#16RenascimentoCulturaSociedade

Confiança e cultura

por Eduardo Augusto Pohlmann

Feltros, de Felipe Cohen (2010)

No início da sua magistral série Civilisation, Kenneth Clark elenca algumas condições que ele reputa indispensáveis para a civilização: “confiança na sociedade na qual se vive, crença na sua filosofia, crença nas suas leis, e confiança nas suas próprias faculdades mentais. Vigor, energia, vitalidade: todas as civilizações tiveram um peso de energia por trás delas.”

Sim, é possível haver culturas e épocas que nasçam e se desenvolvam no medo, no desespero, no tédio, até mesmo no que George Steiner chamou de “o grande ennui” que dominou a Europa do século XIX. Mas, para haver civilização, é necessário haver permanência, e para haver permanência, é necessário confiança.

Qual o estágio atual da confiança que depositamos nos valores, obras e símbolos da civilização ocidental? Gostaria de utilizar um exemplo pessoal para instigar o leitor. Quando, na Inglaterra, participei de um evento chamado The Academy, promovido pelo think tank londrino Institute of Ideas, o evento compreendia uma série de palestras e debates sobre clássicos, história e literatura, e seu objetivo declarado era “lembrar-nos de como deveria ser a universidade: um lugar em que o conhecimento é buscado como um fim em si mesmo, e não apenas como um degrau na escada da mobilidade social”. As nossas companhias, durante os três dias de debates sobre artes liberais e humanidades, seriam livros de grandes autores que pensaram sobre grandes temas e pessoas interessadas no assunto – uma rara defesa do prazer da conversação sobre temas perenes. Para participar como bolsista, era necessário responder a uma pergunta: “deveríamos celebrar a morte da alta cultura ocidental?”

Meu espanto começou quando as respostas foram lidas, e continuou nas interlocuções com os demais colegas. Sendo um evento dedicado aos apreciadores da alta cultura, esperava encontrar ali, perdoem-me a analogia forçada, uma espécie de Corte de Urbino, um local em que os valores que informam o cânone ocidental não estariam em questão. Mas o que mais ouvi foi a mesma litania monocórdica que pervade as humanidades: a dúvida quanto aos próprios valores, a crítica do cânone (acusado de contemplar apenas o dead white European male), a erosão da autoridade, aqui e ali defensores das teses mais radicais do multiculturalismo – como a de que toda cultura possui idêntico valor.

Há vários fatores para esse fenômeno, mas eu gostaria de enfatizar um: a relação entre as críticas à cultura ocidental e a sensação de culpa pelos crimes do imperialismo europeu. Atualmente, a admiração pelas grandes obras e homens da cultura ocidental soa aos ouvidos mais sensíveis como uma vergonhosa defesa e legitimação da sua imposição à força sobre outras culturas. Ou, ainda, que ao defendê-la necessariamente o mérito das outras seria totalmente negado. Assim se parte para o movimento inverso: para expiar a culpa pelo passado, se valoriza a cultura estrangeira em detrimento da própria – quando esta não é desprezada por sua infame ligação com o colonialismo, a exploração, a escravidão etc.

Ora, não deveria ser necessário dizer o óbvio: considerar uma cultura superior (e foge ao objetivo do artigo examinar seus traços distintivos) não implica desprezar as outras ou defender que aquela deve ser imposta à força. Se podemos celebrar nosso cosmopolitismo e abertura às contribuições das culturas mais remotas, isso não precisa vir acompanhado do desprezo ao nosso rico e complexo legado cultural. A apreciação estética não condescendente ou paternalista daquelas obras (para citar apenas um exemplo, tome-se a belíssima arquitetura islâmica) que se situam fora do que se convencionou chamar de civilização ocidental pode tranquilamente andar ao lado da confiança nos valores e atitudes que tornaram possíveis as obras da nossa tradição. E convenhamos: quando se tem nomes e obras como as que nós temos, não deveria ser difícil readquirir tal confiança.

#16RenascimentoCulturaLiteratura

Uma pureza displicente

por Eduardo Andrade de Carvalho

Existem ao menos dois livros fundamentais sobre o homem renascentista: O Príncipe, de Maquiavel, e O Cortesão, de Baldassare Castiglione. Maquiavel escreveu um tratado político – sobre como o homem público deve agir. Castiglione escreveu sobre o homem em sua vida privada: O Cortesão é um manual sobre como deve ser e se comportar um perfeito homem da corte renascentista. As articulações políticas de qualquer câmara de vereadores do interior do Brasil hoje bastam para provar que Maquiavel estava certo – e que, mesmo sem ser amplamente lido, foi totalmente assimilado. O príncipe inaugurou o político moderno, a realpolitik. O tratado de Castiglione, em comparação, é pouco lido, quase esquecido, e praticamente não se fala mais em sprezzatura, a principal característica exigida do cortesão ideal.

Sprezzatura é o oposto de afetação: é uma espécie de displicência calculada, que “demonstre que o que se faz e o que se diz é feito sem esforço e quase sem pensar”. O próprio livro de Castiglione, estruturado em forma de diálogo e escrito em lombardo (e não em latim ou toscano, que seriam opções mais, digamos, eruditas), respeita esse princípio. O Cortesão se passa em quatro noites, em 1506, no palácio do Duque de Urbino – um dos mais bonitos da Itália –, em que membros da mais alta aristocracia italiana estavam hospedados para receber o papa, que deixou os aposentos no dia anterior. O Duque, que tem saúde frágil, precisa dormir depois do jantar, enquanto sua mulher, Elisabetta Gonzaga, entretém as visitas com jogos de conversação. O livro de Castiglione – que serviu à corte de Urbino – é a reprodução de uma possível conversa entre essas pessoas sobre as características exigidas ao cortesão perfeito. A obra foi amplamente traduzida na época – inclusive na Inglaterra – e, em grande medida, fundou a nossa noção de homem educado.

E a primeira recomendação é esta: ter uma certa leveza, uma delicadeza natural nos gestos, na conversação, na forma de se vestir, que faça com que o esforço desapareça mesmo na execução das tarefas mais exigentes. Porque o esforço – a aparência de esforço, na verdade – é o maior inimigo da graça. Não há nada mais entediante (nem mais burro, aliás) do que um discurso muito pensado para parecer inteligente – em que o excesso de cálculo aparece na escolha de palavras difíceis, raras. Esse estudo exagerado, quando é visível, compromete a sensação de naturalidade: como no caso do dom Pierpaolo, narrado por dom Roberto de Bari, que dança “com aqueles saltaricos e as pernas esticadas nas pontas dos pés, sem mexer a cabeça, como se tudo fosse de madeira, com tanta atenção que parece que vai numerando os passos. Quem é tão cego que não veja nisso a desgraciosidade da afetação?”.

Sprezzatura é, portanto, uma espécie de técnica de esconder a técnica – e afastar dos modos do homem (e da mulher, a quem a parte final do livro é dedicada) tudo que seja pedante, pomposo, pensado. É a busca por um equilíbrio natural e delicado em tudo que se faz. E o cortesão de Castiglione deve fazer praticamente de tudo: enfrentar guerras; estar familiarizado com os grandes livros; conhecer música e tocar um instrumento; caçar; conversar agradavelmente; desenhar e pintar; se vestir modestamente, mas com cores, listras e bons tecidos; cultivar os amigos; jogar os jogos da corte; etc. Cabe ao cortesão, aliás, tudo isso fazer com competência, mesmo que não perfeitamente: lembrando que o mais importante é que tudo pareça sempre improvisado, que seja com a “pureza displicente” que encontramos, não por acaso, nos gestos dos personagens do Casamento da Virgem de Rafael – provavelmente o mais fino, mais equilibrado, mais elegante pintor renascentista.

Rafael Sanzio nasceu em Urbino, e o retrato que Rafael pintou de Castiglione talvez seja o melhor retrato seu a que temos acesso hoje. Vasari, aliás, encerra a sua biografia de Rafael com um triste poema que Castiglione escreveu sobre a morte do pintor, que acaba assim: “E a morte se indignou porque [tu] podias devolver a alma aos mortos e porque tu, desprezando sua lei, reparavas aquilo que o longo passar do tempo abolira. Assim, mísero, vencida tua primeira juventude, caíste, lembrando-nos de que todos nós e tudo o que é nosso haveremos de morrer”. Haveremos, mas, enquanto isso, temos obrigação de preservar para sempre, se não os homens, a obra e o espírito de alguns deles.

#16RenascimentoCulturaSociedade

Renascimento perpétuo

por Emmanuel Rengade

Foto de Tinko Czetwertynski

No dia 30 de junho de 2002 – dia em que o Brasil ganhou a Copa do Mundo contra a Alemanha –, sofri um acidente quase fatal. Após ter deixado meu lucrativo emprego em Londres para renovar, sozinho, durante mais de um ano, uma pequena pousada em Picinguaba – uma minúscula vila de pescadores perto de Paraty –, resolvi fazer um break e ver o jogo na cidade. Não conhecia ninguém em Paraty, pois havia seis meses que só trabalhava. Na euforia do dia, encontrei algumas pessoas que me convidaram para assistir ao jogo. A Copa do Mundo era sediada no Japão e na Coreia, por isso a partida seria de manhã. Começamos a beber na véspera, continuamos durante o jogo e depois de o Brasil ganhar o título. A celebração duraria todo o dia.

No final desse segundo dia, acabamos em um barco a motor para tomar um banho de mar perto de uma ilha, na frente de Paraty. O barco era pequeno e meu novo amigo, Pipo – que um minuto depois salvaria a minha vida –, tirou a roupa e mergulhou da proa do barco, com seu impulso fazendo com que o barco girasse mais ou menos 180 graus, enquanto eu, sem perceber, me trocava. Mergulhei logo depois, de cabeça, pela frente, de onde Pipo mergulhara e onde eu pensava estar o oceano, então encontrando rochedos… Esta é minha última memória: um cachorro estava latindo…

Minutos depois estava consciente, coberto de sangue, e alguém costurava a minha cabeça no cais de Paraty. Colocaram-me num táxi para Mangaratiba, o lugar mais perto para uma ressonância. Não tinha nada. Voltei sozinho para Picinguaba e, chegando, encontrei meu vizinho, Marujo, que me viu com a cabeça enfaixada e me perguntou sobre o que acontecera. Falei-lhe que alguns alemães de má-fé insistiram em falar que a final fora roubada e que, portanto, tive de me meter na briga para defender a honra do Brasil (uma referência sutil à final entre França e Brasil em 1998…), e que, inevitavelmente, fiquei um pouco ferido…

Ele pareceu impressionado em como me levantei para defender seu país. Falei que eu era agora um caiçara legítimo, motivo pelo qual aquilo era totalmente normal. Depois, contei para ele a lamentável verdade. Desta vez, não pareceu nada surpreso ou impressionado, e simplesmente falou: “Ah, então você nasceu de novo!” Percebi que isso era exatamente o que acontecera. Tive uma segunda vida de graça! O que iria fazer com isso? Um sentimento de felicidade e força maravilhoso me invadiu. Depois de um ano muito difícil trabalhando, contra o conselho de todo mundo, para fazer nesse lugar o primeiro hotel boutique do país, sem dinheiro, num ambiente desconhecido e longe das cidades, consegui em pouco tempo transformar a Pousada Picinguaba em um dos pequenos hotéis de charme do Brasil. Tinha renascido. Nada podia conter minha energia renovada.

No decorrer da vida, morremos e renascemos muitas vezes, sem que isso seja necessariamente uma morte clínica. É um processo natural, como na natureza. Quando uma árvore recebe um raio, ela continua a prosperar; às vezes mais forte. Quando o mesmo raio provoca um incêndio, a floresta queima, as árvores mais resistentes sobrevivem, as sementes da grama germinam de novo, tudo renasce, regenera. Quando se corta uma bananeira, ela já cresce de novo, indefinidamente. A vida é muito forte. Sempre renasce. É muito difícil apagá-la. Nos desertos mais áridos ou frios, existe sempre vida. A contemplação da natureza nos ajuda a entender que temos uma ideia inexata da vida e da morte: uma não é o inverso da outra; mas a sua condição e necessidade. Celebramos os nascimentos, não as mortes. Outras culturas (no Xingu, por exemplo) fazem o contrário: o nascimento é natural, a morte é celebrada. A morte é a finalidade da vida.

Tenho 25 anos. Estou dirigindo, moro em Lisboa. De repente, em pleno centro da cidade, um carro passa no sinal vermelho e bate no meu a 80 quilômetros por hora. Não estou com o cinto de segurança. Em uma fração de segundo, o carro atinge a parte da frente do meu veículo, do lado do condutor. Uma fração de segundo mais tarde, eu batia no carro da frente, passando através do vidro. Não me machuco. Saio, chocado e bravo, gritando para o condutor imprudente. De repente, depois de meses sem conseguir, eu falo português! O meu carro está completamente fora de uso, sem chance de conserto. Vou para a companhia de seguro. Recuso-me a sair de lá sem um cheque. O cheque é cinco vezes o valor que paguei no meu carro na França (isso foi antes do euro e o meu veículo era um Turbo, na época muito valorizado em Portugal). Pela primeira vez na minha vida, tenho dinheiro no bolso. Mando-me para o Brasil. Viajo um ano com o dinheiro. Nunca mais voltei. Comecei uma outra vida. Renasci.

Tenho 30 anos. Estou agora no meio do mato, no interior do Ceará. Sou um executivo de uma grande empresa americana. Resolvi entrar na maior corrida de aventura de todos os tempos, no norte do Brasil. Oitocentos quilômetros em dez dias, a pé, de veleiro, de caiaque no mar, de bicicleta. Mas acabaram as minhas forças e fiquei perdido no mato. Estou numa rede dentro de uma casa simples, onde há uma paz incrível. Tenho febre. Estou delirando. Escuto um helicóptero me procurando, mas não tenho força nem vontade de me levantar. Estou bem, cercado do amor invisível das pessoas humildes que me recolheram. Não posso andar, tenho os pés machucados. Estou bem, muito bem. Corri durante anos, agora finalmente parei. Vou sair agora desta correria. Vou deixar de ser executivo, vou montar um hotel na praia, vou reaprender a viver. Renasci.

Tenho 35 anos. Estou em um lugar muito remoto da Patagônia, uma fazenda esquecida. E tão remoto que está cheio de animais selvagens, coelhos, raposas, pumas. Em um lago, pesco uma truta gigante, e a preparo para comer. Estou com uma linda mulher. Tomamos um banho num lago frio da montanha. Adormecemos no sol de verão. Quando acordamos, estamos cercados de uma dezena de lindos cavalos selvagens, que se aproximaram, curiosos… o momento está incrível. A natureza nos invade com uma evidência total. Algo dentro me toca profundamente. Sem que isso seja planejado, eu a peço em casamento. Não vejo outra coisa a fazer. Ela sente que eu vou fazer isso. Já entendeu, está pronta. Ela aceita. Ela se chama Filipa, que significa “que ama os cavalos”. Encontramo-nos a primeira vez faz apenas seis meses, numa praia, que se chama a praia da Fazenda. Agora eu sei que a minha vida vai ser compartilhada com ela até a minha morte. Renasci.

Mais tarde, sem bem entender como tudo isso ocorreu, Filipa e eu chegaremos a cuidar juntos de uma fazenda cheia de cavalos, natureza selvagem e lagos. Começamos, sem saber porquê, a seguir os caminhos que poderiam ter levado a uma fazenda, sem planos nem dinheiro, até que um dia ela estava lá. A fazenda ficou, pouco tempo depois, nas nossas mãos, como se fosse algo muito natural. Um dia percebemos que havia nesse lugar algo mais profundo, que nos ligava a uma realidade ancestral. Esta fazenda foi criada e construída por franceses que eram da minha cidade na França, Lyon, numa época em que o Brasil ainda era de Portugal. Filipa é portuguesa, e a família dela morou no Brasil nessa época. Gostaram muito do país, dedicaram-se a ele, mas tiveram de voltar à Lisboa e sempre tiveram saudade do Brasil.

Agora, por causa de alguns cavalos, Filipa voltou. É como se tudo, de uma forma totalmente inexplicável, nos impelisse a fazer o que fazemos hoje: construir, no Brasil, um país que não é o nosso, um lugar para as pessoas se reconectarem, um lugar de renascimento. A verdade é que esses lugares, a fazenda e o país, nos chamaram. Nessa história, o renascimento se confunde com o nosso destino.

É possível que, a cada vez que seguimos o nosso destino, na verdade renasçamos.

No México, centenas de milhões de borboletas Monarca vêm a cada ano do Canadá, sempre no mesmo lugar. Elas fazem mais de 5 mil quilômetros seguindo os ventos, e voltam do mesmo jeito. Mas, no decorrer deste ano, passam-se seis gerações; elas renascem seis vezes. Mesmo assim, sempre acham o mesmo lugar…

Somos bichos da natureza. Ela é o nosso ambiente natural e original. Não é uma questão de preferir campo ou cidade. É um fato. Por isso, por mais que esqueçamos, a nossa memória ancestral se lembra disso. Este ciclo da morte e da vida está gravado dentro de nós. As regras da natureza, então, aplicam-se a nós também.

No decorrer de nossa vida renascemos várias vezes. Talvez renasçamos um pouco todos os dias. Talvez, como na natureza, a gente nunca morra.

#16RenascimentoCulturaSociedade

Panela velha

por Hermés Galvão

Chão ou vão, de Felipe Cohen (2013)

Tomamos uma anestesia qualquer que nos impede de seguir em frente, ir adiante quando todo mundo, no sentido mais amplo da palavra, já passou de fase e experimenta um novo instante, onde tudo parece, se não melhor, ao menos diferente. Nós, não. Repetimos os erros e persistimos nos acertos até torná-los equívocos por exercício de conforto e falta de impulso. Morremos aos poucos dia a dia, confinados em nossa própria história pregressa, revivendo um passado de média glória quando entregamos aos olhos curiosos um pouco de ousadia e criatividade. Faz tanto tempo…

Fomos modernos um dia, quase avant la lettre, diria. Não inventamos, mas caprichamos e adaptamos arte e música, arquitetura e moda à nossa moda; éramos felizes e sabíamos, e levamos à flor da Terra no apogeu do século XX o que poderia ser apenas o começo de um futuro brilhante. Anabolizamos o pouco que tínhamos e não ganhamos musculatura para crescer e aparecer – deu no que deu. Em quase nada. São Paulo em sua inútil paisagem ainda força uma barra pesada naquele (que já foi) bom e (agora é só) velho modernismo outrora irreverente, escandaloso e anárquico que rompeu com estruturas do passado.

Tudo em volta é concreto e armado, bruto e árido; projetos se erguem e ideias se constroem baseados em lições de página virada. Como buscar agora o original e o polêmico quando tudo e todos perderam a pouca crítica que tinham para, então, denunciar a realidade? A queixa vale para conversas e pessoas, todas quadradas. E casas também. A cena é dura, vidrada, pesada, cinza chumbo. É pau, é regra, é o fim de um caminho que segue para o Rio, onde os mesmos moldes de um Brasil inventivo desabaram pela força do tempo e do vento. Ficou de pé aquela base frágil do banquinho e o som morninho de um violão que há meio século não toca um outro refrão.

Nostálgicos de uma Ipanema burguesa – e de todas as outras épocas que não viveram, da belle époque em Paris à crise americana de 1929 –, cariocas ensaiam na mesma praia arranjos com a mesma base para surtir os mesmos efeitos em tempos nada melódicos. De frente para o mar e de costas para o mundo, a vida segue sem recriação, mas com aquela recreação dos tempos do rei. E as princesinhas de Copacabana, naturais e operadas, ainda estão lá, operando a todo vapor. Firmes e fortes, como só elas.

A ver o renascimento, ou talvez a ressurreição, olhamos agora lá na frente com a ansiedade dos medicados para reconstruir nossa temática, nosso destino e estar no mundo. Recapitulando: o modernismo datou, a bossa nova dançou. E nos deixamos prescrever, viramos démodé, saímos de circulação e deixamos de ter, com a mesma velocidade que passamos a ser, brilho próprio e força de foco.

O planeta girou e a gente saiu da roda. Não somos globais, longe disso. Regionais e autocentrados como senhores feudais ou burgueses reais, insistimos porque não existimos – o que aconteceu com a gente? Onde foi que erramos, onde paramos, para onde vamos e com quem? Voltamos tantas casas que já deixamos de jogar, perdemos o fio da meada, o bonde, tudo. Meu realismo, outrora pessimismo, é óbvio e raso, rasante e arrogante. É qualquer coisa para que se sinta qualquer coisa, quando mais precisamos é de uma injeção de ânimo.

#16RenascimentoArteArtes Visuais

Martyrs: terra, ar, fogo e água

Bill Viola é um videoartista americano, nascido no Queens, Nova York. Começou sua carreira na década de 1970 com trabalhos no Everson Museun em Syracuse, Nova York. Foi influenciado por artistas como Nam June Paik, Joseph Beuys, Wolf Vostell, Bruce Nauman e Peter Campus. Seus trabalhos em vídeo consistem em instalações, vídeos e performances, sendo marcados por um uso transparente do aparato videográfico, um controle e um entendimento complexos do tempo, e por um inventivo uso do som. O tom espiritual de vídeos como The passing (1991) é constante em sua obra; já vídeos como Reverse Television (1983) trabalham uma crítica à televisão e à passividade de telespectadores, enquanto Chott-l-Djerid (1979) apresenta imagens “abstratas” que fogem à analogia fotográfica. Ele trabalha códigos simbólicos e reflete sobre a falta de consciência coletiva na arte, e faz um uso muito próprio do sonho e da fantasia. Seu trabalho mais recente é Martyrs (2014), instalação que inaugurou permanentemente na Catedral de St. Paul, em Londres, e que ilustra a capa e uma das galerias – pela primeira vez – desta edição que você tem em mãos.

#16RenascimentoCulturaLiteratura

Ilha, maravilha, utopia, alegoria – notas sobre A Tempestade

por Jerônimo Teixeira

Gravura de Benjamin Smith (1797), inspirada em quadro de George Romney

“Cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo”
Sermão da Sexagésima

“…and the thunder,
That deep and dreadful organ-pipe, pronounced the name of Prosper”

A Tempestade


A expressão foi sequestrada por Aldous Huxley: quando o leitor médio ouve falar, hoje, em “admirável mundo novo” (“brave new world”), de imediato pensa em alguma distopia tecno-eugênica. Mas o admirável mundo novo original seria, na verdade, o Velho Mundo. Seus representantes não viviam em um mundo higienizado e pacificado pelo condicionamento psicobiológico, mas na suja e bagunçada Itália do início do século XVII. Naquela que é a última das peças escritas por William Shakespeare (a rigor, a última que ele terá escrito sozinho, sem um dramaturgo parceiro), cabe à jovem Miranda, criada desde a primeira infância em uma ilha isolada, exaltar em termos elevados a confusa e humilhada entourage do rei de Nápoles:

How beauteous mankind is! O brave new world,
That has such people in’t!

(Como é a bela a humanidade! Oh, admirável mundo novo,
Que tem tais pessoas nele)

Miranda tinha apenas dois anos quando seguiu seu pai, Prospero, duque deposto de Milão, em seu exílio em uma ilha mágica do Mediterrâneo. Lá, teve contato apenas com um pai que, pode-se supor, era austero e emocionalmente frio — e além de tudo um mago de poderes quase ilimitados, capaz até de levantar os mortos —, e com o deformado Caliban, criatura meio anfíbia que tentou estuprá-la. Miranda, aos 14 anos, só conhece, portanto, o superhumano e o sub-humano. Compreende-se que a moça veja tamanha beleza no grupo de nobres que se apresenta diante dela no quinto ato. Huxley apropriou-se de suas palavras com distorção irônica, mas Miranda parece demasiado inocente para a ironia. É uma adolescente de olhos infantis, descobrindo um mundo que está ali desde sempre, mas que para ela resplandece de ineditismo. Prospero responde ao entusiasmo da filha de forma lacônica: “’tis new to thee.” (“É novidade para ti”) — entenda-se: essa gente só é nova (e, por extensão, bela) para a ingênua garota que nada sabe de crimes velhos e feios. Estão ali, afinal, todos os que condenaram pai e filha ao exílio: Antonio, o irmão traidor que usurpou de Prospero o ducado de Milão, e Alonso, o rei de Nápoles, ativo participante da conspiração. Prospero perdoou seus malfeitos — e as razões para tal ato de despreendimento serão talvez o mistério central dessa peça cheia de mistérios —, mas certamente não os esqueceu.

Miranda, é verdade, conhece boa parte dessas tramas sórdidas. O pai lhe contou toda a história logo na segunda cena do primeiro ato, em uma passagem de caráter meio didático (Northrop Frye diz que é uma cena “tecnicamente desajeitada”). Mas a menina já está apaixonada por Ferdinand, filho do rei Alonso, e não tem a disposição de alimentar ressentimentos. Ela obedece aos ditames de seu nome: etimologicamente, “Miranda” está relacionado a “maravilha” (o nome tem, aliás, a mesma raiz latina do “admirável” com que se costuma traduzir “brave” no título da ficção científica de Huxley). Miranda causa admiração — a Ferdinand, e também, obscuramente, a Caliban —, e ela mesma se admira.

Não só Miranda. Nesta peça final, o bardo não mobiliza o indisputável talento para tramar intrigas palacianas e desencontros amorosos que o espectador conheceu em Macbeth ou Sonho de uma Noite de Verão. Há só um fio de enredo aqui, e um resenhista mal-humorado talvez pudesse resumir A Tempestade a um desfile de personagens embasbacados. Miranda maravilha-se com Ferdinand, Ferdinand maravilha-se com Miranda, e o casal maravilha-se com o espetáculo mitológico que Ariel e os espíritos da ilha encenam sob as ordens de Prospero. Alonso e seu séquito encantam-se com os truques de Ariel; até os pinguços Stephano e Trinculo, responsáveis pelos esquetes cômicos da peça, maravilham-se, ou pelo menos se espantam, com o monstro Caliban; e o próprio Caliban mostra-se sensível às maravilhas musicais da ilha, em uma das falas de mais profunda poesia na peça.

Decerto um dos mais indevassáveis personagens de Shakespeare, Prospero não parece se maravilhar com nada. Não poderia mesmo se surpreender com nada: é ele, afinal, o grande titereiro da peça; os seres fantásticos que povoam a ilha, com o elusivo Ariel à frente, são seus comandados. Frye observa que A Tempestade leva ao extremo o expediente da peça dentro da peça que Shakespeare empregara, de forma mais limitada, em Hamlet ou Sonho de uma Noite de Verão. Tudo o que se vê no palco é, em última instância, uma encenação de Prospero, e quando ele pede nosso aplauso, no monólogo final, estamos ouvindo um dramaturgo (o dramaturgo?) que se despede de seu público. Prospero não dá título à peça em que atua, mas A Tempestade é a sua peça. Macbeth não é a peça de Macbeth, nem Rei Lear a peça de Lear — não na mesma extensão.

Poderoso como é, Prospero, porém, não tem o poder de calar os demais personagens. Eis aí, como prova, Caliban, que aprendeu a linguagem articulada para ofender os que o ensinaram. E eis aí Miranda: o arrebatamento da menina não sai invalidado pela reticência do pai. Por um momento, ao menos, o leitor ou espectador deseja ver o mundo como ela vê — deseja acreditar, sem ironia, que a humanidade merece admiração.

II

A Tempestade poderia ser, como tantas peças teatrais do período, uma história de vingança. É para levar adiante um plano de vingança que Prospero faz com que Alonso, Antonio e companhia naufraguem em sua ilha. Por que, então, ele os perdoa? A crueldade com que ele trata Caliban e, às vezes, Ariel — ou até a própria filha, Miranda —, não revelam um homem compassivo. Ele não se comove com a desventura de Alonso e seus homens, náufragos perdidos em uma ilha povoada por ilusões e encantamentos — mas se comove com o fato de que Ariel, criatura não-humana, seja capaz de se comover com o sofrimento humano. Será talvez uma monstruosidade própria do espírito demiúrgico de certos artistas: a representação do sentimento os afeta mais do que o próprio sentimento.

Harold Bloom diz que Caliban é um exemplo do que Freud chamou de “estranho” (unheimlich): a emergência de um traço familiar no que deveria ser completamente desconhecido. O monstro não é humano, mas reconhecemos humanidade nele, e por isso ele nos perturba. Correto. Mas Prospero também é, de forma mais radical, uma encarnação da estranheza freudiana. Sim, ele é um homem, como nós: a fragilidade que ele deixa transpirar depois de abdicar de seus poderes mágicos nos enternece. Mas algo nele permanece além da — passe a palavra meio “clínica”, meio moralista — normalidade. A. D. Nuttall especula sobre um fundo de incesto nas preocupações de Prospero com a virgindade da filha. E vale lembrar que Freud construiu o conceito de “estranheza” a partir de O Homem da Areia, conto de E. T. A. Hoffman que evoca os terrores noturnos do sono e do sonho. Prospero é, a seu modo, um homem da areia. A certa altura da peça, ele faz Alonso e seus cortesãos dormirem. De forma ainda mais perturbadora, no primeiro ato, ele se vale da magia para fazer a filha adormecer.

III

That has such people in’t: exalta-se aqui a humanidade, tal como é, falha, mesquinha, egoísta, e não a humanidade redimida dos utopistas. Mas a ilha é, por excelência, o espaço imaginário da utopia. Eis aí Gonzalo, cortesão do rei Alonso, convertido em socialista utópico avant la lettre logo que chega à ilha. É um dos diálogos mais saborosos de A Tempestade: Gonzalo descreve seu estado (commonwealth) ideal em termos que parecem inspirados pelo retrato idealizado que Montaigne fez dos antropófagos brasileiros, e, a cada passo, sua ingenuidade é ironizada por Antonio e Sebastian.

Gonzalo é um homem bom — aliás, é o homem bom de A Tempestade. Foi ele quem arranjou para que Prospero e a filha tivessem provisões no barco em que foram abandonados em alto-mar (mais importante para a trama, Gonzalo garantiu que Prospero conservasse, no exílio, seus livros de magia). Por contraste, Antonio e Sebastian são rematados canalhas. O primeiro traiu Prospero, seu irmão; o segundo planeja, com ajuda de Antonio, matar o seu próprio irmão, Alonso, para reinar em Nápoles. A rejeição debochada de qualquer ambição utópica como tola e irreal será própria de cínicos como Antonio e Sebastian. E, no entanto, é característico da arte de Shakespeare que os vilões tenham um entendimento profundo da natureza humana. Com agudeza, os dois conspiradores desvendam as contradições da fala de Gonzalo, que se nomeia rei de um Estado ideal no qual todos seriam iguais e portanto dispensariam um soberano.

Shakespeare demonstra, na mesma cena, uma compreensão presciente da psicologia do utopista. Alonso, naquele passo, está desolado, inconsolável, pois imagina que seu filho, Ferdinand, tenha morrido afogado no naufrágio. A certa altura, ele pede que Gonzalo pare de tagarelar sobre sua sociedade ideal, pois aquilo nada significa para ele. No entanto, Gonzalo, o compassivo Gonzalo, segue falando. O utopista só se mostra generoso como o distante homem do futuro; não tem tempo para consolar a dor de quem está próximo e presente. Porque é um homem bom, Gonzalo não dará o passo seguinte exigido pela utopia: não causará dor no presente para construir o mundo do futuro.

IV

Ferdinand, de seu lado da ilha, também imagina que o pai morreu. A bela mas enganadora canção de Ariel consolida seu equívoco:

Full fathom five thy father lies;
Of his bones are coral made;
Those are pearls that were his eyes:
Nothing of him that doth fade
But doth suffer a sea-change
Into something rich and strange.
Sea-nymphs hourly ring his knell
Hark! now I hear them, ding-dong, bell.

Na tradução de Augusto de Campos:

Teu pai repousa em paz a trinta pés:
De seus ossos coral se fez:
Aquelas pérolas que vês
Foram seus olhos uma vez;
Nada que é dele se perdeu,
Metamorfose o reverteu
Em algo estranho e nobre.
Sereias tangem o seu dobre:
Dlin-dlão.
Silêncio! O sino agora,
Dlin-dlão, ora.

Hannah Arendt usou a canção como epígrafe em uma das seções de seu ensaio sobre Walter Benjamin: as metamorfoses marinhas seriam uma ilustração da alegoria barroca que Benjamin estudou em A origem do drama trágico alemão. Pelos milagres da alegoria, “cada personagem, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra coisa”, em um indeterminismo radical que, ao fim, apontava para o alto, para a sacralização do profano. A caveira, alegoria por excelência, pode-se converter no rosto de um anjo, segundo um verso de Lohenstein, um dos obscuros autores alemães seiscentistas examinados por Benjamin.

(Lembrei da citação quando visitei o Hospital de La Caridad, em Sevilha. Em uma de suas paredes, aparece o esqueleto com a foice na mão e um caixão sob o braço, em um aposento no qual estão empilhados emblemas das vãs ambições terrenas: globo terrestre, coroas, espada, livros. É o painel In Ictu Oculi, de Valdés Leal. Olhei demoradamente no fundo das órbitas vazias daquela caveira, e não consegui – provavelmente por uma falha de minha imaginação teológica – imaginá-la convertida em anjo.)

Princípio similar de transformação maravilhosa aparece em um autor barroco mais conhecido (ou, pelo menos, mais conhecido para o falante de português):

“… porque é talvez a virtude dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam, gemendo como pomba, que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em Anjos.”

É o jesuíta Antonio Vieira, em 1633, pregando para escravos em um engenho baiano. Em chave mística, tem-se aqui, mais uma vez, o programa do sofrimento presente que será transfigurado no paraíso futuro — mas não, desta vez, um paraíso terreno: para os pretos, sugere Vieira, o trabalho escravo seria a chave de entrada para o reino de Deus.

Ariel é leve e ligeiro: não será capturado pelos pesados esquemas messiânicos e dialéticos de jesuítas ou marxistas. As caveiras submarinas convertem-se em coral, não em anjos. E o fim, ao gosto do mago que é o mestre de Ariel, não será a redenção, mas a estranheza. Something rich and strange.

V

A restauração será uma modalidade de transformação? Northrop Frye pondera que não existe, ao final da peça, qualquer alteração social. O mordomo Stephano e o bobo Trinculo, que com auxílio de Caliban planejavam matar Prospero e assim tomar a ilha, são punidos, enquanto Antonio e Sebastian, que também participaram de conspirações regicidas, conservam-se em posição de ridicularizar os dois subalternos. Prospero, por mais que pareça estar acima das ambições terrenas, deixa muito claro que seu perdão está condicionado à restituição de seu ducado. Tudo volta a ser como antes, salvo, talvez, para Caliban: não está claro se a ilha, que era dele antes da chegada de Prospero, lhe será restituída. (O monstro decerto seria um sucesso em Milão, exposto à curiosidade pública como o índio que Montaigne certa vez entrevistou.)

A despeito desse figurino conservador, Shakespeare guarda algo para quem gosta de afirmações de igualdade. O contramestre (boatswain) do navio que conduz Alonso e os seus faz parte daquele elenco de personagens “populares” que, nas peças do bardo, sequer ganham nome próprio (o porteiro em Macbeth, o coveiro em Hamlet). No entanto, ele é capaz de afirmar seu valor com a mais altiva — e, na perspectiva dos nobres, desaforada — dignidade. No meio da feroz tempestade que dá título à peça, Gonzalo adverte ao contramestre que não se esqueça de quem está a bordo do navio (ou seja, o rei). O contramestre responde, rápido: “Ninguém que eu ame mais do que a mim mesmo.”

(A fatuidade da advertência de Gonzalo reside no fato de estarem todos, muito literalmente, no mesmo barco. No seu modo figurado, a expressão tornou-se um clichê da conciliação social — e como tal inspira justificado ceticismo. Recorde-se o exemplo célebre do Titanic: pobres e ricos estavam, sim, no mesmo barco, mas os botes salva-vidas serviram, antes de tudo, aos ricos. Não haveria botes no navio do rei e do contramestre. Não fosse a tempestade um encantamento, uma ilusão do mago Prospero, teriam todos, nobres e plebeus, virado coral nas profundezas do mar. O que seria uma estranha forma de justiça social.)

VI

I’ll drown my book” (“afogarei meu livro”), diz Prospero ao renunciar à magia. É um verso estranho, ou pelo menos assim soa ao meu ouvido pouco educado no inglês do período. Caliban, quando conspirava com Trinculo e Stephano para tomar a ilha do velho duque, ameaçava queimar o livro de feitiços e conjuros. Prospero, porém, prefere lançá-lo ao fundo do mar, onde talvez o livro passe pelas metamorfoses submarinas de que fala a bela canção de Ariel. O velho sábio renunciava à magia (como Shakespeare ao teatro?), mas não o faria com um auto-de-fé obscurantista. Se é verdade que Shakespeare colaborou na redação de uma peça chamada Cardenio, hoje perdida, e que portanto teria lido Dom Quixote, podemos presumir que o bardo conhecia o capítulo em que o cura e o barbeiro fazem um grande expurgo na biblioteca do Cavaleiro da Triste Figura.

O testamento de Shakespeare não menciona livros. Fala de vários itens miúdos e famosamente deixa para a viúva (aquela que deu a Joyce a oportunidade de um trocadilho inspirado: “if others have their will Ann hath a way”) a segunda melhor cama de New Place, a casa da família em Stratford. Os chamados “anti-stratfordianos”, defensores das mais malucas teses alternativas para a autoria das peças assinadas por Shakespeare, fazem a festa com esse fato. Então o autor de Hamlet não teria livros em casa? Ora, claro, pois não era de fato um escritor, e sim um mero ator ignorante! Tolice especulativa: Park Honan, autor de uma detalhadíssima biografia de Shakespeare, observa que o testamento, por si só, não quer dizer muito. A biblioteca poderia estar em um inventário em separado. E outros poetas e intelectuais da época deixaram testamentos em que livros não foram discriminados.

(Eu, no entanto, gosto de imaginar que, de fato, Shakespeare morreu em uma casa desprovida de livros. Já estava além dos livros, já podia dispensar toda literatura. Nós, que não somos Shakespeare, temos de acumular volumes e volumes nas prateleiras. E quando chegar a hora, com muita sorte teremos — terei — um exemplar de A Tempestade na cabeceira.)

#16RenascimentoArteArtes Visuais

Morte e renascimento maia: os murais de Bonampak

por Alberto Rocha Barros

Na abertura de Os Gregos e o Irracional (1951), obra decisiva de E.R. Dodds, durante uma visita ao Museu Britânico, um professor de cultura clássica observa as esculturas do Parthenon quando é abordado por um rapaz que confessa não conseguir admirá-las: parecem-lhe “extremamente racionais”. O professor simpatiza: “Creio que o entendia. O que o rapaz estava dizendo era algo que já havia sido dito antes (…) Para uma geração cuja sensibilidade havia sido treinada nas artes africana e asteca, e através de obras de homens como Modigliani e Henry Moore, a arte dos gregos (…) é mesmo propícia a se mostrar destituída de certa consciência do mistério, e de uma capacidade para penetrar em níveis mais profundos e inconscientes da experiência humana.”

Certamente houve um boom de interesse na arte das civilizações antigas e das culturas tribais, sobretudo na Europa da primeira metade do século XX, quando a arqueologia se desenvolveu cientificamente, sítios foram descobertos e abertos ao público, a etnografia tornou-se mais respeitosa e cautelosa, e o turismo transnacional se estabeleceu. Artistas de várias orientações beberam em fontes não-clássicas: as artes tribais da África e da Oceania, assim como a arte pré-histórica e pré-colombiana, foram, cada qual a seu modo, influências decisivas para pintores e escultores do século passado. E muitos aspectos dessas artes não-clássicas produzem sim certa consciência de mistério: elas parecem falar mais diretamente a um mundo pós-freudiano; são, muitas vezes, desconcertantemente modernas, mais oníricas, emotivas, por vezes, violentas, uncanny.

Ocorre que o intuito do famoso livro de Dodds era questionar um pouco essa impressão de realismo racional frio da arte grega. Assim como podemos olhar mais atentamente para a arte greco-romana e enxergar nela tensões e dimensões insuspeitas de sentimentos complexos e profundos, também podemos encontrar uma majestade de composição quase clássica e um diálogo imediato com nossos hábitos de cultura visual nas artes de povos bastante distantes de nós. Os murais de Bonampak, no México, constituem um perfeito exemplo disso.

Na opinião de muitos, a arte maia é uma das mais belas do Novo Mundo e rivaliza com a grega em sua autoconsciência de esplendor, seu orgulho à flor da pele na ciência de seu impacto visual e planejamento atento que ordena as composições. Há nela também um extremo investimento em adornos curvilíneos e as chamadas pirâmides são site specific: as edificações e planos urbanos são desenhados para dialogar com a paisagem natural e geológica que os rodeia e com as estrelas e fenômenos celestiais que os encobrem. Parte do prazer de visitar os diferentes sítios é essa plasticidade do encontro entre os centros urbanos e seu ambiente natural, bem como a compreensão da racionalidade que os ordena: cada ruína maia tem seu charme particular e se apresenta como uma espécie de obra de arte total.

Bonampak é um sítio relativamente menor, na região centro-leste do estado de Chiapas (México), quase fronteira com a Guatemala, e próximo de outros centros maias poderosíssimos no passado, que viviam em perpétuo estado de batalha pelo domínio cultural da região: a majestosa cidade de Palenque, a belíssima e imponente Toniná e a misteriosa Yaxchilán, mergulhada na floresta densa, onde até hoje vemos serpentes e morcegos passeando pelas ruínas e os rugidos dos macacos bugiu assombram as estruturas templares. Embora os índios Lacandones que habitam a região (e que ainda falam uma língua maia) já conhecessem o sítio, foi apenas em 1946 que três norte-americanos descobriram aquilo pelo qual Bonampak ficou famoso: no interior da chamada Estrutura 1 (ou Templo dos Murais), uma fenda na construção havia deixado entrar água pluvial por séculos, formando uma translúcida crosta de carbonato de cálcio que, afortunadamente, preservou os murais mais belos que temos dos maias, considerados hoje um dos pináculos de sua arte e uma das obras-primas da humanidade.

Um dos elementos mais atraentes desses murais é uma cor de tonalidade rara: o renomado azul maia, criado por volta de 300-400 d.C. através da combinação de elementos orgânicos e inorgânicos: um corante índigo obtido a partir das folhas da planta anileira (de onde se obtém também o anil) e paligorsquite, um mineral argiloso. Esse pigmento azul não era apenas um sinalizador de luxo entre os maias, como o cacau e o jade, mas também uma marca de refinamento estético.

O azul maia é uma tonalidade célebre (como o azul egípcio e o International Klein Blue) e oscila entre o ciano e o esverdeado. Dependendo da quantidade de pigmento utilizado, do suporte onde é pintado e da incidência de luz, é possível obter um leque de sutis variações em seu espectro. Em Bonampak o pigmento está também misturado a azurita, um mineral tão raro quanto caro, obtido no extremo norte do México, a mais de 1.200 km de distância.

O Templo dos Murais é composto por três câmaras pequenas (apenas três pessoas podem entrar por vez) cuja função parece ter sido primordialmente estética: a contemplação das artes que elas guardavam. A primeira sala indica uma rebuscada cerimônia de ascensão ao trono da cidade, à dedicação de um templo e à apresentação de uma criança à corte e ao sacerdócio. A segunda sala apresenta uma sanguinária cena de batalha e sacrifício de cativos. Por fim, a terceira representa novas festividades. É possível identificar claramente um projeto nos murais, isto é, uma concepção artística e um grupo de pintores guiados por essa concepção. Mas os murais nunca foram completados em sua época e a unidade narrativa deles é debatida até hoje. Bonampak teve uma vida relativamente breve (foi ocupada por pouco mais de 200 anos) e testemunhou tanto o ápice da cultura maia quanto seu grande declínio.

Em 1994, o levante zapatista tornou seu acesso extremamente difícil. Em 1996, após complicadas negociações, a universidade de Yale iniciou um projeto de documentação detalhado e científico dos murais. No ano passado, o resultado desse projeto foi publicado: o gigantesco e deslumbrante livro The Spectacle of the Late Maya Court: reflections on the Murals of Bonampak (editado por Mary Miller & Claudia Brittenham: INAH e Texas University Press, 2013).

Os murais estão abertos ao público novamente. Fazia tempo que eu queria vê-los ao vivo. Estive lá em abril deste ano com minha irmã. Estávamos exaustos depois de visitar alguns sítios e passar horas no carro. Quando entramos no Templo dos Murais nossa primeira reação foi dizer um para o outro “não deveríamos estar aqui!”. Rimos. Quais são as chances de essas cores sobreviverem à ação do tempo? Conversamos bastante sobre eles — temos um gosto muito semelhante —, e nunca vou me esquecer desse momento com ela. O azul maia é mais duradouro do que se imagina. Bonampak viveu pouco. Seus murais renasceram.

#16RenascimentoCulturaLiteratura

Beleza e verdade

por Thiago Blumenthal

Copo, de Felipe Cohen (2004)

E se Keats estivesse enganado? Essa é a pergunta que me fiz ao debruçar-me recentemente sobre sua obra, um dos maiores poetas românticos de sua geração, em contraponto a ideais estéticos em desacordo com o cientificismo de seu tempo ­— primeira metade do século XIX. O poeta inglês, sabemos, celebra um certo espírito renascentista de registro, de mimesis, da natureza, em seu esplendor e beleza, com o modelo clássico servindo de raiz inspiradora a obras arquitetônicas, plásticas, literárias. E políticas. O idealismo das virtudes gregas capturado pelo projeto de longue durée não passou batido por Keats. Mas me pergunto: e se essa concepção, dentro da visão de mundo europeia, heliocêntrica, não corresponde ao conceito mais formal de verdade?

Em seu poema Ode on a Grecian Urn, Keats concretiza, conceitualmente, a convicção absoluta da “verdade da imaginação” e conclui, nos últimos versos, que “‘Beauty is truth, truth beauty’ – that is all/ Ye know on earth, and all ye need to know”. Da coleção de grandes odes do autor, esta acabou por tornar-se uma das mais célebres e citadas, devida e indevidamente, como é próprio da fortuna de toda e qualquer citação. Tomado pela beleza dos mármores do Partenon, entre centauros e lápitas, o poema, dividido em dois grandes blocos temáticos (de um amante que não pode realizar seu desejo — “Bold lover, never, never, canst thou kiss” —, e de um sacrifício ritualístico, tirado da cena de Sacrifício de Listra, de Rafael, alto período do renascimento), busca responder os possíveis limites da arte. Keats disseca o imaginário renascentista e conclui que só pode haver beleza na verdade, como só pode haver verdade no que é belo.

A corte, a música, o rito religioso, ali descritos e consagrados, em contraposição com a realidade factual da urna que guarda essas narrativas, compõem um cenário espaçado entre dois pontos distintos: a beleza da arte e a humanidade mais real (e “verdadeira”), em contato direto ao apreciar e tocar aquele objeto. Onde se tem que um elemento não somente não exclui o outro, mas serve de condição para que ambos existam. Assim nos conta Keats sob a premissa de que, sim, julgamentos estéticos são os árbitros para qualquer verdade. Como Einstein, um renascentista tardio, que afirmou que as únicas teorias físicas que aceitamos são sempre as mais belas. A equação, no entanto, para fechar, se determina por um outro campo: o tempo e a memória.

Da eternidade das obras renascentistas e do legado do período, por séculos a fio, não duvidamos. Keats, Flaubert, Beethoven, o mot juste em todas as artes e expressões de lá para cá une verdade e beleza em sintagmas indissociáveis. Artistas que trilharam o caminho da exatidão para atingir o belo. O meu ponto é que a doutrina renascentista, que nos foi passada por Rafael, Botticelli, Da Vinci, ultrapassa a mera busca pela verdade. É o caráter mais revelatório de todas essas obras que, muito mais do que um processo preso a um determinismo cego, manifesta uma sensibilidade de escolhas, tangível e essencialmente subjetiva, sem qualquer platonismo que, quando exposto, pode revelar-se às avessas ou fora do escopo artístico.

A verdade não é a beleza, tampouco a beleza está na verdade. A inadequação dos versos finais de Keats, como uma amostragem didática de uma fórmula quase científica, corresponde a uma gradação da natureza que não respeita o aspecto do tempo: com a monotonia da evolução, do primeiro ao último verso, e do leitor de então ao contemporâneo, a beleza se perde da verdade e a obra tende a tornar-se histórica, somente histórica. Um verso se torna um aforismo, uma declaração, uma sociologia aberta ansiando por validação. É belo, e talvez seja verdadeiro. De outro modo: é verdadeiro, e talvez seja belo.

#15TempoCulturaSociedade

Conversa com David Baker

por Eduardo Andrade de Carvalho

David Baker é uma pessoa simpática. Ex-editor-chefe da revista Wired, hoje passa a maior parte de seu tempo dando consultoria e ajudando ou, como ele prefere, provocando as pessoas a viver melhor. David checa email duas vezes por dia, acha extremamente irritante manter uma conversa com alguém que não tira os olhos do celular e só conseguiu usar o Facebook por um mês, não suportou. Seu comportamento em relação à tecnologia vem da experiência que ele tem na área: há mais de três décadas ele pensa, escreve, e dá aulas sobre o assunto. Hoje é professor na The School of Life, a escola criada por Alain de Botton e Roman Krznaric, e vive entre Londres e algum país tropical.

Nosso editor de cidades bateu um papo pelo telefone com ele em fevereiro, quando David estava no Rio estudando português e esperando pelo carnaval.

Eduardo Carvalho: Em primeiro lugar, estou muito curioso sobre seu relacionamento com o Brasil.

David Baker: Na primeira vez que vim, era dezembro, e, literalmente, não parou de chover por uma semana inteira. De repente, estava em uma cidade que supostamente era para ser ensolarada e deveria ter mulheres com penas na cabeça e, ao invés disso, só choveu e choveu e choveu. E você sabe como é o Rio: não tem nada pra fazer quando chove. O que fazer no Rio quando chove?! [em português]. O Rio é um lugar para viver ao ar livre. O que mais gosto aqui são as pessoas na rua. Você conhece pessoas nas esquinas, na praia, e toda essa interação acontece ao ar livre, não tem nada de opressivo. Depois desse traumático primeiro contato, tive que reformular minhas impressões do país. Eu e meu parceiro viajamos muito por aqui, visitamos muitos lugares e vimos muita variedade e, quando nos separamos, senti que deveria voltar para cá e ter uma experiência só minha. Fiz uma viagem que foi muito importante para mim. Atravessei o continente, de Lima, no Peru, ao Rio. Comprei uma passagem de Londres para Lima, e uma passagem voltando do Rio para Londres seis semanas depois. Foi uma viagem muito simbólica. Era a primeira vez que voltava ao país desde minha separação. No minuto que atravessei a fronteira da Bolívia para o Brasil, tive vontade de estar no Rio. Foi uma sensação muito, muito forte, e, apesar de querer ficar no Pantanal uns dias, peguei um ônibus de quarenta horas de Corumbá para o Rio, e segui. Quando cheguei na rodoviária do Rio, mesmo sendo noite, fui até a praia e coloquei os pés na água do mar; me senti extremamente feliz. De certa forma foi como meu segundo batizado. Desde então estou aqui, aprendendo português. Já estou falando bem, estou naquela fase de estar orgulhoso do meu português, estou estudando também latim em Londres, e acabei de terminar meu curso de português avançado. Quero falar mais elegantemente, assim como falo inglês… Eu amo línguas, é como tocar piano. Sinto que sei escrever e falar inglês bem, assim como um bom pianista, mas fluência é uma palavra muito trapaceira, só um nativo dessa língua pode falar com fluência.

Amo o clima tropical, sol, mar, nadar ao ar livre, no mar, nas cachoeiras, nos rios, especialmente quando faz sol. Há três anos, percebi que, durante o inverno inglês, que é tão escuro, eu fico muito deprimido. Não fisicamente deprimido, mas com a energia muito baixa, e me sinto completamente desmotivado. Então decidi que, durante esses meses de janeiro, fevereiro e março, iria morar em outro lugar. No primeiro ano, fui para o México, o que me fez sentir muito melhor o resto do ano, quando estava de volta à tão cinza Londres.

Você conhece São Paulo? Acho que aqui não temos a oportunidade de conhecer pessoas nas esquinas, como você falou gostar tanto no Rio.

São Paulo me lembra Londres. Amo Londres, é uma cidade extraordinária, e gosto de São Paulo, mas não a conheço bem o suficiente para amar. Acho que, quando você conhece alguém em São Paulo, diz: “vamos jantar fora” ou “vamos nos encontrar no shopping”; enquanto no Rio é muito comum bater papo na esquina. Existe algo de muito tradicional nisso e, ao mesmo tempo, muito criativo, porque, para mim, isso significa que as interações entre as pessoas são muito fluidas. De repente uma terceira pessoa pode entrar na conversa; uma outra pessoa vai embora, tem um ir e vir nas ruas que, na minha experiência, acontece menos em lugares fechados. Não acontece em restaurantes; você tem uma mesa para quatro e só. É engraçado. Também gosto de uma das coisas do Brasil que pessoas como eu acham irritante, a contrapartida disso – as pessoas que não aparecem. Você marca às 9h30 e as pessoas não dão as caras, ou aparecem às 11h30. Como europeu, isso me enlouqueceu durante muito tempo, ainda me enlouquece um pouco. Eu ficava muito chateado, não conseguia entender aquilo. Entendia acadêmica e intelectualmente que era uma coisa cultural, mas me parecia muita falta de educação. Se você fizer isso com alguém em Londres, você está dizendo, “você não vale meu tempo”. Você sente isso na pele.

Foi só quando estive a última vez em São Paulo – e fiz isso com alguém que estava muito a fim de encontrar, era um amigo de um amigo – que disse: “vamos tomar uma cerveja na sexta à tarde”. Isso, em Londres, quer dizer “nós vamos tomar uma cerveja na sexta-feira sem falta”, mas, no Rio, é mais “vamos tomar uma cerveja sexta se ainda estivermos a fim”, e eu não estava a fim. Estava do outro lado da cidade, não telefonei, e ele também não. De repente entendi que existe um lado diferente da coisa, útil e amigável, que até então havia apenas compreendido pelo viés horrível de que, “se não vier, é porque te odeio ou não tenho o menor respeito por você.”

No Brasil, é difícil fazer trabalho inteligente. Eu, pessoalmente, gosto de trabalhar bem por períodos mais curtos, fazer pausas, descansar um pouco, ir à praia por umas horas. Para mim, é um jeito muito mais eficaz do que trabalhar oito horas em um escritório. Eu desligo o celular, fecho o e-mail, e me concentro 100% escrevendo, pesquisando, por um hora. Para mim, é o único jeito de manter algum controle sobre o meu tempo. Se alguém vem te ver às 11h30, ou às 12h00, ou às 9h30, todo seu método de trabalho começa a ficar um pouco atrapalhado. O trabalho no escritório pode ser um pouco aleatório, as pessoas chegam, fazem alguma coisa vagamente por oito horas, e voltam para casa. Na minha experiência como funcionário e também como consultor, constatei que muitas dessas pessoas poderiam produzir a mesma quantidade de trabalho em um quarto do tempo. Um dos problemas que tenho com o mundo corporativo é que pagamos as pessoas com base em unidades de tempo – semanalmente, hora, mês. Então, se você é pago por hora, por semana ou por mês, por que não demorar o dia todo para fazer uma coisa só, se, ao final das contas, vai receber o mesmo tanto do que se fizesse dez?

Durante grande parte da minha vida fui autônomo, e, nesse caso, a motivação é trabalhar com inteligência na hora de tomar decisões, de pensar intuitivamente, de gerenciar seus recursos. Assim, você ganha mais pelo seu tempo. Essa é uma questão estrutural importante para nós. É difícil motivar alguém a trabalhar de forma mais inteligente se essa pessoa pode falar: “você quer que eu trabalhe mais, mas vai continuar a me pagar a mesma coisa?”

É por isso que você acredita que é tão importante fazer trabalho manual, por exemplo? Por que você não tem outra opção a não ser focar na produção e cobrar pelo seu produto?

É uma questão interessante. Artesãos e trabalhadores manuais têm uma escolha, porque podem ser autônomos, produzir, receber pagamento por uma cadeira, ou trabalhar para alguém, como em um canteiro de obras. E então há uma motivação para terminar a mesa em um dia, porque, se não, o chefe não os deixa ir para casa no final do expediente. O que nós mais odiamos, como gerentes, é deixar as pessoas irem para casa. Esse é um conceito muito importante, porque nós pensamos que estão sendo preguiçosos de alguma forma, mas é irônico não deixarmos alguém que trabalha bem ir para casa por achar que é um sinal de preguiça. É uma atitude muito paradoxal. Minha preocupação com o trabalho manual é mais ampla do que isso. Acho que são eles que trabalham com o cérebro, porque essas pessoas tem cérebros nas pontas dos dedos.

Tem um livro chamado The Craftsman, de Richard Sennett, que diz algo muito especial: ele fala que, quando algo é feito artesanalmente, algo do artesão é passado para aquele objeto, e assim para a pessoa que o recebe. Acho essa ideia muito bonita, e ela não vale só para produtos artesanais. Por exemplo, com meu iPhone, carrego algo do Steve Jobs comigo, consigo entender seu engajamento, e se compramos uma xícara feita à mão, sentimos algo da pessoa dentro dela. Isso é artesanato.

Vivendo nesse mundo tecnológico, precisamos ficar atentos se isso ainda ocorre, através de nossos atos. Quando escrevo um e-mail para alguém, tento usar uma linguagem correta, não aqueles e-mails de uma palavra só. Isso se deve em parte ao fato de que sou escritor, mas também porque quero que o e-mail carregue um pouquinho mais de mim àquela pessoa. Adoro escrever cartões e cartas, e adoro postá-las…

Ainda faz isso?

Sim, faço. Se vou a um jantar na casa de alguém, gosto de escrever um cartão postal dizendo “obrigado”, em um papel bonito, com uma bela caneta tinteiro, um envelope bonito, e colocar no correio. Além de ser um jeito legal de dizer obrigado, também tem algo especial que acontece. O cartão só chega dois ou três dias depois, quando a memória desse jantar agradável está se apagando, e a pessoa recebe, por ser escrito à mão, parte de você em casa. Acho um jeito bonito de agradecer um belo jantar. Eu faço isso, mas não conheço muitas pessoas que o façam.

Eu também faço isso, as pessoas amam receber.

As pessoas fazem isso de volta?

Não, eu faço isso às vezes.

Eu quase nunca recebo algo assim. Adoraria!

Acho mais comum entre as mulheres.

Por que isso?

Não sei. Talvez elas sejam menos distraídas…

Talvez elas não priorizem a velocidade como os homens. Um dos problemas é que é um método de comunicação muito lento. Você tem que comprar o cartão, escrevê-lo, selar, ir até o correio e postá-lo; além disso, demora três dias até chegar! É o exato oposto de enviar um whatsapp. O whatsapp posso enviar antes mesmo de sair da casa da pessoa, ou logo depois do jantar, dizendo: “obrigado pelo jantar”. Acho legal mandar uma mensagem de Whatsapp, mas, de certa forma, mandar um cartão consome mais energia e tempo, e acho que nós, homens, somos desencorajados a curtir esse ritmo mais lento, especialmente no trabalho. Devemos tomar decisões rápidas, tudo tem que ser veloz. Escrevo cartas no papel, digitalizo e mando por e-mail para ver que emoção isso suscita. É estranho porque você está enviando um e-mail em branco com uma imagem anexada de um texto escrito à mão. É a mistura da velocidade da tecnologia e a vagareza do correio.

Porque você passou de jornalista para professor, e acho que também a fazer coaching?

Nunca tive apenas um emprego. Sempre gostei de desempenhar várias funções ao mesmo tempo, e nunca priorizei uma mais do que o outra. Quando me mudei para Londres, era barman e foi um emprego tão importante quanto ser editor-chefe da revista Wired. Penso que temos que encontrar a essência e o prazer de cada emprego. Não sou um especialista. Obviamente que o papel do especialista é muito importante, mas sou um generalista. Busco um pouco de inspiração em todos os lugares. Comecei a trabalhar como jornalista em 1987, mas, na verdade, queria ser ator. Eu era bom ator, mas não o suficiente. Talvez eu quisesse dizer isso quando falava de não ser especialista. Você precisa imaginar que atuar é a única coisa que pode fazer, e eu conseguia pensar em 99 outras coisas que poderia fazer ao mesmo tempo. Isso me impediu de me comprometer com algo em que não era bom o suficiente, ou a não ter comprometimento com um talento. Então, comecei a escrever críticas de teatro para a Time Out, e eles me davam dois ingressos e cinco libras para cobrir o transporte até o teatro. Foi quando percebi que gostava muito de escrever também, e me tornei jornalista. Conheci pessoas que trabalhavam em revistas e me tornei o que chamamos de subeditor, que é basicamente a pessoa responsável por fazer o texto caber nas páginas e certificar-se de que está fluido e alinhado às manchetes e tudo mais. Acho uma habilidade incrível. Ao mesmo tempo eu ensinava inglês para estrangeiros, e amava muito lecionar. Então comecei a trabalhar esse lado do ensino, e também sou muito fã da psicoterapia. Comecei a fazer um curso de psicoterapia duas vezes e parei, o que é bastante interessante. De alguma forma essas três coisas acabam se juntando. É interessante ensinar algo que é muito difícil de entender, e ajudar as pessoas a navegarem essa curva lenta e empolgante de aprendizagem. A psicoterapia é algo que fazemos na The School of Life, porque, apesar de não sermos oficialmente uma organização dedicada à terapia, estamos pedindo para que as pessoas pensem em coisas importantes em suas vidas. É muito importante para nós oferecer um espaço onde se sintam à vontade para pensar nessas coisas. Não é exatamente uma aula onde alguém leciona sobre Kierkegaard ou Nietzsche; é uma aula onde conversamos um pouco sobre Kierkegaard ou Nietzsche, mas pensando em como isso se aplica à sua vida no momento.

Na The School of Life criamos um ambiente onde as pessoas se sentem à vontade. Não é uma sessão de terapia em grupo; não é uma daquelas experiências onde as pessoas exorcizam coisas e choram. É mais uma questão de promover um ambiente seguro, tranquilo, no qual eu talvez diga algo que vai ressonar em você, e não necessariamente de um jeito bom. Talvez suscite arrependimento, ansiedade, medo, irritação, fúria, seja lá o que for. Mesmo sem ser uma terapia, quero que você sinta uma emoção. Talvez isso o leve à terapia, e você possa dizer: “de repente senti muita raiva e percebi que precisava entender porque reagi assim”.

É uma forma de tentar ajustar ou corrigir uma emoção através de um processo cognitivo ou um entendimento racional da vida?

Não, é muito mais denso que isso. Em primeiro lugar, não acredito que estou tentando corrigir ou ajustar emoções. Para mim, o mais importante é tentar ajudar alguém a aumentar sua autonomia. Acredito que todos podemos controlar nossas vidas. Me irrita profundamente quando alguém diz: “Se anima, vai!” Acho uma coisa totalmente ridícula de dizer para alguém. Por que não: “Nossa, estou vendo que está chateado”; e talvez eu então pense: “É mesmo, preciso me animar”. É uma questão de controle e autonomia.

Não quero ensinar as pessoas como serem felizes. Mas provavelmente vou discutir muitas maneiras de pensar sobre a felicidade, e então podem decidir se estão felizes ou infelizes, e se querem mudar. Mas o principio por trás da The School of Life é ajudar as pessoas a levarem uma vida melhor. E é claro que “levar uma vida melhor” implica um certo juízo de valor.

Por exemplo, oferecemos uma aula que se chama “É necessário ter um relacionamento amoroso?”, e acho que muitas pessoas, se você lhes desse um pedaço de papel, poderiam escrever sobre o que nossa cultura acredita sobre relacionamentos, e por que são bons, e, lá no topo da lista, estariam aqueles dois velhinhos juntos há cinquenta anos, e perguntamos: “Qual o seu segredo?”; e eles respondem algo do tipo: “Nunca dormimos chateados um com o outro”. Na nossa cultura, acreditamos que um relacionamento monogâmico, provavelmente heterossexual, duradouro, amoroso, e sem ódios, seja o melhor. Provavelmente colocaríamos, no final da lista, alguém… pessoas com o comportamento promíscuo ou desrespeitoso, por exemplo. Medimos nossos relacionamentos contra essa lista de prioridades. Diria que, em certos momentos da vida, não seria melhor estar solteiro do que estar com alguém? Exploramos essa ideia através dos grandes pensadores que argumentam a favor da solteirice. Não estou dizendo “vocês devem ficar juntos” ou “você deve ficar solteiro”. A ideia é simplesmente plantar as sementes do pensamento, na esperança de que uma pessoa pegue uma dessas sementes e ela desabroche no pensamento desse pessoa. Se, no final da aula, cada pessoa sair com apenas um novo pensamento, ideia, uma nova forma de enxergar alguma coisa sobre a qual não havia pensado antes, então fizemos nosso trabalho.

E quando você fala de equilíbrio trabalho/vida, como exatamente define o trabalho? E em que ponto é separado da vida?

Em primeiro lugar: é uma frase engraçada, não é? Porque o trabalho faz parte da vida. Então, como podemos equilibrar o trabalho e a vida? Conversamos muito sobre isso. Talvez a palavra equilíbrio esteja errada. Mas, de certa forma, gosto muito da frase, porque chama atenção ao quanto o trabalho vem ganhando importância. Muitas pessoas, por várias razões, priorizam o trabalho acima de tudo, a curto e longo prazo. No longo prazo, acho que talvez se preocupem mais em trabalhar do que em achar um namorado ou uma namorada. E, a curto prazo, provavelmente ficam até tarde no escritório, e cancelam aquela ida ao cinema com seus amigos, em vez de cancelar o trabalho para ir ao cinema.

Não me sinto muito à vontade com isso. Às vezes acho importante cancelar o cinema para trabalhar, mas também acho que há situações, para mim mais comuns, onde é mais importante ir ao cinema com seu amigo. Posso filosofar e falar da qualidade da amizade ou algo assim, mas, na verdade, é tão importante quanto entregar o projeto dentro do prazo. O problema é que trabalhar nos dá dinheiro, e ir ao cinema, não. Então existe uma ilusão de que, se não ficarmos no escritório até tarde, e formos ao cinema, perderemos o nosso dinheiro, ou até nosso emprego, e então talvez percamos a casa, e logo, logo estaremos dormindo na rua. E não estou sendo superficial. Acredito que as pessoas que gostam deste tipo de capitalismo (e sou fã do capitalismo) acreditam na fantasia de que precisamos continuar produzindo porque, se pararmos, não estaremos no topo da cadeia. O psicólogo britânico Oliver James descreve isso muito bem, um fenômeno chamado Affluenza. Ele diz que muitos de nós concordamos em fazer um trabalho um tanto miserável para receber bem, que normalmente são empregos de colarinho branco. Tenho muitos amigos que trabalham em bancos e odeiam o que fazem, mas ganham rios de dinheiro. Então você trabalha de segunda a sexta, fica até tarde no escritório, naquele emprego odiado, e no fim de semana você se recompensa, comprando alguma coisa, viajando, seja lá o que for, e normalmente paga com seu cartão de crédito, o que quer dizer que, na segunda, você terá que voltar ao trabalho para pagar aquilo que comprou no fim de semana. E assim vai, sem fim. E, lá na frente, você compra uma casa maior, ou um segundo ou até terceiro carro, e vai em férias cada vez maiores, e compra casas cada vez mais caras, e é igual a um rato correndo numa roda sem fim. E é exaustivo, e eu sei disso. Eu já trabalhei em coaching com muitas pessoas muito ricas e muito exaustas. O Oliver James sugere que este tipo de mundo está gerando uma epidemia de depressão, resultado dessa ética de trabalho.

Mas o que mais gosto na questão de encontrar um equilíbrio entre a vida e o trabalho é disseminar essas ideias, mas não apenas dizendo “você não deveria trabalhar em banco” ou “você não deveria trabalhar tanto”. Ao invés disso, discutimos ideias como a Affluenza de Oliver James, ou como priorizamos o trabalho acima de tudo na vida. Ou é ao contrário? Existem muitas pessoas que priorizam o resto da vida acima do trabalho, e trabalhos que eu e você provavelmente acharíamos muito entediantes. Mas isso não importa – eles trabalham por horas e se divertem fazendo isso. E a uma dada altura vão embora para casa. Jamais ficariam além do expediente, por exemplo.

Então, sabe, analisar ideias assim… e na classe, uma pessoa pode se perguntar: “Como está o MEU relacionamento com o trabalho?” Isso me lembra um amigo do Rio de Janeiro, dono de uma grande empresa. Ele ama seu trabalho, é muito bom no que faz, trabalha horas a fio, e não está exausto. É uma ótima companhia quando não está trabalhando. Ele é o meu exato oposto. Passa o máximo tempo possível no escritório, e trabalha de forma inteligente, e, por isso, toca um negócio multimilionário, e eu sou autônomo.

Não estou dizendo que isso é uma coisa ruim, mas estou dizendo que precisamos pensar em como priorizamos o trabalho em nossa cultura, e se queremos mudar algo a respeito disso em nossa vida.

Quais são as histórias mais importantes sobre as quais escreveu? As que mais gosta, de maneira geral, como jornalista?

Em Londres, fui livro por um dia. Existe uma “biblioteca” à qual as pessoas podem ir e, em vez de retirar um livro, podem pegar uma pessoa emprestada para uma conversa de meia hora. As pessoas são elencadas por listas, mulher mulçumana, operário, policial – rótulos. Eu era o homem gay. Fiz isso porque um amigo meu não pôde ir e me pediu para ir em seu lugar. E foi uma experiência incrível.

As pessoas chegavam, olhavam o catálogo e diziam: “Eu gostaria de pegar a mulher muçulmana emprestada.” E às vezes tinha uma lista de espera ou algo assim. Nós todos esperávamos nos fundos da biblioteca e ficávamos meio nervosos pensando: “nossa, e se ninguém me escolher?”; e ficar, literalmente, juntando poeira na prateleira, achando que ninguém o vai escolher. E tinham pessoas que eram escolhidas o tempo todo. Tinha um cara, ex-membro de uma gangue criminosa, que, quando adolescente, tinha se envolvido com o crime e carregava uma arma… As pessoas pediam por ele o tempo todo; era muito popular. Por fim, três pessoas me pegaram emprestado. Conversamos sobre homossexualidade, sobre minha vida, sobre o que pensavam ou sentiam sobre homossexuais. Não era minha função mudar sua opinião; eu era apenas um livro aberto. Podiam me fazer perguntas e eu podia contar episódios interessantes da minha vida. O terceiro grupo a me “tirar” era composto de três adolescentes negros. Acho que tinham quinze ou dezesseis anos. E eles entraram na biblioteca perguntando o que estava acontecendo, e daí, quando nos sentamos, falaram logo de cara: “Sabe, se nós te víssemos no ônibus e soubéssemos que é gay, teríamos te enchido de porrada.” E eu respondi: “Se entrasse no ônibus e visse vocês três juntos, eu iria sentar em outro lugar ou descer do ônibus, porque ia achar que vocês são do tipo que atacam as pessoas.” Nós quatro tivemos uma conversa incrível, durante essa meia hora. Falamos de como, quando eles entram num ônibus, não é com a intenção de atacar alguém, mas de repente está todo mundo olhando torto porque são negros. Porque estão em três e são jovens… Nós sofremos de uma ansiedade racista em Londres, e esses caras acabam caindo nisso. E então eles me disseram que acabam causando confusão porque é o que todos esperam deles. E eu pensei sobre como as pessoas reagem a mim… Sou muito aberto sobre minha homossexualidade. Não muitas pessoas sabem que eu sou gay logo de cara, mas, normalmente, dentro de alguns minutos de conversa, menciono meu ex-parceiro ou algo assim. É incrível como pessoas em ambos os nossos países matam alguém apenas por ser gay. É inacreditável viver nesse tipo de ambiente e muito nocivo também.

Você mudou sua opinião sobre a influência da tecnologia sobre nós após sair da Wired, ou sempre pensou assim a respeito da tecnologia?

Sempre amei e desconfiei muito da tecnologia. Quer dizer, eu amo a tecnologia. Não me entenda mal. Sinto constantemente que estou atrasado em termos do timing; sempre tem algo novo sendo lançado. Por exemplo, nunca curti as mídias sociais, tive uma página no Facebook por um mês, e não gostei. Era muita informação que eu não queria ver, e as pessoas aparecendo na minha vida pedindo, clamando por atenção, e, se eu não olhasse, ficaria por fora das coisas. Depois de um tempo, saí, e estou muito feliz de não ter uma página lá. Sei que perco algumas coisas, mas todos perdemos algumas coisas. É normal. Não estar no Facebook me dá um foco maior nas coisas que realmente estão à minha frente.

A tecnologia seduz e melhora cada vez mais. Enquanto falamos, ela provavelmente está correndo à nossa frente. Mas agora estamos chegando ao ponto em que a velocidade da tecnologia e o volume de dados que se processa estão além da nossa compreensão, da nossa capacidade de acompanhá-los.

Não quero dizer que as máquinas estão tomando o mundo, mas, de certa forma, estão dominando o mundo. Existe o perigo de delegarmos tanto à automação que perderemos a essência do que nos faz humanos. Não estou catastrofizando, mas acho que chegaremos a um ponto onde não conseguiremos mais entender os efeitos do intercâmbio de dados automático pelos computadores através da internet, por exemplo. Existe um dado estatístico que gosto de citar: “A quantidade de dados que rodam a internet a cada mês é em torno de quarenta exabytes. É uma quantidade enorme! Cinco exabytes equivalem a todas as palavras jamais ditas por todos os seres humanos na história da humanidade. Então, é mais ou menos oito vezes isso circulando na internet por mês. Isso representa uma mudança enorme em termos de percepção e linguagem para nós. Não estamos apenas falando de escrever, de ideias… Não conseguiremos jamais acompanhar esses quarenta exabytes de dados. Mas os computadores conseguem. É por isso que as empresas que estão à frente, hoje, são aquelas de computação. Estamos contentes em aceitar seu domínio?

Parte disso é uma questão política, parte econômica, e parte científica. O Facebook comprou o Whatsapp, a Google comprou uma fábrica de robótica em Boston… Essas empresas vão crescendo e comprando, crescendo e comprando. Se fosse qualquer outra indústria, ficaríamos preocupados com esse comportamento. Se uma empresa começasse a comprar todos os navios cargueiros do mundo, nos preocuparíamos com o monopólio que isso causaria. Precisamos começar a pensar se isso está acontecendo com o Google ou o Facebook.

Qual será o nosso relacionamento com a tecnologia nos próximos dez anos? Você acha que irá piorar nesse sentido, ou talvez outras pessoas como você… Eu também penso como você, na verdade. Dei um passo para trás com essas coisas de twitter e tudo mais. Você acredita que isso acontecerá com outras pessoas também?

Acho que ficará cada vez mais comum as pessoas usarem telefones enquanto falam com você, e isso fará do mundo um lugar mais pobre. Mas algumas pessoas virão a entender que uma conversa entre dois seres vivos é melhor do que ficar olhando o celular. Criei uma regra para mim. Quando recebo amigos para jantar em casa, eles sabem que não usamos o telefone durante o jantar. É uma regra da casa. Eu pareço um careta, um velho carrancudo, mas isso pouco me importa. É muito bom sentar-se ao redor da mesa, e jantar sem os celulares tocando sem parar. Durante meus cursos peço também para todos desligarem os celulares. Acho que é algo positivo, mas nem todos pensam assim.

Começaremos a entender que você pode usar seu telefone aqui, mas não ali, e haverá sempre diferenças – no começo desta conversa, falamos sobre diferenças culturais em relação ao uso do tempo entre o Rio de Janeiro e Londres. Haverá também diferenças de atitude em relação aos telefones e à tecnologia, assim como sobre o que escrevemos no twitter e assim por diante. Será uma coisa comum, e teremos diferentes atitudes culturais. Me preocupo com isso. Acredito em certas características humanas que são muito importantes, como o ofício, o artesanato, o pensar devagar, a sensação de autonomia, e às vezes a tecnologia nos faz sentir como escravos.

Henry Thoreau diz que “o homem cria a ferramenta e a ferramenta recria o homem.” Ele escreveu isso no meio da Revolução Industrial, e acho que estava tentando nos avisar que nos tornaríamos escravos das fábricas. Seria útil escutá-lo mais uma vez nessa segunda revolução tecnológica-industrial, a revolução digital que está acontecendo agora. Se alguém diz “nossa, não entro no Facebook há séculos”, é terrível. Precisamos colocar a ferramenta de volta no lugar dela. Algo que gosto muito de repetir é que só porque a ferramenta existe não quer dizer que precisamos usá-la. Uma imagem que gosto de usar é, por exemplo: a maioria de nós, em casa, tem uma serra em algum lugar, para cortar madeira; mas isso não quer dizer que acordamos toda manhã e saímos correndo para serrar madeira. Usamos a serra apenas quando queremos serrar madeira. Da mesma forma, podemos usar o Facebook quando queremos seja lá o que for que o Facebook nos oferece. Não precisamos nos atropelar para usar uma tecnologia apenas porque existe e está disponível.

#15TempoArteArtes Visuais

Portfólio: Ricardo Alcaide

No prefácio do catálogo de sua exposição de 1964, Arquitetura sem Arquitetos (Uma Breve Introdução à arquitetura Sem Pedigree), que ocorreu no Museu de Arte Moderna em Nova York, Bernard Rudofsky escreveu que, na época, tratava-se de um tema “tão pouco explorado que ainda não tem um nome.” Para Rudofsky, um pioneiro nos estudos de arquitetura vernacular nos anos 1960, a história da arquitetura ocidental não passava de um “catálogo de arquitetos famosos por celebrar o dinheiro e o poder”, cujo conjunto de obras limitaria as possibilidades para referências arquitetônicas futuras. Acreditava ser fundamental explorar outras histórias arquitetônicas pelo mundo. Nas cinco décadas conseguintes, muito foi feito, notavelmente por Paul Oliver em sua obra-prima Dwellings (1987). Porém, para mim, a obra magra e ilustrada de Rudosfky permanece essencial e inspiradora.

Rudofsky reconhece a estranheza de sua frase, “arquitetura sem pedigree”, e oferece algumas nomenclaturas alternativas: arquitetura vernacular, anônima, espontânea, indígena, rural. Esta lista é uma ponte para começar a pensar nas obras mais recentes de Ricardo Alcaide, que passou anos trabalhando entre três capitais – Caracas, Londres e São Paulo. Cada vez mais o trabalho de Alcaide foca as possíveis soluções arquitetônicas às situações sociais. Se interessa especialmente nas contribuições, muitas vezes desconhecidas, da arquitetura vernacular global ao Movimento Modernista na América Latina. Uma das questões perenes de sua prática é como pessoas, em ambientes diversos, lidam com a exclusão socioeconômica.

Em seu livro Dwellings, Paul Oliver nota que moradias nômades, “sejam elas erguidas rapidamente para uso imediato ou pernoitadas, para uso mais intermitente ou prolongado, ou para ocupação semipermanente, serão condicionadas de certa forma pela sua função dentro da vida econômica e social do grupo”.

O projeto de Alcaide está engajado, poética e politicamente, dentro de um discurso de intercâmbio multicultural. Também se interessa profundamente pelos diálogos físicos e psicológicos entre a superfície do corpo – a pele – e a arquitetura temporária. Em fotografias dos sem-teto em Londres, por exemplo, seus corpos marcados pelas suas experiências, doenças e a poeira da cidade, foi desenvolvida uma série em que detalhes da pele desses londrinos foram digitalmente transplantados sobre imagens dos outdoors gigantes típicos de São Paulo, e transformados em réplicas minúsculas em fórmica.

Para viver plenamente, temos que poder sonhar. O título da obra conjunta de Alcaide, A Place to Hide (Um Lugar para se Esconder), propõe essa ambiguidade fundamental, sem oferecer respostas claras. Uma obra parece oferecer uma resposta, mas imediatamente outra desfaz esse entendimento. Um grupo de imagens nos convence que é um catálogo de um tipo de humanidade que se prolifera em zonas de crise, mas outro logo nos mostra detalhes de moradias e espaços públicos e privados totalmente diversos.

Contrabalançado no espaço entre o poético e o político, a justaposição das imagens e objetos de Alcaide passa livremente entre o lúdico e o brutal, ou, materialmente, do macio ao duro. As imagens, expostas sob o título original, A Place to Hide, suscitam perguntas delicadas e engraçadas através de objetos como: uma pia, um canto, vasos de plantas, arranha-céus de última geração… Cultura alta e baixa convivem facilmente nas imagens de revistas de design recortadas e reconstruídas nas formas de edifícios modernistas; a arte gráfica desbotada dos muros da cidade refeita em esculturas de fórmica imaculada. Ao propor muitos tipos de arquitetura dentro do mesmo arquivo, A Place to Hide, Alcaide nos volta o olhar, repetidas vezes, às origens do abrigo.

#15TempoCulturaLiteratura

Mas tudo mudou

por Vanessa Agricola

Obra de Ricardo Alcaide

Sabe aquela turma que não tem mais nada a ver com a sua vida, mas que de vez em quando você ainda encontra porque, sei lá, faz falta ter uma turma. Aquele monte de gente em casa, o telefone tocando sem parar. Hoje em dia ninguém liga! Toca o telefone é a minha mãe, ou meu irmão, é sempre família. Ou então o cara da obra, pedindo mil desculpas, está muito ocupada, pode falar? Gente, eu não sou a Dilma. E se eu não puder falar não vou atender, simples. Mas o Facebook acabou com o telefone. Agora todo mundo só manda mensagem. Chega aquele: ai, que saudaaade, vamos marcar! E ninguém marca porra nenhuma. Qualquer jantarzinho é a maior burocracia, uma tá trabalhando, a outra o filho tá com febre, o outro tem que acordar cedo… Eu me pergunto, é todo mundo tão ocupado mesmo?

Depois que eu casei a coisa piorou muito. Eu acho que as amigas solteiras acham que porque você casou você não quer mais falar com elas. E se você tiver um filho então, nossa, aí elas acham que você morreu. Meu Whatsapp só tem bate-papo das casadas com filhos. Uma quer saber do dentinho, outra do pediatra, ninguém mais fofoca?

E visita? Hoje chega a ser uma afronta você aparecer assim na casa de uma pessoa. O pessoal até recebe, em dia de aniversário, festa, mas não tem mais essa de chamar os amigos em casa, ver um filminho, fumar uma maconha. Pensando bem, quando eu fumava maconha eu recebia bem mais visitas. A maconha une as pessoas. Quando eu fui morar sozinha, fui a primeira das amigas a alugar um apartamento, ali perto da GV. Eu chegava do trabalho e já tinha gente na portaria, me esperando pra fumar maconha. Eu até me irritava, daí a gente bebia, comia, eu dava risada. O apartamento era minúsculo mas vivia cheio. Acabava uma dormindo no sofá, outra no chão, principalmente em dia de balada. Outra coisa que eu sinto muita falta. Outro dia liguei pra Paulinha, carioca, falei, pô, Paulinha, vamos dançar? E ela, Vaness, a night tá nas trevas. Quer ir jantar? E lá fomos nós encher a cara de Coca Zero no Frevinho da Augusta.

É, meu povo, tá feia a coisa. Eu ando tão carente que aceitei esse convite dessa turma nada a ver, mas que eu conheço desde o colégio, pra tomar uns drink nesse Carnaval. A gente tem um passado em comum. Alugamos uma casa na Praia do Rosa, num réveillon, era uma casa looonge, porque ninguém tinha dinheiro, a gente andava muito, porque ninguém tinha carro, e ninguém tava nem aí pra nada disso. Todo mundo andava junto, quilômetros e quilômetros, rachando o bico. Na noite do ano novo, resolvemos tomar um Iglu, um ecstasy. Bom, chegando na festa, não deu cinco minutos eu fui comprar uma água e conheci um gordo obeso. Foi amor à primeira vista. Olhei bem nos olhos dele, vi uma pessoa liiinda, beijei o cara. As meninas passaram a noite tirando foto nossa (não tinha Orkut ainda, graças a Deus), e da outra beijando o Tomba, um cachorro sarnento que ela encontrou na areia. Sabe esses cachorros da Volta dos Mortos-Vivos? Esse Iglu era muito poderoso. A nega passou a festa com o bicho no colo, depois levou pra casa, e o Tomba ficou lá, virou o mascote da turma…

Mas tudo mudou. Hoje quando a gente se encontra, a única coisa em comum são essas histórias. Pelo menos 85% da conversa é lembrar, os outros 15% sobram pra perceber que nenhuma tem mais nada a ver com a outra. A mais putona virou toda certinha, a mais santinha virou uma puta chata… reclama da empregada, da babá, sabe essas coisas? E justo a do Tomba tá igualzinha. Viraram duas dondocas vestidas de onça. Depois tem três solteiras que só falam de um bar tal cheio de griiingo. Elas se empolgam. Ah, os italianos! Sério? Os italianos? Ah, brasileiro é tudo careta! E nós da outra ponta, casadas com brasileiros, ficamos quietas.

Por fim, alguém retorna às lembranças do Guarujá, quando roubaram nossos tênis na feirinha, e dito isso, eu pago a conta. Chego em casa, vejo meu filho dormindo pela babá eletrônica, me aninho nos braços do meu marido careta, e volto a sentir o quanto a vida é boa.

#15TempoCulturaLiteratura

Mero detalhe

por Léo Coutinho

Obra de Ricardo Alcaide

A expressão está surrada, mas a imagem está aí e, a despeito do aquecimento global, tão logo não vai derreter: “a ponta do iceberg”, através da qual se imagina o tamanho da montanha de gelo boiando com pelo menos 80% de seu volume submerso.

Em quase tudo na vida, e especialmente em política, o tempo pelo qual o Homem é avaliado pode ser considerado a ponta do iceberg. Nas artes, dizem de uma obra que ela levou tanto tempo sendo composta. Na agricultura, comparam a produção por safras. Nem o amor escapou: teve sua medida condenada ao tempo de duração. E o legado de um político é vulgarmente reduzido aos anos de seu mandato.

É uma simplificação da vida prejudicial a todos nós. Tão óbvio como a parte submersa do iceberg é que o tempo de uma obra de arte vai muito além do estágio de confecção; que, numa lavoura, a história da terra conta mais do que a da safra; que o amor só é amor se for eterno; e que o mandato de um político começa muito antes do dia da posse. Mas a gente se acomodou a enxergar só a ponta do iceberg.

O caso do presidente Tancredo Neves é exemplar. Lutou anos a fio pela redemocratização, pelas eleições diretas para a Presidência da República, transformou o colégio eleitoral revertendo a maioria a seu favor e contra o candidato da ditadura militar, e foi eleito, mas, antes de tomar posse, acabou vitimado por uma diverticulite.

Qual seria, então, o tempo do Doutor Tancredo? Começa no esforço incondicional pela travessia rumo à democracia? Ou antes, como parlamentar, ministro, primeiro-ministro, governador? Ou muito antes, pela genética herdada do avô José Juvêncio das Neves, que enfrentou o Império na luta pela República?

Como poderíamos definir a qual tempo ele pertence se, trinta anos depois de sua morte, ainda continuamos a admirar sua obra como se apresentada ontem? Como restringir a importância do que plantou a um período, se a democracia ainda é tão verde e tenra e requer cultivo perene? Como dimensionar o sacrifício da própria vida, através da saúde negligenciada, se não como um amor infinito pelo Brasil? Este é o legado político de Tancredo Neves, o da dedicação total à causa, à utopia, à liberdade.

Em política, o tempo é o que separa os Homens. Políticos comuns ajudam a construir a História. Mas a História só pode ser contada através da participação dos estadistas. E, para eles, o tempo é mero detalhe.

#15TempoEditorial

Editora convidada: Ana Cláudia Arantes

por Ana Claudia Quintana Arantes

Trabalho de Ricardo Alcaide

Trabalho com pessoas gravemente doentes, que, quando chegam aos meus cuidados, já esgotaram todas as possibilidades de cura ou controle de seus males. Isso significa que meu ofício, como médica, concentra-se em aliviar o sofrimento que a natureza da doença vem trazendo. E isso também significa que esses pacientes têm muito pouco tempo de vida.

Preparei-me muito para escrever essas linhas aqui. Não pense que foi por alguns meses apenas, por um simples período ao longo do qual procurei pelas origens das citações e reflexões que me tomaram o sono desde o convite para participar desta edição. Para escrever essas linhas, revirei minha própria história, meu tempo até aqui, o que fiz dele, o que estou fazendo ainda. Busquei antigos textos, livros, entrevistas que concedi a publicações recentes e a outras nem tanto. Numa delas, disse que escolhi essa área da medicina por valorizar meu tempo e que, por isso, sentia-me capaz de valorizar o tempo do outro. Acho que, nessa resposta, dei o melhor motivo de existir, de viver. Dou valor ao meu tempo… Quem está morrendo não tem o que desperdiçar com quem não sabe o valor do tempo, e eu me dedico muito a respeitá-lo.

Lidar com a morte faz parte de quase todos os meus dias. E eu preciso me preparar sempre para cada um deles. A dedicação à minha formação técnico-científica continuada, o cultivo dos valores da humanidade e o constante autocuidado precisam estar em perfeita harmonia. Sem este equilíbrio, é impossível dar o melhor pelo que faço – e é isso o que me permite adormecer em paz todas as noites.

Esse trabalho, porém, nunca pode ser feito no “automático”, pois preciso manter uma atenção plena em cada gesto e ser muito cuidadosa com minhas palavras, com meu olhar e principalmente com meus pensamentos. Todos devem ser absolutamente transparentes diante de alguém perto da morte. É impressionante como as pessoas adquirem uma verdadeira “antena” captadora da verdade quando se encontram com a morte e o sofrimento da finitude. Sempre digo que parecem oráculos… Com uma lucidez incrível, sabem tudo o que realmente importa. E, cada vez mais, fica muito claro que essa lucidez transborda para minha vida também, um grande e sagrado privilégio que entra na conta de uma fala muito comum: “Deus te pague!”. Entendo perfeitamente que é assim que Deus me paga: dando-me tantas chances de aprender com grandes mestres, grandes seres que generosamente ensinam sobre a beleza e o poder da vida, do amor, do perdão, da paz.

As pessoas precisam compreender que não há fracasso diante de qualquer fim, seja de uma relação afetiva, seja de um emprego, de uma carreira, de um espaço, de qualquer tempo, das doenças terminais… O fracasso não existe, pois onde termina um ciclo se inicia outro, sempre e sempre e sempre. Mesmo que não se acredite na vida após a morte, ainda assim é inegável que a vida dos que ficam vai ser outra, diferente. E é preciso ter respeito pela grandeza do ser humano que enfrenta qualquer fim, até a sua morte. O verdadeiro herói não é aquele que quer fugir na hora desse encontro, mas, sim, aquele que a reconhece como sua maior sabedoria.

Hoje, milhões de pessoas se depararão com algum fim em suas vidas. Como é dito no Eclesiastes, perceberão que tudo tem seu tempo e que a vida termina. Cabe a nós, diante do abismo, olhar para trás e reconhecer que o que se encerra nos deu asas a nos entregar e a voar para outros horizontes. Penso que é a grandeza da nossa mortalidade, ou melhor, da consciência da nossa mortalidade.

No Brasil, mais de um milhão de brasileiros morrem a cada ano. E a grande maioria, com grande sofrimento. Sofrimento físico, por falta de formação dos médicos; psicológico, por falta de formação existencial; espiritual, por falta de sensibilidade a respeito do valor da vida. Um dia seremos parte dessa estatística, nossos amados integrarão esses números. E que histórias de últimos dias contarão a nosso respeito? Do que lembraremos nos últimos momentos de quem amamos tanto? O que dirão sobre o que fizemos com o nosso tempo? Hoje estou por aqui para tentar ajudar a encontrar uma boa resposta…

#15TempoCulturaSociedade

Quem é seu tempo? Cronos, kairós ou aion?

por Ana Claudia Quintana Arantes

“Então, o que é o tempo? se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me pergunta, não sei”
Santo Agostinho, Confissões, livro XI

A humanidade caminha, a caravana passa, o mundo gira. Cada um no seu tempo. A verdade maior é que estamos todos muito atrasados em relação a nossa própria vida, pois não sabemos muita coisa. Mas algo que fazemos com maestria é desperdiçar nosso tempo, seja não vivendo o que é para viver, seja vivendo o que ainda não é tempo de viver. Sêneca diz que o Homem é capaz de lutar por qualquer coisa que não lhe pertença. Luta para defender terras, por poder, por escravos, por amores, por seus filhos, por seu povo. Mas é incapaz de lutar para defender seu tempo. Ele também nos diz que o Homem reclama que a vida é breve, mas, na verdade, não é. A vida é longa o suficiente para que se realize grandes coisas e grandes felicidades, mas desperdiçamos o tempo generoso da vida em coisas inúteis, fúteis. Desperdiçamos tempo nas fofocas, nos medos, nas culpas, na preguiça, na destruição do corpo, da mente e do coração. E dedicamos pouquíssimo tempo a viver a vida como pede para ser vivida. E penso que concordo com Sêneca… O que vejo todos os dias são pessoas que, ao refletirem sobre suas próprias vidas, deparam-se, um tanto perplexas, com o tempo que perdem celebrando coisas sem sentido. Brigas, medos, preconceitos, decepções, silêncios. Nada que realmente valha a pena quando se tem consciência de que não há tempo a perder.

O problema é que as pessoas só param para pensar na vida nos momentos de sofrimento, de crise, de doença. Quando tudo está dando certo, não vejo ninguém se perguntar “qual o sentido disso?” Quando estamos na tormenta, porém, de repente tomamos consciência de que nada importa mais do que aquilo que acreditamos ser importante, mas do que não cuidávamos com verdade e entrega. Durante toda a vida temos a chance de nos perguntar sobre o que realmente vale a pena, mas, mesmo diante das melhores respostas, mantemos um firme propósito de nos afastar desses maiores motivos. E o tempo urge.

Tempo, tempo, tempo. O que se fala do tempo? Na mitologia, encontramos respostas. Cronos, filho de Urano, liderando uma rebelião contra seu pai, assume o lugar de rei. Por medo de sofrer o mesmo golpe, Cronos decide devorar seus filhos. Um dia, enganado por Reia, sua esposa, engole uma pedra pensando que devorava Zeus, seu sexto filho. E Zeus sobrevive, destrona seu pai e se torna rei do Universo.

Cronos é o senhor do tempo do relógio, senhor absoluto dos minutos, das horas, dos dias, aquele que nos devora vivos, ao pé da letra. Cronos é uma dimensão necessária para o tempo do lado de fora de nós mesmos, para uma mínima organização da nossa vida, da nossa agenda, do nosso cotidiano. Ele não mostra a intensidade da vida, mas sua duração. No entanto, nos escraviza quando determinamos que o tempo que vivemos “do lado de dentro” seja também regido por ele. Podemos nos tornar escravos do relógio, do tempo cronometrado, do tempo do mundo. Distribuímos o tempo do relógio entre sono, trabalho, família, amigos, exercícios, meditação, lazer, medos, terapia, trânsito, férias, culpas, sonhos. Mas, dentro de nós, não parece existir “duração do tempo”.

Passado, presente e futuro estão totalmente misturados, caoticamente misturados. Por vezes, somos prisioneiros do tempo passado, que não volta para ser consertado, mudando a sua história, mas insistimos em mantê-lo presente na mente, como se acontecesse hoje, trazendo de volta todos os sentimentos (bons ou ruins) que permearam horas passadas. Aquele momento difícil, que tivemos há anos, aconteceu uma única vez, mas se repete como um filme em reprise constante na nossa cabeça. Talvez seja infinita a quantidade de vezes que ouvimos dentro de nós um “eu te odeio” dito, contudo, uma única vez. Não nos damos conta de que essa repetição é inútil. Assim como é inútil tentar vivenciar um momento futuro numa riqueza de detalhes jamais parecida com o que realmente vai acontecer.

O futuro do mundo do ansioso acontece agora e de um modo muito mais intenso do que seu próprio presente. São os nossos enganos devorando nosso tempo Cronos tão cruelmente como esse deus devorava seus filhos, com um passado e um futuro impalpáveis engolindo o tempo presente, desperdiçando-o. A nossa chance de libertação vem com Kairós. Kairós (do grego, momento oportuno) é um portal, que transforma o tempo do relógio no tempo do coração.

“Alice: Quanto tempo dura o eterno? Coelho: Às vezes apenas um segundo.”
Lewis Carroll em Alice no País das Maravilhas

Cronos é o tempo do mundo. Kairós é o tempo da “oportunidade”. Sabe aquele dia em que você encontrou um amigo muito querido de um jeito inesperado (Kairós) e passou horas (Cronos) conversando sem se dar conta de qualquer tempo? Nesse dia você conheceu Aion, o tempo do fluxo, do “caminho feliz” da existência, da totalidade psíquica, do movimento cíclico e incessante da vida, da imortalidade. Quando vivemos a vida no tempo Cronos (na psicologia, o tempo do Ego), falta-nos horas de vida, nos falta vida. Nossa cultura é frágil demais em consciência da finitude humana. Inspira-me Sêneca, pois pode não nos faltar tempo, mas falta maturidade, integridade, realidade. O tempo acaba, mas a maioria das pessoas não percebe que, enquanto fita o relógio esperando o fim do dia, na verdade torce para que sua morte se aproxime mais rápido.

Quando você passa a vida esperando o relógio dar a hora de ir embora do trabalho, amaldiçoando a segunda-feira, se entorpecendo de todas as formas para “compensar” o sofrimento do trabalho quando chega o fim de semana, vive reclamando da necessidade de férias, fazendo mil promessas de melhorar a vida nas intenções do ano novo, ou pior, se você é daquelas pessoas que estudam para concurso público só pra garantir a “aposentadoria”, eu preciso lhe dizer com a máxima urgência: não tem nada errado com seu trabalho, mas há alguma coisa muito errada com sua vida. Não adianta querer dividir seu tempo entre trabalho e vida, porque esta é constante e, enquanto se trabalha, está-se vivo.

Podemos escolher viver até que a morte chegue ou ir morrendo até que a vida termine. Querendo que o tempo passe rápido, desejamos que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido. A opção “vida” não é um botão “on/off” que a gente liga e desliga conforme o clima ou o prazer de viver, pois, com ou sem prazer, estamos vivos 100% do tempo. Vida é coisa constante, incessante até qualquer dia desses. Isso é viver em Cronos… meio difícil mesmo.

Mas, quando estamos no tempo Aion (o tempo do Self), as coisas são muito diferentes. O tempo Aion é descrito nas mandalas, mas o que seria o relógio senão uma mandala? Aion nos fala daqueles momentos que a gente vive num tal fluxo que tudo se encaixa perfeitamente dentro do tempo do relógio, no tempo de Cronos. Quando realizamos um trabalho incrível, aquela jogada de mestre que culmina com um gol totalmente inacreditável, ou quando encontramos uma pessoa muito amada, seja amigo, amante ou filhos, e vivemos momentos únicos onde parece que o tempo parou. Parou? Sim, parou na eternidade daqueles poucos instantes. Ou ainda quando estamos lendo um livro, uma poesia, vendo um filme ou ouvindo uma música que nos traz respostas tão reveladoras que nos proporcionam a chance de compreensão do que se passa dentro e fora de nós em qualquer tempo, passado, presente e futuro, como se a vida pudesse ser mesmo eterna. Um instante de lucidez que permite a paz de estar vivendo e sabendo viver. E isso tudo acontece em poucos minutos de Cronos, que nos levou tempo de relógio, mas Aion salvou anos de intensidade de vida, quando encontramos, assim, um novo significado para a existência experimentada neles. “Ah… então era isso…” E tudo que nos fazia sofrer encontra um sentido, nos liberta para uma nova história, já escrita no nosso passado, mas agora interpretada de um jeito novo.

Cronos tem em si mesmo um grande poder quando nos permite envelhecer. De tanto que o ponteiro volta ao mesmo lugar, um dia nos daremos conta de que horas são. Nisso, Cronos tem seu mérito. Na sua paciência de nos observar envelhecer, amadurecer, pacientemente nota nossa capacidade de entender que para cada realização existe a necessidade de preparo, de maturidade, de espera.

O grande segredo de viver em plenitude é encontrar Kairós a qualquer instante, a qualquer momento da nossa vida. Quando olhamos nossos dias e o que acontece dentro deles como oportunidades de compreensão do que estamos fazendo aqui, temos essas respostas de um jeito totalmente inesperado, e então parece que passado e futuro se modificam imediatamente. São essas oportunidades que modificam o curso do tempo Cronos de uma forma tão profunda que surpreende experimentar a sensação de ter ganhado tempo. De vida, de felicidade, de realização. Percebendo esse instante de lucidez, paramos de desejar mais coisas, poder, pessoas, e passamos a desejar mais vida.

O que mais posso compartilhar com vocês? Queria muito ter o poder de dar-lhes esperança: perto do fim de qualquer momento importante na nossa vida, o tempo se dilata, transformado pelo sofrimento e pelo amor. A finitude é marcada pelo sofrimento das despedidas, mas também pelo reconhecimento da presença do amor. E não seria o amor a maior expressão da nossa essência como seres humanos? Eu tenho certeza que sim… e vejo que o sentimento de amor aliado ao perdão é o que pode nos proporcionar uma real compreensão do nosso caminho nessa existência por aqui. Nesses instantes de lucidez o tempo para por alguns instantes, e, se assim desejamos, a generosidade do que é sagrado para nós mesmos (o nosso coração, o Universo, Deus) nos concede tempo suficiente para a revelação do que realmente importa: “viver para”, o nosso “sentido de vida”. E esse é o grande milagre da multiplicação do tempo.

#15TempoCulturaLiteratura

Proust e a catedral da memória

por Eduardo Wolf

No prefácio à edição inglesa do enciclopédico Les Lieux de Mémoire, o historiador e organizador do volume Pierre Nora define um lieu de mémoire como “qualquer entidade significativa, seja de natureza material ou imaterial, que por força da vontade humana ou da obra do tempo tornou-se um elemento simbólico da herança memorial de qualquer comunidade”. É possível que exista algo de único na expressão francesa, traduzida para o inglês como “realms of memory”, e que em português ganhou versão literal mesmo. É certo, no entanto, que a obra de Marcel Proust (1871-1922), Em Busca do Tempo Perdido, é um exemplar par excellence desses “lugares de memória”.

E não apenas para a comunidade francesa. Se em 1908 encontramos um Proust inseguro, que se perguntava “se era um romancista”, já em 1913, com a publicação do primeiro volume de sua obra, No Caminho de Swann, começava o autor a entrar na grande corrente de circulação do imaginário literário de toda a cultura ocidental. A despeito das dificuldades iniciais para o lançamento do livro – a reiterada recusa das editoras, o custeio da primeira edição pelo próprio autor, a recepção negativa da crítica e o público inicialmente escasso –, ali estava um trabalho cujo potencial simbólico era tal que viria a ser sinônimo das proezas literárias francesas e das significações mais profundas da força da memória e do poder do tempo. Mais de um século depois do início de sua publicação – que somente seria concluída postumamente, em 1927 –, Em busca do tempo perdido é parte dessa “herança memorial” de toda a humanidade letrada.

Se isso é a verdade da obra como um todo, vista como um patrimônio cultural e existencial, não é menos a verdade de seu interior, à medida que vamos penetrando nos meandros da arquitetura romanesca mais íntima do trabalho proustiano. Não é por acaso que somos introduzidos, desde as primeiras linhas desse romance de mais de 3 mil páginas, a um universo que tem o tempo e a memória como suas pedras angulares: “Longtemps, je me suis couché de bonne heure” (“Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo”), lemos na primeira sentença dessa verdadeira catedral gótica que Proust erigiu (e que Mário Quintana traduziu lindamente ao português). Uma frase que nos faz de pronto encarar o tempo e sua passagem, aquilo mesmo que, pelo seu simples fluir, torna nossos interesses mais genuínos episódicos; nossas paixões mais vivas, contingentes; nossa própria existência, efêmera, fugidia. Com essa frase, ingressamos na catedral proustiana e encaramos o tempo como quem, mirando o alto da construção, vislumbra o infinito e a eternidade.

Somente a memória poderá oferecer o devido contrapeso aos avassaladores efeitos do tempo sobre nossas precárias, frágeis vidas. É ela, a memória, que permite ao narrador registrar os decisivos episódios de sua infância na casa de seus avós em Combray, a dependência quase doentia em relação à mãe, as inquietações antes de adormecer; é ela que lhe garante reviver os dramas de Charles Swann e seu singular calvário erótico-ciumento; que o conduz a narrar o diletantismo afetado do barão de Charlus. Somente a memória nos franqueia ingresso no “edifício imenso da recordação”, como dirá Proust, “quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas”.

Certo, esse pretérito dos seres e das coisas pode ser como que revivido por nós, subjetivamente, por meio dos mais elementares expedientes, qual o narrador que, ao provar a madalena com chá, vê de “súbito” a lembrança da infância em Combray lhe aparecer. O acesso mais valioso ao mais recôndito dessa catedral gótica da memória, contudo, é outro: o veículo que nos conduz em nossa jornada pelo já experimentado; a luz que ilumina os corredores semiobscurecidos do já vivido – esta é tarefa que somente a arte, que Proust elevará à condição de verdadeira teoria da memória, pode desempenhar. Somente a arte tem o poder humano e sobre-humano de recuperar o tempo.

“É apenas um truque”, como diria um notável personagem do cinema italiano recente. Mas é tudo o que temos.

#15TempoCulturaLiteratura

O meu tempo é delas

por Débora Emm

Obra de Ricardo Alcaide

Quando nasci, herdei o tempo daquele dia. Em 1983, mulheres divorciadas já faziam parte da sociedade. A pílula existia. A TV tinha cores. A música andava em walkmans. Compras eram feitas por mês. Os preços mudavam todos os dias. A ditadura estava perto do fim. Lennon já tinha morrido. A Apple já tinha sido fundada.

Quando minha mãe nasceu, em 1956, Silvio Santos ainda não era apresentador de TV. Brasília estava em construção. Mulheres começavam a usar biquíni. O divórcio era proibido. O rock ‘n’ roll começava a sacudir mentes e quadris. A Garota de Ipanema ainda não vinha nem passava. Mulheres não podiam transar antes do casamento.

Quando minha avó nasceu, a bolsa de valores dos Estados Unidos quebrou. Em 1929, mulheres não votavam e não podiam usar calças. Novelas eram transmitidas por rádio. Os casamentos eram arranjados e muitas noivas só descobriam o que era sexo na noite de núpcias. Em colégios internos, só se tomava banho usando camisolas. Cartas conectavam pessoas distantes. A juventude ainda não tinha sido inventada.

Herdeiras de três tempos tão distintos convivem e se influenciam. Para minha avó, a neta solteira de trinta anos é, de certa forma, fracassada. Minha mãe, que trocou a faculdade pelo casamento e nove anos depois se separou, vê com orgulho meu sucesso profissional. Sou apaixonada por Beatles, ídolos da adolescência de minha mãe. Posso transar sem estar casada, mas sei que, se eu casar, será com a veste branca que um dia minha avó usou. Em 2014, vivem juntos 1983, 1956 e 1929. Minha avó como espectadora, minha mãe entre plateia e palco, e eu no centro da cena.

O passar do tempo transforma a pele, a força do corpo e a cor do cabelo. Revoltadas com o que parece injustiça, cada vez mais nos esforçamos para impedir que o tempo seja visível. Mas, se pensarmos bem, talvez as rugas no rosto sejam uma forma de a natureza nos lembrar, constantemente, que cada um de nós é de um tempo.

Volta e meia minha mãe me pergunta se estou sabendo algo sobre o tal banco prestes a quebrar. Impaciente, sem compreender o motivo do medo, respondo pedindo que ela pare de criar paranoias. Ela não me escuta e diz: “quantos bancos você já viu quebrar?” Olhando para mim enquanto eu toco uma tela de vidro iluminada, minha avó não consegue imaginar que converso com ela, mas também falo com minha amiga que, naquele mesmo momento, está comendo hambúrguer com batata frita em uma praça de Nova York. Estranho é pensar que ela está aqui em 2014, vivendo este tempo comigo, mas que este não é seu tempo.

Quando ouço histórias do passado contadas por minha avó, reparo em uma certa capacidade que não tenho. Ela consegue conectar cada fato de sua vida a um determinado ano: “Em 1949, mudei para a roça para lecionar; foi só em 54 que reformei a cozinha desta casa.” Sério! Quando alguém me pergunta qualquer data, tenho que parar para pensar quando foi que me formei no colégio e contar a partir dali quando seria o ano do acontecimento em questão. Minha avó não só é de outro tempo, como o vivia de outra forma. Ela percebia o tempo andar, sentia as horas e os minutos indo embora. A cada dezembro, sinto que não vi janeiro passar.

Acredito que, por ter nascido nos últimos respiros do século XX, faço parte de uma geração que teme estar em um tempo que não é seu. Conheci a vida sem celulares e sem internet, mas senti na pele a rapidez das mudanças do mundo a partir da chegada dessas inovações. Dizem os mais loucos que já não somos mais capazes de contabilizar a velocidade das transformações do mundo e, por isso, ansiosos, tratamos “atualizações” como água, nos apavorando com possíveis secas. Imaginando o futuro, já posso ver nas prateleiras dos supermercados, ao lado dos potes de antirrugas, elixires que impedirão o envelhecimento da mente. Serei cliente? Talvez não. Afinal, no meu tempo…

#15TempoArteArtes Visuais

Old mask: John Stezaker

por John Stezaker

John Stezaker (britânico, nascido em 1949) é hoje um dos principais artistas no âmbito de colagens e apropriação fotográfica. No começo dos anos 1970, foi um dos primeiros entre outros artistas conceituais britânicos a reagir contra a predominância da Pop Art na época. Seu trabalho reexamina os vários relacionamentos que temos com a imagem fotográfica: como uma forma de parar o tempo, documentar a verdade, como uma fonte de memória, como símbolo da cultura moderna. Em suas colagens, Stezaker apropria imagens encontradas em livros, revistas, cartões postais, e as usa como base para suas criações. Através de seus elegantes contrastes, Stezaker adota o conteúdo e contexto das imagens originais para transmitir suas próprias significações espirituosas e comoventes. Usando antigas fotografias de atrizes de Hollywood, cartões postais de viagem, e outros materiais impressos, Stezaker cria pequenas colagens fascinantes e sedutoras, que trazem traços do surrealismo, dadaísmo e da Found Art. De fora, ao se referir ao enorme acervo de imagens que colecionou durante anos, Stezaker declara que são as imagens que o encontram, e não ao contrário. Com precisão cirúrgica, sobrepõe e atrela imagens distintas para criar novas personalidades, paisagens e cenários. 

#15TempoArteMúsica

Como o tempo parou

por Eduardo Andrade de Carvalho

Obra de Ricardo Alcaide

“But thoughts, the slave of life, and life, time’s fool, and time,
that takes survey of all the world, must have a stop.”
Henrique IV, Shakespeare

Numa noite de sábado, na Casa do Núcleo, um simpático espaço dedicado à música em Alto de Pinheiros, Dimos Goudaroulis, antes de tocar o segundo movimento da sexta suíte para violoncelo de Bach, falou um pouco sobre a obra. E concluiu assim: “É como se Bach, aqui, fizesse o tempo parar.”

Dimos toca as suítes de Bach com um violoncelo do final do século XVIII, montado como um instrumento da época, com corda de tripa e arco barroco. Bach compôs essas peças quando morava em Köthen, na corte do príncipe Leopoldo, que adorava música e tinha uma excelente orquestra particular. No final do século XVIII, com a ascensão dos compositores clássicos (Haydn, Mozart), a música barroca de Bach saiu de moda, e as suítes também foram esquecidas. Até que, em 1890, Pablo Casals, aos onze anos, encontrou por acaso uma cópia das partituras num sebo em Barcelona. Casals praticou todos os dias as suítes como exercício pessoal e com seus alunos – mas só as gravou entre 1942 e 1945. A redescoberta das peças por Casals, talvez o maior violoncelista do século XX, foi um sucesso total: o disco vendeu milhões de cópias e espalhou a obra de Bach pelo mundo.

Essas suítes de violoncelo são consideradas ao mesmo tempo a Bíblia e o Himalaia do instrumento, pois, se o emanciparam da orquestra, viabilizando-o como solista, e exploraram todos os seus recursos, são, porém, extremamente difíceis de executar. Casals tocava uma suíte todo dia antes do café da manhã – e teve o cuidado de praticá-las por vinte anos até apresentá-las num concerto, e por cinquenta antes de gravá-las.

Hoje, existem mais de mil gravações disponíveis: Rostropovich tocou-as nas ruínas do Muro de Berlim, Yo-Yo Ma apresentou-as no memorial de 11 de setembro e Ingmar Bergman usou-as como trilha sonora em vários de seus filmes. E praticamente todos os grandes violoncelistas gravaram as suítes completas: Janos Starker, Pierre Fournier, Paul Tortelier e o brasileiro Antonio Menezes, além do holandês Anner Bylsma, que venceu o Prêmio Pablo Casals quando estudante e foi professor de música em Harvard nos anos 1980, considerado o papa do violoncelo barroco. Bylsma foi um dos primeiros intérpretes preocupados em tocar as suítes tecnicamente como no tempo de Bach: ou seja, com o instrumento adaptado à época e pesquisando a partitura original de Anna Magdalena Bach.

A partitura assinada por Johann Sebastian Bach se perdeu, e o manuscrito de Anna Magdalena – sua segunda esposa e copista dedicada – é polêmico e complexo. Todos os grandes violoncelistas acima usam partituras que derivam de manuscritos encontrados no século XIX, padronizados, românticos, adaptados ao gosto da época. As suítes já são extremamente difíceis, mesmo quando executadas em partituras adaptadas. E o manuscrito original de Anna Magdalena tem anotações estranhas, inusitadas e que dificultam ainda mais a execução, como tocar um mesmo motivo com arcadas diferentes. Mas é assim que devem ser executadas, de acordo com os violoncelistas que defendem uma interpretação, como se diz, “historicamente informada” – como Anner Bylsma e Dimos Goudaroulis.

Dimos toca as suítes de Bach desde os treze anos, quando começou a estudar violoncelo na Grécia, onde nasceu. Aos dezoito, ganhou uma bolsa de estudos no Conservatório de Paris, onde, em paralelo à formação erudita, passou oito anos tocando jazz, fazendo improvisação – “música de rua”, como diz. Em 1995, aos 26 anos, veio para um festival de violoncelo no Rio de Janeiro. De manhã, abriu a janela de seu quarto, no Copacabana Palace, e, cansado do frio da Europa, pensou em ficar. Ficou. No Brasil, começou a estudar profundamente música barroca e interpretação histórica. Aproximou-se, então, de Anner Bylsma – com quem costuma se encontrar sempre que vai à Europa – e, em 2011, gravou as seis suítes para violoncelo de Bach. Entre todas as gravações disponíveis hoje, nenhuma é tão fiel à partitura de Anna Magdalena como a de Dimos.

João Marcos Coelho, crítico de música clássica do Estado de São Paulo, considera Dimos o melhor violoncelista hoje no Brasil, que, assim como Anner Bylsma, “pratica com inteligência, rigor e talento as qualidades que ele mesmo gosta de projetar no holandês: irreverência, enfoques não-acadêmicos, gosto pelo novo”. É interessante que o resgate da interpretação histórica da música seja liderado por personalidades assim: curiosas, desbravadoras, inquietas – e em nenhum sentido conservadoras, uma vez que resgatar a forma como a música era praticada há trezentos anos é uma experiência artística radical, capaz inclusive de nos transportar, ouvintes, através do tempo.

Micha Maisky – cuja interpretação das suítes tangencia o brega, aliás –, numa entrevista para o livro The Cello Suites, de Eric Siblin, compara essas peças a um grande diamante: com muitos diferentes cortes, que refletem luz para todos os lados. Praticamente todos os sentimentos possíveis estão ali. Do famoso prelúdio da primeira suíte ao último movimento da sexta, temos a sensação de que tudo aconteceu: de que fomos levados da mais profunda melancolia à alegria completa. E em algum momento, durante o segundo movimento da sexta suíte, todos esses sentimentos se misturam e se combinam, e é como se virassem apenas um: e a música – que não existe fora do tempo – consegue fazer o tempo parar.

#15TempoCulturaSociedade

Tempo de ser pai

por André Tassinari

Nunca antes na história desse país o pai foi tão presente na criação dos filhos como hoje. No entanto, pelo menos no primeiro ano de vida de uma criança, o pai não exerce uma função tão importante como a da mãe. Mas, ao contrário do que os homens brasileiros costumam acreditar, o pai pode ajudar muito nesse período. Só que, contrariando a natureza masculina, aqui ele terá de aceitar um papel secundário: o de dar suporte prático, de maneira que a mãe tenha mais energia e foco para cuidar do bebê. Para se candidatar ao cargo de ajudante-mor-da-mãe-com-bebê, o pai vai precisar de duas coisas: (bastante) vontade e (bastante) tempo.

Falemos primeiro da vontade. Eu acho que a vontade de passar (bastante) tempo com seu bebê é irracional, ou você tem ou não tem. Mas, para um pai extremamente racional, existem estudos científicos que mostram que passar tempo ao lado de seu bebê torna sua vida mais feliz. Como? O psiquiatra George Vaillant é, há décadas, supervisor de uma ambiciosa pesquisa em comportamento humano (o Grant Study), conduzida desde 1939 pela Universidade Harvard. No seu livro Spiritual Evolution, sintetiza, a respeito dos sentimentos humanos: “Joy is connection”, algo como “a felicidade está nos laços afetivos”. Porém, o laço afetivo entre pai e filho só se fortalece através do convívio, como bem conclui a psicóloga e filósofa Alison Gopnik em seu livro The Philosophical Baby: “We don’t care for children because we love them, we love them because we care for them.”

Outra teoria que sustenta que o tempo com o bebê é um bom investimento na felicidade do pai é a do prêmio Nobel em Economia Daniel Kahneman. Através da distinção entre nosso experiencing self, aquele que vive cada momento, e nosso remembering self, aquele que se lembrará dos eventos no futuro, consegue demonstrar que a forma como guardamos os episódios de nossa vida na memória é muito diferente dos fatos em si. Ou seja, sabe todas aquelas novidades que acontecem no início da vida da criança – o primeiro sorriso, a primeira sentada, a primeira engatinhada? Se o pai estiver presente, não só poderá curtir isso tudo na hora como a lembrança desses momentos o alegrará pelo resto da vida. As primeiras palavras ficarão sempre na memória, as noites mal dormidas serão esquecidas.

Por último, uma intuição não-científica, mas baseada no conhecimento popular: se a primeira impressão é a que fica, deve ser melhor apresentar à criança um mundo com mãe e pai.

Bom, se você ainda não sentiu vontade de cuidar do seu bebê, não tem problema, as babás estão aí para isso (já que sozinha nenhuma mãe merece ser deixada). Mas, se sentiu vontade, só falta conseguir (bastante) tempo. Vamos a ele.

Para um pai que é profissional autônomo, claro que é bem mais fácil. Você pode se programar (e economizar) de modo que possa passar bastante tempo cuidando do bebê nas primeiras semanas, e depois ir gradualmente aumentando sua carga de trabalho sem deixar de ajudar. Mas, e quem é empregado? A licença-paternidade (não, Word, não é para corrigir para licença-maternidade) no Brasil é de míseros cinco dias. E, enquanto a licença-maternidade tende a passar de quatro para seis meses, a dos pais conta com projetos de lei que a aumentariam para, no máximo, trinta dias.

O ideal seria a sociedade brasileira se mobilizar por um aumento bem maior, como é a tendência nos países europeus, inspirados pela Suécia. A Suécia é benchmark em licença-parental (tempo dividido entre o pai e a mãe) graças a sucessivos governos que apoiaram a questão nas últimas quatro décadas e provocaram uma mudança de mentalidade no país. As mulheres suecas passaram a achar um homem que cuida de bebês mais interessante. Inclusive, as taxas de divórcio na Suécia caíram desde 1995, ao contrário do que ocorreu na maioria dos outros países. Um casal sueco, pasme, tem treze meses de licença para dividir (com até 80% do salário), sendo no mínimo dois meses para o homem; mas, hoje, os pais suecos tomaram tanto gosto pela coisa que a maioria opta por ficar com ao menos quatro meses da licença.

Claro que as empresas suecas ainda acham difícil ter de se adaptar, mas pega até mal se posicionar contra. Por outro lado, facilitar a licença do pai virou uma forma de atrair bons profissionais, que agora não buscam mais apenas ótimos salários, mas também um equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. No Brasil, enquanto uma lei melhor não chega, algumas empresas também usam a licença-paternidade como um bônus. O Google, sempre na vanguarda, dá quatro semanas, assim como alguns escritórios de advocacia.

Não sendo geek ou advogado, o pai celetista tem a opção de conseguir uma licença não-remunerada, que é prevista em lei e pode durar de dois a cinco meses, dando a justificativa de que irá “resolver assuntos particulares” (isso desde que o empregador concorde). Uma outra ideia seria conciliar o nascimento do filho com um momento de troca de empregos, em que se conte com um bom pacote rescisório no trabalho antigo e se negocie um início postergado em alguns meses na nova empresa.

Então, vamos dizer que você teve a vontade e conseguiu o tempo. Resta descobrir como ajudar a mãe a cuidar do bebê. A seguir, algumas ideias de coisas que pode fazer na sua função de mão extra facilitadora.

Você pode trocar a fralda (é o mínimo), levar um copo d’água para a mãe enquanto ela amamenta (pois amamentar dá muita sede), fazer um swaddle para acalmar o bebê (enrolá-lo numa trouxinha, para os não-iniciados), carregá-lo no sling (pano que pendura no ombro, idem), fazer compras de supermercado (experimente empurrar dois carrinhos ao mesmo tempo), lavar a louça (sem fazer barulho), cozinhar (ou ir na rotisserie, ou providenciar um delivery), passear com o bebê de manhãzinha (para a mãe poder finalmente dormir um pouco), ficar com o filho por algumas horas para a mãe poder sair de casa (ver as amigas, ir no médico, fazer a unha), trocar a roupa dele (parece simples), distraí-lo enquanto a mãe coloca o pijama (ou dá remédio, ou limpa as dobrinhas do pescoço), niná-lo para um cochilo de dia (de noite ele vai querer a mãe), lavar a banheirinha (ou as chupetas, ou as mamadeiras), preparar a bolsa de passeio (sempre reabastecer de fraldas), trocar as pilhas da babá eletrônica (não compre as que só funcionam na tomada), servir de motorista (para a mãe poder ir atrás com o bebê indefeso), acompanhar no pediatra (pediatras, provavelmente), preparar a água do banho (já que dar banho quem sabe é a mãe), acordar de madrugada para dar mamadeira (ou recolocar a chupeta, ou ajudar a mãe no que precisar), ficar com o bebê enquanto a mãe toma banho (ou faz cocô, ou pinta o cabelo, ou outras coisas que mulher faz no banheiro) etc.

(Parêntesis: um oásis de tranquilidade no meio disso tudo é quando o bebê está dormindo, com sorte por algumas horas consecutivas. Aí é a hora de o casal – mais a babá eletrônica – esconder-se na sala de TV para apreciar, por alguns momentos, a companhia de outros adultos – Claire Danes, Kevin Spacey, Antonio Fagundes. As séries e novelas são mais recomendadas que os filmes, que podem sofrer um excesso de interrupções e ficar ininteligíveis.)

Vê-se que não é à toa que muitos pais acham mais cansativo cuidar de um bebê do que trabalhar. Mas o pior não é o cansaço; é perceber que, mesmo com tanto tempo investido na função, o pai não será promovido de cargo tão cedo. A CEO é sempre a mãe. Acho que é por isso que nós, pais, queremos que os filhos cresçam logo, enquanto as mães querem que continuem bebês. Quando eu ando com meu filho de meses no colo, as mulheres sempre dizem: “Que saudades dessa época! É a melhor fase!” Bom, só se for para elas, que se sentem superpoderosas sabendo que nessa fase são o mundo para seus bebês. Já os pais anseiam pela época em que – mesmo em menos tempo de convívio com o filho, que afinal uma hora irá para a escola, viajará com os amigos etc. – terão um cargo de maior importância na organização familiar, no qual serão responsáveis por conselhos preciosos em situações de vida ou morte, acompanharão o filho ao futebol, levarão a filha no mar (lá no fundo), darão as respostas para os grande mistérios da vida… Não vejo a hora.

#15TempoArteFotografia

De carne e osso

por Jair Lanes

escuta…
essas sombras da noite eterna
essas cintilações na noite eterna
olhe…
esse rumor do abismo
esse tumulto mudo no abismo

desprotegidos
ah paraíso perdido!!
alienados do céu
exilados no tempo
é sempre aurora
sempre ocaso
tempo labirinto tempo escondido
oculta e desvela

s u s s u r r o s

duram em nós
devaneios das eras
lembranças de protozoário reverberam nos corpos
elevam-se na memória febres vegetais
delírios minerais
devaneios das eras
duram nas coisas

C L A M O R E S

mortais
e essas sombras?!
engendradas pelo descontínuo do tempo…
e esses tumultos mudos?!
perdidos na torrente secular….
e esses sulcos?!
espraiados na superfície do mundo
em persistente metamorfose
eco das coisas nas coisas nos seres
eco dos seres nos seres nas coisas
no limiar
a se perder no invisível
mas guardando ainda, é evidente
inverossímil confiança na promessa de tudo