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Ricardo Rodrigues nasceu em algures da América Latina, em 1992. Em 2005, emigrou para a Europa, onde trabalhou em diversas agências de publicidade. A cada três anos muda de país, procurando uma nova aventura.
As manifestações e o desafio da mudança numa cultura avessa ao conflito
por Mariana Barros
Trabalho há quinze anos com estrangeiros e tendo a ver o mundo a partir de perspectivas culturais. Também sou da área de política, e sempre senti falta de uma identidade política para nosso povo.
Fiquei extremamente comovida com as manifestações de junho. E mesmo sabendo que não é característica cultural do brasileiro protestar, acreditei que podia estar vendo um sinal de mudança naqueles dias.
Meu argumento aqui será, no entanto, que até agora, não. Num jogo muito bem jogado, os rapazes do futebol reassumiram suas posições de heróis nacionais e nosso pacifismo cultural característico triunfou sobre a violência de um dos piores sistemas políticos do mundo, para o bem e para o mal do Brasil. E as manifestações não deixaram um legado de construção de identidade política nacional, ainda que possam ter dado um gosto de despertar do gigante.
O Brasil viveu 388 anos de escravidão explícita e ainda vive sob regras culturais implícitas dessa mentalidade. Aqui, ou se é senhor, ou se é servo. A dinâmica das relações no Brasil é das mais violentas do mundo, padrão ditadores africanos. A injustiça impera no país que tolera ser a quinta economia e estar entre as maiores desigualdades sociais do mundo, com aproximadamente 90% de suas terras ainda pertencentes a 10% de sua população e com 40% de sua população universitária considerada analfabeta funcional. Aceitamos uma realidade ‘Bélgica-India’ como quem sai às ruas para manifestar e depois tem um deputado preso, inocentado pela Câmara. Mas não vamos entrar em conflito. Violência, aqui, não. Mas e a guerra civil silenciosa que vivemos no dia a dia brasileiro?
E por isso tudo mesmo, caoticamente, como exige a contemporaneidade, o Brasil é miscigenado, místico, flexível, criativo, esperançoso e, pacífico, a ponto de esperar que os políticos e a elite brasileira acertem suas contas com Deus e não com as armas dos manifestantes.
O desafio se apresenta quando a essa aversão ao conflito se soma a falta de educação formal generalizada da população, e logo, a impossibilidade de pensamento crítico. Os vinte centavos eram apenas a ponta de um iceberg de muita, muita injustiça; nem se sabe quanta, pois perdeu-se há muito o fio da meada da história brasileira. Daí tanta gente meio perdida.
Na maioria dos países, desenvolvidos ou não, cabeças rolaram na construção de consciência política. Mas não somos conflitivos e é pouco provável que cabeças rolem por aqui. Vamos fazendo samba, e elaborando tristeza com música. Mas acho que nossa geração é sim aquela que pode deixar como legado a disseminação da idéia de que negro não é feio, de que pobre não é menos, de que desigualdade não é uma diferença que deve ser aceita como realidade naturalizada.
E que parem os carnavais até que isso se resolva. Mas no Brasil, isso é difícil. Por quê? Eu te devolvo a pergunta. O que não te move a lutar pelos seus direitos ao invés de ceder ao sistema brasileiro?
Em geral, o brasileiro vai colocar os valores familiares antes da instituição política, o Estado, e com isso, vamos sendo uma sociedade com características mais relacionais e de clã, do que institucionais ou políticas. Natural então que as regras escritas façam pouco sentido, que as instituições tenham pouca representatividade, que os partidos não queiram dizer muito. O que importa, são as relações, a família, e as prioridades do país vão sendo definidas a partir desses valores.
Estaria confortável com essa ideia não fosse os números mostrarem que algumas famílias têm sido muito, muito mais privilegiadas que outras. E que no Brasil a dinâmica senhor-escravo é tão forte que as pessoas realmente ainda não se entendem como iguais.
As manifestações ainda poderão ter deixado um legado político, se os brasileiros começarem a se entender como uma nação política, de cidadãos iguais, de iguais oportunidades, direitos e deveres. Para tanto, precisarão priorizar, entre seus valores, a construção dessa nação. E isso, ainda não se verifica.
Assim fala Zizek sobre as manifestações mundo afora: “Não se apaixonem por si mesmos. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim.”
Tudo bem que as manifestações não tenham sido uma tomada de consciência política por parte da maioria dos brasileiros. Mal falamos delas em nosso dia a dia. Mas oxalá elas venham sendo, no caminhar de alguns, muito mais que apenas mais um carnaval.
O sonho e o gigante
por André Tassinari
O mais famoso discurso da história completa 50 anos: de “I have a dream” a #ogiganteacordou.
“I have a dream that my four little children will one day live in a nation where they will not be judged by the color of their skin but by the content of their character. I have a dream today!”
Essas são as mais famosas palavras do mais famoso discurso da história. Com elas, Martin Luther King simbolizaria o grande momento de virada na luta por direitos civis nos EUA (foram proferidas durante a Marcha sobre Washington, em 28 de agosto de 1963, que reuniu a marca histórica de 250 mil manifestantes e foi fundamental para a aprovação da Lei dos Direitos Civis e da Lei do Direito ao Voto nos dois anos seguintes). Foi um verdadeiro wake-up call para o absurdo que era a disparidade entre o que a Constituição pregava e a realidade dos negros – que eram impedidos de votar e viviam em “apartheid” em alguns estados.
#ogiganteacordou. Cinquenta anos depois, um outro wake-up call aconteceu no Brasil. Em dezenas de cidades, em vários dias de junho, milhões de pessoas saíram às ruas para protestar. A causa inicial era o cancelamento dos aumentos nas tarifas de transporte público (objetivo alcançado), mas a insatisfação latente na população criou uma avalanche de demandas: melhorias na saúde, na educação, na segurança. E parecia claro que para conseguir tudo isso seria necessária uma reforma do sistema político, para combater a corrupção de maneira eficaz e fazer com que os recursos públicos fossem usados de forma adequada, orientados pelos interesses da população, e não dos políticos.
O que um sonho de cinquenta anos pode ensinar a um gigante que acabou de despertar? Com a palavra, o reverendo King:
“There are those who are asking the devotees of civil rights, “When will you be satisfied?”“
Assim como nas manifestações de junho, em 1963 havia a crítica de que as demandas eram muito ambiciosas, que os manifestantes nunca ficariam satisfeitos. Os objetivos dos brasileiros foram tachados de difusos; na March over Washington for Jobs and Freedom, havia certa objeção em misturar as demandas por direitos com aquelas por empregos. No fundo, a luta tanto de lá quando de cá era por uma sociedade mais justa, com diversos objetivos complementares. Lá, não adiantava ter a “liberdade” conquistada cem anos antes mas não ter direitos iguais; e também não adiantaria ter apenas direitos, era necessário ter oportunidades. Aqui, não adianta ter liberdade democrática, conquistada há 25 anos, depois de outros tantos sob ditadura, se a democracia não representar o povo e não seguir os princípios da Constituição.
“1963 is not an end, but a beginning.”
O sonho é só o começo. Os resultados vão aparecendo lentamente, ano após ano, década após década. Os pessimistas dirão que a questão da discriminação ainda é grave nos EUA, com a taxa de desemprego dos negros sendo o dobro da dos brancos desde a década de 1960, e com casos de preconceito como o de Trayvon Martin e das revistas preventivas a negros e latinos em Nova York. Mas, além do detalhe de ter um presidente negro reeleito na Casa Branca, se olharmos para alguns números, não dá para negar que a situação de vida dos negros melhorou muito.
Em 1962, 49% dos brancos e 25% dos negros completaram o high school; 10% dos brancos cursaram faculdade contra 4% dos negros. Em 2012, 88% dos brancos e 85% dos negros terminaram a escola, e 31% dos brancos e 21% dos negros, a faculdade.
Há cinquenta anos, a renda média dos negros era de 14 mil dólares (em valores atuais) e a dos brancos, 25 mil. Hoje, enquanto a dos brancos é de cerca de 40 mil dólares, a dos negros é próxima a 30 mil – que é uma renda média comparável a de países como Holanda e Suécia.
Mas o melhor dado não é o que compara brancos e negros de maneira separada, e sim o que os mistura. Até a década de 1960, o casamento inter-racial era proibido em alguns estados americanos, e menos de 1% dos casamentos envolviam pessoas de “raças” diferentes. Esse número cresceu para 7% na década de 1980, e hoje já passa de 15%.
No Brasil, os idos de junho também devem ser encarados como o início de um longo percurso. Poderíamos parafrasear King dizendo que “R$ 0,20 é só o começo”, considerando a redução no preço das passagens uma vitória inédita e simbólica da “voz das ruas”.
“And they have come to realize that their freedom is inextricably bound to our freedom. We cannot walk alone.”
Um dos grandes méritos de King foi sua capacidade de coalizão. Ele conseguiu unir diversos setores da sociedade em torno de uma causa, mesmo tendo foco nos negros. E percebeu que as grandes mudanças são aquelas em que a sociedade toda ganha, e não apenas um grupo. Na Marcha sobre Washington, 25% dos manifestantes eram brancos. Havia pessoas de todas as classes e profissões. Afinal, a luta pelos direitos civis beneficiaria não só os negros, mas também as mulheres e outros grupos discriminados.
Pena que a ideia de perseguir objetivos comuns benéficos à sociedade, a despeito de diferenças pessoais ou políticas, seja uma raridade. Hoje, tanto os EUA como o Brasil apresentam disputas políticas que prejudicam o andamento de projetos do interesse do país. Obama e Clinton salientaram esse problema em seus discursos na celebração dos cinquenta anos da Marcha sobre Washington. E FHC sintetizou em recente artigo: “não dá para perceber que quando o barco afunda vamos todos juntos, governo e oposição, empregados e empregadores, os que estão no leme e os que estão acomodados na popa?”
Para que um país avance é preciso que forças diversas se alinhem em torno de ideias e ideais, e não de interesses pessoais e político-partidários. Nisso o Brasil tem uma vantagem em relação aos EUA: há mais espaço para conciliação já que a bipolarização partidária não é um fato consumado.
“We must not allow our creative protest to degenerate into physical violence.”
King era defensor da não-violência. Por razões ideológicas e estratégicas: sabia que, se o movimento por direitos dos negros se destacasse pela violência, perderia o apoio de grande parte da sociedade e dos políticos, prejudicando o sucesso da causa. Era contra os métodos violentos adotados pelos Black Panthers, e certamente seria contra as ações dos black blocs. A força de um movimento está no seu poder de agregar, e os grupos violentos são desagregadores.
“I am happy to join with you today in what will go down in history as the greatest demonstration for freedom in the history of our nation.”
King tinha sentido histórico, próprio de um líder. Para que movimentos sociais tenham sucesso, é preciso lideranças tanto na sociedade civil como na política. King foi o catalisador, mas, sem a liderança política de Kennedy (e de Johnson, seu vice, que assumiu quando morreu), o movimento teria tido seu impacto reduzido.
Uma das características da manifestação no Brasil, assim como de outras manifestações contemporâneas, é a ausência de lideranças. Assim fica mais difícil traduzir a “voz das ruas”. Apesar disso, a presidente Dilma fez uma boa leitura das demandas – mas as ações que propôs a respeito não têm tido vida fácil.
Um líder é um símbolo, uma voz que representa muitas outras vozes. Nesse sentido, uma liderança importante que surgiu no país foi a do ministro Joaquim Barbosa. Em suas declarações e ações como presidente do STF ele tem mostrado representar grande parte da população, o que o levou a ser bem cotado nas pesquisas de intenção de voto para 2014, apesar de negar que possa concorrer à Presidência.
Mas quem mais cresceu nas pesquisas após as manifestações foi Marina Silva, prestes a tirar sua Rede do papel. A Rede defende um modo diferente de fazer política, que é alinhado com a “voz das ruas” mas visto por muitos como ingênuo. Tanto que seus apoiadores são chamados de “sonháticos”. Bem, o sonho é só o começo – mas é um bom começo.
“And so even though we face the difficulties of today and tomorrow, I still have a dream.”
Reconstrutores urbanos
por Sol Camacho
A cidade (em todas suas facetas e ângulos) é um tema de interesse atual, objeto de debates e discussões, questão prioritária na agenda de arquitetos e urbanistas, importante para universidades e pesquisadores em diferentes ramos, de diversas disciplinas. Nós, que nos dedicamos à arquitetura e à estreita relação dela com a forma da cidade, damos-lhe extensivas horas de trabalho, embora o que se discuta a respeito de urbanismo hoje, em escritórios, aulas e congressos, esteja totalmente desconectado da realidade da Cidade do México ou de São Paulo, os dois maiores e mais importantes centros urbanos da América Latina.
A imagem genérica da cidade – as ruas asfaltadas, as calçadas inacabadas, os postes de luz cheios de cabos, a mistura de prédios de diferentes épocas junto a postos de gasolina e paradas de ônibus… – é, aos olhos dos humanos do século XXI, a paisagem mais comum, o ambiente corriqueiro de 75% dos mexicanos e de 85% dos brasileiros.
Não precisamos conhecer as cifras para saber que, mais do que nunca, os humanos estão ligados às cidades. Nunca antes a relação entre homem e arquitetura foi tão próxima – contudo, os arquitetos têm escassa participação no planejamento e na construção das cidades. No caso da Cidade do México, 70% do que é edificado decorre de “autoconstrução”.
O pensamento vanguardista dos arquitetos, que marcou uma época importante do urbanismo na metade do século passado, ficou de fora nas ultimas décadas. Quem tem desenhado, decidido e construído a forma das cidades são a economia e o mercado sem intenção, a visão fragmentada dos governos, e nós, todos nós: com nossas escolhas de transporte, de habitação, de maneira de vida, de relacionamento com o entorno. Com cada escolha “fazemos cidade”. Somos milhões de “urbanistas” sem uma visão clara, sem uma agenda, sem informação.
Os métodos clássicos de planejamento urbano, de projetos top-down de traços livres em territórios vazios, não pertencem à nossa época. A visão do mercado e do governo já se provou insustentável.
Uma das funções mais importantes do arquiteto hoje consiste em gerar uma visão de cidade, em traçar e testar estratégias em longo prazo, em comunicar as possibilidades para forçar a sociedade a mudar de enfoque, a sair do comum, a acreditar em maneiras de vida novas, adequadas às realidades contemporâneas das metrópoles, a participar pró-ativamente na construção do território.
Certamente sabemos que este contexto vai mudar tanto quanto tem mudado nos últimos anos, numa velocidade cada vez maior. Irá mudar fisicamente, irá adaptar-se às novas realidades e às novas necessidades. E, sobretudo, irá mudar a maneira de se viver, de entender e de perceber a cidade, e a maneira de se relacionar com ela.
Há apenas cinquenta anos não havia megacidades, esses terrenos infinitos de construções que hoje formam parte da nossa paisagem cotidiana. Com a velocidade das mudanças nas dinâmicas de vida, é difícil propor (grandes) projetos urbanos em longo prazo. Os projetos feitos há trinta, quarenta ou há apenas dez anos parecem nos incomodar hoje. Ouvimos com frequência a palavra urbanismo ou a expressão urban design junto a termos como revitalização e remediação. Veneram-se, hoje, projetos que “reverteram” os grandes gestos acontecidos/construídos em outras décadas (como o caso do Big Dig, em Boston, ou do rio Cheonggyecheon, em Seoul, para citar alguns).
Os encarregados de manipular a cidade devem deixar de lado a construção de soluções imediatas e focar em construir uma base sólida de trabalho para testar cenários, possibilidades e ideias, e assim definir diretrizes adaptáveis a necessidades que hoje ainda não conhecemos. Arquitetos e urbanistas precisam se preocupar menos em fazer design e mais em desenhar e consolidar estratégias para que outros, num futuro próximo ou mais distante, atuem na cidade de maneira mais responsável; para garantir que os projetos de nossa geração continuem funcionando no futuro e o urbanismo deixe de ser uma ferramenta de conserto ou remediação.
Com estas ideias surgiu a iniciativa de criar uma plataforma de pesquisa para testar cenários de crescimento na megametrópole da Cidade do México: minha cidade natal.
Difícil falar de crescimento em uma cidade que já se expande em todas as direções, para além da linha do horizonte. Uma mancha urbana que já invade todos os rios, lagos e lagoas, toda a bacia geográfica e as montanhas. Só resta a possibilidade de crescer na vertical? Mas, para onde?
Existem, inseridos no “tecido urbano” da cidade, 45 “nós”, ou “centros de transferência multimodal”, mais conhecidos como paraderos.
Esses pontos são mais do que nós na infraestrutura de transporte; são uma mega-aglomeração de todo tipo de veículo, de construções e infraestrutura (a maioria obsoleta), de edifícios, pessoas, comércios; um improviso; um ajuntamento de rotinas, uma concentração de problemas… e de oportunidades.
A oportunidade se dá porque estes nós representam uma rede de áreas já ligadas diretamente às artérias infraestruturais mais importantes da cidade, como também ao transporte público, pelo qual circulam, todos os dias, mais de 25% da população da megalópole.
A proposta do estudo foi analisar a integração total da infraestrutura de transporte público existente com o crescimento da cidade, levando em consideração os paraderos, “terrenos” para a construção de novos tipos de edifícios, novas configurações urbanas, novas maneiras de participação, e a cooperação entre os setores público e privado.
O estudo sugere um tipo de planejamento que é possível realizar ao longo dos anos, algo que deixe diretrizes para futuras gerações integrarem maneiras diferentes de construir, formas inovadoras de morar, trabalhar, divertir-se, projetos pontuais a serem desenvolvidos por diversas pessoas. A viabilidade do estudo precisa da participação ativa e consciente de quem mora nas cidades.
Se estamos certos de que a maioria desta e das futuras gerações – pelo menos até onde conseguimos enxergar – passará grande parte da vida em um contexto urbano, então acredito que estamos ficando sem opções: precisamos tomar consciência, divulgar as ideias, decidir a direção, apoiar projetos além de nossos interesses individuais, tentar deixar de usar carros para a rotina diária, morar e trabalhar perto dos centros de transporte, usar e respeitar o uso de bicicletas, permitir novos usos perto ou dentro dos centros de transporte, investir em pensamento e qualidade de desenho de cidade. Não será fácil, mas será uma solução melhor, mais sustentável e mais barata – em todos sentidos – para as futuras gerações.
Um bilhão de saudades
por Vanessa Agricola
Faz dois anos que ele se foi. Dois anos que penso nele todos os dias. Vejo alguém comer geleia, lembro dele tomando café da manhã. Comia sempre uma torrada com geleia de laranja, e pra beber um chá inglês. Se alguém fala da França, lembro dele me mostrando Paris. A gente tomando sopa de cebola no restaurantezinho que ele adorava, ali de frente para a Notre Dame, conversando sobre a vida, tomando vinho da casa, ele me dizendo que eu estava linda com aquela jaqueta. Dali saímos a caminhar pela Champs-Élysées, ele avistou um casaco de pele preto, dizendo que era minha cara. Me fez vestir o casaco, perguntou o preço, se não fosse minha sensatez teria comprado. “É muito caro isso, Gorducho”. Sempre teve essa mania de me comprar tudo, como que para me dizer eu te amo, eu já sabia. Mas ele todos os dias queria me dar uma prova, ou num presente, ou num olhar de admiração e carinho que nunca ninguém além dele me deu.
Quando nos sentávamos juntos para jantar, em casa mesmo ou em um restaurante, eu e ele costumávamos nos cutucar embaixo da mesa, por causa de um comentário da minha mãe ou dos irmãos; éramos cúmplices nas nossas opiniões sobre eles. Éramos comparsas. Bastava uma troca de olhares, uma piscadinha, a tão famosa cotovelada que ele costumava dar, era quase um afago, que acabava com a gente rindo junto, da minha mãe, ou dos irmãos, ou de um assunto.
Minha mãe sempre dizia que não podíamos ser mais parecidos. E quando ela ficava de mau humor, ou com ele ou comigo, nós dois ríamos. Sem ele minhas piadas ficaram de mau gosto. Só ele era tão irônico. Também não faço mais churrasco, porque me lembra dele tanto que me dá vontade de vomitar. Não tomo mais vinho com Fanta, não escuto mais tango, nem Shakira. Foi ele que me fez gostar dela. E de Simon and Garfunkel. E de Van Morrison. E de reality shows de culinária. Tarefas impossíveis, tipo preparar um banquete com entrada, prato principal e sobremesa em menos de uma hora o faziam delirar. E eu deitada em seu colo me divertia, de tanto ver esses programas aprendi a cozinhar. Também por ficar com ele na cozinha, enquanto ele fazia seu macarrão com linguiça tão gostoso… Era um mestre-cuca, meu Gorducho. Um campeão de golf, um gênio da matemática, um homem generoso desses que te preparam o jantar tomando um vinho e ouvindo música.
Sabe qual a minha maior tristeza? Vê-lo moribundo, delirando sobre a minha herança. “Nessinha se va a quedar con la casa de Punta”. Me doeu a vergonha que ele sentiu por não ter podido me deixar nada. E por que eu não te disse que o melhor que a gente deixa é a saudade? Será que eu não sabia? Ou não queria acreditar que daquela vez você iria mesmo embora? Que o dia que a gente brigou seria o nosso último dia. Ah, adonde estás ahora? Daí você me escuta? Será que você me lê? O melhor que a gente deixa é a saudade.
Utopia
por Roberto Vietri
Começou ao acaso, como de fato muitas vezes acontece. Uma viagem despretensiosa para o norte do Brasil. A história caiu no meu ouvido e me deixou curioso: Fordlândia. Sempre me senti atraído pelo cheiro da ambivalência, do desenho do encontro – intenso – entre forças opostas, pelas boas e más vontades umbilicalmente unidas e pelas consequências um tanto irregulares, convidando a curiosidade a uma reflexão e, a partir disso, à descoberta de outros destinos. Aqui, idealismo se depara com fracasso, quem sabe esperança. De acordo com alguns moradores, hoje resta um sentimento de saudade ou então, para outros, a ignorância do que existiu. Na outra ponta da história, na planície do estado de Michigan, nos Estados Unidos, questões locais refletem o mesmo saudosismo ou a preferência por não querer olhar. A alguns, entretanto, o ímpeto de reagir.
Uma cidade inteiramente construída onde nada existia, num continente estranho, para acomodar um interesse estratégico e satisfazer as vontades de um visionário que queria a todo custo ser – e foi – o motor de transformações culturais e econômicas em escala mundial, que acreditava serem as melhores possíveis para todos os envolvidos. O sonho e a persistência de fazer aterrissar uma nova ordem, um novo Estados Unidos. Por que não de um novo Brasil? Ao longo das décadas, (quase) todos os sonhos se transformaram em realidade, com tudo o que têm direito: expectativa, auge, entusiasmo; declínio, desfazimento.
“Uma cidade inteiramente construída
onde nada existia”
No meio do caminho chamei, simplesmente, de “utopia”, e por enquanto se mantém assim. Do Brasil viajei para os Estados Unidos, seguindo minha curiosidade, agora não mais tão ingênua. Deparei-me com alguns lugares, outras situações e a deliciosa sensação de perceber, além de algumas confirmações, a abertura para que novos cenários pudessem ser levantados, deixando-me paradoxalmente menos localizado do que supunha, e mais generoso em admitir, felizmente, que não sei qual o final da história.
No começo, como disse, nada tinha. Depois tive a selva; então, os carros. Agora também tenho Walt Disney! Num movimento não necessariamente coordenado, mas caprichosamente insistente, os fatos consumados e os embriões das mais incipientes ideias começaram a ricochetear de maneira intrigante, desfazendo simbolicamente a existência de fronteiras geográficas e culturais, bagunçando no fim das contas o próprio tempo. Eis que surgiu recentemente um novo local, ligado aos outros apenas por um elo formal, mas que, por enquanto, convido a fazer parte desse quebra-cabeças no qual me meti. Talvez nem venha a usá-lo. De qualquer forma, pode ser que me carregue a novas constatações.
Utopia tem sido uma tentativa de se relacionar com o sonho solitário de um homem, e não tanto uma busca por catalogar suas conquistas ou fracassos. A cidade de Detroit acaba de declarar oficialmente seu estado de falência. Há relatos de lobos retornando aos bairros mais periféricos. O mato anda crescido de maneira absolutamente selvagem. A taxa de desemprego e abandono dos prédios beirando à metade.
A Amazônia, por sua vez, sempre refratária às tentativas de controle, hoje sucumbe a ameaças que, em outras situações, conseguiu suportar. No centro da praça, a casa reformada ainda espera pela prometida visita de Henry Ford, seu criador. Ironicamente, talvez fosse mais do que desejado que essa impossível visita acontecesse agora. Ou que já tivesse acontecido há oitenta anos.
Uma das heranças do idealismo é a possibilidade de se passear pelo sonho original, e aprender com ele. A outra é encarar como algo muito distante ou até indesejado. Provavelmente com as mesmas consequências que fizeram – e fazem, em tantas instâncias contemporâneas – histórias se repetirem. Seja na forma, seja no conteúdo.
A arqueologia da perda, de Daisy Xavier, surge como uma operação a um só tempo formal e existencial. Ora, a arte, em geral, seria sempre isso. Sim, mas existem casos nos quais tal vínculo surge de maneira mais evidente. E este é um desses momentos. Toda realizada a partir da apropriação de móveis antigos, espécie de legado, a série de esculturas é fruto do gesto de desmembrar um mobiliário e, a partir destes fragmentos de uma memória que poderia permanecer paralisada, colocar a mesma em movimento, assim instaurando um destino inaudito.
O que vemos são peças simultaneamente fortes e frágeis. Delicadas, mas sólidas na sua fatura. Assimétricas, como que resultado de uma escrita automática, mas cientes de onde querem chegar ou ao menos de onde devem parar. Em algumas delas vidros azuis fazem a vez de elo, aquilo que cria o vínculo, em outras aparecem como apoio. Justo o vidro, elemento que guarda em si a quebra iminente. Cada fragmento – o pé de uma mesa, o braço de uma cadeira – esgueira-se um no outro. Sozinhos não seriam nada. Esta existência que exibe, sem pudores, a sua precariedade de fundo, a necessidade de se esgueirar para ficar de pé, tudo isso é o que doa a insuspeita força na fragilidade do trabalho de Daisy.
Arqueologia, do grego arque, antigo e logos, estudo, é a disciplina que estuda as culturas e os modos de vida do passado a partir de vestígios materiais. A artista tece sua arqueologia a partir de restos que possuem uma conotação familiar, mas que, ao passarem pelas suas mãos, adquirem um registro estranho. Estamos diante de estranhos familiares. Ficção a partir do mais próximo, que evoca justamente o ciclo pelo qual passaram: desconstrução e reconstrução, dinâmica que faz surgir uma potência ativa ali onde habitava perda, falta.
Fazer a arqueologia do que se foi é construir a chance de um novo presente e de um futuro diverso do mesmo. Trata-se de reescrever a memória à sua maneira, recriá-la, ficcioná-la. Realizar tal operação sem cair em uma narrativa ilustrativa ou biográfica, mas sim na pura forma, eis a singular beleza que se dá na obra de Daisy Xavier. Obra que nos endereça um ar de esperança naquilo que nos diz, baixinho, vá lá e desconstrua para reconstruir, a seu modo, aquilo que foi perdido ou ficou pelo caminho.
Um legado
A palavra legado remete aos feitos e às obras relevantes realizados pelos nossos antepassados e transmitidos aos descendentes e às novas gerações. Soa como uma palavra antiga, utilizada por avós e pais quando nos convocavam a uma conversa séria, destinada a nos lembrar de que chegara a hora de abandonar as molecagens e de agir com responsabilidade. Afinal, tínhamos obrigação de zelar pelo legado da família e das instituições que nossos antecessores construíram na política, nas artes, na filantropia ou nos negócios.
Os pequenos legados são igualmente importantes. A receita de bolo da família, as tradições da escola e da empresa, as viagens anuais para os lugares que nos fazem reencontrar familiares, cultivar tradições e celebrar episódios marcantes. Esses rituais são formas de estimular o convívio de gerações e de reforçar os valores perenes que despertam o senso de pertencimento, de continuidade e de perpetuação. Isso é legado. Mas, numa época dominada por modismos, pelo espírito imediatista e pelos ganhos de curto prazo, legado parece um substantivo arcaico. Legado não é produto, não pode ser adquirido e tampouco gera lucro. Então, por que é importante?
A civilização é formada por meio do lento e gradual lapidar de princípios e valores, que moldam as leis, os costumes e as instituições. Legados são vitais para sedimentar os princípios perenes, o senso de permanência e os valores imortais que determinam os atributos que uma sociedade preza e valoriza. Excelência, mérito, propósito, honra e dever são valores que vêm inspirando muitas gerações, desde a Grécia Antiga, a lutar pela criação da democracia, do Estado de Direito e da economia de mercado. A combinação de regras estáveis, instituições democráticas e prosperidade econômica criou as condições para o florescimento da liberdade, da competição, da inovação e do conhecimento aplicado, que beneficiaram enormemente a humanidade. Surgiram empreendedores, cientistas, artistas e estadistas que nos livraram da Idade da Pedra, da miséria material, do obscurantismo das crenças e ideias e do poder arbitrário dos reis, ditadores e caudilhos.
O exemplo dos Founding Fathers americanos revela como o legado de uma geração de homens extraordinários continua a reverberar na sociedade ao longo dos séculos. Estadistas como George Washington, Thomas Jefferson e John Adams não apenas lutaram pela independência do país como também ajudaram a elaborar a Constituição americana e a governar os Estados Unidos. Suas atitudes e escolhas foram determinantes para institucionalizar os princípios e os valores da Constituição, que vigoram há mais de duzentos anos. Suas atitudes e escolhas inspiraram seus sucessores, serviram de parâmetro e de referência para as futuras gerações, que continuaram a saga dos Founding Fathers, e transformaram uma colônia pobre e insignificante numa potência global.
Legado consiste em traduzir os feitos, exemplos e escolhas dos líderes transformadores em valores institucionais que perduram por várias gerações. Sem o arcabouço dos valores permanentes, as pessoas, as instituições e os países são incapazes de converter crises em oportunidades para promover mudanças transformadoras, reformas institucionais e revisões de crença e de atitudes. Sem o norte dos princípios perenes, sucumbimos aos encantos dos modismos, às palavras sedutoras dos demagogos e à ilusão dos atalhos – as falsas armadilhas que oferecem soluções mágicas e inócuas para problemas recorrentes e desafios institucionais. Sem o senso de legado, não há coragem, resiliência e determinação para se enfrentar os reais problemas e para aguentar os períodos de impopularidade e de frustrações inevitáveis durante o processo de mudanças transformadoras, que geram desconforto nas pessoas, obrigando-as a rever crenças arcaicas e a lidar com perdas de poder, direitos e privilégios.
Legado significa renunciar às pequenas vitórias de curto prazo para assegurar os ganhos e o bem-estar das próximas gerações. Algo difícil de perseguir num mundo no qual se preza bens descartáveis, interesses imediatistas e valores efêmeros. Ainda bem que os grandes e pequenos legados – como a celebração das datas históricas ou a degustação do tradicional doce de leite da casa da avó – fazem-nos lembrar de que há coisas mais importantes e significantes na vida do que a busca irrelevante por quinze minutos de fama.
O país dos muitos hinos
por Juliana Cunha
Na cozinha, um radinho inofensivo é a voz do Estado dentro de sua própria casa. Ele toca notícias sobre o novo satélite lançado ao espaço e músicas que enaltecem a cumplicidade familiar e a amizade entre colegas de trabalho. O volume pode ser reduzido, mas não dá para desligar o aparelho. E você só queria fritar um ovo.
“Minha esposa é aquela que me ajuda a transmitir o espírito revolucionário para nossos filhos” – diz a canção, que se pretende de amor, mas cuja grandiosidade esmaga esses pequenos sentimentos que um sujeito possa ter por sua mulher, como uma vontade súbita de abraçá-la enquanto ela lava a louça.
Estamos em Pyongyang, na Coreia do Norte, lar do Grande e do Querido Líder. A única dinastia comunista da história. O país mais fechado do mundo. Um povo que baniu o silêncio de seu território a machadadas. Ficar na sua é difícil. Em algum lugar sempre está tocando uma música com cara de hino nacional. Todas, absolutamente todas as músicas têm cara de hino nacional. E, como todos sabem cantá-las, a impressão é de um hasteamento de bandeira que não acaba nunca. Mais e mais alto com a bandeira da DPRK, chegaremos até a lua de modo mais eficiente que nossos foguetes.
Convivo bem com a ideia de usar as mesmas roupas e o mesmo xampu que as outras pessoas. Convivo bem com a ideia de ver padronizados minha casa e o iogurte que tomo pela manhã. Nada disso é muito diferente do que vivemos no ocidente, só a embalagem. Mas ouvirmos sempre, todos, as mesmas músicas, aí já é demais. Pense no quanto as canções te ajudaram, lá no ginásio, a delimitar o que era o outro e o que era você. Pense no quão abjeto é o gosto musical das outras pessoas, do seu próprio irmão. Até seu melhor amigo – uma pessoa sensata em outros aspectos da vida – ouve Coldplay. Um rádio doméstico que não pode ser desligado. Um repertório musical uniforme e limitado, que unifica gerações e diferenças individuais numa ensurdecedora falta de opção. Essas são algumas lembranças complicadas que trago das férias que passei na Coreia do Norte.
Tema livre
por Hermés Galvão
Minha liberdade impropriamente dita se perdeu no meio do discurso. A caminho do real, cruzou o virtual e parou no tempo. Eu, perdido no espaço, já não dava a mínima para ela, que já não era aquela. Assim, deixei que ficasse para trás a boa ideia que tinha sobre o assunto. Cansado de procurá-la, sufocado por sua aparência forjada, me dei por vencido e dormi o sono dos presos – reticente e perturbado.
Tiraram de mim o que era nato e inexorável, ou talvez tenha sido eu que abri mão de ser livre por medo do acaso. Sei ao certo que já estive solto uma vez e era alto o que via lá de cima, maior que o próprio mundo em si. Me restam dúvidas se fiz a escolha certa, ao mesmo tempo não sei se tive outra opção.
O que tenho agora, ou o que sobrou por ora, é uma liberdade genérica – talvez placebo. É de efeito moral o que nos permitiram viver, não é sensação por assim dizer, por bem sentir. Tão pouco tudo isso, quase nada, é um ir e vir cheio de amarras sob os olhos atentos de quem eu sequer dei liberdade para vigiar.
Estamos acobertados por nuvens que pairam baixas sobre as cabeças, que, se não seguem a mesma sentença, hão de rolar ladeira abaixo, pedra sobre pedra, de sapato em sapato. Vingo-me deles acreditando que, sim, o que tenho é o que posso ser: livre até a contracapa, até que traduzam minha biografia autorizada, afinal permito que vejam minhas fotos, que me sigam online, que saibam onde estou, a quantos metros de quem, há quantos minutos offline e, claro, com quem ando e de quem digo o que penso.
A mesma liberdade que me deram para falar e escrever como quem finge não querer nada foi estendida a todos, para alívio seu. Ou então de que outra maneira teríamos atores ruins, curadores mirins, jornalistas chinfrins, militantes e afins? Isso sim é ser livre, sempre livre. Absorvente.
Minha liberdade só pode ser aquela que larguei no passado: seria pesado demais seguir adiante com ela, dada a sua grandiosidade original, que só crianças e loucos suportam ou tem permissão de carregar. A de agora não é exatamente leve, no máximo leviana. E cheia de moral – em nome dos bons costumes. Os meus são da pior cepa, tão libertinos que tornaram-se vícios. O maior deles? Experimentar no limite do equívoco, à beira do ridículo.
Minha liberdade é tão amoral que só engorda e faz crescer os olhos de quem vê. Mas o tema é livre, não se prendam por mim.
Je vais te dire un secret
por Hermés Galvão
Vou te falar ao pé do ouvido para prestar um pouco de atenção no que eles dizem. Olhos nos olhos e orelhas em pé, mas nada de ficar cabisbaixo ao perceber que falta sentido no que se fala – por mais que se escute bem. Logo cedo você vai entender que não há (e não cabe) compreender. Vou te pedir – e se precisar, repetir – para não desistir deles por isso, mas também não invista: apenas os mantenha à vista. Porque pode ser divertida a conversa quando vão a fundo.
Só não espere que quebrem a cara ao mergulhar no raso de suas intenções, pois todos ao redor flutuam na insuportável leveza de ser o que são por não saberem ser de outro jeito. Não vão notar. Nem anotar. Simplesmente vão esquecer, deixar passar. Ficam as imagens. A memória é visual e, aparentemente, são todos muito inteligentes aos olhos deles, que acreditam por não conseguir sentir. Mas não são pesados por isso, e boiam porque não sabem nadar. E, te digo, nem querem aprender. Para não ir longe demais, percebe? Vivem à beira, contentam-se molhando apenas os pés. A cabeça vive à seca, de onde saem histórias ao vento que eles chamam de movimento. Palavras, apenas.
Mas desejam eles, com a pureza dos estagiários, deixar com elas uma marca, para que no futuro outros voltem atrás e os reverenciem como tais, intelectuais. Seria naïf se não se fosse tão, como dizer, leitmotif. No calor da vernissage e no frio das salas de reunião, galeristas da boca pra fora e publicitários de última hora trazem à tona ideias que, como numa batalha naval de papelaria, cruzam letras e figuras em busca de uma mira certeira. Mas é água o que vem de suas direções. Canhão apontado para o nada, a disparar bombas de efeito moral para alvos fáceis que não resistem a uma prosa pomposa.
Falta assunto para preencher uma existência inteira. Monólogos monotemáticos, cada um por si falando dos outros. Por mais tediosos que possam ser, hoje fico com os monossilábicos – talvez seja puro mistério e não vazio o que pensam em silêncio. Talvez entendam que frases precisam fazer sentido como a vida, que formá-las sem eira não é como jogar conversa fora, mas papo furado. Estou com eles e não abro: sem um pio. Porque perder a chance de ficar calado é o meu novo suicídio moral.
Para o raio que o parta
por Vanessa Agricola
Vou te contar, em menos de dois meses a minha vagina vai dilatar dez centímetros até que a cabeça do meu filho apareça e todo o seu corpo saia por ela. Menos de dois meses. Dez centímetros.
A saga começa dez horas antes. Quando uma cólica, maldita, me dá vontade de fazer cocô na calça. Se Deus for justo, devo estar em casa, e vai dar tempo de correr pro banheiro, pra minha privada, e ficar lá, até a dor (e o que mais) passar.
Dali a pouco, a tal cólica volta. E eu, já sem nadinha a colocar pra fora, vou entender que não se trata de uma dor de barriga, que não comi nenhuma comida estragada, que finalmente chegou a hora. “Contrações regulares, com duração curta, dores lombares, vontade de evacuar”. São as descrições do início do trabalho de parto que aprendi no curso. Como lidar: tentar dormir, se for noite. Dar um passeio (se for a She-Ra). Escrever uma carta para o bebê sobre a emoção da chegada (se for completamente louca).
Se me conheço, vou chorar. Não tanto pela dor, mas pela euforia. Vou ligar pro meu marido, ele vai ligar pra doula, os dois vão chegar mas nenhum dos dois me deixa mais calma. Meu filho vai nascer, pomba. Vou ter que me controlar. Até que o tempo entre uma contração e outra não passe de dez minutos é melhor ficar em casa, quieta. Pode durar horas, não sei se vou conseguir. Talvez eu me apresse: Liga pro doutor David, liga pro doutor David! Pra ver se o doutor David libera a ida pro Einstein.
No carro, um puta trânsito. Chegando no Einstein, um puta mau-humor. Bom dia, mamãe, esse neném vai nascer hoje? Quem responde por mim é meu marido, André, que não tem mau-humor nunca. Tá nascendo. Consegue uma LDR pra ela?
LDR é a sigla de Labor Delivery Room, uma sala de parto com banheira para onde as raras grávidas que decidem tentar um parto normal vão. Só tem cinco salas dessas no Einstein (não parece muito, mas considerando a taxa de 79% de cesáreas do hospital é bastante coisa), e como um parto normal não tem data prevista, não tem como reservar uma LDR. O que se sabe, com certeza absoluta, é que as contrações passadas em água quente ficam mais fáceis de suportar. Por isso eu quero tanto a banheira. E por sorte, consigo uma.
Em poucos minutos estou numa água quentinha. Marina, a doula, massageia a minha lombar, e por uns instantes sinto que vai ser tudo bem mais fácil do que eu imaginava. Mas não. Vem uma nova contração, típica da fase ativa do parto, com “contrações mais próximas, de mais ou menos um minuto, muito mais fortes do que a fase anterior”. Como lidar: apoio. Relaxamento. Movimentar o corpo.
Sabe aquela bola de ginástica, a bola suíça? Marina me ajuda a sentar nessa bola e rebolar. Achava constrangedor fazer os movimentos no curso, mas não é que funciona? Eu rebolo na bola e a dor alivia.
André me incentiva, diz que estou tirando de letra, só que a calmaria termina logo, a bola me deixa tonta e chega uma nova fase mais intensa, terceira e última, chamada de transição. “Contrações de mais de um minuto, muita dor, náuseas, tremores, irritação”. Como lidar: mais banheira. Mais massagens. Entrega.
Xingo o doutor David que até agora nada. Uma enfermeira avisa que ele jájá chega e mede a atual dilatação da minha vagina: Sete centímetros. Jajá essa neném sai. Percebo que ela nem sabe que eu vou parir um menino, mas que se foda. Sinto um calor enorme na barriga, lembro que dos oito aos dez centímetros o bicho pega, sinto medo, pânico. Vomito.
Marina me limpa. André me faz carinho. Rejeito os dois. Começo a considerar as dicas de uma parteira badauê da Vila Madalena, que dizia que as vogais do nosso nome tem poder de cura. Ao doer muito, grite as vogais do seu nome, Vanessa, aaaaaa, eeeeeee. Tenho vontade de morrer.
Doutor David entra pela porta. Nem consigo reclamar do atraso. Me anestesia, me anestesia! Ele pergunta: Tem certeza? E eu: Absoluta, esquece a carta!
Pra você entender, eu escrevi uma carta pedindo que o anestesista não me anestesiasse em hipótese alguma. Eu não queria uma anestesia, queria ir até o fim, entrar no transe da Partolândia, quando as contrações são tão fortes, e a dor é tão aguda, que a grávida entra em um estado de demência, ou de não consciência, como se tivesse tomado uma droga.
Em um livro, Quando o corpo consente, li que a dor que uma mulher sente no parto é a mesma que todas as dores que ela sentiu na vida, considerando todas as dores da vida somadas, e que a partir daí, ela se livra de todas elas. Quiçá tenham sido palavras bonitas, que a autora usou só para enfeitar, acontece que essas palavras não saíram mais da minha cabeça. Eu queria gritar, sem anestesia, sem episiotomia, sem nada! Queria sentir todas as dores do mundo, todas as dores que já senti na vida. Queria me livrar delas! Mas quer saber? (Coisa que eu só soube agora). Tanto faz o jeito que meu filho vai nascer. Eu posso ter uma cesárea, posso ter um parto normal, nada é certo. Só que o meu filho vai nascer de qualquer jeito. Com ou sem anestesia eu vou sentir ele sair do meu corpo, vou sentir ele no meu colo, e ele vai olhar pra mim, parecido comigo, ou com o pai que eu amo tanto… e aí, gente, aí ferrou. Eu vou sentir aquele amor, como se fosse um raio. Pum! E é o raio que me liberta. De tudo.
Silêncio! Silêncio, por favor, silêncio!
por Caito Ortiz
Quem pede silêncio pressupõe autoridade. O silêncio como forma de educação sublime, como forma de disciplina, de elevação espiritual.
Ele achava impossível fazer silêncio: “o que fazer, nasci barulhento…” Falou alto desde sempre. E muito. Sua avó dizia para as amigas que ele morava atrás da cachoeira; por isso, o pobrezinho falava tão alto. Era feliz. Cresceu e descobriu o rock’n’roll. Tocou discos, fitas K-7, depois CDs, AIFFs, MP3s, tudo sempre muito alto. O barulho como forma máxima de expressão. Logo pôs as mãos em uma guitarra, que aprendeu a tocar e tocou muito. E alto. Bem alto. Alto, alto, alto.
Nunca ouviu John Cage. Preferia J.J. Cale. Punk rock sempre, sempre em festa e sempre cercado de alegria. Um homem feliz. A felicidade é barulhenta.
O volume da vida aumentou, o trabalho aumentou, a família aumentou, o dinheiro aumentou, as preocupações aumentaram, as responsabilidades, os acertos, os erros, a angústias, as necessidades, os desejos, as decepções, as escolhas erradas. Tudo era excesso, a forma máxima de barulho.
“Silêncio! Silêncio, por favor. Silêncio!”
Um dia acordou diferente. No começo, não percebeu o que estava errado. Sentia-se perdido, como se estivesse vazio por dentro, como se sua natureza o tivesse abandonado. Estava envolto em silêncio. Um silêncio puro, denso, profundo. No fundo da sua alma, sabia que o silêncio um dia o alcançaria.
Em silêncio, a sua essência se fora.
E agora, José?
O silêncio é vazio, é ausência. Com o silêncio veio o medo. Medo de ficar sozinho, de viver sozinho, de morrer sozinho. Só o barulho lhe dava forças. Em silêncio, descobriu-se fraco, como um Sansão às avessas.
Conheceu a tristeza profunda. Chorou muito, sozinho, em silêncio.
A ausência do barulho lhe doía na alma. Uma saudade profunda, uma tristeza que lhe esmagava o peito. Em silêncio, não conseguia mais fazer amor.
Como poderia ser que agora fosse obrigado a viver assim?
Tentou de todas as formas trazer o barulho de volta, mas não conseguiu. Nunca se sentiu tão impotente perante a vida. Descobriu sentimentos que não conhecia e entendeu que sua essência havia se perdido para sempre. Resignado, seguiu em silêncio. Entendeu que o silêncio é uma gruta escura. Aprendeu a sentir prazer em explorá-la, mas essa não era sua essência.
Nunca conseguiu ser verdadeiramente feliz em silêncio.
Mas existe uma esperança: morrer em silêncio deve ser o melhor tipo de morte. Sem agonia, sem barulho.
“Silêncio! Silêncio, por favor. Silêncio!”
Os limites da liberdade
por Alain de Botton
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Para o ateu, a bondade se tornou um conceito desconcertante e desanimador. Há uma abundância de associações paradoxalmente negativas pairando sobre uma “pessoa boa”: piedade, solenidade, fleuma, renúncia carnal, como se a bondade fosse o último recurso escolhido após termos esgotado outros caminhos mais difíceis, porém mais gratificantes. Pensemos naqueles momentos durante a nossa infância quando éramos forçados a obedecer a regras aleatórias na escola, escrever bilhetes agradecendo presentes indesejados, ou realizar serviço comunitário.
Ser “bom” hoje parece desonesto. Os grandes psicólogos da era moderna, de La Bruyère a Freud, mostram de forma convincente que não existem padrões de comportamento intrinsicamente benevolentes. O egoísmo e a agressividade são encontrados no cerne de nossa personalidade, especialmente em indivíduos que parecem querer camuflá-los com grandes manifestações de virtude. A freira, o padre da paróquia, o político abnegado; fomos treinados para detectar as intenções chulas por trás de seus atos gentis. O que aparenta ser bondade sempre inclui ou a obediência ou formas pervertidas de egoísmo (e os biógrafos se encarregarão de descobrir os detalhes sórdidos). Motivos interesseiros parecem estar por trás de todo ato aparentemente benévolo. Analisando bem a bondade, a compaixão ou a piedade, qualquer psicólogo com a cabeça no lugar logo irá se deparar com as pedras fundamentais do caráter: a inveja, a malícia e o medo. Ser otimista sobre a condição humana é ser sentimental, crédulo e bastante ingênuo.
Há ainda outro motivo para desconfiar da bondade, girando em torno de dúvidas insolúveis sobre o que exatamente o conceito de bondade engloba. Após séculos de certeza dogmática, vivemos agora uma era de dúvidas militantes sobre reivindicações éticas. Ninguém parece conseguir enfrentar as “provas” paracientíficas que demandamos deles – assim sugestões foram rebaixadas de status, de verdades objetivas a meros preconceitos. As facções sensíveis e liberais da sociedade reconhecem todos os julgamentos como sendo cultural ou contextualmente específicos, e portanto incapazes de serem elevados ao ranking de verdades de ordem geral.
O pavor do antigo moralismo excluiu qualquer diálogo sobre a moralidade da esfera pública. Quem ousa sugerir que nossos vizinhos possam ser julgados no imenso âmbito chamado “vida privada”? Ao fugir do dogmatismo, ficamos paralisados pelo medo dos perigos das convicções morais. O espírito democrático gerou um ceticismo a respeito da autoridade e da hierarquia em todos os âmbitos. Julgamentos sobre os valores estremecem diante do questionamento ensandecido: quem é você para me dizer como viver minha vida? Aqueles que dizem poder responder são ridicularizados em um tom de voz adotado por adolescentes quando respondem atravessadamente aos pais. Na arena política, não há maneira mais rápida de insultar a oposição se não a acusando de tentar superar o obstáculo impossível de melhorar a base ética da sociedade. Seguramente acreditam naquele mais detestável dos conceitos na política moderna secular: o estado paternalista.
Conhecemos intimamente nossos desejos de ser feliz, bem-sucedido e rico; soaria estranho e repugnantemente presunçoso confessar qualquer equivalente vontade de ser “bom”.
Há um argumento conhecido, para o qual o século XX oferece abundantes provas, que diz que, uma vez que Deus morreu, tudo é possível.
A tese gira em torno de, por um lado, questões de conhecimento, e por outro, motivação. Duvida de que possamos saber o que é certo e o que é errado sem a orientação de Deus. E pergunta se – mesmo que alcançarmos certos princípios – nos sentiremos motivados para honrar esses princípios sem o receio de consequências externas, como o paraíso e o inferno.
Tais questionamentos até oferecem uma lógica superficial, mas são mais vulneráveis do que imaginamos em primeira instância. Dizer que, sem Deus, devemos renunciar a ideia do bem e do mal revela uma dívida ao pensamento religioso que o argumento diz questionar – apenas se acreditarmos que Deus existiu e, portanto, que as fundações da moralidade eram essencialmente supernaturais – só assim o reconhecimento da não-existência de Deus nos forçaria a renunciar aos princípios morais.
Supondo, de início, que foram, é claro, os seres humanos que inventaram Deus, então a linha deste pensamento se despende rapidamente em tautologia. Afinal, por que tudo deve se tornar possível apenas porque humanos reconheceram que eram autores das regras que antes atribuíam a seres supernaturais?
Os códigos religiosos, morais, só existem porque nos foram presenteados por Deus. Porém, para os secularistas, as origens da ética devem ser descritas nos termos mais prosaicos, cautelosos e pragmáticos, os quais, mesmo faltando grandeza, pelo menos soam convincentes aos cínicos mais ferrenhos. Os códigos existem porque os inventamos – e o fizemos em resposta a um dos problemas mais perigosos da existência social: a agressão do homem contra o homem. Morais religiosos foram criados como tentativas de controlar nossa tendência à violência, vingança, ódio, rivalidade, preconceito e infidelidade – que destruiriam a sociedade sem algum controle.
A resposta aos maquiavélicos, que se deleitam em descrever nosso egotismo insaciável, é portanto equivocada. É claro que somos motivados pelo nosso próprio interesse, mas esse interesse necessariamente inclui a nossa comunidade. O que for que individualistas tentem propor, o capitalismo efetivamente não se sustenta sem uma ética forte. O auto-interesse, pois, nos leva a entender os benefícios de agir de maneira bondosa, assim como a sensação única de amenizar a dor do outro, que faz qualquer prazer puramente egoísta empalidecer e se tornar insignificante. (Sempre houve um legado filosófico perverso que diz que um comportamento só deve ser considerado “bom” se a pessoa que o faz não deriva nenhuma satisfação da ação – uma fala tão absurda que não enxerga nenhuma diferença no valor moral entre as ações de um criminoso e de alguém que presta ajuda humanitária, porque ambos tem “motivações” egoístas em seus atos).
O código moral judaico-cristão foi desenhado para fomentar o que nós hoje chamamos de “bons relacionamentos”. Nós não necessária e conscientemente queremos nos tornar bons, mas entendemos bem por que queremos melhorar nossa habilidade de criar laços harmoniosos com nossos filhos, pais, parceiros, colegas e concidadãos – normalmente após termos saboreado a amargura de não o fazer antes de atingir a maturidade.
Nossos códigos religiosos servem de alerta, um alerta que projetamos aos céus e que reflete de volta à Terra através de formas majestosas e desencarnadas. Fortes injunções para sermos simpáticos, pacientes e justos são apenas reflexões daquilo que sabemos que fragmentaria e destruiria nossa sociedade. Essas injunções são tão vitais que por muito tempo não ousávamos admitir que havíamos as formulado, antes que isso desse espaço ao questionamento e à irreverência. Fingimos que a moralidade veio de outra fonte para poder protegê-la de nossa própria prevaricação e fragilidade.
Os que defendem a neutralidade liberal e os críticos do estado paternalista por vezes reagem à ideia de tal sociedade com pavor, apontando como isto iria lesar o mais fundamental dos bens políticos: a liberdade. Durante séculos, o mundo tinha a liberdade em reverência máxima, com razão. Quando governos monarcas exigiam a obediência cega à sua autoridade corrupta, e quando indivíduos que não obedeciam eram achacados por forças equivocadas, repressivas, religiosas e tradicionais, não poderia haver prioridade mais essencial para teóricos políticos do que questionar o poder e rotular a autoridade como inerentemente perigosa, e desafiar tentativas de ditar o comportamento ético de cima para baixo.
Mas devemos nos perguntar se a ideia da liberdade ainda sempre merece a reverência que estamos preparados a lhe dar; se na verdade a palavra não é uma anomalia histórica cujas nuances devemos aprender a interpretar e adaptar às nossas circunstâncias individuais. Questionemos se para sociedades desenvolvidas uma falta de liberdade é ainda o principal problema da vivência comunal. No caos do mercado livre liberal, não nos falta tanta liberdade quanto a chance de usá-la bem. Nos falta orientação, autoconhecimento, autocontrole, direção. Ter toda a liberdade de arruinar sua vida em paz não é uma liberdade que valha a pena idolatrar. Libertários sugerem que conselhos externos de como se comportar devem sempre ser indesejados por atravancar nossos próprios planos bem elaborados. A voz externa é – neste caso – uma voz inerentemente intrusa, indesejada, que impede as deliberações racionais e maduras de agentes livres.
Porém, ao contrário daquela imagem inatingível dos adultos contidos e razoáveis que políticos liberais têm por ser, a grande maioria de nós ainda não passa de um bando de crianças perturbadas que devem sim ouvir os conselhos de um pai sábio. Em muitas situações, desejamos ser aconselhados para nos comportarmos como almejamos, mas ainda não conseguimos, sob a pressão de nosso trabalho e a claustrofobia de nossos relacionamentos. Queremos que outras pessoas nos ajudem a manter o foco nos compromissos que assumimos, os quais às vezes perdemos de vista. A presença do outro, assim como hóspedes, pode nos acanhar de ceder à raiva, ao narcisismo, ao sadismo, à inveja, à indolência ou ao desespero.
A liberdade que faz jus às suas ilustres associações não deve significar a liberdade da autodestruição. Deve ser compatível com ser aconselhado e orientado, e até, em raras instâncias, restrito – e assim nos ajudar a nos tornarmos aqueles que aspiramos ser.
Portfólio: Mariana Tassinari
por Mario Joia
A série Requadros faz a produção da artista paulistana Mariana Tassinari avançar em vetores poéticos bastante interessantes. Uma relação mais imbricada com a arquitetura é um desses ganhos. É bem evidente o quanto a serialização de formas e temas da artista é influenciada pelo lugar de onde partiu a criação de Tassinari: uma planta industrial no interior de São Paulo, típica da arquitetura paulista, tributária do brutalismo em âmbito internacional na área, a destacar estruturas, concreto, e soterrar quaisquer adornos e excessos.
O dado autobiográfico é forte na realização do conjunto. Mariana passou férias de infância e adolescência na região e, hoje, revê com o olhar de artista vestígios, volumes e edifícios que povoam seu repertório desde cedo. Com Requadros, une memória, construção, rigor conceitual e um olhar singular na sedimentação de sua obra, cujo corpo fica cada vez mais robusto.
Companhia Açucareira Vale do Rosário. A etiqueta em um desbotado amarelo grudada em um antigo pôster mal revela suas borradas inscrições, mas dá indícios da imagem que acaba se expandindo para o extracampo do atual registro. Retangular, lembra e reflete – já que existe uma fotografia do conjunto exibido em Requadros, na qual a artista insere suas formas geométricas, de modo digital – as intervenções de cor que Mariana Tassinari trabalhou e desenvolveu em variadas séries, desde 2005, de maneira discreta e consistente.
Requadros talvez seja o recorte de Tassinari mais próximo da arquitetura que assina, ela que, antes de optar pelo curso de artes plásticas, trilhou alguns anos entre as pranchetas, os croquis e as maquetes. Representa ainda um momento mais silencioso na produção da artista, quando demora mais na seleção das imagens a serem trabalhadas e exibidas. Tais recortes, contudo, mexidos com sutileza, evocam com mais força a especificidade desses registros.
Boa parte de Requadros foi captada na metalúrgica Morlan, em Orlândia, próximo à Ribeirão Preto, no interior paulista. A antiga terra roxa de lá, que turbinou a política café-com-leite da República brasileira, hoje é território para a massificada cultura de cana, com usinas ainda de grande poderio econômico. Nesses campos particulares, a planta fabril da Morlan, fundada pelo avô de Tassinari, tem uma história com traços peculiares. O projeto de Eduardo de Almeida, um dos principais nomes da escola paulista de arquitetura, ao destacar estruturas e eleger o concreto como um dos seus eixos, por que não, poéticos, une simplicidade e um caráter permeável a todo o conjunto da construção. Isso transparece nas fotografias de Tassinari, que evidentemente guarda uma perspectiva afetiva – passou na região muitas férias – a respeito da edificação e cuidadosamente retira extratos imagéticos que servem para estabelecer sua série.
O cinza das paredes, o verde dos blocos, o amarelo esmaecido dos pôsteres, o ocre das poltronas e, principalmente, o branco-gelo das lousas geram as relações cromáticas que vão guiar boa parte da sedução visual do conjunto. Combinados numa atmosfera melancólica, esses elementos enfatizam um momento mais fragilizado da escola paulista de arquitetura, tributária do brutalismo e do modernismo na área, a evidenciar a robustez dos materiais e os diálogos entre essa presença e os vazios criados nos prédios. É como se esse discurso da arquitetura brasileira, que teve dias felizes, de ressonância internacional, até a década de 1960, não obtivesse mais receptividade, perdesse interlocução e se desfizesse nas próprias formas.
Parece que o aspecto igualitário, concretamente trazido nos projetos de Almeida e outros grandes nomes, recuou e hoje, com honrosas exceções, sucumbiu a programas bem mais individualistas e cerrados ao público – é só citar o estilo neoclássico, os condomínios fechados e os shoppings/arranha-céus à beira de vias ‘marginais’ para atestarmos a derrocada do modelo. Assim, o esplendor de um movimento próprio e autoral na área parece hoje resistir apenas em memórias, tornando o caráter vestigial – tão destacado por teóricos da fotografia como Susan Sontag e François Soulages – empreendido por Tassinari uma atitude de resistência política. “Uma foto não é uma prova, mas um vestígio do objeto a ser fotografado […]; é, portanto, a articulação de dois enigmas, o do objeto e o do sujeito”, ressalta Soulages.
A geometria sensível criada pela artista vai se revelando aos poucos. Se em Requadros as intervenções de cor são menos presentes, o trabalho em cima dos registros, via sobreposições, reenquadramentos, cortes e referências ao extracampo, é ainda forte, mas não é visível a priori ao observador. Em dípticos, trípticos e polípticos feitos em 2008, um de seus anos mais produtivos, existia uma ressignificação de registros triviais que, pela edição e nova ordenação dela, avançavam rumo a questões da pintura, por exemplo. Em outras séries, Tassinari parecia enfatizar que não era apenas uma artista de pós-produção, colocando então, sobre imagens fotográficas, o traço de desenhos bastante delicados. Hoje, em Requadros, parece assimilar mais o que é dado, o que, diante do caos de informações e imagens, pode ser recolhido e reinterpretado, mas com uma visada menos ostensiva. Dialoga com a solidez do que mais nos ladeia, “corporificada” nos móveis tão sóbrios, que cria como uma proposta multidisciplinar, a dar conforto e estimular o olhar nos momentos mais ordinários, mas não menos potentes.
Occupy São Paulo
por André Tassinari
O padeiro Elias Martins, de 19 anos, foi uma das milhões de pessoas que saíram de casa no último dia 17 de maio para aproveitar um dos eventos mais emblemáticos que São Paulo tem no seu calendário, a Virada Cultural. Durante 24 horas, a cidade, especialmente o centro, fica tomada por uma multidão de gente participando de mais de 900 atrações, de shows tão variados como Racionais MCs e Luiz Caldas a apresentações de stand-up, teatro infantil e música clássica.
Elias e mais três amigos pretendiam virar a madrugada vendo shows. No entanto, em mais um daqueles casos a que infelizmente estamos acostumados, Elias foi morto durante um assalto. Pouco antes do amanhecer, dois ladrões os abordaram na Avenida Rio Branco e levaram seus celulares. Elias, ao acreditar que a arma era de brinquedo, saiu em perseguição aos bandidos, que o atingiram com um tiro no rosto. (Eles foram presos cinco dias depois do crime.)
A comoção que tragédias como essa provoca nos dá a sensação de que estamos na Síria. Muita calma nessa hora. Apesar do medo que sentimos, isso não é verdade. O copo meio cheio de violência nos impede de enxergar com clareza a situação que vivemos. No caso da Virada, pessoas expressam sua revolta declarando que no ano que vem nem vão se arriscar a sair nas ruas. Mas a verdade é que o evento foi um sucesso, apesar da morte de Elias e dos arrastões que ocorreram, e deveria – ao contrário do que pensam alguns – ser cada vez mais valorizado. Não é se trancando em casa que vamos melhorar as coisas.
O ideal mesmo seria fazermos a Virada uma vez por mês. Uma por ano não aproveita todo o potencial de ocupar a cidade com cultura, gente e um bom policiamento (que ainda precisa melhorar, mas não é tão ruim como dizem). Uma mostra disso é que durante a Virada houve menos crimes que num fim de semana típico. Uma Virada por mês faria com que o policiamento fosse cada vez mais eficiente, a sensação de segurança aumentasse e os paulistanos se habituassem cada vez mais a aproveitar seu maltrapilho mas elegante centro, não só na Virada, mas também indo à feirinha da arborizada Praça da República, ao novo café do Theatro Municipal projetado pelos Campana, aos concertos gratuitos na Sala São Paulo aos domingos de manhã.
O centro, aliás, apesar da má fama, é uma das regiões mais seguras da cidade, com poucos crimes violentos. Novamente aqui, nós moradores, de maneira apressada e equivocada, fazemos um julgamento injusto. Por que será? Por que o centro é feio? Tem muito mendigo? Assim como o centro, rotulamos São Paulo como um local muito violento. No entanto, se formos olhar para as taxas de homicídio, índice internacionalmente usado para avaliar o grau de violência de uma cidade, a situação também não é tão grave quanto aparenta.
São Paulo tem uma taxa de 12 assassinatos para cada 100 mil habitantes por ano (essas taxas são sempre calculadas com base em 100 mil pessoas por ano, para facilitar comparações). Isso é muito? Claro que quanto menos melhor. Mas a ONU dá como “aceitável” um número até 10. Aí vão dizer: viu, SP está acima! Sim, é verdade. Mas também é verdade que nos últimos 15 anos melhorou drasticamente, de um pico de 69, em 1999. São Paulo é hoje a capital menos violenta do país, acredite se quiser. O Rio está na faixa de 25, Belo Horizonte e Brasília, 35, Recife, 60, e Maceió, 95!
Outra surpresa aparece quando nos comparamos às cidades dos EUA, país mais rico do mundo, tido por muitos como exemplo de civilidade e provável exílio para quem não suporta mais a violência tupiniquim. A taxa de Miami, onde muitos sonham em ter um apartamento de férias para fugir dessa balbúrdia? 17. Florida não é Estados Unidos, dirão alguns. E Washington, é? Taxa de 18. Chicago? 16. E, apesar de serem casos singulares, nada justifica os índices de Detroit (48) e New Orleans (58). As cidades menos violentas são Los Angeles (8), San Francisco (6) e Nova York, que tem taxa de 4 (após um pico de 22, em 1991). Não é à toa que as eficientes corporações policiais dos filmes sejam dessas três cidades.
Se os homicídios são o pior traço da violência, grande parte deles acontece no entorno do tráfico, entre gangues, longe dos olhos de grande parte de nós. No dia a dia de um cidadão não envolvido com o crime organizado, o maior medo é o de ser morto num assalto, como Elias. Mas a chance disso acontecer é muito baixa: 1 em cada 100 mil moradores por ano tem esse fim trágico. E, apesar de casos recentes, é muito raro isso ocorrer com alguém que não reaja. Se devemos ter um grande medo, é o de morrer no trânsito. Todo ano, a cada 100 mil habitantes, morrem 2 ao volante, 4 dirigindo motocicleta, e 5 andando a pé! Ou seja, a chance de se morrer atropelado é cinco vezes maior do que em um assalto. E estranhamente temos mais medo de andar numa rua escura do que de atravessar fora da faixa.
O que esses números todos nos sugerem? Que devemos ter um pouco menos de preconceito e parar de olhar tudo pelo lado negativo. O Brasil. São Paulo. O centro. A Virada Cultural. Um mendigo. Claro, temos que almejar uma cidade mais segura. Mas em vez de ficar falando mal, se trancar em casa ou fugir para Miami, vamos respirar fundo, ver que a coisa não é tão feia como parece e fazer a nossa parte para que, a cada Virada, os jornais possam destacar mais o cultural e menos o criminal – de preferência com uma Virada por mês.
PS: Este texto foi escrito antes das manifestações na cidade que começaram com foco no aumento da tarifa de transporte e ganharam vulto graças a uma indignação generalizada da população. O título Occupy São Paulo incentiva a ocupar a cidade com cultura, mas também se aplica a ocupar as ruas com protestos por uma cidade e um país melhor – desde que sem violência por parte dos manifestantes ou da polícia.
No hay banda
O silêncio sempre é um palco para uma série de experiências. Vem antes do primeiro beijo, ou quando encontramos a pessoa amada. Pode ser a festa que for, o trânsito, o caos; basta olhar para aquele alguém e tudo se aquieta, ao fundo, e a gente só ouve a batida frenética do coração. Pronto. Mãos ao alto, estamos reféns. O mundo se cala para conceber aquela história que vai se iniciar. Talvez seja essa a impressão quando diante de uma tempestade, que mudará para sempre nossa vida.
O silêncio é tanto o começo como o fim de tudo. Mas comunica sempre. Caminha junto com a existência humana. O silêncio da sala de parto antes de um filho nascer é cortado por um grito de amor que se instala em nosso peito, nomeando aquele alguém dentro da gente eternamente.
Tem o silêncio do segredo, do não dito, aquilo que paira pelo ar e que de alguma forma se impõe e guia secretamente, sombreando a história de alguém. Este aprisiona de forma constante. São aqueles segredos familiares que sempre estão presentes, mesmo nunca revelados.
O silêncio pode indicar tanto um excesso de intimidade – estar só na presença do outro com tranquilidade; aqueles que estão tão à vontade a ponto de não precisar das palavras como forma de entretenimento – quanto escancarar sua falta: aqueles casais que nunca desejamos nos tornar em restaurantes, indiferentes à presença um do outro.
Tem também a calada da noite, na qual somos visitados por nossos medos, dúvidas e ansiedades. Existe um lugar no meu silêncio onde tudo pode acontecer; minha fantasia.
E tem também o silêncio que fica depois da morte de alguém.
Como experiências tão antagônicas podem ser tão semelhantes e ter em sua essência o mesmo barulho?
Depois que meu pai morreu, virou silêncio. E os objetos que ficaram gritam alto o nome dele quando os encontro. E hoje são meu pai, já que ele não mais diz nada.
Enquanto ele existia eram apenas acessórios. Uma agenda preta, óculos, luvas. Hoje são os que me contam a história do meu grande amigo perdido. Olho para eles, resignada, como quem olha para o que sobrou de alguém tão especial, esperando uma migalha daquela existência que era tão vital para mim. Respondem-me em sua imobilidade e, curiosamente, eu o escuto falar novamente.
Dentro de mim, a voz dele ecoa dia após dia. Lá eu o encontro, e então conversamos outra vez. São as lembranças que dançam em minha mente quando estou só, quieta, antes de dormir. Ou quando estou num impasse, diante de uma escolha: dou um passo para trás e ouço-o falar. Respeito essa voz, que agora mora em mim, na minha quietude. O único lugar em que ele continua vivo e, paradoxalmente, onde é imortal, pois vive comigo. É minha herança preciosa, com a qual dialogarei enquanto existir.
Engraçado isso da vida. As pessoas não precisam ser eternas para manter-se dentro de nós. Basta terem sido especiais para deixar um registro. Em psicanálise, a gente chama isso de objeto interiorizado. O trabalho do luto é justamente o de fazer com que se entenda que a pessoa perdida não mais existe na realidade.
No filme O escafandro e a borboleta, o personagem principal é vitima de um AVC e fica completamente paralisado, comunicando-se apenas com os olhos. Compara seu corpo a um escafandro e suas memórias, a borboletas – com as quais viaja a qualquer lugar. Esse objeto interno são essas borboletas. Eternas, coloridas, livres. Devemos nos movimentar a despeito da música que a vida canta.
Não é à toa que, em espanhol, a palavra luto é traduzida por duelo – uma vez que é uma luta aceitar que o mundo não mais abriga aquele objeto de amor. A realidade fica calada, mas, dentro de nós, o barulho pode ser infinito – basta saber se ouvir.
Saber se escutar, se respeitar, é um dom raro, especialmente no mundo de hoje, onde tudo é tão barulhento, rápido e rasteiro. Mas às vezes, se a gente se dá chance, esse contato se faz, puro e genuíno. Nessa hora, escuta-se a intuição e aprende-se a respeitar esse segredo que nosso inconsciente nos conta, tão poderoso mas que, ao mesmo tempo, pode passar despercebido.
Esse seria um silêncio mais contemplativo, que transita em nós com a liberdade de colher imagens, sensações, para compor nossas ideias e percepções. E, quando acertamos com nossa intuição, vem uma sensação de poder e de liberdade indescritível. Diria que é tipo mágica. Algo que nos aproxima da divindade. Esse seria o mesmo caminho da fé.
A fé no sentido não de dogma, ou de doutrina, mas de uma crença interna, que nos alinha a pensamentos de ordem espiritual, sensação rara de estar em contato com o universo como um todo. É nesse lugar que se encontra a paz. Já dizia Gilberto Gil: “Se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar só, tenho que apagar a luz, tenho que calar a voz, (…) ter a alma e o corpo nus”.
E como não falar de como meu silêncio impacta o outro? Marina Abramovich, na instalação The Artist is Present, fica dias calada, sentada, e se oferece ao encontro de estranhos. Nada é dito. Quem chega e a encara tem diversas reações: choram, gritam, tentam fazê-la rir, contam suas histórias… Encontram-se consigo a partir daquele ser imóvel, que os encara. E assim, sentindo-se contemplados por um olhar forte e silenciosamente marcante, têm reações espontâneas.
Basta um olhar contemplativo para que a gente se sinta existente. Um olhar puro, calmo, que recebe e aconchega. Esse também é o papel do analista, quando recebe a história de alguém em seu consultório. Os dois nunca sabem o que está por vir.
A surpresa só pode vir do silêncio. Assim como a tempestade, a saudade, o amor, a vida, a morte e a paz.
Casa de Campo
Com uma extensão de 17 mil hectares, cinco vezes mais que o Central Park, em Nova York, e o Hyde Park, de Londres, o Casa de Campo é o maior bosque de Madrid. Em frente ao Palácio Real, às margens da cidade, já pertenceu à família real, que o usavam para caça e lazer. Foi entregue ao povo durante a Segunda República. No primeiro dia de maio de 1931, 300 mil pessoas vieram ao parque para comemorar o fato de que, pela primeira vez em sua história, abria as portas ao povo. Desde então, permanece um espaço público.
Fechado ao tráfico motorizado por quase toda sua extensão, oferece um habitat natural ideal para todo tipo de fauna: bosques tranquilos onde se esconder, pequenos animais (coelhos), e uma abundância de água em suas numerosas fontes.
Graças a estas excelentes condições, o ecossistema do Casa de Campo hoje abriga espécies evasivas, difíceis de se encontrar, as quais resumiremos abaixo.
Existem diversas descrições e testemunhos divergentes sobre estes habitantes do parque. Algumas pessoas descrevem seres com aparência nefasta, de pele translúcida e baixa estatura – mas, uma vez que, na grande maioria dos casos, a criatura foi vista em fuga, de costas para a testemunha, essas impressões são fugazes e incompletas. As poucas evidências fotográficas existentes não permitem clareza o suficiente para conclusões, mesmo que gerais. Devido à sua natureza evasiva, não sabemos nem se têm língua própria, mas é provável que a tenham e simplesmente prefiram não usá-la na frente de estranhos. São seres desconfiados e receosos que preferem não ser vistos, se possível. Mesmo assim, sempre percebemos sua presença.
Esta simples estratégia – de impor a presença sem serem vistos – garantiu sua sobrevivência, assim como diversas tribos amazônicas desconhecidas.
Quanto aos seus hábitos e comportamentos sociais, os habitantes deste bosque tendem a ficar na sua. Pouco se sabe sobre a natureza de seus afazeres, que, no entanto, parece arraigada em rituais e misticismo. Geralmente vivem em pequenas unidades familiares nômades, independentes umas das outras. Estes grupos às vezes se reúnem para observar certos rituais, como o acasalamento, a caça, ou outras atividades estranhas. Devido à falta de informação, fica difícil avaliar se são, ou não, pessoas boas.
A imensidão de seu ambiente é tal que podem se encontrar a quilômetros de distância do lugar habitado ou trilha mais próxima, e há tantos cantinhos e refúgios no bosque que conseguem observar seus rituais em paz. Resíduos desses rituais são encontrados ao redor do parque, marcos de atividades que pesquisadores custam a decifrar. Para o pesquisador, o transeunte ou o intruso, as evidências arqueológicas sempre indicam a mesma coisa: alguém esteve aqui, alguém fez isso. Há coisa acontecendo aqui.
É essencial entender a natureza multidimensional deles: cada um destes seres translúcidos que habita o Casa de Campo é, na realidade, uma parte obscura, livre e incerta de um cidadão de Madrid. A outra parte desses seres leva uma vida normal, como um administrador de sistemas ou vigia, e ele ou ela normalmente volta a encontrar seu corpo sólido, escuro, através de algum meio de transporte público, como o metrô.
Há certas coisas que devemos fazer sozinhos a céu aberto – não descreveremos em detalhes estas atividades, porque cada um faz o que quer. Mas, para existir, estes habitantes do parque precisam de ambientes sociais de luz fraca para interagir com outros indivíduos, como por exemplo um cinema, talvez com uma luz avermelhada sobre a porta.
Esse habitat apresenta as condições perfeitas: um ambiente natural suficientemente isolado das autoridades, e, acima de tudo, da população em geral. Você não será molestado na Gran Vía, nem, seguramente, nos Himalaias, mas aqui sim – justamente o que leva à proliferação desta espécie. Em 1800, entrar no parque Casa de Campo era ofensa punível por 200 chicotadas, e algo disso ainda paira aqui. O habitante da Casa de Campo, já desprendido de sua parte mais vulnerável, perde o medo de andar sozinho no bosque. Ainda que ameaçado pelo mesmo perigo, a diferença entre um animal selvagem e um visitante com medo da escuridão das arvores é: a falta de medo.
Dizem que as almas dos recém falecidos passam pelo Cerro Garabitas (uma colina dentro do parque) antes de partir de Madrid. Parece que algumas decidem ficar, ou não conseguem se decidir, assim como alguém pedindo esmola na rodoviária que, com o passar do tempo, esquece o destino original que tinha em mente. Essas almas estão condenadas a perambular eternamente pelo purgatório da Casa de Campo.
E tudo o que querem é serem deixadas em paz.
Club Silêncio
por Facundo Guerra
O silêncio não existe, e isso precisa ficar claro desde já. Não que não exista; existe, mas não pode ser apreciado por nenhum de nós, os que respiramos. Portanto, para todos os efeitos ele não existe, não pode existir enquanto pudermos dar nomes às coisas. O silêncio pertence à ordem das ideias, da fé: tendemos ao silêncio, cada vez mais, à medida que tudo depende do cérebro, de uma educação múltipla para a produção eletrônica; mas existe algo antes dele, esse limite último, uma tendência a calar, sem no entanto silenciar.
Trata-se de um absoluto que é demolido pela simples enunciação da palavra, pelo simples pensar sobre ele, e aqui recorro um pouco à física de botequim: o som se propaga pelo ar, todos deveríamos saber disso, e aquelas explosões em batalhas no cosmos, que acompanhamos desde miúdos em filmes de ficção científica, não passam de açúcar para os olhos. Uma explosão no espaço seria triste, contida, silenciosa, se isso fosse possível, e monótona do ponto de vista do fenômeno – uma implosão, se preferir. Nada de labaredas ou kaboons. Ainda que nos desloquemos para o espaço, onde, sem o ar, nosso silêncio ideal seria teoricamente possível, na prática seria impraticável apreciá-lo: nosso corpo produz ruídos todo o tempo. Só a morte o silencia, e, ainda assim, nem ela não o faz de imediato.
Faça a prova: tente silenciar. É tão impossível quanto tentar se suicidar ao prender a respiração. Se existe o som da respiração, se existe o ruído na barriga, se existe a cacofonia de pensamentos em nossas mentes, não existe silêncio. O silêncio é o inimigo da vida. O silêncio, como o nada (outro absoluto), é análogo à morte. Só os mortos são silenciosos.
Por silêncio então entendo seu limite: as alusões, os subentendidos rápidos, que se oferecem à interpretação, o vacilo antes de falar, aquilo que ainda não tem nome ou que nunca terá, o inefável. A fragilidade de algo que é temporário: o silêncio sempre se refugia entre dois sons. E esse silêncio ordenado entre dois sons, bem, esse pode ser chamado de música. Sua antítese, o ruído, cada vez mais corriqueiro; sua expressão mais útil, a ordenação da harmonia.
Criar ambientes que projetam essa música de maneira mecânica é meu ofício. Como no filme de David Lynch, este último, surrealista, Club Silêncio de Mulholand Drive, é um paradoxo: não existe clube silencioso, e esse silêncio só pode ser interpretado por outras chaves. Dependo do silêncio e, ao mesmo tempo, todos os dias, preciso conjurá-lo: um clube de música representa a antítese deste, e também o seu limite: antítese, pois o silêncio é afastado pelas centenas de decibéis projetados pelas caixas de áudio; e aproximação do seu limite, porque a música não só é silêncio ordenado, mas também, em um clube, tem a função de calar pelo volume e pela intensidade. Essa tensão entre o limite do silêncio, a música, e sua antítese, o barulho ensurdecedor, é meu frágil abrigo.
Em um clube, a música precisa ser anatômica. Para cumprir a função de potencializar os estados de humor, deve ser captada por outros sentidos; tem de ser também tato e visão. A luz de um clube precisa saber traduzir em intensidades de cores as batidas sonoras; as frequências projetadas pelo subgrave precisam chegar até a pele. Em um clube, a música poderia e deveria ser apreciada por surdos.
Ao mesmo tempo, a música em um clube cria um silêncio metafórico e subjetivo. Sim, existem a festa e a celebração de vida, que dão razão de existência à música, mas também existem o triste torpor e a encenação falsa do imperativo da felicidade obrigatória e compartilhada através de meios tão sintéticos quanto esta, e as redes sociais estão aí como um exemplo quase palpável dessa expressão. Não existe miséria em rede social: no máximo, uma denúncia estéril desta.
Não importa estar feliz, e sim parecer feliz. O silêncio gera a reflexão, a reflexão cria ameaças para este delicado estado de felicidade, daí a razão de existência dessa música, em tão alto som em um clube, que chega a ser física, que precisa calar, porque não podemos refletir sobre o fato de que, bem, não temos lá muitas razões para expressar tamanha felicidade, o que não nos impede de estar felizes vez ou outra.
Em nenhum outro lugar o silêncio encontra tantas peles quanto em um clube: é ali, paradoxalmente, pela sua falta e pelo seu ordenamento, que o silêncio existe com mais intensidade e que pode ser apreciado de tantas maneiras, sejam estas objetivas ou subjetivas. É em um clube que o silêncio, estranhamente, tem sua expressão máxima. Finalmente faz sentido pra mim Lynch chamar o espaço onde se encontram os protagonistas de Mullholand Drive de Club Silêncio.
Um homem que passa
Fradique ‘folheou e leu o mundo como
um livro cheio de ideias’
Monteiro Lobato, em 1915, aos 33 anos, publicou um artigo, em O Pirralho (então dirigida por Oswald de Andrade), em resposta a uma pergunta que a revista fizera a alguns intelectuais: “Foi Fradique Mendes um tipo representativo de vida superior?” “Rico, belo, inteligente, criador, homem de ação, bondoso, forte, fino, elegante, amável, amado, saúde de aço, tipo 2 de boa torração…”, Lobato escreveu, “Ora, tudo isso é ainda ser menos do que Fradique”. É: porque Fradique foi também um homem livre.
(A correspondência de Fradique Mendes, o último livro publicado de Eça de Queiroz, é dividido em duas partes: na primeira metade, um amigo e biógrafo nos apresenta o personagem; na segunda, lemos suas cartas. Fradique é um personagem fictício, apesar de inspirado em amigos de Eça, incluindo o brasileiro Eduardo Prado – e talvez também no homem que Eça quisesse ser.)
Fradique Mendes foi livre de tudo que pudesse limitar o movimento de seu espírito. Primeiro, foi educado na casa da avó, uma “velha estouvada, erudita e exótica colecionadora de aves empalhadas”, que lhe deixou uma enorme herança nos Açores: espécie de “carta de alforria às contingências pecuniárias que a vida moderna exige”, como escreveu Lobato, o que lhe permitiu dedicar a vida aos assuntos que mais lhe interessassem. Fradique foi livre, em primeiro lugar, financeiramente.
E Fradique se interessou por tudo. Na casa da avó, foi educado por um frade beneditino, um coronel francês e finalmente um professor alemão. Com eles, respectivamente, se alfabetizou em latim, traduziu Voltaire e entendeu a Crítica da razão pura antes da adolescência. Depois, estudou Direito “nas cervejarias que cercavam a Sorbonne” e, quando deixou o Quartier Latin, saiu pelo mundo em viagens de “Chicago a Jerusalém, desde a Islândia até o Saara, sempre empreendidas por uma solicitação da inteligência ou por ânsia de emoções”. Fradique Mendes circulou pelo mundo com naturalidade e com uma curiosidade infinita: também foi livre no sentido, digamos, geográfico do termo.
E Fradique “folheou e leu o mundo atentamente como um livro cheio de ideias”. Ele se dedicou a compreender todos os detalhes das civilizações mais distantes e exóticas do planeta – à procura do “fundo real das coisas”. Frequentou o mundo árabe constantemente, visitou presídios na Sibéria, viveu com culturas quase extintas na América do Sul. E se transformava num cidadão perfeito dos locais que visitava. Se converteu ao babismo quando visitou a Pérsia, frequentou o clube revolucionário Panteras de Batignolles em Paris, participou de rituais positivistas em Londres, foi confidente do príncipe Koblaskini para se converter ao budismo na Índia: “cometa errando através de ideias, embebendo-se convictamente delas”, como diz o seu biógrafo, de cada uma Fradique assimilou a sua “parcela de verdade”. E, apesar de educado no mais rigoroso esquema da tradição universal, inclusive culturalmente Fradique Mendes foi um homem livre.
Esse seu exercício intelectual – a sua busca por essa Verdade no mundo – era extremamente sincero, e a elasticidade do seu espírito não lhe permitia satisfazer-se simplesmente com um sistema, uma ideologia – ou uma opinião pronta. Fradique desqualificava um Baudelaire (intelectual demais), um Hugo (de um “tumultuoso lirismo”), com total naturalidade. Era contra essas pessoas que tratam as ideias como regras de etiqueta – como se fossem feitas para agradar. Fradique foi, portanto, um grande inimigo das ideias feitas.
Mas Fradique nunca deixou que o seu compromisso com os assuntos mais graves da vida secassem o seu espírito ou comprometessem a sua delicadeza social. Ao contrário: estava tão à vontade discutindo a noção do Absoluto entre professores alemães numa cervejaria filosófica em Tubingen quanto, no Zimbábue, entre a tribo dos Matabeles, comparando as vantagens de uma Express e uma Winchester entre caçadores de elefantes. Nunca você encontrará alguém, como diz seu primo ao narrador, “tão simples, tão alegre, tão fácil”. Fradique nunca foi seduzido a praticar um estilo intelectual e nem se considerava um sábio, um filósofo. Antes, diz Fradique: “só me resta ser, através das ideias e dos fatos, um homem que passa, infinitamente curioso e atento”.
Atento também às mulheres, é verdade. “Uma alma extremamente sensível, servida por um corpo extremamente forte”, Fradique costumava encerrar o seu dia, depois de um passeio de carruagem pelo Bios, entre o “efêmero feminino”, cuja influência foi, segundo seu biógrafo, “suprema na sua existência”: “Fradique amou mulheres; mas fora dessas, e sobre todas as coisas, amava a mulher”, que considerava um “organismo superior”, e sobre as quais tinha opiniões e classificações originais, como a que as divide em “mulher interior” e “mulher exterior”. Se foi amado? Magnificamente, conclui no final seu biógrafo. Porque “as mulheres encontravam nele esse ser, raro entre os homens – um homem”. Um homem livre.