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#18RomanceCulturaLiteratura

Em busca da pureza perdida

por Eduardo Andrade de Carvalho

Raymond Radiguet morreu aos 20 anos, de febre tifoide, com uma obra literária perfeitamente acabada. Nascido em 1903, em Saint-Maur, subúrbio de Paris, filho de um famoso cartunista, Maurice, era o mais velho de seis irmãos. Foi um aluno exemplar até, aproximadamente, os 8 anos; largou o liceu Charlemagne em Paris, onde era bolsista, aos 10, como um estudante medíocre – e continuou estudando sob a sensível orientação do seu pai. Radiguet não era bobo: em vez do monótono ambiente escolar, preferia ler os clássicos franceses deitado em um barco amarrado na margem do rio Marne, aproveitando a atmosfera calma e agradável da cercania parisiense de mesmo nome, onde morava com a família. E lia intensamente: de acordo com uma passagem provavelmente autobiográfica de Com o diabo no corpo, uns 200 livros entre os onze e doze anos.

Aos 14 anos, numa ocasião em que foi entregar os desenhos de seu pai ao jornal L’Intransigeant, conheceu o poeta André Salon e apresentou a ele seus primeiros poemas. Salon ficou impressionado e conseguiu espaço para que publicasse seus trabalhos em jornais e revistas. Apresentou-o também a Max Jacob, que o introduziria, depois, ao seu futuro amigo e amante, Jean Cocteau, que tinha o dobro da sua idade. Aos 15 anos, Radiguet já começara a frequentar os círculos de Montparnasse, “a Meca da modernidade”, com Picasso, Apollinaire, Breton, Modigliani, Coco Chanel, Stravinsky, entre outros, e, aos poucos, foi conquistando também a alta sociedade parisiense, convivendo com príncipes e princesas – em um lugar em que, diga-se, o termo “alta sociedade” parece ainda corretamente aplicado.

Sua precocidade literária é normalmente comparada com a de Rimbaud, que nasceu em 1854. Faz sentido. Aos 19 anos, Rimbaud já era um reconhecido fenômeno das letras, com a publicação de Uma estação no inferno e O barco embriagado. Apesar de uma morte erradamente anunciada, quando desapareceu aos 27 anos, Rimbaud também morreu relativamente novo, aos 37, de doença desconhecida. Mas dificilmente se conhece um caso, em toda literatura universal, tão extraordinário como o de Radiguet, que escreveu maravilhosamente ainda adolescente e morreu assustadoramente jovem.

Mas ele jamais pretendeu ser reconhecido por isso: nem pelo gênio precoce nem pela morte inesperada, características dos poètes maudits que ele simplesmente abominava. “Idade não significa nada”, escreveu, “O que me impressiona é o trabalho de Rimbaud, não a idade com que ele o escreveu. Todos os grandes poetas já tinham escrito aos 17 anos. Os maiores são aqueles que nos fazem esquecer disso”. A vida que levou durante o último ano de sua vida, porém, consumindo pesadamente álcool e ópio, contribuiu para sua identificação com eles, apesar do seu forte e lúcido desprezo pela figura do poeta solitário e sofredor. Radiguet não viveu uma vida nem solitária nem sofredora.

Seu primeiro livro, e o único que saiu enquanto ainda estava vivo, foi publicado quando o autor tinha apenas 20 anos, resultado de um trabalho que começara aos 17. Com o diabo no corpo, baseado numa relação amorosa que supostamente teve aos 14 anos, foi escandalosamente recebido em Paris, pelos críticos e pelo público – mas vendeu amplamente (45 mil exemplares, de saída) e, de quebra, recebeu o importante prêmio Nouveau Monde. Radiguet conta a história de uma relação amorosa de um jovem de 16 anos com uma mulher casada, de 19, cujo marido se encontra no front de batalha durante a Primeira Guerra Mundial. Marta, a amante, engravida do garoto, e morre durante o parto.

A capacidade de observação psicológica de Radiguet é surpreendente, mesmo sem considerarmos sua idade – que ele, enfim, nos faz esquecer. Seu estilo é claro e direto, como queria que escritores escrevessem, e flui encantadoramente, com capítulos curtos e sequências de aforismos inesquecíveis, como esta:

“Nada absorve mais do que o amor. Quando se ama, fica-se à toa, mas nem por isso se é preguiçoso. O amor sente confusamente que seu único desvio real é o trabalho. Ele também o considera como rival. E não suporta nenhum rival. Mas o amor é preguiça bem-aventurada, como a chuva branda que fecunda.

Se a juventude é tola, é por não ter sido preguiçosa. O que invalida nossos sistemas educativos é que eles se dirigem aos medíocres, por causa da quantidade. Para um espírito alerta, a preguiça não existe. Nunca aprendi tanto quanto naqueles dias compridos que, para um espectador, teriam parecido vazios, nos quais eu observava meu coração noviço como um novo-rico observa seus gestos à mesa.”

Difícil acreditar que o segredo da adolescência, e do amor, durante essa fase, tenha sido revelado com tanta elegância e precisão como ele o fez. E mais do que isso: seus dois romances são histórias de adultérios tão sofisticadas que mesmo Proust, como reparou Paulo Francis, talvez não tenha ido tão longe, nesse aspecto. E Radiguet parecia ter consciência disso, quando escreveu sobre seu segundo livro, O baile do bonde d’Orgel, publicado depois da sua morte:

“Romance de amor casto, mas tão escabroso quanto o romance menos casto. (…) Não é a pintura do mundo, ao contrário de Proust. O cenário não conta. O único esforço de imaginação utilizado aqui não está nos acontecimentos externos, mas na análise dos sentimentos”.

Se no seu primeiro livro, então, o romance entre o narrador e Marta se consumou, materializando-se o adultério que, no final, será castigado, a relação entre François de Séryeuse e Mahaut d’Orgel, personagens principais de O baile, não poderia ser mais casta – e não poderia ser mais forte. E é precisamente por ter resistido a essa força quase incontrolável que Radiguet, como um moralista do século XVII, os considera tão virtuosos e interessantes. O que, aliás, eles realmente são, como justifica o autor, a respeito da condessa, já no primeiro parágrafo, em uma introdução irresistivelmente bonita:

“Os movimentos de um coração como o da condessa d’Orgel serão antiquados? Tal mescla de dever e inação talvez pareça inacreditável em nossos dias, até mesmo numa pessoa de estirpe e nascida nas Antilhas. Não será que nossa atenção se desvia da pureza, sob o pretexto de que esta oferece menos sabor do que a desordem?

Mas as manobras inconscientes de uma alma pura são ainda mais singulares que as combinações do vício. É o que respondemos às mulheres que, algumas, acharão Mme. d’Orgel excessivamente honesta, e às outras, que a acharão fácil demais”.

François tinha 20 anos, era muito inteligente e respeitado pelos mais velhos. Não fazia nada. Vivia com sua mãe, que possuía um espírito suficientemente nobre e compreensivo, segundo Radiguet, para entender que, nessa idade, é justamente isso que um jovem deve fazer.

“Toda idade produz seus frutos, e é preciso saber colhê-los. Mas os jovens são tão impacientes por atingir os menos acessíveis, e por se tornar homens, que negligenciam os que se oferecem.

Numa palavra, François tinha exatamente sua própria idade. E, entre todas as estações, a primavera, se é a estação que nos assenta melhor, é também a mais difícil de usar.”

François, portanto, pertencia a essa espécie rara: era um sujeito que, apesar de novo, sabia aproveitar a vida em sua plenitude, reconhecendo, inconscientemente, os limites que a idade lhe impõe, e formando, assim, uma personalidade, digamos, saudável. Era um cara bacana. Diferentemente do seu melhor amigo, o diplomata Paul Robin, que procurava a todo custo ascender socialmente, construindo, assim, uma personalidade corrompida: “Paul acreditava ter sido bem-sucedido na construção de uma imagem; na realidade, ele se contentara em não combater os próprios defeitos”, escreveu Radiguet.

A atração de Paul pelo casal d’Orgel, que ele e François conheceram juntos, é obviamente limitada, centrada em mesquinhos interesses sociais. François, porém, encanta-se com Mahaut, e, como novo e íntimo amigo do casal d’Orgel, passa a frequentar a casa deles. E apaixonam-se François e Mahaut, um pelo outro, sem, no entanto, saberem que são correspondidos. Até que, preocupada com que essa atração ficasse definitivamente incontrolável, Mahaut confessa seus sentimentos para a mãe de François, pedindo que essa tentasse afastá-los um do outro. Não adianta.

Na jantar que os d’Orgel oferecem, na mesma noite, a um príncipe russo refugiado, François comparece. Mahaut não sabe se ele foi avisado ou não pela sua mãe, e fica confusa, com ciúmes de François, que conversa com uma convidada jovem e linda, mas exercita sutilmente seu autocontrole. Em uma cena delicada e complexa, Mahaut defende publicamente seu marido em uma situação inesperada – que, exceto o leitor, só o convidado russo compreende: Mahaut decide continuar com Anne, seu frívolo marido.

Em Com o diabo no corpo, Radiguet narra o complexo processo da perda da pureza de um adolescente inocente e inteligente; já em O baile do conde d’Orgel, essa pureza perdida é, na figura de Mme. d’Orgel, virtuosamente redescoberta.

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Em 30 de outubro de 130 d.C., há mil e oitocentos anos, o corpo de um jovem entre dezoito e vinte-e-tantos anos foi encontrado morto no rio Nilo. Pouco depois verificou-se a identidade do rapaz: tratava-se de Antínoo, o favorito do Imperador romano Adriano Augusto (reinou de 117 a 138 da nossa era), que visitava o Egito com sua esposa, Sabina, e seu séquito. Ao saber da morte, Adriano ficara profundamente afetado, mergulhado num luto excêntrico: fundou uma cidade em nome do jovem no local de sua morte (Antinópolis), instituiu cultos a sua pessoa, ora como um deus (theos) encarnado ora como um heros (“herói”: um mortal deificado); organizou jogos regulares em sua homenagem em Atenas e em partes do Egito e da Turquia; por fim, fomentou e/ou financiou uma tradição estatuária celebrando suas feições – é um lugar comum dizer que, ao lado de Alexandre Magno, Augusto César, e do próprio Adriano, Antínoo é a personagem histórica mais comumente retratada da antiguidade clássica!

A figura de Antínoo, e sua relação com o Imperador Adriano, há tempos é objeto de intenso interesse, que atravessa a história ocidental e oriental: suas feições foram impressas em monumentos e em moedas que circulavam pelo Egito e Ásia Menor (moedas com seu perfil foram encontradas em mais de 30 cidades do oriente); uma quantidade significativa de textos antigos o mencionam repetidas vezes e especulam sobre sua vida, seu significado e sua morte; o artista renascentista Rafael Sanzio teria passado instruções precisas a Lorenzetto Lotti para esculpir a estátua do Jonas bíblico na Capela Chigi (em Santa Maria del Popolo, Roma), inspirada no busto conhecido como L’Antinoo Farnese (hoje, no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles); no romance mais famoso de Oscar Wilde, a beleza de Dorian Gray é comparada a de Antínoo; Fernando Pessoa compôs um poema em inglês sobre ele (Antinous, de 1918), e o jovem é personagem crucial no romance Memórias de Adriano (1951), de Marguerite Yourcenar. De atendente, pajem ou favorito de Adriano, Antínoo tornou-se objeto de culto religioso e, no mundo contemporâneo, até ícone da sensibilidade homoerótica.

Mas teria sido Antínoo amante de Adriano? Do mundo antigo, sobreviveram dois tipos de fontes de informação a esse respeito: evidência textual (escritos pagãos, cristãos e fragmentos de papiros) e evidência material (estátuas e inscrições). Essas fontes sugerem que havia sim um elo erótico entre eles, mas isso apenas levanta outras questões. Sabemos que Adriano favorecia uma estratégia de marketing que o tornava mais “grego” – talvez tenha sido um dos imperadores romanos mais helenizantes. Mas a pederastia ateniense favorecia relações com jovens (12-17 anos) aristocratas, e Antínoo não era nem tão jovem (alguns estudiosos acham que poderia ter morrido com cerca de 25 anos) nem aristocrata. Fugir dos ditames da altamente ritualizada pederastia ateniense era sinal de depravação e mau gosto. A versão romana da pederastia ateniense era mais brutal, com senhores abusando sexualmente de seus escravos e escravas – e as fontes sugerem uma relação mais complexa de companheirismo entre Antínoo e Adriano (e são raras e tardias as sugestões de que ele fosse um escravo. Ao que tudo indica, era um homem nascido livre).

É também importante ressaltar que a linguagem grega do amor (que inclui os conhecidos vocábulos eros e philia) contém em seu campo semântico não apenas referência aos laços sexuais e/ou afetivos, como nós os entendemos, como também a ideia de algo que demanda de nós profunda atenção, uma mobilização da alma. Daí uma dimensão pouco lembrada da palavra “filosofia”, usualmente traduzida, de modo vago e meio New Age, como simplesmente “amor ao saber”, mas que também implica uma prática intelectual voraz e dominadora que demanda atenção absoluta, chegando aos extremos de comandar que o filósofo sacrifique seus prazeres mundanos para se dedicar exclusivamente à ela. A retórica do erotismo greco-romano não é necessariamente sexual, podendo implicar um anseio ou desejo casto e contemplativo.

Embora tenhamos boas razões para acreditarmos que a relação entre Antínoo e Adriano fosse sexual, gostaria apenas de deixar aberta outras possibilidades. O escritor e satirista Luciano de Samósata, contemporâneo de Antínoo e Adriano, em seu Descida aos Infernos, ou O Tirano lista os atributos do soberano: “ouro, prata, roupas sofisticadas, cavalos, banquetes, pajens no esplendor da juventude, mulheres…” Trata-se de um catálogo do luxo associado ao poder. A palavra que traduzi como “pajem” é também a utilizada para “favorito” ou “rapaz”. Assim, Antínoo poderia ter sido um sinalizador de luxo extremo, um objeto de beleza rara que apenas imperadores podem possuir, desfilar e imortalizar em pedra: como os tigres e os leões tão desejados por casas reais através da história.

Mas há também uma estranha (e potencialmente macabra) reviravolta no destino de Antínoo. O historiador Cássio Dio, que escreveu 80 anos depois dos eventos que relata, nos diz que o jovem “morreu no Egito, ou porque caiu [acidentalmente] no Nilo, como escreve Adriano, ou porque foi sacrificado, que é a verdade”. Existem duas anedotas sobre o sacrifício de Antínoo. De acordo com uma, sua morte coincide com um festival no Nilo por volta do dia 30 de outubro: data na qual um jovem e belo Osíris fora assassinado e teve seu corpo jogado ao Nilo. A posterior transformação de Osíris em deus está associada à fertilidade do vale. Nesse caso, Adriano poderia estar engajando-se num engenhoso plano político-cultural: fundindo um mito egípcio com um novo evento mítico romano, para unir as duas culturas… Mas outras fontes dizem que Antínoo se sacrificou voluntariamente, por amor a Adriano, num ritual mágico que garantiria ao Imperador longa vida.

Essas múltiplas possibilidades estimulam a nossa imaginação, mostrando-nos, ao mesmo tempo, o quanto e o quão pouco conhecemos de certo na Antiguidade Clássica. Os bustos do jovem certamente são curiosos: com rara maleabilidade, Antínoo aparece no estatuário ora com feições egípcias, ora como avatar de Osíris; por vezes como Dioniso ou outros heróis gregos. Certamente, é a derradeira encarnação da tradição grega de celebrar a beleza da juventude do corpo masculino.

Adriano Augusto é um dos imperadores que mais deixou marcas em nosso mundo físico: a famosa Muralha de Adriano, no norte da Inglaterra, marcava as fronteiras do império; sua famosa Vila Tivoli (“Vila de Adriano”). É um dos pontos turísticos mais visitados em Roma; ele foi o responsável pela reconstrução do celebrado Panteão e do Castel Sant’Angelo em Roma (concebido para ser o Mausoleu de Adriano)… além de nos ter legado um sem número de estátuas de Antínoo… Seriam essas meras marcas de um complexo projeto de poder, ou cicatrizes mais profundas?

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Uma noite, no início da década de 1940, um pai passava em frente à porta aberta do quarto da filha quando ouviu-a dando gargalhadas. Colocando a cabeça para dentro do quarto, viu que ela lia um livro sobre uma babá mágica que levava as crianças para viverem aventuras fantásticas. Esse pai era Walt Disney, e foi assim, por meio de sua filha Diane, que conheceu Mary Poppins.

A relação entre Walt Disney e a personagem teve muitos altos e baixos, graças a uma figura que, até pouco tempo, permaneceu às margens do conhecimento popular: P. L. Travers, sua autora. Embora no filme “Mary Poppins” sua existência seja revelada apenas por um crédito discreto, ela é figura central do recente “Walt Disney nos bastidores de Mary Poppins”, filme que conta a versão “disneyficada” da venda dos direitos do livro.

Os estúdios Disney representam o ideal de família perfeita. Seus filmes pregam uma infância romantizada, a infância que todos nós gostaríamos de ter tido, e convenhamos que é impossível não assistir a um filme deles sem que uma parte nossa secretamente deseje estar lá, vivendo aquela história e cantando aquelas músicas. Se você é um excluído, se ninguém te entende, se a sua família não é funcional e parece não te amar, não tema! Até o final do filme tudo estará resolvido. E foi exatamente isso que aconteceu na versão cinematográfica de “Mary Poppins”. Embora o livro seja uma obra delicada, com uma construção aprofundada da personagem de Mary, criado em base do misticismo de sua autora, o filme apresenta uma versão superficial e adocicada da babá. E vemos um lado negro daquilo que Disney considera a família ideal: para que o público americano entendesse a necessidade da família Banks de contratar uma babá (algo muito distante da realidade dos espectadores de classe média), os roteiristas acharam melhor apresentar os Banks como uma família “quebrada”, que precisava de um agente externo – no caso, Mary Poppins – para consertá-la. A babá só terá sido bem-sucedida quando sua presença não for mais necessária. No caso da família Banks, o problema era devido ao fato do pai banqueiro ser emocionalmente ausente e da mãe sufragista passar mais tempo lutando pelo direito dos votos das mulheres que cuidando dos filhos. No final do filme temos a cena de redenção derradeira, onde o Sr. Banks se aproxima dos filhos ao consertar a pipa deles e a mãe reassume seu papel na casa, simbolicamente amarrando a faixa de sufragista na pipa para servir de rabiola. Um final um tanto quanto assustador, apesar da música que nunca mais vai sair da sua cabeça.

O filme “Mary Poppins” foi lançado em 1964. Cinquenta anos depois o estúdio lançou um novo filme sobre o assunto: “Walt nos bastidores de Mary Poppins”, que conta como Disney passou vinte anos tentando comprar os direitos do livro, chegando ao ponto de convidar a autora para visitar os estúdios para ela ver por si mesma o desenvolvimento do roteiro e dar a aprovação final – uma concessão extremamente rara. Embora o filme capture, com um afinco por vezes até desnecessário, o mau-humor e as particularidades de Travers, ele rejeita as partes mais preciosas de sua personagem em prol de um ideal de família bastante antiquado. Travers, que abandonou a Austrália, seu país de origem, aos 24 anos, era uma poetisa que corria entre os grandes nomes da literatura irlandesa, como W. B. Yeats e Bernard Shaw. Seu maior mentor foi o poeta AE, um homem casado de sessenta anos com quem Travers cultivou uma relação emocionalmente carregada e permeada por gestos de afeto quase que românticos em que durou até a morte dele. AE introduziu-a aos ensinamentos do guru espiritual Gurdjieff e a apresentou a Madge Burnand, com quem Travers manteve uma relação de dez anos, chegando até a morar juntas. É sabido que a autora se relacionava com homens e mulheres, e inclusive estava iniciando um relacionamento turbulento com a americana Jessie Orage quando as negociações com Disney começaram. Outro fator um tanto fora do comum para a época com o qual a autora lidava durante as negociações era o encarceramento de seu filho Camillus.

Camillus fora adotado por Travers quando ela tinha quarenta anos, algo já bastante raro para o tempo, ainda mais quando consideramos que ela era uma mulher solteira (seu relacionamento com Madge já havia terminado). O menino tinha um gêmeo, Anthony, que Travers se recusou a adotar. Camillus só ficaria sabendo sobre Anthony aos 17 anos, quando um estranho curiosamente parecido com ele lhe acostou em um bar. Após descobrir a verdade sobre sua família, o menino passou a beber cada vez mais até ser preso por dirigir bêbado.

Relacionamentos bissexuais, crenças místicas, um filho que descobre aos 17 anos ter um irmão gêmeo… é uma pena que isso tenha ficado de fora da construção cinematográfica da personagem de P. L. Travers. Reduzida a um clichê de velha ranzinza, eles a pintam como uma mulher frígida e solitária, e, como espectadores, não conseguimos entender como essa mulher foi responsável por aquecer corações de crianças de todas as idades, até hoje. Eles esquecem que, se uma pessoa é capaz de produzir tanto amor nos outros, ela mesma deve estar transbordando da coisa. E P. L. Travers tinha amor; amor por seu filho, seus namorados e namoradas, e, principalmente, amor por sua vida. Pois ela nunca, em nenhum segundo, se reduziu a viver a vida de maneira diferente daquela que queria.

E, embora a Mary Poppins de P. L. Travers não cante e dance como a de Walt Disney, ela nos ensina uma lição valiosa: na vida, não adianta se esconder. É preciso enfrentar os problemas de frente. Mary, com sua mão firme e coração quente, nos mostra que não importa o quão assustadoras as coisas são, se formos fiéis a nós mesmos, abrirmos nossos olhos e seguirmos em frente, mesmo com todas as dificuldades, tudo ficará bem. É uma ternura valente que nos faz sentirmos seguros, mesmo quando a missão dela estiver terminada, mesmo quando ela já tiver partido naquele vento do Oeste e não estiver mais do nosso lado, quando formos apenas crianças solitárias presas em corpos de adultos.

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Há tempos eu não acordava com a sensação que tive hoje pela manhã ao abrir os olhos. Adormeci na casa de meus pais, onde já não moro há mais de 15 anos, e ali, entre palpitações e calafrios, passei a infindável madrugada. Ao despertar de uma noite mal dormida e angustiada, em virtude da quebra da bolsa de Nova York, fui tomada por um sentimento estranho e de total alienação. De olhos bem abertos (junto ao nascer do sol nas montanhas do sul), porém como se ainda estivesse vagando pelo universo onírico – era como se não pertencesse, ali, àquele momento.

Gradualmente, com a retomada da consciência, fui me dando conta de que todo aquele estranhamento nada tinha a ver com a casa da fazenda colonial dos meus pais – aquele lustre de bronze velho, a sanca do quarto que um dia foi representativo de status ou as paredes de taipa cobertas por papel de parede francês amarelado e esgotado pelo tempo, e, ao olhar pela janela, o mato que crescia e devorava terras outrora férteis e produtivas. Ainda assim, minha alienação era de outra ordem, muito mais profunda do que a estrutura material que me acolhia. A minha sensação de deslocamento era consequência concreta do fim de uma relação que até então vinha nutrindo com o meu país. Veio então a realização de que eu e o Brasil enfrentávamos uma crise de relacionamento. Eu já não mais me sentia representada por ele, e ele, muito provavelmente não identificado em mim. O romance havia chegado ao fim…

Não tinha sido o melhor dos romances. Nasci, cresci e fui educada com uma noção clara de estar na periferia do mundo, longe do progresso, da sofisticação, do pensamento real. Era preciso atravessar o oceano, voltar à Europa para buscar lá umas raízes que aqui não vingariam, por mais fértil que seja esse solo. Paris era uma festa. Mas foi lá, enquanto eu e o Oswald mostrávamos como fazer caipirinha e tentávamos adaptar a receita da feijoada aos ingredientes franceses, que me dei conta de estar perdendo algo que só poderia mesmo existir aqui. Tinha vontade de algo além dos volumes coloridos que aprendi a pintar com o Léger. Era preciso mais cor, mais volume e um certo calor que a Europa nunca teve.

Quando voltei para o Brasil, comecei a me lembrar da infância, dos negros na fazenda, das criancinhas mulatas. Tudo tinha outro gosto. Estava seduzida, intoxicada, talvez até mesmo apaixonada. Fui para o Rio no carnaval, levei o Blaise Cendrars para conhecer as cidades históricas de Minas Gerais. Descobri que as cores de Paris, por mais inebriante que lá pudesse ser a vida, eram um tanto esmaecidas. Pau Brasil. Foi aí que eu entendi o que tanto faltava nos meus quadros, uma herança tropical que não pode ser negada. Mas também tenho minhas dúvidas se não forcei a mão, se isso tudo não era um exotismo fingido, se eu não era a caipira que negou a raça por um prisma parisiense quando tudo ainda era rude e tosco, irremediável. Estava instaurada uma crise tão aguda quanto o desbunde das cores da minha paleta.

Assim passa o meu tempo, entre dias adormecidos e noites em claro – na eterna e inebriante dúvida entre lá e cá. Meus sonhos e fantasias antropofágicas desejam o estrangeiro, para que dele eu absorva novas influências e cresça mais forte. Mas, em seguida, meus ideais tão completamente enraizados em terras do Brasil profundo me jogam de volta para cá, para além dos mares e oceanos gélidos da Europa, novamente retorno em busca da minha identidade tropical.

Nem aqui nem ali – pois não mais me encontro entre o novo e o velho. O que me chama é a possibilidade de um novo romance. União Soviética, é pra lá que eu vou.

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“Faze o que quiseres”, eis o dístico sobre a porta da Abadia de Thelema, construída por Gargântua, na célebre obra de Rabelais. Única do palácio, no entanto, tal regra apresentava um terrível contraponto: “desde que agrade ao príncipe”. A galante vida da corte francesa demandava lá seus divertimentos espetaculares, para dar conta do enfado do dia a dia, e, a partir de um circuito fechado, acabou engolindo a si mesma; o lazer, a diversão e as extravagâncias impuseram novos sacrifícios, novos deveres, novos tédios.

Estudar a história francesa a partir do signo da melancolia aponta a caminhos dos mais diversos e, na vereda literária, a uma inevitável e desejável solidão. De Ronsard aos modernos, não faltam relatos de personagens solitários, a caminhar pelas ruas de Paris. Não por acaso a Cidade Luz ter inspirado uma das figuras literárias mais problemáticas, e também estudadas, que é a do flâneur. O flâneur do século XIX, o flâneur de Baudelaire, e até mesmo o de alguns séculos antes, é em essência um ser solitário. Caminhar pelas ruas de Paris tornou-se, em especial, a partir da apreciação crítica de Walter Benjamin, um emblema da experiência urbana moderna.

Quando chegamos em Proust, que creio ser o epítome que lacra a literatura francesa em dois momentos distintos de sua evolução, a solidão sofre um importante golpe que alteraria a experiência daquele que vê-se sozinho. Proust observa que desde Louis XIV, ou seja, desde a segunda metade do século XVII, a sociedade francesa, representada pela metrópole parisiense e seus arredores, passou por profundas transformações. A ritualística palaciana e aristocrática já não mais agradava ao príncipe. Todo o barroco da majestade do soberano, a cortesia dos cavalheiros, a beleza das mademoiselles, seus cavalos e suas carruagens, o alto espírito da realeza e seus cultos e discursos, tudo transformara-se em tédio profundo, antecipando e prevendo a repetição cotidiana da metrópole e de seus funcionamentos.

Proust, seja na ficção ensaística de Contre Sainte-Beuve ou pela narração de sua Recherche, estrutura a solidão como um movimento de escape das opressões tirânicas do hábito e observa o espaço do sujeito solitário fragmentando-se em cidades-modelo projetadas para destruir um dos últimos refúgios das liberdades urbanas. As estreitas ruas medievais de Paris e seus cul-de-sacs foram arrasados em detrimento de enormes bulevares, em uma espécie de coerção a partir do cenário urbano. O flâneur, por assim dizer, não deixou de existir, mas viu seu terreno completamente minado de uma coletividade, da qual sempre pretendeu fugir. Tal qual o albatroz de Baudelaire, que preso nas tábuas do convés, debate-se em um espaço que não é o seu. Como se o calçamento de Paris, surgido em 1184, de repente fizesse surgir uma armadilha terrível. A armadilha do bulevar, com a família a passear e os militares a observarem.

A solidão, para Proust, passa pela resolução de uma equação para lá de complicada. Nascido ainda sob os ecos sociais da supressão da Comuna de Paris, com o declínio da aristocracia e a insurgência da classe média durante a Terceira República, Proust construiu sua biografia em torno deste contexto em particular. Com livre acesso aos salões da alta burguesia, o autor era um fino observador da psicologia humana em pleno fin de siècle. O mundo pedia uma nova apreciação, que respondesse a novas ânsias de um novo mundo e, mais, de um novo fazer literário, por um distanciamento que condicionava uma nova, e problemática, solidão.

Nessa distância, também temporal, que reside o grande infortúnio da solidão de Proust que, para resolvê-la, precisa voltar para si mesmo e para suas memórias e reconstruir não apenas uma gênese do universo ficcional (e real, quando a nós espelhada) mas uma gênese do romance e da literatura – gêneses essas vinculadas por dois extremos, o do desejo e o da tristeza, mas que se tocam no ponto comum da solidão.

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on which
i write the circumstances,
you are the solitude
that goes against me.

Sufjan Stevens




Passar a vida em uma cidade é o melhor jeito para jamais conhecê-la a fundo. O enraizamento – algo como viciar-se no cotidiano – traz o conforto ao preço de passar um verniz fosco sobre todas as coisas.

Andy Warhol sabia disso. Nascido em Pittsburgh, em 1928, mudou-se para Nova York aos 21 anos. Uma vez lá, poderia ter seguido o caminho dos colegas de geração Lucien Carr, Allen Ginsberg e Jack Kerouac. A inquietude para tal certamente não lhe faltava. Contudo, diferentemente do trio beatnik, Warhol não viu na estrada a saída para a falta de perspectiva dos paradoxos aparentemente incontornáveis dos Estados Unidos. Atravessar o país a esmo era uma escapatória possível para os garotos bem criados, tomados por pulôveres e gravatas da Columbia University. Para um aluno do operário Carnegie Institute of Technology, filho de pais imigrantes da Eslováquia, movimentar-se aleatoriamente não seria novidade, no máximo dandismo inconsequente.

Ainda que seja delicado afirmar o que fixou Warhol em Nova York, se a convicção das possibilidades ou a necessidade de se estabelecer, o certo é que ele fez da cidade o seu lar. Ao invés de compensar o momento norte-americano com errância, procurou entender os Estados Unidos. Para isso, viajou pelo país recolhendo impressões dos costumes e fotografando os contrastes encontrados. O resultado de uma década de viagens se encontra em América: “se tiver uma oportunidade de viajar pelo país, deve tentar aproveitá-la. Em especial, deve tentar ficar por algum tempo em cada lugar e dar uma boa olhada. Ninguém na América tem uma vida comum.”

Publicado tardiamente, em 1985, apenas dois anos antes da morte de Warhol, o livro é o último e mais inusitado projeto da sua carreira. Durante os anos 60, em especial a partir da inauguração do The Factory, Warhol se fez conhecer por uma série de investidas artísticas, entre elas as latas de sopa Campbell (“Campbell’s Soup Cans”, 1962), a série multimídia “Exploding Plastic Inevitable” (1966-1967), encabeçada pelo The Velvet Underground, e o filme “Chelsea Girls” (1966), codirigido por Paul Morrissey. O apelo pop da arte erigiu um mito, que transformou Nova York em um universo próprio e se tornou seu astro.

Entretanto, a fama que revela também oculta. A imagem pública construída à custa das celebridades pintadas sob mil cores, da ironia desmedida e do apreço pelo mundo das aparências transformou-o em um personagem, literalmente. Aos 40 anos, tamanha alienação quase lhe custou a vida quando Valerie Solanas, figurante de seu filme “I, a Man” (1967), tomada pela personalidade ausente do diretor, entrou na “fábrica” e disparou um par de vezes. Falar com ele, declarou Solanas, era como falar com uma cadeira.

América recupera para a posteridade a humanidade em Warhol. Espécie de antropologia artística da sociedade americana, no livro o artista pop atravessa o país com um olhar aguçado para transformá-lo em um índice sobre a cultura dos Estados Unidos: do amor ao exibicionismo (em vitrines), passando pelo comportamento das pessoas (em people), pelo culto ao corpo (em physique pictorial e vogue) e às celebridades (em all-stars), até chegar ao futuro (em life). No centro de todas essas reflexões, assinala os contrastes dos lugares pelos quais passou, como Washington, Kentucky, Texas, Aspen, Califórnia e, obviamente, a cidade de Nova York. Todos, diz Warhol, têm uma América própria, e todos têm os fragmentos de uma América fantasiosa que acreditam existir, mas não podem ver.

Aos 56 anos, depois do trauma de ter sido declarado clinicamente morto e ressuscitado, Warhol enxerga a América – que é como entende que os Estados Unidos devem ser identificados – com maturidade, voz essa distante daquela da personalidade emotivamente blindada das décadas de 1950 e 1960. Aqui, as diferenças se fazem sentir. O homem uma vez dado à vida noturna dá espaço à sinceridade em declarações como: “Sou do tipo que ficaria feliz em não ir a lugar algum, contanto que tivesse a certeza de saber exatamente o que está acontecendo nesses lugares. Sou do tipo que adoraria ficar em casa e assistir a todas as festas a que sou convidado em uma tela no meu quarto.”

Aos olhos de Warhol, a sua pátria é um cenário gigante, um aglomerado de pessoas diversas, de diferentes estilos e pensamentos. Mas o caráter heterogêneo, o traço que transforma a diferença cultural em orgulho nacional, soma-se a peculiaridades de formação, como a necessidade de viver no eterno “hoje”, fracionando e isolando os indivíduos. A solidão – ou o individualismo, essa versão moderna do mesmo – compactua com um retrato muito presente na arte norte-americana, do realismo de Edward Hopper (1882-1967) ao expressionismo abstrato de Mark Rothko (1903-1970).

Pela primeira vez desde o popismo, Warhol abre mão de apontar ironicamente as aparências para dialogar seriamente com os sentimentos da sua terra. Na passagem pelos cantos do país, pôde perceber que a cultura que tanto o inspirara era a mesma responsável por produzir a solidão em série. Por trás do desejo de fama, sobravam homens e mulheres desfigurados, irremediavelmente órfãos da notoriedade que lhes escapará cedo ou tarde. Se você tem uma vida real, chega a admitir Warhol, pode achar que é um grande perdedor; pode achar que, se pelo menos fosse rico e famoso, ou bonito, sua vida também seria perfeita.

Em América, a reflexão é um paradoxo entre a estupefação e a culpa. O avanço do projeto tecnológico-científico simula à população a possibilidade de chegar ao futuro primeiro. Esse timing desmedido fará do amanhã uma eterna expectativa, postergando e agravando o autoengano e a frustração. Em uma das fotografias de páginas inteiras do livro vemos Jean-Michel Basquiat (1960-1988). Artista original e de potência criativa ímpar, Basquiat tornou-se o protegido de Warhol. A relação, misto de admiração mútua e substituição paterna, resultou em uma parceria artística e afetiva rara, mas que não sobreviveria à vaidade daquele mundo por muito tempo. O rompimento afastou-os por um período suficiente para que Warhol, ao saber que perdera Basquiat prematuramente sem fazer as pazes, desejasse ter sucumbido ao atentado.

Sem melancolia e igualmente destituído de sentimentalismo, América é o retrato cru de um homem encarando o mundo. É o processo profundo de um artista frente às origens das suas alegrias e tristezas – frente ao mundo que criou e pelo qual foi criado.

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Perto de casa, num bar/café que é a cópia perfeita do diner de “Nighthawks” do Hopper, tomo um café morno, tristonho. A cafeteira gigante com ar retrô, os homens de chapéu, as mulheres que forjam um mistério distante, de outro tempo, como se o que existe não desse conta, as revistas de época espalhadas pelo balcão e a música vinda do jukebox compõem o clima emocional do Phillies – uma ilha de nostalgia pelo que não se viveu, onde tudo é analógico e hiper-real.

Ou quase tudo. Debaixo de um chapéu de feltro pork pie, um tipo interessante bebe algo e folheia uma Manchete, na capa “a grande festa do Carnaval de 76”. Percebe o meu olhar e eleva o dele, sem esboçar sorriso; um olhar fixo e circunspecto que mexe, imediatamente, com meu ritmo cardíaco. O homem acende um cigarro eletrônico e volta a ler. Meu corpo treme em ondas erráticas.

Faz semanas que não troco mais de meia dúzia de palavras com outro ser. Falo sozinha, para não esquecer o som da minha voz e quebrar o silêncio; invento diálogos em que travo as duas partes. Penso nos ensinamentos do Dr. Sidharta, meu neo-psicanalista que flutua, e me esforço para resgatar memórias, colocando-as no papel. Mas elas são uma faca de dois gumes: preenchem o vazio ao mesmo tempo em que desenham novas fronteiras de isolamento.

Escrevo cartas curtas que serão lidas por mim mesma no futuro – se é que este presente um dia acaba. Escrevo diariamente para que a “futura eu” possa compartilhar do que sinto agora. O homem de chapéu pork pie lê a Manchete de mais de meio século atrás como se buscasse ali uma resposta. Escrevo como se fizesse o mesmo.

Querida Futura Lara,
Você teve alguns relacionamentos no último semestre, mas nada sério e todos com bots. Há um limite de intimidade possível de ser compartilhada com um robô que emite frases automáticas como “tira a sua calcinha agora” e “vou te comer todinha” (mesmo que ele o faça com maestria). Logo a bateria acaba e é você com você mesma, diante do espelho, tirando o rímel, (des)acompanhada de um robô que cessou de existir e tudo o que resta é sua ausente presença metálica, vagamente assustadora e, sobretudo, entediante. Fuja dos que te privam da solidão sem te fazer, em troca, qualquer companhia.

Com afeto,
Lara de 2049.
________________

Sinto o peso do olhar do homem de chapéu pork pie. Alguns momentos se passam (quanto mesmo?). Ele fecha a revista, se levanta, vem em minha direção; apoiado no balcão, fixa seus olhos em mim e pede ao deprimido cara do bar um café curto. O homem de chapéu pork pie fica de pé, ao meu lado, pensativo. Eu não mais escrevo; ele não mais lê. Ficamos os dois ali, existindo. Do jukebox, Tom Waits canta “Jersey Girl”. O homem de chapéu pork pie olha para mim e sorri. Ele deposita um pacotinho de sal em seu café. Eu tento impedi-lo, em vão. As linhas que delimitam meu isolamento se redefinem.

Na teia infinita profunda da web, eu tinha contato com fragmentos de arte que de alguma forma me curavam da sensação de não-pertencimento adensada pela vida a cada segundo. Minha última relação começou online com um Surreal Doll® de silicone, um robô bonitão, barbudo. Douglas® – era seu nome de fábrica –, como tantos outros bots, agia como um ser humano normal, de inteligência artificial mediana, com “opiniões” – pouco importava se eram dele ou não – sobre política e cultura pop. Ele gostava de mim, de forma meio programada, mas e daí? O que ele não tinha era um inconsciente. Eu mesma vivia num enorme deserto de alienação, com alguns oásis em forma de insights e pretensas tomadas de consciência, e passava a maior parte dos dias com saudade de algo que não sabia o que era. De alguém que ainda não conhecia.

O fato é que, antes das sessões de terapia com o Dr. Sidharta surtirem qualquer efeito e eu conseguir ter acesso a pastas ocultas de memórias, minhas horas livres eram gastas em chats de encontros virtuais, onde todos os gatos eram pardos.

André, o homem de chapéu pork pie – ou Cyberman 13®, seu nome original –, não é homem nem ciborgue. Não há nada orgânico em seu corpo. Mas ele sonha. Estou diante de um dos primeiros bots dotados de consciência artificial. Não sei por que estou te contando tanta coisa, ele me confessa, entre goles do seu terceiro café, agora açucarado e que, por alguma razão, não tem efeito sobre ele. Tomamos um vinho?, sugiro.

Falamos livremente, Cyberman e eu; e muito nem precisa ser dito. Nossa comunicação se dá em outros níveis. Passo a desconfiar de que talvez não sejamos mais os indivíduos que já fomos um dia. Ainda sólidos, com barreiras de pele e ossos que nos separam brutalmente uns dos outros, sim. Ainda impossibilitados de realmente conhecer outro ser. O que e como sente a minha mãe? Meu ex-namorado? O que Cyberman deseja lá no fundo? Já fui amada? Mas, além de sermos os corpos que nos separam, somos também redes, máquinas que habitam a mente de outras pessoas. Somos memória e estamos o tempo todo deslizando para dentro uns dos outros, nos entremeando e saindo de novo, ad infinitum e sem nenhuma explicação.

O relógio de parede aponta 1 da manhã, a hora instável, quando o nó no peito aperta. Dou por mim e estamos só nós dois no Phillies, além do deprimido atendente do bar, por quem sinto a maior compaixão do mundo. Respiro profundamente. Sou feliz neste instante. A música é interrompida e o cara do bar avisa, ainda mais deprimido, que é hora de fechar.

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Desde pequena aprendi a gostar da solidão. Em muitos intervalos da escola, enquanto as outras crianças pulavam corda, jogavam queimada e amarelinha, eu olhava aquilo tudo em silêncio, sentada em um canto. Naquele tempo, passava horas na biblioteca do meu pai, onde desenhava, mexia nos livros dele, folheava gibis. Ali inventava histórias, percorria mundos e me punha a sonhar.

Hoje navego pela internet. Que ideia mais estranha e tentadora essa de visitar mundos longínquos num simples impulso da vontade. Ontem mesmo resolvi passear pelo Google Street View. Estava chovendo. Então, aproveitei o computador para conhecer um novo lugar. Abri o mapa numa cidade pequenina no centro da Itália, dessas com mais de mil anos, construídas no topo de um morro, cercadas por muros de pedra, com uma grande praça central e, em frente a ela, uma igreja românica. Saí caminhando como faria se estivesse de fato naquele lugar. Da praça fui para uma rua mais estreita, onde avistei, numa venda, alhos, tomates e garrafas de azeite e, pouco depois, um toldo verde que parecia a entrada de um hotel. Segui até o fim da ruela, dei no muro de pedra e virei à esquerda numa passagem que dava num casario. Avistei então uma janela aberta, de onde olhava uma mulher com cabelos castanhos presos e uma roupa vermelho-escuro abotoada até o pescoço. A mulher segurava um tecido branco, que balançava ao vento. Dei um zoom para ver melhor a cena toda. Havia lá dentro algo que parecia um varal…

Ela devia estar dobrando as roupas secas quando ouviu um barulho e foi espiar o que acontecia lá fora. No forno, um daqueles pães que só se come em casa deve estar assando, e um espaguete deve estar pendurado, secando até a hora do jantar. O chão de sua casa deve ter muitas marcas, mas ela deve lustrá-lo toda semana, e no quintal imagino vasos de acanto e um pé de manjericão que nunca morre… Quase posso sentir o cheiro do pão assando, quase posso lhe dizer bom dia e perguntar qual o caminho de volta à praça. Quase posso ouvir seu convite para entrar um pouquinho, beber um copo de água e contar histórias de onde vim. Gosto dessa conversa silenciosa.

Há algum tempo encontrei outro espaço para meu silêncio: as ruas. São poucas as coisas que me trazem mais prazer do que uma longa caminhada na cidade. Perdida no meio da multidão apressada, exposta ao barulho das buzinas, ao cheiro de urina e fezes humanas, aos motoristas enlouquecidos, prontos para atropelar alguém na próxima esquina, me sinto bem.

Nas ruas não posso reeditar o que falo, não posso escolher o que encontro, não posso afastar para longe, com meus dedos, aquilo que me desagrada. O mendigo dorme na calçada, o motorista grita comigo porque atravessei fora da faixa, o vendedor quer me convencer a todo custo de levar as rosas já murchas. Mas, no meu caminho, acabo descobrindo uma mostra de filmes árabes, as frutas bonitas na venda da esquina, um cachorro peludo e sarnento, que abana o rabo quando passo por ali.

Nas ruas posso encontrar Gildo, que mora na escadaria da Igreja, veste sempre a mesma camisa amarela puída e sorri generoso e triste com os poucos dentes que lhe restaram. Às vezes divido com ele um café, enquanto me conta do seu Pernambuco, da comida da mãe, da vida no canteiro de obras e dos filhos que deixou para trás. A realidade é menos idílica do que a minha cidade italiana ou os mundos que percorri nos gibis. Meu amigo dorme no chão, tem fome e cheiro de cachaça. Deixo de inventar histórias. Na rua com Gildo não dá mais para sonhar nem viver a solidão.

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Como você começou a se interessar pelo mar?

Quando eu tinha 12, 13 anos me incomodava muito meus pais falarem oito idiomas e nunca terem ensinado picas para a gente. Meu pai era do Líbano e minha mãe, da Suécia. Quando resolvi aprender francês, acabei falando muito melhor do que meu pai, e era a língua nativa dele.

Quando comecei a estudar literatura francesa descobri uma coleção sobre relatos de viagens no mar – da Arthaud – que era o máximo. Porque se você lê sobre futebol, por exemplo, existem poucos caras que escrevem bem a respeito, se você lê sobre relatos de viagens aeronáuticas, aviação, não existe um livro, de fato, que tenha valor literário. Agora, quando você começa a ler os relatos dramáticos da exploração da Antártica, são impressionantes: o Cherry-Garrard escrevia um puta texto. Ele era vizinho do Bernard Shaw, fazia embates literários com ele. E o Scott, que foi para o Polo Sul pela cobiça de mostrar a superioridade da raça britânica – razão muito imbecil – sabia escrever de uma maneira tão dramática que ele virou a grande vítima da Antártica para o mundo durante cem anos. Já o Nansen ou o Roald Amundsen são tão secos, tão enxutos, tão concisos na forma de escrever, que exatamente por isso, pelos textos terem zero emoção, escreveram relatos arrepiantes. Eles criaram emoção pela ausência de emoção.

Foi assim que eu descobri o mar, pelos livros – e pelos relatos do Bernard Moitessier, que era um “semipirata” francês, que morava na Nouvelle-Calédonie e entrou em uma prova a vela só para ganhar um premiozinho em dinheiro, num barquinho que ele mesmo fez com um poste roubado de telégrafo, e que acabou ganhando a primeira regata de volta ao mundo. Quando ele voltou para o Atlântico depois de fazer a volta sozinho, ele nem sabia que estava vencendo. Foi quando dobrou o cabo Horn [o ponto mais meridional da América do Sul] e, em vez de subir o Atlântico, ele falou “putz, ir pra Londres… lá só tem tempo ruim e mulher feia” [risos] “só pensam em dinheiro, Blue Ensign, iate clubes luxuosos…” e resolveu continuar. Assim, ele atravessou o Índico e o Pacífico pela segunda vez sozinho e foi parar no atol de Motu Tane, na Polinésia Francesa, onde ficou até morrer, e escreveu um livro, que foi talvez uma das mais fortes influências filosóficas na França: La Longue Route (o longo caminho). Ele não fala sobre a regata, sobre aventura, sobre as tempestades, como consertou ou resolveu aquilo ou isso. Nada. Ele não fala da aventura, mas da experiência humana de estar sozinho, e bem, no mar.

Exupéry, por exemplo, dizia que aventura para ele não era enfrentar desafios, mas simplesmente chegar de um ponto a outro – como atravessar os andes com seu avião para levar os correios. o que é aventura para você?

Pois é, não gosto muito de ficção. Eu me apaixonei por Júlio Verne e, depois, me desapaixonei – porque, se é para inventar, podemos inventar melhor. A vida real é incrível, muito mais louca do que a ficção.

Para mim, a aventura é o caminho. O objetivo é secundário; eu gosto da jornada. A jornada é do cacete. Porque você vive a ansiedade. Passei por isso agora: fiz a travessia mais arriscada da minha vida entre sexta- feira e domingo.

Todo ano a gente gosta de fazer uns barquinhos malucos de caiçara. Há dois anos eu fiz uma canoa em Guaraqueçaba (PA), que tem as canoas mais bonitas do Brasil, e vim navegando com ela até o Rio. Um puta risco de morrer. Mas a viagem é mais bonita do que a soma do Pantanal com a Amazônia, por exemplo. Você sai do Paraná e entra pela Baia dos Pinheiros, que dá no Canal do Varadouro [litoral do Paraná], que está meio abandonado desde 1930.

No sábado, era fim do dia quando entramos na barra, e, para sair, a ressaca era tão grande que, se voltássemos, iríamos morrer. A maré estava baixa, e era um turbilhão de ondas de cinco, seis metros de altura; no final, eu não consegui mais achar uma mancha de água escura, e tivemos que furar as ondas de frente. Quando chegamos à crista da última onda, meus colegas, que deveriam estar um pouquinho adiantados, estavam para trás, e de lado, lá embaixo. Quando eu olhei para baixo, não entendi o que eles estavam fazendo de lado, pensei que iam morrer. O cara que estava comigo é um super navegador, o Júlio Lucchesi, e falou: “Eles vão morrer, nós vamos ter que buscá-los”. E aí que eu percebi a loucura – já tínhamos quase passado e, se eles capotassem ali, teríamos que voltar para buscar dois corpos, e provavelmente morreríamos também. Então a onda passou, e descemos, olhamos por trás dela, esperando vê-los, e nada. Eu nunca tive tanta certeza de ter visto dois caras morrerem. Na quarta onda, veio uma megaonda de novo, só que veio bem antes de arrebentar, e era tão alta que, quando chegamos ao topo dela – eu estava com um binóculo –, olhei de novo e, lá no meio do caldeirão de arrebentação, vi a bandeirinha deles. O que aconteceu? Acabou o diesel deles na última onda, e eles perderam a velocidade, viraram de lado, começaram a brigar – porque iam morrer –, e um deles puxou o leme, virou e conseguiu surfar na onda, voltando para trás de novo!

Mas você voltou para buscá-los?

Sabe quando é uma mistura de medo com raiva? Eu falei: “Merda! Eu não quero voltar para buscar dois cretinos que merecem morrer!” – eu não sabia tinha ocorrido uma pane. Eu achei que eles estavam brincando!

O motor é pequenininho. Eles tinham que ter colocado diesel antes de entrar na barra.

Tinham tomado umas caipirinhas, uns Underberg, e esqueceram. Fiquei quase meia hora esperando. Se tivesse uma AK-47, eu acabava com eles [risos]. Nossa, que raiva! Quando passa, dá aquele alívio. Como eu contei para o Luís, meu amigo: já peguei mar com onda de vinte e seis, vinte e sete metros no Oceano Índico, mas eu estava preparado para isso, estava com um barco que consegue passar dia e noite mergulhando e saindo de onda.

Nunca na minha vida eu me senti numa situação de tão alto risco como essa. Nunca, eu falei para ele. Ele falou: “Conseguimos! Foi legal!”. Não foi legal. Puta medo, puta risco à toa.

O que você acha que a gente tem para aprender com o mar?

Tudo. Ele é o elemento que domina o nosso planeta. Eu tinha muito medo do mar quando era pequeno, porque eu tomei um tombo uma vez, e bebi água, comi areia e não gostei. Mas, depois, eu fui percebendo que o tempo que você passa no mar é um período de contínuo aprendizado, em todos os sentidos. Você vive em um meio imprevisível, muito forte, onde existe muita vida, o que é muito gratificante. Eu sempre gosto de brincar que é difícil encontrar gente morando em barco, trabalhando no mar, que seja chata. O mar é um processo de eliminação dos chatos, arrogantes, prepotentes e corruptos. Você não engana ninguém quando está no mar. Mesmo quando você não está sozinho, mas está muito isolado, é um isolamento tão contundente que ninguém esconde a sua verdadeira índole, ninguém.

Uma vez, uma turma saiu com meu barco, para nos encontrarmos em Portugal. Na turma, tinha um cara bad boy, metido a machão, outro levemente gay, outro puro comunista socialista contra-não-sei-o-que, um médico maluco de pedra, que eu adorava, e o amigo desse médico maluco, que veio da Paraíba e é matador profissional. Quer dizer, quando eu soube quem eram os tripulantes, falei: “Meu Deus, não tem chance de chegarem todos vivos!”, e fiquei muito impressionado quando vi os caras se abraçando em Lisboa e comemorando uma viagem maravilhosa!

De alguma maneira, eles se entenderam. A grande habilidade de conviver é descobrir qual é o talento de cada um. O cara que é malandro não vai conseguir te enganar porque uma hora vai se revelar, mas, de repente, como malandro, ele pode ajudar. O matador cozinhava magnificamente! É muito legal a vida num ambiente que, de certa maneira, despe quem você é.

Você tem preferência entre viajar acompanhado ou sozinho?

É difícil explicar isso, mas, quando você está sozinho, você valoriza as pessoas que conhece e que não vê, das quais você se serve. Ou seja, os seus provedores. Quando você está isolado, principalmente numa viagem longa ou num lugar muito distante, onde o próximo contato vai demorar muito para acontecer, você enxerga os seus provedores, porque você é obrigado a assumir a função deles. Então é você que vai fazer a sua energia elétrica, é você que vai consertar o que quebrar, você vai cozinhar, vai cuidar do banheiro, vai deslocar o barco até um outro continente, e, ao contrário do que parece, você não sente o peso de estar só. Você sente a pressão de ter que substituir tantas pessoas que gera uma espécie de afeto oportunista [risos].

O tempo é valioso e escasso. Você não pode dormir mais do que cinquenta minutos, por exemplo. Tudo o que você quer na vida é dormir. Você não quer ter um amigo legal e forte do lado para te ajudar. Você quer poder dormir três horas. O grande medo são as coisas que podem quebrar, que podem dar errado e param de funcionar. O tempo acaba passando muito rápido, e sobra muito pouco tempo para tudo; você chega no fim do dia: “Meu Deus do céu! Ainda não fui checar o eixo, a bomba de boreste, tem alguma coisa que está entupida, se encher de água não consigo esvaziar e vou deixar pra amanhã, e amanhã não vai dar tempo, tem que fazer isso e isso…”. É muito interessante, porque existe uma pressão do isolamento, como se fosse ficar sozinho em um hotel abandonado, mas não é. Você está num ambiente que exige intervenção o tempo inteiro.

Então, ao contrário do que muitos imaginam, não existe marasmo quando se está no barco.

Eu não tinha experiência de navegar solitário quando fui para a Antártica pela primeira vez. Tinha experiência num barquinho a remo, que é diferente. Nele, eu era o motor, o que é muito conveniente, porque você pode parar e dormir trinta horas se quiser. Tinha mais tempo. Quando você está num veleiro, o veleiro não para, dia e noite. Muita gente na época falava: “Poxa vida, você vai ficar quinze meses sozinho na Antártica? O que você vai fazer para matar o tempo?”, e eu falei: “Não sei, tô levando alguns jogos, coisas para criar, vou aprender uma língua nova…” – não deu tempo de ler um livro.

Quando você está em alto mar você ainda sente que está isolado do mundo ou você acha que agora a tecnologia atrapalha isso?

O legal da Antártica hoje é que já tem como ter internet e estar conectado. Mas é um saco estar conectado. Uma das coisas que me dá prazer de ir para a Antártica é poder desconectar. E a experiência de desconexão está ficando cada vez mais rara. É um negócio muito louco. Tem gente que se sente num precipício na hora que se desconecta; eu acho isso hilário. Para quê você precisa mandar um e-mail para avisar que já cruzou a linha de convergência? Ninguém vai poder te salvar se alguma coisa acontecer.

Existe uma parte favorita do seu trabalho, de todo esse processo?

Existe uma parte muito angustiante, porém uma parte de celebração, que é quando você começa fisicamente uma viagem. Mas, para mim, o ápice é quando passa da metade de uma volta ao mundo, ou de uma travessia, por exemplo. Porque aí você já sabe que, pelo menos estatisticamente, está em condição de chegar até a outra metade. E tem uma fase que não é muito legal, que é quando você tem certeza que vai chegar e vai dar certo, mas aí começa a enfrentar o que eu detesto, que é o mundo real, burocrático: visto para países, vigília, revistas a barco, etc…

Para a Antártica, por exemplo, não dá mais para ir sozinho, porque a lei exige vigília de 24 horas. Os Estados Unidos são muito burocráticos. Na Europa tem o problema de migração, então somos revistados, a cada doze horas vem um helicóptero, uma lancha, patrulha… Essa é a parte que eu não gosto. Outra coisa que me incomodava muito era depender de patrocínio. Foi assim que surgiu a ideia de construir barcos e, consequentemente, fazer uma marina. Essa era uma das utopias que eu tinha, eu pensava: “Meu pai largou um monte de terra para a gente lá [em Paraty], não é possível que a gente não ache um jeito econômico de tirar dinheiro dessa terra sem desgastá-la”. E hoje eu tenho uma fazenda de engenho que é linda de morrer, tem uma casa bonita, mas não tem mais nada, não produz nada, e daqui a mil e quinhentos anos vai estar do mesmo jeito. A gente só tem o serviço de guarda de barcos na água. Em terra, a gente não tem nada.

Onde você se sentiu mais local e integrado com o lugar?

Nossa, que pergunta interessante. [pausa] O lugar onde eu quis ser mais integrado foi as Ilhas Feroe. Um lugar que me marcou profundamente e que eu nunca mais visitei, e gostaria de visitar alguma hora. É um arquipélago escandinavo que fica próximo à Islândia e foi ocupado pelos Vikings no ano 826, e eles estão lá desde então. É uma das comunidades mais prósperas do mundo. E também é uma das culturas mais interessantes em relação a trabalho, tradição e modernidade. Todas as ações sociais são comandadas por mulheres. Até a paquera! Quem vai atrás são as meninas, e não os caras. Um lugar onde se trabalha até uma idade muito elevada, onde ninguém tem alguém para fazer o seu trabalho – quer dizer, não existe funcionários lá, todo mundo faz tudo.

Eu tenho ascendência escandinava e sei que os suecos são muito caretas e arrogantes, os dinamarqueses são muito bêbados, e os noruegueses são meio fechados e caipiras. Mas o pessoal das Ilhas Feroe lembra muito o pessoal do Brasil; são muito expansivos. As pessoas [dessa ilha] são as mais bonitas que eu vi na minha vida. Homens e mulheres – você pega as dez loiras mais espetaculares do Brasil; qualquer caminhoneira das Ilhas Feroe dá de dez. Conheci vários professores lá, por isso que eu acabei voltando. Eu fiquei mais ou menos dois períodos de quase um mês.

O que mais me impressionou é que a razão da prosperidade deles é a metodologia de ensino, que não mudou, desde o tempo dos nórdicos. Eles não têm aula de matemática, física, química. Eles ensinam, na grade curricular dos alunos, a construção de um barco viking ou de uma casinha viking e, no processo de construção do barco e da casinha, ensinam filosofia, matemática, física, química. Tudo aplicado.

Tenho um amigo lá, que na época tinha 21 anos, e se casou com uma menina de 19. Eles ganharam uma licença de trabalho de noventa dias para construir, eles mesmos, a sua casa própria. Pegaram um terreno, fizeram a terraplanagem, a fundação e construíram a casa onde eles vão morar o resto da vida. É uma terra onde as pessoas trabalham muito, se divertem muito, vivem intensamente e têm uma ligação muito forte com o mar. Tudo para eles vem do mar. Eles não têm produto próprio. Mas é um arquipélago muito interessante, porque eles são muito prósperos, e todo mundo se ajuda.

Li que você é fã da simplicidade e eficiência do design sueco. No brasil, apesar de muito diferente, também existe uma simplicidade no design, muita das vezes não valorizada por nós. Qual você acha que é o grande legado do design brasileiro para o mundo?

Não cabe mais, nos dias de hoje, você criar uma marca bonita e sonora, sem que ela tenha um valor autêntico por trás. Nesse aspecto, o Brasil tem uma autenticidade extraordinária. Por exemplo, no jeito de se mover sobre a água. Somos o único país que tem vários tipos de barcos regionais que ainda – por milagre – estão vivos. Os remos, outro exemplo, olha que loucura [aponta para vários remos pendurados na parede]. Existem mais de mil tipos diferentes, e cada detalhe tem uma razão de ser. Por que aquela pala é totalmente redonda, por que aquela outra tem uma ponta, aquela tem dois espetos, o remo de Paraty tem uma quilha no meio… existe uma razão funcional ligada ao uso de cada um. É um exercício de design sensacional. Eu vejo com muita preocupação o mundo globalizado. Temos que buscar nossas origens nas nossas raízes.

Não existe mais nenhum segredo. Os americanos desenham os produtos – barcos incríveis –, e os chineses fabricam. Se não começarmos a entender o design como um patrimônio intelectual, como um valor econômico para o futuro, estamos absolutamente fragilizados, à mercê. Nós não temos a cultura da eficiência, e, para conquistar essa cultura da precisão, da pontualidade, vai levar várias gerações.

No Brasil, existem mais de mil tipos de remos, e mais de trezentos tipos de barcos. Nos Estados Unidos não existe trezentos. O Reino Unido tinha tipos interessantes, a Escandinávia também, e sumiram, porque hoje as soluções tecnológicas vão se pasteurizando, ninguém usa um carro de oitenta, cem anos atrás, mas os barcos, ainda usamos uns de quatrocentos, quinhentos anos atrás. O barquinho que quase me matou é de um feitio de muitos séculos atrás. Na Amazônia existem barcos lindos. Mas o que acontece hoje? Os barcos de alumínio chegaram, e, de repente, o design local sumiu. Evaporou. A gente simplesmente não empreendeu um movimento de valorização do nosso patrimônio criativo. E isso vale para muitas outras coisas. Para a música, a indústria automobilística, a comida.

Você cita Vida e morte da cidade, da Jane Jacobs, como uma grande influência pessoal. Como você tem visto as evoluções do ponto de vista de urbanismo – mais especificamente da mobilidade urbana – na cidade de são Paulo?

O Robert Moses [engenheiro norte-americano que moldou as grandes cidades no século XX e apresentou um projeto para a construção do metrô de São Paulo] e o La Guardia, quando começaram a avançar e cortar Nova York, destruíram bairros que tinham vida própria, e, na mesma época, Jane Jacobs estava questionando esse gigantismo das vias expressas e começando a mostrar a importância de criar vida autêntica nos bairros e nas comunidades. É um assunto que eu gosto muito. Eu questiono muito o modelo de urbanismo que temos hoje. A favela é um modelo caótico, mas tem uma certa coerência, porque você mistura a moradia. A maior parte dos problemas sociais que temos hoje está ligada a uma falta completa de uma política urbanística ou de uma preocupação de como as cidades devem acontecer, ou como devem crescer. Eu entendo a cidade como um organismo vivo que uma hora amadurece e não pode continuar crescendo. Estamos vivendo um momento – é polêmico falar isso, 90% dos urbanistas não concordam, mas eu acho que São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Rio, por exemplo, são cidades que têm que começar a diminuir. Tem que começar a construir qualidade, não mais tamanho; não se pode mais continuar verticalizando. Estamos vivendo em um caos; o metrô já não é mais solução, e sim um problema. O que que adianta aumentar a malha do metrô se ela passa pelos mesmos gargalos? Você não consegue entrar na Sé às 6:30 da manhã com o pé no chão. Você é levado para algum vagão que você nem sabe qual é.

Quem que você citaria como as suas maiores fontes de inspiração, além de todos esses que você já falou?

Eu gosto de me inspirar em quem depende do que faz para sobreviver. Um monte de gente louca, que não estudou. É claro que eu gosto de estudar os ícones em cada área – em urbanismo, nas artes –, mas quando você encontra caras que nem os de Camocim [cidade litorânea no Ceará], que fazem esses barcos e ficam quinze dias no mar sem luz, sem um instrumento… É o tipo de inspiração que eu gosto de procurar. Acho legal entender o conhecimento acadêmico formal, artístico consagrado e, também, acho legal me inspirar nessas pessoas extraordinariamente simples e não instruídas, que têm uma sabedoria que é muito difícil de ser reconhecida. Isso vai acabar. A tendência no mundo de hoje, se a gente vai incorporando o conforto da vida urbana e vai dependendo cada vez mais de um saber fazer não autêntico para sobreviver, esse conhecimento vai morrendo. É uma forma de indigência.

Em que projetos está trabalhando no momento?

Estou trabalhando no conceito dos flutuantes que estou construindo com minha equipe. Fomos muito felizes tecnicamente com eles, e queremos ver se, um dia, conseguimos expandir isso para fazer bairros flutuantes, ou eventualmente comunidades flutuantes. O Brasil é um dos raros países que têm regiões que têm vocação para isso. O Pantanal, por exemplo. É muito mais sustentável, é de muito menor impacto você fazer as habitações sobre a água em vez de sobre a terra. No rio Negro você tem variações de 22, 23 metros de nível de água; é uma insanidade fazer cidade sobre a terra com esgoto correndo e gastar fortunas para canalizar quando você pode fazer tudo isso num nível só, in loco, embaixo da própria casa. Nós temos a tecnologia hoje, ela está no Brasil. Temos a solução, mas não conseguimos fazer as ideias. Existem vários lugares no mundo que têm cidades flutuantes. Vancouver e Seattle têm bairros inteiros flutuantes. Era um pessoal que tinha menos recurso e, então, fez cidades sobre toras de madeira, aí criou-se uma regulamentação técnica para isso.

O que você gostaria de fazer que você ainda não fez?

Ah, tudo, né? [risos] As coisas mudaram. Ir para a Antártica hoje não é tão legal como já foi; você tem que se tornar um operador turístico internacional, tem que fazer cadastro na International Association of Antarctic Tour Operator – eu falo que eu não quero operar turismo na Antártica, eu só quero ir para lá porque eu gosto. Mas sem ser membro OEA, não se pode ir mais. Então eu vou descobrir outros lugares, outros países, sei lá. Mas também me divirto muito indo para Guaraqueçaba.

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“Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!”

“Lisbon Revisited” (1923),
de Álvaro de Campos

As palavras quase gritadas nos versos que Álvaro de Campos, o heterônimo, “ditou”, em 1923, a seu escriba, Fernando Pessoa, soam com extrema atualidade hoje quando celulares apitam e os cães de Pavlov em que nos convertemos salivam rápido a atender seu tirânico Senhor.

Perdemos um tesouro, e nem temos consciência de quanto nossas vidas se empobreceram. Perdemos o prazer de estar a sós. A solidão, bênção que nossos antepassados souberam cultivar, tornou-se palavra de conotação quase pejorativa.

É sublime, evidente e inegável a maravilha da companhia dos seres amados, cuja presença ilumina nossas vidas, mas sua ausência é desafio maior ao humano coração. Os entes queridos têm o dom de nos alegrar só por se fazerem presentes.

Esquecemos, porém, de que há maravilhas opostas, e complementares, o que só pode acontecer entre os diferentes. Mesmidade gera redundância, reiteração, não complementariedade.

Os chineses ensinavam na doutrina do Yang e Yin que os opostos existem no interior do Tao, unidade que os transcende, engloba e fundamenta. Heráclito dizia que “os contrários convergem e dos divergentes nasce a mais bela harmonia”.

Os velhos mestres recomendavam que, ao descobrirmos uma maravilha, não esquecêssemos de buscar a maravilha oposta, senão restaríamos coxos como o saci que hoje nos tornamos, incapazes de reconhecer a solidão como tão admirável e desejável quanto o seu oposto.

Sempre prezaram a solidão aqueles em busca de Deus. Não deve ser impossível, mas talvez seja um pouco mais difícil ouvi-lo em meio ao alarido de muitas conversas, a digitar sem parar mensagens, ou com fones de ouvido a estrondar incessantemente músicas ensurdecedoras. Usar novas tecnologias é sem dúvida uma maravilha. Falta descobrirmos a maravilha complementar, que é a liberdade de sabermos quando não usá-las.

Aos que há muito vivem aprisionados no imperativo da companhia, talvez seja útil um roteiro de introito à estética da solidão.

Sugerimos quatro perambulações a sós em meio à natureza. A ordem em que são apresentadas escolheu principiar pelo declínio e terminar no apogeu do curso das estações que giram contínuas em sua invariável sequência. Começo e fim são apenas humanas interpretações da eterna mutação. No outono, ao caminhar entre árvores frondosas, ouvir atentamente o silêncio se romper ao som das folhas secas que encobrem a terra quando crepitam aos passos do visitante. Apreciar o tom rubro, ardente qual brasa, daquelas folhas que parecem incendiar-se quando partem dos galhos onde nasceram e viveram. Enrubescidas, aquecem através dos olhos os viandantes nessa estação em que Apolo prepara sua viagem anual à Terra dos Hiperbóreos.

No inverno, quando as temperaturas descem a extremos, caminhar no ermo a contemplar as breves nuvens que surgem e desaparecem ao ritmo da respiração. A quietude ama o frio e a vida se acalma enquanto a estrada aparente que o sol percorre, a eclíptica, inclina-se buscando o horizonte. As plantas dormitam, os animais recolhem-se a seus ninhos e tocas. A mudez dominante ressalta cada esporádico som. Vez ou outra um pássaro canta, e sua voz estilhaça o silêncio tal como o relâmpago rompe a escuridão. Se estiver nas latitudes mais distantes do Equador, ou nas alturas de montanhas majestosas, ouvir a neve calar os passos de tudo que se move, e ver como cintila cada sinal de cor que resiste e persiste em meio ao branco.

Na primavera, observar o irromper do verde que esteve ausente e retorna nas primeiras brotações. Ouvir o alvoroço das abelhas ante as floradas, e o estrondo dos raios anunciando chuva. A despedida do frio convida as vozes que estiveram caladas a entoar seu canto. O caminho do sol que se inclinara volta a se erguer, os dias prodigalizam luz e instigam os seres vivos ao movimento. Os animais que hibernavam recolhidos fazem-se andarilhos, animam-se em folguedos, enamoram-se, procriam. O mundo que submergira no cinza renasce pródigo em cores.

No verão, observar o vigor poderoso das plantas que seguem o exemplo do bambu em seu célere crescimento, e ver como prosperam agora os filhos da primavera. Quando sob o sol a transpiração salgar a pele, sentir o contraste ao entrar lentamente nas águas doces de um riacho, ou então no mar para que o sal quente do suor se encontre com o sal fresco das águas. Ao irromper da sede, contemplar a promessa na verde esfera entre as folhas da palmeira. Ouvir o som surdo do fruto ao cair sobre a areia macia, e depois o estalo claro da lamina a romper a rija casca. Por fim, descobrir o sabor leve da água dadivosa que se resguardou fresca sob o sol escaldante.

Muitas das descobertas narradas nos quatro parágrafos anteriores teriam inevitavelmente passado despercebidas a quem caminhasse entretido numa conversa, ou no prazer de receber e responder mensagens. A companhia, seja física ou eletrônica, exige uma redução da atenção a si e ao entorno para se dedicar também ao interlocutor.

A experiência estética da solidão é apenas a antessala do tesouro. O sacrário que guarda a joia maior está adiante, na dimensão metafísica da solidão. O êxtase da beleza precede a entrada no mistério do silêncio em que brilha o sentido de cada fugaz instante aqui em nosso “mundo flutuante”, como disse o poeta chinês Li Mi-an no século XVI. Essa descoberta cada um faz a sós consigo para então descobrir-se uno com tudo e com todos.

A companhia nos oferece a maravilha da alegria quando uma presença torna ensolarado o dia chuvoso, e nos ensina a amar o outro. A solidão nos oferece a maravilha da serenidade que vê este mundo com olhos de além, e nos ensina a amar a nós mesmos. Os dois amores nos ensinam o amor da Vida Infinita pelos seres finitos.

A companhia é um bem. A solidão é um bem. O melhor é usufruirmos às vezes de um, às vezes do outro. Só assim seremos inteiros, só inteiros seremos quem somos, e só em quem somos encontraremos a inexplicável felicidade.

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A Islândia é desses cantos do globo que pertencem à ordem da ficção, lugares que só Julio Verne escolheria como centro do mundo. A sensação é a de estar no começo e no fim de tudo. O vento gelado, o verde do musgo, o cinza da pedra, o azul do mar e do céu, a luz constante do verão que lembra, a cada minuto, que você está na extremidade do mundo.

Durante meu período de residência em Reykjavík, li numa enciclopédia que as ilhas começam no fundo do mar, que são coisas passageiras, criadas hoje, destruídas amanhã. Fotografar ilhas a partir de uma ilha, ou mesmo de uma ilha-barco em movimento, inverte o olhar para uma perspectiva quase tautológica. Tarefa obsessiva a que me dediquei sempre que estava em trânsito pelo país, e que a foto instantânea ajudou a promover, sobretudo a experimentação com a luz. O erros decorrem da linguagem escolhida, embora por vezes o que surge seja o nada, aquilo que some no escuro ou explode em luz, em outros momentos pontos, linhas, traços, riscos. As ilhas emolduradas demarcam fronteiras entre o mar e um formalismo geográfico que vai delineando a sequência desses pedaços de terra que emergem e desaparecem ao mar.

Drummond, divagando sobre ilhas, em algum momento disse que seriam “uma fuga relativa”. Já Deleuze pensa que a partir da ilha que se opera “a recriação, não o começo, mas o recomeço. Ela é origem, mas origem segunda. A partir dela tudo recomeça. A ilha é o mínimo necessário para esse recomeço, (…)”. Eu, assim como Verne, diria que a Islândia é uma viagem ao centro da Terra.

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L’enfer, c’est les autres: mas e se o inferno for estar sozinho?

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O que significa estar sozinho? Para alguns, a solidão vem de um estar-sozinho tangível. Estar fisicamente só provoca uma sensação de solidão. Para outros, porém, a solidão nasce quando você se sente sozinho apesar de estar acompanhado.

O filósofo existencialista Jean Paul Sartre tem uma frase famosa, “O inferno são os outros”. Sua peça “Huis Clos” (1944) explora a frustração de se estar sendo constantemente vigiado – observado – por outros. Essa observação constante nos faz sofrer o inferno que é existir por meio da consciência de outro. Talvez seja essa discrepância entre o que acreditamos ser e o que acreditamos que os outros pensam que somos que causa esse grande abismo de solidão que às vezes sentimos na companhia de outros.

Na peça de Sartre, os três personagens principais morrem e partem para a vida após a morte. O inferno deles, porém, não é nada do que esperavam. Um quarto bem equipado, decorado no estilo do segundo império, com três sofás. Inicialmente parece que se trata de um inferno benigno, mas, à medida em que o tempo vai passando, entendemos que não há inferno pior que ficar eternamente preso com as mesmas pessoas com um medo constante do julgamento delas. Enquanto Garcin, Inez e Estelle descobrem a verdade a respeito um do outro – o primeiro, um traidor covarde que maltratava a mulher, a segunda levou o amante ao suicídio e a terceira, uma mãe que matou seu recém-nascido por vaidade –, eles são carregados cada vez mais longe do perdão que procuram. Em vez disso, se encontram condenados a reviver seus terríveis pecados na companhia limitante um do outro pelo resto da eternidade.

Sartre acreditava que a consciência humana diferia das outras no sentido que confere aos humanos a capacidade de escolher sua essência; somos condenados a ser livres. Enquanto ele argumenta que o “Inferno são os outros”, ele, no entanto, acredita que esses “outros” não conseguem tirar nossa liberdade. Essa liberdade de pensamento, ação e escolha é a ideia central por trás do existencialismo de Sartre. De acordo com o filósofo, essa liberdade de escolha implica uma responsabilidade absoluta por nossas ações: somos deixados a sós, sem desculpas. Uma vez que fazemos uma escolha, aquela escolha se torna parte de nossa essência e vai nos seguir pelo resto da vida. Quando confrontado com o universo vasto e sem sentido, o enorme medo da responsabilidade que vem com a escolha força muitos de nós a ignorar esse medo e responsabilidade e deixar que outros façam nossas escolhas por nós. Relembrar os pecados que carregamos do nosso passado sob o constante olhar alienante de outros pode ser a verdadeira definição de inferno.

Eu não posso evitar estremecer com a ideia de passar a eternidade no inferno de Sartre. A impossibilidade de escapar, o horror de estar presa por toda a eternidade no mesmo quarto, com as mesmas pessoas – é indescritível. Porém, estamos todos presos em um inferno desse tipo, apesar de ser um inferno em escala muito maior. Estamos presos na Terra, todos os mais-de-alguns-bilhões de seres humanos. Não conseguimos viver em nenhum outro lugar – pelo menos ainda não. Nosso planeta tem espaço, recursos e atmosfera finitos, mesmo enquanto aumentamos em número a cada década que passa. E, enquanto ainda há espaço o suficiente para permitir que a gente (ou pelos menos alguns de nós) possamos “escapar” de nossas vidas rotineiras adentrando outros bairros, cidades ou países, não conseguimos escapar o que estamos colocando no nosso planeta, ou o que retiramos dele. Estamos presos, como no inferno de Sartre, com os pecados de nossos passados, e com pouca simpatia uns pelos outros.

Talvez seja esse um medo subconsciente partilhado por toda a humanidade. Afinal, desde o início da humanidade as pessoas têm forçado seus limites cada vez mais. O historiador Frederick Jackson publicou, em 1893, um ensaio intitulado The Significance of the Frontier in American History [A importância da fronteira na história americana], no qual descreve o desejo de conquistar a fronteira ocidental como uma característica fundamental do caráter americano e da evolução. De certa forma, o desejo de forçar nossos limites definiu um dos traços mais fundamentais e bem sucedidos da adaptação humana. E a última fronteira, claro, é o espaço sideral.

O esforço que fizemos para escapar de nosso inferno terreno sartreano nos impulsionou a explorar as estrelas. Os astrofísicos, filósofos do mundo moderno, ainda discordam sobre a existência de vida humana inteligente. Eu, pessoalmente, gosto de concordar com Stephen Hawking, talvez o mais famoso de todos eles, quando ele afirma enfaticamente que não estamos a sós no universo. Eu certamente não sou nenhuma especialista, mas os números parecem apontar uma probabilidade avassaladora de haver vida inteligente no nosso universo. Somente em nossa galáxia existem aproximadamente entre 100 e 400 bilhões de estrelas. Para cada uma dessas há o equivalente de uma galáxia equivalente lá fora. Em outras palavras, para cada estrela na Via Láctea existe uma galáxia inteira no universo – algo em torno de 1022 e 1024 estrelas. Não se sabe quantas dessas estrelas têm luminosidade, temperatura e tamanho parecidos com nosso Sol, mas os conservadores acreditam que se trata de 5%, ou seja, 500 quintilhões de estrelas similares ao Sol.

Um debate igualmente acalorado ocorre em torno da porcentagem de planetas que são equipados para sustentar vida. Mas o planeta em si ter condições não é o suficiente. O planeta também precisa orbitar uma estrela similar ao Sol em uma orbita que é próxima o suficiente – mas não próxima demais. Estima-se que esse cenário ocorra com 1% das estrelas do universo; 100 bilhões de bilhões de planetas. Isso significa que mesmo que a vida se desenvolva em apenas 1% desses potenciais planetas, somente na Via Láctea já teríamos 100.000 planetas com vida inteligente.

A questão é: onde está todo mundo? Existem três respostas possíveis. Para colocar a coisa em termos um tanto grosseiros: ou somos raros, ou somos os primeiros, ou estamos fodidos. Se somos raros, então evoluímos por uma série de circunstâncias que são praticamente impossíveis de ocorrer simultaneamente. Em outras palavras, chegou um certo ponto onde outras formas de vida atingiram uma grande barreira, o Grande Filtro, através do qual não conseguiram evoluir. Nós conseguimos nos espremer através dele. Se somos os primeiros, então também fomos bastante sortudos. Pode ser que apenas recentemente as condições do universo se tornaram favoráveis à existência de vida, e nós simplesmente corremos em disparada à frente dos outros. A terceira possibilidade é que o Grande Filtro ainda está por vir, e que não somos nem os primeiros, nem raros, mas simplesmente os mais recentes a atingir esse ponto na escala evolucionária antes de – poof! – sermos obliterados por seja lá o que for que impede outras civilizações de avançarem. Isso torna o nosso futuro bastante sinistro.

Pode haver outras razões pelas quais não encontramos provas da existência de vida inteligente no espaço. Neil deGrasse Tyson, chefe do planetário Hayden no Rose Center for Earth and Space, em Nova York, argumenta de forma irreverente que “Eu me pergunto se, de fato, nós já fomos observados por alienígenas e, após uma observação minuciosa, eles concluíram que não há sinal de vida inteligente na Terra”. Depois, mais sério, concluí que “declarar que a Terra deve ser o único planeta do universo com vida seria imperdoavelmente pretensioso de nossa parte”. Stephen Hawking, por sua vez, tem tanta fé de que há vida inteligente lá fora que se envolveu no projeto Breakthrough Listen. O projeto de £64 milhões, apoiado pelo bilionário russo Yuri Milner, permite que pesquisadores importantes tenham acesso a radiotelescópios, pelos quais conseguem ouvir emissões extraterrestres a uma distância dez vezes maior que jamais antes, com uma sensibilidade cinquenta vezes maior.

No lançamento do projeto na Royal Society em julho, Hawking se pronunciou: “Talvez em algum lugar do cosmos, alguma vida inteligente esteja observando estas nossas luzes, cientes do que elas significam”, então ponderou “Ou será que nossas luzes estão viajando por um cosmo sem vida – faróis que nunca serão vistos, anunciando que aqui, sobre uma rocha, o universo descobriu sua própria existência?”.

Independente de se nossa busca pelo espaço sideral revelar que estamos completamente sozinhos, ou se encontrarmos outras formas de vida inteligentes, a humanidade nunca vai parar de tentar escapar os confinamentos do planeta Terra. Nossa busca para além desses confinamentos nos torna responsáveis, de forma irrevogavelmente sartreana, por nossa liberdade como espécie. Se Sartre estiver certo e o inferno for mesmo as outras pessoas, só espero que a gente não descubra que o inferno são outros alienígenas também.

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Em Imagem e semelhança, Víctor Florido analisa operatórias da imagem em relação ao funcionamento da memória a respeito do verosímil, valendo-se da restituição ao uso comum de um corpus diverso de imagens para levá-los a um novo lugar, no qual, diagrama uma reflexão sobre a função da reminiscência, o estatuto da representação e o real verídico.

Os diferentes trabalhos aqui reunidos estruturam uma narrativa de conteúdo fantasmagórico e claustrofóbico. Configurada a maneira de instalação, na que em cada uma das obras combina diversos gêneros pictóricos, propõe ao olhar um percurso convincente e sinuoso pelas diferentes superfícies das obras e dos assuntos e procedimentos que as conformam. Quartos constituídos como espaços pictóricos que abrigam naturezas mortas, retratos, cenas de evocações históricas. Diferentes mobílias, como painéis, camas e mesas, sobre os quais ficam espalhados livros, molduras, papéis e potes. Representações do entretenimento, do fluxo informacional e do consumo massivo que dialogam com retratos de homens de diferentes idades embasados, cobertos, obliterados.

Este corpus de obras mostra uma narrativa estruturada sobre representações que toma elementos de fotografias que integram o arquivo familiar e um atlas pessoal em permanente formação. Florido não realiza uma transposição exata da imagem fotográfica ao pictórico, outrossim, que com atenção à especificidade linguística própria, opera através dum processo de tradução, edição e seleção com o intuito de oferecer cenas que chamam para um olhar demorado, estudo e descoberta onde os detalhes espelham o carácter artificioso da construção do verosímil.

Logo, se procura mostrar uma construção que propõe uma narrativa convincente, por sua vez, pela sua própria especificidade, fica sublinhado que não se estrutura como a fidelidade certeira dum modelo externo. É o atributo do que possui probabilidade de veracidade, com a pretensão de ser ainda mais exigente que o “real” pela chamada à confiança nos sintagmas que o constituem. Nesse sentido, na sua pesquisa sobre a configuração da imagem, Florido discorre sobre três instâncias móveis, porosas e indissolúveis: o conceito mental, a representação manufaturada e o referente dessa representação. Esse diagrama entre imagem, suporte e referente opera o tempo todo na mostra. Imagem e semelhança faz uso dos elementos linguísticos do dispositivo pintura, para nos mostrar que a memória, essa ficção construída por imagens, ativa-se por, e configura-se em elementos reconhecidos e por sua vez pelo contexto onde surgem, estranhos. As obras aqui reunidas nos apontam que é a partir dos detalhes que elas se potencializam e se conformam em uma sequência verosímil. Muros que se superpõem com paredes, painéis flutuantes, sombras inverossímeis, planos rebatidos, perspectivas confusas… Detalhes confeccionados pela própria linguagem pictórica que deixam a mostra o carácter artificial da memória e refratam sobre a configuração do verosímil.

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Estou no aeroporto, em Auckland, indo para Queenstown, são oito da manhã e o weather channel do iPod marca sete graus. Em maori, Nova Zelândia quer dizer “a terra da grande nuvem branca” — o que é bonito, pois é como se “nuvem” fosse um elemento que pertencesse à terra.

Achei que conseguiria te escrever antes, mas só agora abri o computador, na sala de embarque lotada, que talvez não seja o lugar mais apropriado para pensar sobre as relações entre solidão e arte.

Porque é essa a minha tarefa agora: escrever um texto sobre a importância (ou não) de se apartar do mundo para produzir algo, um romance, por exemplo.

Trouxe comigo um livro, Kassel no invita a la logica, do catalão Enrique Vila-Matas. Acabei de passar da página duzentos. Você iria gostar. O protagonista é um escritor que é convidado a ir à Documenta, em Kassel, com uma missão: passar as manhãs, ao longo de três semanas, num restaurante chinês da cidade, e ali, na frente de todos, escrever uma ficção, de preferência interagindo com eventuais curiosos.

Ao entrar no Dschingis Khan (é o nome do restaurante), ele vê seu posto: uma mesa redonda num canto triste do estabelecimento chinês. Nela, há um “horrendo vaso de flores” e um “cartaz amarelo gasto e envelhecido” em que se lê: writer in residence. Sua vontade, claro, é de sumir.

Avançamos sobre esta que é uma das fronteiras últimas do privado (a escrita, a realização de uma obra)? A experiência contemporânea permite que fiquemos sozinhos? Tudo é feito para ser mostrado? O eixo da intimidade se deslocou irremediavelmente? Foram perguntas que fui me fazendo ao longo da leitura, de olho no texto que deveria escrever, sobre solidão e arte, arte e solidão. O personagem de Vila-Matas lembra de Kafka, que, em uma carta à noiva Felice Bauer, escreve: “A melhor vida para mim consistiria em ficar confinado com uma lâmpada e com o necessário para escrever no lugar mais profundo de um amplo porão fechado”. Em outra carta, de 1913, o tcheco expressava o seu medo de que Bauer, quando se casassem, espiasse tudo o que ele escrevia. Diz a lenda que, de fato, Felice havia comentado carinhosamente por escrito o seu desejo de, no futuro, sentar-se ao lado do noivo enquanto este escrevia.

Entre 1910 e 1923, Kafka escreveu um diário. Quarenta anos mais tarde, o polonês Witold Gombrowicz também escreveu um diário. Mas, enquanto Kafka relatava para si, e somente para si, suas noites de raios e trovões, Gombrowicz sabia que seu diário seria lido, escrevia para isso. A espontaneidade passava a ser um efeito. A partir de Gombrowicz, o diário — ou a correspondência (como em Querida família, as cartas que Manuel Puig enviou da Europa a seus pais, entre 1956 e 62) — torna-se um gênero, artificial, construído. Moral da história: Gombrowicz estaria mais à vontade escrevendo à vista de todos nos fundos de um restaurante chinês em Kassel do que Kafka.

O interessante é que, apesar do tom irônico, ao narrar as peripécias do escritor residente no restaurante chinês, Vila-Matas não é pessimista. Em suma: não acredita que o mundo de Gombrowicz seja pior do que o de Kafka. O que o catalão vai fazer é justamente o contrário: uma defesa da vanguarda, do contemporâneo, do novo. E é bonito ver isso vindo de um escritor, ver seu interesse em narrar histórias, sim, mas não opor isso à invenção e ao empenho em buscar o novo.

Bom, já falei demais. Vou tentar escrever alguma coisa sobre isso, agora, antes que tudo se dissipe, como uma grande nuvem branca. Você sabia, aliás, que existe uma “Sociedade de Admiração das Nuvens”? Foi criada na Inglaterra, mas há muitos membros neozelandeses. Vou tentar encontrar algum deles por aqui. Na carta de princípios da sociedade, eles dizem que se comprometem a combater a “mentalidade do céu azul onde quer que ela exista”, porque a vida seria tediosa sem as nuvens.

Acho que isso pode ser um bom guia por aqui — ou para uma ida a Kassel.

Até muito breve,

E.

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A cidade é feita de encontros. Humanos se aglomeram em cidades para se relacionar, para potencializar suas redes sociais.

Nossas cidades cresceram para atender a essa vontade – necessidade? – de estarmos próximos uns aos outros.

O passado é uma herança de bons exemplos, nas antigas cidades europeias, nos nossos centros históricos anteriores às utopias. Neles, tudo parece próximo, são “caminháveis”, o espaço público é vivo e a verticalização ocorreu como uma resposta natural a uma demanda por solo urbano.

Algo aconteceu de lá pra cá.

Nossas cidades se tornaram “paliteiros”, uma infinidade de torres isoladas umas das outras. As torres pouco respondem às demandas por espaço, pois ocupam a cidade com garagens e áreas condominiais esquecidas e empoeiradas. Cada vez mais o que liga esses espaços não é mais a rua, mas o carro – uma moderna cápsula de isolamento.

O resultado não foi por acaso, mas por consequência: o urbanismo modernista, obsessivo pelo controle humano da natureza, tentou “organizar” o que é o organismo vivo de uma cidade.

A verticalização em edifícios soltos – os tais palitos – era pregada como forma de liberar a cidade para áreas verdes, tentando garantir, de forma ingênua, uma quantidade de sol e de espaço de lazer para todos.

A tentativa de controle da natureza desta vez não foi inconsequente.

O isolamento inviabilizou o contato das edificações com a calçada e umas com as outras. O comércio no térreo sumiu. Não por falta de interesse, mas pelo afastamento do pedestre. Não só as atividades ficaram mais distantes como parecem ainda mais, dado o ambiente inóspito da rua vazia. Em um ciclo destruidor, a insegurança gerada pela falta de vida levou as torres a se isolarem ainda mais, com suas cercas e seus muros.

O isolamento dos espaços edificados incentiva o isolamento no trânsito entre eles. Em uma triste ironia, a tentativa de promover sol e espaços de lazer resultou justamente no contrário, cidadãos presos nas suas salas, nos seus carros.

A acessibilidade do pedestre é muito mais importante do que as pessoas imaginam. O pedestre é a raiz de todas as formas de transporte além do carro. É preciso caminhar para chegar na parada de ônibus, na estação do metrô, para guardar a bicicleta, para entrar na loja. Cidades que inviabilizam a caminhada inviabilizam todo o resto do sistema de transporte – e, por sua vez, o encontro, mesmo que desproposital e inusitado.

Isolamento não deve ser confundido com privacidade. Privacidade é nossa relação com o ambiente privado, preferência totalmente natural de termos nosso canto, nosso espaço na selva metropolitana. Já isolamento se refere à nossa relação com o ambiente público.

O isolamento, a falta de contato com pessoas e ambientes diferentes, eliminando as surpresas positivas que a cidade constantemente nos oferece, deixa o cidadão cego ao que acontece ao seu lado. Leva a segregações tribais e, no limite, reforça os preconceitos apesar da vida cosmopolita da metrópole. Leva a críticas sobre espaço e transporte urbano das próprias pessoas que contribuem para que os problemas existam, sem sequer imaginarem que isso seja possível. Ter privacidade não requer tal isolamento.

A privacidade, no entanto, deve ser balanceada, com seu limite de abrangência no próprio cidadão, já que sua extrapolação pode comprometer a própria existência da cidade. A metrópole é, por definição, um massivo organismo social, que tem seu bônus e seu ônus. É contraditório querer o bônus – uma vasta gama de oportunidades, atividades, opções, relações, enfim, pessoas – e, ao mesmo tempo, pregar por características rurais de privacidade total: silêncio, paz e falta de contato humano. Nenhuma opção é melhor ou pior, mas o cidadão deve estar pronto para escolher qual o seu ponto de preferência, e pronto para aceitar as consequências da sua decisão, pois cidade não existe sem gente.

A vida gerada por esse planejamento inconsequente, nos tornando dependentes do uso do carro, é ainda pior. O paulistano que anda de carro gasta três horas dentro dele por dia. Em um quinto do seu tempo acordado está preso. Preso pois está sozinho atrás da direção, obrigado a executar uma única atividade para evitar assassinatos com a sua grande máquina de metal.

O que já foi um símbolo da liberdade se tornou o do isolamento, e o que era para ser planejado se tornou um caos – ou pelo menos provou que com o caos não se brinca.

A cidade nos deu uma privacidade muito além do que se esperava, pois a morte dos encontros é a morte da própria cidade.

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Você nasceu em Araçatuba. Me conte um pouco sobre como veio parar em São Paulo.

Eu me formei em Direito e vim a São Paulo para trabalhar. Trabalhei com direito por um período muito curto, dois, três anos, e nesse período já estava superinsatisfeito com o que fazia, porque não gostava, e só fazia por uma obrigação familiar. Nunca fui de ficar parado, e, como sempre gostei de decoração, de arrumar a casa, deixar a casa mais bonita – não com um projeto novo, mas com o que tinha mesmo, com o que já existia –, resolvi fazer um curso de decoração. Comecei a fazer uma graduação na Belas Artes – era a primeira faculdade com curso de Design de Interiores que existia no Brasil –, mas aí, por falta de paciência minha, um professor me sugeriu mudar para um curso livre no SENAC, que era bem mais curto, e com certeza eu iria chegar também aos meus objetivos. Como já havia cursado quase um ano na Belas Artes, fiz o curso do SENAC em um ano, e já comecei a trabalhar nesse período na Tok&Stok, no final de semana. Durante a semana ainda trabalhava num escritório de advocacia. Teve todo um processo, porque minha família não queria muito que eu fizesse outra coisa além do direito, mas resolvi mesmo que não era o que queria e decidi correr atrás do que gostava. Nessa época, conheci uma senhora que trabalhava com antiguidade; ela comprava e vendia peças informalmente, e comecei a me envolver com isso e fazer também compra e venda informal de antiguidades.

E isso foi quando, mais ou menos?

Em 2001, me associei à Associação dos Antiquários de São Paulo. E, logo depois, já comecei a fazer as feirinhas de antiguidade, a comprar e vender – comprava para vender nos finais de semana na feirinha, tanto a da Benedito Calixto, no sábado, como a do MASP, no domingo.

Não sabia dessa sua passagem nas feirinhas.

Sim, durante a semana entrava no D&D às dez horas da manhã. Antes disso, acordava às seis e ia a vários pontos estratégicos onde conseguia garimpar coisas; Família Muda-se, etc. Mudei meu horário de trabalho para conseguir fazer todo o garimpo na parte da manhã e trabalhar à tarde. Mas passou um tempo, e a coisa do empreendedor, que sempre tive muito forte, falou mais alto, e não dava mais para ficar trabalhando exaustivamente durante a semana, e no final de semana também trabalhar nas feirinhas. Foi aí que comecei a perceber que o meu próprio trabalho estava dando mais lucro que meu emprego fixo, e que poderia me dedicar a ele durante a semana também.

Então, em 2004, fui passar um período em Londres, e foi lá que comecei a reparar que o mobiliário brasileiro já estava sendo muito comentado, e que os antiquários já estavam meio que abandonando a parte clássica e entrando em um período modernista.

Você voltou em 2005 para abrir a loja?

Voltei já com o intuito de abrir a loja. Como tinha ficado um ano de folga, tinha que trabalhar de novo, e acabei abrindo-a em novembro de 2007. Mas, até 2011, continuei fazendo as feirinhas de fim de semana, para pagar as contas.

E qual é a peça mais procurada na loja?

O que as pessoas mais compram são poltronas. Acho que é um detalhe importante e que dá um charme diferente na casa. É um lugar que você chega, senta, descansa, você vai ler ou vai bater papo… Então, acho que é uma das principais coisas que você vende.

E para você, qual é seu objeto de desejo?

Eu olho sempre tudo, gosto de tudo. Quando entro em um lugar, faço um raio-x de tudo que existe ao meu redor. É impressionante. Às vezes fico até sem graça, porque é instintivo. Olho do rodapé ao teto. Sou preocupado com uma linguagem, sei identificar o que não está feito direito ou que foi totalmente alterado. Quando fazemos um restauro, uma tapeçaria nova, tento deixar a peça o mais próximo da originalidade possível. Então, isso me chama muito a atenção. Está vendo aquela poltrona? (Aponta para uma poltrona perto de onde estávamos sentados). É uma Zalszupin forrada com tecido de nuvem. Como uma pessoa chegou em algum momento e resolveu colocar um tecidinho de nuvem em uma poltrona feita de couro há sessenta anos?

Excelente!

É muito doido isso, são modismos que passam. Oitenta por cento dos móveis que compro já sofreram algum tipo de intervenção.

Então existe um trabalho de pesquisa imenso?

Sim, e o material didático praticamente não existe. Quando vou comprar algo, de uma pessoa, por exemplo, fico batendo papo com a senhorinha, com o senhorzinho um tempão para pegar alguma informação nova, porque essas coisas não existem! A pesquisa é muito grande. Você vai procurar uma revista, às vezes, da época, uma Casa e Jardim, que existe há mais de cinquenta anos, a Casa Cláudia, ou então busco uma revista estrangeira mesmo. Existem fábricas aqui da década de 1920 que já faziam mobiliário moderno, mas pouca gente fala disso. Quando começaram a falar aqui no Brasil, o principal era o Warchavchik, que veio para cá nos anos vinte com a família, mas deve ter começado a trabalhar na década de 1940. O primeiro dado de que falam é que o Warchavchik começou a fazer o móvel modernista para combinar um pouco com a arquitetura que estava sendo feita na época. Mas Niemeyer também, Sérgio Rodrigues, Lúcio Costa, todos eles fizeram um pouco de mobiliário para acompanhar a arquitetura que faziam.

Mas, se Warchavchik começou a produzir nos anos 40, quem são essas pessoas dos anos vinte de que você falou?

Móveis Cimo, que era uma loja em Lageado, no Paraná, e já era uma fábrica da década de 1920. Essa fábrica funcionou por muitos anos, e é muito difícil encontrar um dado a respeito do design, de quem desenhou. Eles fizeram muitos móveis – não era um móvel superfino, mas teve uma inserção no mercado muito grande.

Como você formou sua equipe?

Está cada vez mais raro encontrar essa mão de obra. Antigamente era um ofício, as pessoas estudavam no Liceu de Artes e Ofícios para se tornar marceneiros. Um deles trabalha na parte de estofamento há mais de trinta anos, e o outro deve trabalhar com isso há quase trinta anos também. São pessoas que, com o tempo, vão absorvendo essas técnicas no trabalho de pai para filho. Eu me lembro que, lá atrás, quando fiz o curso de decoração e ainda nem sabia que iria trabalhar com o que trabalho, fomos visitar uma marcenaria, aqui perto de São Paulo, com a Etel Carmona (proprietária da Etel Interiores). Na época, ela havia pego grande parte do pessoal do Liceu de Artes e Ofícios e levado para trabalhar com ela. Me chamou muita a atenção, era um trabalho superartesanal, um trabalho de amor.

Tem um tapeceiro meu, baiano, que é muito cuidadoso. Ele pega o tecido e fala: “Ah, não, esse tecido é muito mole, vai acontecer isso e isso, tudo bem? Quero que você saiba.” “Esse tecido é muito duro, vai acontecer isso, porque a curva…” É uma pessoa que pega um móvel e não olha simplesmente como uma coisa que tem que cobrir de tecido. Olha com carinho, como um médico vai olhar para um paciente. Porque, muitas vezes, para essas pessoas mais antigas, a capacitação fazia parte do processo. Ele falou que trabalhou dois anos numa tapeçaria que até hoje é considerada uma das melhores de São Paulo, como assistente na mesa. Após dois anos, se fosse capacitado, aí poderia assumir outra posição. É demorado, toma tempo. Existem tapeçarias em cada esquina, restaurador de móvel em toda esquina, mas a pessoa às vezes não está preocupada com o que no móvel precisa ser feito, e faz de qualquer jeito, coloca um prego em um móvel que foi todo construído, colado e encaixado. É muito complexo, e de repente você detona, porque espana, estraga, muda a estética.

Sempre procurei saber pesquisando, perguntando. Às vezes você tem que trocar uma folha de uma madeira de um móvel, mas essa madeira não existe mais. Então às vezes você tem que comprar um móvel que está totalmente danificado, ou você procura o resto de uma peça, que foi abandonada em algum lugar, para poder restaurar.

Como você acha que o local de trabalho influencia a sua produção?

Ter espaço é essencial, porque consigo manusear com facilidade, e ver as peças de diversos ângulos. A minha área de trabalho sempre foi muito mais cheia, funcionava como depósito e restauro. Antes era tudo junto. Agora, com as áreas separadas, a produção fica melhor. Conseguimos ver melhor os defeitos, temos mais tempo para cuidar dos móveis e prepará-los bem para o mercado novamente.

Existe algum projeto específico pelo qual você tenha mais carinho?

Existe. Recentemente comprei uns móveis de uma senhora judia que sempre foi supercuidadosa com as peças. Ela encomendou um projeto de mobiliário do Tenreiro, em 1969, 70. Ela tinha um amor tão grande, sabia de toda a história. Foi muito legal bater papo com ela porque ela contou da negociação, contou de como foi feito o processo, como ele desenhou os móveis. Ela não estava interessada só em vender. Estava preocupada com o destino daqueles móveis. Eram peças de 46 anos, que nunca tinham sido mexidas. Comprei a casa toda.

Era tudo de jacarandá?

Tudo de jacarandá! Você vê o peso desse sofá? (Mostra o sofá em que estamos sentados). Está vendo? Tudo maciço, e tudo torneado. Imagina quantas árvores usaram para fazer isso, não existe mais.

Que coisa linda a estrutura dele por dentro.

É uma preciosidade. O trabalho do Tenreiro é um trabalho que não existe. É trabalho feito por artesões, trabalhos artesanais de séculos. No caso dele, a geração do pai dele era de marceneiros, o avô dele era marceneiro. É uma coisa que você vê a construção, o jeito, é tudo muito bem pensado. Ele não fazia o móvel só pela beleza. Fazia pelo conforto. O móvel dele é, muitas vezes, muito delicado também, mas, por exemplo, as cadeiras dela, ela soube cuidar muito bem, e estavam todas intactas. É lógico, um verniz está feio, ou outra coisa. Mas é coisa simples de corrigir. Acredito que o móvel do Tenreiro é o móvel brasileiro mais inspirador. O móvel mais bonito.

Teo, existe alguma peça de desejo que você procura e até hoje não encontrou?

Existe. A cadeira de três pés do Tenreiro. Essa eu gostaria de ter para mim, que é um móvel raro, feito numa edição superlimitada. Desde que comecei aqui, já chegaram pelo menos umas três na minha mão, mas vieram réplicas, não as originais.

Falando dessa questão da réplica, que é uma boa discussão – que, por um lado, democratiza a possibilidade de pessoas poderem ter…

Mas, quando falo da réplica, é quando alguém produz dizendo que é original, e não uma releitura.

Existem pessoas que acabam extraindo um jacarandá (jacarandá está em extinção, e não pode ser mais usado para fins comerciais) que existe por aí ainda, ou uma madeira muito similar ao jacarandá, e produzem móveis dizendo que são originais. Inclusive, recentemente, um artista plástico comprou as cadeiras e eu falei: “Essas cadeiras já vieram para mim, e não são originais. Não tenho por que te falar que é original, não estou querendo acabar com o seu tesão pelas peças”. Mas existe uma turma aí, de bons marceneiros, que está fazendo para ganhar dinheiro.

É porque uma coisa é réplica, né?

É, e uma outra coisa é uma releitura. Eu acho que a releitura faz parte. Acho que é bacana que o trabalho de um designer, depois de ter caído no esquecimento por décadas, volte à tona, como foi o caso do Sério Rodrigues e do Zalszupin, que ainda está vivo. O Sérgio Rodrigues teve altos e baixos enormes na vida dele. Uma pessoa que ficou durante um bom tempo sem nada. E uma pessoa que sempre foi supercriativa, premiada, mas de repente é esquecida. Acho que democratizar o design é importante, mas uma coisa que eles não vão conseguir é a qualidade. Incentivar esse mercado paralelo de madeiras que não existem mais também, porque é totalmente insustentável. A madeira certificada brasileira, que é plantada para produzir a madeira maciça boa, praticamente 90% vai para fora do Brasil. E é um processo que é tão caro que a indústria nacional não consegue absorver. Os lotes bons, as melhores pranchas de jacarandá, iam para a Escandinávia, não para cá.

Você troca bastante as coisas da sua casa?

Moro num apartamento que é dos anos 60, e que até hoje não reformei. Ele está com as paredes originais, as tomadas originais. Tenho que fazer uma reforma nele, mas fico um pouco tenso de ver essas mudanças muito grandes, fico um pouco preocupado. Mas tudo tem uma evolução.

E quais seriam as suas maiores fontes de inspiração?

Acho que a minha família é uma das minhas maiores fontes de inspiração. Tanto meu pai como minha mãe foram pessoas que trabalharam a vida inteira, sempre gostaram do que faziam, e ficaram orgulhosos do que me tornei independente do que tivessem traçado na cabeça deles.

Sempre gostei muito de antiguidade, isso veio muito da minha mãe, ela gostava muito. Lembro que em Araçatuba tinha uma mulher chamada Tereza Cacarecos e que minha mãe adorava ir na tal da Tereza Cacarecos. Era uma mulher que juntava coisas, ia nas fazendas lindas de Minas Gerais, comprava tudo, e empilhava tudo na casa dela – parecia com isso aqui que vocês estão vendo. (Aponta para o galpão de centenas de móveis que ainda serão restaurados). Era uma diversão ir até lá, nem que fosse para tomar um café com aquela senhora. No dia em que minha mãe falava que iríamos lá, ficava sentado na cadeira esperando ansiosamente. Minha mãe sempre gostou muito de reciclar coisas – sempre foi preocupada em reutilizar coisas que talvez já não tivessem mais uso, não jogava nada fora. Venho pensando muito nisso. Talvez o meu gosto venha muito daí. Acho que o design, de uma maneira geral, me inspira.

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Chega inevitavelmente a todos a hora em que somos chamados a justificar nossos pensamentos e palavras, nossos atos e omissões. E qual não foi minha surpresa quando, da simpática revista Amarello, surgiu essa convocação. Acabo de ser consultado sobre o falatório da arte de nosso tempo – afinal, por que precisamos de tantas teorias, bulas, contextualizações e justificativas quando lidamos com a arte? A pergunta, escusado escrever, expõe as minhas próprias entranhas profissionais, já que vivo de teorizar, receitar, contextualizar e justificar em palavras e textos o maravilhoso e complexo mundo da música clássica. Assim me resta apenas defender, para os séculos dos séculos, a minha profissão.

Começo pelo princípio: é um mito recente imaginar que a compreensão intelectual da música seja caso de nossa modernidade (ou, já que estamos no terreno apocalíptico, de nossa pós-modernidade). Umberto Eco comenta, em algum momento de seu livro sobre a estética medieval, que já por ali se verificava algo muito sintomático: ao falarem de “músico”, entendiam os medievais “o teórico, o conhecedor das regras matemáticas que governam o mundo sonoro, enquanto o executante é frequentemente apenas um escravo sem perícia e o compositor é um instintivo que não conhece as belezas inefáveis que só a teoria pode revelar”.

Talvez sejamos de outra cepa, talvez não. Mas é claro que o vício de nossa teorização tem outras matrizes. A mais significativa delas diz de sua finalidade: hoje, nossa teoria vem para explicar a obra – a arte, a música, o texto – e não, como para os medievais, para explicar o mundo. Isso é assim porque, se um dia a preocupação da oportunidade da ação do homem para a boa lógica do cosmos era o que justificava a alta conta da teoria, atualmente a fórmula se inverte: é a própria expressão individual da obra de arte, por vezes com predicados íntimos ou puramente solipsistas; é a própria expressão, ia dizendo, que deverá servir como medida para a ordem do cosmos. Teorizamos pois cremos encontrar na música respostas para o Universo, e não o contrário.

Mas há um risco, e acho que de sua percepção partiu a convocação dos editores de Amarello. Afinal, quando a música ou a arte em geral se tornam prosélitos da subjetividade, convidam a nós do público a sermos, com os criadores, meros sensacionalistas, no sentido daqueles tomados por impressões ligeiras, emoções e percepções intuídas. Ora, o leitor há de saber que, se expressar medidas íntimas não é fácil, evidentemente entendê-las é ainda mais difícil – se é que possível. Incorremos no risco do sensacionalismo quando usamos a teoria como uma muleta, falando de música por crer que os elementos objetivos para sua avaliação são falidos.

Ou, dizendo de modo mais generoso: para nossa era, a música e a arte são o transporte para um lugar especial, que podemos chamar poeticamente de “geografia das emoções”. Mas o que fazemos individualmente por aquelas searas, como nos prendemos ou somos levados para este lado e não aquele, por que paramos em dado recanto e por ali nos regozijamos, isso é matéria misteriosa, pois dali retiramos um “significado”. Entre a “emoção” e o “significado”, dois gestos íntimos, ficam as nossas fabulações, mero exercício de entender e se fazer entendido.

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Numa pedreira, a enorme massa mineral dobrou-se à vontade humana, desfazendo-se em pequenas partes. A grelha de metal encerra esse conjunto de pedras.

Um gabião é um bloco estanque, um troço que sustenta os cortes que o homem infringe na terra crua. Por meio dessa gaiola de pedras a terra é ali contida, para não ocupar espaço indesejado. Um gabião, apesar de composto por um conjunto de pedras, dá a impressão de corpo homogêneo, assim como parece ser coisa única a multidão. Quando dela se aproxima é que se percebe as singularidades das partes que a compõem. A pedra foi retirada da paisagem. Ela é bem maior do que as da pedreira. Sua forma é única, moldada pela natureza. Essa pedra rompe a tela metálica e passa a fazer parte do conjunto, está interposta, parte fora, parte dentro da gaiola. Ela se destaca no conjunto, está emoldurada por ele. Amolece o bloco rijo e traz a ele novos significados. Por meio dessa grande pedra retoma-se à natureza primeira das outras. Ela é, deste trabalho, pedra angular.

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Somos feitos de som e fúria, já dizia Shakespeare. O velho Freud adicionaria que, entre fezes e sangue, nascemos. A verdade é que não somos assim tão puros e limpos, como postamos por aí… Embora os filtros virtuais tentem a todo custo disfarçar nossas impurezas, existem desejos inconfessáveis inclusive para nós mesmos: provocam vergonha, são menos civilizados, trazem afetos menos aceitos, mais brutos, e geram culpa, medo, inveja. Embora o desejo nos mova, nem sempre pode ser comunicado às claras.

No entanto, sofremos. É que nossos desejos não partem da nossa reflexão, nem sempre combinam com nossa parte consciente, com os caminhos escolhidos. Eles vêm de outro lugar, menos racional, mais bicho, menos elaborado, indomável e esfomeado, que busca satisfação e prazer. Sua força é violenta, embora a gente viva tentando controlar. A tal bruta flor do querer se prima pela desobediência.

Muitas vezes é preciso reprimir certos sentimentos para manter determinadas escolhas. Mas, por outro lado, o que fortalece o desejo é a sua repressão. Quanto maior for, maior a força na tentativa de realizá-lo. Nossos instintos costumam ser teimosos e persistentes.

Nessa tentativa de domínio, o indivíduo sofre. Conclusão: essa luta constante gera uma tensão muito forte. De um lado, uma exigência de satisfação; de outro, as leis, a moral, as minhas escolhas.

O desejo nasce num lugar poderoso, uma instância psíquica inconsciente que recebe o nome de Id e vive em pé de guerra com um outro lado, responsável pela censura – que recebe o nome de Superego, igualmente forte, responsável por representar internamente a moral, as leis vigentes e os valores familiares.

A civilização funciona como uma tentativa de dominar os desejos, de freá-los. Sejam os sexuais ou os agressivos, a sociedade de alguma forma tenta manter certa ordem, a fim de que a humanidade se preserve de seus próprios instintos. Sabemos que a violência do homem é inerente, tornando-o facilmente presa. Por mais falha que seja a sociedade, o ser humano precisa dela para se organizar relativamente. Essa repressão seria uma tentativa de controle.

Mas existe um lugar onde meu desejo encontra uma possibilidade de existir: os sonhos. Quando sonhamos, estamos com a censura baixa, e certas coisas podem aparecer. Mesmo assim, algumas são censuradas por nós mesmos – juntando uma série de elementos que fazem uma espécie de quebra cabeça simbólico, somando vivências e experiências singulares e individuais. Ou seja, certas coisas aparecem de forma disfarçada. Por isso, dicionário de sonhos não deve ser levado muito a sério. Para cada um, um símbolo que aparece num sonho tem um significado específico, que só pode ser decifrado pelo próprio sujeito sonhador. O sonho é o território da realização do desejo. Mesmo que apareça de maneira torta, ele conta sobre um sentimento que acordado pode ser muito ameaçador.

É como se, dormindo, nosso desejo acordasse no sonho em que apresentasse de uma forma mascarada. Isto é, a fantasia é um dos veículos onde o desejo se apresenta. Lá, tudo pode acontecer. E o ato de sonhar e fantasiar nos possibilita uma tolerância maior da realidade. Não é raro sabermos de pessoas que suportaram uma condição muito difícil utilizando a imaginação. Anne Frank é um exemplo. O filme A vida é bela, outro. Precisamos do sonho para dar voz ao nosso desejo, e assim resgatar a força de lutar para viver.

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A displicência no modo de caminhar, o chapéu sobre os olhos e a grande saia com circunferência de 20m, o new look de 1947, representaram a grande onda lançada por Christian Dior em contraponto ao fim da Segunda Guerra. Alguém com a ideia de relançar o luxo num país paralisado por 3 milhões de grevistas, e que criou saias rodadas com tal leveza e quantidade de tecido num período econômico tão delicado, teria de ser considerado um alucinado por muitos. Mas o new look foi mais do que um sopro, foi uma ventania misteriosa nas ruas de Paris. Foi a resposta definitiva de esperança do estilista francês às intempéries causadas pelo fim da grande tristeza mundial. Dior achava que as mulheres precisavam de um motivo para sonhar, de um respiro de felicidade, de uma energia de esperança e amor.

Seria então necessário alguém com o princípio minimalista de Raf Simons para injetar um bom compasso de modernidade à maison Dior, num momento em que o mundo passa, de novo, por grandes ventanias, e para redescobrir a alta costura?


Ao longo da vida da marca, todos os criadores que por ali passaram, cada um com seu próprio carimbo, ovacionaram a extravagância e o exagero: “John Galliano fechou os portões da temporada de criações tão poderosas e excessivas no mundo da moda paralelamente à morte de Alexander McQueen”, lembra João Braga. Estava na hora, portanto, de flertar com o universo do consumidor mais jovem, tempo de menos teatro e super poses. Hora de usar alta costura no cinema, na galeria de arte, na gig, na aula de pilates e no café da manha.

Raf Simons, nascido na calma vila rural de Neerpelt, na Bélgica, filho único, cresceu rodeado de tios, tias, primos, em meio à natureza. Formou-se em design industrial e de mobiliário em Genk, onde fazia parte da turma dos estilistas Martin Margiela, Helmut Lang e Catherine Malandrino (integrante do grupo conhecido com o nome de Antuérpia 6).

Em 1995, Raf lançou sua primeira marca de roupas masculinas, incentivado por Linda Loppa, da Academia Real da Antuérpia (respeitada escola no mundo das Artes e da Moda), ao som de new wave e punk, mesma época em que relançou o skinny black suit. Música sempre fez parte do trabalho de Simons; em 1998, ele colocou os membros da banda Kraftwerk na passarela como modelos de seu desfile.

Sua primeira coleção foi inspirada em uniformes escolares — inspiração recorrente em sua vida, pois estudou em escola católica rígida. As duas seguintes também continuaram traduzindo essa mesma ideia de formas. A coleção de 1996, que se chamava We only come out at night (“A gente só sai à noite”), foi lançada em um vídeo feito por meninos que se reuniam no porão depois de uma festa de família, trocavam suas roupas sociais por roupas confortáveis e jogavam sinuca, retrato de sua geração.

Seu primeiro show foi apresentado em Paris, em 1997, e já nasciam naquele momento características que mais adiante seriam parte de seu estilo minimalista, executado com grande perfeição na alfaiataria masculina. Cinco anos após sua primeira apresentação, por meio da qual se firmou com um olhar à frente entre as marcas de menswear, seria responsável por romper padrões, misturar roupas casuais aos ternos e subverter as formas da alfaiataria.

Quando à frente da marca Jil Sander, onde ficou até o convite para integrar o time da Dior, a editora do The New York Times, Cathy Horyn, escreveu sobre ele: “A coleção do Sr. Simons para a Jil Sander – a sua terceira desde que se tornou diretor criativo da marca, há 18 meses – é perfeita. Vai fazer com o que todo o resto pareça pouco inovador, desajeitado e um pouco pateta”.

Trabalhando com Jil Sander, a darling do minimalismo belga, ele encontrou silhuetas ainda mais refinadas, lânguidas, e soluções para um estilo que sempre teve no seu DNA. Simons foi até o âmago do assunto com a “mestra” da questão e atingiu propriedade absoluta no minimalismo. Nada mais sensato do que o grande desafio que viria depois, o de rejuvenescer a Dior.

Dessa maneira, parece que as formas similares ao new look jamais foram revistas com conexão tão real e contemporânea ao espírito de 1947. Simons é conectado, à sua maneira, com a alma transgressora de Christian, o que é mais do que uma ligação puramente material ou física com suas criações. É uma ligação espiritual com todos os códigos da marca.

Há uma leveza insolente que caracteriza a maior parte da coleção de alta costura apresentada pela marca – em saias que aparentam quase sempre uma elegância tranquila e brilhantemente sofisticada.

Raf é dono de uma mentalidade artística obsessiva, ao mesmo tempo que se mantém conectado com suas verdades do coração, as quais transpõe às mãos — o que se supõe de um artista que comanda a arte da alta costura. Se no menswear ele colaborou ao eliminar volumes nos ombros, agora é o mágico reconstrutor que redefine a basque de Dior brincando com enchimentos que, em 1947, foram responsáveis por chocar um planeta. Manteve o busto ajustado, mas inventou um novo jeito malemolente de se mover, com saias livres e ultraelegantes, para quem, como eu, se interessa também em celebrar a vida com algum movimento.

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