#10FuturoCulturaLiteratura

Certezas

por Marina Lima

Os artistas da vida precisam de tempo –
para moldar seus traços, pegadas e sons.

Mas a palavra esperança me remete à espera; uma espécie de subordinação à não-ação,
atrelada à religião.

Disso não entendo, então vou direto pras certezas.

Outro dia me tomaram como pessimista…
Tudo bem, confessei não gostar da palavra
esperança, mas pessimista? Não,nunca! Longe de mim.
Se decretarem fim para os finais felizes, vou querer descer na hora.

Digo é que, vendo grandes artistas atuando em seus campos de batalha, ganhamos Certeza.

Estímulos desse porte invocam a coragem da gente.
E assim é possível enxergar por dentro da carne ou diante do breu.

Se ganho certeza, não há espaço para esperança.

Em que altura
Deve-se abrir mão
Das aventuras, dos riscos e da paixão
Se estamos vivos
Temos direito de sentir
Será bonito ficar de longe e denegrir

A juventude
E os com fogo no coração
Quando as doenças e os medos são em vão
Em que medida
Envelheceremos bem
Olhando os outros
Sem douçura e com desdém

Cada um é único no mundo
E nisso todo mundo é igual
Uns resolvem tudo num mergulho
Outros seguem em busca de um ideal

Me deixe quieta
Com a minha solidão
A vida é minha e também meu coração
E se você já encontrou a sua parte
Me deixe em paz atrás da parte que me cabe.

#10FuturoCulturaSociedade

Apenas uma questão de tempo

por Leticia Lima

Se eu falar de tempo, sem dúvida todos entenderão ao que me refiro, mas, se pedir uma definição do mesmo – aí o bicho pega. Afinal, o que é o tempo?

Os gregos antigos, por exemplo, tinham duas palavras para explicar esse fenômeno tão abrangente e essencial: chronos e kairos. Chronos era pai de Kairos, e, de certa forma, pai do universo. Representa o tempo cronológico, ou sequencial, que pode ser medido. Já Kairos, seu filho, era aquele momento oportuno, em que algo especial acontece. Chronos era quantitativo; e Kairos, qualitativo. É interessante descobrir que, na história de ambos, Chronos engole seu próprio filho, num ato de canibalismo não incomum à mitologia grega, mas especialmente adequado neste caso: Chronos era o criador do tempo e, logo, de tudo o que nele está compreendido. E é impossível fugir do tempo; existir fora dele. O ato de Chronos nada mais representa do que um gesto antropofágico. Afinal, somos todos parte do tempo – e devorados pelo tempo.

O tempo pode ser definido apenas como uma sensação derivada da transição de um movimento. Nós o pensamos como algo externo à nossa experiência, mas a verdade é que sempre será definido de forma idiossincrática. Somos, a princípio, todos capazes de reconhecer e ordenar a ocorrência dos eventos percebidos pelos nossos sentidos; porém, seriam nossos sentidos de confiança? O tempo existe independentemente de nossa percepção?

Na filosofia, tradicionalmente, existem dois campos opostos: os realistas sobre o tempo defendem sua existência separadamente da mente humana. Os antirrealistas, principalmente os idealistas, negam, duvidam ou problematizam sua existência separada. Kant, um dos defensores da filosofia idealista, nega a realidade do tempo. Para ele, trata-se de noção a priori, que nada designa além de determinada característica da forma com a qual nós humanos recebemos informações através dos sentidos. As noções de passado, presente e futuro, assim como antes e depois, são possíveis porque percebemos o tempo como sequencial, acreditamos que o passado seja irreversível e o futuro, influenciável.

A ciência, entretanto, comprovou inúmeras vezes que nossa percepção e nossos sentidos podem nos enganar (e o fazem com frequência). Quem nunca teve uma experiência em que o tempo parecia quase parar, ou passar num piscar dos olhos? Dizem que, antes da morte, a vida nos passa aos olhos como um filme – mas como uma existência inteira pode caber no espaço de instantes? O tempo seria então apenas um evento psicossomático, influenciado por variáveis inerentes a cada indivíduo?

Não haveria uma definição científica mais precisa a respeito – uma que finalmente estabelecesse que o tempo simplesmente é? Pois bem: o físico Albert Einstein, dono de vasta cabeleira e genialidade, deu ao mundo a teoria da relatividade, e, desde então, o tempo vem sendo considerado como uma quarta dimensão do continuum espaço-tempo do universo.

Aãh?

Muito básica e resumidamente, Albert Einstein disse que o tempo é relativo. Os objetos não o vivenciam da mesma forma – quando um corpo está em movimento, o tempo lhe passa mais lentamente. Em outras palavras, a dimensão do tempo está ligada à do espaço. Na velocidade da luz, a máxima velocidade no universo, ocorre o mais espantoso: o tempo simplesmente deixa de passar! É como se a velocidade do espaço retirasse tudo o que fosse possível da do tempo. No outro extremo, para quem está parado, a velocidade está toda concentrada na dimensão do tempo.

Tem mais. Alguns anos depois, Einstein desenvolveria a chamada Teoria Geral da Relatividade. É assim: a gravidade do Sol curva o espaço ao seu redor e mantém a Terra em sua órbita. Já a força que prende as pessoas ao chão é a curvatura criada pela Terra no espaço ao seu redor. Einstein também descobriu que, quanto maior a gravidade, mais lento é o ritmo da passagem do tempo. E então surgiu o conceito da “curvatura no tecido espaço-tempo”, que deu a muitos escritores de ficção-científica material de sobre para viajar no passado e no futuro.

A religião também tem muito a dizer. Para nosso interesse, a mais importante distinção feita pelas principais religiões do mundo ao definir o tempo consiste no linear versus o cíclico. Em certas culturas, como a budista e a hinduísta, há um conceito da roda do tempo, mensurado de forma cíclica. Os ciclos para seres vivos individuais se repetem entre o nascimento e a morte, podendo, às vezes, ser influenciados pelo comportamento no giro anterior (como o Karma). Em algumas culturas, como a dos Maias, existem ciclos maiores, do próprio universo, que também se repetem. Já o conceito judaico-cristão estabelece o tempo como linear. O universo tem um começo (um ato de criação de Deus), um meio e, especialmente para os cristãos, um fim. É interessante notar, porém, que Deus é infinito e, portanto, existe para além do tempo.

Também tem a astrologia, sistema milenar de crenças no qual as posições relativas dos corpos celestes no momento específico de um nascimento podem prover informações sobre personalidade, relacionamentos e até destino. O tempo (e espaço) no qual se nasce determina a vida! A astrologia é chamada de superstição por alguns, ciência por outros, mas, até então, foi incapaz de comprovar sua eficácia. Seja lá superstição ou pseudociência, leio meu horóscopo quase diariamente, e já fiz meu mapa astral.

E já descobri porquê… Ao ser reeleito presidente dos Estados Unidos, Barack Obama fez um discurso no qual declarou: “Sempre acreditei que a esperança é aquela teimosia dentro de nós mesmos que insiste, apesar das evidências ao contrário, que algo melhor sempre nos aguarda, desde que tenhamos a coragem para continuar buscando, trabalhando, lutando”. Foi então que percebi o quanto a esperança é algo temporal. Trata-se de um elemento do futuro – e sem a ideia de futuro não pode haver esperança.

Seja linear ou cíclico, psicossomático ou uma quarta dimensão, para mim o tempo é, e sempre será, a ideia de que posso aprender com meu passado para agir no presente e ter um futuro melhor. O tempo permite aflorar minha esperança.

#10FuturoCulturaSociedade

Extacity

por Marko Brajovic

As pílulas Extacity interiorizam as questões fundamentais da cidade de São Paulo: ter medo, a dificuldade de ver o belo no cotidiano urbano, o uso excessivo do carro, e não caminhar na mesma, como também não considerar a urgência fundamental de novos espaços públicos, revalorizar os rios e questionar umas arquiteturas de caráter duvidoso.

Patologias tanto urbanas quanto pessoais e coletivas, uma forma mentis que reflete na forma urbis e vice-versa. A modificação de ambos os ambientes (exterior e interior) finalmente depende de nossa atitude cotidiana tanto ética quanto estética em se relacionar com a cidade como organismo coletivo.

#10FuturoCulturaEducação

Era um garoto, que como eu, amava educação

por Carla Mayumi

A primeira vez que vi o André foi numa foto. Lá estava ele, em plena avenida Paulista, segurando um cartazinho onde se lia a palavra “sorria”. Na foto, conheci o sorriso de orelha a orelha que passaria a ver com frequência. Mais de um ano depois, me vi ao lado dele, na mesma avenida, segurando um cartaz em que estava escrito “qual a escola dos seus sonhos?”. Virei pra ele e falei: “Acabei de me dar conta agora de que te conheci através de uma foto segurando um cartaz aqui”. Ambos sorrimos. O André é assim. Tem um poder se mobilizar pessoas quase sem que percebam. Talvez sequer ele perceba. Com aquele sorriso, os olhos muito abertos, serenidade e palavras profundas, quer, verdadeiramente, resolver alguns dos problemas do mundo.

Em 2011, tive a felicidade de conduzir, com meus colegas da Box1824, uma grande pesquisa intitulada Sonho Brasileiro. Investigamos os sonhos dos jovens e suas aspirações com relação ao Brasil, e foi assim, numa foto tirada durante a pesquisa, que o André apareceu para mim pela primeira vez. Desde que o conheci fui me envolvendo com seus projetos, quase sem pensar, fascinada por aquela vontade de mudar o mundo “na hora do almoço”, como escreveu numa matéria da revista Vida Simples.

Juntos e com mais uns quinze voluntários, organizamos um TEDx chamado Jovem Ibira, em novembro de 2011. Atualmente, o mesmo grupo, com mais algumas pessoas que foram chegando, conversa sobre o próximo TEDx, cuja licença está em nome do André e que vai se chamar TEDxSéed – uma brincadeira com o nome Sé (um local em São Paulo) e com a palavra seed, semente em inglês, e ainda “ed”, de educação.

A arte das palavras é algo que estimula esse jornalista recém-formado. Aliás, cedo ele entendeu que só sabe falar bem e escrever bem quem sabe pensar bem. Por isso, sempre buscou aprofundar seus conhecimentos, especialmente em filosofia, história e literatura. Conseguiu uma bolsa para fazer cursos – esteve em mais de cinquenta – em uma instituição reconhecida e sofisticada. A bolsa de estudos é fruto de uma carta de próprio punho que enviou, quando tinha dezoito anos, para o fundador da escola.

Um dia, passada nossa aventura do TEDx, André me chamou para uma conversa. Queria me contar de seus novos projetos. Naquele dia, descobrimos uma paixão em comum e começamos a falar da nossa vontade mútua de mexer com educação. Sempre interessado pelo assunto, queria se dedicar de corpo e alma ao tema que, segundo ele, é essencial para que as pessoas alcancem outro estágio de autoconhecimento. Tendo estudado em escolas públicas na periferia de São Paulo, viveu uma realidade negativa, que quer mudar. “Não entendo porque a jornada de educação que me ofereceram fecha os olhos para a beleza da vida e o encantamento com o mundo” – desabafa. Intuía que o processo de aprendizagem poderia ser muito mais rico em significado, e certamente muito mais apaixonante para alunos e professores.

Enquanto a gente mirabolava o que poderíamos fazer juntos, recebemos um chamado, quase do além de tão em sintonia com o que pensávamos. Eduardo Shimahara me convidou para trocar uma ideia sobre seus sonhos ligados à educação. Perguntei se poderia levar o André ao encontro. Foi ali que começou uma nova fase – a atual – das nossas vidas.

Um dos sonhos do Shima era escrever um livro sobre escolas inovadoras. Abraçamos o sonho, que virou nosso também. Hoje somos Shima, André, Carla e Camila – o Coletivo Educ-ação – e estamos em pleno processo de escrever o livro desejado. O talento de artesão das palavras nos levou a escolher o André para ser o escritor do livro.

Quando nos demos conta, nosso sonho tinha virado uma jornada para alguns países ao redor do mundo em busca de projetos de educação inspiradores. O projeto do livro consiste em visitar presencialmente doze iniciativas planeta afora – três delas no Brasil – para investigar o que pode inspirar os brasileiros nos nossos modelos de educação. O André já visitou quatro destas iniciativas, três das quais na Europa, num processo de imersão que durou quatro semanas e em que entrevistou mais de setenta pessoas. Desde julho, está em um mergulho profundo nas vidas e mentes de quem está por trás das instituições: aqueles homens e mulheres que as criaram e os que estão vivenciando seu cotidiano. Uma gama de pessoas está sendo ouvida, dos fundadores aos alunos, professores e pais. Conteúdo mais do que suficiente para que educação tenha virado o ar que respira.

Nossas conversas agora giram em torno do que vamos aprendendo nessa jornada, que já cobriu sete das doze iniciativas que estarão no livro. Quando nos encontramos, falamos das experiências transformadoras dos alunos do YIP, programa sueco que convida os jovens a pensar sobre sua missão no mundo e que, para isso, promove encontros com um novo especialista a cada semana. Falamos da Green School, que recebe alunos de todo o mundo em uma escola feita de bambu, onde as aulas temáticas são o jeito que os professores têm de fazer os alunos se apaixonarem pelo que aprenderão. E assim, aos poucos, André vai descobrindo que existem, sim, maneiras de dar um novo sentido ao processo de aprendizado e que a educação pode abrir os olhos para as belezas do ser humano e do mundo. E sua história vai se entrelaçando com a transformação que quer propor. Em 2013, junto com o Coletivo Educ-ação, será o autor de um livro sobre novos modelos de educação.

Essa é uma pequena parte da história de André Gravatá, que se dedica de coração a tudo o que faz. Um dia ele me deu um livro de presente. O volume veio cheio de post it colados nas páginas, que “conversam” comigo enquanto leio. Esse é o jeito André de ser e de convencer… Cuidado quando encontrá-lo. Ele pode levá-lo, também, a acreditar que consegue mudar o mundo, se quiser.

#10FuturoCulturaSociedade

Rumo a Ítaca

por Helena Cunha Di Ciero

(…) mas não apresse a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na Ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela Viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te .
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E agora, sabes o que significam Ítacas.

Constantino Kabvafis, O quarteto de Alexandria

Sempre adorei as festas de réveillon. Todos de branco, se abraçando, desejando que o próximo ano seja repleto de coisas boas. Ano novo, vida nova, possibilidade de recomeço. Bem vestidos, de roupa nova branca, contemplamos o que está por vir, celebrando. Recebemos o novo ano como quem conhece um novo amor, acendemos velas, brindamos a ele, oferecemos flores, cheios de esperança em que dessa vez seja melhor.

Existe algo de encantado no futuro. Algo mais iluminado do que o agora. Sempre há alguma idealização sobre o momento que não estamos vivendo. O futuro obscuro vem com um dever: lá, naquele lugar, serei feliz. Quando me casar, quando concluir um projeto, quando tiver filho, quando comprar um apartamento. E se não acontecer? E se for diferente?

Tanto o passado quanto o futuro ficam reservados numa espécie de altar em nossa mente. O passado, por ter sido meu, acaba tendo um valor nostálgico. Meu pai dizia: não brinque com o passado; ele é muito perigoso, às vezes muito sedutor. É muito fácil virar refém do lugar onde não fui feliz, numa condição de vítima privilegiada, paralisada, revendo o que ficou para trás. Deixando de dar lugar para o agora, remoendo uma condição que não mais existe.

Penso que o mais desafiador é poder se movimentar no presente, não apenas em direção ao futuro, mas colocando o passado em seu devido lugar. Resignificando-o. Dando outro sentido para a vida que tive até então, acabo colorindo-a com um tom mais vivo. Assim, me locomovo com mais tranquilidade em minha história. Transito pelas minhas memórias, visito-as, como um espectador que revê um filme e se aproxima de uma cena com outro olhar. Este seria o verdadeiro preparo para o que vem à frente. Para olhar ao que virá adiante, é preciso leveza acima de tudo. Existem bagagens que levamos e que são desnecessárias.

Nosso arsenal para a luta da vida são nossas vivências, aquilo que armazenamos, nossa história. E obviamente isso também agrupa os momentos duros, tristes, bem como aqueles em que fui humana, imperfeita. Fui trazida até aqui também pelos meus momentos ridículos, bobos, inseguros, aflitos. E pela forma como os enfrentei. Aí, nesse cantinho, mora a coragem e a esperança. Esse cantinho verde, cor do trevo de quatro folhas, o lugar onde nos perdoamos e rimos de nós mesmos, com ternura. Aceitamos resignados o nosso papel errante. E assim podemos seguir.

Henri Bergson, em O Riso, coloca que nada desarma mais do que o riso. Rimos daquilo que é humano, imperfeito.

Rir de nós mesmo tem a ver com a possibilidade de nos movimentarmos em nossa imperfeição, de nos flexibilizarmos frente à imagem que gostaríamos de passar e aquilo que somos. Portanto, aí mora a possibilidade de reinvenção.

Não há nada mais insuportável do que aqueles que não riem de si mesmos. Nada mais persecutório do que a seriedade, aquele script a ser seguido, rígido, em linha reta. Nada é tão estático quanto o eletro que mostra que a vida se encerrou. O que simboliza a vida é o movimento, seus altos e baixos.

Não existe um passado feito só de coisas boas, assim como não é possível um futuro ideal. Existe o futuro possível. E este não precisa ser perfeito para ser bom. Nem a gente.

Sendo assim, o que resta é: darmos boas vindas às aventuras que os novos ciclos nos reservam. Feliz ano novo.

#10FuturoArteCinemaCulturaLiteratura

Sci-fi 110

por Jair Peres

“A curiosidade é mais importante que o conhecimento”
– Albert Einstein

Quem nunca sonhou com carros voadores? Clonar a si mesmo, viajar a Marte, lutar com alienígenas, voltar no tempo, ficar invisível ou até criar vida através de raios e eletrodos? O que aconteceria se o transporte molecular e o poder da mente fizessem parte das nossas vidas?

Você não está só. A ficção-científica existe para atender exatamente a isto. Desejos aparentemente absurdos, mas baseados em conceitos científicos – comprovados ou não – ou invenções, tornam-se “reais”. Os outros gêneros da ficção podem focar em momentos da existência humana e exaltá-los. Mas somente a ficção-científica muda a percepção da realidade, podendo recriá-la completamente.

Surgida como forma de literatura no século XIX; não por acaso, nos primeiros anos da revolução industrial. Relatos minuciosos baseados na ciência disponível à época e muita extrapolação mental formam a base da narrativa. Livros clássicos como Frankenstein e O Médico e o Monstro, por exemplo.

Considerado um dos pais da ficção-científica moderna, Julio Verne nasceu em 1828, filho de família francesa abastada. Testemunha ocular de alterações radicais no seu tempo, conseguiu manter a sanidade e nos deixar obras incríveis, divertidas e instigantes (Vinte mil léguas submarinas e Volta ao mundo em oitenta dias, entre outras). Além de escritor, foi marinheiro e explorador. Tentado a extinguir sua curiosidade, viveu aventuras que inspiraram suas obras. Ávido leitor, sua imaginação não tinha limites. Conseguiu prever e transcrever em seus livros muitas das conquistas que a ciência moderna realizaria ao longo do tempo. Seu trabalho tinha como base a física e as descobertas do final do século XIX, em contraponto ao seu contemporâneo H. G. Wells que, segundo Verne, “apenas inventava”.

Em uma época em que descobertas, ciência e tecnologia ameaçavam eliminar a capacidade humana de surpreender-se, Verne e Wells lançaram, em suas obras, as bases da ficção-científica moderna, traduzindo os anseios mais pueris em aventuras e possibilidades incríveis.

Em sua gênese, o cinema bebeu e muito nesta fonte. Com sua invenção patenteada, o cinematógrafo, os irmãos Auguste e Louis Lumière fizeram história. A projeção de seu curta documental A saída da fábrica Lumière em Lyon, em 1895, mudou o mundo e oficialmente inventou o cinema. Na sala de exibição estava Georges Méliès, mágico e ilusionista. Algum tempo depois, tornou-se o primeiro grande produtor de ficção, gênero inexistente até então. Diferente de tudo o que se experimentava em cinema, Méliès criou e dirigiu 555 filmes, incluindo o inovador Viagem à lua (1902). Idolatrado mundo afora, criou mundos fantásticos e técnicas de fotografia e filmagem utilizadas à exaustão no cinema desde então. Charles Chaplin o chamava de “o alquimista da luz”.

A aceitação da ficção nas telas foi enorme e o mundo queria mais. Desde sua origem, o cinema é arte e também comércio. A indústria cinematográfica cedo se transformou em negócio lucrativo e a ficção, sua maior fonte de renda. Hollywood, ainda em gestação, começava a produzir filmes desenfreadamente e seus gêneros, que eram basicamente dois (documental e ficcional), desdobravam-se em novas modalidades de forma exponencial.

Gradativamente ao longo do século XX, o interesse do público apontou para o crescimento gigantesco do mercado de cinema de ficção-científica. Hoje, pelo menos cinco entre as dez maiores bilheterias de todos os tempos são de produções de ficção-científica.

De Viagem à Lua a Prometheus (Ridley Scott, 2012), a evolução técnica de efeitos especiais, tramas e abordagens, e a própria estrutura narrativa dos filmes mantiveram-se conectadas aos anseios de um futuro hipotético, confirmando a fascinação das pessoas sobre o que está por vir. Atentos às descobertas e invenções que grandes centros de estudo e pesquisa têm feito ao longo do século, produtores e cineastas criam roteiros que as têm como ponto de partida para histórias que, em geral, refletem o momento em que estão inseridas. Algumas previsões deram certo, outras talvez nunca aconteçam, mas os roteiros que tomam os conhecimentos ou as teorias mais aceitas pela comunidade científica e os levam a um novo contexto para mostrar suas implicações, ou que constroem um mundo em torno de um conjunto particular de fatos, conseguem comunicar-se com seu público, pois desencadeiam a imaginação especulativa.

Uma das maneiras de fazer com que a projeção de teorias científicas e as emoções humanas convirjam é refletir o espirito do tempo nos filmes – algo comum em outros gêneros do cinema. Inserções de realidade e questionamentos sociais em diferentes doses marcaram a ficção-científica através das décadas.

Em 1927, em meio à turbulência socioeconômica na Europa do pós Primeira Guerra, o diretor alemão Fritz Lang lança Metrópolis, sua obra-prima muda de 153 minutos (!). Questionava o sentimento humano perdido em meio à crescente mecanização na sociedade. Utilizando a tecnologia e a arquitetura de um distante século XXI, e adicionando a mobilização social que o próprio diretor via pipocar ao seu redor, Metrópolis torna-se um marco na história da ficção-científica.

Movimentos surgem em várias partes do mundo e o cinema encontra uma assimilação como linguagem. O público aumenta. A importância deste crescimento de exibição fez com que a ficção-científica extrapolasse a literatura e o cinema e migrasse ao rádio, às revistas e às histórias em quadrinhos. Nesta época, em 1938, o jovem Orson Welles produziu uma transmissão radiofônica da obra A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells. A transmissão espalhou uma onda de pânico nos ouvintes, que imaginaram a invasão do planeta por seres extraterrestres. O sucesso abriu as portas de Hollywood a Welles e, em 1941, ele dirigiria Cidadão Kane – para muitos, o melhor filme de todos os tempos.

De Metrópolis ao fim dos anos 1950, a ficção-científica deu alguns tropeços e explorou temas recorrentes, como a Grande Depressão, a Segunda Guerra, a histeria da Guerra Fria e a crescente exploração espacial. Vários filmes eram metáforas tão claras de seu tempo que ficaram datados. Bons exemplos deste período são Invasores de Marte e O dia em que a Terra parou (cujo remake, de 2008, mudou o foco do filme, indo da corrida armamentista para o lado dos danos ao meio-ambiente).

Difundindo ainda mais a ficção-científica, em 1962 estreia na TV uma série de animação que solidificou a visão do futuro com carros voadores, robôs servis, cidades suspensas e eletrodomésticos que faziam de tudo e eram computadorizados: Os Jetsons, série adorada por toda uma geração que queria ir ao espaço e sonhava com a utópica sociedade que suprisse todos seus desejos. O questionamento do status quo estava nas ruas. De tão fantasiosa e divertida, a série atravessou décadas de reapresentações e inspirou sátiras, como Futurama, de 1999.

No meio da década de 1960, os temas da idade de ouro da ficção-científica cederam lugar à busca de uma consciência elevada e da revitalização dos valores morais. Entre 1965 e 1966, François Truffaut e Jean-Luc Goddard flertam com o gênero, focando no resgate da humanidade. Em Fahrenheit 451, Truffaut evoca a caça aos comunistas nos Estados Unidos em seu filme pirofágico. Já em Alphaville, Goddard aborda a crescente mecanização da sociedade, com uma roupagem de filme noir sci-fi. No mesmo ano, estreia nos EUA a serie de TV Star Trek. As aventuras espaciais da nave Enterprise, com o capitão Kirk e Spock (e seus comunicadores que inspiraram o desenvolvimento dos atuais telefones celulares), fizeram história. Mas os horários desencontrados e a falta de foco da NBC fizeram com que a série fosse cancelada após três temporadas. O sucesso mundial veio com as reprises incessantes mundo afora. O programa era sério na sua discussão sobre questões sociais contemporâneas em um cenário futurista. Dezenas de séries tentaram emular as características de Star Trek, mas sem o mesmo sucesso.

Em 1968, Stanley Kubrick dirige um dos filmes mais emblemáticos do gênero, 2001: Uma odisseia no espaço. Escrito em parceria Arthur C. Clarke, e com um realismo científico notável, o filme aborda a evolução filosófica do homem através da saga da nave Discovery One até Júpiter. Ao contrario dos macacos do início do filme, no espaço o homem não controla suas ferramentas. O embate entre o computador HAL e o astronauta Bowman é antológico. No mesmo ano, O planeta dos macacos fazia uma crítica aberta à corrida nuclear da Guerra Fria e foi o primeiro filme de sci-fi que teve continuações, abrindo caminho para as subsequentes cine séries.

Exatamente no ano de 1970 é lançado THX 1138, de George Lucas. Uma ode pessimista ao futuro dominado pela tecnologia. Os anos seguintes viram um planeta em profunda transformação econômica, com crises políticas e sociais. Ditaduras surgiam e caiam, não sem antes presenciarmos banhos de sangue. Andrei Tarkovski lança dois socos no estômago, Solaris, de 1972 (que teve um remake trinta anos depois, por Steven Soderbergh), e Stalker, de 1979 (sobre a busca de um paraíso interior). Uma profusão de ótimos filmes discute o resgate de valores éticos (Star Wars), a falta de petróleo (Mad Max), contatos com ETs (Contatos imediatos de terceiro grau) e corporações monopolistas (Rollerball). O medo do “outro” e o valor da vida formam a base da discussão ética do cru e definitivo Alien, de Ridley Scott.

Em 1982, estreia Blade Runner. Baseada na obra de Phillip K. Dick e também dirigido por Ridley Scott, é um filme noir com estética cyberpunk, o que o distancia dos clichês do gênero. Chuva ácida e ciborgues replicantes questionando a mortalidade inauguravam a década de 1980, marcada pelo fim da idade industrial e o início da era da informação. Tudo entrava neste liquidificador cultural. Era o início da fabricação de computadores pessoais, popularização de walkman e videocassetes, e rotina de vôos de ônibus espaciais. Socialmente, o mundo também sofria várias chacoalhadas e o cinema de ficção-científica se utilizava de todos estes ingredientes. O futuro era a tônica da época. A cine série De volta para o futuro, dirigida por Robert Zemeckis em 1985, foi um marco da década. Esta história de viagens no tempo, rock ‘n’ roll, romance e muito humor conquistou gerações de fãs. E.T., Duna, Robocop, Exterminador e O vingador do futuro, ambos com o Governator Arnold, também marcaram o período. Akira, de Katsushiro Otomo, sacudiu as bases da animação de sci-fi, com sua revolta juvenil, motoqueiros mutantes e polícia corrupta após a Terceira Guerra Mundial.

No início dos anos 1990, o mundo estava otimista com o futuro, o crescimento econômico do primeiro mundo era robusto e constante, a União Soviética ruíra e a democracia “vencera”. Paralelamente, terrorismo, fome, guerras étnicas, intolerância e crises em países em desenvolvimento aumentavam. Embalado na paranoia da desconfiança nos governos, estreia na TV, em 1993, Arquivo X, que por nove temporadas insuflou o público com uma trama muito bem conduzida e recheada de frases como “The truth is out there” (“A verdade está lá fora”) e “Trust no one” (“Não confie em ninguém”). Em meio às descobertas sobre manipulação genética que culminaram na clonagem da ovelha Dolly em 1996, o filme Jurassic Park (Steven Spielberg, 1993) dá o tom da década com o receio dos perigos do descontrole da clonagem. Johnny Mnemonic, 12 Macacos, Independence Day, MiB, Gattaca, O Quinto Elemento são outros exemplos de produções desta época. Em 1999, é lançado Matrix, que, com acrobacias espetaculares e efeitos especiais inéditos, discute a liberdade de escolha humana em meio à simbiose digital que se avistava com o crescimento da internet e a popularização da tecnologia.

A década de 2000 foi marcada pela revisitação a temas, autores e discussões antigas. Uma reciclagem criativa que, salvo por algumas produções realmente inovadoras, foi um tanto enfadonha. Sinal dos tempos, momento em que a história do mundo foi reescrita com o recrudescimento de ações terroristas, questões de causa e efeito, crises econômicas profundas e a aceleração da dependência tecnológica. Em 2001, Stanley Kubrick volta à baila no filme A.I. Inteligência Artificial, de Steven Spielberg. O roteiro inacabado de Kubrick, sobre máquinas com sentimentos, dá uma nova roupagem à clássica história de Carlo Collodi – Pinóquio. Em 2002, Spielberg visita a obra de Phillip K. Dick ao dirigir Minority Report que, por sua vez, inova na interpretação do embate entre determinismo e livre-arbítrio (apesar da presença de Tom Cruise). O cinema mundial tem bons exemplos de crossovers de ficção-científica com outros gêneros, como O Hospedeiro, de Bong Joon-Ho, de 2006, que mistura comédia, horror e denúncia ambiental na medida. Alguns exemplos de produções que espelharam as preocupações da década: Eu sou a lenda (epidemia em massa), Contra o tempo (a vontade de mudar a história), Transformers (temor de uma “invasão alienígena”), 2012 (apocalipse natural), O dia depois do amanhã (aquecimento global), Avatar (os efeitos maléficos do neocolonialismo irracional), Inception (invasão de sonhos). Em Prometheus, de 2012, Ridley Scott revisita seu filme Alien para fazer este episódio anterior. A inspiração para esta obra vem do livro Eram os deuses astronautas, de Erich Von Däniken, cuja teoria consiste em que os precursores da vida na Terra seriam astronautas extraterrestres.

Para vários fãs de ficção-científica hard, alguns filmes que o grande público identifica como ficção-científica não passam de fantasia. Estes possuem várias características de ficção-científica (aspecto futurista e locações no espaço, por exemplo), mas que apenas servem de panos de fundo para narrativas de romance, ação e aventura, como, por exemplo, a cine série Star Wars. (Ok, agora mexi em um vespeiro…). Fantasia é um gênero que usa formas sobrenaturais como estrutura narrativa e, por isto, o universo em questão é gigantesco. Da Odisseia (Homero) à Divina Comédia (Dante Alighieri), passando por Harry Potter (J.K.Rowling), Senhor dos Anéis (J.R.Tolkien) e Crônicas de Nárnia (C.S.Lewis), foi um caminho enorme o trilhado pela literatura de fantasia. As adaptações cinematográficas eram inevitáveis à medida que as técnicas de filmagem e efeitos especiais evoluíam, e as sagas, mobilizando um público ávido, multiplicavam-se.

Além da literatura de sci-fi, os cineastas e produtores tem prestado atenção a outras mídias que podem ser fontes potenciais de roteiros: graphic novels, quadrinhos clássicos, pulps antigos, curta-metragens experimentais, notícias, ideias amalucadas etc. Enfim, tudo o que está ao nosso redor pode dar um bom argumento para um filme. O inverso também ocorre. Muitas vezes a ficção-científica motivou investigações e consequentes descobertas da ciência.

Outra característica é o numero crescente de fãs ao redor do mundo que trocam informações, criam festivais, divulgam e expandem os limites da ficção-científica. Também publicam seus próprios trabalhos e, assim, garantem continuidade e interesse pela gama de assuntos possíveis. Hoje, estuda-se ficção-científica em universidades e institutos ao redor do mundo, e até em escolas filmes do gênero são exibidos em aulas de ciência.

Tanto o real quanto o irreal são importantes na nossa interpretação da realidade. A ficção entretém, questiona, instiga e faz pensar.

O que esperar do futuro? Imagine. Irá acontecer.

#10FuturoCulturaSociedade

Espinhas, Lsd e as novas gerações

por Tomás Biagi Carvalho

No processo de alienação, se antes o inimigo era a televisão, hoje o alienador é a internet.

O mundo mudou. Não podemos negar.

Estamos submersos em informação. Já somos considerados não apenas pós-modernos, mas um povo pós-internet. A simples ideia de vivermos sem a rede – sem seu fácil fluxo de notícias, de entretenimento e de exposição – é impensável para nossa geração acostumada às mídias sociais e à prática “cultural” de compartilhar cada passo que damos com amigos e estranhos. Os já antigos rituais secretos adolescentes – como a descoberta da Playboy no banheiro do irmão mais velho, a primeira tragada desajeitada de cigarro roubado da avó, entre outras coisas mais – agora passaram à esfera pública como um sintoma de comportamento dessa cultura jovem pós-internet.

O Youtube é visitado, em média, por 800 milhões de pessoas por dia, e três bilhões de horas de vídeos são assistidos, cada mês, por usuários em 39 países diferentes. A internet é uma excelente ferramenta para os jovens em vários sentidos, mas também pode ser como dormir; como ficar anestesiado diante da tela, espiando a vida de pessoas desconhecidas, ou recebendo informações nem sempre, como dizer… necessárias. Nesse processo de alienação, se antes o inimigo era a televisão – uma sereia que seduzia a criança preguiçosa, que passava a tarde comendo Doritos em frente à tela –, hoje o alienador é a internet. Conforme artigo publicado na revista Time, o Youtube transmite, em um mês, o que os três maiores canais de TV americanos transmitem em sessenta anos!

Para entendermos um pouco mais do que está acontecendo agora no mundo da comunicação digital, temos de voltar um pouco no tempo e ir para os Estados Unidos dos anos 1960, mais precisamente na Califórnia. Época dos hippies, dos Beatles, do ácido lisérgico, tempo em que os jovens realmente tinham um ideal e lutavam por algum tipo de mudança real. Graças a essa turma revolucionária, que a princípio podia parecer um bando de desocupados fumando maconha com seus amigos nos parques públicos de suas cidades, o mundo realmente tomou um novo rumo. Talvez não da maneira como planejavam e idealizavam, mas…

Inventores como Steve Jobs, Bill Gates, Steve Wozniak, Mike Markkulaos, os baby boomers (os filhos da Segunda Guerra Mundial), são alguns dos personagens que construíram peças chave do mundo em que vivemos – PC, Mac, iPod, iPad, iPhone. Aliás, devemos muito a Steve Jobs e seu iPhone. Muito foi escrito a respeito desde sua morte, “gênio”, “revolucionário”, mas ele não teria criado tudo o que criou não fosse um nerd. Os nerds são pessoas que têm um comprometimento com seu ofício, e nutrem grande fascínio por conhecimento e tecnologia. Claro que uso esse termo com uma boa conotação. Ele realmente foi um gênio da inovação; um dos caras que inventou o mundo como vivemos.

Talvez a nova geração cresça livre de rótulos e estigmas (xô baby boomer, xyz phi!) e tire proveito da oportunidade de mudar a cara de nossa economia. Montar uma nova empresa, começar um novo negócio – ficou muito mais próximo da realidade das pessoas. Se pegarmos o Brasil, por exemplo, existe uma mudança enorme na ambição dos jovens. Dez anos atrás, se você perguntasse a um jovem brasileiro o que queria de sua vida, a maioria diria que gostaria de trabalhar em uma grande empresa, ter a segurança da carteira assinada, décimo terceiro etc. Hoje, se você pergunta, a maioria diz que quer ter, ou começar, seu próprio negócio. Isso é uma grande mudança; uma mudança de geração. Esse, sim, é um grande barato.

Fico me perguntando o que essa turminha que nasceu com o mundo na ponta dos dedos irá fazer pelos que virão depois. Talvez tomar ácido não seja mais o caminho; manter a sanidade nesse bombardeio de emoções e informação, sim. E, com os pés no chão, buscar na internet e na devassa da mídia social aquilo que é útil para si próprio, sem se perder e se machucar. Ser o mestre da tecnologia e de seus recursos, e não seu escravo.

Outro dia, mostrando uma foto antiga de minha avó de quase noventa anos para meu sobrinho de três, ele a pegou na mão e tentou dar zoom com os dedos, como se faz no iPad. É… Como disse lá em cima, não podemos negar, o mundo realmente mudou.

#10FuturoCulturaSociedade

Castro Maya, William Morris e uma qualidade

por Eduardo Andrade de Carvalho

William Morris

Num corredor, no segundo andar do Museu da Chácara do Céu (em Santa Teresa, no Rio), está exposta uma carta de Wladimir Alves de Souza – o arquiteto da casa em que hoje funciona o museu – a Raymundo de Castro Maya, industrial, esportista, editor e colecionador de livros, que morou ali. Não me lembro exatamente a que Wladimir se referia, mas, em algum momento, escreve aproximadamente assim: “você, que também é obcecado por qualidade, vai adorar”. Na biblioteca da casa, os livros da sociedade os Cem Bibliófilos do Brasil, fundada por Castro Maya, com edições de, por exemplo, Campo Geral, de Guimarães Rosa, ilustrado por Djanira, confirmam a obsessão do antigo morador.

Na William Morris Gallery, em Londres, recentemente reaberta na antiga residência em que o – é também difícil enquadrá-lo em apenas uma profissão – artesão, empresário, escritor e editor passou a infância, uma pequena placa embaixo de um tapete desenhado pelo próprio explica o que o incomodava: “The poor design and quality of many Victorian machine-made goods angered Morris”. Para a Kelmscott Press, a editora que fundou, ele criou fontes inspiradas em estilo do século XV, e sua edição de The Works of Geoffrey Chaucer é não raro considerada como o mais bonito livro já publicado.

São várias as coincidências entre Castro Maya e William Morris: os dois editaram livros; gostavam de tapeçaria; eram empresários, apesar de em setores bem diferentes (Maya em varejo e óleos vegetais; Morris em objetos de decoração); e as casas em que moraram se converteram em pequenos museus. Em ambos os museus há uma discreta lembrança de um atributo muito apreciado pelos dois, mas ultimamente um pouco fora de moda: a qualidade das coisas.

A palavra foi tão desgastada nos anos noventa (“qualidade total” etc.) que hoje quase pega mal dizer que alguma coisa tem mais qualidade do que outra. Mas é preciso resgatar seu significado. A primeira definição do Caldas Aulete ajuda: qualidade é “o que faz com que uma coisa seja tal como se considera”. Porque é justamente isso – a essência, a natureza das coisas – que me parece camuflado por tanto discurso, tanta propaganda. Entre tanto barulho, a qualidade se perdeu.

Em propaganda, o exemplo da operadora de celular talvez seja o mais comum: a empresa não consegue completar uma ligação e gasta fortunas anunciando que conecta pessoas. E esse tipo de frustração acontece de forma muito parecida em relações mais, digamos, pessoais, se considerarmos o contraste entre as experiências extraordinárias que algumas pessoas anunciam no Facebook, por exemplo, e o tédio que é sua presença física. As coisas – ao contrário do que a definição do Aulete sugere – estão ficando longe demais do que se considera que sejam. Por mais insistente que seja, e mesmo que por algum tempo se consiga confundir algumas pessoas, não há discurso que substitua completamente a realidade.

É verdade, claro, como recomendou Aristóteles, que não basta ser honesto: é preciso parecer honesto. As coisas (e as pessoas) precisam mesmo parecer o que essencialmente são. Mas o problema não é mais esse: a questão é essa excessiva dedicação hoje em dia em parecer bom – praticamente se esquecendo da importância de ser bom. O exemplo mais óbvio dessa tendência é o que fizeram com o Sonho de Valsa: estragaram o produto e redesenharam a embalagem. 

Esse bombardeio diário de pequenas enganações, acho, já comprometeu grande parte da sensibilidade das pessoas mais atentas. O mundo está barulhento, poluído visualmente, e esbarramos em promessas e promoções a cada passo. Não é de propaganda – não de mais discurso – que sentimos falta. É de que seja sincero: como parece que foi nos casos de Castro Maya e de William Morris. Esses dois museus, portanto, podem não apenas nos lembrar do que esses homens fizeram há mais ou menos cem anos, mas também nos estimular a fazer coisas com mais qualidade nos próximos cem.

Eduardo Andrade de Carvalho é sócio da Moby Incorporadora, formado em administração de empresas pela FGV e está muito interessado em arquitetura.

#10FuturoArquiteturaDesign

Repaisagem

por Guilherme Wisnik

Temporalidade invasiva

Poucas cidades são tão opacas à experiência cotidiana dos seus habitantes quanto São Paulo. Pois no curto tempo de apenas um século a cidade deixou de ser uma vila insignificante – situada no planalto acima do porto de Santos – para se tornar a grande metrópole do hemisfério sul. E durante esse processo, praticamente se reconstruiu inúmeras vezes1, passando de uma população de aproximadamente 200 mil habitantes, em 1900, para uma aglomeração informe de 10 milhões, cem anos depois. Tamanha opacidade na experiência diária espelha uma profunda aversão a qualquer consciência histórica, o que faz de São Paulo a permanente atualização de uma existência opulenta mas precária, construída pelo impulso bruto do mercado, e desprovida de qualquer dimensão hedonista ou narcisista, em oposição clássica, nesse caso, ao Rio de Janeiro.

Salvo engano, a primeira percepção clara dessa condição de simultânea precariedade e opulência como uma essência paulistana está registrada no livro Tristes trópicos, de Claude Lévi-Strauss. Ali, o antropólogo francês observa, a propósito de sua impressão de São Paulo, que as cidades na América tendem a passar da barbárie à decadência sem conhecer a civilização – isto é, estão ao mesmo tempo em construção e em ruína. Assim, se para as cidades europeias a passagem dos séculos constitui uma promoção, anota Lévi-Strauss, para as americanas a passagem dos anos é uma decadência, pois “não são apenas construídas recentemente; são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal.”2

Por que é que essas considerações têm relevância em relação ao trabalho fotográfico Repaisagem, de Marcelo Zocchio? Exatamente porque Repaisagem se alimenta dessa estranha condição presente na experiência da cidade. São Paulo não cultiva a memória nem a autoestima, e, no entanto, quando vemos fotos da cidade no final do século XIX e nas três ou quatro primeiras décadas do século XX – não tanto tempo atrás, portanto –, nos surpreendemos com a beleza e a civilidade do lugar, que parece uma miragem paradisíaca impossível de se escavar por detrás do asfalto das ruas e do concreto dos prédios atuais. Assim, ao vermos imagens antigas de São Paulo, sentimos, à primeira vista, não as pegadas de um passado latente e ainda familiar, mas a presença estrangeira de algo alheio, como uma aparição daquilo que Freud chama de sinistro. Uma das virtudes do trabalho de Zocchio, me parece, reside na capacidade de tocar nesse ponto sensível, como que a desrecalcar um tabu.

Situada na cabeceira de uma colina cercada por vales lamacentos, a aldeia jesuítica original de Piratininga ocupava um lugar estratégico na conquista de territórios interiores, através do rio Tietê, mas que era impróprio para um assentamento urbano. Porém, esse não é um pecado de origem que chegue a explicar os males da cidade de hoje. São Paulo fez, ao longo do tempo, continuadas opções no sentido de promover o seu desastre. Exemplos disso são a ênfase no modelo rodoviarista (do automóvel individual) e a adoção da franca especulação imobiliária como forma de crescimento, prática que periferiza e degrada o seu tecido urbano, e produz a dita “cidade ilegal”, induzindo ou obrigando populações removidas de outras áreas da cidade a morar em regiões afastadas, proibidas ou de risco, como a de mananciais. Nesse quadro, títulos como os de primeira cidade do mundo em frota de helicópteros e carros blindados não são exatamente honrosos. São símbolos de um violento apartheid social, que é urbano.

Por outro lado, o bruto laissez-faire do mercado deu à São Paulo uma polivalência que hoje é vista por muita gente como vital, por oposição ao congelamento das cidades europeias em formas de identidade herdadas historicamente. Daí o entusiasmo de muitos estrangeiros que chegam à São Paulo e veem na sua falta de regulação urbanística – alturas não uniformes dos edifícios, tratamentos estéticos variados – um sinal de liberdade. O fato é que a cidade, cada vez mais abundante em serviços, foi impulsionada inicialmente pela associação entre o café e a indústria, e formada por uma imigração (nacional e estrangeira) particularmente variada e rica. É constituída, desse modo, pelas pressões democratizantes inerentes ao processo de metropolização, e, portanto, por um cosmopolitismo que se opõe às formas paroquiais e segregadas de convívio.

Com efeito, a possível beleza contemporânea de São Paulo não resulta da sua melhoria real nos dias de hoje, mas de uma mudança na forma de se julgar a vitalidade urbana. Em um mundo de cidades globais3 e genéricas4, ou de “não-lugares”5, a inexpressividade anti-identitária do tecido urbano passou a ser vista como índice de saúde, como no caso paradigmático de Tóquio, mais do que de doença. Daí o interesse do curto-circuito criado pelas “repaisagens” de Marcelo Zocchio, que nos oferecem uma série de elementos comparativos que se chocam como índices de diferença temporal. São eles os próprios edifícios, evidentemente, mas também carros, motos, ônibus, bondes e charretes, além das pessoas e suas roupas, incluindo bolsas, chapéus, guarda-chuvas e outros elementos de urbanidade, tais como postes, árvores, telefones públicos, caçambas de lixo, jardins e os próprios contornos de rios e encostas. Contudo, mais do que um simples choque entre elementos novos e antigos, em si discrepantes, o que as montagens de Zocchio realmente revelam é a presença invasiva de uma outra temporalidade em meio à São Paulo que conhecemos. Pois esses espaços vazios que de repente se abrem em meio à saturação da grande metrópole não são apenas respiros. São signos de uma vida mais lenta, que acorda do sono secular para impregnar-se na cidade atual. Acho que quem viu essas montagens fotográficas não voltará a passar por esses lugares com olhos tão anestesiados pela cotidianidade do presente.

1 Ver Benedito Lima de Toledo, São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Cosac Naify, 2004
2 Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 91.
3 Ver Saskia Sassen, The global city. New Jersey: Princeton University Press, 1991.
4 Ver Rem Koolhaas, “A cidade genérica”, Três textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010.
5 Ver Marc Augé, Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.

#10FuturoCulturaSociedade

Shakespeare e porcos após 1984, e o que esperar do futuro

por Bruno Pesca

Grandes escritores geralmente descrevem com criatividade e perfeição o presente, ou utilizam de metáforas e riquezas de detalhes para nos lembrar do passado. Há exceções, e George Orwell, por exemplo, é lembrado por saber, como poucos, “lembrar” o futuro. Hoje, com 1984 pra trás, fica fácil constatar a perfeição das descrições de sua obra. Nós, economistas, especialistas que somos em fazer previsões, não à toa gostamos de Orwell. Só que nós, assim como a maioria das pessoas, erramos boa parte de nossas previsões.

Mas o que aconteceria se todas as apostas necessariamente se tornassem realidade? Em primeiro lugar, não seriam mais “apostas”. Restaria aqui apostar se o futuro ganharia ou perderia importância em nosso presente. Muitos escritores foram convincentes em nos sugerir que a certeza sobre o futuro seria um desastre. Shakespeare foi um deles, através da impressionante Tragédia de Macbeth. Segundo escreveu, o general Macbeth era um dos mais importantes militares da Escócia, e, ao voltar de uma vitoriosa batalha, esbarrou no caminho com três bruxas, que lhe profetizaram: primeiro, receberia como prêmio um importante título de nobreza; depois, terras e um título maior; e, no fim, seria coroado rei.

Quando a primeira parte da profecia se concretiza, Macbeth torna-se convicto sobre o resto. A fábula mostra como essa situação pode levar alguém sensato às vias da loucura, e até dos assassinatos. Macbeth destruiu seu próprio destino, e muito mais. Mas, tão importante quanto o desastre que é a hipótese da certeza humana sobre o futuro, a peça mais curta e sangrenta de Shakespeare traz também uma excelente provocação sobre quão trágico pode ser sobrepormos o futuro ao presente. E sendo assim, nem importa se o futuro é certo ou incerto. Macbeth caiu em desgraça quando passou a acreditar que o futuro garantido redimiria seus erros presentes, e, obcecado, passou a mal perceber o presente passar.

Há o velho ditado que diz que sua vida é aquilo que acontece e você não vê, pois está preocupado demais em resolver sua vida. De líderes espirituais como o Dalai Lama a dezenas de ótimos escritores, muitos já trataram do tema. Exemplos aqui seriam desnecessários. Fato é que a noção que temos de tempo como um caminho para se chegar a algum lugar frequentemente coloca o presente em segundo plano, não obstante ser ele, segundo a etimologia da palavra, a única parte do tempo que está à mão, à disposição. Há também um provérbio que diz que o tempo é um charlatão que escamoteia o presente, fazendo esplender o futuro.

A questão é que o presente é certo e o futuro incerto. E qualquer gerente ou executivo racional que tem em sua carteira de clientes, planos ou problemas uma opção certa e outra incerta resolve primeiro a certa. Pela lógica pura, qualquer papo sobre viver mais para o presente do que para o futuro deveria ser considerado um pleonasmo. Só que nunca é, e nós, aventureiros profissionais, também sabemos bem disso. Frequentes são as vezes em que somos chamados de inconsequentes por vivermos intensamente o dia de hoje, o que supostamente seria um prejuízo garantido ao dia de amanhã. Pela ótica do aventureiro, no entanto, inconsequência bem mais radical está no extremo oposto. As pessoas mais inconsequentes, na verdade, são aquelas que optam por uma vida inteira num estilo que não gostam, em nome de uma recompensa futura.

O curioso é que esse modo de viver, que mais parece doutrina de religioso atrás de vaga no céu, é justamente aquele que, no jargão, chamamos de racional. Pergunte a um sujeito racional que ficou cedo pelo caminho – por exemplo, um que tenha tido um AVC aos quarenta anos de idade – se considera que sacrifícios como abdicar do maior sonho em nome da carreira estável foram tão sensatos assim.

Escamotear o presente já seria inconsequência o suficiente, não fosse o agravante de que muita gente faz isso sem sequer ter um plano para retirada do tal prêmio futuro. Muita gente diz que abdica de seus maiores sonhos, pois espera assim ser amparado lá na frente. Espera? Mas por quem? Deus? O Criador jamais aprovaria essa ideia. Portanto, não há sentido em esperar. Quando lemos na fábula infantil dos Três Porquinhos que é preciso nos precaver para o amanhã, aprendemos que o terceiro porquinho, o único que não foi devorado pelo lobo, pois erguera um lar seguro, não esperou coisa alguma, mas, sim, traçou um plano sabendo exatamente o que precisava, pra quando (o inverno) e por quê.

Trabalhar bastante não é o problema; o problema é não saber pelo quê. Não sabermos o que queremos, precisamos, ou para quando. Nesse caso, nunca será possível saber o que é demais, e em algum momento acaba-se perdendo a direção dos próprios interesses. Quem não trabalha a serviço do próprio interesse de vida acaba trabalhando a serviço do interesse de outra pessoa. E, nesse caso, adivinhe o que a outra pessoa planeja para seu tão sonhado futuro? Nada. É preciso ter cuidado com isso, da mesma maneira que aprendemos que é preciso saber que ninguém olhará por nosso futuro enquanto estivermos embriagados com o momento presente. Só que geralmente ouvimos menos sobre um dos riscos do que sobre o outro, e isso também é resultado do plano de outras pessoas pra gente.

O que nos resta fazer sobre o futuro é esperançar. Esperançar significa ir atrás, fazer acontecer, não esperar. Quando alguém diz que espera que algo aconteça, isso não é esperançar; é esperar mesmo. É como passar o presente numa inútil sala de espera.

A esperança, por outro lado, é nosso motor para navegarmos ao longo do tempo; é o que nos empurra. Não podemos viver sem ela. Só que, para qualquer navegação, independentemente das condições do motor, precisamos de um plano de rota, de uma missão presente. E, especialmente se for a única jornada de nossas vidas, precisamos curtir e aproveitar a viagem.

Precisamos também dar mais atenção a fábulas sobre o futuro do que a previsões de economistas. De Shakespeare aos Três Porquinhos, há aventuras narradas em todos os níveis, pois as grandes questões do homem são as mesmas para todos. E talvez não apenas do homem. Afinal, como conclui outra grande obra de George Orwell (A revolução dos bichos), já há muito tempo está difícil diferenciarmos homens de porcos.

#9ObsessãoArteCinema

Um dia de paz

Soa bonito e esperançoso para aqueles que, como nós, vivem em um estado de… paz. Para quem convive com a guerra, porém, um dia assim, de cessar-fogo temporário, não é só bonito; mas incrivelmente útil. Num dia em que balas não voam, famílias conseguem visitar seus médicos, adolescentes podem brincar em praças, e as crianças, que crescem nesse ambiente de conflito, têm chance de conhecer, por fim, a paz, como é a paz, que barulho emite ou deixa de emitir, que cor possui. É uma janela de oportunidade e esperança aberta à construção de um mundo melhor e mais humano.

Jeremy Gilley parece aquele típico inglês – que deve ter sido punk, hippie, clubber – com o qual se esbarra às 22h45, desesperado para beber sua última pint de cerveja antes do pub fechar. No primeiro momento, sustenta uma conversa fria e calculada, um modo de se colocar agressivo, e mantém uma postura rígida, um ar que sugere revolta oprimida.

Nascido em 1969, em Southampton, na Inglaterra, aos doze anos tornou-se ator. Era dos piores da turma, sem qualificações, e sua mais relevante conquista acadêmica consistiu numa nota D, em cerâmica. Diziam que era disléxico. Quando criança, infeliz na escola, Jeremy pensava muito sozinho e assistia a todos os noticiários na televisão.

“Estava muito preocupado e assustado com o que estava acontecendo no mundo. Meus pais não eram mais casados, e isso me fazia pensar em relações de uma maneira geral. Eu era pequeno, solitário, disléxico, sofrendo bullying, e isso me fez tentar entender o que tudo aquilo que via na televisão significava”.

Aos dezessete anos, ingressou na Royal Shakespeare Company. Depois de uma década de carreira profissional como ator, Jeremy já fizera todo tipo de coisa, e começou a sentir que o conteúdo do trabalho com o qual estava envolvido realmente não era suficiente, e que deveria haver algo mais.

Nessa época, influenciado por um livro de Frank Barnaby – um físico nuclear que diz que não só a mídia, mas todos os outros setores têm enorme responsabilidade em que as coisas progridam –, pensou que talvez pudesse fazer algo, pois passara grande parte da vida próximo a uma câmera. Então, pôs-se a pensar na paz e numa maneira de usar seu trabalho de forma construtiva, para fazer a diferença.

Refletia: “Qual será o ponto de partida para a paz”? Foi quando percebeu que aquilo não existia, um local – um fato, uma ocasião – de onde largar, de onde dar início; que não havia um dia de unidade global, de cooperação intercultural, um momento em que a humanidade se reunisse e compartilhasse o encontro e o sentimento de convergência, de “estarmos juntos nisso”, e lhe ocorreu que, se nos uníssemos e cooperássemos, talvez encontrássemos a chave para a sobrevivência da humanidade. Se tivéssemos um ponto de partida, um dia em que parássemos e pensássemos na paz, aquela mobilização poderia mudar o nível de consciência a respeito das questões fundamentais que os homens enfrentam.

Em 1999, Jeremy lançou o projeto Peace One Day, a princípio como um documentário. Morando na casa da mãe, obviamente sem dinheiro, produzia, com amigos, shows e saraus literários em bares no oeste de Londres, de modo a levantar fundos e tocar adiante o projeto. Para o dia do lançamento, convidou milhares de pessoas ao teatro Globe, em Londres, onde Shakespeare apresentava suas peças, mas só 144 apareceram. A maioria, amigos e familiares. Isso não fez tanta diferença, pois se documentou tudo em vídeo, e o importante era mesmo o processo, não o resultado. “Costumavam dizer que a caneta era mais poderosa que a espada”. Jeremy achava que mais poderosa era a câmera – e que estar presente, simplesmente presente, naquele momento era algo realmente grandioso e promissor.

Começaram – ele e o grupo que se reuniu em função do projeto – a escrever para todos os chefes de estado, embaixadores, prêmios Nobel, ONGs, grupos religiosos, várias organizações etc. Propunham uma tentativa de unir todos os países em um único dia do ano para pregar a paz e a não violência. Jeremy percebeu, contudo, que uma série de estereótipos não seria suficiente, e que havia uma montanha a ser escalada, uma longa jornada a ser percorrida; que não importava se a tentativa falhasse ou tivesse êxito, decisivo seria desenvolver meios de articular as questões que há tempos o atormentavam. Será a humanidade fundamentalmente má? A destruição do mundo é inevitável? Devo ter filhos? É algo responsável de se fazer nessa realidade em que vivemos?

Gilley achou que o projeto duraria, no máximo, um ano, mas rapidamente começaram a chegar respostas para algumas cartas. Uma das primeiras, lembra-se, veio do Dalai Lama; e dizia: “Isso é uma coisa incrível, venha me ver. Gostaria de conversar com você sobre o primeiro dia de paz”. Foi quando Mary Robinson, presidente da Irlanda, declarou: “Chegou a hora de pôr essa ideia em prática”. Kofi Annan afirmou: “Isso será benéfico para minhas tropas que estão em terra”. A Organização da União Africana, na época dirigida por Salim Ahmed, pronunciou-se: “Tenho de conseguir envolver os países africanos”. Oscar Arias, ganhador do Nobel da Paz, atual presidente da Costa Rica, comprometeu-se: “Farei tudo que puder”. Então, Jeremy foi ver Amr Moussa na Liga dos Estados Árabes, conheceu Mandela nas conversações de paz de Arusha, e assim sucessivamente, enquanto defendia sua causa e lutava por provar que sua ideia fazia sentido.

Levou dezoito meses escrevendo cartas e trabalhando nos corredores da ONU para conseguir um encontro com Kofi Annan. Finalmente, no dia 7 de setembro de 2001 – “o mais importante da minha vida” –, doze anos depois de ter iniciado o movimento, Gilley viu a ONU, por unanimidade, aprovar a Resolução 55/282, que designava oficialmente o 21 de setembro como dia internacional da paz. “Estava sentado sozinho, com minha pequena câmera, e foi um momento realmente maravilhoso. Annan daria uma coletiva de imprensa mais tarde naquela semana. Minha equipe e eu chegamos lá às oito da manhã e, enquanto ligávamos nossos equipamentos, o primeiro avião atingiu o World Trade Center.” Era dia 11 de setembro, e a coletiva de imprensa nunca aconteceu.

Em seu filme de 2008, The Day After Peace, 11 de setembro é ponto central. Sete anos depois dos atentados, ele e Jude Law, a quem conhecera através de um amigo ator, encontraram-se no Afeganistão para o cessar-fogo que permitiu a primeira vacinação em massa de crianças contra a pólio. Longe de desistir, os ataques de 11 de setembro o deixaram ainda mais determinado a vencer e transformar esse dia em uma instituição mundial.

Muito criticado por usar rostos famosos, como os de Angelina Jolie e Stella McCartney, em suas campanhas, Jeremy teve em Law, principalmente no Afeganistão, muito mais que apenas uma face célebre. “Toda a carreira, todas as reuniões, Jude fez comigo. Foi um verdadeiro divisor de águas, porque, de repente, todo mundo estava interessado”. Nada como o aval de uma celebridade.

Em certos momentos, Gilley viu-se em situações de real perigo, sobretudo quando ficou cara a cara com o exército de crianças do Congo. Na Somália, esteve hospitalizado por três semanas. “A coisa mais difícil desses últimos anos foi a intensidade física e psicológica de trabalhar doze horas por dia, todos os dias da semana, e sentir meu corpo querer desistir”.

Depois de ver nascer sua filha, Rose, Gilley acha que não manterá o mesmo ritmo de trabalho e crê que não ficará mais tanto tempo fora de casa. Ainda pensa, contudo, em visitar entre vinte e trinta países em 2013, incluindo a Somália, para promover sua campanha. “Pela primeira vez na vida existe uma coisa mais importante pra mim do que eu” – diz, referindo-se à filha.

No próximo dia 21 de setembro, Gilley, que agora está por trás de grandes produções e eventos artísticos, irá produzir um concerto de Elton John em Londres, para o qual são esperadas mais de 60 mil pessoas – o maior encontro já organizado em torno da causa do Peace One Day. Nada mal para quem iniciou esta luta com pouco mais de cem apoiadores no Globe.

Discutindo essa edição da revista, e debatendo o tema com amigos e colegas de trabalho, uma questão comum a todos consistia em se a obsessão era algo bom ou ruim. Sempre considerei esse juízo como extremamente íntimo. A própria definição do que seja obsessão é complexa e, muitas vezes, de difícil identificação, especialmente pela pessoa “obcecada”. Ficar, porém, dezoito anos em busca de um ideal – sobretudo esse, com foco na comunidade global –, sob uma determinação incessante em chamar a atenção dos maiores líderes mundiais e mobilizá-los para que avaliassem e aprovassem sua proposta, definitivamente é obsessão de natureza saudável.

#9ObsessãoCulturaSociedade

Nunca – parar

por Guilherme Nehemy

Minha relação com o esporte teve início na infância, incentivada pelo meu pai, inicialmente no tênis e depois no futebol, como ocorre à maioria dos garotos. Sempre tentei me manter ligado à atividade física, correndo na academia ou na rua, ainda que apenas uma ou duas vezes por semana. Sabia que, por menores que fossem a frequência e a exigência, a simples prática esportiva me fazia bem, especialmente ao fim do exercício: aquela sensação de pós-esforço – uma injeção hormonal de endorfina e serotonina – que nos traz satisfação sem igual.

O ano de 2010 foi, na minha vida, um divisor de águas. Estava com hábitos nada saudáveis, fumando e bebendo muito, submetido a oscilações de peso muito bruscas. Quase não fazia atividades físicas. Minha preocupação, ao chegar em casa, consistia em saber qual seria o programa da noite e o que teríamos de bebida para acompanhar.

Até que minha esposa me presenteou com uma viagem que definitivamente me mudaria – e para muito melhor.

Fazíamos dois anos de casados e ela me ofereceu uma expedição ciclística pela Dordonha, na França, com uma turma que não conhecia e que então me parecia muito chata, já que pouquíssimos bebiam e nenhum fumava. O tour tinha por proposta conhecer a região sobre bicicletas – de ciclismo de estrada – e percorreria as principais cidades locais.

Estava mal-humorado, aborrecido com aquele presente de casamento. De qualquer maneira, já que a viagem estava paga e me fora dada com tanto carinho, comprei minha primeira bike, bem às vésperas de uma prova de ciclismo que subiria a serra velha de Campos do Jordão. Para quem o conhece, um percurso bastante duro, desafio que exige um mínimo de treinamento prévio.

A prova seria no domingo. Comprei a bike na sexta à tarde e, no sábado, testei-a: uma speedy, totalmente diferente de tudo que já experimentara. Enfim, no domingo, lá estava, a postos. Terminei o trajeto num tempo bem razoável, algo em torno de duas horas e pouco, e fiquei bem empolgado. Minha estreia se deu a 9 de maio. Tive tempo, portanto, para treinar até meados de julho, quando partiríamos à França.

A viagem, confesso, foi uma das mais espetaculares de minha vida. Fiz amigos naquela turma com os quais me relaciono até hoje. Queimei a língua – ainda bem.

Essa mesma turma, composta de pessoas muito regradas, estava inscrita para o Meio Ironman em Miami (1.900 metros nadando, noventa quilômetros pedalando e 21 correndo) – a se realizar no final de outubro. Mobilizaram-se para que eu participasse, como se fosse um passeio no parque, e irresponsavelmente aceitei o chamado e me inscrevi.

Treinei bastante nesse intervalo de três meses. Participei de um triátlon curto (750 metros nadando, vinte quilômetros pedalando e cinco correndo), fiquei em terceiro lugar, e depois, em Santos, tomei parte em uma prova de triátlon olímpico (1.500 metros nadando, quarenta quilômetros pedalando e dez correndo).

Finalmente, chegou o dia do embarque para Miami. Enquanto esperávamos, encontramos um casal de amigos que me perguntou se participaria do Ironman Brasil (3.800 metros nadando, 180 quilômetros pedalando, 42 correndo), em maio de 2011. As inscrições já estavam encerradas. Porém, disseram-me que conseguiriam abrir uma exceção para mim – e lá fui eu, irresponsavelmente, de novo. Dessa vez, considerado o poder de exaustão da prova, com grande risco de um trauma irreversível.

No Meio Ironman de Miami, mantive um ritmo bem conservador, com o intuito de não “quebrar” na corrida. Não queria ter de caminhar. Consegui e conclui o percurso em cinco horas e 47 minutos. Uma conquista importante, pois me dava confiança para o grande desafio de qualquer triatleta, o Ironman. Eu estava inscrito e não desistiria, focado em cumpri-lo bem, e sem caminhar nos 42 quilômetros de corrida.

Muitos duvidaram quando afirmei que participaria de uma prova em que se nada, se pedala e se corre, respectivamente, 3.800 metros, 180 quilômetros e 42 quilômetros. É um desafio contra você mesmo, contra sua mente, sempre pedindo para que paremos, para que desistamos, e no entanto, por algum motivo, seguimos em frente; eu segui – e fui: onze horas e 54 minutos. Cheguei exaurido, chorando muito, sob a mistura de dor e de alegria, muita dor e muita alegria, muita satisfação.

Com a regularidade dos treinos – para além das nítidas mudanças no corpo, com implicações decisivas para o bem-estar e para a disposição física cotidiana –, começa-se a adquirir uma disciplina acima da média, já que, obrigatoriamente, deve-se praticar ao menos dois esportes em quase todos os dias – e ainda conciliá-los ao trabalho e à família. Além disso, o rigor das provas fortalece o espírito e a cabeça. No Ironman deste ano, por exemplo, tive muitas cãibras e, portanto, senti muita dor. Sofri, mas fui em frente. Valeu a pena. Meus pais foram me assistir e me motivaram a terminá-lo. Atleticamente, porém, não fiquei satisfeito. Quem pratica esse tipo de prova nunca – nunca mesmo – fica contente com o próprio resultado. Sempre haverá onde e como melhorar.

Estou no caminho certo. Treino com pessoas legais. Alimento-me corretamente. E tento ser flexível para que esta prática não se torne uma neura e não prejudique minhas vidas familiar e social. O triátlon, compreendido desta forma saudável, mudou-me para melhor. Acredito que todos temos limites fisiológicos e físicos, os quais, entretanto, dificilmente alcançaremos – a não ser que sejamos profissionais. Como não sou, continuarei treinando, com responsabilidade, mas sem medo de sentir dor. Todos nós podemos ir além, sempre.

Jamais pretendo parar, uma vez que finalmente encontrei um esporte que me completa e me faz feliz.

#9ObsessãoCulturaSociedade

Warhol, Bündchen e Vacas

por Lígia Teixeira

Por muitos anos, o ato de possuir objetos foi considerado símbolo de manifestação de poder. O colecionismo sempre foi ligado à ideia de posse. Com o passar do tempo, tomou uma outra proporção e se transformou em uma atitude materialista, e ultrapassou sua função anterior. Hoje, ele não é mais associação ao poder, e sim, ao prazer. 

Vindo de uma família de artistas, Luiz Henrique Campos, 45, é programador visual, e coleciona, há mais de 20 anos, diferentes tipos de objetos. Sob forte influência de sua família, que fazia parte do teatro e da televisão brasileira, Luiz começou a colecionar tudo o que se relacionava a esse universo, cartazes, programas e fotos que hoje somam mais de 150 objetos.

Luiz mora com a mãe – que o influenciou, guardando suas roupas e objetos de criança – em um apartamento extremamente organizado, onde começou a armazenar todas as suas coleções, em seu quarto. Após alguns anos, juntou tanta coisa, que viu sua coleção invadir corredores e outros cômodos do apartamento. “Sei exatamente onde encontrar cada coisa rapidamente”, diz ele, tamanha é a ordem. São mais de 15 coleções que vão desde vacas, bonecas e revistas até objetos da realeza britânica. A coleção tem seu item mais raro, uma xícara da coroação da Rainha Elisabeth II, da década de 1950, junto com a coleção da Around, revista do anos 1980, que era dificílima de ser encontrada mesmo na época que era editada. Ele conseguiu as que fazem parte de sua coleção quando descobriu onde era a redação, e comprou direto da fonte.

Mesmo não sendo fã da modelo Gisele Bündchen, nos anos 1990, com a explosão de sua carreira, viu ali uma ótima oportunidade para começar a juntar revistas nas quais ela saía na capa. Hoje, são mais de 350 revistas – incluindo a que demos de presente quando fizemos a visita. Canecas, pôsteres, lápis, souvenirs, bonecos, xícaras de Andy Warhol, David Bowie, e Kate Moss. Também faz parte do seu universo uma coleção absurda, de mais de 520 dvds.

Sua primeira e maior coleção tem 24 anos e é a de vacas. Seus amigos o ajudaram bastante, dando de presente sempre que viam algum objeto relacionado, chegando hoje a mais de 160.

Além de colecionar objetos, Luiz tem o hábito, que começou em 1988, de escrever diários. Anotava tudo o que fazia, colava reportagens de jornal, fotos dos amigos e familiares, ingressos de shows, o que faz até hoje. Claro que em uma escala bem menor, pois a vida mudou. Sua agenda atual tem duas linhas para cada dia do mês.

Luiz nunca deixou nenhuma de suas coleções de lado. Nesses mais de 20 anos colecionando, ele alimentou todas elas. Mesmo pensando que poderia ter comprado um apartamento com todo o dinheiro já gasto até hoje, ele não se arrepende, e continua buscando ou esperando que esses objetos surjam de forma inusitada em sua vida.

#9ObsessãoCulturaLiteratura

Utopia e pão

por Léo Coutinho

Desenho de Sandra Cinto

A obsessão tem uma versão benigna chamada utopia. Cada um tem a sua, inclusive quando não tem nenhuma. A não utopia já é uma busca infinita. A não utopia é a perfeição, e esta, só no Paraíso, aquele que o Homem recusou. Dom Helder Câmara disse que “a utopia partilhada é a mola da história”, naquela linha do “sonho que se sonha junto é realidade”. É basicamente isso. A existência é a nossa realidade, que vamos temperando com o passar do tempo, das gerações, buscando viver melhor, ou simplesmente viver.

Um mundo melhor é o que todos queremos. O pepino é que cada um gosta de um jeito – para não falar daqueles que nem de pepino gostam. Pátria, religião, cultura e, em alguns – muitos – casos, futebol estão entre os livros de receita. Política é a mão do cozinheiro. E por “sal e pimenta a gosto” é que a guerra, a solidão, a peste, a miséria, a paz, o amor, a saúde e a riqueza acontecem.

Na vida, todos somos cozinheiros. Tem sempre alguém tomando as decisões na cozinha, é claro, mas todo mundo influencia o resultado do prato, inclusive aqueles que, por uma ou outra razão, não vão comer, até porque ninguém pode jantar satisfeito diante de um olhar faminto. Quem percebe e avisa que o pão está queimando pode desagradar o chefe, mas, além de comer bem, ainda será lembrado pela coragem e sabedoria. Aquele que nota o fogo alto demais e silencia vai comer queimado. São escolhas, e cada qual tem seu preço.

A primeira utopia é fazer o pão chegar a todos. Pode ser em porções diferentes, desde que não falte. Quando isso acontecer, as pessoas vão se acostumar e então, com a barriga cheia, a utopia será fazer um pão melhor, mais gostoso. É quando a turma pode se confundir e pensar que esse pão existe, transformando em utopia uma receita comum. Bobagem. Nossa utopia tem de ser pelo pão para todos, seja preto, branco, doce, salgado, denso, fofo, quente, frio, redondo, comprido, chato, alto, puro, recheado e até recusado.

O pão, como na utopia de Dom Helder, tem de ser partilhado. Só assim vira mola, bela viola, não enferruja, nem embolora. O pão individual é obsessão.

#9ObsessãoCulturaLiteratura

Proteger as sensíveis mãos

por Tsuyoshi Murakami

Depois, despir-se das luvas brancas. Nota-se logo a experiência de 86 anos de vida. Habilidade e leveza. Os dedos que bailam e exibem a rica sensibilidade.

Precisão do corte no lugar certo, na hora certa. Antes, com movimentos da direita para a esquerda, foi tirando as escamas. Sinto, neste instante, como se tirasse minha própria escama… Liberdade? Lâmina que atravessa na diagonal, entre o final da cabeça, a nadadeira lateral e o corpo firme. A cabeça rola da tábua de madeira (manaita) ao buraco da pia. Sangue. Segurou o corpo. O orifício desejado voltado para os olhos; a lâmina afiada penetra-lhe cortando toda a barriga, mas sem ferir os órgãos internos. Com a própria lâmina, cortou toda a linha da aorta, junto soltando as tripas. Separou o fígado (kimo) e o esperma (shirako).

A lâmina penetra vigorosamente na carne. Rente à espinha, toca-lhe com a ponta da faca, a mesma com a qual, delicadamente, vai cortando os nervinhos. Repito o percurso do outro lado. Reservo a espinha rosada e a costelinha protetora dos órgãos.

Cabeça de ouro mereceu uma divisão. Delícia! Com a boca para cima, enfiou a lamina no lábio superior. Firme, deslizou por toda extensão da cabeça. Aberta, concluiu com um corte do lábio inferior até o final da base da boca. Reservou.

A arte do arroz para o sushi. Senti o brilho, a temperatura, o cheiro, o toque e o sabor. Fantástico é quando se juntam o nikiri shoyu (shoyu da casa), a netta (fatia do peixe) e o nama wasabi (raiz-forte fresca). Nossa! Isso só no Kinoshita!

No mercado do peixe em Tóquio (Tsukiji), Jiro, com sua brilhante personalidade e imensa credibilidade, tem a moral que faz com que os caras lhe reservem os melhores ingredientes. Para a pequena equipe que trabalha com ele, é só qualidade, qualidade, qualidade… Desde o carvão para aquecer as algas (nori), passando pelo ovo especial (tamago-yaki), pelo anago (enguias), pelo gari (gengibre)…

Colocou o noren (cortina japonesa). Significa que o local já está funcionando. Tudo listo! Serviu de entrada o shirako com ponzu (shoyu com o suco do yuzu), muito firme! Só comi assim em Hokkaido. Kimo batido na faca, comi a pele levemente cozida (neste caso, dois segundos na água fervendo; depois, em água com bastante gelo), só com sal e sudachi (parece uma bola de gude, verde e com um cheiro cítrico original).

Momento de sentir o poder do mestre Jiro, com seus produtos premium – o melhor de cada província do Japão. Sem palavras. Silêncio… Mergulhei na simplicidade e percebi o puro dentro de mim. Abri os olhos com um suimono (caldo transparente feito com as espinhas e a cabeça) na minha frente. Olho nos olhos do mestre Jiro, vejo minha imagem e sinto a sua na transparência do caldo, refletida no olho do Tai (pargo). Este é um peixe para datas especiais, para os japoneses.

Será que tenho a mesma obsessão? Que sempre tenhamos a natureza selvagem! Porque está sumindo do planeta!

#9ObsessãoCulturaLiteratura

Oversharing

por Bruno Hoera

Desenho de Sandra Cinto

O que a gente faz com essa vontade louca de querer compartilhar tudo, a todo instante? Não, não estou falando de uma vontade minha ou sua. Falo do amigo insistente segundo o qual você pode ajudá-lo a encontrar uma pessoa perdida na Ilha de Páscoa, ou daquela tia-avó que, se pudesse lhe dar um conselho, esse seria: use filtro solar. Sejamos atuais e contemporâneos: o compartilhamento no Facebook é o novo PPT.

A verdade é: ninguém parará de fumar porque postaram a foto de um pulmão intoxicado; ninguém sairá pelas ruas à procura do cachorro poodle que tem Alzheimer e que está perdido; e nunca (nunca!) criança alguma na África receberá uma prata porque a foto dela foi divulgada por toda a população online. É bem óbvio: a vontade não está necessariamente em ajudar, mas em ser visto como alguém altruísta.

Dia após dia, a todo instante, sua tia-avó precisa compartilhar sabedoria, seu vizinho tem de, em nome de Jesus, evangelizar o mundo com os salmos do novo testamento, e a turma da moda se sente obrigada a divulgar seu look nada-a-ver do dia, acompanhado pela maquiagem de palhaço.

Essa obsessão não está somente em fazer circular informação, mas em pertencer a um grupo de ditadores de atitude, seja o da moda, o dos crentes ou o das tias-avós sábias. Enquanto isso, no mundo ideal, os mais cultos e informados não dão opinião quando não se pede, a religião é só o amor e ninguém está muito preocupado com a roupa que você veste – já dizia Clarice Lispector naquele texto que não escreveu e que alguém wanna be cult compartilhou.

Todo mundo quer ajudar, mas será que as pessoas querem ser ajudadas? Alguém já pensou na possibilidade de o sujeito perdido não querer ser encontrado?

Para ser bem sincero, se cada um não jogasse papel no chão, já ajudaria muito. Compartilhe essa ideia!

#9ObsessãoCulturaSociedade

TOC

por Leticia Lima

Coloco meu pijama, saindo direto do banho, e sinto a maciez do algodão na pele. Puxo meu edredon, experimentando o reconfortante aroma de lençóis recém-lavados. Suspiro, feliz, e mergulho no algodão egípcio de mil fios. Apago as luzes e fecho os olhos, pronta para abraçar uma renovadora noite de sono.

Mas algo me mantém acordada. Reviro-me, desconfortável. Finalmente, ao desistir, acendo as luzes. Aha! Ali está. Um canto da porta de meu armário está aberto, e consigo ver as vagas formas de camisas e jaquetas penduradas em seu obscuro interior. Levanto-me, devagar, e cuidadosamente fecho a porta, olhando ao meu redor para ver se existe alguma outra anomalia.

Nenhuma. Estou segura. Arrasto-me de volta à cama e mergulho sublimemente no sono.

Comecei a notar certos padrões repetitivos na minha vida há seis ou sete anos. Saía então de outro tipo de crise emocional, uma que me deixara confusa e desamparada. Com vinte e poucos anos, batalhava com sentimentos alternados de profunda depressão e exaltação. Finalmente, aos 24, fui diagnosticada com distúrbio bipolar do tipo II.

Receber o diagnóstico foi uma mistura de alívio e desespero. Alívio por encontrar um nome, um rótulo para aquilo que vivia. Desespero porque o resultado de minha pesquisa inicial sobre transtorno bipolar fora desolador. Altas taxas de suicídio, divórcio, vícios químicos, dificuldade em manter empregos e relacionamentos… De repente, senti o chão se abrir diante de meus pés e me vi desequilibrada, à beira do abismo, aterrorizada pelo medo de cair.

A relação com os membros de minha família era tensa, apesar de não terem culpa. Sentia-me como se não tivesse amigos; mal-amada e, mais importante, desmerecedora de amor. Por isso, afastei justamente o amor – de que eu tão desesperadamente precisava. No meio desse caos emocional, encontrei um médico maravilhoso que, com o auxílio de medicação prescrita e terapia cognitiva, começou a me ajudar no longo caminho de saída das trevas.

Minha vida estava em ruínas. Para todos os lados que olhasse, só via e encontrava o caos. Seria, portanto, estranho que tentasse, progressivamente, ordenar aqueles objetos sobre os quais tinha controle?

Comecei pela minha mesa de trabalho, onde não suportava ter coisa alguma. Somente o computador, o teclado, o mouse, a impressora e o telefone estavam autorizados ao privilégio de passar a noite ali. Nada de papéis, post-its, grampeadores, recibos, recados, canetas ou qualquer outro elemento que pudesse perturbar minha paz. Objeto nenhum poderia permanecer sobre aquela sagrada superfície.

Aos poucos, tal padrão se estendeu à vida pessoal. Minha prateleira de livros tinha de ser organizada simplesmente assim – não por ordem alfabética, por autor, por assunto, nem mesmo por tamanho. Nenhum critério que fizesse sentido fora de minha cabeça. A ordem tinha um significado particular – uma espécie de classificação cronológica de minha vida. Então, a Enciclopédia Ilustrada Britânica se encontrava ao lado do Clive Cussler e do Fernando Sabino, espremida entre um guia turístico do Quênia, e por aí vai.

Minhas bugigangas de viagem tinham de estar viradas a uma certa direção, e frequentemente me gabava, para mim mesma, de que estava ficando igual a Kathy Bates em Misery, de Stephen King – eu podia imediatamente saber se alguém estivera em meu apartamento pela posição milimetricamente alinhada de meus pertences. A primeira coisa que fazia ao chegar em casa era checar se tudo estava em seu devido lugar. Só então conseguia relaxar.

Com o tempo, esse comportamento impulsionado pela ansiedade foi perdendo força. Paulatinamente, o equilíbrio começou a se restabelecer em outras áreas de minha vida, e consegui me desapegar daquela rigidez com a qual controlava meu ambiente.

Para ilustrar, é importante entender as definições aqui cabidas: transtorno obsessivo-compulsivo é um distúrbio de ansiedade – a pessoa tem pensamentos indesejados, que levam à repetição de certas ações, geralmente de uma maneira altamente ritualizada. Trocando em miúdos, o TOC consiste em dois elementos fundamentais: obsessão e compulsão. Resumidamente, obsessões são pensamentos ou imagens que não vão embora; que permanecem. Uma obsessão é invasiva e normalmente entendida pela pessoa que a possui como irracional, algo que não se consegue interromper, parar ou ignorar. Obsessões podem ter diferentes níveis, desde os mais leves, com ocorrências apenas ocasionais, até aqueles de fato severos, ininterruptos, que podem e costumam impactar negativamente uma vida. Esses pensamentos reincidentes resultam, cedo ou tarde, em relacionamentos pessoais tensos e causam dificuldades no ambiente profissional.

Obsessões podem levar à compulsão – denominação geral dada à maneira como a mente se mobiliza para lidar com os pensamentos indesejados que a inundam. Da mesma forma que, no meu caso, sentindo-me mentalmente confinada a um ambiente instável e caótico, descobri conforto e alívio na ordenação minuciosa de meus pertences, muitas pessoas, por sua vez, encontram meios de amortecer o medo de doenças, por exemplo, lavando as mãos ritualmente.

Obsessões são pensamento recorrentes; compulsões, ações recorrentes. Usa-se a compulsão para espantar – fintar, domar, de certo modo adiar – a obsessão. O perigo, porém, é que as obsessões, quando não tratadas verdadeiramente, voltam, e forçam o sujeito a uma compulsão ainda mais extrema – o que constitui um ciclo negativo e permanente de obsessão-compulsão.

Confunde-se, geralmente, compulsão com alguma modalidade de vício. A diferença, contudo, é reluzente. Pessoas que sofrem de algum vício se sujeitam a situações extremas, não raro prejudiciais, motivadas pela promessa de prazer – gozo que costuma ser ilusório, e cada vez mais difícil de alcançar, o que leva os viciados a uma nova dosagem, progressivamente maior, seja de droga ou, em busca de carga adicional de adrenalina no sangue, de alguma atividade física.

Aqueles que lutam contra a compulsão não sentem prazer nas ações repetidas. Uma vez terminado o ritual, seja o de abrir e fechar portas ou o de lavar as mãos seguidamente, a pessoa é apenas tomada por um sentimento de alívio, de relaxamento da pressão decorrente do pensamento obsessivo. Nada a ver com o prazer, porém.

Isso pode ser um pouco confuso. De modo geral, viciados chegam a um ponto em que não conseguem mais usufruir do comportamento – do estado – viciado, momento a partir do qual apenas procurarão saciar a necessidade de consumo ou de envolvimento. Habitualmente, isso é potencializado pela abstinência, tanto mais se prolongada. Assim, apesar de parecer um comportamento obsessivo-compulsivo, devido ao fato de o elemento gerador de satisfação não estar mais presente, a motivação original do tal comportamento consistia em “sentir” prazer.

Outra diferença fundamental entre vício e compulsão está na consciência sobre a realidade. Aqueles com TOC geralmente têm noção de que sua obsessão não se baseia na realidade. Frustram-se e perturbam-se ante a própria necessidade de praticar comportamentos ilógicos, mas, de modo a aplacar a ansiedade, sentem-se obrigados a tal.

Por outro lado, os viciados costumam ser bastante desligados de qualquer consciência sobre a falta de sentido de suas ações. Justificam-nas com autoenganos e com razões autoilusórias – o sentimento de que estão somente “se divertindo”, por exemplo, ou a impressão de que outras preocupações não são tão relevantes. Essa negação da realidade tende a não ser confrontada até que alguma grande ocorrência, com consequências graves, force a emergência da percepção sobre o real – um acidente devido à ingestão de álcool, ou a perda de uma disputa de custódia.

O diagnóstico do TOC é complicado e delicado, pois o transtorno geralmente vem acompanhado de algum outro distúrbio psicológico, daí que possa se apresentar em uma grande variedade de comportamentos. As obsessões mais comuns incluem o medo de doenças e/ou de germes, a significância descabida dada a certos números, as excessivas precauções de segurança e uma preocupação torturante sobre se algo foi feito “da maneira certa”.

As mais frequentes compulsões que se contrapõem a essas obsessões são: lavar as mãos seguidamente, usar antissépticos, repetir certos movimentos um número específico de vezes, fechar e abrir portas, checar e rechecar o desligamento de aparelhos elétricos, acumular coisas e fugir de certos itens e/ou lugares (como faz o personagem de Jack Nicholson em Melhor impossível, que evita pisar nas rachaduras das calçadas).

Para mim, o leve TOC era um jeito de lidar com a obsessão de que a minha vida se despedaçava sem que eu tivesse qualquer controle. Isso estava claro como a luz do dia. Sabia por que fazia aquilo – algo que, de resto, nunca chegou a interferir no meu cotidiano. Para muitos, entretanto, o TOC é uma dificuldade e um caminho alienante.

A vida hoje muitas vezes é caótica e exigente. Existe a pressão para que sejamos bem-sucedidos em nossos trabalhos, em nossos relacionamentos e em nossas amizades. Nunca antes se viveu numa sociedade que demandasse tanta estabilidade e felicidade individual. Os estados de depressão, tristeza ou raiva são repudiados e tratados como doenças, e nossos mecanismos de luto são progressivamente eliminados, pois – somos sempre lembrados – o show tem de continuar.

Será muito espantoso, então, constatar a quantidade de pessoas que ora se encontram em plena luta contra os distúrbios de ansiedade, como o TOC? No mundo ocidental, somos obcecados pela felicidade, como se fosse um objetivo inalcançável, quase um destino, quando, na verdade, é um simples estado, aliás atingido justamente quando conseguimos nos desapegar de nossas melhores e maiores expectativas. Ser obcecado se tornou o padrão de várias maneiras, e a terminologia caiu no uso popular. Aplicamos – jogamos – a palavra como se não tivesse peso e, assim, potencializamos verdadeiras obsessões, alimentadas pela persistente ansiedade de estarmos sempre “à altura”, sempre encaixados às normas.

Só conseguiremos realmente entender o dano perverso que o verdadeiro comportamento obsessivo-compulsivo pode causar sobre as sociedades quando finalmente aprendermos a não ser obcecados pela nossa própria felicidade, expectativa social e definições de sucesso.

Ate lá, porém, deixe-me fazer mais uma “ronda” pelo quarto e verificar se todas as minhas portas estão fechadas.

#9ObsessãoAmarello Visita

Amarello Visita: Les ateliers d’art

Eram oito horas da manhã e tomávamos café ao lado do Studio Massaro, perto da Place Vendôme. Jet lag, tudo meio corrido e confuso. Um suco de laranja, café preto, teste de máquinas, verificação de baterias e de memórias, e pronto. Lá estávamos.

Quem fez as honras da casa foi uma canadense extremamente simpática e bem treinada, que nos deu uma aula de história da moda das últimas décadas, guiando-nos pelos corredores labirínticos dos Ateliers d’Art.

Os ateliers de alta-costura Lesage (bordado), Massaro (sapatos) Desrues (botões e joias para roupas), Guillet (flores de tecidos), Maison Michel (chapéus), Maison Lemarie (penas) e Robert Goossens (ouro e prata) são patrimônios sócio-culturais da França. Nasceram como pequenos negócios familiares, o mais antigo foi fundado em 1880, e abasteceram quase todas as maisons francesas.

Nos anos oitenta do século XX, com o mundo se direcionando para o lifestyle frenético em que vivemos, a alta-costura perdeu espaço para as roupas prêt-à-porter, e esses pequenos negócios familiares começaram a ver seus patrimônios ruírem com o avanço das grandes marcas. Não é necessário dizer que o prêt-à-porter nunca substituirá a haute couture. Não existe vanguarda sem tradição. A alta-costura é, pois, o resto de sonho que existe na moda, em que designers podem ser artistas e a palavra tendência surge unicamente para somar.

Os designers são grandes gênios, mas não teriam a mesma fama não fossem as costureiras, bordadeiras e sapateiras que transformam seus sonhos em realidade. O nível de habilidade dessas pessoas é tão raro e refinado que, de um rascunho quase abstrato de Lagerfeld, conseguem traduzir e criar verdadeiras pérolas em tecidos e couro.

Devido justamente a essa manufatura especializada, contudo, alguns desses ateliers estavam condenados a “pendurar seus chapéus”, até que, em 2002, a Chanel SA fundou a empresa PARAFFECTION (numa tradução livre, “por amor a”), cuja missão consiste em salvar o patrimônio da alta-costura francesa e preservar seu legado e know-how únicos.

No Studio Massaro, o de sapatos, o clima é de oficina. Um ambiente extremamente artesanal, de concentração absoluta, com foco em cada detalhe e sob uma dinâmica de trabalho invejável. Cada artesão está completamente imerso em sua função, como se aquele fazer fosse a única coisa que importasse. Os poucos minutos em que conseguimos roubar a atenção desses olhos atentos são rapidamente interrompidos, e os artistas voltam a dedicar visão e alma ao ofício.

Montanhas de moldes de sapatos dividem espaço com banquinhos de madeira e mesas – os únicos móveis necessários para que os dedicados profissionais realizem com maestria seu métier. Um pequeno rádio a pilha sustenta a trilha sonora das pequenas salas, tocando chansons francesas e pop americano.

O processo de criação de um sapato Chanel começa sempre com um rascunho de Karl Lagerfeld. A partir desses desenhos, os artesãos criam protótipos, que depois podem ou não ser aprovados, e que, durante esse processo, ficam transitando entre o Massaro e a Chanel.

As modificações de última hora são uma constante, com a qual os artesãos já estão acostumados. Um sapato flat que vira um salto alto, um bico redondo que tem de “quadrangular”, uma sandália de tiras que acaba tomando uma forma fechada…

Tamanho grau de colaboração entre as duas maisons seria impossível, não fosse o bom relacionamento e entendimento entre o responsável pelo atelier Massaro – Philippe Atienza – e Karl Lagerfeld, da Chanel. Um cuidado que permanece prioritário – herança forte de Mademoiselle Chanel – é o conforto dos sapatos. Isso sempre foi primordial para ela, e assim continua.

Conversamos com Philippe Atienza, uma figura simpática, que nos recebeu com entusiasmo, sempre demonstrando paixão por seu trabalho.

Qual é o seu background?
Tenho um background de artesão como base. Quando se é artesão, se é também um criativo. Comecei minha formação com a Compagnon, como muitas das pessoas que estão aqui no atelier. A Compagnon é uma instituição. Uma escola francesa que dá formação a pessoas de diferentes métiers, como carpinteiro, marceneiro, padeiro e sapateiro. Cumpri uma formação de oito anos e trabalhei com calçados masculinos por muito tempo antes de entrar para a Massaro, onde faço sapatos femininos. Durante essa formação, temos desejos de criação, vontade de fazer coisas, protótipos, sapatos, produtos bonitos. E certamente tentamos ser criativos, mas não se pode ser criativo no lugar dos criativos ou dos criadores. Na maioria das vezes, são as pessoas dos estúdios que nos dão uma direção. O Karl Lagerfeld principalmente.

Como você começou a trabalhar com sapatos?
Sempre fui um aluno particularmente estudioso e provavelmente conseguiria ter um diploma de algo sofisticado como a escola politécnica, ou algo do gênero. Mas decidi fazer outra coisa. A grade escolar convencional não me agradava muito, então decidi fazer algo não convencional e aprender um métier que, originalmente, tivesse alguma relação com o esporte que praticava: a equitação. Queria aprender a fazer botas de equitação, e isso provocou todo o resto.

Como você descreveria esse atelier?
É um espaço de vida extremamente confinada, onde estamos todos muito próximos uns dos outros. Um espaço bem pequeno. Talvez seja justamente isso que faz com que o atelier tenha um bom clima, porque, para se trabalhar em um ambiente como esse, é fundamental que a gente se entenda bem. Realmente temos uns aos outros, somos muito próximos, e esse é o primeiro elemento a ressaltar. Além disso, é um ambiente onde se sente claramente o clima de atelier de sapatos, onde as pessoas fazem frequentemente “experimentos” com as formas, a maneira de costurar etc. Um atelier de sapatos não é bem um atelier organizado, como um laboratório, em que se fazem as coisas com muita precisão, com muitas medidas específicas. Não, não… Somos um atelier que pode parecer um pouco bagunçado, muitas vezes, em termos de falta de organização, mas onde as pessoas sabem perfeitamente como encontrar todas as coisas; e é o métier que exige isso mesmo.

Como você descreve o seu método de criação ou de trabalho?
Tentamos ao máximo conservar um savoir-faire de sapateiro… Um tato com relação à história desse métier, pois isso representa algumas décadas ou até mais. E é justamente o fato de conservarmos esse savoir-faire ancestral que nos permite fazer belos sapatos. A propósito, não somos fechados ou resistentes a novas tecnologias ou a novos métodos de trabalho que nos possibilitem crescer. Porém, antes, o que nos permite produzir com essa qualidade é dominar o savoir-faire de sapateiro tradicional.

Você considera o seu métier uma arte?
De certa maneira, sim. Nesse métier a gente fala muito de artesãos. Nesse campo é um pouco difícil se definir… Para mim, o artista é uma pessoa efetivamente criativa, que produz peças únicas e tal. Então, é um pouco difícil nos considerar artistas. No entanto, as pessoas que trabalham nesse atelier têm paixão por aquilo que fazem, o que certamente nos autoriza a, em certa medida, considerá-las verdadeiros artistas.

Qual é o período de desenvolvimento de uma nova coleção?
Em janeiro, temos a primeira coleção de alta-costura do ano. Em seguida, podemos eventualmente nos associar à coleção prêt-à-porter, que acontece entre fevereiro e março. Depois, nos meses de maio e junho, temos a segunda coleção de alta-costura. E enfim, ao final do ano, nos meses de outubro e novembro, fazemos a coleção dos métiers d’art.

Qual é o seu material preferido para fazer sapatos?
O couro, claro.

Qual sua maior ambição como artista, e como ser humano?
Conseguir desenvolver e expandir as atividades da Maison Massaro. Fazer crescer a atividade da Massaro com o nosso trabalho. Isso é minha maior ambição como artista, de crescer um pouco na sociedade. Pessoalmente, minha ambição é conseguir fazer isso com a equipe do atelier, que é, como já disse, composta de pessoas extremamente fiéis, que amam o que fazem e que se entendem bem. Minha ambição é fazer tudo isso junto com as pessoas com as quais trabalho.

E o que você visualiza para o futuro?
Grandes coisas! Podemos começar de maneira simples. Hoje temos esse salão/showroom. Então, quem sabe se um dia teremos uma loja.

Ao chegarmos no atelier Lesage, fomos encaminhados a uma sala sobre cuja enorme mesa central havia uma montanha de tecidos, composta, logo notamos, de pequenas amostras de bordados feitos ali – o que, acho, seria o sonho de consumo para qualquer estudante ou pessoa que trabalha com moda.

Corredores apertados levam a salas específicas, dedicadas a cada parte do processo de bordado, todas sempre abarrotadas de detalhes: linhas de todas as cores possíveis e imagináveis, agulhas de todos os tamanhos e formas, pérolas (muitas pérolas), pedras, fitas, borlas; tudo devidamente guardado em compartimentos pré-estabelecidos. As gavetinhas de madeira, charmosamente antigas, abrigam os rolos de linha de costura coloridas, formando uma composição visual digna de um quadro do Monet. As pérolas, por sua vez, são estocadas em pequenos pacotinhos feitos de papel craft, envoltos por linhas rústicas.

Schiaparelli, Yves Saint Laurent, Chanel, Lacroix, Christian Dior, o atelier Lesage possui o maior arquivo de bordados do mundo. São 60 mil amostras, espalhadas e estocadas de acordo com a coleção, em salas especificamente designadas para tal. A razão para essa quantidade enorme de amostras reside no fato de que, para cada bordado feito no Lesage, é obrigatória a produção de ao menos um segundo exemplar. Imaginem só o que já arquivaram em quase noventa anos!?

Fundado no ano de 1924, por Marie-Louise Lesage, o atelier logo passou a ser comandado por seu filho, François Lesage. Quando tinha apenas dezenove anos, ele foi enviado aos EUA, pelo pai, com a ordem de levar uma mala cheia de bordados para Hollywood. Em 1949, Hollywood vivia sua época de ouro, e a meca do cinema mundial começou a notar Paris e a projetar colaborações com a cultura francesa. Esse seria o próximo negócio do atelier.

Chegando lá, François logo aprendeu inglês, e o passo seguinte foi abrir uma pequena loja no Sunset Boulevard. Foi ali que começou a fazer fittings com Marlene Dietrich, Greta Garbo e todas as grandes atrizes da época, conquistando o mercado hollywoodiano. Seu pai morreria alguns meses depois. François teve de voltar a Paris, com apenas vinte anos, para assumir o comando do negócio.

Dois anos antes, em 1947, Dior lançou seu novo look, que revolucionou o modo feminino de se vestir. Propunha uma cintura bem afinada e saias extremamente volumosas – algo bastante chocante para a época. Era o pós-guerra e tudo era extremamente restrito. Além disso, alguns outros estilistas surgiram ao mesmo tempo, como Balenciaga. A missão do senhor Lesage era conquistar esses novos estilistas e convencê-los a trabalhar com ele.

Foi quando François conheceu o jovem Yves Saint Laurent, na maison Christian Dior. Juntos, desenvolveram uma relação de trabalho que durou 44 anos. Todos os bordados feitos para a Dior, durante o tempo em que Yves Saint Laurent trabalhava lá, foram obra do atelier Lesage. E, depois disso, continuaram fazendo os bordados para Yves Saint Laurent Couture e Yves Saint Laurent Prêt-à-Porter, na década de 1960.

Outro estilista muito importante para o senhor Lesage foi Christian Lacroix. Ao se pensar em Lacroix, é quase automático se lembrar de bordados decadentes, estilo anos 1980. François considerava Lacroix como seu “afilhado” da moda, e, já naquela época, julgava muito importante apoiar e ajudar no desenvolvimento de novos talentos da indústria. E isso continua sendo prioridade do atelier até os dias de hoje. Incentivam as novas marcas e os novos designers, através de preços mais atraentes, a usufruir dos bordados, ao mesmo tempo para dar oportunidade e para não deixar o métier “envelhecer”.

A Chanel somente começou a trabalhar com o Lesage em 1983, com a chegada de Karl Lagerfeld. Mademoiselle Chanel era muito resistente em permitir que seus desenhos saíssem da rue Cambon (onde fica a Maison) e preferia manter tudo internamente. Em 2002, porém, a Chanel comprou o Atelier Lesage, que agora faz parte de seus Métiers d’Art.

Trabalho sério é trabalho sério, independentemente de estarmos na França, na Índia, no Japão ou no Senegal. Todo francês conhece esses ateliers, seus trabalhos e suas histórias. Fazem jus à fama que a França tem em fazer a melhor moda do mundo, pois vendem história, patrimônio, sonho, glamour e qualidade; itens raros no mundo pós – ou sabe-se-lá-o-que – moderno em que vivemos.

#8AmorCrônica

Amor e política são muito parecidos

por Léo Coutinho

À primeira vista ninguém diz, mas, olhando com carinho e sem preconceitos, as semelhanças se impõem.

Impossível não lembrar de Nelson Rodrigues – que, neste 2012, completaria cem anos – e citar uma de suas máximas: “Dinheiro compra até amor verdadeiro”. Claro que é uma piada, uma ironia que busca, através da agressividade, denunciar as fragilidades do caráter humano. Quem aproxima a política do amor percebe isto no ato. Porque dinheiro pode até comprar apoio de ocasião, mas não um ideal.

Em mais uma lição rodrigueana, compreendemos que a quem ama basta o amor, que não precisa ser correspondido. Sentir o amor verdadeiro já é o prêmio para quem o tem no coração. Na política é a mesma coisa. Um ideal sozinho justifica toda a existência. E nem precisa ser realizado para confortar. Muitos velhos já escreveram sobre isso. Todo o dinheiro do mundo significaria pouco ou quase nada no prato do último balanço se no outro estivesse uma vida fria, vazia e sem sentido.

Mas é claro que o amor correspondido e o ideal alcançado são a plenitude em vida. Afortunados são os que têm um ou outro. Os que têm ambos costumam entrar para a história sem nem se dar conta. A sensação é tão boa que todo o mais se torna supérfluo. Lhes é comum até esquecer que a comida, a bebida e mesmo o ar são essenciais.

E mais uma vez Nelson vem nos ensinar. Quando dizia que os que amam de verdade são capazes de matar ou perdoar, nisso poderia incluir os políticos missionários. São esses os homens capazes de morrer ou abraçar o pior inimigo se for para salvar a causa, enquanto os profissionais só querem defender a própria pele – para tanto dispostos a abraçar qualquer um, o que nada lhes custa.

Para uma cabana ser suficiente só precisa ser a casa de um amor ou de um ideal. O amor capenga precisa de sofisticações que o completem ou que pelo menos lhe emprestem esta sensação. Não fica em paz numa praia, num banco de praça. A política sem ideal também carece de títulos, honrarias, distinções, palácios; não sobrevive a quinze minutos de militância na Praça da Sé, no balcão da padaria ou numa tribuna sem claque.

A utopia e os sonhos são irmãos do amor e da política. Não servem para nos afastar da realidade, muito menos para nos fazer dormir. Quem ama e faz política sonha acordado, numa busca incansável por uma realidade melhor. Vale mais o sonho bom do que a realidade omissa. Aposto que quando Machado de Assis disse ser melhor cair das nuvens do que de um terceiro andar estava olhando para o céu – não para o chão – e pensando nos amantes e nos políticos.

Em amor e em política o céu é o limite. Quem tem um ideal não quer outra coisa que o horizonte. No coração de quem ama, a beleza da primeira estrela a brilhar é a continuação do pôr-do-sol: há intimidade com todas as fases da lua, o hoje é para sempre, o infinito é mais que tudo.

#8AmorCrônicaCulturaLiteratura

O que existe além do que já foi dito sobre o amor

por Carolina Ferraz

O que existe além do que já foi dito sobre o amor? Não faço ideia… Mas gostaria de saber. Afinal, toda minha vida é pautada em amores que tive ou gostaria de ter. Sobre os que tive, não tenho muito a dizer. Amei e fui amada. Acreditem, amei bem e fui muito bem-amada! Mas foi um só amor, um único amor que veio, cruzou minha vida, tocou minha alma e ficou marcado em minha pele. Um só. Poucas vezes a frase de um filme “água com açúcar” fez tanto sentido pra mim. Me senti como Diane Keaton, em Alguém tem que ceder, na calçada daquele restaurante em Downtown, confrontando Jack Nicholson sobre como conseguia sair com outra mulher depois do final de semana inesquecível que tiveram juntos. Lembram-se disso? Os dois personagens se encontram nos Hamptons e acabam vivendo um momento divertido e profundo. Logo na sequência, porém, veem-se em um restaurante – e ele está jantando com outra mulher. Pobre Diane Keaton… Seu mundo desaba ali mesmo e o inevitável acontece: é tomada por um enorme sentimento de perda.

Quando conversam na rua e ele alega ser um jantar sem importância, ela rapidamente diz que nunca mais as coisas serão “sem importância”, pois está in love with him, e que, depois daqueles dois dias juntos, tocada pra sempre, jamais será a mesma pessoa. Isso, falado por esses dois grandes atores, tem sua dose de charme e humor, mas o texto é sério e a cena, comovente. Sei o que aquela mulher sentiu ali, naquela calçada, diante do homem que amava: toda a dor e a decepção de um coração partido. Quem não sabe? Para além de tudo, absolutamente tudo, todos nós carregamos conosco uma história; aquela que só nos atrevemos a lembrar quando, durante a noite, no escuro, encostamos nossas cabeças no travesseiro e o silêncio cala fundo…

Não importam os anos ou nosso momento atual, certas coisas simplesmente permanecem. Tudo muda, nós mesmos mudamos, mas algumas coisas ficam, ignorando as nossas vontades e o autocontrole. Não se trata de algo que nos imobilize ou que paralise o curso de nossas vidas. Seguimos adiante, com força e determinação. Conseguimos muitas vezes nos apaixonar outra vez; talvez até casar e ser felizes. Mas então, numa tarde de quinta-feira de um ano qualquer, tropeçamos nesse amor já supostamente esquecido e, apesar de nada, absolutamente nada mudar em nossas vidas (afinal, seria muito complicado!), percebemos que amor igual não há e que aquela pessoa continua e continuará a ser nossa referência afetiva mais sincera e profunda. Não é doença nem obsessão. Aliás, não é coisa alguma. Apenas amor… dos bons, daqueles que são únicos e maravilhosos, e que acontecem raras vezes; daqueles que ficam e com os quais teremos de conviver como algo concreto, parte ativa de nosso cotidiano.

Muitas vezes travamos um diálogo interno com esse amor, trocamos ideias, escrevemos uma conversa na qual fazemos perguntas e respostas, transformando essa história em um monólogo que pode ultrapassar décadas, como já descreveu tão bem o escritor Gabriel García Márquez. Quando leio Amor nos tempos do cólera, invariavelmente me emociono. Como é lindo imaginar que um barco irá subir e descer aquele rio para proteger aquele amor de tudo, da cólera, da realidade; mas que realidade!? O que pode ser mais real do que o amor de duas pessoas? Qual realidade é mais profunda e concreta que a dos nossos sentimentos? Sei que todos precisamos de comida e de dinheiro, mas que alma consegue atravessar a vida sem ter conhecido o amor e sem ter, quem sabe, a sorte de ser correspondido? Que vida vale a pena sem amor? Nenhum sentimento é mais lindo, profundo e transformador. Só ele transcende e purifica, enlouquece e cura, invade e permanece, liberta e aprisiona… E quando acontece, definitivamente, é um som grave que penetra, ocupa e fica.

O que mais me encanta e fascina é que, embora complicado, o amor é na verdade bastante simples: “eu te amo e você me ama; então, vamos ficar juntos”. Isso parece o óbvio ululante, mas não funciona assim… Uma sucessão de fatores complicantes e desconcentrantes toma as vidas de qualquer um apaixonado, muitas vezes fazendo com que se esqueça da única coisa que realmente interessa: o barco! O barco está logo ali, esperando os corajosos de coração para carregá-los rio abaixo e acima, por toda a eternidade, e para proteger seu amor da cólera do mundo. Sempre que hesitarem, pensem em Cem anos de solidão ou em Amor nos tempos do cólera e acreditem: sempre haverá um barco para os fortes de coração. Portanto, não compliquem, nem elaborem o sentimento mais incrível e poderoso de todos. Permitam que chegue e se instale, pois o resto são bobagens, meninos, bobagens…