Devo confessar que foi ligeiramente incômodo escutar, pela primeira vez, que eu possuía um rosto masculino. Inicialmente atribuí por impulso esta percepção pela semelhança que tenho com meu pai: trazemos os mesmos olhos indígenas, meio rasgados, o formato oval e alongado da face, a testa profunda. Aos poucos, compreendi que esta característica está adiante da herança paterna. Não tenho a menor dúvida de que meu franzino corpo não evoque qualquer entusiasmo viril, qualquer ímpeto de violência, como é de se esperar da masculinidade; mas reconheço que certa seriedade, forjada no peso dos anos, talvez tenha contribuído para a construção dessa máscara. Este masculino que em mim habita está impregnado em minha superfície: terno e grave ele se ancora, sem brigar com sua dualidade. Ambos os lados mantêm em silêncio acordos tácitos de camaradagem e sobrevivência.
Sinto que meus masculinos e femininos não devam ser acessados como forças opostas em tensão ou como lados complementares, mas como partes fulgurantes que constituem um mesmo corpo. Cada um deve ser apreendido pela sua autonomia e totalidade, distante do antagonismo notório que conhecemos e que os definem ora como luz, ora como sombra.
O que pode uma mulher, enquanto corpo, saber do masculino? Se há algum sentido nesse movimento, ele é feito em parte pela perda, pelo desejo de aproximar do que nos falta. A falta aqui é compreendida não como uma parte negativa inerente a dois pólos coexistentes, mas como o vazio pelo qual percorremos sem saber muito como; pela via do estranhamento da apropriação de um gênero diferente àquele que nos é dominante. O processo de identificação de uma mulher com seu masculino passa também pelo reconhecimento da assimetria da qual somos feitas.
Fora do corpo, o traço másculo torna-se evidente naquilo que é dominado por funções maquínicas, mecânicas e, principalmente, repetitivas. É o traço dotado de retidão, que se apresenta como uma flecha: capaz de grandes esforços em um só fôlego, percorre longos trajetos sem desvios, afinal, não é um corpo maleável, nem flexível. Sua maior virtude é a objetividade.
Tentemos nos desvencilhar desta noção de contrários. Não se deve destituir o masculino de nenhum corpo, de nenhum espaço. Até porque quando digo “o masculino” não me refiro, necessariamente, ao homem. Ao segundo é reservado uma função social, um jeito de ser e estar no mundo. Ocasionalmente, eles coincidem de ocupar o mesmo corpo.
Em seu romance Malina, Ingeborg Bachmann afirma que “de um homem a outro, um corpo de uma mulher precisa perder todos os seus hábitos e readquirir hábitos totalmente novos. Mas o homem prossegue calmamente em seus hábitos; às vezes tem sorte; na maioria das vezes, nenhuma.”. Isso me faz pensar na quantidade dos músculos de uma mulher que são contraídos durante um orgasmo, na relação destes com o jato de alívio do gozo do homem, e seu relaxamento imediato. Imagino como seria se os homens pudessem gozar indefinidamente, sem tempo refratário, na medida expressa do seu prazer. O gozo fálico é em si um coito, firme e pragmático. Já um orgasmo múltiplo, este tem em sua natureza um compilado de interstícios, uma gama de espaços vazios como aqueles a que estamos socialmente acostumadas a preencher dentro de uma relação, sexual ou não.
Na equação naturalmente desequilibrada dos conjuntos, fico me perguntando porque nos parece mais confortável alinhavar a ideia do masculino dentro do feminino do que vice versa; para que um corpo se transforme, ele precisa estar disponível para se metamorfosear, se dissolver e fundir com o seu meio. Deve estar preparado para ganhar, assim como para perder. Quando uma mulher encontra — e assume — o seu masculino, ela invariavelmente começa a perder. Primeiro vê suprimir uma parte de si, para enfim em seu exterior ver subtrair algumas de suas relações, na maioria das vezes as de menor importância.
Penso que é preciso fomentar o masculino de sua instabilidade, dotar o vigor de crises. Não uma crise qualquer, mas da instabilidade crítica de sua própria essência, como a que posso enxergar no estado de um corpo que se lançou no abismo e ainda não aterrissou. Este corpo enquanto permanece em queda livre, mantém sua confiança atávica. Tenta resistir ao vento, apesar da certeza do baque. Rígido, teso e seguro de si toca o chão, para em seguida se esborrachar.
No esfacelamento de sua retidão, na inevitável constatação de sua impotência bélica, eis um retrato da masculinidade que me parece mais interessante. E ele tem a beleza de um homem triste, consciente de seu fracasso.
Eu vivo a 11.000 quilômetros do meu pai. Quando me mudei para Berlim, meu pai se tornou memórias e afetos dispersos em imagens e sonhos, um homem cuja voz, cada vez mais lenta, escuto em ligações de WhatsApp uma vez por mês. Depois de um ano e meio, visitei o Brasil e reencontrei um pai diferente do que havia me despedido, com pele mais murcha, barba branca em expansão irregular pelo rosto, olhos avermelhados e vazios, e espírito mais abatido pelas crises profissionais e existenciais dos últimos anos.
Como foi que meu pai se tornou esse corpo com pouca vida? Com essa pergunta, embarquei no voo Porto Alegre-Lisboa e comecei a assistir Ad Astra (James Gray, 2019). No filme, o major Roy McBride (Brad Pitt) viaja até Netuno para localizar o astronauta H. Clifford McBride (Tommy Lee Jones), seu pai e líder do Projeto Lima, cuja missão era buscar novas formas de vida no espaço. O projeto fracassou, Clifford está sem contato com a Terra há 30 anos, e cientistas suspeitam que sua estação em Netuno seja a causa de circuitos explosivos que ameaçam o sistema solar.
A ida às estrelas é um percurso físico (pela Lua, por Marte, pelas novas fronteiras humanas na galáxia, por meio da adaptação tecnológica do corpo – Roy é o astronauta que se mantém “calmo, estável”, mesmo em queda livre), com metas objetivas (encontrar Clifford, destruir o Projeto Lima, estabilizar a vida na galáxia), mas também é uma ida ao interior, expediçãosubjetiva na qual Roy se confronta com o homem que se tornou (firme, voltado ao “essencial”, ele rompe com a esposa, Eve (Liv Tyler), para se dedicar apenas à ciência espacial). É, também, uma jornada de desconstrução do pai. Durante a viagem, a imagem do astronauta-pai começa a naufragar, de mártir da expansão interestelar a egocêntrico desequilibrado, preso num projeto frustrado, incapaz de retornar à Terra e colocar os pés no chão da vida pessoal e familiar.
Durante o filme, lembro a frase dita por um amigo, dias antes, em Porto Alegre: “Fazemos terapia porque nossos pais não fizeram”. Teria Freud salvo meu pai? Talvez, se a missão de resgate psicológico envolvesse um freudianismo que enfrentasse os ideais formadores, e depois deformadores, da vida do meu pai: o homem produtivo, bem-sucedido, masculinizado pelos assuntos que pode (deve) falar (futebol, mulheres, talvez política) e pela supressão das fragilidades, dos sinais do feminino, das mensagens enviadas pela subjetividade em busca de ajuda.
A compreensão de Clifford McBride passa pela viagem ao futuro e pelo questionamento do homem heroico, do astronauta norte-americano lançado ao espaço sideral, fugindo do espaço privado, do filho e da mulher, substituindo as frustrações das tarefas pessoais com uma grande tarefa histórica. No caso do meu pai, a compreensão teria que viajar ao passado e ao modelo de formação do homem segundo o germanismo carregado no nosso nome e encenado nas imagens fundadoras da família Kasper (a bisavó captura ratos em armadilhas improvisadas e arranca o rabo dos bichos com a própria mão, bate com cinta nas costas do meu avô e o tranca num quarto escuro por mau comportamento, e meu avô se torna silencioso, nem autoritário nem amoroso, refletido na incapacidade do meu pai de elaborar suas emoções).
Em Berlim, cidade das contradições alemãs, eu penso no meu pai enquanto vejo Frederico, o Grande, marchando eternamente no cavalo de bronze no meio da Unter den Linden. Aqui, pai e filho também habitam as lendas fundadoras. Berlim está devastada, metade da população foi queimada viva ou atirada no rio em guerras religiosas, e a dinastia dos Hohenzollern decide estabilizar e reconstruir a cidade. Dos escombros e da fome, Berlim se reergue como centro da Prússia. O contrato social se internaliza por meio do comportamento e da obediência dos súditos. O pai célebre dos Hohenzollern é Frederico Guilherme I. Ele se torna o Rei Soldado, criador do Estado em que 80% das receitas vão para armas e guarnições. Transformou a Prússia, principal força na unificação da Alemanha moderna, em “um exército com um Estado”. Disse que não olhava para mulheres, apenas para soldados altos: quando encontrava um, queria vê-lo com a farda da Prússia.
Talvez as relações entre pais e filhos passem por planos frustrados e ideais desconstruídos. Em Berlim, o Rei Soldado cria a Prússia militarizada, mas não provoca guerras. Gosta demais do seu exército para induzi-lo à morte. Tenta incutir a masculinidade prussiana no filho único. Mas o filho do Rei Soldado prefere canções a canhões, e garotos a garotas. O pequeno Frederico se esconde embaixo da cama com medo do pai. Quando jovem, reúne os amigos – apenas garotos – para tocar flauta e recitar poesia. O rei invade o quarto, acaba com o recital, joga os poemas no fogo da lareira. Então, o jovem ama (fisicamente) um de seus amigos, e o pai manda executar o amante. Aqui, as tensões psicológicas começam a agir na história: o jovem Frederico se casará por aparência, não terá mais amantes homens, continuará lendo filosofia e poesia (se tornará o Rei Filósofo), mas começará guerras, contra a França, contra a Áustria etc., “escrevendo poemas de noite e liderando batalhões de dia”. Ele havia se tornado rei com ambição e, como se dizia em Berlim, “sem coração”.
Depois da Segunda Guerra Mundial, em decreto de fevereiro de 1947, os países aliados decidiram abolir o nome Prússia, tida como núcleo do “militarismo e da reação na Alemanha”. Hoje, do Estado histórico Prússia-Brandemburgo, resta apenas o nome oficial Brandemburgo, região que circunda Berlim. Mas o que restou da Prússia mental? Como mapear e identificar, como tentar conter ou abolir a Prússia comportamental, a Prússia da vida controlada no relógio, da obediência sem crítica, da etiqueta à mesa sem debate ético na rua, do medo de expressar o que não está nas convenções, mas está na realidade dos nossos corpos, desejos, pensamentos?
Sobrevoando o oceano em direção à Alemanha, com as estrelas acima de mim, eu viajo por esses símbolos e mandamentos de um masculino em declínio, passo pelos astronautas e soldados que viveram suas funções sem viver suas emoções, pela educação inflexível destinada a formar um homem ideal, mas não um homem humanizado, liberado para descobrir e explorar seu universo interior. Então, eu chego de volta ao meu pai, e percebo a distância entre ele e o que ele poderia ter sido, se as missões impostas por seus modelos formadores tivessem sido mais leves e mais livres.
Além da expressiva presença de palco, característica que o manteve em destaque durante duas décadas no prestigiado Royal Ballet, Thiago Soares chama atenção por outra qualidade, desta vez nada relacionada ao corpo ágil, forte e esguio, talhado à perfeição para o balé clássico. Desde o início, em Vila Isabel, quando dançar na rua era umas das tantas atividades para ocupar as tardes, até a dedicação integral e irrestrita exigida em Londres, Thiago exibe uma constante disciplina ao momento presente. A entrega consciente ao agora, traduzida nesta conversa como o mais puro amor ao processo artístico, tem sido o alicerce fundamental na trajetória de uma das mais exitosas carreiras de um bailarino brasileiro no exterior. Responsável por adicionar novas cores e texturas aos movimentos tradicionais do balé, Thiago Soares conversou com a Amarello para falar sobre as dificuldades do início da carreira, o silêncio diante da família, o potencial revolucionário da cultura e os atuais desafios da dança no Brasil.
Thiago, eu gostaria de começar recuperando o seu tempo de infância. Qual é a memória mais viva que você carrega do bairro de Vila Isabel, no Rio?
Poxa, agora você me pegou. Em 2020, depois de ter vivido 20 anos na Europa, você me volta lá para Vila Isabel. Olha, o que me vem à mente é a 28 de Setembro, aquela avenida icônica, e certamente o som de samba da quadra da escola de Vila Isabel. Eu cresci ao som do samba de rua, do samba nas esquinas, nos bares, em um ambiente combinando essa musicalidade com os sons urbanos, das pessoas caminhando e fazendo compras. É algo bem característico.
Em Vila Isabel você começa, junto com o seu irmão, a dançar em um grupo de dança de rua?
Sim, foi em Vila Isabel que eu comecei. O meu irmão dançava nesse grupo de street dance e eu acabei me juntando a ele. É um grupo semiprofissional bastante sério, mas o meu irmão levava na brincadeira.
Como foi a sua experiência no Centro de Dança Rio?
O Centro de Dança Rio era uma escola que, na época, tinha mais ou menos 500 alunos, e entre eles não havia nenhum menino. Tenta imaginar uma escola em que a pessoa está lá para estudar exclusivamente dança, do meio-dia às nove da noite, e só tem meninas. É um sentimento muito estranho, porque você acaba refletindo, tentando entender se está no lugar certo e, se sim, que lugar exatamente é esse.
Como o Thiago Soares de agora reconhece essa experiência do jovem Thiago? Pergunto isso porque a proporção de 500 alunas para um aluno não me parece mera questão estatística, e diz muito sobre o entendimento da dança no Brasil.
É, acho que, olhando para trás, entramos em outro aspecto. Óbvio, existe uma postura cultural em que o balé sempre esteve ligado à ideia de que não era coisa de menino. A escola ficava no Méier, uma região localizada no subúrbio do Rio de Janeiro, em que a maioria das pessoas é de classe trabalhadora. Ali, as famílias não tinham empregadas, então eram os pais que levavam os filhos nas suas atividades antes do trabalho. Qual é a probabilidade de encontrarmos um bairro assim, no Brasil, em que os pais acompanham os filhos homens no balé, naquela época? Estamos falando aqui de 21 anos atrás. Exatamente por não ser algo natural que o fato de eu estar lá, estudando balé no Méier, por minha própria conta, numa escola em que só havia meninas, me colocava num lugar bem fora da curva.
Os seus pais sabiam do envolvimento do seu irmão com a dança de rua. Como eles enxergaram o seu movimento para o balé?
Olha, na verdade, meus pais não tinham nenhuma proximidade com a dança por conta do meu irmão, não. Ele dançava na rua, e nós tivemos uma criação que deixava claro que o que acontecia da porta de casa pra fora era outra história. Então, o meu irmão saía pra noite, bebia, paquerava e também dançava. A minha mãe só foi saber que meu irmão dançava depois que eu era um bailarino profissional, quando mencionei isso em entrevista, porque ele não dançava profissionalmente.
Você contou aos seus pais quando começou no Centro de Dança Rio, aos 16 anos?
Não, não contei. Não por nada, mas, a partir dos meus 14 anos, eu estudava e depois tinha as outras atividades, ir para a rua jogar bola e bola de gude, ir para a festa junina. Eu não cresci numa geração em que contávamos tudo em casa. Minha família ficava atenta se eu estivesse me metendo em alguma furada, usando drogas ou bebendo demais, mas, fora isso, eu era criado na rua. Esse meu contato com a dança foi um processo de autodescoberta, sabe? Lembro que cheguei a comentar alguma coisa em casa, porque precisava de calça de moletom. Na época, não se usava malha, então pedi uma calça de moletom e lembro da minha mãe dizendo: “que calça de moletom o que, garoto, com um calor desses, tá maluco?”. Pensei que era um caminho para contar que dançava, mas a resposta me fez desistir da ideia. Meus pais só vieram a saber da dança quando eu tinha 18 anos.
Chegou a imaginar se isso poderia ter sido um conflito, caso tivesse contado antes de se tornar um bailarino profissional?
Com certeza. Em algum lugar, meu pai sentia que algo estava acontecendo. “Ah, o Thiago deve estar brincando de alguma coisa por aí”, sabe? Eles não captavam completamente que eu estava estudando e me dedicando seriamente. Então, certamente teríamos conflitos, porque sempre ouvíamos o discurso do pai de família pobre: “E aí, como é que vai ser? Quando é que vai ser a hora de trabalhar?”. O meu pai ficava largando essas indiretas, mas eu estava convicto de que, de alguma forma, eu estava no caminho certo.
Até porque, pelo que você conta, a arte jamais surgiria nesse horizonte como uma possibilidade de futuro. No máximo, como um exercício ou um hobby, certo?
Exato e, no fundo, eu sinto saudade disso, sabia? Do sentimento de achar lindo sem ficar planejando. Acho que a arte está num lugar de abandono, e que talvez aqueles foram parte dos melhores momentos que vivi como artista, de só seguir o que está acontecendo, seguir a minha intuição e energia, e desfrutar da conexão que se cria com a arte. No meu caso, essa conexão virou uma sinergia tão forte que mudou o meu futuro. Embarquei com tanta convicção, que isso tudo foi ficando mais sério e o sonho foi se tornando realidade. Mas aconteceu porque eu me deixei levar, não exatamente porque fiquei planejando e pensando “ah, agora vou contar para o meu pai”. O que me interessava era devorar as sapatilhas e as meias e sair dançando. Era algo natural, como quando você se conecta com alguma coisa, vira um pequeno projeto pessoal e começa a dar certo. Pensando hoje, sinto que não dramatizei nada em relação à dança. Eu não quis chamar atenção porque vinha de uma família pobre, com dificuldades, nem porque era um menino hétero naquele lugar que assumiram que não era para mim. A questão é que eu me sentia feliz da vida com a sensação de ser deslumbrado pela arte, de perceber que a dança conversava verdadeiramente comigo. Senti tão intimamente essa relação que segui em frente, convicto.
Estando nesse lugar que você comenta que não era para você, você demorou para contar para os seus amigos? Eu não contei que dançava. Preferia dizer que fazia
teatro, porque, assim, justificava quando precisava sair mais cedo para ensaiar. Você vai criando estratégias. Na minha época, não usávamos o termo “bullying”, porque bullying era a zoação, e ela estava ali sempre, então tinha que aprender a conviver com isso e fazer jogo de cintura. Diante daquela mentalidade machista e suburbana, era melhor falar que eu fazia teatro, do que me dedicar a mudá-la. Até porque estava começando a estudar dança e a me descobrir como bailarino, então era um pacto de silêncio comigo mesmo. Não me interessava fazer notícia como o bailarino do colégio. Esse momento de autodescobrimento e de silêncio era o meu ouro, algo que me fazia sentir especial.
Avançando um pouco na sua carreira, quais são as suas fontes de inspiração como bailarino?
Eu gosto muito de arquitetura, assim como filmes, música e literatura. Na verdade, depende do que estou em busca. Vejo outros dançarinos e coreógrafos, para saber o que meus companheiros estão fazendo, mas, em termos de ter um norte, sinto que sou um artista eclético. Algo que sempre me vem à mente é o interesse por cidades e lugares diferentes. De alguma forma, sempre estou em busca de histórias. No palco, a minha referência passa muito pela figura de Fernando Bujones. Lembro de vê-lo e me projetar nele, de admirá-lo profundamente.
Foram duas décadas em Londres, atuando no Royal Ballet, começando como integrante do corpo de bailarinos até assumir a posição de solista principal de uma das mais importantes companhias de balé do mundo. Olhando com distanciamento, você consegue identificar o que o Ballet procurava em você quando o contratou? O que imaginavam que acrescentaria para a companhia?
Olhando agora, percebo que sou um artista de identidade muito forte e com uma visível persistência. Acho que me deram uma chance porque acreditavam que eu era persistente o suficiente e que, de alguma forma, somando isso a uma expressividade única, valeria a pena o investimento. Lembro do dia em que recebi o contrato do Royal. Ele chegou em um envelope pardo.
Era o seu sonho chegando pelo correio.
Imagino que o de qualquer bailarino. Até pode ser que artistas de dança contemporânea queiram ir pra outro lugar, outras companhias. Mas, se você calça uma sapatilha, veste uma malha e almeja dançar balé clássico, bem, então não há nada mais impactante. Havia o deslumbre de ser, do ponto de vista pessoal, o lugar ideal, porque imaginava que seria possível viver dessa vida de bailarino que conhecemos, que também é um pouco ator, porque o Royal tem essa característica e trabalha com esse repertório. Para mim, era ao mesmo tempo perfeito e surreal. O Royal Ballet foi a faculdade profissional da minha vida, um divisor de águas. Foi a melhor oportunidade que tive de aprender e me desenvolver. Eu não seria o artista que sou se não tivesse recebido essa oportunidade. O Royal Opera Hall é uma fábrica de talentos, uma fábrica de produzir espetáculos e, se você joga direitinho, respeita a tradição, é humilde o suficiente para querer crescer e querer aprender para se tornar uma estrela, ele se torna um lugar fascinante. Primeiro, porque você vai residir em uma cidade de primeiro mundo, pra frente; segundo, porque tem o dinheiro pra fazer produções de 5 milhões de libras. Sem contar o repertório, que é robusto, com artistas do mundo todo. Se tivéssemos que sonhar e inventar um lugar ideal para um artista, inventaríamos novamente o Royal. Ele foi essencial na minha caminhada em me tornar um protagonista
Nesse contexto, você teve a chance de interpretar praticamente todos os grandes protagonistas das peças clássicas. Qual foi o mais desafiador e com qual você mais se identificou?
É engraçada essa sua pergunta porque sempre tive a característica de um bailarino alto e esguio, com muita dinâmica de giros e saltos, todos os elementos evidentes para assumir papéis de príncipe, conde e aqueles protagonistas mais óbvios dos grandes balés tradicionais. Assim eu comecei e fui ganhando chances. A primeira foi como o príncipe da Bela Adormecida, depois eu fiz o Solor, no La Bayadère, em seguida Albrecht, em Giselle, que eram os de mocinho da história. Porém, a partir dos 30 anos, comecei a receber papéis mais dramáticos, como Eugene Onegin (Onegin), e o Rei Leontes (Conto de Inverno, de Shakespeare), todos esses balés em que fui me surpreendendo com a minha própria capacidade dramatúrgica e com o lado mais obscuro da interpretação. Eu desconhecia essa habilidade em mim porque sempre fui muito solar, um bailarino em busca de hope and love, então a idade me deu a chance de acessar esses novos lugares, e perceber que tinha muito talento para eles. Minha carreira foi se tornando mais madura e eu fui amadurecendo nos papéis, nos personagens. Hoje, sinto que esses papéis mais dramáticos viraram a minha marca nos meus últimos anos lá. Acho que um que me acompanhou muito e que muitas pessoas me viram foi Onegin, do John Cranko, que é um papel dos mais importantes de dança das companhias de repertório. E eu acho que um outro é o príncipe Rudolf em Mayerling, que é um balé muito importante na Inglaterra, porque o coreógrafo é o mais importante da casa, o Kenneth MacMillan. Ambos são balés em que o protagonista é vilão, em que a história, superficialmente bonita, bela e plástica, irrompe no drama, na morte, na tragédia. Curiosamente, foram os papéis da minha fase madura que se tornaram a minha assinatura.
Como era a sua rotina em Londres na época da companhia, e a sua relação com a dor?
Era uma vida basicamente de e para o teatro. Acordava, tomava café e ia para o teatro, onde passava o dia inteiro. Às vezes, saía para algumas reuniões e, às vezes, tinha os nossos espetáculos à noite. Sobrando tempo, ia em alguns eventos sociais, algo que é bem importante por lá. Mas era muito uma vida de trabalhador das artes. E, com tanto teatro, vem muita dor, claro. Até no filme que fizeram pra mim na HBO tem um capítulo que se chama Dor, de tão presente que ela é no meu caminho e no dos bailarinos profissionais. Vejo a nova geração, artistas que têm por característica comunicar tudo, o tempo todo, no mundo digital, e me pego pensando que, se alguém quer ter sucesso com dança de alto rendimento, o que significa ter duas profissões em uma — atleta e dançarino —, entendo que isso só vai acontecer se você aceitar amar o seu processo, a sua reabilitação e aprender a lidar com as imperfeições, não apenas com a perfeição. A profissão de bailarino é esse processo tortuoso, aceitar que, talvez, você nunca estará contente o suficiente consigo mesmo. A maior parte da jornada será de dor e desconforto, porque as posições que nós impomos ao nosso corpo ele não foi feito para realizar. Se você não for capaz de aceitar um processo lento, doloroso e de muita dedicação, então esse não é um futuro para você. Por outro lado, há muita satisfação que advém do reconhecimento do público por tudo isso. É uma arte que lhe permite voar sem asas, e você a realiza sem depender de nenhum adereço ou aparato tecnológico. Receber aplausos somente por aquilo que você realmente é, pelas suas habilidades, resulta em um sentimento mágico. Em um mundo em que as máquinas são cada vez mais as estrelas, poder ser reconhecido pela sua capacidade de se mover é algo único. E a dor sempre acompanhará a busca pela perfeição.
Depois de tantos anos fora, você abriu o seu estúdio no Rio de Janeiro. Como tem sido esse retorno e como você enxerga o cenário da dança no Brasil?
Estou bastante feliz. Sinto que não estou completamente inserido no mercado, porque o meu estúdio tem uma pegada bem diferente do que há. Vejo que continuamos muito ricos quando o assunto é talento de bailarinos, de alunos, de professores e coreógrafos. Nós somos extremamente talentosos, e digo isso, até, sem me incluir, apenas analisando os meus colegas que estão aqui, que fazem acontecer e vivem de arte. Mas a indústria da dança talvez pudesse se ajudar mais aqui. Percebo que o artista brasileiro se profissionaliza ao máximo com os sindicatos e as documentações necessárias, porém no seu cotidiano, nas regras e na disciplina pessoal ainda é muito amador. Existe uma vontade de se documentar e ter um papel
para se sentir protegido e respeitado, mas falta o aprendizado dessa disciplina, da seriedade, que é o que o circuito europeu tem bem mais do que nós. Percebo isso mais no Rio. Em São Paulo, a dinâmica me parece um pouco mais clara e organizada. Não falo de forma geral, mas, pela minha experiência, a dança brasileira encara a si própria como algo que existe unicamente para se colocar num palco, juntar plateia, ganhar patrocínio e bilheteria. Eu acredito que a dança pode mais, pode influenciar de forma mais profunda uma sociedade. Sinto que quando descobrirmos as nossas verdadeiras possibilidades, a indústria da dança no Brasil vai se encontrar em um lugar mais legal.
Fala-se muito do esporte como catalizador de uma vida melhor para os jovens, especialmente em uma sociedade desigual como a nossa, mas pouco se escuta da arte, da dança, como tendo esse potencial de entregar uma nova realidade. Qual é o grande desafio que temos na formação de bailarinos de alto nível? O preconceito ainda é uma barreira nesse caminho?
Olha, preconceito é a palavra do mundo, a grande cruz, este grande obstáculo que vem de todas as formas e maneiras. Ainda existe uma mentalidade um pouco antiga e retrógrada que não consegue realmente entender coisas muito básicas, imagina entender que a arte de dançar não tem absolutamente nada a ver com o sexo de alguém. Eu acho que outro obstáculo é essa história de, no Brasil, se seu filho quer fazer balé, bate a preocupação que meu pai teve: “Meu filho quer se dedicar ao balé, mas ele vai trabalhar? Ele vai ganhar dinheiro? Ele vai viver de quê? Ele vai ter aposentadoria?”. Isso tem a ver com a questão anterior. Onde é que a dança está num lugar robusto de uma indústria que se ajuda, que cria empregos, que gera mais oportunidades, que de alguma maneira pressiona o governo? E, ao mesmo tempo, de colocar em ação um governo capaz de enxergar os bem-feitos da dança? Clichê ou não clichê, eu sou um exemplo de que é possível. Nunca me considerei paupérrimo, mas tive inúmeras dificuldades, de pegar ônibus, de comer, e a dança me colocou no lugar que estou hoje, de rodar o mundo e influenciar muitas pessoas. Até meu próprio pai, que nunca tinha entrado num teatro, foi beneficiado, porque a cultura lhe possibilitou novas experiências, aprendeu sobre dança e aprendeu a ver novas realidades. Ele teve acesso às produções, conheceu coreógrafos e pessoas de quem ele nunca imaginaria estar perto, e isso, de alguma maneira, humanizou o meu pai, colocando-o em um lugar de entender melhor inclusive a si mesmo. A minha família toda foi beneficiada à medida que entendeu que novos horizontes são possíveis, a partir do que aconteceu comigo. É impossível negarmos o valor presente nessa mudança de perspectiva.
O potencial da cultura se realiza por completo quando passamos a vê-la não como uma “bolha” voltada exclusivamente ao entretenimento, mas como parte integrada da sociedade, como um pilar educacional.
Com certeza. Se um dia a cultura for tratada como prioridade, como na Alemanha, em que ela é pensada de igual para igual com a saúde e a educação, aí então vamos nos servir dos seus frutos. Essa é a circunstância que devemos almejar.
Qual é o traço distintivo do bailarino brasileiro? O que só ele tem?
Eu acho que é o fato de termos uma cultura popular muito rica. Essa mistura da nossa essência, que tem um DNA da cultura africana, reverbera numa movimentação com mais urgência, com mais suor, mais textura e cores. Uma vez uma coreógrafa falou isso de mim quando estava fazendo uma correção. Eu não estava sendo o mais perfeito do ensaio, mas as cores que eu estava conseguindo trazer estavam dando vida. Foi uma crítica e, ao mesmo tempo, um dos elogios mais interessantes que recebi. Ela disse: “Essa coisa do Brasil, essas cores”. Temos uma textura que vem também dessa liberdade, que é nossa culturalmente, e que levamos para encarar as regras rígidas do balé. Isso é algo único.
Se pudesse definir um legado que gostaria de deixar com a sua trajetória e, agora, com a presença do estúdio em solo brasileiro, qual seria?
Gostaria de deixar a persistência para algo que você ama, algo que conversa com você. Independentemente da sua arte, acho que seria persistência e o amor pelo processo. É isso que falo aos meus alunos, aos meus bailarinos. Se você consegue esse pacto de amar o processo, então você tem a chave para o movimento de estar sempre em busca, sempre em progresso. Até quando errar, vai perceber isso como parte do trabalho. Os resultados, as postagens incríveis, os aplausos, tudo isso é lucro, claro. Mas só será possível se estivermos em busca constante de novos movimentos e novos passos.
O primeiro registro das canções de Luís Capucho, embora só lançado em disco em 2003, aconteceu em um show no Rio de Janeiro em 1995. O álbum, chamado Antigo, apresenta uma das primeiras descrições explícitas do masculino em sua obra. A canção “Amor é sacanagem” afirma:
Felinos têm o desenho do rosto mais belo Que o desenho do rosto dos homens Quanto ao resto do corpo, homens são mais concentrados Quando olho o corpo e o rosto de um gato sei ver Mas quando olho você Com seu corpo concentrado Assim desse modo fico louco, eu sou louco, sou vulgar Sou vulgar no amor O amor é sacanagem Não tem poesia, nem matemática, o amor é magia
A “magia” da transfiguração é elemento fundamental do processo de criação de Luís Capucho. Movido por uma espécie de pulsão do olhar, o compositor tudo transforma por meio dos sentidos, dando relevo à potencial estranheza de todas as coisas. A canção começa com a imagem dos felinos, tão marcados por sua inteligência arisca, sua precisão de movimentos, sua sensualidade espontânea. Ainda que estes tenham o desenho do rosto mais belo, os homens são descritos como “mais concentrados”, em uma caracterização estranha tanto em si como na comparação.
Vejam que, de um lado, o corpo masculino aparece carregado de densidade física e simbólica e, de outro, revela-se o caráter central que a visão da masculinidade ocupa no olhar desejante dessa voz que canta. Declaradamente despido da idealização poética ou da lógica matemática, é por meio dos sentidos aguçados – concentrados – que o real se transfigura. Ou seja, é justamente na vulgaridade (desdobrada entre suas dimensões de banalidade e erotismo) que a magia se realiza.
2.
Além das canções, Luís Capucho também ficou conhecido por seus romances, dentre os quais destaco o Cinema Orly,de 1999. O livro é uma narrativa de evidente caráter autobiográfico, na qual acompanhamos as incursões do narrador-personagem nos cinemas pornográficos do centro do Rio de Janeiro, especialmente o que dá título à obra. Assim, somos apresentados ao espaço e seus frequentadores e assistimos à saga do protagonista em busca de prazer, mas também de um namorado.
A descrição do ambiente comenta os filmes pornográficos que se passam na tela, mas está concentrada no que acontece na contratela, entre as poltronas do cinema. Assim, o sexo eminentemente heterossexual da pornografia (onde homens másculos performam uma sexualidade viril) refrata-se na plateia sob a forma de experiência homoerótica. Nesse jogo de espelhos, evidencia-se o culto narcísico e falocêntrico da masculinidade, que está na medula deste livro e também é tema de destaque nas canções de Luís Capucho.
Já no primeiro parágrafo do texto, o narrador registra seu deslumbre em “ver na tela homens jovens nus com paus grandes, pernas abertas, muito grandes e gostosas, e sacos onde se pressente a umidade e o odor, deixando o nosso peito incandescido e a respiração inflamada”. Em outro momento, afirma: “Antes de beijar um homem, achava que vê-lo nu, aberto, os pelos amaciando a atmosfera, saco e pau escancarados junto ao tufo de pentelhos era encontrar Deus”.
O cinema e o sexo, na tela e na contratela, exibem-se como espetáculo de imagens, cheiros e sensações, que são captados tanto em sua beleza erótica como em sua atmosfera grotesca de suor, penumbra e fumaça, formando um conjunto obsceno em que o horror e a maravilha conjugam-se em vez de se oporem.
3.
O jogo de espelhos entre o que se passa dentro e fora da tela não é o único que se desenvolve no livro de Capucho. Nesse sentido, é fundamental pensar na centralidade do tema da masculinidade para a compreensão de sua obra. Em dado momento de Cinema Orly, afirma-se:
A masculinidade, representada por um caralho, era tudo que eu queria possuir, que eu invejava, que achava bonito, como se eu fosse uma mulher, como se eu fosse uma criança, um anjo, um bicho, uma ave e do que mais gostava era ir ao cinema Orly e, sendo tudo isso, ver minha imagem refletida em sua lagoa, como na história de Narciso, ou de Eros e Psiquê de Fernando Pessoa.
Nessa passagem, ficam evidentes os componentes narcísicos e falocêntricos da representação da masculinidade em Luís Capucho. A centralidade do falo é uma forma de atingir a transfiguração do ser e das coisas, fazendo desse sujeito mulher, criança, bicho, ave e, na projeção almejada, homem, masculino. Não por acaso as citações de Narciso (cujo lago se sobrepõe ao próprio Cinema Orly) ou de “Eros e Psiquê” de Fernando Pessoa, em que um príncipe que sonhava com a princesa descobre, ao final, que “ele mesmo era a princesa que dormia”. O texto de Capucho vai representando, assim, a fruição livre do prazer que conduz o sujeito à sua emancipação, à sua essência.
Já nas páginas finais do livro, o narrador nos conta que, quando criança, observava um rapaz lindo de vinte anos, sobre o qual diz: “Para mim esse rapaz era o símbolo da virilidade adulta e sonhava ansioso que eu completasse vinte anos para, enfim, estar possuído da graça de ser um homem”. E conclui:
Pois o Orly trouxe-me, antes do tempo pensado, essa masculinidade adulta tão esperada, embora não passasse de uma bicha. […] No Orly, não era uma bicha feminina nem masculina. Para mim, esse nada que eu era, a ausência de formação de imagens sensuais no meu espírito era a masculinidade, contribuía para ela meu corpo, minhas roupas, meus pelos, minha voz.
O gênero romance, como nos ensina Lukács, é uma narrativa em que o protagonista atravessa uma jornada em busca de conquistar sua essência. O fragmento acima, posto na parte final do livro, deixa claro que essa masculinidade, definida de modo particular, como um processo a um só tempo interior e exterior, é o ponto de chegada dessa aventura, ainda que as reiteradas incursões no cinema pudessem nos levar a crer, equivocadamente, que o sexo homossexual ou a conquista do namorado eram os objetivos últimos da empreitada.
O livro Cinema Orly é, desse modo, uma representação da homossexualidade masculina mas, sobretudo, da masculinidade homossexual, impulsionada também por um processo de identificação narcísica. Assim, o objeto desejado é também espelho, onde se encaram o desejo de ter e de ser.
4.
O livro Cinema Orly tem uma obra-irmã que liga o Luís Capucho escritor ao compositor de modo mais explícito. Trata-se do disco Cinema Íris de 2012, em referência a outro célebre cinema pornográfico do centro da cidade. A canção-título fala na “moça que faz striptease no cinema íris (…) enquanto homens masturbam-se na neblina do cinema”. Em dado momento, esses homens aparecem assim descritos:
Homens muito gordos, com barrigas enormes Homens maravilhosamente magros e altos Muitos masculinos Muitos femininos Jovens com carisma, com charme Com pernas muito gostosas abertas Aqueles tinham caras de veados Homens com caras cabeludos Homens com caras de bigode Homens com caras travestidos Homens com caras de hospício Homens com caras de mal
A repetição de “homens” aponta para uma multiplicidade adjetiva girando em torno de uma mesma força substantiva. Apesar de opor, em dado momento, os homens “masculinos” aos “femininos” (o que nos dá a dimensão do quanto essa distinção é facilmente compreendida e naturalizada), a canção se empenha no caráter concentrado dos “homens” e na atração que exercem sobre o sujeito.
Descrição muito semelhante aparece em Cinema Orly, reforçando o parentesco entre as duas obras e as duas formas de expressão de Capucho:
Havia homens muito velhos, mancos, com uma das pernas decepadas, muito gordos com barrigas enormes, homens maravilhosamente altos e magros. Muitos masculinos, muitos femininos, jovem com carisma, com charme, com cara de hospício, homens de bigode, de barba, imberbes, antipáticos, nojentos com cara de idiotas, louros, morenos, negros, mulatos, cabeludos, carecas, homens banguelas, fedidos, com nariz grande, homens robustos, mignons etc.
5.
Voltando ao disco Antigo, a canção “Mamãe me adora” faz um curioso jogo edipiano de espalhamentos, em que mais uma vez se exercita o caleidoscópio descritivo de homens. A letra começa com “Mamãe me adora/ profundamente ela me quer/ mais do que quis outros homens que ela também amava/ que ela também devorava”, e se desenvolve na constatação: “eu também sou feliz com homens/ como os que amou mamãe”, para chegar a uma lista extensa de contemplação do masculino: “homens que são cheios de tensão/ como diabos”, “homens que são como aparição/ como nossa senhora”, “homens que são belos e bons, sentados, homens em pé, fortes, feios, gordos, galantes, machos, motoristas, rudes, ruins… delicados, generosos, gentis, bravos, brutos, crespos, lisos, presos, soltos, suaves, sofisticados, simples, soldados, ciganos, pedreiros, patrões”.
Em um arco entre o diabo e a santa, o olhar sobre o masculino se multiplica novamente entre diversos adjetivos, todos unificados e conjugados em uma dimensão essencial – o masculino.
6.
Outras duas canções de Luís Capucho ajudam a pensar o masculino em sua obra, ambas unidas pelo signo da flor.
A primeira delas, “São flores”, afirma: “os rapazes são deuses pra mim/ que tudo são flores/ os caralhos são flores pra mim/ são deuses com flores/ são flores pra mim”. Novamente, observamos o culto falocêntrico que atravessa Cinema Orly , reverberando a citação em que o “caralho” aparece como representação da masculinidade. Outra vez, também, a masculinidade aparece complexificada pela aproximação com uma atmosfera lírica e sagrada, conduzindo à beleza e à contemplação. É notável, no fragmento, o apelo à imagética clássica, que conjuga a natureza e o divino, interseccionada pelos corpos expostos e bem-feitos dos deuses entre flores.
Isso nos leva à canção “Homens flores”, parceria com Marco Sacramento, em que se afirma:
Os mundos são mais belos Quando olhados pela janela E as colinas estão repletas de homens fortes E eu olho pra elas porque elas são o mundo inteiro E eu olho pra eles porque eles são o mundo inteiro E eu olho pra elas porque elas são meu terreno E eu olho pra eles porque eles são meu terreno Onde eu vou plantar Onde eu vou plantar Flores homens Homens flores
A imagem, posta em tela pelo quadro da janela, apresenta colinas repletas de homens fortes, em mais uma pintura verbal de natureza classicista. A arquitetura da composição é igualmente equilibrada, em frases límpidas e inversões de referentes que provocam todo um efeito. O sujeito olha para elas, as colinas, e para eles, os homens, conjugados como síntese do mundo inteiro e como “terreno” onde se podem plantar “flores homens”, “homens flores”.
Aqui, feita a aglutinação entre homem e natureza, os termos “flores” e “homens” são explorados em suas dimensões substantivas e adjetivas, reivindicando o paradoxo do masculino – símbolo de virilidade e beleza, força e delicadeza, estranheza e alumbramento. A masculinidade, posta assim ao espelho (flores homens/ homens flores), funciona como objetividade e transfiguração, visão exterior e revelação interior, unidade e multiplicidade.
O termo patriarcado se refere à cultura influenciada e dominada exclusivamente pelo homem, simbolizado na figura do pai. No mito de criação da igreja católica, Deus criou o homem e, a partir dele, a mulher, gerados com assimetria sexual e distintas atribuições. A função da mulher era fundamental à espécie, através da procriação. A divisão de papéis baseada nas diferenças biológicas era, dessa forma, funcional e justa.
E se Deus ou a natureza havia criado essas diferenças, ninguém poderia ser responsabilizado pela desigualdade.
A biologia masculina proporcionou maior capacidade física e agressividade, destacando o homem como melhor caçador e, por suas destrezas com armas, melhor guerreiro. Como chefe de família, passou a delimitar suas terras, cuidando do plantio, da colheita e da estocagem para a defesa e proteção de seus descendentes. Marca registrada da agricultura antiga, o patriarcado se tornou a base da civilização ocidental de diferentes maneiras, sendo a força responsável pela organização, ordem e produção e, assim, a subsistência. Ditou modelos de masculinidade e feminilidade, fortalecendo um padrão monogâmico, heterossexual e de expressão da individualidade.
E no silêncio da noite, fortaleceu a repressão da sexualidade, trancando a sete chaves os desejos mais íntimos de uma parcela da humanidade.
Os argumentos religiosos do século XIX foram substituídos pelos embasamentos científicos da teoria Darwiniana, que postulou a supremacia da sobrevivência da espécie sobre a autorrealização individual, ressaltando o papel da mulher na procriação e maternidade. Sigmund Freud destacou a ausência do pênis e a busca pela compensação na psicologia do feminino. Posteriormente, a biologia social considerou a maternidade não apenas um papel socialmente designado, mas, também, o que melhor se encaixaria às designações físicas e psicológicas da mulher. Assim, o patriarcado, atendendo a necessidades econômicas, políticas e sociais da civilização, se perpetuou através da história, reforçando a supremacia do masculino.
O progresso visível trazia benefícios a muitos, mas as insatisfações ocultas viriam a provocar grandes prejuízos a todos.
Com a revolução industrial, as mulheres foram obrigadas a trabalhar para sustentar suas famílias, o que lhes possibilitou um status financeiro e o acesso à educação. O modelo de casamento e das leis da era agrícola passou a ser questionado, e as mulheres começaram a se organizar para participar de marcos culturais e políticos, iniciando a luta pelo direito ao voto.
Após as consequências nefastas da Segunda Guerra Mundial, “a regra do pai” passou definitivamente a ser contestada pelas mulheres. Com o advento da pílula anticoncepcional, a gravidez passou a ser uma opção da mulher na obtenção do prazer e no controle da natalidade. Os homens foram favoráveis a essa conquista feminina em favor da sexualidade compartilhada, apoiando, inclusive, a oposição ao patriarcado. Isso pouco adiantou, pois a luta contra a dominação masculina já estava iniciada, incluindo a liberação das leis do divórcio e contra os estereótipos sexuais femininos.
As insatisfeitas se armavam.
Nos anos setenta, a contracultura, o movimento dos direitos civis e antiguerra deram força à criação do Movimento da Liberação da Mulher. O patriarcado desmoronou sem que o homem pudesse perceber o que estava acontecendo. No século XX, as estratégias masculinas de acasalamento foram desconstruídas, assim como o modelo de dinâmica sexual entre homem e mulher. O movimento feminista exigiu uma mudança nas regras de conquista, sem oferecer novas. O sexo casual e a monogamia em série se tornaram direito de todos. O casamento como um sistema designado a uniões permanentes fracassou, e o divórcio se tornou inevitável. “Até que a morte nos separe” era tempo longo demais para se esperar.
A raiva domina. A guerra começa.
A era da tecnologia abriu espaço para o relacionamento virtual: seguro, sem dor e sem contato. Para os que ousaram passar para o mundo real, os aplicativos de encontro determinaram as regras de onde, quando, como e com quem. Os homens se tornaram inseguros; as mulheres, impositivas. Nasceu a identidade de gênero. Mas o patriarcado, ainda que disfarçado, sobreviveu. Na mente e na atitude masculina e lá, muito no interior, da mente da mulher.
Todos estão perdendo: arquétipos do masculino
Carl Jung, renomado psiquiatra e psicólogo suíço, reconheceu o poder psíquico dos arquétipos, os quais residem no nosso inconsciente coletivo. São traços internos comuns a toda a humanidade, cuja forma de expressão é influenciada pela nossa experiência individual e cultural. Diferentes arquétipos estão subjacentes à experiência humana, mas alguns são fundamentais, pois abarcam expressões importantes e comuns ao nosso funcionamento mental e emocional. No universo masculino, três arquétipos se destacam: o soberano, o guerreiro e o sábio.
O arquétipo do soberano traduz o senso de finalidade e direção no mundo, a busca das melhores decisões para viver a vida, a carreira, como administrar o espaço ao redor, seja familiar, profissional ou social. A energia natural expressa é a liderança, a decisão, a maturidade e o poder; há sabedoria compassiva e disponibilidade para ajudar no amadurecimento alheio. A expressão deste arquétipo é quase inexistente no mundo atual.
O arquétipo do guerreiro possui atributos de nobreza, justiça e proteção a algo de grande valor. Um exemplo desse arquétipo está nos samurais, que, sob o comando de um senhor corrupto ou imoral, procuravam um novo mestre. Esse servidor necessitava de um chefe que o controlasse e o enviasse a missões de proteção a pessoas e ao território. Esse arquétipo é hoje melhor representado pela energia masculina que parte para a ação no mundo, define limites, realiza tarefas e alcança objetivos, ou seja, o trabalhador.
O arquétipo mítico do homem sábio tem origem nos magos do mundo antigo e nos brâmanes indianos, cuja grande motivação é a solução de problemas. Domina todos os tipos de pensamento, o racional, o lógico e o criativo, servindo como o conselheiro ou consultor do líder. Há uma atração pelos desafios intelectuais, mas sem muita consideração pelas consequências emocionais. É uma apresentação bastante comum, nos dias de hoje, no mundo financeiro e no desenvolvimento tecnológico.
Como os arquétipos do masculino se relacionam com o mundo atual? A mudança profunda de valores e crenças do mundo moderno e os novos posicionamentos de gênero tornaram o homem atual indefeso. Por procurar respostas fora de si mesmo, ficou ressentido e foi à forra. Desconectou-se de si mesmo e de suas emoções e personificou padrões do masculino que o distanciaram das forças psíquicas em sua totalidade. Resta a este homem olhar-se no espelho e ver com profundidade o que reflete, exercitar plenamente suas capacidades emocionais e reestruturar sua nova imagem perante uma sociedade que busca por igualdades e sofre para se reconstruir.
O trabalho Chiaroscuro nasce em 2019, quando iniciei meus estudos sobre as questões de gênero, e conheci a drag queen brasileira Rita Von Hunty, (Guilherme Terreri), hoje um(a) grande amigo(a) e fonte de inspiração deste trabalho. Rita é conhecida por suas aulas e palestras, uma marxista apaixonada pelo que faz, que acredita na educação, cultura e arte como forças motrizes na construção de um país melhor e mais evoluído.
Foi Rita quem me aproximou da cultura drag queen. Nossas conversas despertaram o meu interesse por essa arte, até que recebi o convite para conhecer um grupo formado por Alexia Twister, Mercedez Vulcão e Thelores, durante os ensaios para uma peça de teatro. Sim, ao contrário do que eu imaginava, elas não estavam fazendo show em uma casa noturna, mas em um palco de teatro revelando seus traumas. Nesse momento, percebi que os nossos mundos artísticos conversavam e que eu precisava retratar e mostrar ao mundo o que eu senti ali como uma mera espectadora. Essa experiência não poderia ser só minha, ela deveria ser registrada pelo meu olhar, para que outras pessoas pudessem sentir o que eu senti vendo aquele espetáculo: orgulho, sim, orgulho de ser humano.
Ali, na plateia, enquanto observava o feminino ser exaltado e elevado à última potência, em dado momento parei de pres- tar atenção e me perdi em pensamentos. Comecei a traçar pararelos entre o que eu via e o que eu sentia, e foi quando tive um flash. Meus olhos passaram não mais a ver, mas a perceber que a alegria de viver está dentro de nós. Soube que a fotografia seria a melhor forma de escrever esta história.
Chiaroscuro é uma série dedicada a exaltar a arte drag brasileira e a mostrar que a sombra que permeia a vida de seus personagens não faz parte desta arte, mas possui luz própria, e esta luz interior foi o que busquei retratar nessas fotos.
Infelizmente, a sombra é algo presente na vida de uma drag queen, uma vez que vivem sempre à margem da sociedade. Por muitos anos, a arte drag precisou se esconder no Brasil, travestida de ilusionismo, existindo sem ser notada, praticando uma invisibilidade que fazia parte do seu cotidiano. Sem permissão de serem vistas montadas pelas ruas, só lhes restava existir não existindo.
Os anos passaram, mudanças aconteceram, mas a intolerância pelo diferente se mantém presente, colocando em questão a própria dignidade dessas pessoas. O presente trabalho visa evidenciar estas artistas, colocando-as no lugar em que merecem, no palco da sociedade e da vida. Colocando-as entre nós.
As fotos que seguem servem de instrumento ao talento de Alexia, Mercedez e Thelores.
Vou começar nossa conversa pensando no intervalo do seu último disco até este que sai agora. Entre 2015 e 2017, você vinha lançando um álbum por ano. Houve aí uma espécie de espera…
Eu queria fazer um disco por ano e eu vinha fazendo, porque era o que eu podia fazer. Quer dizer, é relativamente fácil gravar, e eu sinto que a cada disco eu ando para frente, mato um fantasma. E uma coisa que eu fui percebendo – e que hoje é bem claro para mim – é que gravar um disco, publicá-lo, é sobretudo um processo terapêutico. Então, de fato, tiro coisas de mim e ponho nas canções. Quando ponho para fora, de alguma forma dou uma resolvida nelas. Só que algumas coisas aconteceram aí nesse tempo. Uma foi que eu defendi meu doutorado sobre amor e erotismo nos poemas e canções de Vinicius de Moraes, lá na Letras [da UFRJ]. Outra coisa é que antes eu não tinha trabalho com horário fixo, e agora estou trabalhando no Instituto Moreira Salles há dois anos. E mais: esse disco está gravado há muito tempo. Eu já podia ter lançado, não sei, talvez até um ano depois do anterior, mas foi quando teve a tese, quando um montão de coisas começaram a acontecer, e aí veio a pandemia. É um pouco crise dos 40 também, tudo junto, sabe? E esse foi o motivo pelo qual ficou só para agora, com um intervalo maiorzinho.
Você também lançou um single recentemente, “Canção do amor impossível”, que é lindo. E eu nem sabia que o Bad Bahia já vinha sendo gestado há mais tempo. Fiquei pensando que a divulgação do single e do álbum, embora eles falem de universos muito diversos, também ajuda a revelar a complexidade do seu trabalho, uma unidade multifacetada que as suas músicas abarcam. Fiquei pensando de a gente conversar um pouco sobre isso e um pouco sobre essa experimentação – experimentação não no sentido de um certo “fetiche do novo” vanguardista, mas um impulso que percebo em realizar experiências intensas, em tentar se aproximar/apropriar criativamente de um repertório que é vasto, que vai do Guinga ao Antonio Cicero, do experimental ao cancioneiro popular brasileiro, e, ao mesmo tempo, há uma busca por fazer vibrar sua música de uma forma singular. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso, sobre esse diálogo entre invenção, recomposição, inovação e comunicação na sua música.
Eu gosto muito de experimentação, inclusive a formal, ligada às vanguardas. Agora, para mim, ela vai além disso. Ela acontece a cada vez que você faz uma canção, no sentido de que cada objeto, por sua singularidade, vai ter uma forma só dele, que não sabemos qual será antes de começar a fazer; não tem uma forma predefinida. Mas outra coisa que eu também busco é comunicar. Gosto de estender a mão – uma vez eu li em algum lugar um autor que estabelecia uma distinção entre Matisse e Picasso, dizendo que Picasso fazia uma arte mais do choque ou do confronto e Matisse estendia mais a mão ao público, apesar de ambos serem igualmente vanguardistas. Então, dentro dessas tipologias, eu sou mais o que estende a mão. E realmente gosto de muita coisa diferente. Essa “Canção do amor impossível” é mais antiga ainda do que o Bad Bahia; eu musiquei um poema do Antonio Cicero e chamei o Guinga para tocar. São universos muito diferentes, os dos dois, e gosto de pensar que, no fim das contas, só foi possível juntá-los porque tinha eu ali como ponto de convergência, que gosto tanto de um como de outro. Essas subdivisões, acho que são motivadas mais por questões sociais e antropológicas, de grupo, de cena etc.; elas sempre me interessaram muitíssimo pouco.
Eu queria voltar um pouquinho à letra, ao seu trabalho como letrista e como intérprete. No caso da “Canção do amor impossível”, você faz o trabalho de composição da música para um poema do Antonio Cicero. Já no Bad Bahia, você faz todas as composições, letra e música. Eu queria ouvir você falar um pouco sobre essa questão, sobre seu trabalho como letrista. Eu percebi que no Bad Bahia suas letras se expandem mais em alguns momentos, você tem uma espécie de avanço nesse trabalho de composição – não sei se é falar de enriquecimento, mas de variação, talvez.
Eu acho, sem dúvida, que é o disco em que eu sou melhor letrista – melhor no sentido de recursos poéticos, de liberdade poética, liberdade de associações, de criação de imagens e sons com as palavras. Fiz as canções todas num mesmo período. Você deve ter percebido que elas conversam entre si. Pedaços de letra e questões ficam se repetindo entre elas, tanto que eu as tenho como uma única canção continua, sabe? Como eu fiz umas próximas às outras, ia fazendo às vezes com os mesmos acordes. Então, elas não têm só um traspassamento de letra e temas, mas também a mesma paleta de cores. Isso também foi sem querer, porque não faço as coisas de propósito; não conceituo antes, conceituo durante e depois. Acho que criar conceito antes quebra muito a história, a coisa acaba ficando um pouco amarrada. E também, nessa época, eu estava assistindo a uma aula de poesia portuguesa com o Jorge Fernandes de Silveira lá na Letras, aí eu conheci a Luiza Neto Jorge, que amei de paixão (inclusive, tem um versinho dela lá em uma das canções), e reli poemas do Herberto Helder, o que foi incrível, porque eu estava nessa onda de uma sensualidade mais hermética – tinha enchido o saco de interpretar e encontrar sentido nas coisas e preferia aquilo que não fazia sentido, mas vibrava de um modo misterioso, ou em outros termos, de uma experiência que atingia mais os sentidos e menos a cognição. Muitas coisas desse disco eu não entendo; foi uma coisa de processo de criação, as palavras vão vindo, né? Elas se encaixam, pelo som, vêm vindo, vão soando bem e, às vezes, você nem sabe o que aquilo quer dizer. Acho que, de fato, houve um avanço nesse disco. São minhas melhores canções, apesar de não serem exatamente as de que mais gosto.
Eu ia fazer uma pergunta sobre isso mesmo, sobre essa questão da busca do entendimento, porque tem um verso que fala em “negar a razão, salvar a paixão”. Essa é uma busca que se repete nas canções: tentar entender o outro, encontrar o outro; o outro se perde, você volta a interrogá-lo. Então, fiquei me perguntando: há lugar para a razão nessa busca por entender ou é por outra via que a coisa caminha?
Eu sou muito racional, então acho que sempre tem lugar para a razão – só que uma razão muito embebida de sentimento, de afeto, de mistério. Não é uma razão absoluta, é uma razão que conhece seus limites, mas sempre está presente, a razão sempre está.
Você lê e estudou poesia, fez o doutorado sobre Vinicius de Moraes e trabalha no Instituto Moreira Salles com literatura. E aí eu fiquei observando esse gozo da materialidade das palavras, não só nas letras, mas também na sua dicção; tem um lance na maneira como você entoa as canções que também está relacionado a isso. Eu queria que você falasse um pouco sobre essas linhas enredadas da literatura e da música.
Antes de tudo, eu era melodista. Nunca fui músico, que conhece nota e tal, mas eu fazia melodias de que eu gostava, e fazia letras que detestava. A certa altura, fui fazer aula de ouvinte na Letras; conheci o Eucanaã [Ferraz], que foi a primeira pessoa com quem eu assisti a aulas lá. Achava que a poesia ia me ajudar a fazer letra. Mas, depois, esqueci isso e fui lendo e conhecendo poemas e poetas. Aquilo ficou dentro de mim, e teve uma época em que percebi: “poxa, eu já sou capaz de julgar se um poema é bom ou não”. Porque ler poema é uma coisa muito difícil. Eu já tinha ganhado alguma experiência, lido um tanto de coisa. Mas é tudo muito não planejado. Você vê, fiz um doutorado em poesia brasileira; nunca pensei que pudesse fazer isso. Ainda me acho muito outsider dentro da universidade e da literatura mesmo. O que eu sabia é que queria fazer canção. No meu primeiro disco, eu já sacava que as letras vinham um pouco pelo som. Fui aprendendo a me soltar, a me deixar levar – aí, pronto, fui curtindo muito a materialidade das palavras. Pensando agora, tem um reencontro do melodista primeiro que eu era, com o som das palavras, que sou mais capaz de manejar agora. No meu disco anterior, tem uma canção que se chama “Sou frágil” e numa parte diz “doida de prazer”; eu brinco com a pronúncia, e fica parecendo também “doída de prazer”. Quando eu saco que tem esses duplos sentidos, eu curto. Isso acontece algumas vezes.
Outra coisa que eu ia perguntar é sobre o trabalho com os músicos. Como foi a produção e a gravação dos discos?
Os dois anteriores eu gravei com uma banda que se chama Exército de Bebês, que são quatro músicos incríveis. O primeiro com eles, que foi meu segundo disco, Babies, foi um disco de banda. A gente se reuniu, gravou, ensaiou um pouco e gravou. Eu gosto muito desse disco. O segundo com eles, que é o meu terceiro, aí já teve orquestra de cordas, teve também sopro, porque eu tinha um pouco mais de dinheiro, de um edital da prefeitura do Rio. A gente foi gravar com o Chico Neves, que é um produtor renomado e incrível, que mora perto de Belo Horizonte. A banda toda foi, só que não tinha mais a unidade da banda, ainda que tivesse um pouquinho, mas a gente variou mais os instrumentos. Com o Exército de Bebês, na verdade com todo mundo, é assim, eu gosto de ficar recebendo o som deles; a gente começa a tocar, e eles ficam lá tateando a música, conhecendo, e eu gravo tudo. Aí depois eu ouço em casa e faço a colheita. Monto o quebra-cabeça. O processo com os músicos é esse, ainda que nesse disco eu tenha feito diferente um pouco. Além do Guilherme [Lirio] e do Pedro [Fonte], do Exército de Bebês, chamei o Marcos Lobato, que é uma das pessoas que eu mais amo no mundo – ele tocava n’O Rappa, mas O Rappa acabou, e tem também uma banda chamada Afrika Gumbe, um cara muito bom de swing de música africana, enfim, uma pessoa muito incrível e musical. E a outra é o Marcos Campello, que é um guitarrista que eu amo também e com quem já fiz muita coisa. Ele sempre participa dos meus discos de alguma maneira; a gente gravou muita coisa sozinho também. É muito ligado em música de vanguarda e experimentação. A gente se dá muito bem e eu sou fãzaço dele. O Marcos foi também o produtor musical do disco. Ele alinhavou todos os arranjos de base que eu, Guilherme, Pedro e Lobatinho tínhamos feito. Essa história é até mais longa, esse disco ia ser de voz e violão, mas depois eu conto isso, senão vou ficar falando demais, vai ficar chato.
Agora eu quero ouvir.
É porque eu fiquei com as canções desse disco por muito tempo; elas já estavam prontas. Eu as gravei com voz e violão no celular, ficava ouvindo toda hora, já tinha feito até uma ordem. Mostrei para o Marcos Campello, e ele sugeriu que eu fizesse o disco só com voz e violão. Cheguei a fazer show com ele assim, de improviso. Mas pensei: “não quero gravar voz e violão, porque acho que uma música ou outra não vai ficar legal”. Então decidi gravar com bateria e baixo, e eu tocando violão para manter o clima que estava no início. Só que ficou insuficiente, faltou arranjo. Mostrei as bases para o Campello, e foi ele quem deu um jeito nos arranjos, tocou o sintetizador e a guitarra, tirando uma coisa ali, botando outra coisa lá, regravando alguns baixos para ficar mais numa determinada onda. Ele foi o cara que produziu o disco.
A outra pergunta que eu ia fazer era sobre a capa, que me parece um elemento importante dos seus álbuns. Você vem assim numa sequência de partes de corpos. Tem o seu torso nu no Amarelo, tem o seu rosto metamorfoseado, com os olhos obscurecidos, no Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer, e agora tem essa espécie de fragmento de rosto e de uma garganta – mais oculta do que aparente, explodida, ofuscada. Queria que você falasse um pouco sobre essa imagem.
Desde cedo, eu disse para mim mesmo: “eu quero fazer a capa desse disco”. Eu estava com isso na cabeça, mas não fazia por causa da crise toda. Só que aí a Ana [Rovati], minha amiga com quem sempre tiro as fotos dos meus discos, sabe que eu não gosto de me ver de frente – eu realmente detesto. Então, sempre fazemos alguma coisa para estragar minha cara. Nesse último, eu fiquei muito na dúvida do que fazer. Essa foto que eu usei se parecia um pouco com a capa do primeiro disco, só que eu gostava muito dela, então, um pouco conceitualmente, resolvi a questão, pensei: “vou transformá-la em negativo, porque eu acho legal e porque, de certa forma, esse disco, para mim, é um negativo do primeiro”. Depois, percebi que essa foto quase revela aquilo que está oculto no primeiro, porque no Amarelo corta aqui no pescoço, e no Bad Bahia vem até a boca – quem sabe no próximo eu mostre minha testa? (risos). Essa coisa das partes do corpo talvez venha da vontade de tirar minha cara, embora no primeiro eu tenha tido a intenção de expor o corpo – porque eu tinha muita vergonha, eu tinha uma banda e tinha vergonha até de fazer uma carreira solo, com meu nome na frente; então pensei “vou fazer com meu nome e vou mostrar meu corpo”. No fim das contas, ali não sou eu, né? Isso aprendi. É meu nome, mas não é meu nome. Tudo que está ali é um personagem de mim mesmo, como meu filho disse uma vez – ele fez uma coisa com carrinho e eu disse ”não faz isso”, aí ele falou assim “mas foi o carrinho”, e eu perguntei para ele “mas quem está dirigindo o carrinho?”, e ele respondeu “é o meu outro eu”. Então é isso, nessa exposição impessoal que acontece com a canção, são meus outros eus que estão dando pinta.
Fiquei pensando também sobre a capa: “é uma garganta, que é por onde passa o som, mas um som ainda antes da diferenciação e do fonema” – tem muito disso no disco, não é?
Que bonito isso, poxa, bonito. Aí já me faz até gostar mais da capa, porque é verdade mesmo. Bonito isso que você falou, adorei.
Quero perguntar agora sobre o nome do disco, Bad Bahia. Sobre a paisagem geográfica, afetiva, musical, tem tanta coisa nesse nome…
Posso ser muito sem graça nessa resposta. Quando fiz a primeira música desse disco, ela se chamava “Bad Bahia”, porque logo no início fala assim “eu ria quando me dizia para evitar as bads”. Sempre dou um nome qualquer quando organizo no Google Drive esses arquivos – de muitos álbuns que tenho na cabeça, alguns que já fiz e outros que ainda não fiz. Eu organizo tudo lá em pastinhas e dou um nome para cada pastinha. Escolhi Bad Bahia porque tinha que dar um nome, e logo gostei dele. Eu acho muito bom esse nome, adoro.
Sonoramente é bom.
Sonoramente é bom. E essa é a resposta no fim das contas: gosto do som. Tentando entender depois o nome, percebi que esse disco tem três lugares: São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Isso eu percebi depois, e achei legal.
Há uma espécie de tensão que acompanha a sonoridade da sua voz. Uma espécie de jogo. A palavra não é nem “jogo”, mas uma relação tensa entre essa voz que é suave e que ao mesmo tempo se descasa em algum momento e se torna uma voz que pode ser áspera. E eu fico pensando que isso fala muito do mundo que você criou com as suas canções, da sua “mitologia pessoal” – expressão sua que eu li em algum lugar –, e fala muito sobre isso, sobre esse outro eu.
Minha voz é suave. A certa altura, enjoei dela – não que eu a amasse antes, não tenho muito isso; eu tenho prazer em cantar, isso sim. Mas aí teve um momento em que enjoei da minha voz e fui perdendo o prazer de cantar. Não sei se era o timbre ou o jeito de cantar. Não sei como que começou isso. Então, quando fui convidado a gravar uma canção do Cazuza, pela primeira vez fiz uns vocalises, me soltei mais, era eu mesmo, o que eu gostava, sabia e podia fazer. Enfim, me soltei musicalmente. E gostei dessa liberdade que me dei. Acho que eu ficava muito contido, não me permitindo errar, desafinar. E aí eu fui fazendo isso para sempre, desde o primeiro disco. Tinha uns gritos, tinha até muito grito. Pode ser que seja o desejo de criar um contraste com a minha voz, que é muito melíflua. Eu gosto desses arranhados, eu gosto do ruído. Então, já que eu posso ser tão afinado, fui buscando desafiná-la de um modo de que eu gostasse. Porque eu detesto muita afinação, sabe? Por exemplo, a cantora que eu mais amo no mundo, a Nana Caymmi, semitona bastante. E o que faz ela ser linda, maravilhosa e a maior cantora do mundo é isso. Mas ela semitona lindo! Ninguém desafina como ela. Então, essa separação de afinação e desafinação, para mim, é muito dura. Eu gosto de som, e o som para ser bonito tem que ser belamente desafinado. Eu também frequentei durante um tempo a Audio Rebel, onde rolava uma ceninha de improvisação livre e de música de ruído. Meu ouvido foi deseducado à última potência ali. Para quem cresceu ouvindo bossa nova e canção brasileira em geral, tudo muito afinadinho, afinadinho com dissonância, mas enfim, tudo muito afinadinho, eu me deseduquei bastante, e fiquei com uma alta tolerância à desafinação. Percebi isso em situações em que alguém dizia “ah, aquilo ali tá desafinado”, e eu falava “não, não ouço desafinado, para mim está ótimo”. Fui relativizando afinação e desafinação. Hoje penso mais em termos de que um som soa bem ou não, mais do que se está afinado ou não.
O disco tem muito ruído. Ele começa com ruído e termina com ruído. Tem pigarro, respiração, buzina; isso fala muito do som do disco também.
Desde o meu disco anterior, eu peço para as pessoas que estão gravando o disco deixarem os ruídos, não tirarem depois na edição. E eu peço para gravar com um microfone condensador, que é muito mais sensível, e propositalmente canto muito perto dele. Então, tudo que é ruído da boca e de baba imprime no som. Isso é intencional; eu gosto que isso esteja ali. Porque não gosto nada de som HD. Detesto. Acho que a sujeira está no centro da vida. Se não tiver sujeira, impureza, não fermenta. O Marcos Campello foi também grande responsável pelos ruídos desse disco.
O corpo tem uma presença muito marcante nas suas canções. São muitas experiências do corpo: que transita, dança, goza, sofre. Em muitos momentos, parece que Bad Bahia se banha mais das inquietudes do corpo do que outros discos seus. Em “Ciúmes”, a gente ouve: “cada um tem seu lugar/ no corpo do outro no ninho da pessoa/ eu, que lugar tenho no seu?”. Em Corpos são feitos para encaixar e depois morrer, a carne triste já começava a se insinuar. Agora, ainda mais esse corpo é dúvida, angústia. Tem aquele verso do Bandeira: “Os corpos se entendem, mas as almas não”. O corpo escapa à alma. O corpo de Bad Bahia se dobrou às angústias do espírito? Ou o corpo deste álbum pode resistir de alguma forma ao desencontro?
Não sei (risos). Eu acho que pode – quer dizer, tem que poder. É tanta coisa… O sexo é uma alegria, mas ele pode ser muito triste também. No fim das contas, o sexo nunca é só corpo. Precisa ter algo além de corpo – as pessoas se entendem. É claro que podem só transar sem dramatizar ou querer viver juntas, casar etc. Mas são corpos de pessoas. Não são simplesmente dois pedaços de carne, entende? Dois pedaços de carne não se entendem. No fim das contas, o grande mistério do sexo é que ele é ao mesmo tempo muito profano, baixo, reles, e absoluto, sagrado. Rolam umas energias muito atravessadas. É uma questão muito complicada essa coisa do sexo – a começar que de uma transa pode nascer gente.
O disco tem um tom muito melancólico. Tem uns momentos em que as canções doem. Mas tem um verso que me chamou atenção logo na primeira faixa, que é “melancolia que me resta pra renascer”, quase pensando em uma solução para a superação da bad. Eu fiquei pensando: como a alegria participa desse Bad Bahia?
Eu sou pela alegria, sabe? Sou muito melancólico, sempre fui. Mas descobri que a melancolia é essa moeda de duas faces. E eu escolhi a alegria, apesar de difícil. Atualmente, mesmo, eu estou tendo que fazer muita força, muito esforço, para aderir a ela – digo, como modo de vida, modus operandi, sabe? Eu sou de escorpião. Não entendo muito de signo, mas tenho uma amiga, a Rita, que também é de escorpião, e ela disse que o escorpião é o signo que renasce. Então isso ficou na minha cabeça. É verdade que eu estou querendo renascer sempre.
As letras são muito melancólicas, o corpo muito angustiado, mas em algum momento é como se a sonoridade abrisse um espaço para esse corpo pulsar, para uma certa alegria. Então, às vezes a letra está falando de um desencontro, mas é como se a música ainda tivesse essa possibilidade do renascer.
O canto é sempre alegre. O que é bonito, por exemplo, no blues. Aquilo tudo é só tristeza de amor, só que, quando você canta, é alegria do corpo. Não tem como não ser. O canto transforma a dor. É saúde do corpo. Então, você pode estar cantando a maior bad, só que aquilo ali é seu corpo reagindo em ato, com máxima vitalidade. Talvez venha daí uma espécie de exorcismo.
O disco é muito habitado pelo mundo pequeno do encontro íntimo. Mas tem um mundo que é o lado de fora, que às vezes aparece. Está em “útero mundo estúpido, escuro, desde o fim”, em “Bad Bahia”, e, em “Você não sabe o que eu sofri”, tem bastante mundo, tem miséria, “famílias morrendo de fome”. Que mundo a gente entrevê nesse Bad Bahia? E como, de alguma maneira, esse mundo miserável que a gente está vivendo participa dessa composição?
Eu acho que é menos pontual e mais a miséria do mundo desde sempre. É uma tensão que não cessará nunca entre um hedonismo e as mazelas do mundo que estão à espreita. Eu tendo a ser muito individualista. A política institucional me interessa muito pouco, porque não tenho nenhum alcance. Votar nos governantes é uma democracia insuficiente, na qual não acredito, ainda mais se pensarmos em todo aparato técnico e ideológico que criam as fake news, financiamento de campanhas etc. Mas sou muito político e atuo na micropolítica dos meios onde circulo, onde consigo intervir de alguma forma. Então, é por isso que eu, muito lucidamente, não participo dos grandes debates com intuito de intervir, de ação.
A passagem de uma canção a outra é especialmente significativa no disco. Ou porque desloca a sonoridade em que o público tinha mergulhado na faixa anterior ou porque contribui para a construção de uma certa narrativa costurada entre as faixas. Fiquei pensando como é que seria isso no universo dispersivo da circulação digital, em que a pessoa pode comprar uma faixa só ou ouvir canções, de álbuns distintos, sugeridas por algoritmos.… Como é que você vê isso?
Eu não sei muito como as pessoas ouvem. Mas eu ouço álbum. Ouço o disco do início ao fim. Mas acho que as canções têm autonomia, elas são e podem ser ouvidas separadamente. Apesar disso, eu tento construir uma sequência. Construo menos uma narrativa pelo que está sendo cantado e mais pelo som. Ainda que também misture tudo. Mas acho que as pessoas podem ouvir como quiserem. Não tem problema. Ah, a pessoa está numa festinha e quer colocar aquela música de que ela gosta. É isso aí. Tipo, não vai ser nenhuma desse disco que ela vai colocar na festinha, mas pode colocar de algum outro, menos deprê (risos).
É deprê, mas tem algumas que não são deprê.
Uma, talvez, né?
É. Tem “O grande azul”. Até a “Bad Bahia” eu não acho que seja deprê. Ela é deprê quando a gente mergulha muito. Mas eu acho que ela só cresce. Ela vai te levando de alguma forma. Você vai quase entrando naquele ritual. Crescendo, crescendo, crescendo. Agora, se a pessoa colocar o disco inteiro na festinha não vai rolar.
“O grande azul” é a única que é um axezinho, tem um pouco de sol ali.
Eu tinha notado algumas que parecem solares, mas elas são falsamente solares. Mesmo “O grande azul” é solar e não é. Porque ela termina “sem horizonte”, e aí tem um verso que diz “não sei, mas agora veja onde a gente se achou.” Você lendo, tem a vírgula, mas cantando parece que é “não sei mais agora”, a coisa se altera. É como se o arranjo dissolvesse o tom melancólico, mas ele está lá. Quando você diz que dói, o coro também parece que dissolve a dor, como se tivesse um coletivo que cerca a perda.
Essa música está falando da alegria, que a gente comentou no início. É um verso do Caetano [Veloso]: “apostar na alegria”. E essa música tem muita coisa do Caetano. Esse verso “veja onde a gente se achou” é dele também, da música “Aquele frevo axé”. Nesse disco, eu colei de muita gente. Tem Herberto Helder, Luiza Neto Jorge. Respondendo um pouco àquela pergunta da literatura e da música, não tenho nenhuma relação especial com a literatura. Ela está no mesmo patamar de uma troca de olhares, de uma emoção intensa, de um banho de mar. Aliás, está mesmo em patamar inferior, porque é uma experiência mediada pela leitura. E as experiências de verdade me servem mais para fazer canções do que a leitura propriamente. Da literatura, pego mais as palavras, daqui e dali.
*
Deixa eu só contar uma coisa que percebi com esse disco – porque eu gostei tanto de você, de conversar com você sobre o disco, porque você fez observações que iluminaram muito as canções para mim. Um amigo, o Antônio Sobral, que é artista plástico, foi ver um show meu em que cantei essas músicas só com o violão. Quando o show acabou, ele estava lá fora fumando um cigarro e falou assim, ”ah, eu vi uma bela mulher, eu vi uma mulher linda no palco, de vermelho”. Aí eu pensei “gente, que legal”, porque eu estava de calça jeans e camiseta. E esse papo fez tanto sentido para mim, porque eu gosto muito do mito do andrógino, do Aristófanes, essa coisa do feminino-masculino povoa a minha cabeça, e vejo evidências desse mito o tempo todo. E eu tinha visto recentemente o filme Orlando, da Sally Potter, sobre o livro da Virginia Woolf, com aquela mulher maravilhosa, Tilda Swinton, e lembro de uma cena em que ela está na montanha, já tornada mulher, debaixo de uma árvore de copa enorme, linda, uma senhora poderosa, olhando seus domínios, e tive um sonho em que eu era como ela, e tinha uma sensação de plenitude sexual, era uma plenitude que não existe de verdade, porque no sexo, depois da tensão, vem o repouso, mas era como se o instante da plenitude tivesse congelado e eu tivesse, de uma forma calma, aquele prazer que você só tem no orgasmo, que é o contrário da calma. E essa foi uma sensação muito boa, de saciedade, de serenidade, de plenitude, ou seja, de um retorno à figura do andrógino, redondo, perfeito e completo. E o Antônio falou, então, dessa mulher no palco, e eu logo associei ao meu sonho e descobri que esse disco é, na verdade, essa mulher andrógina. Enfim, queria só contar essa história como um modo de agradecer a você, porque, assim como o Antônio, você também me revelou muito sobre o disco e me ajudou a entendê-lo. Obrigado.
Refletir sobre o lugar do desejo é um gesto que orienta minhas pesquisas desde 2008. Se no santuário queer onde realizei a série Welcome Home (2012) era possível vivenciar outras maneiras de performar as masculinidades, essa não é uma experiência facilmente replicável fora daquele contexto de exceção. Para além desses espaços, as complexidades dos indivíduos não costumam encontrar tanta receptividade. O caldo cultural é infinitamente mais restrito de possibilidades e mostra, de forma evidente, o que acontece como um todo na masculinidade: uma roupa extremamente justa.
A partir do meu envolvimento com o ativismo LGBT+, fui apresentado a diversas questões trazidas pelas mulheres trans, bissexuais e lésbicas — questões essas tão difíceis quanto libertadoras. A exposição a tais discussões contamina a produção pessoal e transforma profundamente os entendimentos e abordagens sobre o desejo.
Uma das lições que aprendi é que o mesmo machismo que tenta castrar as feminilidades também tenta constranger as masculinidades a um espaço de sentidos simplesmente inalcançável, pautado pela busca da potência, da autossuficiência e pelo desprezo por qualquer traço do que entendemos como feminino – a misoginia nossa de cada dia.
O conjunto de imagens apresentado a seguir foi organizado especialmente para esta edição da revista Amarello e busca atualizar esse gesto/desejo em imagens, numa espécie de pensamento em público. O que há no masculino para além do macho, do falo, para além da autodeclaração de potência? Quem cabe aí? Quem efetivamente consegue? O masculino cego diante do espelho, a dúvida ainda entendida como ameaça. Como se repensar sem espaço para o autoquestionamento?
Quero saber sobre as fraturas da masculinidade; o que está partido e segue sem nenhuma pretensão de reparo, o que não tem remendo. Olhar o masculino também como lacuna, como buraco; ver nele a celebração do oco, da falta.
Aqui, a revolução vem da intimidade: é tomar o masculino como descanso – ou, enfim, como uma espécie de trégua.
Saio de casa para caminhar. O frio corta meu rosto e arde meus olhos, mas o sol brilha sobre a neve caída ao chão, criando cristais incandescentes, como que vistos através de um caleidoscópio. Logo me deparo com o primeiro deles, um homem solitário, caminhando lentamente, sua respiração gerando pequenas nuvens de vapor no ar. Alguns passos adiante avisto mais dois, estes andando a passos largos e rindo de alguma piada compartilhada. Continuo em frente, contornando a margem do mar Báltico, admirando a beleza resplendente da cidade que se revela pouco a pouco à medida que o sol esvaece os últimos resquícios da névoa matutina. Ali em frente à sede da prefeitura, um dos recantos mais bonitos da cidade, estão agrupados mais três homens. Parados, em silêncio, admiram a vista. E, quem sabe, aproveitam também um momento precioso de silêncio vindo dos carrinhos de bebê na sua frente.
Não é nada incomum encontrar homens – sozinhos, em duplas ou pequenos grupos – empurrando carrinhos de bebê pelas ruas de Estocolmo. São os chamados “lattepappas”, os “papais com cafés”, e são unidos por uma obsessão nacional: a igualdade de gênero.
Em 2020, o Índice Global de Desigualdade de Gênero elaborado pelo Fórum Econômico Mundial colocou a Suécia em quarto lugar no ranking mundial, com 0,820 pontos e atrás apenas da Islândia, Noruega e Finlândia. O índice varia de 0 (total desigualdade) a 1 (total igualdade). O Brasil, para ter-se ideia, está na 92˚ posição, com 0,69 pontos, atrás de países como a Bósnia-Herzegovina, Burundi e o Cazaquistão. Na América do Sul, o Brasil fica apenas à frente do Paraguai (o índice não apresenta dados para a Guiana). Não podemos esquecer que o índice mede apenas a desigualdade entre os gêneros, sem levar em consideração o desenvolvimento do país, e que isso gera uma certa distorção no ranking – não há dúvida de que a Suécia está longos passos à frente do Brasil, e de grande parte do mundo, neste quesito. Mas por quê?
Swedish Dads, série fotográfica de Johan Bavman
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Existe uma preocupação nacional com essa desigualdade, e há décadas o Estado elabora políticas especificamente para combatê-la. Essas políticas vão mudando e sendo ajustadas à medida que a percepção de igualdade e de gêneros muda. Um bom exemplo disso é licença-maternidade/paternidade, lei que deu origem aos lattepappas que perambulam pelas cidades com seus filhos. Hoje, na Suécia, o casal (seja heterossexual ou homossexual, casados ou apenas morando juntos) tem direito a 480 dias de licença remunerada quando tem um filho, seja este biológico ou adotado. O nome já diz muito – a lei é conhecida como föräldrarledighet, uma composição de föräldrar, ou pais (palavra neutra e sem gênero, ao contrário do gênero masculino do termo em português) e ledighet, licença. A licença pertence a ambas as partes, e deve ser compartilhada por ambas as partes, mas custou algumas décadas e algumas mudanças na legislação para chegar aqui.
Em 1974, a Suécia se tornou o primeiro país a oferecer a licença-paternidade remunerada aos pais. Eles teriam direito a seis meses de licença-paternidade juntos, receberiam remuneração do Estado em até 90% do valor de seus salários e teriam o direito de decidir como dividir estes seis meses entre eles. Em 1978, a lei aumentou o tempo para 9 meses de licença e, em 1980, para 12 meses (9 com 90% da remuneração e 3 com uma remuneração baseada no salário mínimo). Em 1989, a lei novamente mudou, aumentando o tempo de licença para 12 meses com 90% de remuneração salarial e mais 3 meses de remuneração base. Metade destes 15 meses era reservada para cada parte, ou seja, 7,5 meses para um parceiro e 7,5 para outro. Nos anos 1990, o valor da remuneração baixou para 80% do salário, com um teto após o qual o empregador deveria completar a remuneração feita pelo Estado. O objetivo dessas mudanças foi dar aos pais a oportunidade de ficar mais tempo em casa com seus filhos e, também, diminuir a desigualdade entre homens e mulheres. O Estado pretende que a opção de ter um filho por parte da mulher não prejudique sua vida profissional e que as mulheres possam ter seus empregos e suas carreiras garantidos assim como os homens.
Nas primeiras décadas da lei, as mulheres ainda usavam a maior parte da licença. Seus parceiros optavam por transferir sua metade para que as mães ficassem em casa. A ideia da licença-paternidade entrava na consciência social, mas, na prática, os homens continuavam voltando ao trabalho muito antes das mulheres. O Estado decidiu intervir mais uma vez, mudando a lei para que cada parceiro tenha um período de 90 dias reservados de licença, formando um total de 180 dos 480 dias. Os 300 dias restantes da licença ainda podem ser divididos conforme o casal preferir. Se o pai não usar seus 90 dias, estes serão perdidos; não poderão mais ser transferidos para a mãe ou o outro parceiro. No primeiro ano de vida da criança, os pais podem tirar a licença juntos por um período de apenas 30 dias. Todo o resto deve ser separado. Essa mudança na lei acabou gerando uma mudança de comportamento. Em 1974, a licença-maternidade era 100% utilizada por mulheres. Em 2020, os homens utilizam 27% da licença. Em torno de 80% das crianças na Suécia hoje têm dois pais que trabalham.
Em janeiro de 2018, o Estado sueco criou a Agência de Igualdade de Gêneros para implementar políticas concretas a fim de minimizar a diferença entre os gêneros. Eles definem a igualdade de gêneros como: “homens e mulheres terem os mesmos direitos, responsabilidades e oportunidades em todos os âmbitos da vida” e acreditam que, para obtermos a igualdade de gêneros, não basta termos números iguais de mulheres e homens em cada área da sociedade; precisamos mudar as atitudes, normas, valores e ideais que governam a sociedade.
O que mais me interessa é que sempre acreditei que as leis de um país refletem os valores de sua sociedade. Jamais tinha pensado que, na verdade, as leis também têm o poder de mudar o pensamento da população. Somos todos produtos das nossas sociedades, das nossas famílias, oportunidades, condições socioeconômicas, cultura, religião, etc. Minha experiência na Suécia comprovou isso de forma aguda. Sou brasileira, católica, tradicional, de uma família do Sul do país. Estou beirando os 40 anos de idade. Sou de um lugar e de uma geração bastante patriarcal, de uma família bastante machista. Sou caçula e, embora minha mãe tenha trabalhado durante anos após ser mãe da minha irmã e do meu irmão, na minha memória ela já era uma dona de casa dedicada – arrumando, orientando, cozinhando, comprando coisas para a casa, escolhendo a decoração. Enquanto isso, meu pai trabalhava longas horas em um escritório que exalava masculinidade – sofás de couro, cheiro de charuto, retratos de grandes obras e miniaturas de escavadeiras; um mundo do masculino que me parecia misterioso e distante. Preferia ajudar minha mãe a montar uma mesa perfeita, convidativa, agregadora e demonstrar amor pela família através de grandes almoços no domingo.
Meu marido sueco tirou quatro meses de licença-paternidade quando nossa filha nasceu aqui em Estocolmo em 2018. Foram quatro meses essenciais. Tive um parto complicadíssimo, uma cesárea de emergência que me deixou com dores insuportáveis por meses. Longe da minha família, sem o apoio de empregados domésticos ou babás, fiquei em casa tentando sobreviver ao furacão da maternidade e da vida doméstica. E, por mais que meu marido tentasse limpar, cozinhar, lavar roupa, passar, ir ao supermercado e à farmácia, cuidar do nosso cachorro, servir refeições e outras tarefas de Sísifo, eu o criticava porque ele não fazia nada daquilo ao meu gosto, ao meu patamar. Minhas noções de limpeza eram outras, mais brasileiras que suecas; minhas refeições mais equilibradas, bem servidas; as roupas passadas além de limpas. A casa deveria estar impecável e, com a neném em casa e eu de cama, ela estava de pernas para o ar. Isso me deixou enfurecida. Como ousava aquele homem entrar no meu campinho e deixar de chegar ao meu nível de exigência. Eu sabia melhor, eu fazia melhor, e o lugar dele era fora de casa.
E aí está parte do problema. Meu marido é muito menos machista do que eu e, para ele, também foi difícil entender essa minha obsessão com a casa. Não importa, ele dizia, que está uma bagunça. O importante é que estamos juntos, curtindo nossa filha. Mas eu não conseguia curtir nada com o peso do fracasso da minha “profissão” – a de ser mãe e dona de casa. Essa divisão de gêneros que existe na minha cabeça, onde enxergo as metades em branco e preto, onde a casa e os filhos são meus e o escritório é dele, é produto de como fui criada e fruto da minha personalidade. Essas ideações enraizadas custam a ser mudadas, mas, após alguns anos de Suécia, estou aos poucos me amainando. Já não julgo os pais que vêm à escolinha da minha filha deixar sua prole descabelada e melequenta. Ou não muito. Afinal, estão fazendo o seu melhor para criar uma sociedade onde as mulheres possam ter a oportunidade de ter ambos, família e carreira – coisa que não conseguiremos sem o apoio e sacrifício dos homens e, crucialmente, sem o apoio e o julgamento de outras mulheres. E nisso o Estado sueco está realmente à frente da maioria.
O asfalto estava frio quando Ennis Del Mar desembarcou do caminhão que lhe deu carona e firmou as botas de vaqueiro na estrada. Àquela altura da manhã, a fricção dos pneus e os raios do sol ainda não haviam despertado sobre nenhuma das tantas rodovias que cortam o ermo estado de Wyoming. Ali, no extremo noroeste dos Estados Unidos, em um território esquecido entre as Grandes Planícies e as Montanhas Rochosas, o cimento é a matéria-prima preferida quando se trata de construir estradas e corações masculinos.
Deste início até a primeira conversa entre Del Mar e Jack Twist, acompanhamos uma sequência visualmente simbólica para compreender o que estará em jogo no restante de Brokeback Mountain. Para representar a masculinidade com precisão — ou, ao menos, o que significa ser homem à sombra de John Wayne —, Ang Lee percebeu que não bastaria contar com dois protagonistas talentosos e uma história envolvente. Assim como a natureza na mitologia do Western, que surge como o desafio primitivo a ser domado, seria pre- ciso personificar outro aspecto primitivo, fundador das relações masculinas, o qual seguimos sem domar — o nosso silêncio.
Romper com os arquétipos, como Brokeback faz com a figura do herói americano, é a metodologia adotada para iniciar, se não a mais completa, certamente a mais didática exposição sobre o mundo masculino. Concebida pelo Barbican, em Londres, Masculinities: Liberation through Photography imprime na transparência do título uma proposição ao mesmo tempo política e educativa. Ao passo que apresenta a proposta de ilustrar a pluralidade de manifestações pelas quais a masculinidade pode ser expressa, a exposição também critica o papel opressor da imagem na formação de um ideal de masculinidade dominante.
Street Fashion Jock, de Hal Fischer
Pensada a partir de seis eixos temáticos, Masculinities exibe o trabalho de mais de 50 artistas de todas as partes do mundo, distribuindo-os a partir de propostas como: Rompendo com os arquétipos; A ordem masculina: poder, patriarcado e espaço; Muito perto de casa: família e paternidade; Masculinidades queer; Reivindicando o corpo negro e Mulheres sobre homens: invertendo o olhar masculino. O escopo abrangente contempla o vocabulário visual que vem dos anos 60 até hoje, e tem a virtude de unificar sob uma mesma ótica artistas distintos como Karen Knorr, Catherine Opie e Rotimi Fani-Kayode.
Logo de início, Masculinities inaugura o olhar do público com Self-portrait (1994), de John Coplans, uma sequência de quatro imagens que segue a linha de investigação do fotógrafo inglês, interessado em depurar o envelhecimento do corpo e a fragilidade trazida pela idade. Nas telas de grande proporção, a força dos músculos e o viço da pele são os elementos ausentes diante de um corpo que simula posições do estatuário greco-romano. Harmoniosamente concebidas para exibição em público, as obras clássicas representam a finalidade impossível de tudo aquilo que é submetido ao tempo, ressaltando o injusto lugar que cabe ao corpo flácido e envelhecido na sociedade atual, legado à vergonha e ao esquecimento.
Reconhecido pela técnica apurada na encenação das imagens, o israelense Adi Nes exibe a série Soldiers (1994–2000). Nela, o fotógrafo faz uso da fama militarista de seu país para registrar os soldados em instantes de lazer. Produzidas nos acampamentos do exército, as imagens atacam o conceito de masculinidade como sinônimo de virilidade e heterossexualidade, ao registrar instantes em que a naturalidade se confunde com afetividade e tensão sexual.
A alemã Karen Knorr, por sua vez, aparece com um dos seus trabalhos de maior destaque, realizado nos anos 80. Gentlemen é fruto do período em que Knorr viveu em Londres para estudar fotografia. Durante esse período, conseguiu acesso às fraternidades e aos clubes masculinos, bem como à alta sociedade inglesa, compondo a partir desse material um instigante corpus documental que representa a masculinidade como sinônimo de um poder que opera unicamente com o objetivo de expandir e perpetuar a sua influência na esfera pública.
A abordagem temática da exposição permitiu o diálogo entre linguagens distintas, como no caso do premiado fotógrafo da Magnum, Thomas Dworzak, da performática Catherine Opie e do flaneurismo de Sunil Gupta. Prova de um olhar eminentemente lírico ainda quando em situações extremas, Dworzak exibe Taliban Portraits (2002), um registro que consegue projetar os fundamentalistas islâmicos distantes da imagem de brutalidade e virilidade esperada. Se Dworzak ilustra o realismo desconhecido do grupo terrorista, por outro lado, Opie apresenta Being and Having (1991), uma série de retratos coloridos, em que amigas lésbicas brincam com bigodes falsos, tatuagens e acessórios associados ao estereótipo masculino, denunciando o caráter lúdico e artificial da masculinidade. Nesse conjunto performático, as cenas montadas de Dworzak e Opie ganham a companhia do indiano Sunil Gupta. Radicado no Canadá desde jovem, Gupta explora o reduto gay de Nova York nos anos 70 em Christopher Street. A série registra os primeiros movimentos da comunidade homossexual na esfera pública, produzindo um belo inventário do processo de libertação desses homens e da busca por um novo repertório para realizar as suas identidades na sociedade.
Conhecido por Ravens, potente obra de caráter confessional em que registra o luto pela esposa, Masahisa Fukase apresenta um trabalho de longo prazo. Após ser acometido por uma doença séria, o fotógrafo japonês inicia Family, em que propõe a releitura das fotos de família. Durante duas décadas, Fukase ergue uma memorabilia peculiar, entrelaçada pela ironia de conviver com quem nem sempre gostamos ou desconfiamos não conhecer muito bem. O resultado propõe a refundação da estrutura familiar a partir do embaralhar das posições de poder, justamente no seio da tradicional sociedade oriental.
A dificuldade de ser imigrante e o extravio do desejo que a acentua são os pilares da obra de Rotimi Fani-Kayode. A dupla perda — do país natal e do corpo negro — habita o horizonte do fotógrafo que, aos 12 anos, teve de fugir da guerra civil na Nigéria. Em solo inglês, Fani-Kayode recupera na imagem aquilo que não encontra em vida. Encenados a partir do jogo de luzes, do contraste acentuado e da presença de elementos da cosmologia yoruba, os registros em preto e branco subvertem propositadamente o purismo da linguagem de poder e desejo do universo ocidental, representado em Richard Avedon e Robert Mapplethorpe, para elevá-lo à categoria de ação, reivindicação e gozo.
Não menos importante, a visão feminina encerra Masculinities como a responsável por entregar uma nova perspectiva ao tema. Possível unicamente após os esforços do movimento feminista das últimas décadas, finalmente a masculinidade passou a ser olhada desde fora, vendo-se obrigada a estar no lugar do outro. Transformar o sujeito em objeto é a proposta da artista visual Laurie Anderson em Fully Automated Nikon (Object/Objection/Objectivity), de 1973. Nessa série, Anderson se apropria do desconforto causado pelo assédio masculino e o converte em ação. Ao registrar os homens que lhe dirigiam comentários na rua, a fotógrafa recupera para si o poder do olhar, reenquadrando a objetificação ao expor seus personagens com os olhos borrados, em um claro movimento na direção de apagar as suas identidades e individualidades.
O trabalho que apresento segue minha investigação a partir da edificação de objetos de memória afetiva como forma de revisitar o passado, trazendo-os para o presente atual. Esses objetos, reconfigurados de valores, assumem uma transposição temporal e, a partir desta nova composição, reorganizam-se e acolhem novas formas.
Tensões caras ao meu universo, como o equilíbrio, o acaso, o volume, a sobreposição e o próprio processo de construção, se convergem na imagem que aqui está, e questiono: como pensar os dias atuais a partir dessa investigação?
A composição escultórica criada é única e suscetível à queda por vir, e a fotografia capta essa iminência ao criar uma suspensão no tempo, que nos traz novamente para o presente, mesmo que derradeiro e incerto.
Essa mesma incerteza aparece em questões que se fundem entre realidade e pictoriedade: como estamos em meio a todas as incertezas? A crise sanitária e política vai passar? Como estamos enfrentando o presente? A pilha de roupa vai desmoronar? Como pensamos o passado? Quem espero que vá chegar? Como pensamos o futuro? O copo de vidro vai se estilhaçar?
São perguntas que antecedem as ações-respostas e, por isso, o ato de esperar se torna tão presente. É viver segundo após segundo, e, aqui, a cadeira assume sua imagem mais simbólica, a espera, e as roupas virtuosamente dobradas, a obsessão acumulada pelo tempo.
O que vem acompanhado subjetivamente da imagem – a queda, a pós-queda, a vertigem, o tempo obcecado, a espera certa e a expectativa incerta – surge como reflexos dos dias atuais e nas formas de pensar o presente mesmo quando o fazemos criando projeções de um futuro.
Eu nasci na Hungria e lá vivi até os 14 anos. Em 23 de outubro de 1956, quando a Revolução Húngara eclodiu, eu estava lá. Nesse dia, minha mãe chegou em casa e falou: “Vamos, vamos, porque estão derrubando a estátua de Stalin”. Ela se referia à imensa estátua de Stalin que ficava numa praça muito grande, em Pest, onde eram realizados os grandes desfiles de 1º de maio. A partir daí, a gente decidiu ir embora. No fundo, minha mãe e eu não queríamos ir, mas eu tinha um irmão de 17 anos, e ele sumia por vários dias durante essa época. Meses depois, em novembro, quando a Revolução já tinha sido derrotada, meu irmão nos confessou: “Eu preciso ir embora, porque participei de coisas. Eu tenho medo”. “Bom, você não vai embora sozinho”, respondeu minha mãe, que tinha perdido meu pai em 1945, em um dos últimos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. “Se você for, nós vamos todos”.
Saímos de Budapeste sem saber para onde ir, e nunca imaginei que acabaríamos no Brasil. Primeiro, caminhamos noite adentro em direção à Áustria, até encontrarmos uma aldeia. Lá, minha mãe telefonou para parentes que moravam em Viena, e eles nos acolheram durante algumas semanas. A ideia de então era morar na Alemanha, aproveitar que minha mãe dominava a língua e ficar na Europa. Fomos de trem e chegamos a um campo de refugiados na Baviera, que descobrimos ter servido como campo de concentração anos antes. Ainda estavam lá, inclusive, os lugares das câmaras de gás. Vivemos por semanas nesses grandes barracões de madeira, improvisados no formato de dormitórios com beliches, enquanto minha mãe passava o dia procurando emprego, mandando cartas para todos os lados. Mas, mesmo ela tendo doutorado em Química, a Alemanha de 1957 não estava recuperada, o que significava que conseguir emprego e moradia era um grande desafio. Foi quando percebeu que ficaríamos anos vivendo da ajuda do governo que minha mãe, uma mulher impaciente e decidida, declarou: “Sabe de uma coisa? A Alemanha não tem futuro. Vamos embora”.
Voltamos para Viena ilegalmente, porque era proibido retornar. Tivemos sorte. Lá, nos registramos para vir ao Brasil, onde tínhamos parentes, fruto de um empreendimento do governo brasileiro dos anos 30, que trouxe muitos húngaros para construir uma fábrica de explosivos no interior de São Paulo. Nesse meio-tempo, minha mãe conseguiu um emprego como tradutora no consulado americano de Viena. Ofereceram a ela a oportunidade de irmos para os Estados Unidos. Lembro de quando ela chegou em casa dizendo: “Bom, tem a chance de ir para os Estados Unidos. Vocês escolhem. O que preferem?”. Imagina, eu tinha 15 anos, e meu irmão, 18. No nosso imaginário, o Brasil era uma aventura, com a Amazônia, os índios, as cobras e a selva. “Queremos ir para o Brasil”, dissemos. Naquela época, eu estava convencida de que fomos nós que decidimos. Mas, hoje em dia, acho que minha mãe fez uma pequena encenação. Ela não queria ir para os Estados Unidos, porque lá meu irmão imediatamente seria mobilizado para ser soldado, teria de servir na guerra, porque os Estados Unidos estão sempre envolvidos em uma, e ela queria ir para longe dessa realidade. Até porque o horror da Segunda Guerra ainda estava vivo na nossa família, e perder o marido havia sido o bastante.
Viemos para o Brasil e nunca nos arrependemos. A viagem de navio foi fantástica. Saímos de Gênova e fomos parando. Primeiro em Marseille, depois Portugal, Dakar, Recife, Rio, até chegarmos em Santos. Ali, meu tio estava nos esperando para pegarmos um ônibus em direção a São Paulo. Lembro que foi emocionante ver a estrada velha de Santos, cheia daquelas curvas e aquela vegetação exuberante. Chegando da Europa do pós-guerra, a imagem desse verde em abundância marcou nossa chegada e segue viva em mim até hoje.
Desembarcamos sem nenhum tostão, claro, sem dinheiro para se instalar. Mas o fato de a minha mãe falar línguas sempre abriu portas, e ela logo conseguiu emprego em uma fábrica que tinha laboratórios químicos. Em seguida, fomos encontrar a colônia húngara, onde estavam os padres beneditinos húngaros que fundaram o Colégio Santo Américo, que existe até hoje no Morumbi. Nós os procuramos porque sabíamos de um grupo de escoteiros que era coordenado por eles. Sem saber falar uma palavra de português, não havia condição de frequentarmos a escola, e o grupo serviria como uma forma de socialização. Junto aos escoteiros, fizemos muitos amigos – amizades que duram até hoje, como a da minha amiga e tradutora Edith Elek.
Foi a Edith que me apresentou à Noemi Jaffe, quando ela buscava alguém que tivesse estado em Budapeste durante a Revolução Húngara. Quando a Noemi me telefonou, ela me contou que estava escrevendo um livro sobre a Revolução e gostaria muito de conversar comigo. Bom, eu aceitei, claro, e foi um encontro ótimo, de simpatia mútua. Passamos muitas horas compartilhando histórias. Anos depois, em 2015, recebi um e-mail da Noemi dizendo que o livro estava pronto e me convidando para o lançamento. Na época, eu estava viajando a trabalho, e pedi que minha filha e uma amiga dela fossem no meu lugar. Para minha surpresa, foi somente com a publicação do livro Írisz: As Orquídeas, que descobri que a protagonista da história havia sido inspirada em mim. Recebi o livro com uma linda dedicatória da Noemi, e esse foi um dos presentes mais bonitos que já recebi, algo que me deu uma alegria incomparável. Durante o lançamento, a Noemi teve a sensibilidade de nos convidar, minha filha e eu, para jantarmos em sua casa. Mas aconteceu, então, essa coisa que é São Paulo, que tudo engole, e o convite acabou não se concretizando, e nunca mais nos encontramos.
Passou-se um tempo, e recebi um novo e-mail da Noemi, dessa vez me convidando para participar dessa edição da Amarello. Quando pensei em quem eu queria presentear, rapidamente me surgiu a imagem da Noemi. Eu não tive dúvida de que era o momento certo de retribuir de maneira singela um pouco da alegria que ela me proporcionou com o seu livro. Por isso, escolhi como meu presente desta edição preparar um doce húngaro que remetesse à minha infância.
O Capricho de mulher (Nói szeszély, em húngaro) é um doce que evoca o aroma e os sabores do país que conheci quando pequena. Por ser simples, fácil e de ingredientes baratos, ele se tornou muito popular na Hungria, especialmente pela geleia de damasco, que acrescenta um sabor muito especial. Parece que hoje em dia ele saiu de moda, mas era um verdadeiro sucesso nos anos 50. Sabendo que a família da Noemi também é de origem húngara, imaginei esse doce como uma retribuição. Um presente que nos trouxesse conexão, afeto e, ao mesmo tempo, fosse símbolo de agradecimento.
Editora de Artes Plástica da edição Amarello Presente
“É isto que amamos nos outros: o lugar vazio que eles abrem para que ali cresçam as nossas fantasias. Buscamos, no outro, não a sabedoria do conselho, mas o silêncio da escuta; não a solidez do músculo, mas o colo que acolhe…
Como seria bom se as pessoas fossem vazias como o céu e não tão cheias de palavras, de ordens, de certezas. Só podemos amar as pessoas que se parecem com o céu, onde podemos fazer voar nossas fantasias como se fossem pipas…”
Rubem Alves
O presente chegou tão bem embrulhado que foi difícil abri-lo. Um presente atípico, ofertado numa circunstância permeada pelo medo e pela incerteza.
Quando abracei meu presente, me deparei com um momento novo, estranho até, por me defrontar com uma realidade completamente diferente do que, até então, havia vivido.
Mudei de cidade e casa por tempo indeterminado. O que mais valeu foi usufruir do acalanto de minha mãe, um tocar na alma e um pulsar que há muito não experenciava; deixar para trás uma vida automática para aprender a viver um dia após o outro, tentando não projetar uma visão de futuro. Fui adentrando e percebendo que era uma questão de ajuste.
A desconstrução de um tempo, a construção de outro tempo, a transformação, a reinvenção, a readaptação, tudo mexido e misturado, tornando aquele momento um desejo de finitude quase que real.
Tentei construir um universo que me lembrasse um pouco do que ficou para trás – meu ateliê –, me debrucei, mergulhei e me senti um pouco mais perto do meu âmago.
Foi assim que comecei um trabalho totalmente novo para mim, tendo como universo o ambiente doméstico.
Parti dos objetos da casa de minha mãe, com os quais tenho uma relação quase amorosa, e fui tentando humanizá-los e ressignificá-los.
Trabalhei com diferentes aspectos da casa, com a poética do espaço, ampliando o significado da casa e sempre me perguntando: qual a relação de memória com esse lugar?
Fui criando provocações para mim mesma, atravessando essas possibilidades.
Meu silêncio junto com o silêncio do lugar, o eco da casa, fizeram transformações no meu trabalho; algo novo começou a surgir, como esse tempo presente.
Um fato curioso aconteceu pouco antes da quarentena começar: no dia 13 de março, abri uma exposição intitulada O Possível Para Hoje à Noite, que partiu da multiplicidade de interpretações do presente na plasticidade da instalação apresentada. O sentimento de aversão, a sensação de incerteza do tempo, o obscuro e o nada foram ideias que transitaram no meu imaginário, e, com esse trabalho, materializei “o desejo real”.
Existe uma analogia, a materialidade daquele trabalho e o tempo presente. O fato de não identificarmos, num primeiro olhar, o que é, causa um impacto de dúvida e impotência e cria uma avalanche de incógnitas no espectador.
Esse corpo estranho quase escultórico cria formas abstratas que sugerem contornos figurativos, silhuetas enigmáticas que buscam presentificar-se por uma ambiguidade erótica e soturna.
Qual a poética deste presente? Qual a poética presente neste momento?
O laço do presente, o presente desejado, o estar presente, abdicar do presente, o afeto do presente, o presente da vida, a escolha do presente, o presente incerto, a surpresa do presente, o presente da conquista, o amor como presente, o perdão como presente, a ilusão do presente, o presente coletivo, a expectativa do presente, o presente de se reinventar, o presente hoje, o presente da pausa, o presente com a alma, a dor do não presente, a euforia do presente, as perdas do presente, o presente como escolha, a arte do presente, o urgir do presente, o presente obscuro, a magia do presente, o presente sem presença, o silêncio como presente, ser presente, a cor do presente, o deleite do presente, a loucura do presente, o presente inesperado, a escolha do presente, o presente gratuito, o presente do gesto, o presente exaurido, a negação do presente, o presente frágil, o presente abstrato, o presente indignado, o presente impróprio, o papel do presente… Que presente!
Parece ser este um tempo de cegueira, quando aparentemente só o grito nos resta. Mas que, ainda assim, não chega a ser suficiente. Por serem muitos os berros, já não há mais tantos ouvidos que escutem essas ruidosas verborragias com gosto de sangue. E a comunicação se perde até mesmo entre pessoas com as melhores intenções.
É preciso dar a voz — sabemos. É preciso ouvir — dizem.
São muitos os que sempre falaram livremente em voz ativa; que sempre ditaram demais, na verdade. A pretexto de igualdade, não reconhece-se que o colorido existe; logo aniquilam-se as diferenças. Ou, de outro modo, reduzem-se as cores, limita-se a paleta ao preto e branco, criando altos contrastes intensos.
Cegos não enxergam preto, não enxergam branco.
Do outro lado, são tantos aqueles que, ainda que certamente em maior número, costumeiramente foram obrigados a calar, mas que possuem vozes altivas a serem ouvidas, de bocas que contêm palavras necessárias ao espetro da diversidade que existe. Mas suas vozes não saem desses corpos em tom plácido; pelo contrário, são estridentes; gritos da altura que suas causas pedem, com a força que julgam ser necessária para serem ouvidas. Tão fortes que podem incomodar à mesma altura, que por vezes fazem sangrar ouvidos alheios. Discursos diretos com faca nos dentes.
Mais uma vez, rompe-se a comunicação.
As mãos se agarram forte, e ninguém deve soltá-las. Mas as mãos também apontam, mimetizam poderes e as suas armas, estapeiam as faces das consciências. Com sangue nos olhos, ouvidos cerrados e gritos nas gargantas, pessoas se revelam animais não dóceis, destemidos indomáveis que avançam uns aos outros sem medo dos riscos e feridas próprios do embate com o espelho.
Esquartejam-se os sentidos.
Mas, sutilmente, percebo que há algo de novo no olho do furacão. Apesar da poeira que turva a visão, há mesmo algo à vista. É um ovo com aparência de semente, é um ovo com olho cristalino. Um ovo novo, diferente de todos os ovos, mas que também traz em si toda a ancestralidade desse arquétipo infinito. No fundo, ele é atemporal e só precisa voltar à superfície para ser visto. É como uma pedra retirada do fundo da Terra depois de uma era pregressa, para ser revelada sob o sol e oferecida à paisagem aberta; um elemento a ser exposto à visão de todos.
Em oposição ao ovo cego que não mais eclode, ofereço-lhes o ovo de ver além.
Tinha uns dez anos quando vi O Beijo da Mulher Aranha, filme icônico de Hector Babenco, pela primeira vez na televisão. O filme conta a história de Luis Molina, um gay exuberante interpretado por William Hurt, e do seu companheiro de cela, Valentin Arregui, interpretado por Raúl Juliá. Molina está preso por causa do seu comportamento sexual; Arregui, por conta das suas atividades políticas. Os dois homens estão em uma prisão sinistra de São Paulo durante a ditadura militar. Eles escapam do desespero e da violência cotidiana através de trechos de um filme que Molina nos conta, dia após dia e noite após noite, sobre a trágica história de amor entre uma glamurosa cantora francesa e um soldado nazista, por quem ela morre ao final.
Foto: HB Filmes/Divulgação
Quando criança, só me lembrava de dois momentos do filme, ambos próximos ao fim: em um deles, a aparição da mulher aranha, no outro, os protagonistas encontram finalmente a liberdade em uma praia do além. Não me lembrava que o filme acontecia em São Paulo, e não tinha a menor ideia de que 30 anos mais tarde assistiria a esse mesmo filme sozinha, no meu sofá, prisioneira voluntária do meu próprio apartamento na mesma cidade, e que ficaria encantada ao ver suas ruas animadas, cheias de vida na tela.
Isso me deixou com a sensação estranha da história se repetindo, de que a experiência que estava tendo do meu sofá poderia também ser um filme, uma vertiginosa “mise-en-abîme”. Tento me tranquilizar, pensando que a vida evolui como a espiral de uma concha, passando pelo o mesmo ponto, mas em um nível mais alto. Nós não estamos no mesmo lugar; é somente uma fase parecida e, mesmo que a maioria esteja confinada em casa, não estamos no meio de uma ditadura militar. Ou estamos?
A realidade pode, aliás, ser pior do que a ficção. E, ao olhar o atual circo político brasileiro mais de perto, poderíamos pensar em um filme de Romero, no qual mortos-vivos assaltam cidades, não temos como fugir, e defensores raivosos do atual presidente a.k.a. o chefe dos zumbis atiram em seus opositores políticos quando protestam pelas suas janelas. Enquanto o resto do mundo aplaude e canta para encorajar doutores, ou outros heróis da Covid-19, no Brasil, eles são baleados, e carreatas pedem o fim do confinamento e o retorno dos trabalhadores aos seus postos, bloqueando entradas de hospitais. No fim das contas, o líder deles vai cair, pois não é sério o suficiente para satisfazer as exigências dos marionetistas; ele foi suficiente no início, agora não é mais. Vamos terminar com os militares, que estão, de fato, manipulando as cordas.
Nessas circunstâncias confusas, se pode facilmente perder o contato com a realidade: será que é um pesadelo, um filme ou será que é real mesmo? Melhor tentar não cair no desespero, não imaginar a volta oficial de um regime que nos impediria de beijar quem bem quiser na boca, seja um namorado ou uma namorada, quando eventualmente nos reunirmos, arriscando a liberdade ou a vida para um drinque no Cabaret da Cecília, curtindo uma noite queer no decor vintage desse pequeno aconchego no centro de São Paulo. Em que ano estamos? Será que os alemães estão prestes a deportar e matar milhões de pessoas ou será que é um inimigo invisível que mata tantos? Será que estamos no meio dos anos 1970 em uma ditadura ou estamos no século 21, prontos para afrontar um regime militar legalmente instaurado?
O tempo está borrado, tudo está misturado; dinossauros ainda existem, assim como fascistas e zumbis. Eles são machos, brancos, velhos e raivosos, porque sabem que o reino deles está acabando, portanto ficam mais violentos e loucos.
A situação em que vivemos parece uma rachadura no tempo linear: uma fissura social, político-sanitária, é exatamente onde estamos agora. Talvez seja nessa fenda que a luz finalmente entrará. Talvez esta crise possa trazer uma mudança no paradigma atual e nos ajude a criar um mundo um pouco mais humano. É quase engraçado pensar que esse deslocamento potencial seria induzido por algo tão pequeno que nem podemos ver a olho nu.
Esse é o assunto exato da conversa que tive com o artista Simon Fernandes. Queria visitar o ateliê do Simon há um tempo, mas agendas cheias, viagens e a quarentena decidiram o contrário. O dia da nossa ligação parecia somente um outro dia. Acabou sendo diferente. A tranquilidade e o leve tédio desta quarta-feira ordinária se iluminaram quando nossa conversa começou e as sincronicidades surgiram. Achava que o trabalho de Simon tratava da tecnologia, um assunto um pouco afastado da minha pesquisa sobre o maravilhamento, a alteridade e o sublime; mesmo assim, estava interessada. Contudo, falamos das mesmas coisas, só que com outras palavras ou imagens.
De fato, se as obras de Simon podem parecer frias, sua proposta – através de suas esculturas híbridas, instalações ou pinturas – é uma volta ao afeto e à condição humana, usando a tecnologia para ressaltar esses assuntos. No trabalho dele, uma outra temporalidade surge, na qual metal e luz fria coexistem com elementos baratos, como sacolas de plástico transparentes, em uma mistura despretensiosa de alta e baixa tecnologia e cultura. A pesquisa de Fernandes também aborda a tensão e o movimento permanente entre a matéria e elementos digitais, que não estão tão distantes como podemos inicialmente pensar. Para ele, a imaterialidade acaba se encarnando em nós na forma de sensações, percepções, e voltam sempre para a matéria e o humano.
À medida que a nossa conversa fluía, o encantamento, a genialidade e a magia da vida viraram o foco do nosso papo. Acordamos que, ao final das contas, a arte tem essa capacidade única de deixar visível o laço que existe entre nós e o que nos cerca, desvelando o que normalmente ficaria escondido por um simples deslocamento, reanimando a vida, no senso de trazer sua alma, sua anima, de volta.
Esse exercício poderia antecipar o futuro, explorando os elementos invisíveis do nosso presente. Veiculando a hipótese de Berrardi sobre o pós Covid-19, sugiro que o futuro possa conter a rejeição da tecnologia como trauma vinculado à nossa experiência da quarentena. Simon tem uma outra hipótese e considera que a tecnologia poderia recobrar parte do seu charme inicial e da sua pureza, liberada dos aspectos tóxicos da nossa relação como o digital e sua consumação. Acho animador e escolho adotar essa perspectiva.
Acabamos conversando sobre a arte contemporânea e o que realmente significa. Simon cita outro filósofo italiano, Agamben. O que ele escreveu sobre o contemporâneo resume bem nosso entendimento da situação atual e o papel da arte neste contexto. Nossa habilidade de olhar no retrovisor e através do para-brisa ao mesmo tempo, sem julgamento, percebendo a repetição de padrões e a emergência de novas formas em um lugar onde nada é permanentemente definido e, em vez disso, está em suspensão: isso é o contemporâneo. A capacidade de olhar para o presente com distância.
Como o sugere Agamben, concordamos que talvez estejamos no caminho certo, pensando a arte como A Ferramenta para redesenhar relações de poder. O artista aparece, nesse contexto, como um vetor de algo maior do que ele, um tipo de mensageiro do inconsciente coletivo.
Somos compostos de átomos, e átomos são compostos de energia. Somos energia, a nossa e a que está flutuando a nosso redor. Algumas pessoas conseguem catalisar e traduzir nas suas palavras ou imagens esse tipo de sabedoria atemporal, como xamãs, responsáveis por trazer de volta o afeto como fundamento de nossas vidas. Talvez a arte possa criar esse novo território, sem fronteira definida; um tipo especial de heterotopia, como se fosse uma ilha mágica ou um jardim a se expandir de forma infinita. Isso nos obriga a ter a capacidade de prender a respiração e observar, ficar imóveis e quietos, olhando para nosso passado coletivo e para nosso possível futuro a partir de um tempo presente que pode ser reinventado. Isso é provavelmente o que estamos fazendo, de forma intuitiva, enquanto confinados, experimentando a própria definição do que é o contemporâneo, das sincronicidades e fendas temporais. O que significam a arte, o amor e a vida, e o que esta crise pode nos trazer? Esse é também o motivo de às vezes nos sentirmos presos em um filme. E também o motivo que deixa os dinossauros furiosos e os zumbis assustados, e alguém se perguntando “de qualquer forma, que horas são agora?”
Dado Salem é economista e mestre em Psicologia. É um dos pioneiros da Psicologia Econômica no Brasil. Trabalha há 20 anos com direcionamento de carreiras e famílias empresárias na gestão de questões complexas envolvendo famílias e negócios.
Ronaldo Lemos é advogado, especialista em tecnologia e graduado em Direito por Harvard. Professor da Universidade de Columbia, escreve semanalmente para a Folha de São Paulo.
Dado – Que bom te rever, Ronaldo.
Ronaldo – Muito bom, Dado. Bom ver que você conseguiu um barbeiro aí na quarentena para fazer o cabelo e a barba.
Dado – Fui eu mesmo. (risos)
Ronaldo – Ficou ótimo. Parabéns. (risos)
Dado – Aliás, eu vi que você, numa viagem para a China, foi num barbeiro bacanudo, né? Fez um corte incrível.
Ronaldo – Você não tem ideia. Primeiro o cara fez um corte autoral na minha cabeça. E, depois, ele fez a barba. Quando terminou, ele me agradeceu: “olha, é a primeira vez que eu faço uma barba na minha vida”. Porque ninguém na China tem barba!
Dado – Pô, que legal.
Ronaldo – Ótimo. Excelente.
Dado – Primeiro, eu adorei te ver na Sapucaí! Foi a última vez que a gente se viu, e foi muito incrível porque estava aquela bagunça de escola de samba, festa e multidão, você num canto da sala eu no outro, impossível de um chegar no outro, e tivemos uma troca sincera de olhar.
Ronaldo – Foi importante. Quando eu me lembro do carnaval desse ano, parece que a gente estava em outro planeta, vivendo em outro tempo, em outro lugar, e agora nada daquilo faz sentido. Foi realmente uma ocasião muito especial.
Dado – Foi como se ali a gente tivesse se visto de longe e falado: “Assim que der, precisamos marcar um encontro” – que acabou acontecendo desse jeito. Quando a revista Amarello me ligou dizendo que queria que eu batesse um papo sobre o presente com alguém, na hora me veio você na cabeça.
Ronaldo – O nosso próximo encontro já foi pelo Zoom! Você vê que a gente está muito no espírito do tempo, no zeitgeist.
Dado – Exatamente. Já fomos direto para o digital. Muito impressionante essa mudança. Para mim, foi muito interessante. Eu estava de mudança para o Uruguai com minha família, em busca de uma vida mais tranquila. A gente queria morar em cidade pequena, ter contato com a natureza, acordar de manhã e ir na peixaria, passar no supermercado, cozinhar e, à tarde, trabalhar. Queremos uma vida mais simples, no sentido de custos, para conseguir um equilíbrio do jeito mais simples possível. A pandemia chegou no dia em que voltamos de lá. Tínhamos ido para ver escola, casa, essas coisas. E aí minha vida virou exatamente o que eu queria que fosse lá no Uruguai e que eu não conseguia implementar no Rio de Janeiro com toda aquela estrutura.
Ronaldo – O Uruguai veio até você. (risos)
Dado – Exatamente. Quando vi, estava no Uruguai. Falei para a Tininha, minha mulher, “olha só, que presente, essa coisa horrorosa, a gente vai ter oportunidade para fazer exatamente o que queríamos fazer no Uruguai aqui”. Se de repente não for legal, a gente já nem se dá ao trabalho de ir para lá. Vamos tentar fazer aqui e agora. E aí entramos nessa nova vida imediatamente, foi impressionante.
Ronaldo – Já fui muito ao Uruguai, e a minha memória de Montevidéu é que, quando você chega lá, pensa: “será que é feriado no Uruguai hoje?” – porque a cidade está sempre vazia. Tem uma sensação de feriado perpétuo no ritmo da cidade, que, de fato, é bem mais lento do que São Paulo, por exemplo, ou mesmo o Rio de Janeiro. Eu estou com a mesma sensação que você; não estou com a menor saudade de Congonhas. Nenhuma. Quero ficar o máximo de tempo possível sem ir a Congonhas.
Dado – Para você ter uma ideia, eu moro no Rio há oito anos e, durante sete anos, eu viajei todas as semanas para trabalhar em São Paulo. Quer dizer, três anos e meio eu viajei todas as semanas, e até o ano passado eu estava semana sim, semana não. Não aguentava mais. Falei: “não aguento mais, só vou atender pelo Skype, não vou mais viajar, preciso ajustar minhas contas para isso, preciso enxugar minha vida”. E comecei com esse discurso para a Tininha, até que ela topou. Eu concordo plenamente com você. Só quero ir para Congonhas para viajar para o Nordeste, fazer viagem que eu queira. Não quero viajar a trabalho em hipótese alguma.
Ronaldo – Faz todo sentido. E mesmo isso eu já acho um suplício. Depois desse detox de aeroporto, eu estou me sentindo muito melhor. Porque aeroporto, mesmo para viagem curta, pode ser pesado. Eu tenho achado essa desacelerada incrível, Dado.
Dado – Você é um dos caras mais ativos que eu conheço, no bom sentido. Uma pessoa que sabe usar o tempo criativamente. Sinceramente, Ronaldo, você tem quarenta e poucos anos, e eu nunca vi alguém fazer tanta coisa com essa idade. Coisas relevantes, construtivas. Eu espero que você continue muito ativo, mas conseguindo equilibrar a coisa do aeroporto, pelo menos.
Ronaldo – Você sabe que várias vezes eu penso em bater um papo profissional com você, sempre lembro de você, porque várias vezes eu acho que eu estou fazendo coisa demais, e o meu ritmo é insano. Mesmo na quarentena, estando em casa – e não posso reclamar disso –, eu estou trabalhando mais do que estava trabalhando antes, com um ritmo absurdo. Aí eu sinto que preciso falar com você para organizar minha vida, criar um ciclo, porque, de um certo modo, também é perigoso ficar com a vida tomada. São todos projetos que eu gosto, que eu tenho prazer em fazer e me deixam feliz, mas, ao mesmo tempo, isso reduz o espaço para reflexão, para pausa, o que eu acho que é igualmente valioso, até para a criatividade.
Dado – Então já vou te falar uma coisa. Eu me inspiro muito nos gregos, e eles tinham duas palavras para trabalho. Uma delas era erga, que é no sentido de você se erguer, é um trabalho criativo, construtivo da sua pessoa. E outra era douleia – doulos em grego é escravo, servo, então douleia é um trabalho escravizante, aquele que você faz para viver. Saber navegar dentro dessas duas coisas é muito importante. Quando você diz, “poxa, eu preciso de um tempo para parar e pensar”, você está entrando mais no mundo de erga. Por exemplo, os diálogos de Platão eram esse tipo de trabalho, em que você reflete, você aprende, e aí tem aquele outro trabalho que você diz “agora eu vou pagar conta”, ou “agora eu vou fazer um projeto de implementar algo em que eu acredito”, e você vai e faz. Você tem que ter tempo para refletir para conseguir avaliar “poxa, o que eu vou fazer?”, “a que vou dedicar meu tempo?”, “qual o melhor projeto que eu posso fazer com o tempo que eu tenho?” Uma coisa mais ou menos por aí. Eu fico espantado com as coisas incríveis que você fez. Toda a legislação que regula a internet. Eu não estranho que o teu mundo agora vá ficar superlotado, porque você é “a” pessoa que eu tenho como referência na internet. E o mundo está agora direcionado para isso. Espere que você vai ter muito mais trabalho do que condição de atender, e vai ter que escolher bem o que fazer.
Ronaldo – Por isso que eu preciso da sua ajuda (risos). Eu preciso escolher. Está complicado e é super importante. Gostei dessa divisão do trabalho, das duas coisas. São duas coisas que eu acho interessantes. A minha felicidade está muito ligada à possibilidade de participar de trabalhos de esfera pública. Eu não sou político, não exerço isso como profissão, mas participar desses debates públicos me deixa feliz, e minha felicidade está ligada muito a isso.
Dado – Para mim, está evidente. No dia que eu te conheci, pensei: esse é o tipo de gente que precisamos trabalhando pelo coletivo, porque é um cara competente pra caramba, honesto, dedicado, que fala com todo mundo e de quem todo mundo, de todas as praias, respeita e gosta, e é um cara equilibrado e centrado. Sinceramente, acho que seria um desperdício se você dedicasse seu tempo a uma coisa pessoal, de interesses próprios.
Ronaldo – Não consigo. Impossível (risos). Mas a gente estava falando do presente, do modo de vida, e da questão do trabalho. O trabalho está mudando muito agora, né? Eu gosto muito de um desenho feito pela Ray e o Charles Eames, os designers que fazem aquelas cadeiras muito bonitas, que tem três círculos com uma interseção e sugere “qual lugar você deve trabalhar”. Existe o círculo do interesse pessoal, o do interesse público, do bem comum, e o do interesse do seu cliente. O Charles Eames dizia que, se você conseguir trabalhar na interseção dos três círculos, lá no centrinho, você vai ser feliz – e é verdade. Tem gente que trabalha muito bem no círculo do interesse próprio e do interesse do cliente, mas o interesse público fica descartado; e tem gente que também trabalha só no interesse próprio e no interesse do espaço público, sem que aquilo se converta em um benefício, e que a pessoa consiga viver e prosperar profissionalmente. Sempre que conseguimos trabalhar ali no meio, isso é fonte de felicidade, de criatividade, e assim por diante.
Dado – Eu conheço esse diagrama e acho que você é um cara que, se vivesse no Japão, seria um samurai. Mas não qualquer samurai – o samurai que, com a venda nos olhos, acerta na mosca. Você já ouviu falar? Tem um livro chamado…
Ronaldo – A Arte e o Zen.
Dado – Você acertou na mosca. Você é um exemplo de ser humano porque é a pessoa que vai buscar dentro de si seus talentos e suas paixões para dedicá-los ao coletivo. Isso é a melhor coisa que uma pessoa pode fazer na vida. Demos uma desviada disso na nossa cultura, porque hoje em dia buscamos uma profissão baseada naquilo que é mais rentável, que dá mais dinheiro, e aí a galera vai para o mercado financeiro. A pessoa para de pensar em si, de ir atrás das suas paixões, e assim a sociedade desanda um pouco como um todo.
Ronaldo – Eu entendo. E nem sempre isso é felicidade também, né? Claro que ganhar dinheiro é importante, e eu acho que todo mundo tem que prosperar. Inclusive nesse período de Covid, uma das coisas que me incomodou muito é que só agora muita gente percebeu que prosperidade real só existe se está todo mundo prosperando. Se tem uma pequena parcela de pessoas prosperando e outras regredindo e se descolando, isso não é prosperidade real. E em momentos como esse, de emergência, a conta chega, e a conta chega para todos. Então prosperar é importante. Mas se você só age no sentido de prosperar materialmente, isso não necessariamente implica realização, uma vida que seja, vamos dizer, feliz mesmo.
Dado – Os gregos usam a palavra eudaimonia, que foi traduzida como “felicidade” para nós. Eudaimonia é a vida que é boa para o daimon – o daimon é como se fosse a alma, é o demônio que nos habita, mas que não tinha essa conotação negativa de demônio. Ele pode tanto ser legal com você, se você se relacionar com ele, quanto pode infernizar sua vida, destruir sua vida. Então eudaimonia é a vida que é boa para o daimon, ou seja, é a vida em que você vai se realizar como indivíduo. Geralmente, isso tem uma conexão muito séria com a sociedade, porque você dedica seus talentos ao coletivo, e a sociedade obviamente precisa desses talentos, isto é, as coisas se cruzam. A questão é assim, “poxa, eu tenho esse talento aqui, mas esse talento não dá muito dinheiro”. Na época, quem tinha um talento, mesmo que ele não desse tanto dinheiro, a pessoa dedicava a vida àquilo e vivia feliz, e evidentemente existia um equilíbrio maior na sociedade. Hoje em dia, é uma loucura. É o que você falou, se não está bom para todo mundo, gera um problema enorme.
Ronaldo – O que é importante é as pessoas terem a possibilidade de prosperar, e isso não quer dizer que vai ficar todo mundo bilionário, o que seria até impossível e não sei se seria bom para o mundo. Não existe recurso para isso.
Dado – O mundo não aguenta, Ronaldo. O mundo não aguenta sei lá quantos bilionários. Já não aguenta nem milionários. A Terra acaba antes.
Ronaldo – Esse é o problema. Estamos saindo de uma pandemia podendo voltar a outra situação de emergência, que é a emergência climática. Tem um ensaio interessante que eu li nesse período, falando exatamente sobre isso, que estamos, nesse momento, vivendo um ensaio de uma crise ainda maior, que pode, inclusive, chegar mais cedo do que a gente imagina.
Dado – E amplamente anunciada. Existe um estudo dos anos 70 chamado The Limits to Growth (Os Limites do Crescimento, de Dennis L. Meadows, Donella Meadows e Jorgen Randers), que diz que a Terra vai até um limite, e depois desse limite dá problema. Os cientistas todos já estão batendo nessa tecla há um tempão, mas como é que você faz a sociedade cair na real? Sinceramente… Eu sou otimista em relação ao futuro, mas acho que vamos precisar sofrer muito para essa mudança de comportamento acontecer. Agora temos uma oportunidade enorme para ressignificar tudo e voltar para uma vida mais pé no chão, mais real, mais simples e feliz. Acho que é o momento perfeito para isso, mas esse excesso de consumo e essa ansiedade toda é difícil frear. Até porque o discurso dos governantes de “dependemos disso”, “as pessoas têm que comprar”, “temos que acelerar, senão…” – senão o quê? O mundo não aguenta continuar acelerando. A gente vai ter que se reenquadrar de algum jeito.
Ronaldo – Esse mundo que nós estávamos vivendo até há pouco era um mundo que, ao mesmo tempo, acelerava e estava estagnado, isso é muito louco. Ele vivia duas coisas ao mesmo tempo. Tínhamos uma economia americana vibrante e pulsante, com nível de pleno emprego, juros negativos em vários países da Europa, para fazer o dinheiro circular e não ficar parado no banco, e, ao mesmo tempo, sinais de estagnação muito claros, inclusive do ponto de vista econômico. E do ponto de vista da inovação, que é a minha área, existem as inovações da internet, dos celulares, etc. Mas o impacto disso para a economia, para a produtividade e, principalmente, para a prosperidade, não é um impacto significativo. Ao contrário – é isso que é paradoxal. Temos a sensação de que estamos acelerando no trabalho, nas interações pessoais, mas isso não necessariamente está se traduzindo em progresso e prosperidade. Na década de 80, tinha um economista que falava que a era do computador estava em toda parte, menos nas estatísticas de produtividade, porque a produtividade, desde então, continuava a cair. Quando você olha a produtividade do trabalhador nos Estados Unidos, mesmo com tudo isso que temos hoje, é declinante, o que é uma loucura. Ainda não existiu uma invenção que tivesse o impacto no bem-estar das pessoas como teve, por exemplo, o antibiótico ou a privada. Quase inacreditável. O antibiótico e as privadas promoveram um salto na qualidade das nossas vidas, e, nos últimos 20, 30 anos, ainda não teve nada parecido. Esse paradoxo da aceleração com a estagnação é preocupante. E um ponto muito importante, agora com a Covid, é que estamos passando por um momento que nos permite refletir se, talvez, não estávamos acelerando para o lado errado.
Dado – Acho que temos poucas pessoas pensando no que estamos fazendo, e eu acho que as cabeças dos governantes deveriam estar focadas nisso. Para onde estamos indo? Existe uma ética por trás dessa aceleração toda? Porque, se não existe uma ética ligada a tudo isso, pode ir fácil para o lado do mal. Primeiro se cria, depois se vê se é bom ou não é. Eu ouvi essa frase uma vez em Boston e fiquei preocupado.
Ronaldo – Outra preocupação é uma espécie de convergência para um único ponto, que muita gente chama de singularidade. Acho que uma das missões que temos não é promover a singularidade, mas resistir à singularidade, porque o que precisamos não é uma coisa só; precisamos de multiplicidade. Quando falamos em tecnologia, a tendência é a promoção de convergência para um modelo único. One size fits all. E isso é preocupante, porque, quando você perde o contato com a ética, com os modos de vida que são diferentes em cada lugar, com a cultura, a tecnologia fica divorciada da história – independentemente da história que você viveu, o uso da tecnologia é o mesmo para todos. Se seguirmos por esse caminho, primeiro, a ideia de ética se torna inviável; segundo, você tem uma força de convergência. Devemos promover a tecnologia como princípio, mas não como resultado, e a tecnologia como princípio permitindo a multiplicidade, sem convergir para o mesmo ponto. Por exemplo, eu escrevi um artigo na Folha de SP falando que a escola “home office” deu errado. Pega qualquer pai ou mãe agora nesse período e pergunta se eles estão tendo uma boa experiência com a educação online dos filhos em casa. Zero. Não tem ninguém feliz. Pelo contrário, os pais estão putos, as crianças estão putas da vida. Ficar achando que criança de 6, 7 anos vai ficar na frente do Zoom por três, quatro horas é irreal. Esse experimento deu errado. Essa camada tecnológica que a gente julga universal tem limites. O quanto perdemos abdicando do modelo da escola formal para tentar jogar a escola para dentro de casa? É pesado. É um modelo pior. Temos que fazer essa mesma reflexão em relação ao trabalho, pois a tecnologia modifica o plano da cidade, da vida urbana, uma série de coisas. A cidade inteligente talvez não seja a melhor cidade, entende? A tecnologia tem limites, e precisamos lembrar disso, ela não resolve todos os problemas. Pelo contrário, alguns ela piora muito.
Dado – Fico feliz de ouvir isso, porque tudo que eu ouço por aí é a galera acelerando nessa história com pouca reflexão em cima. Uma pessoa especializada em tecnologia, na minha opinião uma das referências no país nisso, falar isso que você falou, poxa, eu fico mais tranquilo.
Ronaldo – Hoje de manhã, só para você ter uma ideia, teve um seminário do BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, sobre educação, com o ex-Ministro da Educação da Coreia do Sul, a Priscila Cruz, que faz um trabalho genial aqui no Brasil no Todos Pela Educação, a Lucia Dellagnelo e eu debatendo isso. Eu falei para o BID que o homeschooling (modalidade de ensino em que o aluno recebe as lições escolares em casa) falhou, não deu certo. Pode ser que a gente consiga daqui dez ou cinco anos, mas achar que dá para trazer a escola para dentro de casa, esquece. E foi interessante porque as pessoas ficaram tocadas com isso. E, de fato, a tecnologia tem limites, e temos que saber qual o lugar que queremos que ela ocupe na nossa vida. Usar a tecnologia para substituir a religião, a ética, as relações pessoais e uma série de outras coisas é tornar a nossa vida pior. Precisamos tomar muito cuidado com isso.
Dado – Assisti a uma live em que você falou que veio de uma cidade que tinha acesso a TV a cabo e que isso foi fundamental na sua vida, que, se não tivesse tido essa fonte de informação, você não seria quem você é hoje. Hoje, a internet escancara isso para nós, mas obviamente precisamos saber o que buscar. Como podemos aproveitar a internet para levar educação para as pessoas no Brasil?
Ronaldo – A importância da internet e da infraestrutura para a vida das pessoas é fundamental. De fato, eu devo muita coisa da minha vida a isso. Eu nasci numa cidade pequena, no interior de Minas Gerais, que foi escolhida aleatoriamente para ser a primeira cidade do Brasil a ter TV a cabo. Na época, não tinha internet, não tinha nada. Um cabo era um salto informacional. Imagina, uma cidade que só tinha dois canais de televisão e o correio como conexão com o mundo externo, e de repente você tem 150 canais, incluindo CNN, BBC e uma série de coisas. Foi um choque. Não só para mim, mas para várias pessoas da minha geração. Eu posso listar um monte de gente que veio dessa mesma época que eu na cidade e hoje é empresário de tecnologia, investidor em tecnologia. É muito curioso isso. O Manoel Lemos, meu primo, é um dos sócios da Redpoint eVentures, um fundo de investimento em tecnologia no Brasil; o Gustavo Caetano fundou a Samba Tech, que é uma startup conhecida; o Gustavo Debs vendeu agora a Zup, empresa dele, para o Itaú por 400 milhões de reais – são todos de Araguari, e a minha hipótese é exatamente essa: como é que uma cidade de 80 mil habitantes conseguiu dar esse salto? Porque teve acesso…
Uma das brigas que eu tenho, por exemplo, é levar banda larga de excelente qualidade para todas as escolas do Brasil. Se a gente conseguir se mobilizar, 6 bilhões de reais resolvia esse problema. Isso nem é muito dinheiro dentro do orçamento público e do que se gasta no Brasil com besteiras e bobagens – se investissem 6 bilhões do orçamento nisso, seria possível colocar banda larga de primeira qualidade em todas as escolas públicas do Brasil. Eu venho brigando por isso há bastante tempo, com vários parceiros aqui no Brasil. Às vezes avançamos, às vezes voltamos. Isso mudaria a vida das pessoas. Conectividade e infraestrutura é o básico, não tem jeito. Foi por isso que a Ásia deu certo. Passei quatro meses na China no ano passado, fazendo uma série de documentários chamada Expresso Futuro. Gravei oito episódios, fazendo um mergulho no que a China mudou de tecnologia, e como eles deram esse grande salto tecnológico. É realmente chocante, porque, em 40 anos, o país tirou 750 milhões de pessoas da miséria. E não é qualquer miséria; é miséria de não ter o que comer, de comer pedra, capim, muito pesado. E em 40 anos essas pessoas foram trazidas, em grande parte, para a classe média. A China hoje começa a competir, por exemplo, com os Estados Unidos em tecnologia e inovação. Então, como é que saíram da fome para potência tecnológica? Muita gente fala, “ah, porque a China é autoritária, por isso que deu certo”, e não é por isso. É o contrário; se autoritarismo levasse a desenvolvimento, a Coreia do Norte seria uma potência, o Irã, a Arábia Saudita… O que eles fizeram? Eles investiram em infraestrutura educação para todos. A fórmula nem é tão complexa. E isso, para nós, no Brasil, parece simples, mas é chocante. Quando pensamos na maneira como criamos infraestrutura no Brasil, é uma tristeza. Se você é rico, você vai ter infraestrutura; se você não é, não vai ter. E isso vale para tudo. Conectividade na escola – se você é rico, você tem; se não é, não tem. Saneamento básico – se você é rico, você tem; se não é, não tem. Mobilidade urbana, mesma coisa. Acesso à mobilidade nacional, mesma coisa. Eletricidade, mesma coisa. E, lá, o que eles fizeram foi inverter essa equação. Começaram a construir infraestrutura de grande escala para rico e para pobre, para todo mundo. Um exemplo, que eu vi na China, é o trem-bala. Você viaja hoje de trem-bala para qualquer cidade na China; a malha tem mais de 30 mil km; é o melhor jeito que existe de viajar no mundo hoje, totalmente confortável, limpo, trafega a 350 km/h, o trem é moderníssimo – e em todo o trem-bala chinês, só tem um vagão de primeira classe; todos os outros são para a galera, tendo grana ou não. E fizeram a mesma coisa para a educação. O acesso à educação chegou em todo mundo, não só em quem é rico, mas também em quem é pobre. E aí, não tem jeito. Se você tem infraestrutura e educação para todos, o país vai se desenvolver.
Dado – Na minha opinião, falta uma coisa nessa equação. Como é que eles estão em relação à sustentabilidade?
Ronaldo – Esse ponto é importantíssimo. A China pagou um preço muito alto por esse desenvolvimento rápido. A economia chinesa saiu de uma economia agrária e virou uma economia industrial e, agora, estão entrando numa economia de informação. Mas essa economia industrial poluiu o país inteiro, destruiu rios e o lugar onde as pessoas vivem. Em Pequim, por exemplo, durante muitos dos dias do ano você não consegue ver o sol, porque tem uma camada de poluição tão espessa que o sol fica escondido. Como o preço que eles pagaram foi muito alto, nos últimos seis anos houve uma guinada no sentido de economia verde, e hoje, por incrível que pareça, a China está liderando o mundo em economia verde, investindo em carro elétrico, painel solar, mudando as regulamentações ambientais – fábrica que jogava dejeto em rio agora ou é multada, ou é fechada, e tem que cuidar de reciclagem, de economia circular, e assim por diante. Provavelmente vai levar dez, quinze anos para resolver essa questão, mas o que é importante é que eles perceberam isso, até porque a qualidade de vida das pessoas ficou horrorosa por causa da degradação ambiental. Uma cidade como Shenzhen, no Sul da China, por exemplo, tem 15 mil ônibus, todos são elétricos. São Paulo tem 14.500 ônibus, nenhum elétrico. Todo táxi lá é elétrico. Caminhão de lixo elétrico, carro de polícia elétrico… Isso é visível a ponto de você ir às cidades chinesas e tomar um susto por causa do silêncio do tráfego, porque carro elétrico não faz barulho. Para nós, ocidentais, é até perigoso, porque nos acostumamos a nos orientar para atravessar a rua pelo som, e lá você anda e tem cinquenta carros e nenhum barulho. Isso chama muita atenção. Vai resolver o problema de imediato? De jeito nenhum. Mas pelo menos eles deram uma guinada e estão acelerando no sentido de tecnologias e infraestrutura verdes.
O Brasil deveria ser o líder mundial em tecnologia verde. Não existe razão para não sermos. Fomos muito bem com o etanol, e tivemos um papel importante. Mas estagnou, e uma das razões para isso também foi o pré-sal. O pré-sal pode ter seu lado bom, existem mil análises, mas um efeito colateral dele que provavelmente vai ser alto é que ele nos fez desinvestir na economia verde e desestimular o país a lidar com ela, sendo que poderíamos liderar no mundo todo essa discussão.
Dado – Com certeza. Obviamente, um erro estratégico terrível, que vai ter que ser corrigido rapidamente. Quem sabe aproveitamos esse momento e fazemos esse movimento pela consciência, e não pelo sofrimento, como pode ser que aconteça mais adiante.
Ronaldo – Pois é, foi o que aconteceu na China. Eles precisaram sofrer para mudar.
O brasileiro é um povo que quer botar para quebrar no sentido positivo, um povo empreendedor, criativo, indomável, e isso é muito bom. Como você falou, estamos num momento muito aquém do que poderíamos estar para permitir essa criatividade. Estamos buscando botar a culpa no outro, dizer quem é o culpado. E sempre que você pergunta quem é o culpado, você gasta energia que poderia estar investindo para criar caminhos, soluções, e assim por diante. Por isso, quando eu falo em construir infraestrutura para todo mundo, eu realmente acho que, se conseguirmos integrar mais gente na participação na cultura, na criatividade, etc., podemos dar um salto como país. Precisamos aprender a transformar ideias em produtos e serviços. Hoje, o Brasil, como país, sabe muito bem transformar recursos naturais em produtos e serviços derivados deles, mas ainda não conseguimos transformar ideias – sejam ideias culturais, científicas, e assim por diante – em produtos e serviços. E não precisa ser ideia grande; pode ser ideia pequenininha também. Pequenos conhecimentos que as pessoas têm na sua vida cotidiana podem gerar ideias de serviços e produtos novos. Quando conseguirmos fazer isso, acho que nos desenvolveremos muito rápido. Estamos em um momento derrotista, mas vai passar.
Dado – Fico feliz de ouvir sua visão, porque é muito fácil olharmos a realidade com maus olhos. Você olha para o potencial, para o que pode ser. Você vê ali a quantidade de sementes que tem e que estão prontas para brotar, e é só trabalhar bem isso. Eu super concordo com você e acho que temos que brigar menos, apontar menos o dedo um para o outro, tentar nos unir. Como fazer isso? Está todo mundo brigando tanto. Na política também. Sinceramente, acho isso um desperdício de energia. Enquanto estivermos desunidos, essa coisa não rola.
Ronaldo – Concordo. Mas vai passar. A internet teve um papel muito negativo nesse processo, e acabou sendo utilizada para incutir medo e raiva na cabeça de muita gente. Estamos vivendo, no Brasil, nos últimos quatro anos, campanhas massivas de desinformação, e essas campanhas têm por base provocar esses sentimentos muito básicos nas pessoas, como medo, raiva, insegurança. E a pessoa, quando está com medo e raiva, desenvolve uma visão em túnel, só enxerga o que está imediatamente na frente dela e perde a visão periférica. A pessoa que entra nesse estado só se preocupa com coisas muito imediatas, fica paranoica, e começa a responder a estímulos que se relacionam com esses sentimentos muito básicos. Mas eu acho que essa onda de medo e raiva, essa neurose coletiva que a internet ajudou a inocular no nosso país, está começando a regredir.
Dado – Quais são os sinais que você está vendo? Ou existe algum trabalho efetivo sendo feito nessa direção?
Ronaldo – Pior é que não. Ela não regrediu por nenhum antídoto, nenhum remédio. Ela está começando a regredir por um esgotamento das ferramentas que são usadas para promover essa inflamação. Nos últimos quatro, cinco anos, essas campanhas de desinformação, no WhatsApp, nas redes sociais, robôs, etc. realmente conseguiram inflamar as pessoas, e agora já estão começando a perder o efeito. As pessoas já não estão mais tão suscetíveis a esse tipo de inflamação. Não porque elas mudaram, ou porque houve um remédio, mas porque essas ferramentas estão esgotando sua capacidade.
O brasileiro médio, hoje, recebe no WhatsApp todos os dias de 50 a 200 conteúdos novos que são uma mistura de violência com política e com pornografia, justamente para instigar esses sentimentos muito básicos, que deixam a pessoa nervosa ou com medo, e assim por diante. E o que está acontecendo é que, depois de um tempo, esse ecossistema está começando a perder efeito.
Dado – Existe alguma forma de regular isso sem perder a liberdade, que é a beleza, na minha opinião, de toda a internet?
Ronaldo – Nesse momento, eu estou envolvido até o último fio de cabelo no debate sobre o projeto de lei das fake news. E a minha preocupação, Dado, é exatamente a sua. Como é que regula isso sem afetar a liberdade de expressão, que não pode, em hipótese alguma, ser afetada? Eu me posicionei muito forte contra o texto original do projeto, porque estava perigoso para a liberdade de expressão. Na minha visão, o único jeito de combater essas fontes de inflamação não é combater as folhas, mas a raiz, de uma vez só. E como é que se combate desinformação? Com mais informação. Por exemplo, em vez de combater o conteúdo, devemos combater o financiamento oculto a esse conteúdo. Fazer um follow the money. Não podemos punir uma pessoa por falar alguma coisa na internet, mas podemos punir quem oculta patrimônio ou recursos que são usados sem transparência para mover campanhas de desinformação. Falar besteira e desinformação, todo mundo fala, é da natureza humana, é fofoca, etc., e isso não tem nenhum problema. O problema é ir do amador para o profissional. O amador sempre vai existir; agora, o profissional, que coloca dinheiro, que movimenta campanhas com robôs, compra engajamento, monta designs e bunkers com designers para produzir conteúdo violento, pornográfico, o dia todo, para depois propelir isso com grande alcance, às vezes falando para 50, 60 milhões de pessoas, isso depende de dinheiro, porque falar com muita gente sempre é caro, não importa a mídia. É caro se for na televisão, e é caro se for na internet. Falar com 80 milhões de pessoas sempre vai ser caro. Então essas campanhas massivas de desinformação têm muito dinheiro por trás, e o único jeito de combatê-las sem afetar a liberdade de expressão é follow the money, siga o dinheiro. Esse é o único jeito. Agora, qualquer um fala o que quiser. O que não pode é, de forma oculta, você financiar uma rede de laranjas, intermediários e robôs e uma série de coisas e, como resultado disso, espalhar desinformação para 50 milhões de pessoas. No mínimo, você tem que fazer isso de forma transparente, assumindo a responsabilidade. Se não fizer isso, pode ser punido.
Dado – Parabéns, você está trabalhando em cima de uma coisa que é fundamental. Eu não imaginei que tivesse alguém se ocupando disso, e fico muito feliz que seja justamente você.
Ronaldo – Nas últimas duas semanas, estou o tempo inteiro em cima disso. Agora, tem que fazer pressão, porque, para fazerem coisa errada lá no Congresso, não custa nada.
Dado – Fala para nós como podemos pressionar que pressionamos.
Ronaldo – Tem que pedir follow the money. Não mexam com a liberdade de expressão. Quem financia campanhas massivas, com robôs, etc., é que tem que ser punido. Essa é a forma. Precisamos de uma lei simples, que tenha dois parágrafos. A lei original estava com oito páginas. Um mastodonte horroroso. Com esses dois parágrafos, resolvemos o problema, em boa parte.
Viviane Sassen em Visible/Invisible, no Palácio de Versailles
Sou feita de narrativas. Encanta-me o processo de construção, sem uma ordem que exija a materialidade da história, rumo ao ponto final. É pelo caminho que amarro os fios e, muitas vezes, desfaço a trama para recomeços.
Visitando o espaço que habito, andei em busca de uma referência que guardasse em si esse percurso de produção. Como visitante nova em ambiente já conhecido, propus-me a reinventá-lo em novas significações. Ali estava meu cesto de novelos de lã. Vinha de antigas grandezas, velhas matrizes de família, hábito que herdei, em meu projeto de ser tecelã.
Aprendi, em um momento de escolha, que ele valeria como Presente a quem pudesse recebê-lo, se mergulhasse comigo, em estrutura profunda, na polissemia do material a ser transformado em matéria poética. Confesso que, em tempo de ficcionalidade, o ritmo rege esse percurso, a romper latências para um vir a ser.
De tons amarelo mostarda, o novelo continha nuances que me punham em movimento. Apostei na textura da lã, a aguçar o tato de quem o tomasse em suas mãos. Em correspondência, à maneira de Baudelaire, outros sentidos aflorariam sinestesicamente. Havia um desejo incontido de tornar meu interlocutor um ser de poesia, a recompor os fios de suas velhas novas narrativas.
Nesse trabalho de desatar possíveis nós, eu ofereço meu Presente a quem possa descobrir comigo a insólita experiência de destecer, para recompor o material, com vistas a novos desafios e à espera. Ele leva parte do meu acervo, mas ainda há muito de meadas no cesto da minha infância. Caminhar às nascentes dos sentidos, sem chegar à ponta do novelo, é também lição de Kaváfis em sua Ítaca, um convite a fruir o meio de tantas viagens.
O melhor que tenho hoje a oferecer, portanto, partindo da minha CASA para o Outro – para os Outros –, é a certeza de que todo Presente leva a atemporalidade em sua matriz. Em uma perspectiva cubista, diante de tantos ângulos para olhar a cena cotidiana, há, em mim, um convite manifesto para não perdermos a beleza de Troia a Ítaca!
Marisa Giannecchini Gonçalves de Souza é doutora em Semiótica e Estudos Literários (Grego Clássico) pela UNESP – Araraquara
Embora todo mundo utilize os termos “sexo” e “gênero” como semelhantes, eles têm significados bastante diferentes. Na verdade, eles não concordam necessariamente.
O gênero é baseado em normas aceitas culturalmente – atitudes ou comportamentos que são tipicamente atribuídos a homens ou mulheres. Já a identidade do gênero tem a ver com o senso interior de quem nós somos. As pessoas expressam seu gênero, geralmente, por meio da forma como se vestem ou se comportam.
O sexo é determinado na concepção, pelos genes que cada um de nós herda do nosso pai e da nossa mãe. Ele é visível desde o momento da gravidez.
Os cromossomos detêm o sexo. Eles são as pequenas peças do DNA que falam para as nossas células o que fazer. O ser humano tem 23 pares de cromossomos. Um desses pares contém os cromossomos do sexo. Eles chegam de duas formas: X e Y. As mulheres têm dois X. Então, quando elas partilham a metade de seu par com o feto, o cromossomo que oferecem é sempre o X. Os homens, por sua vez, têm cromossomos X e Y. Então, se o pai partilhar o cromossomo X com a criança, será uma menina (XX); se partilhar o cromossomo Y, será um menino (XY). Ou pelo menos esse é o caso mais usual.
Ainda em relação ao sexo, investigadores compreenderam que a biologia pode ser mais complexa que apenas afirmar que é um “menino” ou uma “menina”. Por exemplo, algumas pessoas detêm dois cromossomos X misturados com fragmentos de cromossomo Y. Essas pessoas se desenvolvem com um aspecto masculino, embora a presença dos dois cromossomos X signifique que são fêmeas biologicamente.
Isso fica ainda mais complexo quando a identidade do gênero entra em consideração. Para mais de 99% da população mundial, a identidade do gênero e o sexo biológico estão em consonância. Essas pessoas são denominadas de cisgênero (o prefixo em latim, cis-, significa “do mesmo lado”). No entanto, uma pequena amostra da população experiencia uma incompatibilidade entre sexo e gênero. Algumas dessas pessoas crescem sentindo que não têm o gênero com o qual o resto do mundo as identifica (inclusive seus familiares e médicos). Essa experiência se chama transgênero – termo distinto da orientação sexual, independentemente de a pessoa sentir atração por machos ou fêmeas.
Os transgêneros podem, estranhamente, parecer machos ou fêmeas, mas, por razões que ainda não são claras, eles se sentem do sexo oposto. Alguns podem mesmo sentir que são dos dois gêneros.