#15TempoCulturaLiteratura

Mas tudo mudou

por Vanessa Agricola

Obra de Ricardo Alcaide

Sabe aquela turma que não tem mais nada a ver com a sua vida, mas que de vez em quando você ainda encontra porque, sei lá, faz falta ter uma turma. Aquele monte de gente em casa, o telefone tocando sem parar. Hoje em dia ninguém liga! Toca o telefone é a minha mãe, ou meu irmão, é sempre família. Ou então o cara da obra, pedindo mil desculpas, está muito ocupada, pode falar? Gente, eu não sou a Dilma. E se eu não puder falar não vou atender, simples. Mas o Facebook acabou com o telefone. Agora todo mundo só manda mensagem. Chega aquele: ai, que saudaaade, vamos marcar! E ninguém marca porra nenhuma. Qualquer jantarzinho é a maior burocracia, uma tá trabalhando, a outra o filho tá com febre, o outro tem que acordar cedo… Eu me pergunto, é todo mundo tão ocupado mesmo?

Depois que eu casei a coisa piorou muito. Eu acho que as amigas solteiras acham que porque você casou você não quer mais falar com elas. E se você tiver um filho então, nossa, aí elas acham que você morreu. Meu Whatsapp só tem bate-papo das casadas com filhos. Uma quer saber do dentinho, outra do pediatra, ninguém mais fofoca?

E visita? Hoje chega a ser uma afronta você aparecer assim na casa de uma pessoa. O pessoal até recebe, em dia de aniversário, festa, mas não tem mais essa de chamar os amigos em casa, ver um filminho, fumar uma maconha. Pensando bem, quando eu fumava maconha eu recebia bem mais visitas. A maconha une as pessoas. Quando eu fui morar sozinha, fui a primeira das amigas a alugar um apartamento, ali perto da GV. Eu chegava do trabalho e já tinha gente na portaria, me esperando pra fumar maconha. Eu até me irritava, daí a gente bebia, comia, eu dava risada. O apartamento era minúsculo mas vivia cheio. Acabava uma dormindo no sofá, outra no chão, principalmente em dia de balada. Outra coisa que eu sinto muita falta. Outro dia liguei pra Paulinha, carioca, falei, pô, Paulinha, vamos dançar? E ela, Vaness, a night tá nas trevas. Quer ir jantar? E lá fomos nós encher a cara de Coca Zero no Frevinho da Augusta.

É, meu povo, tá feia a coisa. Eu ando tão carente que aceitei esse convite dessa turma nada a ver, mas que eu conheço desde o colégio, pra tomar uns drink nesse Carnaval. A gente tem um passado em comum. Alugamos uma casa na Praia do Rosa, num réveillon, era uma casa looonge, porque ninguém tinha dinheiro, a gente andava muito, porque ninguém tinha carro, e ninguém tava nem aí pra nada disso. Todo mundo andava junto, quilômetros e quilômetros, rachando o bico. Na noite do ano novo, resolvemos tomar um Iglu, um ecstasy. Bom, chegando na festa, não deu cinco minutos eu fui comprar uma água e conheci um gordo obeso. Foi amor à primeira vista. Olhei bem nos olhos dele, vi uma pessoa liiinda, beijei o cara. As meninas passaram a noite tirando foto nossa (não tinha Orkut ainda, graças a Deus), e da outra beijando o Tomba, um cachorro sarnento que ela encontrou na areia. Sabe esses cachorros da Volta dos Mortos-Vivos? Esse Iglu era muito poderoso. A nega passou a festa com o bicho no colo, depois levou pra casa, e o Tomba ficou lá, virou o mascote da turma…

Mas tudo mudou. Hoje quando a gente se encontra, a única coisa em comum são essas histórias. Pelo menos 85% da conversa é lembrar, os outros 15% sobram pra perceber que nenhuma tem mais nada a ver com a outra. A mais putona virou toda certinha, a mais santinha virou uma puta chata… reclama da empregada, da babá, sabe essas coisas? E justo a do Tomba tá igualzinha. Viraram duas dondocas vestidas de onça. Depois tem três solteiras que só falam de um bar tal cheio de griiingo. Elas se empolgam. Ah, os italianos! Sério? Os italianos? Ah, brasileiro é tudo careta! E nós da outra ponta, casadas com brasileiros, ficamos quietas.

Por fim, alguém retorna às lembranças do Guarujá, quando roubaram nossos tênis na feirinha, e dito isso, eu pago a conta. Chego em casa, vejo meu filho dormindo pela babá eletrônica, me aninho nos braços do meu marido careta, e volto a sentir o quanto a vida é boa.

#15TempoArteArtes Visuais

Portfólio: Ricardo Alcaide

No prefácio do catálogo de sua exposição de 1964, Arquitetura sem Arquitetos (Uma Breve Introdução à arquitetura Sem Pedigree), que ocorreu no Museu de Arte Moderna em Nova York, Bernard Rudofsky escreveu que, na época, tratava-se de um tema “tão pouco explorado que ainda não tem um nome.” Para Rudofsky, um pioneiro nos estudos de arquitetura vernacular nos anos 1960, a história da arquitetura ocidental não passava de um “catálogo de arquitetos famosos por celebrar o dinheiro e o poder”, cujo conjunto de obras limitaria as possibilidades para referências arquitetônicas futuras. Acreditava ser fundamental explorar outras histórias arquitetônicas pelo mundo. Nas cinco décadas conseguintes, muito foi feito, notavelmente por Paul Oliver em sua obra-prima Dwellings (1987). Porém, para mim, a obra magra e ilustrada de Rudosfky permanece essencial e inspiradora.

Rudofsky reconhece a estranheza de sua frase, “arquitetura sem pedigree”, e oferece algumas nomenclaturas alternativas: arquitetura vernacular, anônima, espontânea, indígena, rural. Esta lista é uma ponte para começar a pensar nas obras mais recentes de Ricardo Alcaide, que passou anos trabalhando entre três capitais – Caracas, Londres e São Paulo. Cada vez mais o trabalho de Alcaide foca as possíveis soluções arquitetônicas às situações sociais. Se interessa especialmente nas contribuições, muitas vezes desconhecidas, da arquitetura vernacular global ao Movimento Modernista na América Latina. Uma das questões perenes de sua prática é como pessoas, em ambientes diversos, lidam com a exclusão socioeconômica.

Em seu livro Dwellings, Paul Oliver nota que moradias nômades, “sejam elas erguidas rapidamente para uso imediato ou pernoitadas, para uso mais intermitente ou prolongado, ou para ocupação semipermanente, serão condicionadas de certa forma pela sua função dentro da vida econômica e social do grupo”.

O projeto de Alcaide está engajado, poética e politicamente, dentro de um discurso de intercâmbio multicultural. Também se interessa profundamente pelos diálogos físicos e psicológicos entre a superfície do corpo – a pele – e a arquitetura temporária. Em fotografias dos sem-teto em Londres, por exemplo, seus corpos marcados pelas suas experiências, doenças e a poeira da cidade, foi desenvolvida uma série em que detalhes da pele desses londrinos foram digitalmente transplantados sobre imagens dos outdoors gigantes típicos de São Paulo, e transformados em réplicas minúsculas em fórmica.

Para viver plenamente, temos que poder sonhar. O título da obra conjunta de Alcaide, A Place to Hide (Um Lugar para se Esconder), propõe essa ambiguidade fundamental, sem oferecer respostas claras. Uma obra parece oferecer uma resposta, mas imediatamente outra desfaz esse entendimento. Um grupo de imagens nos convence que é um catálogo de um tipo de humanidade que se prolifera em zonas de crise, mas outro logo nos mostra detalhes de moradias e espaços públicos e privados totalmente diversos.

Contrabalançado no espaço entre o poético e o político, a justaposição das imagens e objetos de Alcaide passa livremente entre o lúdico e o brutal, ou, materialmente, do macio ao duro. As imagens, expostas sob o título original, A Place to Hide, suscitam perguntas delicadas e engraçadas através de objetos como: uma pia, um canto, vasos de plantas, arranha-céus de última geração… Cultura alta e baixa convivem facilmente nas imagens de revistas de design recortadas e reconstruídas nas formas de edifícios modernistas; a arte gráfica desbotada dos muros da cidade refeita em esculturas de fórmica imaculada. Ao propor muitos tipos de arquitetura dentro do mesmo arquivo, A Place to Hide, Alcaide nos volta o olhar, repetidas vezes, às origens do abrigo.

#15TempoCulturaSociedade

Conversa com David Baker

por Eduardo Andrade de Carvalho

David Baker é uma pessoa simpática. Ex-editor-chefe da revista Wired, hoje passa a maior parte de seu tempo dando consultoria e ajudando ou, como ele prefere, provocando as pessoas a viver melhor. David checa email duas vezes por dia, acha extremamente irritante manter uma conversa com alguém que não tira os olhos do celular e só conseguiu usar o Facebook por um mês, não suportou. Seu comportamento em relação à tecnologia vem da experiência que ele tem na área: há mais de três décadas ele pensa, escreve, e dá aulas sobre o assunto. Hoje é professor na The School of Life, a escola criada por Alain de Botton e Roman Krznaric, e vive entre Londres e algum país tropical.

Nosso editor de cidades bateu um papo pelo telefone com ele em fevereiro, quando David estava no Rio estudando português e esperando pelo carnaval.

Eduardo Carvalho: Em primeiro lugar, estou muito curioso sobre seu relacionamento com o Brasil.

David Baker: Na primeira vez que vim, era dezembro, e, literalmente, não parou de chover por uma semana inteira. De repente, estava em uma cidade que supostamente era para ser ensolarada e deveria ter mulheres com penas na cabeça e, ao invés disso, só choveu e choveu e choveu. E você sabe como é o Rio: não tem nada pra fazer quando chove. O que fazer no Rio quando chove?! [em português]. O Rio é um lugar para viver ao ar livre. O que mais gosto aqui são as pessoas na rua. Você conhece pessoas nas esquinas, na praia, e toda essa interação acontece ao ar livre, não tem nada de opressivo. Depois desse traumático primeiro contato, tive que reformular minhas impressões do país. Eu e meu parceiro viajamos muito por aqui, visitamos muitos lugares e vimos muita variedade e, quando nos separamos, senti que deveria voltar para cá e ter uma experiência só minha. Fiz uma viagem que foi muito importante para mim. Atravessei o continente, de Lima, no Peru, ao Rio. Comprei uma passagem de Londres para Lima, e uma passagem voltando do Rio para Londres seis semanas depois. Foi uma viagem muito simbólica. Era a primeira vez que voltava ao país desde minha separação. No minuto que atravessei a fronteira da Bolívia para o Brasil, tive vontade de estar no Rio. Foi uma sensação muito, muito forte, e, apesar de querer ficar no Pantanal uns dias, peguei um ônibus de quarenta horas de Corumbá para o Rio, e segui. Quando cheguei na rodoviária do Rio, mesmo sendo noite, fui até a praia e coloquei os pés na água do mar; me senti extremamente feliz. De certa forma foi como meu segundo batizado. Desde então estou aqui, aprendendo português. Já estou falando bem, estou naquela fase de estar orgulhoso do meu português, estou estudando também latim em Londres, e acabei de terminar meu curso de português avançado. Quero falar mais elegantemente, assim como falo inglês… Eu amo línguas, é como tocar piano. Sinto que sei escrever e falar inglês bem, assim como um bom pianista, mas fluência é uma palavra muito trapaceira, só um nativo dessa língua pode falar com fluência.

Amo o clima tropical, sol, mar, nadar ao ar livre, no mar, nas cachoeiras, nos rios, especialmente quando faz sol. Há três anos, percebi que, durante o inverno inglês, que é tão escuro, eu fico muito deprimido. Não fisicamente deprimido, mas com a energia muito baixa, e me sinto completamente desmotivado. Então decidi que, durante esses meses de janeiro, fevereiro e março, iria morar em outro lugar. No primeiro ano, fui para o México, o que me fez sentir muito melhor o resto do ano, quando estava de volta à tão cinza Londres.

Você conhece São Paulo? Acho que aqui não temos a oportunidade de conhecer pessoas nas esquinas, como você falou gostar tanto no Rio.

São Paulo me lembra Londres. Amo Londres, é uma cidade extraordinária, e gosto de São Paulo, mas não a conheço bem o suficiente para amar. Acho que, quando você conhece alguém em São Paulo, diz: “vamos jantar fora” ou “vamos nos encontrar no shopping”; enquanto no Rio é muito comum bater papo na esquina. Existe algo de muito tradicional nisso e, ao mesmo tempo, muito criativo, porque, para mim, isso significa que as interações entre as pessoas são muito fluidas. De repente uma terceira pessoa pode entrar na conversa; uma outra pessoa vai embora, tem um ir e vir nas ruas que, na minha experiência, acontece menos em lugares fechados. Não acontece em restaurantes; você tem uma mesa para quatro e só. É engraçado. Também gosto de uma das coisas do Brasil que pessoas como eu acham irritante, a contrapartida disso – as pessoas que não aparecem. Você marca às 9h30 e as pessoas não dão as caras, ou aparecem às 11h30. Como europeu, isso me enlouqueceu durante muito tempo, ainda me enlouquece um pouco. Eu ficava muito chateado, não conseguia entender aquilo. Entendia acadêmica e intelectualmente que era uma coisa cultural, mas me parecia muita falta de educação. Se você fizer isso com alguém em Londres, você está dizendo, “você não vale meu tempo”. Você sente isso na pele.

Foi só quando estive a última vez em São Paulo – e fiz isso com alguém que estava muito a fim de encontrar, era um amigo de um amigo – que disse: “vamos tomar uma cerveja na sexta à tarde”. Isso, em Londres, quer dizer “nós vamos tomar uma cerveja na sexta-feira sem falta”, mas, no Rio, é mais “vamos tomar uma cerveja sexta se ainda estivermos a fim”, e eu não estava a fim. Estava do outro lado da cidade, não telefonei, e ele também não. De repente entendi que existe um lado diferente da coisa, útil e amigável, que até então havia apenas compreendido pelo viés horrível de que, “se não vier, é porque te odeio ou não tenho o menor respeito por você.”

No Brasil, é difícil fazer trabalho inteligente. Eu, pessoalmente, gosto de trabalhar bem por períodos mais curtos, fazer pausas, descansar um pouco, ir à praia por umas horas. Para mim, é um jeito muito mais eficaz do que trabalhar oito horas em um escritório. Eu desligo o celular, fecho o e-mail, e me concentro 100% escrevendo, pesquisando, por um hora. Para mim, é o único jeito de manter algum controle sobre o meu tempo. Se alguém vem te ver às 11h30, ou às 12h00, ou às 9h30, todo seu método de trabalho começa a ficar um pouco atrapalhado. O trabalho no escritório pode ser um pouco aleatório, as pessoas chegam, fazem alguma coisa vagamente por oito horas, e voltam para casa. Na minha experiência como funcionário e também como consultor, constatei que muitas dessas pessoas poderiam produzir a mesma quantidade de trabalho em um quarto do tempo. Um dos problemas que tenho com o mundo corporativo é que pagamos as pessoas com base em unidades de tempo – semanalmente, hora, mês. Então, se você é pago por hora, por semana ou por mês, por que não demorar o dia todo para fazer uma coisa só, se, ao final das contas, vai receber o mesmo tanto do que se fizesse dez?

Durante grande parte da minha vida fui autônomo, e, nesse caso, a motivação é trabalhar com inteligência na hora de tomar decisões, de pensar intuitivamente, de gerenciar seus recursos. Assim, você ganha mais pelo seu tempo. Essa é uma questão estrutural importante para nós. É difícil motivar alguém a trabalhar de forma mais inteligente se essa pessoa pode falar: “você quer que eu trabalhe mais, mas vai continuar a me pagar a mesma coisa?”

É por isso que você acredita que é tão importante fazer trabalho manual, por exemplo? Por que você não tem outra opção a não ser focar na produção e cobrar pelo seu produto?

É uma questão interessante. Artesãos e trabalhadores manuais têm uma escolha, porque podem ser autônomos, produzir, receber pagamento por uma cadeira, ou trabalhar para alguém, como em um canteiro de obras. E então há uma motivação para terminar a mesa em um dia, porque, se não, o chefe não os deixa ir para casa no final do expediente. O que nós mais odiamos, como gerentes, é deixar as pessoas irem para casa. Esse é um conceito muito importante, porque nós pensamos que estão sendo preguiçosos de alguma forma, mas é irônico não deixarmos alguém que trabalha bem ir para casa por achar que é um sinal de preguiça. É uma atitude muito paradoxal. Minha preocupação com o trabalho manual é mais ampla do que isso. Acho que são eles que trabalham com o cérebro, porque essas pessoas tem cérebros nas pontas dos dedos.

Tem um livro chamado The Craftsman, de Richard Sennett, que diz algo muito especial: ele fala que, quando algo é feito artesanalmente, algo do artesão é passado para aquele objeto, e assim para a pessoa que o recebe. Acho essa ideia muito bonita, e ela não vale só para produtos artesanais. Por exemplo, com meu iPhone, carrego algo do Steve Jobs comigo, consigo entender seu engajamento, e se compramos uma xícara feita à mão, sentimos algo da pessoa dentro dela. Isso é artesanato.

Vivendo nesse mundo tecnológico, precisamos ficar atentos se isso ainda ocorre, através de nossos atos. Quando escrevo um e-mail para alguém, tento usar uma linguagem correta, não aqueles e-mails de uma palavra só. Isso se deve em parte ao fato de que sou escritor, mas também porque quero que o e-mail carregue um pouquinho mais de mim àquela pessoa. Adoro escrever cartões e cartas, e adoro postá-las…

Ainda faz isso?

Sim, faço. Se vou a um jantar na casa de alguém, gosto de escrever um cartão postal dizendo “obrigado”, em um papel bonito, com uma bela caneta tinteiro, um envelope bonito, e colocar no correio. Além de ser um jeito legal de dizer obrigado, também tem algo especial que acontece. O cartão só chega dois ou três dias depois, quando a memória desse jantar agradável está se apagando, e a pessoa recebe, por ser escrito à mão, parte de você em casa. Acho um jeito bonito de agradecer um belo jantar. Eu faço isso, mas não conheço muitas pessoas que o façam.

Eu também faço isso, as pessoas amam receber.

As pessoas fazem isso de volta?

Não, eu faço isso às vezes.

Eu quase nunca recebo algo assim. Adoraria!

Acho mais comum entre as mulheres.

Por que isso?

Não sei. Talvez elas sejam menos distraídas…

Talvez elas não priorizem a velocidade como os homens. Um dos problemas é que é um método de comunicação muito lento. Você tem que comprar o cartão, escrevê-lo, selar, ir até o correio e postá-lo; além disso, demora três dias até chegar! É o exato oposto de enviar um whatsapp. O whatsapp posso enviar antes mesmo de sair da casa da pessoa, ou logo depois do jantar, dizendo: “obrigado pelo jantar”. Acho legal mandar uma mensagem de Whatsapp, mas, de certa forma, mandar um cartão consome mais energia e tempo, e acho que nós, homens, somos desencorajados a curtir esse ritmo mais lento, especialmente no trabalho. Devemos tomar decisões rápidas, tudo tem que ser veloz. Escrevo cartas no papel, digitalizo e mando por e-mail para ver que emoção isso suscita. É estranho porque você está enviando um e-mail em branco com uma imagem anexada de um texto escrito à mão. É a mistura da velocidade da tecnologia e a vagareza do correio.

Porque você passou de jornalista para professor, e acho que também a fazer coaching?

Nunca tive apenas um emprego. Sempre gostei de desempenhar várias funções ao mesmo tempo, e nunca priorizei uma mais do que o outra. Quando me mudei para Londres, era barman e foi um emprego tão importante quanto ser editor-chefe da revista Wired. Penso que temos que encontrar a essência e o prazer de cada emprego. Não sou um especialista. Obviamente que o papel do especialista é muito importante, mas sou um generalista. Busco um pouco de inspiração em todos os lugares. Comecei a trabalhar como jornalista em 1987, mas, na verdade, queria ser ator. Eu era bom ator, mas não o suficiente. Talvez eu quisesse dizer isso quando falava de não ser especialista. Você precisa imaginar que atuar é a única coisa que pode fazer, e eu conseguia pensar em 99 outras coisas que poderia fazer ao mesmo tempo. Isso me impediu de me comprometer com algo em que não era bom o suficiente, ou a não ter comprometimento com um talento. Então, comecei a escrever críticas de teatro para a Time Out, e eles me davam dois ingressos e cinco libras para cobrir o transporte até o teatro. Foi quando percebi que gostava muito de escrever também, e me tornei jornalista. Conheci pessoas que trabalhavam em revistas e me tornei o que chamamos de subeditor, que é basicamente a pessoa responsável por fazer o texto caber nas páginas e certificar-se de que está fluido e alinhado às manchetes e tudo mais. Acho uma habilidade incrível. Ao mesmo tempo eu ensinava inglês para estrangeiros, e amava muito lecionar. Então comecei a trabalhar esse lado do ensino, e também sou muito fã da psicoterapia. Comecei a fazer um curso de psicoterapia duas vezes e parei, o que é bastante interessante. De alguma forma essas três coisas acabam se juntando. É interessante ensinar algo que é muito difícil de entender, e ajudar as pessoas a navegarem essa curva lenta e empolgante de aprendizagem. A psicoterapia é algo que fazemos na The School of Life, porque, apesar de não sermos oficialmente uma organização dedicada à terapia, estamos pedindo para que as pessoas pensem em coisas importantes em suas vidas. É muito importante para nós oferecer um espaço onde se sintam à vontade para pensar nessas coisas. Não é exatamente uma aula onde alguém leciona sobre Kierkegaard ou Nietzsche; é uma aula onde conversamos um pouco sobre Kierkegaard ou Nietzsche, mas pensando em como isso se aplica à sua vida no momento.

Na The School of Life criamos um ambiente onde as pessoas se sentem à vontade. Não é uma sessão de terapia em grupo; não é uma daquelas experiências onde as pessoas exorcizam coisas e choram. É mais uma questão de promover um ambiente seguro, tranquilo, no qual eu talvez diga algo que vai ressonar em você, e não necessariamente de um jeito bom. Talvez suscite arrependimento, ansiedade, medo, irritação, fúria, seja lá o que for. Mesmo sem ser uma terapia, quero que você sinta uma emoção. Talvez isso o leve à terapia, e você possa dizer: “de repente senti muita raiva e percebi que precisava entender porque reagi assim”.

É uma forma de tentar ajustar ou corrigir uma emoção através de um processo cognitivo ou um entendimento racional da vida?

Não, é muito mais denso que isso. Em primeiro lugar, não acredito que estou tentando corrigir ou ajustar emoções. Para mim, o mais importante é tentar ajudar alguém a aumentar sua autonomia. Acredito que todos podemos controlar nossas vidas. Me irrita profundamente quando alguém diz: “Se anima, vai!” Acho uma coisa totalmente ridícula de dizer para alguém. Por que não: “Nossa, estou vendo que está chateado”; e talvez eu então pense: “É mesmo, preciso me animar”. É uma questão de controle e autonomia.

Não quero ensinar as pessoas como serem felizes. Mas provavelmente vou discutir muitas maneiras de pensar sobre a felicidade, e então podem decidir se estão felizes ou infelizes, e se querem mudar. Mas o principio por trás da The School of Life é ajudar as pessoas a levarem uma vida melhor. E é claro que “levar uma vida melhor” implica um certo juízo de valor.

Por exemplo, oferecemos uma aula que se chama “É necessário ter um relacionamento amoroso?”, e acho que muitas pessoas, se você lhes desse um pedaço de papel, poderiam escrever sobre o que nossa cultura acredita sobre relacionamentos, e por que são bons, e, lá no topo da lista, estariam aqueles dois velhinhos juntos há cinquenta anos, e perguntamos: “Qual o seu segredo?”; e eles respondem algo do tipo: “Nunca dormimos chateados um com o outro”. Na nossa cultura, acreditamos que um relacionamento monogâmico, provavelmente heterossexual, duradouro, amoroso, e sem ódios, seja o melhor. Provavelmente colocaríamos, no final da lista, alguém… pessoas com o comportamento promíscuo ou desrespeitoso, por exemplo. Medimos nossos relacionamentos contra essa lista de prioridades. Diria que, em certos momentos da vida, não seria melhor estar solteiro do que estar com alguém? Exploramos essa ideia através dos grandes pensadores que argumentam a favor da solteirice. Não estou dizendo “vocês devem ficar juntos” ou “você deve ficar solteiro”. A ideia é simplesmente plantar as sementes do pensamento, na esperança de que uma pessoa pegue uma dessas sementes e ela desabroche no pensamento desse pessoa. Se, no final da aula, cada pessoa sair com apenas um novo pensamento, ideia, uma nova forma de enxergar alguma coisa sobre a qual não havia pensado antes, então fizemos nosso trabalho.

E quando você fala de equilíbrio trabalho/vida, como exatamente define o trabalho? E em que ponto é separado da vida?

Em primeiro lugar: é uma frase engraçada, não é? Porque o trabalho faz parte da vida. Então, como podemos equilibrar o trabalho e a vida? Conversamos muito sobre isso. Talvez a palavra equilíbrio esteja errada. Mas, de certa forma, gosto muito da frase, porque chama atenção ao quanto o trabalho vem ganhando importância. Muitas pessoas, por várias razões, priorizam o trabalho acima de tudo, a curto e longo prazo. No longo prazo, acho que talvez se preocupem mais em trabalhar do que em achar um namorado ou uma namorada. E, a curto prazo, provavelmente ficam até tarde no escritório, e cancelam aquela ida ao cinema com seus amigos, em vez de cancelar o trabalho para ir ao cinema.

Não me sinto muito à vontade com isso. Às vezes acho importante cancelar o cinema para trabalhar, mas também acho que há situações, para mim mais comuns, onde é mais importante ir ao cinema com seu amigo. Posso filosofar e falar da qualidade da amizade ou algo assim, mas, na verdade, é tão importante quanto entregar o projeto dentro do prazo. O problema é que trabalhar nos dá dinheiro, e ir ao cinema, não. Então existe uma ilusão de que, se não ficarmos no escritório até tarde, e formos ao cinema, perderemos o nosso dinheiro, ou até nosso emprego, e então talvez percamos a casa, e logo, logo estaremos dormindo na rua. E não estou sendo superficial. Acredito que as pessoas que gostam deste tipo de capitalismo (e sou fã do capitalismo) acreditam na fantasia de que precisamos continuar produzindo porque, se pararmos, não estaremos no topo da cadeia. O psicólogo britânico Oliver James descreve isso muito bem, um fenômeno chamado Affluenza. Ele diz que muitos de nós concordamos em fazer um trabalho um tanto miserável para receber bem, que normalmente são empregos de colarinho branco. Tenho muitos amigos que trabalham em bancos e odeiam o que fazem, mas ganham rios de dinheiro. Então você trabalha de segunda a sexta, fica até tarde no escritório, naquele emprego odiado, e no fim de semana você se recompensa, comprando alguma coisa, viajando, seja lá o que for, e normalmente paga com seu cartão de crédito, o que quer dizer que, na segunda, você terá que voltar ao trabalho para pagar aquilo que comprou no fim de semana. E assim vai, sem fim. E, lá na frente, você compra uma casa maior, ou um segundo ou até terceiro carro, e vai em férias cada vez maiores, e compra casas cada vez mais caras, e é igual a um rato correndo numa roda sem fim. E é exaustivo, e eu sei disso. Eu já trabalhei em coaching com muitas pessoas muito ricas e muito exaustas. O Oliver James sugere que este tipo de mundo está gerando uma epidemia de depressão, resultado dessa ética de trabalho.

Mas o que mais gosto na questão de encontrar um equilíbrio entre a vida e o trabalho é disseminar essas ideias, mas não apenas dizendo “você não deveria trabalhar em banco” ou “você não deveria trabalhar tanto”. Ao invés disso, discutimos ideias como a Affluenza de Oliver James, ou como priorizamos o trabalho acima de tudo na vida. Ou é ao contrário? Existem muitas pessoas que priorizam o resto da vida acima do trabalho, e trabalhos que eu e você provavelmente acharíamos muito entediantes. Mas isso não importa – eles trabalham por horas e se divertem fazendo isso. E a uma dada altura vão embora para casa. Jamais ficariam além do expediente, por exemplo.

Então, sabe, analisar ideias assim… e na classe, uma pessoa pode se perguntar: “Como está o MEU relacionamento com o trabalho?” Isso me lembra um amigo do Rio de Janeiro, dono de uma grande empresa. Ele ama seu trabalho, é muito bom no que faz, trabalha horas a fio, e não está exausto. É uma ótima companhia quando não está trabalhando. Ele é o meu exato oposto. Passa o máximo tempo possível no escritório, e trabalha de forma inteligente, e, por isso, toca um negócio multimilionário, e eu sou autônomo.

Não estou dizendo que isso é uma coisa ruim, mas estou dizendo que precisamos pensar em como priorizamos o trabalho em nossa cultura, e se queremos mudar algo a respeito disso em nossa vida.

Quais são as histórias mais importantes sobre as quais escreveu? As que mais gosta, de maneira geral, como jornalista?

Em Londres, fui livro por um dia. Existe uma “biblioteca” à qual as pessoas podem ir e, em vez de retirar um livro, podem pegar uma pessoa emprestada para uma conversa de meia hora. As pessoas são elencadas por listas, mulher mulçumana, operário, policial – rótulos. Eu era o homem gay. Fiz isso porque um amigo meu não pôde ir e me pediu para ir em seu lugar. E foi uma experiência incrível.

As pessoas chegavam, olhavam o catálogo e diziam: “Eu gostaria de pegar a mulher muçulmana emprestada.” E às vezes tinha uma lista de espera ou algo assim. Nós todos esperávamos nos fundos da biblioteca e ficávamos meio nervosos pensando: “nossa, e se ninguém me escolher?”; e ficar, literalmente, juntando poeira na prateleira, achando que ninguém o vai escolher. E tinham pessoas que eram escolhidas o tempo todo. Tinha um cara, ex-membro de uma gangue criminosa, que, quando adolescente, tinha se envolvido com o crime e carregava uma arma… As pessoas pediam por ele o tempo todo; era muito popular. Por fim, três pessoas me pegaram emprestado. Conversamos sobre homossexualidade, sobre minha vida, sobre o que pensavam ou sentiam sobre homossexuais. Não era minha função mudar sua opinião; eu era apenas um livro aberto. Podiam me fazer perguntas e eu podia contar episódios interessantes da minha vida. O terceiro grupo a me “tirar” era composto de três adolescentes negros. Acho que tinham quinze ou dezesseis anos. E eles entraram na biblioteca perguntando o que estava acontecendo, e daí, quando nos sentamos, falaram logo de cara: “Sabe, se nós te víssemos no ônibus e soubéssemos que é gay, teríamos te enchido de porrada.” E eu respondi: “Se entrasse no ônibus e visse vocês três juntos, eu iria sentar em outro lugar ou descer do ônibus, porque ia achar que vocês são do tipo que atacam as pessoas.” Nós quatro tivemos uma conversa incrível, durante essa meia hora. Falamos de como, quando eles entram num ônibus, não é com a intenção de atacar alguém, mas de repente está todo mundo olhando torto porque são negros. Porque estão em três e são jovens… Nós sofremos de uma ansiedade racista em Londres, e esses caras acabam caindo nisso. E então eles me disseram que acabam causando confusão porque é o que todos esperam deles. E eu pensei sobre como as pessoas reagem a mim… Sou muito aberto sobre minha homossexualidade. Não muitas pessoas sabem que eu sou gay logo de cara, mas, normalmente, dentro de alguns minutos de conversa, menciono meu ex-parceiro ou algo assim. É incrível como pessoas em ambos os nossos países matam alguém apenas por ser gay. É inacreditável viver nesse tipo de ambiente e muito nocivo também.

Você mudou sua opinião sobre a influência da tecnologia sobre nós após sair da Wired, ou sempre pensou assim a respeito da tecnologia?

Sempre amei e desconfiei muito da tecnologia. Quer dizer, eu amo a tecnologia. Não me entenda mal. Sinto constantemente que estou atrasado em termos do timing; sempre tem algo novo sendo lançado. Por exemplo, nunca curti as mídias sociais, tive uma página no Facebook por um mês, e não gostei. Era muita informação que eu não queria ver, e as pessoas aparecendo na minha vida pedindo, clamando por atenção, e, se eu não olhasse, ficaria por fora das coisas. Depois de um tempo, saí, e estou muito feliz de não ter uma página lá. Sei que perco algumas coisas, mas todos perdemos algumas coisas. É normal. Não estar no Facebook me dá um foco maior nas coisas que realmente estão à minha frente.

A tecnologia seduz e melhora cada vez mais. Enquanto falamos, ela provavelmente está correndo à nossa frente. Mas agora estamos chegando ao ponto em que a velocidade da tecnologia e o volume de dados que se processa estão além da nossa compreensão, da nossa capacidade de acompanhá-los.

Não quero dizer que as máquinas estão tomando o mundo, mas, de certa forma, estão dominando o mundo. Existe o perigo de delegarmos tanto à automação que perderemos a essência do que nos faz humanos. Não estou catastrofizando, mas acho que chegaremos a um ponto onde não conseguiremos mais entender os efeitos do intercâmbio de dados automático pelos computadores através da internet, por exemplo. Existe um dado estatístico que gosto de citar: “A quantidade de dados que rodam a internet a cada mês é em torno de quarenta exabytes. É uma quantidade enorme! Cinco exabytes equivalem a todas as palavras jamais ditas por todos os seres humanos na história da humanidade. Então, é mais ou menos oito vezes isso circulando na internet por mês. Isso representa uma mudança enorme em termos de percepção e linguagem para nós. Não estamos apenas falando de escrever, de ideias… Não conseguiremos jamais acompanhar esses quarenta exabytes de dados. Mas os computadores conseguem. É por isso que as empresas que estão à frente, hoje, são aquelas de computação. Estamos contentes em aceitar seu domínio?

Parte disso é uma questão política, parte econômica, e parte científica. O Facebook comprou o Whatsapp, a Google comprou uma fábrica de robótica em Boston… Essas empresas vão crescendo e comprando, crescendo e comprando. Se fosse qualquer outra indústria, ficaríamos preocupados com esse comportamento. Se uma empresa começasse a comprar todos os navios cargueiros do mundo, nos preocuparíamos com o monopólio que isso causaria. Precisamos começar a pensar se isso está acontecendo com o Google ou o Facebook.

Qual será o nosso relacionamento com a tecnologia nos próximos dez anos? Você acha que irá piorar nesse sentido, ou talvez outras pessoas como você… Eu também penso como você, na verdade. Dei um passo para trás com essas coisas de twitter e tudo mais. Você acredita que isso acontecerá com outras pessoas também?

Acho que ficará cada vez mais comum as pessoas usarem telefones enquanto falam com você, e isso fará do mundo um lugar mais pobre. Mas algumas pessoas virão a entender que uma conversa entre dois seres vivos é melhor do que ficar olhando o celular. Criei uma regra para mim. Quando recebo amigos para jantar em casa, eles sabem que não usamos o telefone durante o jantar. É uma regra da casa. Eu pareço um careta, um velho carrancudo, mas isso pouco me importa. É muito bom sentar-se ao redor da mesa, e jantar sem os celulares tocando sem parar. Durante meus cursos peço também para todos desligarem os celulares. Acho que é algo positivo, mas nem todos pensam assim.

Começaremos a entender que você pode usar seu telefone aqui, mas não ali, e haverá sempre diferenças – no começo desta conversa, falamos sobre diferenças culturais em relação ao uso do tempo entre o Rio de Janeiro e Londres. Haverá também diferenças de atitude em relação aos telefones e à tecnologia, assim como sobre o que escrevemos no twitter e assim por diante. Será uma coisa comum, e teremos diferentes atitudes culturais. Me preocupo com isso. Acredito em certas características humanas que são muito importantes, como o ofício, o artesanato, o pensar devagar, a sensação de autonomia, e às vezes a tecnologia nos faz sentir como escravos.

Henry Thoreau diz que “o homem cria a ferramenta e a ferramenta recria o homem.” Ele escreveu isso no meio da Revolução Industrial, e acho que estava tentando nos avisar que nos tornaríamos escravos das fábricas. Seria útil escutá-lo mais uma vez nessa segunda revolução tecnológica-industrial, a revolução digital que está acontecendo agora. Se alguém diz “nossa, não entro no Facebook há séculos”, é terrível. Precisamos colocar a ferramenta de volta no lugar dela. Algo que gosto muito de repetir é que só porque a ferramenta existe não quer dizer que precisamos usá-la. Uma imagem que gosto de usar é, por exemplo: a maioria de nós, em casa, tem uma serra em algum lugar, para cortar madeira; mas isso não quer dizer que acordamos toda manhã e saímos correndo para serrar madeira. Usamos a serra apenas quando queremos serrar madeira. Da mesma forma, podemos usar o Facebook quando queremos seja lá o que for que o Facebook nos oferece. Não precisamos nos atropelar para usar uma tecnologia apenas porque existe e está disponível.

#15TempoCulturaSociedade

Quem é seu tempo? Cronos, kairós ou aion?

por Ana Claudia Quintana Arantes

“Então, o que é o tempo? se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me pergunta, não sei”
Santo Agostinho, Confissões, livro XI

A humanidade caminha, a caravana passa, o mundo gira. Cada um no seu tempo. A verdade maior é que estamos todos muito atrasados em relação a nossa própria vida, pois não sabemos muita coisa. Mas algo que fazemos com maestria é desperdiçar nosso tempo, seja não vivendo o que é para viver, seja vivendo o que ainda não é tempo de viver. Sêneca diz que o Homem é capaz de lutar por qualquer coisa que não lhe pertença. Luta para defender terras, por poder, por escravos, por amores, por seus filhos, por seu povo. Mas é incapaz de lutar para defender seu tempo. Ele também nos diz que o Homem reclama que a vida é breve, mas, na verdade, não é. A vida é longa o suficiente para que se realize grandes coisas e grandes felicidades, mas desperdiçamos o tempo generoso da vida em coisas inúteis, fúteis. Desperdiçamos tempo nas fofocas, nos medos, nas culpas, na preguiça, na destruição do corpo, da mente e do coração. E dedicamos pouquíssimo tempo a viver a vida como pede para ser vivida. E penso que concordo com Sêneca… O que vejo todos os dias são pessoas que, ao refletirem sobre suas próprias vidas, deparam-se, um tanto perplexas, com o tempo que perdem celebrando coisas sem sentido. Brigas, medos, preconceitos, decepções, silêncios. Nada que realmente valha a pena quando se tem consciência de que não há tempo a perder.

O problema é que as pessoas só param para pensar na vida nos momentos de sofrimento, de crise, de doença. Quando tudo está dando certo, não vejo ninguém se perguntar “qual o sentido disso?” Quando estamos na tormenta, porém, de repente tomamos consciência de que nada importa mais do que aquilo que acreditamos ser importante, mas do que não cuidávamos com verdade e entrega. Durante toda a vida temos a chance de nos perguntar sobre o que realmente vale a pena, mas, mesmo diante das melhores respostas, mantemos um firme propósito de nos afastar desses maiores motivos. E o tempo urge.

Tempo, tempo, tempo. O que se fala do tempo? Na mitologia, encontramos respostas. Cronos, filho de Urano, liderando uma rebelião contra seu pai, assume o lugar de rei. Por medo de sofrer o mesmo golpe, Cronos decide devorar seus filhos. Um dia, enganado por Reia, sua esposa, engole uma pedra pensando que devorava Zeus, seu sexto filho. E Zeus sobrevive, destrona seu pai e se torna rei do Universo.

Cronos é o senhor do tempo do relógio, senhor absoluto dos minutos, das horas, dos dias, aquele que nos devora vivos, ao pé da letra. Cronos é uma dimensão necessária para o tempo do lado de fora de nós mesmos, para uma mínima organização da nossa vida, da nossa agenda, do nosso cotidiano. Ele não mostra a intensidade da vida, mas sua duração. No entanto, nos escraviza quando determinamos que o tempo que vivemos “do lado de dentro” seja também regido por ele. Podemos nos tornar escravos do relógio, do tempo cronometrado, do tempo do mundo. Distribuímos o tempo do relógio entre sono, trabalho, família, amigos, exercícios, meditação, lazer, medos, terapia, trânsito, férias, culpas, sonhos. Mas, dentro de nós, não parece existir “duração do tempo”.

Passado, presente e futuro estão totalmente misturados, caoticamente misturados. Por vezes, somos prisioneiros do tempo passado, que não volta para ser consertado, mudando a sua história, mas insistimos em mantê-lo presente na mente, como se acontecesse hoje, trazendo de volta todos os sentimentos (bons ou ruins) que permearam horas passadas. Aquele momento difícil, que tivemos há anos, aconteceu uma única vez, mas se repete como um filme em reprise constante na nossa cabeça. Talvez seja infinita a quantidade de vezes que ouvimos dentro de nós um “eu te odeio” dito, contudo, uma única vez. Não nos damos conta de que essa repetição é inútil. Assim como é inútil tentar vivenciar um momento futuro numa riqueza de detalhes jamais parecida com o que realmente vai acontecer.

O futuro do mundo do ansioso acontece agora e de um modo muito mais intenso do que seu próprio presente. São os nossos enganos devorando nosso tempo Cronos tão cruelmente como esse deus devorava seus filhos, com um passado e um futuro impalpáveis engolindo o tempo presente, desperdiçando-o. A nossa chance de libertação vem com Kairós. Kairós (do grego, momento oportuno) é um portal, que transforma o tempo do relógio no tempo do coração.

“Alice: Quanto tempo dura o eterno? Coelho: Às vezes apenas um segundo.”
Lewis Carroll em Alice no País das Maravilhas

Cronos é o tempo do mundo. Kairós é o tempo da “oportunidade”. Sabe aquele dia em que você encontrou um amigo muito querido de um jeito inesperado (Kairós) e passou horas (Cronos) conversando sem se dar conta de qualquer tempo? Nesse dia você conheceu Aion, o tempo do fluxo, do “caminho feliz” da existência, da totalidade psíquica, do movimento cíclico e incessante da vida, da imortalidade. Quando vivemos a vida no tempo Cronos (na psicologia, o tempo do Ego), falta-nos horas de vida, nos falta vida. Nossa cultura é frágil demais em consciência da finitude humana. Inspira-me Sêneca, pois pode não nos faltar tempo, mas falta maturidade, integridade, realidade. O tempo acaba, mas a maioria das pessoas não percebe que, enquanto fita o relógio esperando o fim do dia, na verdade torce para que sua morte se aproxime mais rápido.

Quando você passa a vida esperando o relógio dar a hora de ir embora do trabalho, amaldiçoando a segunda-feira, se entorpecendo de todas as formas para “compensar” o sofrimento do trabalho quando chega o fim de semana, vive reclamando da necessidade de férias, fazendo mil promessas de melhorar a vida nas intenções do ano novo, ou pior, se você é daquelas pessoas que estudam para concurso público só pra garantir a “aposentadoria”, eu preciso lhe dizer com a máxima urgência: não tem nada errado com seu trabalho, mas há alguma coisa muito errada com sua vida. Não adianta querer dividir seu tempo entre trabalho e vida, porque esta é constante e, enquanto se trabalha, está-se vivo.

Podemos escolher viver até que a morte chegue ou ir morrendo até que a vida termine. Querendo que o tempo passe rápido, desejamos que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido. A opção “vida” não é um botão “on/off” que a gente liga e desliga conforme o clima ou o prazer de viver, pois, com ou sem prazer, estamos vivos 100% do tempo. Vida é coisa constante, incessante até qualquer dia desses. Isso é viver em Cronos… meio difícil mesmo.

Mas, quando estamos no tempo Aion (o tempo do Self), as coisas são muito diferentes. O tempo Aion é descrito nas mandalas, mas o que seria o relógio senão uma mandala? Aion nos fala daqueles momentos que a gente vive num tal fluxo que tudo se encaixa perfeitamente dentro do tempo do relógio, no tempo de Cronos. Quando realizamos um trabalho incrível, aquela jogada de mestre que culmina com um gol totalmente inacreditável, ou quando encontramos uma pessoa muito amada, seja amigo, amante ou filhos, e vivemos momentos únicos onde parece que o tempo parou. Parou? Sim, parou na eternidade daqueles poucos instantes. Ou ainda quando estamos lendo um livro, uma poesia, vendo um filme ou ouvindo uma música que nos traz respostas tão reveladoras que nos proporcionam a chance de compreensão do que se passa dentro e fora de nós em qualquer tempo, passado, presente e futuro, como se a vida pudesse ser mesmo eterna. Um instante de lucidez que permite a paz de estar vivendo e sabendo viver. E isso tudo acontece em poucos minutos de Cronos, que nos levou tempo de relógio, mas Aion salvou anos de intensidade de vida, quando encontramos, assim, um novo significado para a existência experimentada neles. “Ah… então era isso…” E tudo que nos fazia sofrer encontra um sentido, nos liberta para uma nova história, já escrita no nosso passado, mas agora interpretada de um jeito novo.

Cronos tem em si mesmo um grande poder quando nos permite envelhecer. De tanto que o ponteiro volta ao mesmo lugar, um dia nos daremos conta de que horas são. Nisso, Cronos tem seu mérito. Na sua paciência de nos observar envelhecer, amadurecer, pacientemente nota nossa capacidade de entender que para cada realização existe a necessidade de preparo, de maturidade, de espera.

O grande segredo de viver em plenitude é encontrar Kairós a qualquer instante, a qualquer momento da nossa vida. Quando olhamos nossos dias e o que acontece dentro deles como oportunidades de compreensão do que estamos fazendo aqui, temos essas respostas de um jeito totalmente inesperado, e então parece que passado e futuro se modificam imediatamente. São essas oportunidades que modificam o curso do tempo Cronos de uma forma tão profunda que surpreende experimentar a sensação de ter ganhado tempo. De vida, de felicidade, de realização. Percebendo esse instante de lucidez, paramos de desejar mais coisas, poder, pessoas, e passamos a desejar mais vida.

O que mais posso compartilhar com vocês? Queria muito ter o poder de dar-lhes esperança: perto do fim de qualquer momento importante na nossa vida, o tempo se dilata, transformado pelo sofrimento e pelo amor. A finitude é marcada pelo sofrimento das despedidas, mas também pelo reconhecimento da presença do amor. E não seria o amor a maior expressão da nossa essência como seres humanos? Eu tenho certeza que sim… e vejo que o sentimento de amor aliado ao perdão é o que pode nos proporcionar uma real compreensão do nosso caminho nessa existência por aqui. Nesses instantes de lucidez o tempo para por alguns instantes, e, se assim desejamos, a generosidade do que é sagrado para nós mesmos (o nosso coração, o Universo, Deus) nos concede tempo suficiente para a revelação do que realmente importa: “viver para”, o nosso “sentido de vida”. E esse é o grande milagre da multiplicação do tempo.

#15TempoCulturaLiteratura

Proust e a catedral da memória

por Eduardo Wolf

No prefácio à edição inglesa do enciclopédico Les Lieux de Mémoire, o historiador e organizador do volume Pierre Nora define um lieu de mémoire como “qualquer entidade significativa, seja de natureza material ou imaterial, que por força da vontade humana ou da obra do tempo tornou-se um elemento simbólico da herança memorial de qualquer comunidade”. É possível que exista algo de único na expressão francesa, traduzida para o inglês como “realms of memory”, e que em português ganhou versão literal mesmo. É certo, no entanto, que a obra de Marcel Proust (1871-1922), Em Busca do Tempo Perdido, é um exemplar par excellence desses “lugares de memória”.

E não apenas para a comunidade francesa. Se em 1908 encontramos um Proust inseguro, que se perguntava “se era um romancista”, já em 1913, com a publicação do primeiro volume de sua obra, No Caminho de Swann, começava o autor a entrar na grande corrente de circulação do imaginário literário de toda a cultura ocidental. A despeito das dificuldades iniciais para o lançamento do livro – a reiterada recusa das editoras, o custeio da primeira edição pelo próprio autor, a recepção negativa da crítica e o público inicialmente escasso –, ali estava um trabalho cujo potencial simbólico era tal que viria a ser sinônimo das proezas literárias francesas e das significações mais profundas da força da memória e do poder do tempo. Mais de um século depois do início de sua publicação – que somente seria concluída postumamente, em 1927 –, Em busca do tempo perdido é parte dessa “herança memorial” de toda a humanidade letrada.

Se isso é a verdade da obra como um todo, vista como um patrimônio cultural e existencial, não é menos a verdade de seu interior, à medida que vamos penetrando nos meandros da arquitetura romanesca mais íntima do trabalho proustiano. Não é por acaso que somos introduzidos, desde as primeiras linhas desse romance de mais de 3 mil páginas, a um universo que tem o tempo e a memória como suas pedras angulares: “Longtemps, je me suis couché de bonne heure” (“Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo”), lemos na primeira sentença dessa verdadeira catedral gótica que Proust erigiu (e que Mário Quintana traduziu lindamente ao português). Uma frase que nos faz de pronto encarar o tempo e sua passagem, aquilo mesmo que, pelo seu simples fluir, torna nossos interesses mais genuínos episódicos; nossas paixões mais vivas, contingentes; nossa própria existência, efêmera, fugidia. Com essa frase, ingressamos na catedral proustiana e encaramos o tempo como quem, mirando o alto da construção, vislumbra o infinito e a eternidade.

Somente a memória poderá oferecer o devido contrapeso aos avassaladores efeitos do tempo sobre nossas precárias, frágeis vidas. É ela, a memória, que permite ao narrador registrar os decisivos episódios de sua infância na casa de seus avós em Combray, a dependência quase doentia em relação à mãe, as inquietações antes de adormecer; é ela que lhe garante reviver os dramas de Charles Swann e seu singular calvário erótico-ciumento; que o conduz a narrar o diletantismo afetado do barão de Charlus. Somente a memória nos franqueia ingresso no “edifício imenso da recordação”, como dirá Proust, “quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas”.

Certo, esse pretérito dos seres e das coisas pode ser como que revivido por nós, subjetivamente, por meio dos mais elementares expedientes, qual o narrador que, ao provar a madalena com chá, vê de “súbito” a lembrança da infância em Combray lhe aparecer. O acesso mais valioso ao mais recôndito dessa catedral gótica da memória, contudo, é outro: o veículo que nos conduz em nossa jornada pelo já experimentado; a luz que ilumina os corredores semiobscurecidos do já vivido – esta é tarefa que somente a arte, que Proust elevará à condição de verdadeira teoria da memória, pode desempenhar. Somente a arte tem o poder humano e sobre-humano de recuperar o tempo.

“É apenas um truque”, como diria um notável personagem do cinema italiano recente. Mas é tudo o que temos.

#15TempoCulturaLiteratura

O meu tempo é delas

por Débora Emm

Obra de Ricardo Alcaide

Quando nasci, herdei o tempo daquele dia. Em 1983, mulheres divorciadas já faziam parte da sociedade. A pílula existia. A TV tinha cores. A música andava em walkmans. Compras eram feitas por mês. Os preços mudavam todos os dias. A ditadura estava perto do fim. Lennon já tinha morrido. A Apple já tinha sido fundada.

Quando minha mãe nasceu, em 1956, Silvio Santos ainda não era apresentador de TV. Brasília estava em construção. Mulheres começavam a usar biquíni. O divórcio era proibido. O rock ‘n’ roll começava a sacudir mentes e quadris. A Garota de Ipanema ainda não vinha nem passava. Mulheres não podiam transar antes do casamento.

Quando minha avó nasceu, a bolsa de valores dos Estados Unidos quebrou. Em 1929, mulheres não votavam e não podiam usar calças. Novelas eram transmitidas por rádio. Os casamentos eram arranjados e muitas noivas só descobriam o que era sexo na noite de núpcias. Em colégios internos, só se tomava banho usando camisolas. Cartas conectavam pessoas distantes. A juventude ainda não tinha sido inventada.

Herdeiras de três tempos tão distintos convivem e se influenciam. Para minha avó, a neta solteira de trinta anos é, de certa forma, fracassada. Minha mãe, que trocou a faculdade pelo casamento e nove anos depois se separou, vê com orgulho meu sucesso profissional. Sou apaixonada por Beatles, ídolos da adolescência de minha mãe. Posso transar sem estar casada, mas sei que, se eu casar, será com a veste branca que um dia minha avó usou. Em 2014, vivem juntos 1983, 1956 e 1929. Minha avó como espectadora, minha mãe entre plateia e palco, e eu no centro da cena.

O passar do tempo transforma a pele, a força do corpo e a cor do cabelo. Revoltadas com o que parece injustiça, cada vez mais nos esforçamos para impedir que o tempo seja visível. Mas, se pensarmos bem, talvez as rugas no rosto sejam uma forma de a natureza nos lembrar, constantemente, que cada um de nós é de um tempo.

Volta e meia minha mãe me pergunta se estou sabendo algo sobre o tal banco prestes a quebrar. Impaciente, sem compreender o motivo do medo, respondo pedindo que ela pare de criar paranoias. Ela não me escuta e diz: “quantos bancos você já viu quebrar?” Olhando para mim enquanto eu toco uma tela de vidro iluminada, minha avó não consegue imaginar que converso com ela, mas também falo com minha amiga que, naquele mesmo momento, está comendo hambúrguer com batata frita em uma praça de Nova York. Estranho é pensar que ela está aqui em 2014, vivendo este tempo comigo, mas que este não é seu tempo.

Quando ouço histórias do passado contadas por minha avó, reparo em uma certa capacidade que não tenho. Ela consegue conectar cada fato de sua vida a um determinado ano: “Em 1949, mudei para a roça para lecionar; foi só em 54 que reformei a cozinha desta casa.” Sério! Quando alguém me pergunta qualquer data, tenho que parar para pensar quando foi que me formei no colégio e contar a partir dali quando seria o ano do acontecimento em questão. Minha avó não só é de outro tempo, como o vivia de outra forma. Ela percebia o tempo andar, sentia as horas e os minutos indo embora. A cada dezembro, sinto que não vi janeiro passar.

Acredito que, por ter nascido nos últimos respiros do século XX, faço parte de uma geração que teme estar em um tempo que não é seu. Conheci a vida sem celulares e sem internet, mas senti na pele a rapidez das mudanças do mundo a partir da chegada dessas inovações. Dizem os mais loucos que já não somos mais capazes de contabilizar a velocidade das transformações do mundo e, por isso, ansiosos, tratamos “atualizações” como água, nos apavorando com possíveis secas. Imaginando o futuro, já posso ver nas prateleiras dos supermercados, ao lado dos potes de antirrugas, elixires que impedirão o envelhecimento da mente. Serei cliente? Talvez não. Afinal, no meu tempo…

#15TempoArteArtes Visuais

Old mask: John Stezaker

por John Stezaker

John Stezaker (britânico, nascido em 1949) é hoje um dos principais artistas no âmbito de colagens e apropriação fotográfica. No começo dos anos 1970, foi um dos primeiros entre outros artistas conceituais britânicos a reagir contra a predominância da Pop Art na época. Seu trabalho reexamina os vários relacionamentos que temos com a imagem fotográfica: como uma forma de parar o tempo, documentar a verdade, como uma fonte de memória, como símbolo da cultura moderna. Em suas colagens, Stezaker apropria imagens encontradas em livros, revistas, cartões postais, e as usa como base para suas criações. Através de seus elegantes contrastes, Stezaker adota o conteúdo e contexto das imagens originais para transmitir suas próprias significações espirituosas e comoventes. Usando antigas fotografias de atrizes de Hollywood, cartões postais de viagem, e outros materiais impressos, Stezaker cria pequenas colagens fascinantes e sedutoras, que trazem traços do surrealismo, dadaísmo e da Found Art. De fora, ao se referir ao enorme acervo de imagens que colecionou durante anos, Stezaker declara que são as imagens que o encontram, e não ao contrário. Com precisão cirúrgica, sobrepõe e atrela imagens distintas para criar novas personalidades, paisagens e cenários. 

#15TempoArteMúsica

Como o tempo parou

por Eduardo Andrade de Carvalho

Obra de Ricardo Alcaide

“But thoughts, the slave of life, and life, time’s fool, and time,
that takes survey of all the world, must have a stop.”
Henrique IV, Shakespeare

Numa noite de sábado, na Casa do Núcleo, um simpático espaço dedicado à música em Alto de Pinheiros, Dimos Goudaroulis, antes de tocar o segundo movimento da sexta suíte para violoncelo de Bach, falou um pouco sobre a obra. E concluiu assim: “É como se Bach, aqui, fizesse o tempo parar.”

Dimos toca as suítes de Bach com um violoncelo do final do século XVIII, montado como um instrumento da época, com corda de tripa e arco barroco. Bach compôs essas peças quando morava em Köthen, na corte do príncipe Leopoldo, que adorava música e tinha uma excelente orquestra particular. No final do século XVIII, com a ascensão dos compositores clássicos (Haydn, Mozart), a música barroca de Bach saiu de moda, e as suítes também foram esquecidas. Até que, em 1890, Pablo Casals, aos onze anos, encontrou por acaso uma cópia das partituras num sebo em Barcelona. Casals praticou todos os dias as suítes como exercício pessoal e com seus alunos – mas só as gravou entre 1942 e 1945. A redescoberta das peças por Casals, talvez o maior violoncelista do século XX, foi um sucesso total: o disco vendeu milhões de cópias e espalhou a obra de Bach pelo mundo.

Essas suítes de violoncelo são consideradas ao mesmo tempo a Bíblia e o Himalaia do instrumento, pois, se o emanciparam da orquestra, viabilizando-o como solista, e exploraram todos os seus recursos, são, porém, extremamente difíceis de executar. Casals tocava uma suíte todo dia antes do café da manhã – e teve o cuidado de praticá-las por vinte anos até apresentá-las num concerto, e por cinquenta antes de gravá-las.

Hoje, existem mais de mil gravações disponíveis: Rostropovich tocou-as nas ruínas do Muro de Berlim, Yo-Yo Ma apresentou-as no memorial de 11 de setembro e Ingmar Bergman usou-as como trilha sonora em vários de seus filmes. E praticamente todos os grandes violoncelistas gravaram as suítes completas: Janos Starker, Pierre Fournier, Paul Tortelier e o brasileiro Antonio Menezes, além do holandês Anner Bylsma, que venceu o Prêmio Pablo Casals quando estudante e foi professor de música em Harvard nos anos 1980, considerado o papa do violoncelo barroco. Bylsma foi um dos primeiros intérpretes preocupados em tocar as suítes tecnicamente como no tempo de Bach: ou seja, com o instrumento adaptado à época e pesquisando a partitura original de Anna Magdalena Bach.

A partitura assinada por Johann Sebastian Bach se perdeu, e o manuscrito de Anna Magdalena – sua segunda esposa e copista dedicada – é polêmico e complexo. Todos os grandes violoncelistas acima usam partituras que derivam de manuscritos encontrados no século XIX, padronizados, românticos, adaptados ao gosto da época. As suítes já são extremamente difíceis, mesmo quando executadas em partituras adaptadas. E o manuscrito original de Anna Magdalena tem anotações estranhas, inusitadas e que dificultam ainda mais a execução, como tocar um mesmo motivo com arcadas diferentes. Mas é assim que devem ser executadas, de acordo com os violoncelistas que defendem uma interpretação, como se diz, “historicamente informada” – como Anner Bylsma e Dimos Goudaroulis.

Dimos toca as suítes de Bach desde os treze anos, quando começou a estudar violoncelo na Grécia, onde nasceu. Aos dezoito, ganhou uma bolsa de estudos no Conservatório de Paris, onde, em paralelo à formação erudita, passou oito anos tocando jazz, fazendo improvisação – “música de rua”, como diz. Em 1995, aos 26 anos, veio para um festival de violoncelo no Rio de Janeiro. De manhã, abriu a janela de seu quarto, no Copacabana Palace, e, cansado do frio da Europa, pensou em ficar. Ficou. No Brasil, começou a estudar profundamente música barroca e interpretação histórica. Aproximou-se, então, de Anner Bylsma – com quem costuma se encontrar sempre que vai à Europa – e, em 2011, gravou as seis suítes para violoncelo de Bach. Entre todas as gravações disponíveis hoje, nenhuma é tão fiel à partitura de Anna Magdalena como a de Dimos.

João Marcos Coelho, crítico de música clássica do Estado de São Paulo, considera Dimos o melhor violoncelista hoje no Brasil, que, assim como Anner Bylsma, “pratica com inteligência, rigor e talento as qualidades que ele mesmo gosta de projetar no holandês: irreverência, enfoques não-acadêmicos, gosto pelo novo”. É interessante que o resgate da interpretação histórica da música seja liderado por personalidades assim: curiosas, desbravadoras, inquietas – e em nenhum sentido conservadoras, uma vez que resgatar a forma como a música era praticada há trezentos anos é uma experiência artística radical, capaz inclusive de nos transportar, ouvintes, através do tempo.

Micha Maisky – cuja interpretação das suítes tangencia o brega, aliás –, numa entrevista para o livro The Cello Suites, de Eric Siblin, compara essas peças a um grande diamante: com muitos diferentes cortes, que refletem luz para todos os lados. Praticamente todos os sentimentos possíveis estão ali. Do famoso prelúdio da primeira suíte ao último movimento da sexta, temos a sensação de que tudo aconteceu: de que fomos levados da mais profunda melancolia à alegria completa. E em algum momento, durante o segundo movimento da sexta suíte, todos esses sentimentos se misturam e se combinam, e é como se virassem apenas um: e a música – que não existe fora do tempo – consegue fazer o tempo parar.

#15TempoCulturaLiteratura

Um ensaio sobre uma escolha

por Alexandre Amorim

Quando pensei, pela primeira vez, na possibilidade de partir em busca dos meus sonhos, percebi que meus desejos necessitariam tempo, pois era criança e não podia tomar muitas decisões. Recordo como se fosse hoje daquelas férias na Bahia, com toda a família reunida. Isso nunca mais saiu da minha cabeça, e tinha certeza de que um dia viveria por lá.

Sou arquiteto urbanista e, logo no início da minha carreira, desenvolvia projetos de urbanização de favelas. Foi um período de descobertas e inquietudes, o mundo estava sendo desvendado e então começava a entender o quão plural eram as cidades e seus habitantes. A cidade formal em que vivia já não existia mais em minha cabeça. Era tudo uma grande fachada.

Mas foi quando conheci o flâneur de Benjamin que a arquitetura e a cidade passaram a ter tempo em minha vida. Queria ser um, para sentir a cidade, o cheiro, escutar e percorrer cada esquina; embriagar-me, caminhar, viver e aprender com o banal. Queria conhecer a rua, o modo como as pessoas viviam, usavam e passavam por ela.

Foi quando percebi que o espaço urbano é apenas um suporte para nosso transitar diário, e que não possui outra função a não ser nos levar de um lugar a outro. Os episódios do cotidiano que, no passado, relacionavam as pessoas à cidade em algum momento desapareceram, abrindo espaço para o informal, e passamos de agentes urbanos a meros observadores, angustiados e temerosos dentro de nossos escritórios, nossos carros e nossas casas.

O tempo passava, o escritório era um sucesso e me rendia dinheiro, os amigos se tornaram sócios e os sócios pouco amigos se tornaram. Pensava na vida e me assustava a possibilidade de passar todo o meu tempo trancado no escritório. Amo o que faço, tive a sorte de escolher minha carreira, mas, por outro lado, não queria conduzir minha existência em função do meu trabalho, ou mesmo perder tempo trabalhando e não conseguir usufruir, com a mesma voracidade, meu ócio.

Mas, de quantas maneiras podemos viver? Em quantos lugares podemos morar? Quantas cidades existem? Quanto tempo temos para a vida? E, se a vida é curva, como no poema de Jesus Lizano (Las personas curvas), por que nos prender a uma só forma, a um só tempo? Assim como Lizano, não gosto do mundo reto, das pessoas retas, das ideias retas; gosto dos poemas curvos, dos peitos curvos, dos sentimentos curvos e das linhas curvas.

Já havia vivido o sonho americano e a decadência europeia, entendia a diversidade do mundo e sabia que o estímulo, para mim, era o desconhecido. Será que deveria me matar de trabalhar para simplesmente cultuar e consumir o efêmero? Afinal, muitas coisas não uso e desfruto. Talvez fosse melhor aproveitar um pouco mais o tempo da vida.

Não poderia mais ser somente um arquiteto urbanista para projetar minha arquitetura e minhas cidades. Deveria buscar outras formas e maneiras de interagir com o ambiente. Era o momento de acreditar nos sonhos curvos da infância e me mudar.

Hoje, sou pai e tenho uma mulher para me apoiar. Deixei de lado o caos para viver à beira-mar, assim como nas músicas de Caymmi. Já não vendo mais o tempo. Uso-o para plantar e surfar. Tempo para me inspirar, projetar e amar. Não me privo mais a um só hábito, a uma só rotina, porque o que me enriquece é a diversidade da vida, a diversidade do tempo vivido.

Foi uma mudança difícil. Não é fácil rasgar a renda pela metade, mas acabamos gostando e nos adaptando a trabalhar o suficiente. Se existe o slow food, o slow work também pode existir. Podemos deixar de lado o que em algum momento foi essencial, e passar a perceber que tempo nem sempre é dinheiro.

Agora, a praia é meu novo ambiente, e tenho tudo o que pensava ter no dia em que me aposentasse. A diferença é que trago comigo mais da metade do tempo da vida para gastar. Afinal, o que nos move é a dedicação às nossas coisas, não importa onde estamos. E, se talvez todos pensassem no que realmente é importante, não teríamos tantos problemas a nos preocupar e poderíamos usar um pouco da vida esperando o tempo passar.

#15TempoCulturaSociedade

Tempo de ser pai

por André Tassinari

Nunca antes na história desse país o pai foi tão presente na criação dos filhos como hoje. No entanto, pelo menos no primeiro ano de vida de uma criança, o pai não exerce uma função tão importante como a da mãe. Mas, ao contrário do que os homens brasileiros costumam acreditar, o pai pode ajudar muito nesse período. Só que, contrariando a natureza masculina, aqui ele terá de aceitar um papel secundário: o de dar suporte prático, de maneira que a mãe tenha mais energia e foco para cuidar do bebê. Para se candidatar ao cargo de ajudante-mor-da-mãe-com-bebê, o pai vai precisar de duas coisas: (bastante) vontade e (bastante) tempo.

Falemos primeiro da vontade. Eu acho que a vontade de passar (bastante) tempo com seu bebê é irracional, ou você tem ou não tem. Mas, para um pai extremamente racional, existem estudos científicos que mostram que passar tempo ao lado de seu bebê torna sua vida mais feliz. Como? O psiquiatra George Vaillant é, há décadas, supervisor de uma ambiciosa pesquisa em comportamento humano (o Grant Study), conduzida desde 1939 pela Universidade Harvard. No seu livro Spiritual Evolution, sintetiza, a respeito dos sentimentos humanos: “Joy is connection”, algo como “a felicidade está nos laços afetivos”. Porém, o laço afetivo entre pai e filho só se fortalece através do convívio, como bem conclui a psicóloga e filósofa Alison Gopnik em seu livro The Philosophical Baby: “We don’t care for children because we love them, we love them because we care for them.”

Outra teoria que sustenta que o tempo com o bebê é um bom investimento na felicidade do pai é a do prêmio Nobel em Economia Daniel Kahneman. Através da distinção entre nosso experiencing self, aquele que vive cada momento, e nosso remembering self, aquele que se lembrará dos eventos no futuro, consegue demonstrar que a forma como guardamos os episódios de nossa vida na memória é muito diferente dos fatos em si. Ou seja, sabe todas aquelas novidades que acontecem no início da vida da criança – o primeiro sorriso, a primeira sentada, a primeira engatinhada? Se o pai estiver presente, não só poderá curtir isso tudo na hora como a lembrança desses momentos o alegrará pelo resto da vida. As primeiras palavras ficarão sempre na memória, as noites mal dormidas serão esquecidas.

Por último, uma intuição não-científica, mas baseada no conhecimento popular: se a primeira impressão é a que fica, deve ser melhor apresentar à criança um mundo com mãe e pai.

Bom, se você ainda não sentiu vontade de cuidar do seu bebê, não tem problema, as babás estão aí para isso (já que sozinha nenhuma mãe merece ser deixada). Mas, se sentiu vontade, só falta conseguir (bastante) tempo. Vamos a ele.

Para um pai que é profissional autônomo, claro que é bem mais fácil. Você pode se programar (e economizar) de modo que possa passar bastante tempo cuidando do bebê nas primeiras semanas, e depois ir gradualmente aumentando sua carga de trabalho sem deixar de ajudar. Mas, e quem é empregado? A licença-paternidade (não, Word, não é para corrigir para licença-maternidade) no Brasil é de míseros cinco dias. E, enquanto a licença-maternidade tende a passar de quatro para seis meses, a dos pais conta com projetos de lei que a aumentariam para, no máximo, trinta dias.

O ideal seria a sociedade brasileira se mobilizar por um aumento bem maior, como é a tendência nos países europeus, inspirados pela Suécia. A Suécia é benchmark em licença-parental (tempo dividido entre o pai e a mãe) graças a sucessivos governos que apoiaram a questão nas últimas quatro décadas e provocaram uma mudança de mentalidade no país. As mulheres suecas passaram a achar um homem que cuida de bebês mais interessante. Inclusive, as taxas de divórcio na Suécia caíram desde 1995, ao contrário do que ocorreu na maioria dos outros países. Um casal sueco, pasme, tem treze meses de licença para dividir (com até 80% do salário), sendo no mínimo dois meses para o homem; mas, hoje, os pais suecos tomaram tanto gosto pela coisa que a maioria opta por ficar com ao menos quatro meses da licença.

Claro que as empresas suecas ainda acham difícil ter de se adaptar, mas pega até mal se posicionar contra. Por outro lado, facilitar a licença do pai virou uma forma de atrair bons profissionais, que agora não buscam mais apenas ótimos salários, mas também um equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. No Brasil, enquanto uma lei melhor não chega, algumas empresas também usam a licença-paternidade como um bônus. O Google, sempre na vanguarda, dá quatro semanas, assim como alguns escritórios de advocacia.

Não sendo geek ou advogado, o pai celetista tem a opção de conseguir uma licença não-remunerada, que é prevista em lei e pode durar de dois a cinco meses, dando a justificativa de que irá “resolver assuntos particulares” (isso desde que o empregador concorde). Uma outra ideia seria conciliar o nascimento do filho com um momento de troca de empregos, em que se conte com um bom pacote rescisório no trabalho antigo e se negocie um início postergado em alguns meses na nova empresa.

Então, vamos dizer que você teve a vontade e conseguiu o tempo. Resta descobrir como ajudar a mãe a cuidar do bebê. A seguir, algumas ideias de coisas que pode fazer na sua função de mão extra facilitadora.

Você pode trocar a fralda (é o mínimo), levar um copo d’água para a mãe enquanto ela amamenta (pois amamentar dá muita sede), fazer um swaddle para acalmar o bebê (enrolá-lo numa trouxinha, para os não-iniciados), carregá-lo no sling (pano que pendura no ombro, idem), fazer compras de supermercado (experimente empurrar dois carrinhos ao mesmo tempo), lavar a louça (sem fazer barulho), cozinhar (ou ir na rotisserie, ou providenciar um delivery), passear com o bebê de manhãzinha (para a mãe poder finalmente dormir um pouco), ficar com o filho por algumas horas para a mãe poder sair de casa (ver as amigas, ir no médico, fazer a unha), trocar a roupa dele (parece simples), distraí-lo enquanto a mãe coloca o pijama (ou dá remédio, ou limpa as dobrinhas do pescoço), niná-lo para um cochilo de dia (de noite ele vai querer a mãe), lavar a banheirinha (ou as chupetas, ou as mamadeiras), preparar a bolsa de passeio (sempre reabastecer de fraldas), trocar as pilhas da babá eletrônica (não compre as que só funcionam na tomada), servir de motorista (para a mãe poder ir atrás com o bebê indefeso), acompanhar no pediatra (pediatras, provavelmente), preparar a água do banho (já que dar banho quem sabe é a mãe), acordar de madrugada para dar mamadeira (ou recolocar a chupeta, ou ajudar a mãe no que precisar), ficar com o bebê enquanto a mãe toma banho (ou faz cocô, ou pinta o cabelo, ou outras coisas que mulher faz no banheiro) etc.

(Parêntesis: um oásis de tranquilidade no meio disso tudo é quando o bebê está dormindo, com sorte por algumas horas consecutivas. Aí é a hora de o casal – mais a babá eletrônica – esconder-se na sala de TV para apreciar, por alguns momentos, a companhia de outros adultos – Claire Danes, Kevin Spacey, Antonio Fagundes. As séries e novelas são mais recomendadas que os filmes, que podem sofrer um excesso de interrupções e ficar ininteligíveis.)

Vê-se que não é à toa que muitos pais acham mais cansativo cuidar de um bebê do que trabalhar. Mas o pior não é o cansaço; é perceber que, mesmo com tanto tempo investido na função, o pai não será promovido de cargo tão cedo. A CEO é sempre a mãe. Acho que é por isso que nós, pais, queremos que os filhos cresçam logo, enquanto as mães querem que continuem bebês. Quando eu ando com meu filho de meses no colo, as mulheres sempre dizem: “Que saudades dessa época! É a melhor fase!” Bom, só se for para elas, que se sentem superpoderosas sabendo que nessa fase são o mundo para seus bebês. Já os pais anseiam pela época em que – mesmo em menos tempo de convívio com o filho, que afinal uma hora irá para a escola, viajará com os amigos etc. – terão um cargo de maior importância na organização familiar, no qual serão responsáveis por conselhos preciosos em situações de vida ou morte, acompanharão o filho ao futebol, levarão a filha no mar (lá no fundo), darão as respostas para os grande mistérios da vida… Não vejo a hora.

#15TempoArteFotografia

De carne e osso

por Jair Lanes

escuta…
essas sombras da noite eterna
essas cintilações na noite eterna
olhe…
esse rumor do abismo
esse tumulto mudo no abismo

desprotegidos
ah paraíso perdido!!
alienados do céu
exilados no tempo
é sempre aurora
sempre ocaso
tempo labirinto tempo escondido
oculta e desvela

s u s s u r r o s

duram em nós
devaneios das eras
lembranças de protozoário reverberam nos corpos
elevam-se na memória febres vegetais
delírios minerais
devaneios das eras
duram nas coisas

C L A M O R E S

mortais
e essas sombras?!
engendradas pelo descontínuo do tempo…
e esses tumultos mudos?!
perdidos na torrente secular….
e esses sulcos?!
espraiados na superfície do mundo
em persistente metamorfose
eco das coisas nas coisas nos seres
eco dos seres nos seres nas coisas
no limiar
a se perder no invisível
mas guardando ainda, é evidente
inverossímil confiança na promessa de tudo

#13Qual é o seu legado?CulturaLiteratura

Um bilhão de saudades

por Vanessa Agricola

Arqueologia da perda, de Daisy Xavier

Faz dois anos que ele se foi. Dois anos que penso nele todos os dias. Vejo alguém comer geleia, lembro dele tomando café da manhã. Comia sempre uma torrada com geleia de laranja, e pra beber um chá inglês. Se alguém fala da França, lembro dele me mostrando Paris. A gente tomando sopa de cebola no restaurantezinho que ele adorava, ali de frente para a Notre Dame, conversando sobre a vida, tomando vinho da casa, ele me dizendo que eu estava linda com aquela jaqueta. Dali saímos a caminhar pela Champs-Élysées, ele avistou um casaco de pele preto, dizendo que era minha cara. Me fez vestir o casaco, perguntou o preço, se não fosse minha sensatez teria comprado. “É muito caro isso, Gorducho”. Sempre teve essa mania de me comprar tudo, como que para me dizer eu te amo, eu já sabia. Mas ele todos os dias queria me dar uma prova, ou num presente, ou num olhar de admiração e carinho que nunca ninguém além dele me deu.

Quando nos sentávamos juntos para jantar, em casa mesmo ou em um restaurante, eu e ele costumávamos nos cutucar embaixo da mesa, por causa de um comentário da minha mãe ou dos irmãos; éramos cúmplices nas nossas opiniões sobre eles. Éramos comparsas. Bastava uma troca de olhares, uma piscadinha, a tão famosa cotovelada que ele costumava dar, era quase um afago, que acabava com a gente rindo junto, da minha mãe, ou dos irmãos, ou de um assunto.

Minha mãe sempre dizia que não podíamos ser mais parecidos. E quando ela ficava de mau humor, ou com ele ou comigo, nós dois ríamos. Sem ele minhas piadas ficaram de mau gosto. Só ele era tão irônico. Também não faço mais churrasco, porque me lembra dele tanto que me dá vontade de vomitar. Não tomo mais vinho com Fanta, não escuto mais tango, nem Shakira. Foi ele que me fez gostar dela. E de Simon and Garfunkel. E de Van Morrison. E de reality shows de culinária. Tarefas impossíveis, tipo preparar um banquete com entrada, prato principal e sobremesa em menos de uma hora o faziam delirar. E eu deitada em seu colo me divertia, de tanto ver esses programas aprendi a cozinhar. Também por ficar com ele na cozinha, enquanto ele fazia seu macarrão com linguiça tão gostoso… Era um mestre-cuca, meu Gorducho. Um campeão de golf, um gênio da matemática, um homem generoso desses que te preparam o jantar tomando um vinho e ouvindo música.

Sabe qual a minha maior tristeza? Vê-lo moribundo, delirando sobre a minha herança. “Nessinha se va a quedar con la casa de Punta”. Me doeu a vergonha que ele sentiu por não ter podido me deixar nada. E por que eu não te disse que o melhor que a gente deixa é a saudade? Será que eu não sabia? Ou não queria acreditar que daquela vez você iria mesmo embora? Que o dia que a gente brigou seria o nosso último dia. Ah, adonde estás ahora? Daí você me escuta? Será que você me lê? O melhor que a gente deixa é a saudade.

#13Qual é o seu legado?ArteFotografia

Utopia

por Roberto Vietri

Começou ao acaso, como de fato muitas vezes acontece. Uma viagem despretensiosa para o norte do Brasil. A história caiu no meu ouvido e me deixou curioso: Fordlândia. Sempre me senti atraído pelo cheiro da ambivalência, do desenho do encontro – intenso – entre forças opostas, pelas boas e más vontades umbilicalmente unidas e pelas consequências um tanto irregulares, convidando a curiosidade a uma reflexão e, a partir disso, à descoberta de outros destinos. Aqui, idealismo se depara com fracasso, quem sabe esperança. De acordo com alguns moradores, hoje resta um sentimento de saudade ou então, para outros, a ignorância do que existiu. Na outra ponta da história, na planície do estado de Michigan, nos Estados Unidos, questões locais refletem o mesmo saudosismo ou a preferência por não querer olhar. A alguns, entretanto, o ímpeto de reagir.

Uma cidade inteiramente construída onde nada existia, num continente estranho, para acomodar um interesse estratégico e satisfazer as vontades de um visionário que queria a todo custo ser – e foi – o motor de transformações culturais e econômicas em escala mundial, que acreditava serem as melhores possíveis para todos os envolvidos. O sonho e a persistência de fazer aterrissar uma nova ordem, um novo Estados Unidos. Por que não de um novo Brasil? Ao longo das décadas, (quase) todos os sonhos se transformaram em realidade, com tudo o que têm direito: expectativa, auge, entusiasmo; declínio, desfazimento.

“Uma cidade inteiramente construída
onde nada existia”



No meio do caminho chamei, simplesmente, de “utopia”, e por enquanto se mantém assim. Do Brasil viajei para os Estados Unidos, seguindo minha curiosidade, agora não mais tão ingênua. Deparei-me com alguns lugares, outras situações e a deliciosa sensação de perceber, além de algumas confirmações, a abertura para que novos cenários pudessem ser levantados, deixando-me paradoxalmente menos localizado do que supunha, e mais generoso em admitir, felizmente, que não sei qual o final da história.

No começo, como disse, nada tinha. Depois tive a selva; então, os carros. Agora também tenho Walt Disney! Num movimento não necessariamente coordenado, mas caprichosamente insistente, os fatos consumados e os embriões das mais incipientes ideias começaram a ricochetear de maneira intrigante, desfazendo simbolicamente a existência de fronteiras geográficas e culturais, bagunçando no fim das contas o próprio tempo. Eis que surgiu recentemente um novo local, ligado aos outros apenas por um elo formal, mas que, por enquanto, convido a fazer parte desse quebra-cabeças no qual me meti. Talvez nem venha a usá-lo. De qualquer forma, pode ser que me carregue a novas constatações.

Utopia tem sido uma tentativa de se relacionar com o sonho solitário de um homem, e não tanto uma busca por catalogar suas conquistas ou fracassos. A cidade de Detroit acaba de declarar oficialmente seu estado de falência. Há relatos de lobos retornando aos bairros mais periféricos. O mato anda crescido de maneira absolutamente selvagem. A taxa de desemprego e abandono dos prédios beirando à metade.

A Amazônia, por sua vez, sempre refratária às tentativas de controle, hoje sucumbe a ameaças que, em outras situações, conseguiu suportar. No centro da praça, a casa reformada ainda espera pela prometida visita de Henry Ford, seu criador. Ironicamente, talvez fosse mais do que desejado que essa impossível visita acontecesse agora. Ou que já tivesse acontecido há oitenta anos.

Uma das heranças do idealismo é a possibilidade de se passear pelo sonho original, e aprender com ele. A outra é encarar como algo muito distante ou até indesejado. Provavelmente com as mesmas consequências que fizeram – e fazem, em tantas instâncias contemporâneas – histórias se repetirem. Seja na forma, seja no conteúdo.

A arqueologia da perda, de Daisy Xavier, surge como uma operação a um só tempo formal e existencial. Ora, a arte, em geral, seria sempre isso. Sim, mas existem casos nos quais tal vínculo surge de maneira mais evidente. E este é um desses momentos. Toda realizada a partir da apropriação de móveis antigos, espécie de legado, a série de esculturas é fruto do gesto de desmembrar um mobiliário e, a partir destes fragmentos de uma memória que poderia permanecer paralisada, colocar a mesma em movimento, assim instaurando um destino inaudito.

O que vemos são peças simultaneamente fortes e frágeis. Delicadas, mas sólidas na sua fatura. Assimétricas, como que resultado de uma escrita automática, mas cientes de onde querem chegar ou ao menos de onde devem parar. Em algumas delas vidros azuis fazem a vez de elo, aquilo que cria o vínculo, em outras aparecem como apoio. Justo o vidro, elemento que guarda em si a quebra iminente. Cada fragmento – o pé de uma mesa, o braço de uma cadeira – esgueira-se um no outro. Sozinhos não seriam nada. Esta existência que exibe, sem pudores, a sua precariedade de fundo, a necessidade de se esgueirar para ficar de pé, tudo isso é o que doa a insuspeita força na fragilidade do trabalho de Daisy.

Arqueologia, do grego arque, antigo e logos, estudo, é a disciplina que estuda as culturas e os modos de vida do passado a partir de vestígios materiais. A artista tece sua arqueologia a partir de restos que possuem uma conotação familiar, mas que, ao passarem pelas suas mãos, adquirem um registro estranho. Estamos diante de estranhos familiares. Ficção a partir do mais próximo, que evoca justamente o ciclo pelo qual passaram: desconstrução e reconstrução, dinâmica que faz surgir uma potência ativa ali onde habitava perda, falta.

Fazer a arqueologia do que se foi é construir a chance de um novo presente e de um futuro diverso do mesmo. Trata-se de reescrever a memória à sua maneira, recriá-la, ficcioná-la. Realizar tal operação sem cair em uma narrativa ilustrativa ou biográfica, mas sim na pura forma, eis a singular beleza que se dá na obra de Daisy Xavier. Obra que nos endereça um ar de esperança naquilo que nos diz, baixinho, vá lá e desconstrua para reconstruir, a seu modo, aquilo que foi perdido ou ficou pelo caminho.

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Um legado

por Luiz Felipe D’ávila

Foto de Tinko Czetwektynski

A palavra legado remete aos feitos e às obras relevantes realizados pelos nossos antepassados e transmitidos aos descendentes e às novas gerações. Soa como uma palavra antiga, utilizada por avós e pais quando nos convocavam a uma conversa séria, destinada a nos lembrar de que chegara a hora de abandonar as molecagens e de agir com responsabilidade. Afinal, tínhamos obrigação de zelar pelo legado da família e das instituições que nossos antecessores construíram na política, nas artes, na filantropia ou nos negócios.

Os pequenos legados são igualmente importantes. A receita de bolo da família, as tradições da escola e da empresa, as viagens anuais para os lugares que nos fazem reencontrar familiares, cultivar tradições e celebrar episódios marcantes. Esses rituais são formas de estimular o convívio de gerações e de reforçar os valores perenes que despertam o senso de pertencimento, de continuidade e de perpetuação. Isso é legado. Mas, numa época dominada por modismos, pelo espírito imediatista e pelos ganhos de curto prazo, legado parece um substantivo arcaico. Legado não é produto, não pode ser adquirido e tampouco gera lucro. Então, por que é importante?

A civilização é formada por meio do lento e gradual lapidar de princípios e valores, que moldam as leis, os costumes e as instituições. Legados são vitais para sedimentar os princípios perenes, o senso de permanência e os valores imortais que determinam os atributos que uma sociedade preza e valoriza. Excelência, mérito, propósito, honra e dever são valores que vêm inspirando muitas gerações, desde a Grécia Antiga, a lutar pela criação da democracia, do Estado de Direito e da economia de mercado. A combinação de regras estáveis, instituições democráticas e prosperidade econômica criou as condições para o florescimento da liberdade, da competição, da inovação e do conhecimento aplicado, que beneficiaram enormemente a humanidade. Surgiram empreendedores, cientistas, artistas e estadistas que nos livraram da Idade da Pedra, da miséria material, do obscurantismo das crenças e ideias e do poder arbitrário dos reis, ditadores e caudilhos.

O exemplo dos Founding Fathers americanos revela como o legado de uma geração de homens extraordinários continua a reverberar na sociedade ao longo dos séculos. Estadistas como George Washington, Thomas Jefferson e John Adams não apenas lutaram pela independência do país como também ajudaram a elaborar a Constituição americana e a governar os Estados Unidos. Suas atitudes e escolhas foram determinantes para institucionalizar os princípios e os valores da Constituição, que vigoram há mais de duzentos anos. Suas atitudes e escolhas inspiraram seus sucessores, serviram de parâmetro e de referência para as futuras gerações, que continuaram a saga dos Founding Fathers, e transformaram uma colônia pobre e insignificante numa potência global.

Legado consiste em traduzir os feitos, exemplos e escolhas dos líderes transformadores em valores institucionais que perduram por várias gerações. Sem o arcabouço dos valores permanentes, as pessoas, as instituições e os países são incapazes de converter crises em oportunidades para promover mudanças transformadoras, reformas institucionais e revisões de crença e de atitudes. Sem o norte dos princípios perenes, sucumbimos aos encantos dos modismos, às palavras sedutoras dos demagogos e à ilusão dos atalhos – as falsas armadilhas que oferecem soluções mágicas e inócuas para problemas recorrentes e desafios institucionais. Sem o senso de legado, não há coragem, resiliência e determinação para se enfrentar os reais problemas e para aguentar os períodos de impopularidade e de frustrações inevitáveis durante o processo de mudanças transformadoras, que geram desconforto nas pessoas, obrigando-as a rever crenças arcaicas e a lidar com perdas de poder, direitos e privilégios.

Legado significa renunciar às pequenas vitórias de curto prazo para assegurar os ganhos e o bem-estar das próximas gerações. Algo difícil de perseguir num mundo no qual se preza bens descartáveis, interesses imediatistas e valores efêmeros. Ainda bem que os grandes e pequenos legados – como a celebração das datas históricas ou a degustação do tradicional doce de leite da casa da avó – fazem-nos lembrar de que há coisas mais importantes e significantes na vida do que a busca irrelevante por quinze minutos de fama.

Quando penso no legado de uma obra de arte, talvez a primeira imagem – bastante crua – que me venha à mente seja a do filme super-8, de uns oito segundos, do artista Chris Burden sendo alvejado no braço por um amigo. A ação durou o tempo de um disparo de rifle. Começa e acaba deixando a sensação de vazio, talvez decepção, em quem esperava ver ali um homem agonizante, cujo sangue jorra. Nada disso. A performance de Burden é asséptica, quase minimalista. É uma cena em preto e branco, instantânea, de um rigor métrico que em nada lembra o horror que ataca como obra de arte.

Era 1974, e Burden sentira que levar uma bala no braço numa galeria de arte na Califórnia teria ressonância especial num momento em que soldados tão jovens quanto ele perdiam a vida em conflitos sangrentos do outro lado do Pacífico – o atoleiro bélico que foi a Guerra do Vietnã. Burden me contou anos atrás que achava que essa seria uma ação pontual, rápida e quase indolor pela adrenalina liberada na hora do disparo e pelos cuidados médicos que receberia logo na sequência. Viu depois que as lágrimas de dor que derramara ali se tornariam crises de choro crônicas e frequentes, e que o tiro no braço o condenaria a anos de análise clínica.

Mesmo quem não sentiu aquela dor na carne entende essa performance como rito de passagem, uma espécie de perda da inocência da arte em relação à realidade agreste do mundo. Não entram em jogo manobras de mercado, o papel do mecenas, as formas vendáveis desse mesmo trabalho. A performance entrou para a história fazendo um rasgo, um tiro surdo nas páginas da crítica institucional, talvez um grito no deserto.

Burden poderia ter construído monumentos perenes, indestrutíveis como quis que fosse seu paliteiro de vigas metálicas fincadas no cimento molhado. Dou esse exemplo porque essa obra, do mesmo artista, uma ação em que vigas de metal eram lançadas de um guindaste numa poça de pedra líquida, fora realizada em Nova York e destruída quando o parque de esculturas foi deslocado pela especulação imobiliária. Mesmo suturado, seu braço, naquele instante em que alvejado pela bala, alcançou uma perenidade inquestionável, que deixaria herança maior que qualquer piscina de concreto ou monolito desajeitado.

Sem dúvida, mitos rondam esse e outros trabalhos que não testemunhamos. Mas, talvez todo artista que pense numa obra efêmera saiba que está nessa fragilidade formal a mais sólida de suas chaves de leitura. Difícil esquecer as pilhas de bombons simbolizando o namorado morto de Felix Gonzalez-Torres, uma obra tragada pelo tempo no mesmo ritmo em que o corpo de um morto desaparece na terra. Ou o filme nunca visto de Andrea Fraser, em que um colecionador pagou por uma noite de sexo com a artista.

Nesse caso, mais do que efêmero, Fraser trabalhou a noção de invisibilidade. Um documento informa que houve entre ela e o comprador uma relação sexual mediada por contrato, mas também estipulou que esse vídeo ficaria entre eles. Ela se torna puta de sua obra, escrava sexual por uma noite que serve de lastro simbólico para toda a arte feminista. Efêmera ou não, deixou um legado sobre o papel do suposto sexo frágil na história da arte. Quantas telas de uma Frida Kahlo ou de uma Georgia O’Keeffe valem uma noite de sexo de Fraser em séculos de arte criada por mulheres?

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Brasil: amor e progresso

por Emmanuel Rengade

Parece que os dois únicos ângulos possíveis para se falar do Brasil são, de um lado, o de uma perspectiva social, de desenvolvimento, e, de outro, o de uma perspectiva folclórica, quase romântica, de um país assimilado às suas características culturais mais visíveis. Mas será que isso não é uma visão (muito) redutora?

O Brasil é muito maior que a circunstância de viver – por coincidência – um momento econômico favorável e um pouco irreal, que logo deve acabar. Se nos distanciássemos da linguagem midiática dominante, e se déssemos “um tempo” em falar exageradamente de violência, desigualdade social e trânsito – falas essas fortemente influenciadas pela cansada mídia e seus grandes veículos –, daríamos espaço para a grande força – muito esquecida – que existe nesse país: a humanidade do brasileiro.

A tentação é grande em chamar isso de Brasil “puro”. Prefiro falar apenas em uma certa normalidade, uma atitude equilibrada, realista e inteligente do ser humano perante a vida (especialmente fora dos grande centros urbanos), que o país soube conservar ao longo do tempo. Aqui, ainda é muito fácil encontrar simplicidade e autenticidade, duas das coisas mais fundamentais para o ser humano, muito presentes na alma do brasileiro. Me lembro que tínhamos isso na Europa na época de minha infância, mas já parece que não existe mais. Uma forma de ser mais direita, mais presente, ligada. É como se esta convivialidade simples tivesse sido superada progressivamente pelo desenvolvimento econômico, tirando-nos nossa essência.

Talvez esta humanidade, depois de ter saído da França e morado em outros vários países, seja o real motivo pelo qual escolhi morar aqui. Talvez seja também o motivo provável – ainda que inconsciente – de outros muitos estrangeiros que aqui estão. Afinal, como regularmente me interrogam os taxistas, por que morar em São Paulo quando poderia morar em Paris?

Se tivesse a oportunidade de conhecer nossa presidente, gostaria de lhe propor uma pesquisa para saber o que a maioria das pessoas acha do legado francês que orna a bandeira brasileira. Muitas delas nem entenderiam a questão, ok, mas seria muito pertinente – e nada absurdo – atualizar o lema. (“Ordem e progresso” vem do positivismo francês). Para mim, é muito claro que, se pudéssemos definir o Brasil em duas palavras, essas seriam – simplesmente – paz e amor.

Apesar das tentativas constantes da mídia em nos fazer achar que o Brasil é um país violento, a história mostra o contrário. O Brasil é o único país no mundo que passou por três importantes transformações – independência, fim da escravidão e proclamação da República – quase sem maiores danos. Em qualquer outro lugar, um ou mais desses acontecimentos provocariam mortes, guerras e traumas que durariam gerações, e que, no caso das mais recentes, refletiriam até hoje em suas sociedades. A única guerra que o Brasil vagamente tem lembrança é a do Paraguai, de 1864 a 1970. Desde sempre, o país conseguiu manter seu vasto território em paz, respeitando cada estado com suas políticas e particularidades. Sequer uma força armada consistente o país tem, em comparação a seu tamanho e relevância mundial. Mas não precisa. O Brasil parece não ter inimigos fora do campo de futebol.

A arte da paz certamente vem da herança (essa, positiva e quase nunca citada) de Portugal; para ser mais preciso, da coroa portuguesa. Portugal é um país muito pouco falado na história mundial, sobretudo pelo fato de ter sido uma potência notavelmente pacífica. Sempre fui fascinado pela transição de poder entre Dom João VI e Dom Pedro I. Em 1822, quando o Brasil declarou a independência de Portugal, havia uma possibilidade de guerra, mas, como o imperador do novo país era filho da coroa portuguesa, a questão foi resolvida pacificamente. Mais tarde, a abolição da escravidão pela Princesa Isabel, e, pouco depois, a discreta retirada da família real marcam, mais uma vez, outra transição pacífica relevante, que talvez tenha influenciado o povo brasileiro atual, fundamentalmente não violento, sempre disposto, por natureza, a evitar conflitos. Mais uma vez, a mídia pode até nos fazer pensar que somos um povo passivo, mas não; somos pacíficos.

Quando os abusos governamentais passam dos limites, algo que lemos todos os dias nos jornais e que é assunto em conversas de boteco, o país reage pacificamente. Em outros lugares, bem próximos de nós, coisa semelhante seria motivo para revolução. Por mais que a Ditadura Militar constitua ainda memória viva e triste na cabeça do brasileiro, é importante lembrar que, comparada a épocas semelhantes na Argentina e no Chile, nossa realidade foi relativamente muito menos violenta.

O Brasil é puro amor. Talvez não seja a coisa mais óbvia para quem aqui está inserido, mas, para qualquer estrangeiro que chegue, é natural se apaixonar pela cordialidade, pela gentileza, pelo bem querer. O amor está, literalmente, no ar, e em todo lugar. De norte a sul, no ônibus, no centro, na periferia, na natureza mansa, na água quente, no ritmo, na liberdade, na falta de agressividade, na poesia, na canção. Ele faz bem. Desperta a humanidade, traz confiança, é essencial. Essa herança os brasileiros devem espalhar para o mundo, que grita por ajuda nessa época de fim de capitalismo, tempo em que todos estão vivendo isoladamente, individualistas, e em busca de novos valores; acordando de um mundo que não funciona mais.

Vocês, brasileiros, sinceramente, acham que no resto do mundo é igual?

O Brasil é fundamental para o equilíbrio do mundo. Talvez esse momento de baixa que toma o Brasil seja uma grandíssima oportunidade para rever, relacionar e reorganizar o que não está funcionando. A força de amor do Brasil pode mudar o mundo, porque, atrás dela, existe a intenção positiva, e intenção positiva move montanhas.

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O que você está fazendo aqui?

por Bruno Pesca

“Não sei”. Respondi uma vez a um oficial de imigração, ao pousar em Houston. Antes que ele completasse seu movimento de pescoço e sobrancelha, passando de meu passaporte em sua mesa aos meus olhos, corrigi imediatamente a brincadeira. Não recomendo reflexões filosóficas em meio a interações com agentes da lei, especialmente se forem da imigração nos EUA. Mas a verdade é que, se levada até os limites de sua implicação, é a pergunta mais importante da vida, e, logo, da filosofia, apesar da filosofia geralmente iniciar suas perguntas com por quês (a mesma pode ser lida como “por que você está aqui?”) e da vida jamais parar para nos fazer perguntas.

Não se trata de entendermos a razão pela qual estamos no mundo. Trata-se de decidirmos a razão pela qual estamos nele. Acredito que a maneira mais eficiente de se chegar a essa resposta seja pensar num legado. O que quero deixar para o mundo? Qual o meu papel nisso tudo que vejo? Meu esforço faria falta para alguém? Para que saio de casa todas as manhãs e por que alguém deveria se importar com isso?

Legado não é exatamente resultado. Por exemplo, empresários brilhantes – aqueles que buscam transformar a vida de seus clientes – falam em legado. Seus analistas e consultores de mercado é que falam em resultado. A razão de uma empresa existir, ou de alguém trabalhar nela, não é lucro ou remuneração. Isso é essencial, mas é resultado. Remuneração é pelo emprego, não pelo trabalho. Trabalho é a missão na vida. Animais trabalham. A natureza trabalha. A questão primordial parece ser o que você acredita e prega com o seu trabalho, e, traduzindo para o mundo prático, porque não escolheu um emprego em outra função. E se em meados do século passado era possível e desejável separarmos vida pessoal de vida profissional, esse não é mais o caso.

Veja novamente o mundo corporativo. Empresas modernas trabalham com o conceito de responsabilidade social, que nada mais é que a compreensão de que, para além de fabricantes de sapatos, de exploradores de minério etc., as pessoas são também membros civis da sociedade e têm a obrigação de realizar suas atividades como tal. Empresas são formadas por pessoas, e ganham dinheiro atendendo as necessidades de outras pessoas. Portanto, a tal responsabilidade social faz parte da evolução humana, e já está constatado que a separação das nossas diferentes facetas sociais (empregado, consumidor, cidadão, chefe de família etc.) é falsa, pois somos, cada um de nós, uma figura só, que, integrada a outros, forma uma outra coisa só.

Menosprezar a função vital do trabalho evocando a felicidade pessoal é conveniente aos que não curtem o que fazem. A teoria aí é que trabalho não é importante, pois, antes dele, importa mais sermos caras legais, isto é, bons pais, bons filhos, bons amigos. Mas pessoas legais não têm uma paixão? Não têm ideais e sonhos? O resultado disso parece ser inexoravelmente frustrante, não importando o quanto a pessoa tente convencer a si mesma de que seja um herói familiar.

Família não deve ser escudo. E não podemos nos esquecer do significado original da palavra “profissão”, nada mais do que aquilo que alguém professa, acredita e escolheu dar ao mundo. Quer mesmo dizer ao seu filho que você veio ao mundo apenas para cuidar dele? E ele veio para quê, então? Para ser o último imperador? Nenhum animal selvagem faz isso – apesar de zelar até as últimas consequências por seus filhotes –, pois existe o resto da floresta e o equilíbrio do ecossistema.

Se queremos mesmo abandonar a separação de nossas horas e misturar tudo, precisamos amar o que fazemos com o mesmo ímpeto que amamos nossas famílias, pois só assim nossos momentos de trabalho valerão tanto quanto os de lazer e abstração. Mas o que consigo fazer por amor e não por um contracheque? A resposta precisa da definição da sua missão na Terra, e a melhor maneira de defini-la é tentar definir que legado gostaria de deixar.

Se você ainda não sabe, dizem que o importante é jamais parar de buscar. Nem sempre é fácil descobrir qual é nossa missão no mundo, e nem sempre é fácil compreender o legado de quem já se foi. Os chineses dizem que ainda é cedo para compreendermos o legado da Revolução Francesa no mundo ocidental. Os brasileiros dizem que é tarde para ainda acreditarmos na nação do futuro. Nem um nem outro importam, pois explicações podem ser tão subjetivas quanto a grandeza de seu legado. Por isso, perseguir algo grandioso é até mais importante que alcançá-lo. Por isso, a melhor unidade métrica para o homem é o legado, que só pode ser medido por quem vem posteriormente, poupando-nos de um juízo final antecipado, enquanto ainda estamos sobre carne e osso e aptos a prosseguir.

Não sei que humilde legado poderia tentar deixar ao leitor a não ser insistir nesse conselho de vida tão óbvio. Procure incansavelmente sua melhor missão e acredite estar construindo seu melhor legado. Poupe suas explicações mais profundas aos poucos a quem as deve, que são os agentes de imigração, os filósofos, seus herdeiros e você mesmo.

Tire-me somente uma pequena curiosidade: o que você está fazendo aqui?

#13Qual é o seu legado?ArquiteturaDesign

Em construção

por Eduardo Andrade de Carvalho

Não se constrói um edifício de vinte andares em caráter provisório. Não se desenvolve um “bairro planejado” para que seja replanejado duas décadas depois. Não se faz um shopping para que um dia o edifício que o abriga tenha uma finalidade mais adequada. Um prédio, um bairro e um shopping – como praticamente tudo que se inclui em construção civil – são feitos para durar quase para sempre. Mal projetados arquitetonicamente, podem ser uma calamidade urbana muito mais grave do que estética.

Nos últimos dez anos, foram construídos em São Paulo centenas de condomínios-clubes. Esses projetos viram as costas dos prédios para a rua e se fecham num mundo supostamente autossuficiente, seguro e feliz. Mas não abrem espaço para o comércio que todo bairro agradável precisa – padarias, farmácias, bares etc. – e que estimula a circulação de pedestres nas ruas. Ao praticamente obrigar que seu morador use carro para tudo, esvaziam as calçadas – e, portanto, a cidade fica mais triste e mais perigosa.

O menor problema desse tipo de projeto talvez seja a aparência, a questão estética. Com relativamente pouco dinheiro, é possível transformar uma fachada neoclássica numa opção menos cafona. Mas é preciso demolir um edifício inteiro para consertar sua implantação. Projetos radicalmente pensados com muro – quer dizer: com o muro sendo um aspecto fundamental, como é o caso desses condomínios-clubes – nunca vão funcionar sem eles.

O argumento mais comum em defesa de maus projetos é o de que “o cliente quer”. Essa é uma tentativa de transferir uma responsabilidade que é, antes de tudo, de quem faz. E, além disso, não é verdade. Se continuarmos assim – enclausurando a cidade entre grades e exigindo que se use carro para tudo –, vamos afastar cada vez mais São Paulo do modelo de cidade ideal. Vamos abandonar nossas ruas e nos mudar para o subúrbio – porque o condomínio-clube é isso: o subúrbio dentro da cidade. Detroit, que inventou essa ideia, acabou de falir. E Manhattan – organizada com o princípio oposto – continua agradável, interessante e economicamente em ebulição. Onde os clientes que moram num condomínio-clube passam as férias, Detroit ou Nova York?

Na abertura do livro Civilização, que é um passeio pela história da arte desde o Renascimento, Kenneth Clark, que foi diretor do British Museum, tenta responder como é possível reconhecer uma sociedade civilizada. E conclui que talvez a forma mais justa de se avaliar uma sociedade seja pelos seus prédios. Porque é possível que um espírito sofisticado escreva uma obra-prima no meio da barbárie. Mas a arquitetura, para ser executada, exige a combinação de muitos recursos e interesses: capacidade técnica e dinheiro têm de se alinhar com ambiente jurídico e interesse político. Não é possível construir um edifício sozinho. Uma sociedade que é capaz de produzir uma obra-prima arquitetônica, portanto, provavelmente tem certo consenso sobre assuntos fundamentais e um “senso de permanência” que, segundo Clark, é o que caracteriza uma sociedade civilizada. Queremos mesmo ser julgados como uma sociedade que tem medo das ruas de sua cidade, que vive no trânsito, em carro blindado, e que tenta reproduzir em seus prédios um pastiche de uma época que não é a nossa?

Não acho que a solução seja espalhar indiscriminadamente obras-primas da arquitetura por São Paulo. Obras-primas são exceção, claro. Uma cidade com ocupação consistente de prédios com bons projetos arquitetônicos já pode ter uma vida urbana maravilhosa. Para citar apenas vizinhos (ou quase), México, Uruguai, Chile e Colômbia têm uma produção recente de edifícios residenciais com arquitetura de alto nível. E existe hoje, no Brasil, uma nova geração de arquitetos extremamente talentosa, que estudou nas melhores escolas do mundo, trabalhou nos melhores escritórios – e que tem concorrido ombro a ombro com importantes escritórios em concursos internacionais. Quer dizer: a princípio, estamos econômica e tecnicamente preparados para fazer prédios melhores do que os que fazemos hoje.

E parece que é o que a cidade quer. São Paulo está cansada de metrô insuportavelmente lotado, de trânsito na Marginal, de motorista que guia ônibus como se carregasse batatas, de ponto de ônibus com propaganda gigante e sem informação das linhas, de desrespeito ao pedestre e ao ciclista etc. Nossos prédios não podem simplesmente se isolar da cidade e tentar se transformar em mini Shangri-Las. Eles também têm a responsabilidade de melhorá-la: sendo mais generosos, mais bonitos, mais divertidos. Porque os prédios que construímos hoje são em grande parte responsáveis pela cidade em que vamos viver no futuro.

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Projeto Instagram

por Isay Weinfeld