado terminal continua a desafiar os sistemas jurídicos e de saúde, evidenciando a necessidade de um debate mais amplo e inclusivo sobre o tema.
O que não muda, independentemente de qual lado você está, é que mais e mais países vêm legalizando a eutanásia. É um sinal dos tempos, muito embora saibamos desde já que o debate nunca há de cessar. Rita Lee, com seu bom humor de sempre, disse que “queria estar atenta para logo recomeçar meu caminho em outra dimensão”, então talvez, dessa outra dimensão, ela esteja de olho na proposta do presidente francês, que reafirma uma aceitação cada vez maior das práticas da eutanásia. Assim como ela, estaremos atentos.
Que o mercado editorial brasileiro tem lá suas imperfeições, todo mundo sabe. Mas há uma grande lacuna que raramente ganha atenção: a oferta praticamente inexistente de audiolivros de qualidade em português. Essa incompletude atinge, sobretudo, pessoas com deficiência visual, mas também todas as pessoas que buscam uma maneira alternativa de desfrutar da literatura. Sem audiolivros de qualidade, a solução acaba sendo a leitura assistiva — que, de acordo com o vernáculo popular, é quando um livro é lido pela “mulher do Google”. Desnecessário dizer que esse cenário está longe do ideal.
É aí que entra a Supersônica, editora que tem como objetivo fazer com que os audiolivros sejam não apenas leituras, mas sim projetos artísticos. Daniela Thomas, Maria Carvalhosa, Beatriz Bracher e Mariana Beltrão são impulsionadas pelo desejo de proporcionar uma experiência de leitura única e enriquecedora, tanto para pessoas cegas ou com baixa visão quanto para pessoas que buscam por novas alternativas de consumo literário. O cerne da missão da editora reside na convicção de que a literatura é uma jornada de descoberta e imersão, capaz de transportar os leitores para novos universos e perspectivas — então, por que não expandir essa experiência com atores que de fato interpretem aquelas linhas tão bem urdidas?
O quarteto de sócias é o conjunto perfeito para a missão. Daniela, como você talvez já saiba, é uma renomada diretora e roteirista de cinema, com grandes títulos na sua trajetória, como Terra Estrangeira (1995) e Linha de Passe (2007); já Beatriz Bracher, além de autora premiada, é editora de longa estrada, sendo uma das fundadoras da tão amada e conceituada Editora 34; e Maria, que ficou cega aos 13 anos, é uma estudante de letras profundamente apaixonada por livros. A equipe junta todas as características que a Supersônica precisa: o primor na direção de atores, o know-how profundo do funcionamento de editoras, o conhecimento enciclopédico de livros e uma habilidade mútua de abrir espaço para processos flexibilizados e aquela ajuda que é capaz de complementar, especialmente quando o caso é acessibilidade.
Cada audiolivro é concebido como um projeto completo, com atores que se entregam à leitura com a mesma paixão e profundidade que dedicam a filmes ou peças teatrais. Essa atenção aos detalhes e a busca pela excelência refletem-se na narrativa vívida e envolvente, que transcende a mera transposição do texto escrito para o formato auditivo. Mas isso não é tudo. A proposta vai além por também ter em seu DNA a curadoria. As obras são escolhidas a dedo para elevar ao dobro o impacto da leitura. Ao combinar uma seleção arrojada com uma direção artística cuidadosa, a Supersônica desafia a concepção de audiolivros que predomina por aqui, elevando-os a uma forma de arte em si mesma. Cada obra é uma experiência sensorial que estimula a imaginação e convida os ouvintes a mergulharem profundamente nas palavras e nas emoções transmitidas pela voz dos narradores.
Por meio de seus audiolivros, a editora não apenas quebra barreiras de acesso à cultura, mas também inspira uma nova forma de apreciação e compreensão das riquezas da palavra escrita.
Conversamos com Daniela Thomas, que nos contou um pouco sobre seu trabalho com atores, os pormenores dos contatos com as editoras e o que enxerga para o futuro da Supersônica.
Qual foi a gênese da Supersônica?
Daniela Thomas: Eu conheço a Maria desde quando ela era um feijão na barriga da Mari, mãe dela. É uma pessoa que eu acompanhei desde bebê. Fiquei muito chocada quando ela viveu o drama da cegueira aos 13 anos. Foi uma coisa que afetou a todos nós… Como é que uma pessoa vive depois de atingida por esse infortúnio? E a Maria era uma rata de biblioteca. Desde pequenininha, ficava às voltas com livros. E isso não mudou. Quando você conversa com ela, você entende isso. E aí eu, por meu lado, morei quase oito anos seguidos fora do Brasil, na Inglaterra, nos Estados Unidos. E, quando voltei para cá, senti necessidade de manter contato com a língua inglesa, que sumiu do meu convívio. E aí o audiolivro em inglês surgiu como opção e eu me viciei, porque era uma maneira de ler e de ouvir inglês, de me manter conectada com a língua.
Isso foi em que época?
DT: Eu voltei pro Brasil em 1986, mas isso aconteceu mais nos anos 2000. Quando descobri a Audible, tive acesso a isso e me diverti muito, porque, por exemplo, eu gostava de correr. Aí eu corria aqui na vizinhança mesmo, no verão, fazendo 30 graus, ouvindo Pais e Filhos, do Turguêniev, que se passa em grande parte de uma nevasca. Então, você tá correndo no calor e ao mesmo tempo atravessando uma nevasca. Tem uma coisa muito forte, e muito interessante, de dissociação cognitiva. Aí, por um acaso, eu ouço a Maria no podcast da Quatro Cinco Um falando sobre audiolivros — na verdade, reclamando dos audiolivros. No geral, ela consegue informação através do celular ou do computador com leitura assistiva, quando você programa o seu celular para transformar tudo o que está escrito em áudio. Mas é aquele áudio robótico, aquela voz sem expressão. Ela tem lido assim todos esses anos, com exceção de alguns livros feitos pela Fundação Dorina Nowill, mas que também não são projetos artísticos. Quando ouvi isso, falei: “Meu Deus, vou fazer um negócio com a Maria”. Eu, com meu conhecimento de atores e com a minha paixão por audiolivros; e ela com a cultura de literatura e o desejo de ter uma espécie de biblioteca de livros maravilhosos. Vamos fazer isso!
Conversamos com a Beatriz Bracher, que é uma editora experiente e uma grande amiga, além de grande autora. Ela foi a dona da Editora 34, agora é dona da Editora Chão, e isso era importante, porque a gente estava entrando em um mercado sem nenhum repertório. Foi assim que começou.
Os audiolivros que você ouvia em inglês já eram com atores? Esse é um mercado mais estabelecido lá fora?
DT: Muito mais estabelecido. Aqui a gente tinha coisas como Drummond lendo os próprios poemas e aquela experiência ótima com os Disquinhos [coleção lançada em 1960 em pequenos discos de vinil e diversas cores em que cada um contava uma história, com músicas e interpretações feitas pelo grupo Teatro Disquinho]. Mas não ia muito além disso. Eu sempre associo essa experiência à experiência de ouvir histórias dos seus pais quando você é criança. Tem algo muito afetivo, muito profundo nessa história contada para você. Tá dentro da sua cabeça.
E tem uma coisa interessante, porque pensa assim: o ator tem uma vida muito irregular de trabalho, certo? Então, é uma proposta interessante para eles, porque é um projeto artístico como outro qualquer, só que eles podem fazer isso entre um filme e outro, entre uma peça e outra, uma novela e outra. É mais “regular”, mas é um projeto artístico também, porque não é apenas uma locução. É uma coisa pensada como uma obra. A leitura em si é uma obra.
Como a Supersônica aborda editoras e autores para obter permissão para adaptar suas obras? Existe um processo específico?
DT: Não necessariamente. Com a editora Fósforo, por exemplo, a gente vive uma coisa muito particular por causa da Annie Ernaux. A Fósforo foi visionária, porque escolheu a Annie antes dela ganhar o Prêmio Nobel. Quando começamos a conversar com a Fósforo a gente propôs a Isabel Teixeira e ela adorou a ideia. Ela fala muito bem francês e tem uma experiência grande com narração. Então, a Fósforo entrou em contato com a Gallimard, que é a editora da Anne na França, porque realmente é um universo muito complexo. Tem que pagar o editor, o autor, o tradutor, muita gente.
E até imagino que isso tenha um peso na decisão de quais vocês vão ou não fazer. Quais são os critérios para escolher? Está mais pra: “esse livro é ótimo, gostamos dele”; mais pra: “esse livro tem muita teatralidade, a narração é super fluida, na voz de um ator ia ficar excelente”; ou mais para: “as condições desse são melhores”?
DT: São todas essas coisas e mais umas quatro. Mas eu acho que, antes de tudo, é a biblioteca da Maria. O que eu quero dizer com isso é: a gente tem uma editora que é a própria Maria, que é uma pessoa absolutamente apaixonada por livros. Ela leu esses livros pelo Google, pelo pelo leitor do iPhone e ela quer ler esses livros apropriadamente. Então, os livros que a interessam acabam sendo sempre um ponto de partida. Estamos abertos para os clássicos. A gente está fazendo Dostoiévski, Tolstói, Machado de Assis, James Joyce. Mas a gente também está fazendo autores novos, como uma autora do Senegal que lançou seu primeiro livro com 17 anos e foi incrível.
A Supersônica tem o gosto de alguém que junta o clássico com o contemporâneo. Tem uma pegada jovem, porque a Maria tem 22 anos, mas tem uma pegada de uma jovem apaixonada por literatura, o que acaba misturando um pouco.
Conte sobre a experiência de dirigir a leitura dos atores em estúdio. É uma questão intrigante, porque não estamos falando de um texto de um único personagem, de um texto que o ator vai encarnar um personagem. Trata-se de tudo que envolve a narrativa. Tem a participação do narrador, por exemplo, muitas vezes no meio da fala. Imagino que isso deva mudar muito o trabalho do ator.
DT: Muito! E tanto eles quanto eu estamos aprendendo a lidar com isso, sabe? Geralmente, funciona assim: lemos o livro e nos encontramos. E aí a gente começa a pensar em como é essa maneira de contar, de que maneira vamos fazer isso. A gente vai contar isso com bastante distinção entre vozes? Com muita interpretação? Ou mais distanciado? Cada livro é um narrador, né, então tem que considerar a primeira pessoa ou a terceira pessoa também. Enfim, é como qualquer projeto artístico para mim. É como fazer o elenco de um filme, tenho que fazer todas aquelas escolhas. Só que o interessante é que eu descobri que existe um pedido de “conta para mim” para o ator. Uma coisa de “eu não consigo e, se você não contar para mim, eu não tenho como saber o que está acontecendo”. E é essa conversa que eu tenho com eles. Essa conversa desperta algo no ator muito impressionante, algo que proporciona uma experiência diferente de ler pura e simplesmente. Eu sei ler, mas eu não sei contar, contar é outra coisa. Então, está sendo uma experiência muito, muito rica, tanto para mim quanto para os atores.
A sua direção chega a ser algo muito nos pormenores, de ficar atenta à inflexão das palavras?
DT: Tem hora que sim. É incrível, porque tem uma questão de interpretação. E alguma interpretação tem que vingar, sabe? A do ator ou a minha. E aí a gente negocia. Sabe o que eu acho? E a própria Maria é muito ciente disso também. Tanto é que ela participa muito do processo. No caso de Os mortos, do James Joyce, foi ela que ficou com o Caio [Blat]. Fiz o primeiro ensaio, no primeiro dia de gravação, mas ela me acompanhou até o final. Ela fala “não, essas frases, você entendeu errado, ele quis isso não aquilo”.
Recentemente, falando sobre uma gravação que ele fez de poemas escritos com Inteligência Artificial, Werner Herzog comentou que, na hora em que ele foi gravar, havia uma dúvida se deveria fazer uma voz mais robótica ou se ele colocaria humanidade na interpretação. E é claro que no final ele leu com emoção, numa inversão da voz do Google lendo um texto escrito por pessoas. Nos audiolivros, há uma batalha a ser vencida contra a IA?
DT: Quando a gente começou, falaram: “Olha, fiquem cientes que vocês daqui a pouco vão estar competindo com ferramentas automatizadas mais aprimoradas”. Eu acho que todas as coisas analógicas irão competir sempre com as eletrônicas e as artificiais, mas o charme do analógico é algo assim que convive. A gente continua visitando o Coliseu, entendeu? A gente continua indo no Panteão e ficamos lá em estado de choque. E a gente vai nas bibliotecas, a gente vai nas livrarias para tomar café, mesmo que não seja para ler, porque os livros ainda são um fetiche de conforto. Eu acho que a gente vai conviver, mas acho que vai ter espaço em suas especificidades para todas essas coisas. Artificial e não-artificial, né?
E a Supersônica entra com algo que é bem difícil de se alcançar, mesmo com uma IA, que é justamente a direção artística. Por mais que se tenha uma IA que leia com emoção, não vai ter essa direção.
DT: Além disso, eu acho que a gente é uma combinação do projeto artístico e da seleção em si. Quando eu mencionei a ideia para a Maria e para a Bia, eu falei do Mubi. O Mubi agora tá um gigante, mas, quando começou, tinha dez filmes. Você poderia pegar qualquer um desses dez filmes e seriam melhores do que todo o repertório da Netflix. Eu queria que a gente fosse um hub, queria que a pessoa fosse na Supersônica porque lá ela vai ouvir um audiolivro incrível. A seleção que a gente faz é uma seleção que vai te dar experiências maravilhosas. Então, não é só que a gente trata a gravação como obra, mas também que a gente seleciona de uma maneira que te dá uma biblioteca bacana.
Com essa sobrecarga de informações, a curadoria acaba sendo muito importante.
DT: Exatamente. É isso que eu gostaria que a Supersônica fosse: uma boutique incrível de livros. Qualquer um deles vai ter sido preciosamente escolhido e preciosamente realizado.
Quanto aos atores, como é feita a seleção?
DT: É um casting tradicional, só que, no lugar de ser para fazer um filme, é para ser o narrador. Quando eu li o primeiro livro eu falei “gente, isso é a Bel”, sabe? Essa mulher segura de si, essa mulher que é centrada, mas, ao mesmo tempo, interessada e observadora e curiosa. Achei que funcionava com ela. Elenco é sempre um mistério. Mas, quando você acerta, fica óbvio. Por exemplo, no começo a gente fez uma escolha bem, bem louca, e eu considero a nossa marca registrada. Tem um livro que a Maria considera o melhor livro da literatura brasileira, As Mulheres de Tijucopapo, da Marilene Felinto. E a Marilene é pernambucana, morou praticamente a vida adulta toda em São Paulo, mas é pernambucana, e o livro é sobre uma volta para Recife. E aí, em vez de a gente escolher alguém com sotaque carregado nordestino, a gente chamou a Roberta Estrela d’Alva, que é uma rapper, uma MC aqui de São Paulo. Imagina que tem um discurso interior, mas não com cara de pensamento, essa personagem está falando para si própria. E aí a gente arriscou com a Roberta, porque ela tem um sotaque carregadíssimo de paulistana, ela tem um calo na voz. É uma voz rascante que não é perfeita e eu gosto do defeito. Gosto que uma palavra saia um pouco fora de quadro, assim você sabe que aquela voz é de uma pessoa e não de uma máquina. Aí a gente fez, mas entrando em pânico. Felizmente, quando a gente mandou para ela, a reação foi linda. É como se o romance tivesse renascido para ela e eu gosto muito disso, do fato de ter tomado uma decisão arriscada assim. E acho que foi um dos dias mais felizes da vida da Maria quando ela finalmente ouviu o livro que ela mais ama com a leitura da Roberta.
Você falou de Dostoievski, Machado de Assis, Tolstói e por aí vai. O que mais vem pela frente pra Supersônica?
DT: Queria que a gente virasse uma livraria inacreditável, uma boutique incrível de livros maravilhosos, com atores maravilhosos e que isso se transformasse em algo natural. Meu sonho é que os audiolivros ganhem cada vez mais espaço na vida das pessoas e que a gente, a Supersônica, possa oferecer um lugar como esse. Quero que sejamos, como aconteceu com a Mubi, essa garantia de entrar e sair com um livro maravilhoso que vai te dar uma experiência extraordinária.
O que não tem nada de novo: um escritor rabugento que um dia fez sucesso hoje batalha para publicar o seu trabalho mais recente. O que dá uma nova perspectiva para a coisa toda: esse escritor é um homem negro e sua obra não é tida como uma representação da chamada “experiência negra”, o que faz com que ele escreva jocosamente, como uma brincadeira com o poder de ir longe demais, um romance apelativo intitulado Fuck (sim, Fuck), feito para pessoas brancas se sentirem menos culpadas.
Desnecessário dizer que a piada vira realidade e o livro, lançado sob o pseudônimo Stagg R. Leigh, imediatamente vira um best-seller — para o desprezo de seu verdadeiro autor, Thelonious “Monk” Ellison, interpretado pelo sempre excelente Jeffrey Wright (indicado ao Oscar por sua performance). Fica, então, a dúvida: a piada de American Fiction recai sobre a intelligentsia branca, disposta a dar voz a autores negros mas somente sob a condição de que eles escrevam um determinado tipo de literatura, ou sobre o próprio Monk, que, de um jeito ou de outro, surfa na onda do mesmo vórtex reducionista e preconceituoso da catalogação literária?
Se algum dia o autor foi minimamente benquisto pela crítica, o mundo parece ter lhe virado as costas. Com receio, seu agente lhe diz que as editoras acham que seu trabalho não é “negro o suficiente”. Talvez sua rabugice venha daí, de um desdém por tudo que o mercado literário se tornou, mas ele se soma também a infelicidades pessoais passadas. E vale um parêntesis: por que escritores são frequentemente retratados como os de mal com o mundo? Os filmes de Hollywood insistem em retratar essas pessoas como prepotentes e inevitavelmente macambúzias, muitas vezes reduzindo-as a esteriótipos enclichezados. Para ser justo, o personagem de Wright não é reduzido a isso e, além dos esforços do roteiro, o próprio ator ajuda a dar mais camadas ao que poderia ser só mais um escritor chato com mania de corrigir os outros, mas é curioso notar a facilidade com a qual os roteiristas caem nessa vala tão batida.
Seja como for, o conjunto pessoal e profissional do autor o deixou amargurado, mas isso não quer dizer que esteja disposto a sacrificar seus princípios. Ele pode estar abatido, mas não quer contar histórias de pessoas negras envolvidas em tráfico, não quer fazer com que seus personagens participem de tiroteios, não quer sentir a necessidade de concluir um arco narrativo com uma morte melodramática. A “experiência negra” de Monk, cuja família é de classe média alta, é outra e ele não gosta de ver autores negros sucumbirem às demandas de um mercado elitista e predominantemente branco. O semblante taciturno, ainda que lugar-comum, tem lá sua justificativa.
Seu pai, que se suicidou há anos, convivia com uma depressão aguda; sua mãe passa a sofrer com o mal de Alzheimer; sua irmã, que almejava voos altos e era bem sucedida na sua prática médica, tem um ataque cardíaco e morre na primeira meia hora de filme; e seu irmão, um cirurgião plástico, finalmente começa a se assumir gay para o mundo, mas só depois de um casamento de fachada que durou dez anos. Fugindo da narrativa de sofrimento padrão que é quente no mercado literário e cinematográfico, seus livros são releituras de peças clássicas do teatro grego e, por serem assim, despertam nada mais do que a indiferença das livrarias e das editoras. O que foi, já queimou o seu brio; e o que há de novo não excita mais ninguém.
Em sua estreia na direção, Cord Jefferson adapta o livro Erasure, de Percival Everett, para contar uma história agridoce que morde críticas ácidas e assopra o ferimento com todo o humor de seu roteiro e a qualidade inegável de seus atores. Além de Wright, o elenco também conta com Sterling K. Brown (indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante), Tracee Ellis Ross, Adam Brody, Issa Rae e Erika Alexander. Esse morde-e-assopra só não orna quando a mordida tenta abocanhar mais do que consegue, sobrepujando os assopros e resultando numa boca cheia demais para qualquer respiro.
No meio do conflito central do escritor em plena encruzilhada entre o dinheiro e a sua integridade moral-literária, American Fiction tem como âncora um retrato familiar complexo que circunda, e define, Monk. É onde está o coração do filme, bem mais do que nas sátiras que sobram. O que de fato bombeia o sangue da narrativa e faz com que o filme se aloje de maneira tenra na memória de quem o vê são os diálogos dos irmãos, os olhares sinceros trocados com a mãe, as demonstrações discretas de afeto — o que permite, inclusive, que muitos comentários mordazes ressoem com ainda mais pertinência. Em um filme que com orgulho pretende ser muito na cara, ter esses pés no chão é fundamental para que haja um contraponto mais sussurrado e para que, assim, o todo funcione melhor.
Muito embora exista por causa disso, o filme não é sempre grandiloquente em sua maneira de criticar, ironizar, satirizar. O berro, porém, é dado em decibéis altos em dois momentos. Um deles é quando Monk participa do júri de um concurso literário em que seu livro, escrito sob pseudônimo, é concorrente. Entre os jurados, há somente duas pessoas negras: ele próprio e a autora Sintara Golden (Rae), mais cedo vista com olhos tortos por Monk, que a considera uma artista corrompida que dá ao mercado editorial exatamente o que ele quer. Os jurados brancos estão entusiasmados com o famigerado Fuck, mas os dois advogam contra ele. No fim, eles são voto vencido e o livro sai vencedor do concurso, numa explicação quase didática de como o capitalismo opera de maneira oportunista sobre as vozes negras, envelopando as vozes que deveria exaltar. Há, no entanto, um diálogo de autor para autor entre Sintara e Monk, quando os dois estão sozinhos, que faz valer o didatismo das circunstâncias.
O outro momento de afetação — nesse caso, uma afetação cheia de si que se considera bem mais inteligente do que de fato é — gira em torno da adaptação de Fuck para o cinema, quando o diretor (Brody) quer convencer o autor a mudar o ato final, pois quer mais impacto. Como um realizador tarantinesco que “subverte gêneros” com misturas inesperadas e releituras históricas, ele procura por algo que vá pegar a plateia de surpresa. Não quer o final ambíguo e sem graça escrito originalmente. Ele procura a grandiloquência que a própria sequência metalinguística, espertinha e exagerada de American Fiction tem. É então que Monk vai sugerindo novos finais, cada vez mais ultrapassando os seus próprios limites, e é claro que a versão sangrenta é a escolhida.
A metalinguagem está entre os modismos cinematográficos mais fortes do momento, e há filmes que se beneficiam muito dela, mas aqui ela soa sobretudo como evasão elaborada, uma resposta que, no lugar de chegar a um lugar satisfatório, prefere tergiversar e fazer rodeios. Ao som de uma trilha sonora suave e sentida que rege o filme inteiro com eficiência e poesia própria, os créditos aparecem e fica aquela sensação desagradável de que todo o potencial que ali existia não foi alcançado. Uma pena.
Mas há quem defenda que os deslizes são relativos. Esse é um filme de seu tempo e, como tal, se entrega de corpo e alma ao que tem a dizer, como um rechaço ao emcimadomurismo. Os tempos atuais não estão para sutilezas, certo? Fala-se aberta e excessivamente sobre assuntos que antes eram tabu e um filme que trata da mercantilização das vozes negras talvez tenha a prerrogativa de se exceder aqui e ali. Portanto, por mais que se questione a falta de finesse de um ou outro momento, talvez eles sejam necessários para que o cenário fique o mais surreal possível — bem, é uma abordagem válida para retratar uma realidade que, sim, é bastante absurda.
Não surpreende que o filme tenha sido indicado a um bom número de Oscars e em categorias importantes (filme, roteiro adaptado, ator, ator coadjuvante e trilha sonora). Se ganhou ou não, pouco importa — no sapateado entre a crítica mordaz e o bom espírito já existe muita vitória. Sua veia humorística e seus respingos dramáticos no geral funcionam bem e, no final das contas, é melhor que sua mensagem seja explícita do que cheia de dedos. Hollywood, o mundo literário e tantos outros círculos têm a missão urgente de rever a maneira como “reconhecem” as narrativas negras. Nos Estados Unidos, no Brasil e em todo o mundo. Se é sob as condições impostas por um, não é liberdade, é brecha. Com a ajuda da franqueza de American Fiction, essas vozes negras ganham um belo empurrão para ampliar ao menos um pouco esses pequenos espaços que têm lhe sido conferidos arbitrariamente.
Monk, com muita dor e possivelmente na dúvida de quem é a piada de quem, sabe disso bem: por ora, independentemente do que às vezes nos fazem crer, o canto maior e mais livre está em suspenso e não passa de ficção mal ajambrada, datilografada com um tom que chega a ser jocoso. Quem sabe, num futuro próximo e num passado distante, ela possa ser escrita pelas pessoas que a vivem, com a liberdade de fazer com ela o que bem entenderem.
As referências éticas e solidárias foram práticas no cotidiano de africanas e africanos dispersos, esses grupos fortaleceram vínculos e foram estratégicos e articuladores para compreender as diferentes dimensões cotidianas que estruturavam as relações políticas e econômicas da coroa portuguesa. Vale dizer que os diferentes grupos étnicos que aqui chegaram unificaram forças, recompuseram seu lugar de “humanos”, reelaboraram elos destroçados pelo escravismo e foram agentes de suas próprias lutas para enfrentar o projeto colonialista. Isso foi possível pelo histórico processo de solidariedade entre os povos africanos pré-coloniais, o que poderemos chamar de agências negras, capacidades de regenerar-se e ou reintegrar-se a novas territorialidades, dispondo de recursos organizativos para mudar as relações do local. Essas experiências foram reelaboradas e vivenciadas nos microterritórios de auto-organizações negras agenciadas por mulheres escravizadas e libertas no Brasil e em outros países escravistas.
Como preconiza Clenora Hudson-Weems, em Mulherismo Africana:
“Mulherismo, autodefinição de centralidade na família; genuína irmandade feminina; fortaleza, unidade e autenticidade; flexibilidade de papéis, colaboração com os homens na luta de emancipação e compatibilidade com o homem; respeito e reconhecimento pelo outro e espiritualidade, respeito aos mais velhos, adaptabilidade e ambição; maternidade e sustento dos filhos.”
Diante do exposto identificamos que essas práticas de acolhimento sustentaram, reafirmaram e reafirmam o poder de auto-organização do povo preto e das mulheres como potencializadoras dessas comunidades.
Segundo Helena Theodoro, em Mito e espiritualidade das mulheres negras:
“Como escravizada, a mulher preta sempre foi esteio da mulher branca e contribuiu eficazmente para o desenvolvimento das famílias brancas e para a economia do país, pois também trabalhava na lavoura, sem esperar ou julgar-se credora de qualquer compensação.”
Mesmo em situações de violações e violências acometidas pelo escravismo e pós-escravismo, as mulheres foram esteio também para reorganizar as famílias pretas, com a capacidade coletiva de enfrentar e regenerar-se diante das dores e os desafios e de acreditar na força dialógica para combater o preconceito, racismo e a desumanização que moldou as relações escravistas de poder no Brasil e se perpetua até os dias de hoje. As experiências organizadas por mulheres na escravidão são sustento para lutas de emancipação das mulheres negras, e contribuem também para organizações de mulheres não negras, pois desafiaram e ainda desafiam as ordenações hierárquicas que historicamente delimitavam e delimitam espaços de possibilidades de autogestão, espaços que invisibilizaram o conhecimento sobre si mesmas e as realidades sociais vigentes e, sobretudo, as referências de afro-coletivos, espelhos para pensar outros projetos sociais econômicos e políticos partindo das agências de africanidades. As mulheres negras, na África e no Brasil, sempre estiveram à frente de seu povo e muito presentes na definiçõe de trabalhos como agricultura, colheita, banco de sementes, economia, gerenciamento, ciências, reaproveitamentos, saúde, filosofia, obstetrícia, pediatria com ações das parturientes, banco de aleitamento materno, o fazer das cuidadoras, psicólogas, contadoras de histórias, protetoras do meio ambiente, responsáveis de poupanças, inventoras de brechós, da cultura, das artes, dos artesanatos, da medicina popular, do manejo das plantas, das convivências com as adversidades climáticas e da proteção ambiental, gestoras de territorialidades, manipulações de energias e do asé, orientadoras sociais e educacionais. Esses saberes serviram para a sustentação de trocas, conhecimentos, cooperativas, economias e foram resguardados pelos saberes da oralidade.
As figuras das mulheres negras gestando famílias afetivas e religiosas crescem e resistem no período escravista e do pós-escravismo. Nesses espaços constituíram estratégias, resistências, vivências e permanências até os dias de hoje. Essas mulheres, com grandes limitações pelo racismo, excesso de vigília, torturas psicológicas e físicas, desafiavam os medos e transitavam entre as casas-grandes, senzalas, becos e vielas, canaviais e outros espaços, atentamente teciam redes de cooperação, construíam formas paralelas de organizações e poderes, retomavam as lidas diárias e relacionamentos comunitários e reconstruíam-se como povo através de suas práticas ancestrais, principais vínculos de sustentação e outras dimensões sociais de humanidade. Escravizadas e libertas faziam de tudo para desafiar as barreiras nocivas da escravização e garantir a sobrevivência e a vida do povo negro. Foram violentadas e forçadas a desenvolver todo o tipo de trabalho, braçal, mental ou corporal, subverteram as violações, conflitos, estupros e vulnerabilidades. Confinadas e vigiadas mesmo convivendo com as dores, romperam as barreiras e foram fundamentais para reconstituir os fragmentos étnicos e reorganizar novas comunidades, a exemplo dos grandes terreiros, quilombos e comunidades negras urbanas e rurais, grupos de danças e outros. As referências dos feitos organizativos e estratégicos das mulheres negras cruzaram décadas e mesmo recortadas deixaram marcas positivas de ser, pertencer, participar e conviver solidariamente, e, também, nos deixaram como legado uma multiplicidade de símbolos que recriam a memória e a história.
Vale ressaltar que em todas as organizações revolucionárias a presença de mulheres edificou as lutas sociais, territoriais e políticas negras. Para Maria Ivete Nunes Ennes, em Rio Grande do Sul, aspectos da negriute,
O legado das lutas organizadas das mulheres negras foi tirado da história oficial, porque essas guerreiras traziam como legado os modelos organizacionais das sociedades matriarcais e centravam em famílias, sejam religiosas e de afetos, como unidades e fortaleza para seguir resistindo aos grandes embates do patriarcado cristão colonialista.
Além disso, as organizações familiares afetivas cimentaram outras espacialidades, sempre trazendo a presença das mulheres como matricomunidade e matricomunitárias, compreendendo que as comunidades recriadas eram raízes para a continuidade do povo preto nos processos de escravização e pós-abolição. Essas mulheres à frente de suas famílias, consanguíneas ou afetivas, criaram redes de colaboração em parceria com os homens e, assim, recriaram seus próprios critérios para avaliarem e pensarem saídas de sobrevivências a partir de agências africanas, guardando as memórias culturais, ancestrais, e segredos que estruturam resistências e permanências através de séculos.
As mulheres mencionadas deram significados a esses elementos, auto-organizadas em redes de convivência entre diferentes grupos que realocaram narrativas dispersas, unificando os pensamentos e fazeres, e que compreendiam a necessidade de reorganizar outra dinâmica de existência para estabelecer um conjunto de forças cósmicas e humanas para reagir à escravização, restabelecendo os processos de solidariedade e reconstruindo outros caminhos, dentro de vertentes ancestrais. Centraram-se na reconstituição de famílias em que as afetividades e espiritualidades substituíssem as relações consanguíneas e assim perceberam que os fenômenos negativos que atravessavam suas vidas poderiam ser trocados por outras possibilidades embasadas na reorientação do ser e estar, ou seja, reorientadas no pensamento africano, trazendo elementos fundamentais, como o ser preto conectado ao cosmo e coexistindo. Esses diálogos são atravessados pelos sentidos, ou seja, pela reaproximação, pelos nossos corpos com textos e falas de comuna, sentimentos cooperativos, partilhados e comunitaristas, identificando na escravização a/o outra/o, mesmo de grupos diferentes na maneira de ser, em matéria e espírito, sentimentos e elementos da mesma realidade. Essa junção de coexistência trouxe profundos entendimentos e a aproximação da África dispersa e reconectada pelos sentimentos de uma ancestralidade viva africana e afro-brasileira, trazendo as mulheres como matrigestoras de uma nova existência dentro de microterritórios e matricomunidades, ou seja, espaços que trazem através de conhecimentos e segredos a importância dos elementos da natureza que edificam um pensar-fazer científico e filosófico feminino. No entanto, no Brasil todas as relações sociais negras eram e são controladas por sistemas ordenados, racistas e sexistas, avessas aos pensares e fazeres reconstruídos por dentro dos microterritórios identitários, que, mesmo vigiados, guardaram práticas de acolhimento imbricadas por laços espirituais e constituíram ações coletivas dentro de uma dinâmica reintegrativa entre sagrado, social, econômico e político, partícipes de uma força subjetiva, social africana e afro-brasileira.
As espacialidades individuais e coletivas negras a cada tempo histórico vão perdendo os vínculos comunitários. As teias relacionais e coletivas, muito presentes nessas comunidades, foram estrategicamente invadidas e moldadas pela lógica imposta ao longo dos séculos pela hierarquização pactuada pelo pátrio poder, cristianizado, evangelizado e branco, que impõe modelos de culturas, lazer, educação, organização social e espacial que delimita o acesso aos ambientes naturais e, sobretudo, continua vigiando e controlando os passos do povo negro. Diante desses contextos de violações de direitos e violências, ocasionado pelas institucionalidades racistas, as mulheres negras recriam modos articulados de mobilidades redesenhando cartografias negras, escutando e apresentando possibilidades de caminhos, reajustando pensares, falas, identificando pegadas negras, para garantirem os referenciais pensados por nossas antepassadas/os e pensar estratégias de retomarem e manterem os embriões comunitários fertilizados por práticas acolhedoras e regeneradoras das identidades africanas e afro-brasileiras, agências necessárias para rebuscar as sociabilidades negras como cimento de sociabilidade, referendadas pelos microterritórios que acolheram, cuidaram, renasceram e protegeram o povo negro ao longo de séculos. Deve-se pensar em estratégias organizativas, econômicas e políticas para garantir e estruturar a manutenção da vida e a continuidade desses embriões e reatar o compromisso firmado dentro de uma matriz familiar de afetos que foram matrigestando através da força e a ética da palavra, da partilha, da comuna, ações sociais, concebidas dentro de um sistema filosófico que traz o papel das yás para além da figura de mãe, mas como organizadoras da vida cósmica, humana e comunitária. Voltar a ser é restabelecer outros princípios éticos para pensar sociabilidades comprometidas com o respeito à vida e à continuidade coexistencial. Essas relações de vida estão dentro de um sistema vivo que as mulheres negras edificaram para garantir a sobrevivência do povo negro e que podemos chamar de matricomunidades.
Nota: Os grandes embriões comunitários representados por espaços ou símbolos como pedras, cachoeiras, amuletos, árvores, rios, animais, estrelas, lua, sol, rurais ou urbanos, com representações materiais e simbólicas, organizadas no período do escravismo, foram cuidados e vigiados por mulheres que garantiram o resguardo de um potencial histórico e oral que permitiu a manutenção das espiritualidades de origem africana e todos seus elementos simbólicos que reconstituíram um legado com seus segredos e elementos sagrados que chamamos de matricomunidade.
A obra de Luiz Zerbini é profundamente enraizada em uma prática contemplativa e reflexiva, como observa o crítico e professor de história da arte Tiago Mesquita no livro Zerbini: Sábados, Domingos e Feriados. Sendo assim, parece natural que, desde 2013, nos períodos em que desfruta de férias, o artista venha explorando paisagens como um exercício lúdico de pintura. Fazendo isso já há algum tempo, ainda que produzidas sob pretextos e processos diferentes, há um conjunto bastante considerável a ser visitado. Mas essas pinturas nunca foram totalmente reveladas ao público, mantendo-se reservadas aos círculos mais íntimos de Zerbini. O recém-lançado livro-catálogo da editora Cobogó muda esse cenário e, pela primeira vez, podemos nos debruçar sobre obras cuja gênese é a descontração e o registro emotivo. Fazê-lo, no fim, é analisar as madeixas da produção principal de um artista notoriamente inventivo e profícuo, algo que, para além da divulgação da extensão de um corpo de trabalho consagrado, pode ser elucidativo dos mecanismos de sua intuição.
Mesquita, organizador do livro, descreve essas produções inéditas como “objetos reflexivos que ajudam a construir um repertório de temas, imagens, sugestões compositivas e poéticas, nutrindo suas obras maiores”.
Luiz Zerbini é conhecido por desenvolver mosaicos visuais de cores vibrantes e disposições geométricas surpreendentes para pinturas, instalações e desenhos de maneira tanto figurativa quanto abstrata. No seu processo, as formas desmembram-se em traços sinuosos para evocar a vegetação tropical ou revelar ricas padronagens criadas a partir de texturas variadas.
Um dos representantes-mor da famosa Geração 80, que causou burburinho ao experimentar e abraçar as mais diversas linguagens artísticas, Zerbini já participou da Bienal Internacional de São Paulo e de tantas outras exposições importantes, além de possuir inúmeros trabalhos em coleções públicas, entre elas o Inhotim, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o Museu de Arte Moderna de São Paulo e o Itaú Cultural. Por essas e outras, é um dos principais nomes da arte contemporânea latino-americana.
Sabendo de toda essa relevância, Tiago Mesquita logo acalma os ânimos dos entendidos, preparando-os para o que vem a seguir: “Essas paisagens são atípicas na trajetória de Zerbini. São telas pequenas, produzidas rapidamente, destituídas dos complexos jogos de padrões, cores e espaços que permeiam suas pinturas recentes. São obras feitas in loco, diante do tema, em uma tentativa delicada de capturar o que é visto, sem retoques ou ajustes posteriores no estúdio. Zerbini age com rapidez, tomando decisões e resolvendo problemas com instrumentos e materiais ao seu alcance, sem precisar de planejamentos minuciosos.”
Nesse sentido, as paisagens pintadas por Zerbini durante suas viagens de férias não são meras representações visuais, sendo também manifestações orgânicas e naturais que servem como resposta às sensações produzidas pelas cercanias geográficas e afetivas da vez. As ponderações e preparações prévias são deixadas de lado, assim como os aprimoramentos posteriores. Qualquer coisa que descaracterize a proposta de leveza está fora de questão. Simples assim, o artista testa ideias e aprimora suas habilidades.
Mesmo diante das adversidades que fazem com que o retiro vire necessidade, como nos tempos turbulentos de pandemia, Zerbini encontra inspiração e vitalidade em suas paisagens, sem cair na onda catastrófica que se fazia preponderante nos noticiários e nem muito menos numas de redenção exagerada, como tantas obras sobre o período. Muito pelo contrário, essas pinturas se prontificam a amplificar a beleza da natureza, refletindo significados que se aprofundam pelas condições históricas que direta ou indiretamente moldam o mundo ao nosso redor. “A ordem que ele procurava nas vistas daquela época não era oposta à hecatombe, era um modo de viver que tinha como assombração essa morte que se avizinhava. Embora sejam vistas encantadoras, as pinturas não são nostálgicas nem idealizadas. De maneira sutil, sem tocar no assunto, parecem falar, em sua contemplação reflexiva, das condições históricas que a produziram.”
A análise presente em Sábados, Domingos e Feriados destaca como as pinturas de Zerbini capturam mais do que às vezes é esperado de paisagens pintadas, coletando em cada escolha as complexidades e as contradições da vida contemporânea. Nessas telas, elementos do cotidiano se mesclam harmoniosamente com a paisagem, criando composições que são ao mesmo tempo ordenadas e desordenadas. Com astúcia, Mesquita observa como “mesmo em telas lindas que tratam da chuva”, há uma sensação de estabilidade e firmeza, onde “os elementos ainda permanecem firmemente ancorados na estrutura da paisagem”. É como se os recortes propostos pelo artista tivessem movimentos e argumentos para chamar de seus, conduzindo os olhares e as reflexões aos mais reais e enigmáticos lugares.
Essa capacidade de equilibrar ordem e desordem, estabilidade e transformação, calmaria e agito, é uma das características mais marcantes dessas obras singelas. “Tal atenção meditativa à composição”, observa o crítico, “não busca pacificar ou homogeneizar a cena. Ainda que afinados, os elementos seguem contrastados.” Essa dialética entre ordem compositiva e os resíduos que vagam por ela deixam claro que, mesmo nos momentos de lazer e descontração, o artista não renega a sagacidade de seu olhar artístico-social, propondo e pincelando interpretações que são amplas o suficiente para que cada pessoa diante delas enxergue o que sua percepção delimita.
Como conclui Mesquita, “as pinturas são esses pequenos achados e todas as suas sugestões e ambiguidades”, convidando o espectador a contemplar não apenas horizontes, vegetações exacerbadamente verdes, raios de sol e grãos de areia, mas também as histórias e os significados que residem dentro de cada uma dessas divindades.
No pulsar da vida, descompromissos que têm muito a dizer. Nas páginas de Zerbini: Sábados, Domingos e Feriados vê-se reflexões pertinentes e maleáveis sobre a condição humana e o mundo ao nosso redor. São mais do que se captura à primeira vista: são pequenos achados, ambíguos e altamente sugestivos, que contêm o universo.
Nos últimos anos, temos testemunhado uma mudança significativa nos hábitos de consumo. Chame de “consciência ambiental”, de “redução de custos”, de “quero ser a mudança que desejo ver no mundo”, de o que quiser — mas, no fim, tudo isso acaba sendo impulsionado pelo crescente interesse na economia circular e, claro, no desenvolvimento sustentável. E, por se tratar de uma indústria que causa um impacto ecológico substancial, tais transformações têm acontecido com força especial no mundo da moda. Analisando em retrospecto, talvez até tardiamente. Seja como for, o fato é que os brechós estão em alta. Mas o que está por trás do hype?
Os brechós que vemos por aí, e sobre os quais falamos mais do que nunca, têm algo eloquente a dizer sobre o momento atual do consumo da moda: cada vez mais pessoas estão optando por esse modelo de negócio como uma alternativa consciente e bem mais acessível, gastando menos dinheiro, tomando a missão de preservar o futuro para si e reconhecendo o papel fundamental que os brechós podem exercer nesse propósito. A conta é simples: a extensão da vida útil das roupas é a redução dos preços e do desperdício. Nem sempre é assim, mas, neste caso, o que é bom para o bolso também é bom para o planeta.
No começo, o fenômeno se deu sobretudo devido à inflação e a necessidade de economizar — ou seja, comprar itens previamente usados é, sim, sobre gastar menos dinheiro. Mas não só. Nos últimos anos, as perspectivas sobre o assunto mudaram significativamente e os hábitos de compra estão evoluindo, sendo a manifestação de um novo comportamento ambientalista. Fala-se muito em reciclagem, em não comer carne e em tantas outras ações que seriam boas para o meio ambiente, mas raramente se fala sobre um consumo consciente da indústria da moda. Porém, ela produz em quantidades que estão bem longe de serem minimamente sustentáveis e o consumo excessivo, alimentado pela moda rápida, tornou-se um dos maiores inimigos do nosso planeta.
Só entre 2000 e 2015, o consumo de roupas global aumentou 60%. A cada ano, o mundo consome cerca de 130 bilhões de itens de roupa. Estações mudam e mais roupas aparecem nas vitrines, gerando mais e mais produtos que em breve serão descartados, desvalorizados de maneira estratégica pelo próprio mercado que os produziram. Tudo isso resulta em um enorme desperdício e todo esse processo de produção cria uma poluição imensa. O impacto ambiental de uma peça de roupa de moda rápida é estrondoso. Temos os campos de algodão, que consomem uma alta quantidade de água (e que não param de se expandir); temos os plásticos e o papelão para transporte, que se tornaram indispensáveis; temos as fábricas consumindo muitos recursos e energia; temos um sem-fim de uso indevido de recursos.
Doar ou revender uma peça de roupa é prolongar o ciclo de vida do item, mantendo-o fora dos aterros sanitários ou do fundo de nossos armários. À medida que mais pessoas adotam a economia circular e optam por brechós como uma forma de consumo mais barata e sustentável, testemunha-se uma mudança cultural significativa em relação ao modo como percebemos e valorizamos nossas posses. Aos poucos, a mentalidade de consumo excessivo e descartável perde força em prol de uma abordagem mais consciente e responsável em relação aos recursos finitos do nosso planeta.
Essa tendência está se expandindo também porque as roupas de segunda mão se tornaram mais acessíveis com a proliferação de aplicativos, como a plataforma Enjoei, e lojas especializadas na revenda de roupas, como o brechó Peça Rara. Em vez de seguir o padrão tradicional de produção, uso e descarte, a economia circular busca manter os recursos rodando pelo maior tempo possível.
Como esses itens não são novos, seus preços são significativamente menores. E “previamente usados” não significa que as roupas estão desgastadas. As lojas de roupas de segunda mão geralmente selecionam os itens antes de oferecê-los para revenda. É também uma oportunidade para adquirir produtos de alta qualidade, roupas de marca ou itens únicos que, de outra forma, seriam excessivamente caros quando novos, tudo a preços mais acessíveis.
Em vez de seguir as tendências da moda que mudam rapidamente, os consumidores são incentivados a valorizar a qualidade, a durabilidade e o estilo atemporal das roupas encontradas nos brechós. Esqueça a fast fashion. Eis um categórico rala-peito direcionado à mentalidade do “descartar e substituir” que por tanto tempo reinou. Ao conectar fornecedores e consumidores em um ciclo virtuoso, empresas como o Peça Rara estão demonstrando o potencial da economia circular na transformação da indústria da moda. A mudança para uma moda mais sustentável é uma escolha individual e uma necessidade urgente diante dos desafios ambientais que enfrentamos. A economia circular visa reduzir nosso impacto no planeta e os brechós são aliados nesse objetivo — combinados, é possível moldar o futuro da moda em direção a uma indústria mais ética, sustentável e consciente.
Essa mudança não acontece apenas em nível individual, mas também está impulsionando mudanças sistêmicas na indústria da moda e além. Empresas estão sendo incentivadas a adotar práticas mais sustentáveis, desde a produção até a embalagem e distribuição. Os governos estão começando a reconhecer a importância da economia circular e estão implementando políticas e incentivos para promovê-la.
O que acontece na moda, claro, é um reflexo do que acontece no mundo. A transição para uma moda mais sustentável e consciente reflete não apenas uma mudança nos hábitos de consumo, mas também uma mudança fundamental na mentalidade coletiva em relação ao modo como interagimos com os recursos do nosso planeta. A economia circular não se limita apenas à moda, mas abrange todos os aspectos de nossa vida cotidiana, desde o consumo de alimentos até a gestão de resíduos. Nos brechós, vemos a economia circular em ação de uma maneira tangível, o que por si só é uma motivação extra.
Não faltam motivos para levar as pessoas a comprar em brechós. Da economia à preocupação ambiental, há uma transformação em curso — uma peça de roupa por vez.
Há uma frase famosa de Gertrude Stein, escritora e figura emblemática para as artes do começo do século passado, que diz: “você pode ser um museu ou pode ser moderno, mas você não pode ser os dois.” Ela representa bem o espírito de uma época. Pode parecer mentira, mas houve um tempo em que Pablo Picasso passou por maus bocados, pelejando para conseguir que suas obras fossem recebidas de braços abertos pela crítica especializada e pelo público geral. Mesmo na Europa, onde era reconhecido mas pouco celebrado, seu nome não era sinônimo de genialidade e isso, mais de 100 anos depois, soa um tanto absurdo.
Se pensarmos nas Américas, em especial nos Estados Unidos, a situação era ainda pior para o pintor espanhol: na terra do Tio Sam, que em breve, com o advento das Guerras, se tornaria o centro do mundo, ele era ridicularizado por praticamente toda a elite consumidora de arte. Talvez seja óbvio dizer que a arte que desafia o establishment daquele presente sempre será vista com olhos tortos no início, mas, considerando o impacto que a arte moderna e o próprio Picasso tiveram no restante do século XX, é uma obviedade que precisa ser posta na mesa.
No período em que a arte moderna emergiu, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, o público americano, em geral, não demonstrava interesse por obras que fugissem do padrão clássico. Os estadunidenses com poder monetário, capazes de adquirir obras de arte por boas quantias, simplesmente não tinham apreço pelas vanguardas europeias. Até mesmo a classe artística era hostil com ela, como evidenciado pela famigerada exposição de arte moderna Armory Show, realizada em 1913, na progressista Nova York, que resultou em protestos e na queima de pinturas do agora lendário Henri Matisse. Por essas e outras, é importante compreender que a história da arte não é estática, mas se reconfigura com a ascensão de novos movimentos artísticos.
A dinâmica do mundo da arte sempre esteve vinculada a duas perguntas fundamentais: o que é considerado arte; e, se arte, é considerada boa. Quando surgiram movimentos de vanguarda, as pinturas de Picasso não foram imediatamente reconhecidas como boa arte — em especial, por aqueles que se diziam experts. É algo que ocorre de tempos em tempos (o mesmo ocorreu com as obras de Jackson Pollock e Andy Warhol décadas mais tarde). A definição do que, afinal, é boa arte é um processo, um desenvolvimento no qual galerias, negociantes, colecionadores, museus e críticos desempenham papéis cruciais, sempre em consonância ao contexto político. Quando essas partes estão em sintonia, o que pode acontecer anos depois que um movimento artístico tem o seu ápice, um mercado de arte se estabelece, transformando as criações do artista em peças que vão do estúdio para colecionadores e museus. Sem isso, por mais brilhantes que possam ser, tais peças acabam em lugar nenhum.
Os movimentos estavam ali, quiçá no auge de sua produção, mas ainda não tinham a relevância que viriam a ter mais tarde.
O livro recente de Hugh Eakin, Picasso’s War: How Modern Art Came to America (ainda sem tradução brasileira), trouxe à tona o desconhecidoJohn Quinn, um advogado nova-iorquino enérgico e culto que surpreendentemente surge como uma figura central nesse cenário em evolução da arte moderna. De acordo com o autor, Quinn estava em uma missão de “colocar a civilização americana na vanguarda do mundo moderno”. Sua influência foi expressa não apenas por meio de aquisições ousadas — no início, comprava essas peças para si mesmo, fazendo o mercado girar a partir do próprio bolso —, mas também por suas iniciativas para eliminar tarifas de importação sobre a arte moderna no começo do século XX. Antes de suas intervenções, enquanto essas tarifas eram obscenas, impostos sobre artes clássicas não existiam. Pensada com esse propósito ou não, era uma manobra tributária que favorecia a produção artística do passado e ignorava a do presente. Com muito suor, dedicação e algumas artimanhas sociais, a visão de Quinn foi fundamental para tornar viável a exposição e a venda de pinturas europeias contemporâneas nos Estados Unidos, o que ajudou a globalizá-las.
A partir desse ponto, movimentos como o Expressionismo e o Cubismo encontraram solo fértil para florescer. A vanguarda europeia que inspirou a Semana de Arte Moderna no Brasil, em 1922, subiria degraus de abrangência e se colocaria no panteão que reivindicavam desde o início. Aos poucos, com uma mentalidade pós-guerra mais aberta sendo criada, um espírito de inovação se alojou no peito de muitas pessoas e coleções privadas e públicas começaram a se enriquecer com obras de artistas modernos, consolidando um movimento que inicialmente fora enfrentado com resistência. Com a tarifa tributária derrubada, o caminho estava livre para o lucro; com a nova mentalidade, o caminho estava livre para a apreciação. Outros colecionadores e galeristas começaram a apoiar artistas modernos, fazendo com que a abertura de galerias ousadas e a disposição para desafiar as convenções se tornassem uma marca registrada desse movimento.
Nesse contexto, as redes de apoio cultural exerceram influência significativa, com intelectuais e artistas locais contribuindo para a formação de um ambiente propício à aceitação da arte moderna. Essas redes facilitaram a troca de ideias, exposições de obras e estabelecimento de diálogos interculturais, fortalecendo os alicerces para a disseminação do movimento. Com isso vem a aceitação das instituições culturais, como museus e galerias de arte.
Um grande marco da chegada definitiva da arte moderna europeia nos EUA, e isso sendo um espelho para a celebração da modernidade mundo afora, foi a inauguração do MoMa, em 1929. No começo, suas instalações eram humildes, mas, com o tempo, foi ganhando mais e mais espaço. Em 1939, sediou uma famosa retrospectiva do trabalho do então experiente Pablo Picasso. Aos trancos e barrancos, numas de “contra tudo e contra todos”, John Quinn foi o pontapé inicial para uma espécie de revolução — uma que já acontecia há algum tempo, mas que, com esses empurrões, recebeu um laivo de dimensão e permanência.
Ao observar o impacto da arte moderna em escala global, torna-se evidente que sua influência transcende fronteiras e muitos artistas envolvidos se tornaram ícones culturais cujo legado persistirá enquanto a humanidade for humanidade.
E tudo isso nos faz pensar um pouco na questão: o que é o gosto?
Tomando essa história como referência, é seguro dizer que o gosto das pessoas foi alterado. O que antes não agradava passou a agradar e há quem simplifique tudo com noções de “bom” e “ruim”, ou resuma o debate a preferências pessoais. O interessante de se discutir o tema é refletir sobre o que levou a essa reação positiva ou negativa, que, sim, são genuínas. Mas serem genuínas não quer dizer que não foram resultados de uma intrincada miríade de fatores que vão bem além da constituição inata de um indivíduo. Há cultura, há contexto sociopolítico, há contexto pessoal, há técnica, há falta de técnica, há conceito, há falta de conceito, há uma série de agentes que determina o gostar ou não-gostar de uma geração de artistas. Se dependêssemos do bom gosto da sociedade na segunda metade do século XIX, talvez nem soubéssemos quem foi Picasso, Matisse e Dali.
Quantos artistas não tiveram suas trajetórias ocultadas pelas circunstâncias, não só nesse período mas em toda a história?
É natural que os gostos mudem. Todos somos frutos do nosso tempo — mesmo esses artistas que fizeram com que o tempo tivesse que correr mais rápido. A história da arte é um constante diálogo entre o passado e o presente, e a arte moderna é uma expressão vívida desse diálogo. Recusar-se a abraçar novas formas de arte em nome de um apego nostálgico ao passado ou a um determinado arcabouço técnico é privar-se da riqueza e da diversidade que o cenário artístico contemporâneo oferece. A verdadeira apreciação da arte reside na capacidade de reconhecer e valorizar a inovação, a experimentação e a expressão individual, independentemente das normas estabelecidas. Ao abraçar tanto as formas tradicionais quanto as expressões artísticas contemporâneas, construímos uma narrativa inclusiva e enriquecedora que reconhece a evolução natural da cultura e da sociedade.
A platitude está errada: gosto se discute, sim, senhor. A ele não se opõe, é verdade, mas sobre ele é possível se debruçar de maneira respeitosa, pois isso gera esclarecimento sobre a agência de fatores externos naquilo que, em tese, nos define de uma maneira íntima. Nada é mais humano que a arte e dela se tira valiosos insights sobre os espectros que nos delimitam enquanto seres racionais. A verdadeira apreciação da arte reside na habilidade de abraçar a mudança, valorizando a expressão individual e reconhecendo que a inovação artística é um reflexo constante do movimento da condição humana.
Em um mundo em constante transformação, a arte permanece como um testemunho poderoso da capacidade humana de criar, questionar e redefinir constantemente os limites da criatividade. E saber quem somos enquanto sociedade e pessoas é fundamental no meio disso tudo.
Ao longo da história da arte diversos materiais e técnicas são utilizados para encarnar questões humanas, alguns atravessam o tempo dialogando com meios e suportes jamais imaginados por aqueles que os desenvolveram no passado remoto. A produção de utensílios e representações em barro queimado tem origem ainda no período pré-histórico seguindo até os tempos atuais, desta forma sua existência se confunde com o tempo da própria humanidade.
Gabriella Marinho é mulher negra, artista, reside na cidade de São Gonçalo e utiliza a cerâmica como o seu principal meio de criação. Em seus trabalhos encontram-se a história da cerâmica e também o processo de investigação sobre si. O contato modelagem divina do ser humano em mais de uma cultura ao redor do globo, a trouxe indagações que são visíveis no seu fazer artístico. A reprodução da forma humana, sobretudo feminina, demonstra como o conceito de beleza foi traduzido em cada período histórico. Em seu trabalho Gabriella submerge subjetivamente no ato de construção de si através da experiência artística, seus objetos, máscaras e retratos são meio de descoberta e de comunicação com o mundo pelas lentes de uma mulher com potencial para conhecer e dizer sua própria história, sua própria beleza que vai além das curvas do corpo idealizado.
Do barro ao corpo: A Experiência Feminina na Cerâmica* me parece a tradução da vontade de ocupar o espaço com seu corpo além do envasamento, do acabamento, é a busca no processo que revela em cada peça um encontro com origens e anseios que tanto são propiciados pelo material quanto ditos através dele. Além da cerâmica propriamente dita, Gabriella tem trabalhos sobre outras superfícies, podendo flertar com meios de produção que propiciem uma conversa milenar entre a versatilidade do barro e as novas possibilidades de investigações e experimentações nos corpos.
Nessa altura do campeonato, já está claro: a criação de inteligências artificiais levanta um sem-fim de preocupações éticas desde o estágio inicial de seu desenvolvimento. As decisões dos criadores e engenheiros — tão humanos quanto qualquer um de nós — desempenham papel crucial na definição dos valores que essas máquinas incorporam. Surge, então, um cenário ético complexo ao, primeiro, escolher os princípios que nortearão o comportamento da IA e, segundo, ao tentar entender como essas escolhas impactam a sociedade. Apesar de parecer um tanto alarmista, a verdade é que essas pessoas detêm as rédeas de boa parte do futuro e do presente do que entendemos como sociedade.
O livro Ética na Inteligência Artificial de Mark Coeckelbergh, lançado no Brasil pela Editora Ubu, proporciona uma análise abrangente dos novos desafios decorrentes desses avanços que já não parecem mais escolhas e sim inevitabilidades. Antes mesmo da ascensão de modelos gerativos como o chatGPT, Coeckelbergh se dedicava ao estudo das implicações éticas relacionadas ao desenvolvimento de IA e, portanto, é alguém que tem o que dizer. Seu livro de agora visa conscientizar o leitor sobre as inovações incorporadas de forma invisível em tecnologias do cotidiano, além de levantar questões importantes sobre a vida prática da tal ética, abordando preocupações sobre responsabilidade, privacidade e viés. A obra abrange desde narrativas influentes sobre o futuro da IA até questões filosóficas sobre a natureza humana. Sendo bastante acessível, é um acerto.
A reflexão ética proposta por Coeckelbergh transcende as ações e capacidades da IA, mergulhando nas implicações morais que existem a partir do momento mais incipiente de sua criação. As tomadas de decisão dos criadores, programadores e engenheiros no desenvolvimento das tecnologias inteligentes é o que determina os valores incorporados nas máquinas, sendo que a transparência no desenvolvimento de algoritmos e sistemas é uma peça-chave na abordagem ética. Se assegurar a responsabilidade e a confiança na utilização dessas tecnologias for, de fato, um objetivo, a compreensão clara dos critérios de treinamento, fontes de dados e processos de tomada de decisões é o passo inicial. O sigilo excessivo em torno dos modelos de IA, como aponta o autor, naturalmente cria uma barreira de distanciamento para lá de perigosa, pois os usuários raramente estão cientes das bases sobre as quais as decisões automatizadas são tomadas. A compreensão clara dos critérios de treinamento, fontes de dados e processos de tomada de decisões anda de mãos dadas com a missão de responsabilidade e de confiança dessas tecnologias.
E há camadas sobre as quais nem todo mundo pensa. Quem é responsável por ações prejudiciais ou decisões equivocadas tomadas por uma IA? Se um carro que não usa motorista humano tiver que fazer uma escolha rápida no trânsito e isso resultar em algum acidente, quem se culpabiliza? Como atribuir responsabilidade em situações em que a autonomia da máquina desempenha um papel significativo? Esses dilemas exigem abordagens claras e sistemas de responsabilização para garantir que a IA seja utilizada de maneira ética e justa.
A necessidade de abordar questões como essas é incontestável, até mesmo pelo maior dos entusiastas, e diversas iniciativas buscam integrar princípios éticos na formulação de políticas para esse campo. A busca por diretrizes éticas robustas na interação com a inteligência artificial é fundamental para garantir que o progresso tecnológico esteja alinhado com os valores humanos e que as IAs contribuam positivamente para o avanço da sociedade. O diálogo contínuo e a colaboração entre comunidades éticas, desenvolvedores e usuários pode fazer a diferença nos moldes de futuro que estão se formando.
Entretanto, a complexidade do cenário demanda uma cuidadosa reflexão sobre quais ações devem ser tomadas e como orientar essas políticas. Ética na Inteligência Artificial nos diz que, se analisarmos várias propostas e iniciativas, será possível notar que: muitos documentos começam justificando a necessidade de políticas éticas para a IA, articulando princípios que servirão como base para recomendações específicas; esses princípios, frequentemente, derivam de códigos éticos profissionais e princípios éticos gerais; e diversas propostas rejeitam a ideia de uma IA superinteligente que assumiria o controle, concentrando-se em questões mais imediatas, como viés algorítmico e falta de compreensão dos desenvolvedores sobre seus próprios sistemas.
Governos, como o dos Estados Unidos, enfatizam a autorregulação da IA, com intervenção governamental focada na monitorização da segurança e justiça das aplicações. Na Europa, muitos países incorporam a ética na IA em suas estratégias, destacando a importância da “IA explicável” para garantir a transparência e o direito à explicação, com uma abordagem centrada no ser humano. Princípios comuns, como transparência, responsabilidade, justiça e explicabilidade, são destacados em várias propostas, apesar das nuances culturais e abordagens específicas de cada região ou setor. Essa convergência destaca a grande questão global que justifica a leitura de Ética na Inteligência Artificial: é necessário domar o que estamos criando antes que seja tarde.
Coeckelbergh destaca outro ponto que parece ignorada, talvez por soar como um filme de ficção científica (Spielberg que o diga). Como lidar com uma inteligência capaz de sentir? Como tratá-la, vamos dizer, de maneira humana?
A controvérsia em torno da suscetibilidade moral na inteligência artificial desencadeia uma reflexão profunda sobre nosso relacionamento com entidades artificiais. Ao imaginarmos uma IA superinteligente, surgem questionamentos sobre a moralidade de desligá-la, e até mesmo sobre a aceitabilidade de interações mais próximas. Pesquisas mostraram que, já nos dias atuais, pessoas criam empatia por robôs e hesitam em causar mal a eles. O caso real do cão-robô Spot, que foi lançado por seus desenvolvedores para testar justamente a empatia das pessoas perante à inteligência artificial, mostra respostas surpreendentemente empáticas. Ou seja, seres humanos não exigem muito de agentes artificiais e logo projetam sobre eles traços de pessoalidade ou humanidade. O exemplo do cão-robô Spot destaca a crescente necessidade de considerar a ética nas interações com entidades artificiais que podem se tornar parte integrante do nosso cotidiano.
A complexidade emerge quando confrontamos a ideia de responsabilidade moral em relação às IAs. A abordagem convencional, considerando as IAs como meras máquinas sem propriedades similares às humanas, é desafiada pela crescente intuição e experiência moral que nos leva a hesitar em maltratar uma IA. Diante disso, diferentes perspectivas éticas são apresentadas, desde a posição mais intuitiva que vê as IAs como ferramentas sem obrigações morais, até argumentos baseados na ética da virtude ou dever indireto. A controvérsia se intensifica quando se explora como as relações sociais, linguagem e cultura humana desempenham um papel na atribuição de status moral às IAs. A ideia de que esse status dependerá de como estão inseridas em nossa vida social sugere que, assim como tratamos animais de estimação, a moralidade em relação às IAs pode ser moldada pela interação humana, contexto e cultura.
Essa controvérsia não apenas instiga a ponderar sobre o status moral das IAs, mas também a repensar nosso papel enquanto juízes morais em um mundo cada vez mais permeado por tecnologias inteligentes. A intrincada trama ética que envolve a inteligência artificial torna evidente que a responsabilidade humana na concepção dessas tecnologias desempenha um papel determinante na definição dos valores incorporados por essas máquinas. Mark Coeckelbergh oferece uma análise perspicaz e para-todos dos desafios. Seu trabalho ressoa com ponderação e esclarecimento, o que é louvável considerando o terreno incerto sobre o qual pisa.
O desafio é abraçar divergências para, em conjunto, fazer com que as inteligências artificiais alcancem todo o potencial benéfico que têm. Mas a jornada ainda é longa e pode seguir em qualquer direção.
Estamos em pleno 2024 e, para a surpresa de alguns e incredulidade de outros, os ventos parecem soprar a favor do barco das relações não-monogâmicas. Esqueça o clichê do amor livre hippie que costumava vir à mente quando se pensava em conceitos que gravitavam em torno de um relacionamento afetivo mais abrangente. Esteja você a bordo ou não, o não-monogamismo consensual está aqui e, ao que tudo indica, não vai recuar tão cedo.
Na verdade, esse tipo de relação é um fenômeno bastante presente em todo o mundo há algum tempo, inserido inclusive em acordos matrimoniais. Paulatinamente, o processo de mudança comportamental vem acontecendo. É como diz a escritora e psicanalista Regina Navarro Lins: “Não foi de uma hora para outra que a separação foi considerada normal. Veio vindo. Quando você olha agora, não sabe dizer o momento exato em que se separar deixou de ser uma tragédia. É a mesma coisa com as relações múltiplas.”
Ou seja, o casamento, outrora uma instituição selada em parte pelo moralismo e em parte pelas convicções, agora se vê desafiado, e talvez até encorajado, pela crescente aceitação desse novo modo de se relacionar.
Antes de qualquer coisa, é importante colocar os pingos nos is. A não-monogamia não é exclusivamente focada na diversidade de relações, mas sim no rompimento com as normas monogâmicas, o que quer dizer que há variações de relacionamentos que se encaixam nessa ideia. “Poliamor” é a possibilidade de se envolver sexualmente com mais de uma pessoa, mas é também poder ter um envolvimento afetivo com alguém de fora da relação central. Já “relacionamento aberto” trata da possibilidade de relações sexuais casuais que não envolvem amor, sendo os episódios extra-relação mais pontuais e sem envolvimento emocional. E se de um lado do espectro está a monogamia, em que há exclusividade total com o parceiro ou a parceira, no outro extremo, há a “relação livre”, em que não existem regras e nem centralidade entre as relações.
Nomenclaturas como essas ganharam destaque sobretudo a partir de 1972, quando George e Nena O’Neill lançaram o livro Casamento Aberto, um best-seller estadunidense que contribuiu para promover uma espécie de revolução sexual naquela década. A bem da verdade, os O’Neills tinham para eles que um “casamento aberto” não passava de um relacionamento em que cada parceiro teria espaço para crescimento pessoal e desenvolvimento de amizades fora do matrimônio. A maioria dos capítulos apresenta abordagens práticas pouco controversas para revitalizar o casamento em áreas como confiança, flexibilidade de papéis, comunicação, identidade e igualdade. A intenção dos autores, curiosamente, era somente livrar o casamento de seus danosos ideais antiquados e falsamente românticos, encontrando maneiras de torná-lo mais contemporâneo e leve. Não fazia parte dos planos fomentar um grande movimento em prol do poliamor. Mas, uma vez que chega ao mundo, as repercussões de uma obra podem fugir do controle daqueles que a conceberam — e disso os O’Neills sabem bem.
No meio de suas tentativas apaziguadoras de revisar ideias ultrapassadas, foram mais “radicais” em um capítulo — obviamente, o capítulo que mais deu o que falar. Ele propunha a ideia de que um casamento aberto poderia, sim, incluir algumas formas de sexualidade com outros parceiros. Essa sugestão, mais do que quaisquer outras presentes no livro, entraram na consciência cultural e o termo “aberto” tornou-se sinônimo de casamento sexualmente não-monogâmico. Até então, o que quer que acontecesse em casamentos e relacionamentos que driblavam a monogamia não tinha uma denominação específica. Assim, ainda que não fosse sua proposta inicial, os autores não só foram bastiões da possibilidade de casais explorarem novas formas de intimidade e conexão emocional, mas também criaram a linguagem que faltava para dar mais palpabilidade àquilo que, ainda que numa escala pequena, já existia. A partir daí, o céu virou o limite. O livro teve um impacto significativo na cultura e contribuiu demais para a discussão sobre relacionamentos que fogem da convenção.
O debate, portanto, talvez não seja novidade. O que acontece hoje é um resgate que viria a se dar mais cedo ou mais tarde. Mas a questão é que ele vem ganhando um espaço que talvez nunca antes tenha tido. Com as redes sociais e a discussão mais franca sobre muitos temas que antes eram tabus, a monogamia passa por um período de questionamentos. “Nós temos que nos sintonizar com as mudanças das mentalidades porque o amor e o sexo são construções sociais”, reflete Regina. “Alguém vai dizer assim: ‘Ué, mas sexo e amor sempre existiram’, mas a forma de você amar tem que ser aprendida. Em cada período da história o amor se apresenta de uma forma. Essas expectativas e esses ideais que regem esse amor é o amor romântico. O amor romântico é péssimo, causa sérios prejuízos, porque traz expectativas de que os dois tem que se transformar em um só, o que é um horror.”
Sons de alarme ressoam: é verdade que a monogamia já não representa o que entendemos como amor nos tempos presentes? Seria essa uma crise?
Se tomarmos produções culturais como reflexos de um zeitgeist, sim — e isso inclui o Brasil. A não-monogamia não é mais “coisa de seriado gringo”, uma vez que o fenômeno não está mais restrito a enredos estrangeiros que soam distantes e improváveis. Cada vez mais, a ideia está se infiltrando nas produções culturais brasileiras. Lembra de A Porta ao Lado, filme de Julia Rezende com Bárbara Paz e Letícia Colin? A história, lançada em 2021, se debruça sobre a dualidade entre o amor monogâmico e o poligâmico por meio do convívio de dois casais de vizinhos muito diferentes entre si. E de Lov3, série brasileira do Amazon Prime? Na produção de Felipe Braga, três irmãos simplesmente se recusam a vivenciar o amor da maneira “quadrada” dos pais. E o poliamor ganhou espaço em séries aclamadas, como no notório Succession, em que Siobhan Roy e Tom Wambsgans, casal que vive às turras, explora possibilidades que se esquivam da monogamia — embora, claro, não seja esse um exemplo de relacionamento não-monogâmico saudável.
Se antes a monogamia tradicional era o padrão a ser representado, sendo a traição sempreuma fonte interminável de conflitos e discussões que ditavam os altos e baixos de uma narrativa, roteiristas e produtores estão agora explorando relações abertas para criar novos tipos de dramas envolventes. Isso não aconteceria se a mentalidade dos relacionamentos não estivesse, de fato, se transformando na vida real também. Ainda que se crie tendências comportamentais a partir de obras culturais, abordar tal assunto sem que isso fosse pauta na vida diária das pessoas, como algo com o qual elas podem se relacionar em algum nível, soaria como irreal e até antiquado, já que muita gente automaticamente ainda liga relações não-monogâmicas a décadas passadas.
Ao examinarmos o quadro, não podemos ignorar a influência da realidade na arte. De acordo com pesquisas norte-americanas — uma sociedade que, em geral, é conservadora —, em 2023, 51% dos adultos com menos de trinta anos consideram o casamento aberto “aceitável”. Cerca de 20% dos americanos relatam ter experimentado alguma forma de não-monogamia. Seria inviável pensar em números assim há poucos anos. Não por um acaso, o caso Will e Jada Pinkett Smith se alojou no ideário popular, porque, além da popularidade gigantesca dos dois, também contribuiu para uma discussão que estava acontecendo, fazendo com que todas as polêmicas do casal gerassem uma multiplicidade de respostas por parte do público.
Mas por que isso? Adê Monteiro, psicóloga e sexóloga, acredita que cada um tem que “escolher o seu difícil” e que, na teoria, a não-monogamia oferece uma leveza que a monogamia muitas vezes falha em proporcionar, o que não quer dizer que seja fácil. “É difícil viver a não-monogamia também”, explica ela, “porque nós temos ainda uma estrutura de monogamia bastante forte. Essa estrutura tem, inclusive, base genética. A gente tem uma estrutura de romantismo, de patriarcado, é muita estrutura monogâmica para você, de uma hora pra outra, desconstruir isso.” O aspecto de aprisionamento conceitual é bastante relevante, já que leva em conta a hipótese de o panorama psicossocial ser, no final das contas, a maior das barreiras. E Regina Navarro Lins entra para o coro de maneira categórica: “Enquanto não se mudar aspectos como controle, possessividade, ciúme, desrespeito à individualidade do outro, o casamento não vai funcionar.”
Aqui no Brasil, vale citar a empreitada que aprovou na Câmara, em dezembro do ano passado, o projeto de lei que proíbe o poliamor. A Comissão de Previdência, Assistência Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou o projeto que proíbe o reconhecimento de uniões poliafetivas com nove votos a favor da aprovação e três contra. A comissão é a mesma que, em outubro de 2023, aprovou um projeto que proíbe o casamento civil homoafetivo. Sempre haverá aqueles que apontam o dedo para qualquer formato que não seja o binarismoheteronormativo, condenando-o como “subversivo”. Mas, de subversivo, o amor não tem nada. Sob uma perspectiva poética, talvez sim; mas, sob uma perspectiva legal, definitivamente não.
Então, depois de muito pelejar e enfrentar todo tipo de preconceito, os relacionamentos não-monogâmicos naturalmente recuperaram seu lugar ao sol. Não fizeram esforço para que issoacontecesse, somente esperaram nas sombras a sua hora chegar — e, mais do que nunca,estão entre nós. Em meio a muitas novas visões de mundo que estão surgindo, essas formas de amar voltaram com tudo. Entre muitos obstáculos superados, os não-monos estão desafiando, de uma maneira muito particular (e, por isso, forte), a ideia convencional de casamento. Mas veja bem: isso não quer dizer necessariamente que estão desafiando o casamento em si. Não significa que estejam batendo de frente com a ideia do matrimônio como a conhecemos.
Ao invés de se postarem como verdadeiras ameaças à instituição matrimonial, têm um arcabouço argumentativo para fazer com que os relacionamentos não-monogâmicos emerjam, na realidade, como uma possível salvação de uma instituição que vem perdendo popularidade há décadas. Não é mais apenas sobre “trocar” de parceiros, sobre não deixar de explorar caminhos sexuais, sobre aproveitar os “bons anos” antes da decadência física. Talvez ela até se apoie nesses pontos em alguns casos, mas a não-monogamia presente é sobre incentivar relações mais profundas e duradouras, reinventando as leis antes impostas e oferecendo uma perspectiva mais flexível e, acima de tudo, emocionalmente mais sustentável.
Sob essa ótica, é curioso pensar como, ao chegarem a um consenso de que a monogamia não será o caminho de um relacionamento, pessoas possam chegar a um compromisso ainda mais forte entre si. Uma coisa não exclui a outra e o que quer que permita que pessoas se amem mais e melhor deve ser reconhecido e validado. Isso porque, no fim, o casamento em si não é o maior problema. O que dá uma má fama à instituição é, principalmente, todos aqueles preceitos que tomamos como naturais e incontornáveis. Regina Navarro Lins resume bem: “Eu só acredito que uma relação funcione bem quando houver respeito ao jeito do outro ser, se comportar, pensar. Quando houver liberdade de ir e vir, ter amigos em separado, programas independentes e não houver controle algum da vida do outro. A maioria dos casamentos nunca foi assim. As mulheres não podiam se separar, não trabalhavam, não tinham como se sustentar. Havia aquela ideia de casamento ‘até que a morte nos separe’. Também a morte chegava muito antes, agora a morte chega depois.”
Difícil pensar na monogamia perdendo todo o seu viço. Isso talvez nunca ocorra, ainda que seja possível que ela se veja na defensiva em seu corner, porque suas ideias ainda correm nas veias dos corpos sociais. Mas os tempos pedem que ela se adapte o quanto antes, pelo bem de todos os envolvidos. E, ufa, quem sai ganhando é o amor. As pessoas podem optar por um relacionamento não-monogâmico por várias razões, da atração por múltiplos gêneros até um rechaço à limitação imposta pela norma cultural da monogamia. Mas, seja qual for a motivação, é uma possibilidade, e quanto mais possibilidades de amor tivermos, melhor. O que a sociedade parece nos dizer é: vamos lá, finalmente estamos preparados para o poliamor. Resta saber se estamos igualmente prontos para exercitar a sinceridade, a conversa franca, a transparência em nossos desejos e a ética nos nossos afetos.
Claro, um relacionamento aberto é feito de humanos e, sendo assim, não está isento de desafios — mas o preconceito não pode ser um deles.
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