Eram oito horas da manhã e tomávamos café ao lado do Studio Massaro, perto da Place Vendôme. Jet lag, tudo meio corrido e confuso. Um suco de laranja, café preto, teste de máquinas, verificação de baterias e de memórias, e pronto. Lá estávamos.
Quem fez as honras da casa foi uma canadense extremamente simpática e bem treinada, que nos deu uma aula de história da moda das últimas décadas, guiando-nos pelos corredores labirínticos dos Ateliers d’Art.
Os ateliers de alta-costura Lesage (bordado), Massaro (sapatos) Desrues (botões e joias para roupas), Guillet (flores de tecidos), Maison Michel (chapéus), Maison Lemarie (penas) e Robert Goossens (ouro e prata) são patrimônios sócio-culturais da França. Nasceram como pequenos negócios familiares, o mais antigo foi fundado em 1880, e abasteceram quase todas as maisons francesas.
Nos anos oitenta do século XX, com o mundo se direcionando para o lifestyle frenético em que vivemos, a alta-costura perdeu espaço para as roupas prêt-à-porter, e esses pequenos negócios familiares começaram a ver seus patrimônios ruírem com o avanço das grandes marcas. Não é necessário dizer que o prêt-à-porter nunca substituirá a haute couture. Não existe vanguarda sem tradição. A alta-costura é, pois, o resto de sonho que existe na moda, em que designers podem ser artistas e a palavra tendência surge unicamente para somar.
Os designers são grandes gênios, mas não teriam a mesma fama não fossem as costureiras, bordadeiras e sapateiras que transformam seus sonhos em realidade. O nível de habilidade dessas pessoas é tão raro e refinado que, de um rascunho quase abstrato de Lagerfeld, conseguem traduzir e criar verdadeiras pérolas em tecidos e couro.
Devido justamente a essa manufatura especializada, contudo, alguns desses ateliers estavam condenados a “pendurar seus chapéus”, até que, em 2002, a Chanel SA fundou a empresa PARAFFECTION (numa tradução livre, “por amor a”), cuja missão consiste em salvar o patrimônio da alta-costura francesa e preservar seu legado e know-how únicos.
No Studio Massaro, o de sapatos, o clima é de oficina. Um ambiente extremamente artesanal, de concentração absoluta, com foco em cada detalhe e sob uma dinâmica de trabalho invejável. Cada artesão está completamente imerso em sua função, como se aquele fazer fosse a única coisa que importasse. Os poucos minutos em que conseguimos roubar a atenção desses olhos atentos são rapidamente interrompidos, e os artistas voltam a dedicar visão e alma ao ofício.
Montanhas de moldes de sapatos dividem espaço com banquinhos de madeira e mesas – os únicos móveis necessários para que os dedicados profissionais realizem com maestria seu métier. Um pequeno rádio a pilha sustenta a trilha sonora das pequenas salas, tocando chansons francesas e pop americano.
O processo de criação de um sapato Chanel começa sempre com um rascunho de Karl Lagerfeld. A partir desses desenhos, os artesãos criam protótipos, que depois podem ou não ser aprovados, e que, durante esse processo, ficam transitando entre o Massaro e a Chanel.
As modificações de última hora são uma constante, com a qual os artesãos já estão acostumados. Um sapato flat que vira um salto alto, um bico redondo que tem de “quadrangular”, uma sandália de tiras que acaba tomando uma forma fechada…
Tamanho grau de colaboração entre as duas maisons seria impossível, não fosse o bom relacionamento e entendimento entre o responsável pelo atelier Massaro – Philippe Atienza – e Karl Lagerfeld, da Chanel. Um cuidado que permanece prioritário – herança forte de Mademoiselle Chanel – é o conforto dos sapatos. Isso sempre foi primordial para ela, e assim continua.
Conversamos com Philippe Atienza, uma figura simpática, que nos recebeu com entusiasmo, sempre demonstrando paixão por seu trabalho.
Qual é o seu background?
Tenho um background de artesão como base. Quando se é artesão, se é também um criativo. Comecei minha formação com a Compagnon, como muitas das pessoas que estão aqui no atelier. A Compagnon é uma instituição. Uma escola francesa que dá formação a pessoas de diferentes métiers, como carpinteiro, marceneiro, padeiro e sapateiro. Cumpri uma formação de oito anos e trabalhei com calçados masculinos por muito tempo antes de entrar para a Massaro, onde faço sapatos femininos. Durante essa formação, temos desejos de criação, vontade de fazer coisas, protótipos, sapatos, produtos bonitos. E certamente tentamos ser criativos, mas não se pode ser criativo no lugar dos criativos ou dos criadores. Na maioria das vezes, são as pessoas dos estúdios que nos dão uma direção. O Karl Lagerfeld principalmente.
Como você começou a trabalhar com sapatos?
Sempre fui um aluno particularmente estudioso e provavelmente conseguiria ter um diploma de algo sofisticado como a escola politécnica, ou algo do gênero. Mas decidi fazer outra coisa. A grade escolar convencional não me agradava muito, então decidi fazer algo não convencional e aprender um métier que, originalmente, tivesse alguma relação com o esporte que praticava: a equitação. Queria aprender a fazer botas de equitação, e isso provocou todo o resto.
Como você descreveria esse atelier?
É um espaço de vida extremamente confinada, onde estamos todos muito próximos uns dos outros. Um espaço bem pequeno. Talvez seja justamente isso que faz com que o atelier tenha um bom clima, porque, para se trabalhar em um ambiente como esse, é fundamental que a gente se entenda bem. Realmente temos uns aos outros, somos muito próximos, e esse é o primeiro elemento a ressaltar. Além disso, é um ambiente onde se sente claramente o clima de atelier de sapatos, onde as pessoas fazem frequentemente “experimentos” com as formas, a maneira de costurar etc. Um atelier de sapatos não é bem um atelier organizado, como um laboratório, em que se fazem as coisas com muita precisão, com muitas medidas específicas. Não, não… Somos um atelier que pode parecer um pouco bagunçado, muitas vezes, em termos de falta de organização, mas onde as pessoas sabem perfeitamente como encontrar todas as coisas; e é o métier que exige isso mesmo.
Como você descreve o seu método de criação ou de trabalho?
Tentamos ao máximo conservar um savoir-faire de sapateiro… Um tato com relação à história desse métier, pois isso representa algumas décadas ou até mais. E é justamente o fato de conservarmos esse savoir-faire ancestral que nos permite fazer belos sapatos. A propósito, não somos fechados ou resistentes a novas tecnologias ou a novos métodos de trabalho que nos possibilitem crescer. Porém, antes, o que nos permite produzir com essa qualidade é dominar o savoir-faire de sapateiro tradicional.
Você considera o seu métier uma arte?
De certa maneira, sim. Nesse métier a gente fala muito de artesãos. Nesse campo é um pouco difícil se definir… Para mim, o artista é uma pessoa efetivamente criativa, que produz peças únicas e tal. Então, é um pouco difícil nos considerar artistas. No entanto, as pessoas que trabalham nesse atelier têm paixão por aquilo que fazem, o que certamente nos autoriza a, em certa medida, considerá-las verdadeiros artistas.
Qual é o período de desenvolvimento de uma nova coleção?
Em janeiro, temos a primeira coleção de alta-costura do ano. Em seguida, podemos eventualmente nos associar à coleção prêt-à-porter, que acontece entre fevereiro e março. Depois, nos meses de maio e junho, temos a segunda coleção de alta-costura. E enfim, ao final do ano, nos meses de outubro e novembro, fazemos a coleção dos métiers d’art.
Qual é o seu material preferido para fazer sapatos?
O couro, claro.
Qual sua maior ambição como artista, e como ser humano?
Conseguir desenvolver e expandir as atividades da Maison Massaro. Fazer crescer a atividade da Massaro com o nosso trabalho. Isso é minha maior ambição como artista, de crescer um pouco na sociedade. Pessoalmente, minha ambição é conseguir fazer isso com a equipe do atelier, que é, como já disse, composta de pessoas extremamente fiéis, que amam o que fazem e que se entendem bem. Minha ambição é fazer tudo isso junto com as pessoas com as quais trabalho.
E o que você visualiza para o futuro?
Grandes coisas! Podemos começar de maneira simples. Hoje temos esse salão/showroom. Então, quem sabe se um dia teremos uma loja.
Ao chegarmos no atelier Lesage, fomos encaminhados a uma sala sobre cuja enorme mesa central havia uma montanha de tecidos, composta, logo notamos, de pequenas amostras de bordados feitos ali – o que, acho, seria o sonho de consumo para qualquer estudante ou pessoa que trabalha com moda.
Corredores apertados levam a salas específicas, dedicadas a cada parte do processo de bordado, todas sempre abarrotadas de detalhes: linhas de todas as cores possíveis e imagináveis, agulhas de todos os tamanhos e formas, pérolas (muitas pérolas), pedras, fitas, borlas; tudo devidamente guardado em compartimentos pré-estabelecidos. As gavetinhas de madeira, charmosamente antigas, abrigam os rolos de linha de costura coloridas, formando uma composição visual digna de um quadro do Monet. As pérolas, por sua vez, são estocadas em pequenos pacotinhos feitos de papel craft, envoltos por linhas rústicas.
Schiaparelli, Yves Saint Laurent, Chanel, Lacroix, Christian Dior, o atelier Lesage possui o maior arquivo de bordados do mundo. São 60 mil amostras, espalhadas e estocadas de acordo com a coleção, em salas especificamente designadas para tal. A razão para essa quantidade enorme de amostras reside no fato de que, para cada bordado feito no Lesage, é obrigatória a produção de ao menos um segundo exemplar. Imaginem só o que já arquivaram em quase noventa anos!?
Fundado no ano de 1924, por Marie-Louise Lesage, o atelier logo passou a ser comandado por seu filho, François Lesage. Quando tinha apenas dezenove anos, ele foi enviado aos EUA, pelo pai, com a ordem de levar uma mala cheia de bordados para Hollywood. Em 1949, Hollywood vivia sua época de ouro, e a meca do cinema mundial começou a notar Paris e a projetar colaborações com a cultura francesa. Esse seria o próximo negócio do atelier.
Chegando lá, François logo aprendeu inglês, e o passo seguinte foi abrir uma pequena loja no Sunset Boulevard. Foi ali que começou a fazer fittings com Marlene Dietrich, Greta Garbo e todas as grandes atrizes da época, conquistando o mercado hollywoodiano. Seu pai morreria alguns meses depois. François teve de voltar a Paris, com apenas vinte anos, para assumir o comando do negócio.
Dois anos antes, em 1947, Dior lançou seu novo look, que revolucionou o modo feminino de se vestir. Propunha uma cintura bem afinada e saias extremamente volumosas – algo bastante chocante para a época. Era o pós-guerra e tudo era extremamente restrito. Além disso, alguns outros estilistas surgiram ao mesmo tempo, como Balenciaga. A missão do senhor Lesage era conquistar esses novos estilistas e convencê-los a trabalhar com ele.
Foi quando François conheceu o jovem Yves Saint Laurent, na maison Christian Dior. Juntos, desenvolveram uma relação de trabalho que durou 44 anos. Todos os bordados feitos para a Dior, durante o tempo em que Yves Saint Laurent trabalhava lá, foram obra do atelier Lesage. E, depois disso, continuaram fazendo os bordados para Yves Saint Laurent Couture e Yves Saint Laurent Prêt-à-Porter, na década de 1960.
Outro estilista muito importante para o senhor Lesage foi Christian Lacroix. Ao se pensar em Lacroix, é quase automático se lembrar de bordados decadentes, estilo anos 1980. François considerava Lacroix como seu “afilhado” da moda, e, já naquela época, julgava muito importante apoiar e ajudar no desenvolvimento de novos talentos da indústria. E isso continua sendo prioridade do atelier até os dias de hoje. Incentivam as novas marcas e os novos designers, através de preços mais atraentes, a usufruir dos bordados, ao mesmo tempo para dar oportunidade e para não deixar o métier “envelhecer”.
A Chanel somente começou a trabalhar com o Lesage em 1983, com a chegada de Karl Lagerfeld. Mademoiselle Chanel era muito resistente em permitir que seus desenhos saíssem da rue Cambon (onde fica a Maison) e preferia manter tudo internamente. Em 2002, porém, a Chanel comprou o Atelier Lesage, que agora faz parte de seus Métiers d’Art.
Trabalho sério é trabalho sério, independentemente de estarmos na França, na Índia, no Japão ou no Senegal. Todo francês conhece esses ateliers, seus trabalhos e suas histórias. Fazem jus à fama que a França tem em fazer a melhor moda do mundo, pois vendem história, patrimônio, sonho, glamour e qualidade; itens raros no mundo pós – ou sabe-se-lá-o-que – moderno em que vivemos.