Apesar do obscurantismo comumente atribuído à Idade Média, tempo de cruzadas religiosas, inquisição e vassalagens, houve também no medievo uma conquista que, segundo Giorgio Agamben, na obra “Estâncias – a palavra e o fantasma na cultura ocidental”, marcou a cultura do ocidente até os dias de hoje. Trata-se da concepção do amor como processo fantasmático, formulada pela primeira vez na poesia provençal trovadoresca do século XIII.

Havia antes na Antiguidade a contraposição entre o amor celeste e o amor vulgar. Nos livros “Fedro” e “Banquete”, por exemplo, Platão concebe o amor contemplativo como uma experiência espiritual elevada, desvinculada do corpo e propiciada pela Vênus Celeste. Já o amor concupiscente estaria ligado a Vênus Pandemia, de natureza terrestre e vulgar. Ao conceberem o amor como fantasma, os poetas trovadores superaram essa oposição. Grosso modo, o fantasma seria, ao mesmo tempo, a imagem que resta, na imaginação do sujeito que ama, do objeto amado perdido (como a da mulher inacessível, no caso da poesia trovadoresca), e a nuvem de desejo que circula no corpo desse mesmo sujeito. Esse espectro reúne o espiritual e o corpóreo, ecoa vozes distantes, espelha movimentos furtivos e, por ser formado de desejo, abala as entranhas do corpo. E o poema amoroso se torna a ponte entre o desejo e o objeto ausente. Faz-se a morada, a estância, o lugar de fruição da experiência amorosa, na medida em que captura o fantasma em seu corpo ambíguo de palavras, traduzindo a complexidade dessa experiência. 

A água tem papel fundamental nesse processo fantasmático. A imagem que se desprende da matéria entra em contato com os olhos, órgãos predominantemente aquosos que atuam como um espelho de duas faces. Uma face retém a imagem externa, e a outra a transmite para a imaginação, que, por sua vez, inscreve-a em si como fantasma. Não por acaso, a fonte de Amor e o espelho de Narciso relacionavam-se à virtude imaginativa, atribuindo a essas águas, no entanto, o estigma da conjunção de amor e morte, já que a imagem refletida na água é destituída de corpo, espectral.

Nesse sentido, a leitura medieval do mito de Narciso não se confunde com uma interpretação comum que lhe é dada pela psicologia moderna, de que o sujeito narcísico, ao se enamorar por si mesmo, revelaria excesso de amor próprio. Para um leitor medieval, o risco narcísico consiste no erro cometido pelo sujeito que passa a conceber a imagem de si refletida na água como criatura real. Segundo Agamben, aludindo a Chiaro Davanzati, “Como Narciso, na sua espera mirando | se enamorava da sombra na fonte.” Ao se apaixonar por uma sombra, uma imagem, o sujeito tenta apropriar-se do irreal, rompendo a esfera do jogo poético, que é um modo precário de ligar o desejo à imagem do objeto ausente. 

Pensando na influência dessa tradição poética provençal na poesia moderna brasileira, podemos ler nestes versos do poema “O quarto em desordem”, de Carlos de Drummond de Andrade, a consciência do eu poético acerca da natureza fantasmática do amor: 

Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala 
sensível e secreta me atormenta 
e me provoca à síntese da flor

que não se sabe como é feita: amor, 
na quinta-essência da palavra, e mudo 
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objeto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo!, corpo, corpo

verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto pela cama, 
a passear o peito de quem ama. 

Eis alguém a cometer a derrapagem de sofrer de amor já na casa dos cinquenta anos. O eu poético maduro é tocado por uma pétala que, mesmo sendo uma fração delicada de uma flor, atua como espinho, atormentando-o e provocando-o a compreender a natureza desse sentimento, a “síntese da flor”. Mas esse amor não pode ser apreendido pelo sujeito, que o expressa também na imagem aérea da nuvem. Esta que oscila entre o alto e o baixo e acaba por se diluir no corpo, metaforizando o fantasma composto de desejo, potente como um cavalo que pisoteia o peito de quem ama.

Cabe sublinhar, todavia, uma diferença essencial entre o trovadorismo e a poesia moderna. Os trovadores medievais investiam uma autoridade no poema, tendo-o não só como um jogo de palavras (joi d’amor), mas também como a estância de uma celebração alegre da experiência amorosa. Apesar de reconhecerem a sua natureza textual, tinham o poema como uma “escada espiritual” capaz de unir o desejo com o objeto ausente. Já na modernidade há a perda de confiança nessa capacidade restauradora da poesia. O canto amoroso assume um tom elegíaco, a lamentar a perda do objeto desejado e sua impossível recuperação. Mas não deixa de se tornar a morada comovida da ausência. E, como neste último verso de “A vida passada a limpo”, de Drummond, acaba por reunir amor e morte, em sua atmosfera fúnebre de lagoa iluminada pela lua, a refletir na água diáfana a imagem do que se perdeu: “essa alvura de morte lembra amor”. 

Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri

A Chapada do Araripe é um livro aberto sobre a história da terra. Guarda em suas profundas entranhas as marcas geológicas da presença das águas através dos registros fósseis de milhões de anos gravados no calcário laminado. Eras e períodos geológicos da terra talharam nas rochas os vestígios dos seres que habitavam o vale da verde chapada nos tempos do período cretáceo, datados, em sua maioria, desse período.

A vida habita a Chapada do Araripe, desde tempos imemoriais. Cercada por grandes vales, a ela é um chão alto que une os estados do Ceará, Piauí e Pernambuco, e não os separam como muitos pensam quando olham para este território do ponto de vista geopolítico. Um verdadeiro museu aberto sob o céu do nordeste brasileiro, por sua riqueza em natureza e cultura. “Nela, brotaram as primeiras flores do planeta, plainaram pterossauros voadores e surgiu a lenda da origem dos seus primeiros habitantes da tribo Kariri.”

A água é presente nos percursos feitos pelos Kariri. Os seus abrigos – lugares onde estão os registros rupestres deixados por esse povo, datados de 3.100 anos antes do presente – estão localizados próximos aos locais de água, em que as nascentes brotam pelos pés de serra da Chapada do Araripe.

Dos Kariri, o povo do presente – habitantes desse vale, que é a Região do Cariri Cearense – herdou uma identidade cultural singular, que enfeita as ruas de sons, cores e danças, um verdadeiro caldeirão de miscigenação de culturas. A Casa Grande de Nova Olinda “simboliza um marco entre o passado pré-histórico da Chapada do Araripe e a tardia história colonial do interior do nordeste brasileiro, que só chegou ao mais profundo sertão do Cariri no início do século XVIII, percorrendo o Caminho das Boiadas”. A chegada do ciclo do couro no Cariri percorreu o caminho das águas então percorrido pelos Kariri. Dominados, os índios passam a ser vaqueiros, os cuidadores dos gados das grandes fazendas, e o couro do boi passa a ser utilizado para fabricação da indumentária do vaqueiro na lida com gado sertão adentro.

Hoje, a Casa Grande de Fazenda de Nova Olinda abriga a Fundação Casa Grande Memorial do Homem Kariri. Um complexo cultural, localizado bem no centro da cidade de Nova Olinda, que abriga um museu de mitologia e arqueologia, bibliotecas especializadas, rádio comunitária, estúdio de produção de vídeo, cineclube, galeria de arte e um teatro, espaços geridos por crianças e jovens da cidade de Nova Olinda, que fazem dele um lugar de produção e fruição de arte. Nela, a memória do povo Kariri se mantém viva, com um trabalho pautado na Arqueologia Social Inclusiva, na qual a arqueologia se tornou um meio viável para o nascimento do projeto social que fez com a comunidade despertasse para esse espaço, construindo unida um complexo cultural, acessando conteúdos nos seus laboratórios, aprendendo e se capacitando sobre gestão cultural, comunicação social, turismo comunitário  e as ciências do patrimônio, fazendo dessas áreas de formação oportunidades de profissionalização e de manutenção das suas vidas no interior do nordeste brasileiro. 

“A Casa Grande é um beija-flor que suga o néctar da Chapada do Araripe e o espalha sobre o seu vale”, afirma Alemberg Quindins, palavras essas que se comprovam pelos projetos de incentivo ao desenvolvimento das pessoas e da região que a instituição já promoveu e vem realizando. 

O projeto de “Turismo Comunitário” fez florescer nas casas das famílias das crianças e jovens do projeto de pousadas domiciliares que hospeda turistas de todas as partes do Brasil e do mundo, os quais desejam conhecer a Fundação, gerando, assim, renda complementar para as famílias participantes. Mestre Zé Artur, proprietário de uma área ampla de agrofloresta na zona rural de Nova Olinda, possui, na sua morada, uma pousada domiciliar e faz do seu terreiro uma escola, ensina aos que chegam como fazer dar certo experiências de agrofloresta na caatinga e como sazonalidades das chuvas se apresentam como um ensino da natureza para que o sertanejo aprenda a captar água em grandes reservatórios, não lhe faltando em nenhum só dia do ano o que beber e o que comer.

O projeto “Museus Orgânicos”, nasce através da expertise de musealização do Memorial do Homem Kariri e faz nascer museus vivos nas casas e oficinas dos Mestres da Cultura Popular do Cariri, para além do município de Nova Olinda. O Museu Orgânico “traz na sua essência a valorização das histórias de vida dos mestres brincantes, de suas artes e ofícios” e, ao longo dos anos, com mais de dez experiências implantadas, vem se consolidando como “uma rede sociocultural composta de lugares de memórias vivas: fomentando a troca de experiências, circulando conteúdo, fortalecendo vínculos comunitários, intercambiando conhecimentos e oportunidades de geração de renda às famílias e comunidade, tendo como matriz a arquitetura do afeto e a ativação de territórios criativos”. Os museus habitam diferentes lugares e oportunizam diversas vivências. Está aí um dos porquês de sua organicidade, seja por revelar uma área de preservação da caatinga, tendo a observação de aves como o seu principal atrativo, tal é o caso do Museu Casa dos Pássaros do Sertão em Potengi, Ceará; seja por mostrar como a casa de um mestre de reisado de couro utiliza as árvores da caatinga para produzir as máscaras utilizadas pelos brincantes e o corpo que sustenta os entremeios que divertem a comunidade rural em Dias de Reis, como no Museu Casa do Mestre Antônio Luiz, em Potengi, Ceará; seja, ainda, como as “artesanices” de Mestra Corrinha, que une o barro, a água e suas habilidosas mãos para moldar arte e utensílios, que ganham vida no Museu Oficina de Corrinha Mão na Massa, em Missão Velha, Ceará.

São inúmeros os elementos que fazem da Chapada do Araripe um patrimônio singular; logo, outro projeto que a Fundação Casa Grande vem desenvolvendo e agregando parceiros de diferentes instâncias busca justificar os atributos que consolidam a Chapada do Araripe como patrimônio mundial. Este, por sua vez, extrapola as barreiras geográficas do Cariri, do Ceará e do Brasil. Pretende inundar o mundo com a notícia de uma região autêntica e excepcional, assim como o mar já a inundou para fossilizar no solo deste chão a memória da terra. 

Os projetos e processos desencadeados no seio da Fundação Casa Grande, que despertam para o desenvolvimento regional sustentável, através do turismo, da museologia e do patrimônio, fazem-me rememorar os caminhos das águas percorridos pelos Kariri, os quais ganham destaque nas paredes e salas do Memorial do Homem Kariri, onde se diz que “Contam nossos avós que os nossos bisavós foram pegos a dente de cachorro e que quando a Casa Grande chegou, uns se enfurnaram nas locas onde viveram nossos tataravós nos “taiados” da serra e outros ficaram de morador do povo da Casa Grande, na labuta de vaqueiro. Mas nossos tataravós contaram para os nossos bisavós, que contaram para os nossos avós, que, na origem, nós surgimos de um reinado na beira de uma bonita lagoa e que um dia o reinado se encantou, deixando o retrato nas pedras e que, em algum lugar no caminho das águas, existe um portal que por ele um dia vem se desencantar”.

A mitologia nos faz perceber como a Fundação Casa Grande é, dentro do caminho das águas que brotam e percorrem a Chapada do Araripe, esse portal encantado.

#42ÁguaEditorial

Porque no princípio era a água

Patrícia Furtado é a editora convidada da edição Amarello Água.

ÁGUA foi a primeira palavra que falei na minha vida, antes mesmo de dizer “papai” ou “mamãe”. Estava no colo da minha mãe, apontando para um lago, pedindo para ir até lá. 

Sempre voltei meus olhos para as águas, sempre caminhei até elas movida por uma inexplicável atração, atravessando sua pele em rios, lagos e mares como um fantasma que atravessa paredes, como Alice que atravessa o espelho. Sempre amei olhar para o alto e deixar que suas gotas deslizassem por todo o meu corpo em banhos de chuva, cachoeira ou chuveiro. Aí são elas que me mergulham, descendo poros adentro e indo ao encontro das minhas águas.

Salgada ou doce, domesticada ou livre, esteja onde estiver, ela sempre foi a verdadeira direção da minha vida. Sabe quando você ama algo ou alguém e quer que outras pessoas também sintam esse amor? Por isso fundei a Acqua Mater, para convidar os outros a compartilharem esse canto-dança comigo.

E agora cá estou eu, como editora convidada da edição Água da Revista Amarello, para conduzi-los nessa “Expedição”.

Seus olhos, como um barco que flui, aportarão em várias cidades ao longo deste rio de páginas. Cada texto, um porto. Cada imagem, um panorama. Acessos a novos mundos, a um novo olhar sobre a Água. Nunca definitivo, nunca totalizante. Apenas uma fresta, pois a água não se deixa aprisionar. Para manter-se em vida, para gerar vida, ela precisa correr e transformar-se, mudando de estado quantas mais vezes a ciência for capaz – ou incapaz – de descobrir, neste e em outros planetas. 

Portanto, adentrem cada universo que nossos autores nos trazem como se fosse uma antessala. Penetrem os portais, depois avancem por si mesmos, pois todas as águas são férteis e chegam antes de nós. Abrem caminho.

Aqui, temos uma breve seleção temática que lança pistas sobre como enxergar a água sob novos prismas, porque ela não é só verde ou azul. Atravessada pelo sol, é o arco-íris inteiro sem confins definidos entre suas muitas manchas de cor. 

Escrevo esse texto do sertão baiano, de uma cidade chamada Ipirá, que em tupi-guarani significa “rio de peixe” – embora nem sempre haja rio ou peixe por aqui. Apesar do nome, é uma região marcada pela aridez de terras desmatadas, nascentes desaparecidas e gente franzida que resiste à seca enquanto o sol desenha a história dos umbuzeiros no chão.

Da minha janela, vejo pés de algaroba e de jurema, mandacarus, palmas, cabras, cavalos, vacas. Passarinhos fazem coro aos quero-queros, ou “espanta-boiada”, como são mais conhecidos por aqui. Ao meu lado, uma pequena fonte artificial jorra água, pois, na ausência do fluxo contínuo de rios que correm ou da chuva que chove, recrio paisagens aquáticas com o que tenho à disposição, para puxar emocionalmente pelo fio da memória e me sentir mais próxima às águas das minhas origens. 

Porque aqui os rios secam, a chuva é passageira e o sol é morador. Porque dia feliz, no sertão, é quando “tá bonito pra chover”.

Tem vida no sertão. Tem água!

Mas na esperança de mais vida, espera-se por mais água. 

As águas daqui se escondem em tudo o que transpira: na gente, nos outros bichos, nos mandacarus, nas barrigudas, nas batatas dos umbuzeiros. Escondem-se debaixo da pele da terra, nas nuvens do céu. O sertão ensina a gente a olhar para além da superfície irrigada das coisas. 

Porque tem a água que se deixa olhar, e tem a água que se esconde. Tem a água que enxarca e inunda, e tem a água que não há. 

Sim, o sertão um dia foi mar. Essas terras hoje empoeiradas abrigam, ainda que invisíveis aos nossos olhos, búzios, conchas, fósseis de ouriços e de outros vertebrados e invertebrados de água salgada – assim como o Monte Everest ou as altas montanhas do Grand Canyon têm fosseis marinhos tatuados em suas carnes. 

O Oceano já cobriu toda a superfície desse planeta estranhamente chamado de Terra, quando o tempo ainda era Mistério, muito antes de a Pangeia parecer uma imensa ilha flutuando nas águas do velho Pantalassa. 

O título “Porque no princípio era a água” veio-me à cabeça quando ainda escrevia esse texto e queria que ele transbordasse das margens do papel. Tales de Mileto soprava em meu ouvido: “A Água é a origem de todas as coisas”! Sem hesitar, acolhi o chamado e lancei a isca nas águas virtuais da internet. Pesquei um texto de Jacyntho Brandão, professor de Língua e Literatura Grega da UFMG, intitulado “No princípio era a água”. Ele conta que tradições gregas e hebraicas se inspiraram em cosmogonias babilônicas que instituem a água como o princípio de tudo, tanto que, num poema escrito, provavelmente, no século XII a.C., a água das fontes e a água do mar são apresentadas como os primeiros deuses.

Antes que vocês sigam viagem rio a baixo, queria lembrá-los de que somos atravessados pela água o tempo todo, tanto que integramos o ciclo natural hídrico e inventamos um ciclo artificial da água para fazê-la chegar às torneiras de nossas casas. E toda essa água é sempre a mesma água, porque a quantidade de suas moléculas circulando em nosso planeta é a mesma desde a noite dos tempos. Reciclam-se continuamente, em toda parte, de toda forma. A água que você bebeu hoje pode ter envelopado um bebê tiranossauro ainda dentro do ovo. Moléculas de água dentro de você podem já ter sido nuvem, gelo, oceano, suor ou lágrima de animais, ou plantas que já não estão mais entre nós. As águas ficam e guardam memórias.

Para que não se esqueçam disso, lanço aqui uma garrafa ao mar. Dentro dela, um trecho de outro texto meu para levarem consigo durante essa Expedição:

Água é vida. Quando buscamos vida em outro planeta, buscamos água. Qualquer semente ou embrião só começa sua vida na água. Ela é o meio pelo qual a natureza existe e se sustenta, conectando todos os sistemas vivos e ligando o presente ao passado, e o passado ao futuro. Percebo uma espécie de fio de Ariadne que parte invisivelmente do meu umbigo e me liga à primeira célula viva do oceano primordial, atravessando as espirais do tempo e do espaço e me conectando ao início de tudo. E, na direção contrária, nesta travessia de trás para frente, esse fio acumula uma série de registros de vida que passam então a me pertencer. São essas águas do passado que chegam até mim, preenchem minhas células e se constituem como memória, deixam rastros indeléveis na minha psique, na zona mais profunda e obscura do meu inconsciente, e conectam a minha história à história de vocês – e também à história de toda a humanidade. Temos um passado comum, e é esse oceano de memórias que nos liga inexoravelmente uns aos outros. As águas que me atravessam e me habitam são as mesmas águas que atravessam e habitam cada um de vocês, são as águas do início e do fim de tudo, as águas do nascimento e da morte. O que pertence unicamente à nossa individualidade é apenas uma gota deste imenso oceano.

Quando uma mulher gera e pare um filho, ela permite que o mar das origens transborde em onda sobre a terra para irrigar um novo mundo. A continuidade da vida é esse oceano primordial que não para de jorrar em cada um de nós.

Nossos corpos são literalmente inundados: um feto humano de três meses possui uns 94% de água; um recém-nascido, entre 80% e 84%; um adulto, 60%, 65%; um idoso, 40%, 50%. Em nosso percurso vital, vamos perdendo as águas do corpo até secarmos definitivamente e virarmos, simplesmente, pó.

O tema da água, do oceano, não se esgotará nunca. A nós, curiosos, cabe indagar e mergulhar fundo até onde a escuridão inalcançável de seus abismos permite.

Maria de Jesus, mãe de Mia Couto, no areal da casa da família em Beira. | Foto: acervo

Nasci numa pequena cidade costeira. Uma cidade colonial, chamada Beira, nesse preguiçoso e espreguiçado litoral de Moçambique. A cidade trazia no nome a marca de berma e margem. E estava certo esse nome: todos os dias o nosso chão era inundado pelas marés, milhares de caranguejos emergiam da areia, a vida fervilhando em turnos entre dois universos. Nasci na berma entre o grão, o sal e a água. 

A infância é um tempo de aprendizagem da fronteira que separa o dentro e fora. Vamos aprendendo a ter certezas: debaixo dos nossos pés há um chão que garantidamente nos sustém. Faltou-me essa lição. A minha terra-natal era uma água-natal. O oceano que eu acreditava habitar fora, morava dentro. Não era geografia, era ontologia. Essa ausência de fronteira talvez seja a mais importante lição: aprendi a não ter medo do indomesticável, aprendi a amar o que será sempre ingovernável.

Fui, confesso, uma criança pasmada, seduzido pelo mar, mas dele afastado por não saber nadar. Havia uma voz que me cuidava de avisar: se eu entrar no mar não haverá nunca regresso. Foi assim que, vezes sem conta, fiquei sentado na praia, olhando as ondas e invejando os meus amigos que voltavam de um mergulho nas águas do Índico. O que sentiam eles, o que brilhava nos seus olhos? Eu não sabia fazer a pergunta certa. A grande dúvida era outra: o que é ser mar, como se pode sair desse eterno ventre? Os meus amigos incentivam-me a que me nadasse junto com eles. Talvez eu dispensasse esse mergulho por causa da condição da minha cidade: uma cidade líquida, num chão fluvial. 

Naquele sítio, não era a hora que valia. O que prevalecia era o ciclo das marés. Meus pais me avisavam assim do dever de chegada:

– Tu volta antes da maré!

O nosso tempo era governado pelas marés. E as marés eram mandadas por pássaros. Assim se dizia. Um passarito cinzento chamava a enchente. Outro pássaro de asas brancas, convocava a maré baixa. Me encantava essa crença, o poder dessas aladas criaturinhas comandarem o imenso oceano. Na cidade da minha infância, o relógio tinha sido destronado. Eu era guiado por aves e inundações de maré. Essa era outra lição contra a arrogância humana. Podemos construir grandes barcos: mas não seremos nunca o maestro desta grande orquestra chamada Vida. 

Tudo isso sucedeu com o sabor das grandes lições: eu não dava conta que estava a aprender. Na varanda da nossa casa, ao final do dia, sacudia demoradamente os pés. Tarefa obrigatória, mas impossível de cumprir: a areia parecia emergir da pele. Dentro de mim, havia não apenas um oceano, mas uma margem feita de areia. Durante essa impossível limpeza, eu escutava, vinda da sala, a voz rouca do baiano Dorival Caymmi cantando “é doce morrer no mar”. 

Agora, em meus sonhos, não há paisagem sem mar. Adormeço e acordo num litoral onde se confundem nuvem, mar e corpo. Agora, todos os meus sonhos são anfíbios. 

E já preciso de um outro passado: a minha cidade ficará para sempre feita de maresia e espuma. E eu nunca mais saberei separar o sal da água. 

As construções antigas me despertam grande interesse desde criança. Esse fascínio foi o responsável por me fazer cursar Arquitetura e, anos mais tarde, por me tornar antiquário. 

Lembro bem que, em minhas andanças por São Paulo, quando me dava ao luxo de observar o patrimônio material da cidade, as peças da Casa Conrado sempre me causavam impacto e admiração. Famoso por ter sido o primeiro ateliê de vidros do Brasil, a Conrado retornou à minha vida quando comecei a buscar um imóvel na Barra Funda, há dois anos. Logo de cara, como em um lembrete da memória, o primeiro espaço que visitei foi um galpão lindo, com resquícios dos vitrais produzidos. Era ali, informara-me o corretor, que funcionara a fábrica da então Casa Conrado. 

O ateliê nasceu em 1889, com a vinda do imigrante alemão Conrado Sorgenicht ao Brasil. Vítima de um reumatismo desenvolvido após lutar na Guerra Franco-Prussiana, o soldado apostou que o calor dos trópicos lhe seria benéfico para a saúde, assim como nas possibilidades de um novo trabalho. Apesar do DNA alemão, a Conrado desenvolveu uma indenidade muito brasileira, seja no tema dos vitrais, seja na escolha dos artistas contratados ou convidados para ilustrá-los.

A lista de obras produzidas e presentes no país exemplifica sua relevância cultural. No estado de São Paulo, podemos encontrar vitrais de extrema importância histórica na Catedral da Sé, no Teatro Municipal e na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Bem como em Belo Horizonte, na Catedral Metropolitana, em Blumenau, na Igreja Luterana, ou, ainda, nas termas de Poços de Caldas. 

A difusão do Modernismo propiciou o declínio da Casa Conrado. Apesar das dificuldades, os descendentes do fundador mantêm hoje uma oficina menor, voltada para o restauro das obras deixadas pelo antepassado alemão. 

Flores feitas de escamas de peixes pelas Sereias da Penha | Fotos: Bianca Ramoneda e Eleonora Vasconcellos

Aceitei o convite como quem aceita uma intimação. Tem coisas na vida que a gente não pode dizer “não”. Primeiro, porque não quer. Segundo, porque algo no convite soa como um chamado: “vem comigo, no caminho eu explico”- disse o amigo que, me conhecendo como a palma de sua mão, estendeu-a para mim em oferta de salvação.

Há dois anos dando apenas voltas no quarteirão e me esquivando de encontros, eu tinha me tornado, com a experiência da pandemia, aquela espécie de peixe que fica imóvel no aquário e você não sabe se ele está vivo, ou se é apenas um melancólico enfeite. A memória do medo profundo e a ansiedade súbita – parceiras novas que adquiri após ter contraído a Covid 19 antes da chegada da vacina – haviam se tornado fiéis companheiras num dia a dia pautado pela aridez de um país brutalizado. E eu havia secado.

Foi nesse contexto que surgiu a mão para me resgatar antes que eu morresse desidratada, inerte, dentro do aquário doméstico: a mão de Ronaldo Fraga, um artista que transborda amor pelo Brasil. Na tatuagem que nasce no dorso da mão de Ronaldo e sobe pelo braço estão palavras escritas por Mario de Andrade. São trechos de cartas para Drummond em que Mário afirma seu gosto pela vida e sua devoção pelo país. O escritor, que, no final da década de 1920, viajou para o Norte e Nordeste e em seguida publicou O Turista Aprendiz, teve um papel transformador na existência do poeta mineiro. Mário é também uma das maiores fontes de inspiração para esse outro mineiro, o estilista, que nos ensina que amar verdadeiramente a vida nunca sai de moda. “Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo”, escreveu Mário. Essas palavras ecoaram em mim, através de Ronaldo. E, então, parti para o Sertão.

Com essa sede, cheguei à Paraíba, para a Expedição Cariri Ronaldo Fraga, um projeto que junta a experiência de arte e vida do timoneiro Ronaldo, com o talento gastronômico e inventivo de seu companheiro, Hoslany Fernandes, e o conhecimento local aliado à formação em turismo dos irmãos Thiago e Pablo Buriti, criadores da agência Que Visu

O roteiro parte de João Pessoa e deixa o litoral em direção ao Cariri, palavra que se refere à etnia indígena que viveu no interior do Nordeste. E agora sou eu que lhe estendo a mão, convidando você a me acompanhar na travessia das minhas memórias em direção a um encontro de águas que permeiam essa navegação – do mar rumo ao sertão.

Sair da minha caverna e dar de cara com o azul esverdeado fosforescente do mar da Paraíba fez-me lembrar o quanto nossas lágrimas são salgadas e por quê, quando sentimos uma emoção que vem lá do fundo, dizemos que nossos olhos “marejam”. Uma vez escrevi um poema assim: “Quando a gente chora, o mar de dentro vira mar de fora?”. Ali, acolhida pelo conforto de um mar morninho aconteceu o primeiro encontro entre minhas águas de dentro e as imensas, de fora. E começou a nascer uma fronteira permeável nesse contorno chamado corpo.

Pois foi com o corpo ainda coberto de sal que fui conhecer o trabalho das Sereias da Penha, na Praia da Penha, e acompanhar um pouco do ofício de um grupo de mulheres – e também seus filhos e filhas – que transformam escamas de peixe em arte. Escamas que eram descartadas pelos pescadores, consideradas lixo, hoje têm outro destino: melhorar a vida de muitas famílias e mostrar pra quem não acredita, que peixes como Camurupim, Pescada, Cioba e Budião podem virar flores e ornamentos. As escamas ficam lindas também quando tingidas com chá de casca de cebola, café, beterraba e até feijão. “Tudo o que serve para o lixo, serve para a poesia”, ensinou-me o poeta Manoel de Barros. As Sereias da Penha, nome criado por Ronaldo, que trouxe também o fio de cobre e o crochê para as criações, fazem poesia. Saí de lá com um buquê de rosinhas minúsculas que trouxe comigo para nunca esquecer essas delicadezas. E de tanto marejar, meus olhos já nem ardiam mais.

Rumo ao Sertão. Em pouco tempo, vira-se a chave já na estrada. O mar vira memória. Azul, agora, só o céu carregado de nuvens gorduchas como algodão. Céu que encosta no chão, cheio de espaços vazios, de casas sem vizinhos. Ronaldo pede que reparemos na palheta de cores. O marrom adentra aos poucos a paisagem, na terra e na vegetação, substituindo a ausência do verde das folhas. Se o sertão vai virar mar, ou o mar virar sertão, como canta a canção, já não sei. Sei que a água desapareceu da vista. Mas há de estar em algum lugar.

Na Pedra do Ingá, monumento arqueológico situado num terreno rochoso onde paramos para ver inscrições rupestres, havia um rastro de água. Pequenas pocinhas escondidas no fundo de alguns buracos no meio das pedras debaixo do primeiro sol inclemente em um lugar que parece o solo da lua. Da escrita fenícia aos extraterrestres, muitas são as hipóteses dos autores dos símbolos encontrados na pedra situada numa região que foi habitada pelos indígenas Potiguaras. E, diante da crise climática, não há como não fazer um espelhamento, ainda que imaginado, com as “pedras da fome” reveladas recentemente em rios da Europa. Avisos do passado escritos em rochas no leito dos rios que só são visíveis quando os níveis de água estão extremamente baixos. “Se você me vir, chore”, diz uma das inscrições, como um presságio das dificuldades geradas pela seca. Coisas que quem habita o Cariri conhece bem. E pode ensinar pro mundo que precisa conhecer.

O sal do meu corpo agora já não vinha de olhos marejados, mas de suor abundante. Água de dentro. O verde que tinha sumido da paisagem migrou, junto com outras cores vivas, para as paredes das pequenas casas que parecem de brinquedo quando olhamos pelo lado de fora. Foi, então, que comecei a conhecer as mulheres desse sertão e a entender que “sede” é uma palavra em que cabe muita coisa dentro, além de água. 

No Memorial do Cuscuz, leia-se a casa de Dona Lia, tem mesa farta. Tem as panelas mais prateadas do mundo, o fogão à lenha mais limpo e a pedra de moer milho que era da bisavó. Pesa que só. Mas Dona Lia tem braço, sorriso tão farto quanto a mesa posta e a tal da sede, que faz a pedra girar. Tem sombra, tem rede, tem suco, tem casa melhorada e enfeitada para receber gente amada que vem de fora, porque quem vem com Ronaldo é gente que já passa a ser amada nas casas desse sertão. Quando ele leva pela mão, o afeto já vem garantido, por ele ter um jeito de olhar o outro com amor. Assim foi na casa de Dona Lia e também na de Dona Lúcia, do tear. Ela, que manuseia o tear de madeira herdado pela mãe, criou sete filhos – e o marido, hoje cego – com suas linhas e tramas. E me disse, como mulher que sabe das coisas: “tenha seu ofício”. Foi o ofício dela que a salvou na pandemia. Dona Lúcia me confessou ter muita pena de quem estava fechado em apartamentos enquanto ela podia olhar aquele mundão sem fim. Essa pessoa de quem ela tinha pena era eu. Mas não falei nada. Comi as fatias de melancia deliciosas e frescas que me escorreram pelos cotovelos, como braços que choram. E comecei a sentir mais profundamente a umidade do sertão.

Chegando em Cabaceiras, cidadezinha em que foi rodado o filme “O Auto da Compadecida”, na Hollywood Nordestina, o sol era impiedoso. Mas eu, tomada por euforia e teimosia, resolvi andar mesmo assim, fascinada pelo lugar. Andei, andei, torrei, torrei e, estranhamente, não havia ninguém na cidade inteira. Só consegui ouvir uma musica vindo de dentro de uma casa fechada. Onde estavam as pessoas? Certamente, fugindo do sol que eu achava poder enfrentar. Ia desfalecer quando vi uma árvore vermelha. Miragem? Não, um flamboyant. E eis que surge, próximo a ele, uma mulher que, percebendo meu desfalecimento, me oferece um banho. Miragem? Não. Havia um balde perto e, não querendo incomodar, disse que poderia lavar o rosto ali mesmo. Ao que ela respondeu: “de jeito nenhum, essa água quente vai lhe ofender”. Sim, ela usou a palavra “ofender”. Entrei numa portinha e abri um minúsculo chuveiro de água fresca na minha cabeça, de roupa e tudo. Contei até dez pra economizar e desliguei. Adriana era o nome dela. Agradeci infinitamente. Ela entendia de sede. E de mulheres. E isso é tudo que sei.

A essa altura, o Cariri já tinha virado minha cabeça e, mesmo com sede, de alguma forma eu já me sentia diferente. Algo na minha secura estava se transformando em vontade. E se transformou de vez ao conhecer a Josi, Josivane Caiano, afilhada e guardiã do legado de Dona Zabé da Loca, “pifeira” que se tornou conhecida por sua música e por ter passado vinte e cinco anos vivendo debaixo de uma pedra. Josi, hoje empreendedora cultural e líder da maior associação rural do Cariri paraibano, o assentamento Santa Catarina, onde vivem mais de três mil pessoas, alfabetizou-se aos 27 anos, andando sozinha, a pé, no escuro, enfrentando dois quilômetros para ir e outros dois pra voltar, para cursar o EJA. Quando aprendeu a ler, separou-se do marido. Entendedoras entenderão. Ela nos apresenta o universo de Dona Zabé e, por fim, leva-nos para o restaurante que construiu, literalmente, com suas próprias mãos: uma casa de taipa, onde tudo, absolutamente tudo, tem beleza e cuidado. Flores em latas de óleo um pouco enferrujadas enfeitam as mesas com poesia. E há farta comida, feita com o alimento produzido na região. Com o dinheiro arrecadado, Josi estava comprando caixas d’água para armazenar o bem mais escasso. Ao partir, abracei-a, agradecida pela partilha de tanta fé no Brasil, que precisa ser amado e tem tanto a ensinar sobre o amor.

No topo do Lajedo de Pai Mateus, uma formação rochosa com imensos pedregulhos que parecem que vão rolar a qualquer momento, senti apenas o vento e a minha solidão. Avistei uma espécie de piscina ao redor da subida e aprendi que é um reservatório feito para armazenar a água da chuva que desce pelas pedras. Ali os animais eram felizes, refrescando-se numa pocinha d´água. Naquele local sagrado, habitado um dia por um homem escravizado que fugiu, e era conhecido como um curandeiro muito procurado pelas pessoas para a cura de suas doenças, faltaram-me palavras. Eu já era toda sertão. Já tinha pernas arranhadas, porque o sertão ensina os iniciantes de todas as maneiras. E, se minhas pernas fugiam dos espinhos, foi fechando os olhos e passando as mãos devagarzinho pelos espinhos do xique-xique que ouvi correr um riacho. Ou uma chuva fina num telhado, pois é fato, um carinho no espinho faz ele chorar mansinho. Não sai água, só som. Mas o sertão também é imaginação. E seco é quem não a tem.

E foi já tomada pela imaginação que cheguei ao ponto final do percurso: a Fazenda Carnaúba, terra de Ariano Suassuna, em Taperoá. Lugar mágico, onde os primos Manu, filho de Ariano, e Dantas Vilar, filho de Manoel Vilar, abastecem-nos com tantas histórias que fica impossível traçar um início, um meio ou um fim. Conhecer o quarto de Ariano na fazenda e ouvir Manu e Dantinhas falarem sobre o Movimento Armorial faz a gente sentir que o tempo no sertão gira em outra toada. A fazenda é hoje referência na produção de laticínios de cabra no semiárido nordestino, com queijos premiados no Brasil e no mundo. E a história fica ainda melhor quando descobrimos que tudo começou na década de 70, quando Ariano e Manelito – como era conhecido – compraram 200 cabras com o dinheiro que Ariano recebeu de um prêmio pelo romance “A Pedra do Reino”. Na saída da fazenda vi a placa da pluviometria com a frase: “O Nordeste seco das águas desarrumadas”. Em 2021, apenas dezessete dias com chuva na região.

A volta pela estrada de terra, rodeada de vegetação cinzenta quase branca, por onde existe sempre uma cabra vagando perdida pelos gravetos ou crianças brincando com pneus velhos, tornou-se alaranjada, azul marinho e, então, negra. Repleta de estrelas. E repleta de emoção, entre a fadiga e a euforia, eu trazia no peito os afluentes dessas muitas vidas que vi de passagem, da aparente secura que é na verdade fartura, e que tanto me umedeceu. Só na estrada, de mãos dadas com Ronaldo, que dormia, finalmente transbordei. E entendi os mandacarus que, espinhentos por fora, guardam tanta água escondida dentro. Chorei silenciosamente todo o caminho de volta. Eu era outra, sendo a mesma, resgatada. Renascida. Se “o sertão é dentro da gente”, como diz Guimarães Rosa, o encontro das águas também há de ser lá.

De vez em quando te darei uma leve história – ária melódica e cantabile para quebrar este meu quarteto de cordas: um trecho figurativo para abrir uma clareira na minha nutridora selva.

Escrever sobre Clarice Lispector é desafiador. Como o crítico poderá enquadrar em palavras alguém que escreve perseguindo o elemento que se esconde atrás do pensamento, um dos títulos pensados para a obra “Água Viva”? Talvez a atitude mais honesta seja se aproximar de Clarice como um leitor amador e não como o crítico profissional e contumaz: mais como aquele que ama o que lê, mostrando-se aberto a experimentar e a se conectar com o texto do que como quem que vai dissecá-lo, defini-lo, enquadrá-lo e analisá-lo. 

É, portanto, com o sentimento de um coração que ecoa e ressoa Clarice que eu me aproximo do texto de “Água Viva” (Novela? Romance? Tessitura de palavras?), sétima narrativa longa da autora, originalmente publicada em 1973, mas cuja definição mais propícia seria a de uma verdadeira aquarela da linguagem.

Porém, embora amador da literatura da autora, esta selva selvagem na qual se embrenha por conta e risco, parte de mim também deve operar como o crítico e mediador de leitura responsável, lidando com a experiência e as expectativas de seus estudantes e leitores. Em entrevista ao tradutor do alemão de “Grande Sertão: Veredas”, Guimarães Rosa disse que o dever do crítico era o de servir de ponte entre o livro e público, comunicando conceitos e chaves de leitura que não limitem a experiência dos leitores, mas que a ampliem, fornecendo a quem lê mais ferramentas de significação. Sendo assim, começarei este texto com alguns conceitos da teoria literária a partir dos quais a prosa de Clarice é capaz de adquirir tons, nuances e densidades insuspeitadas.

Há muitas formas de se ler literatura, ou de se usar o texto literariamente. De acordo com o teórico britânico Terry Eagleton, cada leitor tem dentro de si uma teoria de leitura por meio da qual decodifica o sentido das mensagens do texto. Um livro nunca é igual para seus diferentes leitores (nem para o mesmo leitor quando puder relê-lo). De certo modo, a partir da tinta negra no papel ou das diferentes linguagens que compõe a obra literária, o leitor vai projetando a si e ao seu próprio texto interior naquilo que lê. Desse modo, o texto de Clarice Lispector para Clarice Lispector talvez seja um texto impossível de apreender; no entanto, por meio do contato com as palavras escritas pela autora, cada leitor vai se apropriando e descobrindo uma Clarice diferente (intimista, psicológica, feminista revoltada com a sociedade, filosófica, poeta), assim como vai descobrindo a si mesmo como alguém que a lê e leva as palavras para o mundo, ou as usa como filtro para entender e sentir a vida. Nesse sentido, para ser frutífera, a discussão ao redor de uma obra literária envolve o cruzamento e a troca de leituras e pontos de vista, des-cobrindo (tirando o véu de Maya) a si mesmo por meio da leitura do outro, e o outro por meio da nossa leitura, nunca reduzindo, mas sempre ampliando e ressignificando o sentido do texto.

Um dos conceitos da teoria literária (de um dos tantos pontos de vista de ler literariamente um texto) é o que os formalistas russos, como Viktor Chlovsky, chamaram de estranhamento. A arte trabalha com a percepção do leitor e o artista cria uma nova língua (poética, literária, pessoal e motivada) na língua prosaica, cotidiana e comum que visa à troca de informações de modo objetivo e direto. Nessa perspectiva, o uso estético da palavra tem por objetivo a desautomatização, o estranhamento ou a desfamiliarização do leitor frente à obra. Portanto, o texto convoca quem o lê a perceber o material das palavras de maneira diferente, uma vez que elas estão ali não apenas como substitutas das coisas do mundo às quais se referem, mas como carnadura essencial, são forma e conteúdo, mais opacas do que transparentes, são descoberta e invenção, são um Outro desestruturalizante que suspende e revela, dando frescor e singularidade aos objetos e ao que estamos acostumados a chamar de vida ou realidade. Como diria Ferreira Gullar, a literatura não representa a realidade, mas a cria, fazendo com que nossa vida seja maior conforme os textos que lemos.

Nesse jogo com a linguagem, a literatura de Clarice parte do estranhamento, de um jogo de transfiguração e recomposição da realidade mediante o uso da palavra. Muitos consideram esses momentos de revelação e desfamiliarização da suposta normalidade do real como epifania, termo que remonta à aparição da estrela que guiou os reis Magos a Cristo na manjedoura e que James Joyce, católico apóstata, deslocou da religião para o campo profano da literatura. A epifania é um momento de suspensão do que se tem por conhecido, no qual o sujeito se abre a uma nova percepção de si e do mundo ao redor. É uma revelação, uma aparição que transcende o tom cinzento do cotidiano. Vinculado à popularização da psicanálise e à sondagem do interior como a descoberta do estranho dentro de si mesmo, autores como James Joyce, Katherine Mansfield, Virginia Woolf deram novos matizes e sentidos à literatura por meio da sua escrita epifânica.

No Brasil, esse tipo de prosa também ficou conhecido como intimista e, embora nem sempre seja lembrado ou considerado pelos críticos mais preocupados com as formas como a literatura denuncia as mazelas sociais, ou explora o terrível brutalismo que constitui a realidade social brasileira, a vertente psicológica e intimista é antiga e bem arraigada em nosso país, podendo ser enquadrados nela nomes como o de Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Lúcio Cardoso, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu, entre outros.

“a vertente psicológica e intimista é antiga e bem arraigada em nosso país”


A narrativa de “Água Viva” parte da própria epifania. Em estado epifânico, a narradora escreve a um homem (que o leitor só conhece por meio do uso do pronome tu) uma carta-confissão na qual a voz que narra pretende captar e escrever o instante-já, com tudo que a passagem dos instantes contém de matéria viva, pulsante e reveladora. O jogo narrativo se inscreve a partir desse diálogo entre um eu que escreve para um tu que, quiçá, um dia poderá ler a carta. Se este tu é um ex-amante (como às vezes parece ser), se é o próprio Deus, enigma maior que, ausente ou presente na história, impregna todas as coisas, não somos capazes de saber. Quem escreve muitas vezes adota a postura de um analisando a falar das relações que constituem sua vida, a criar metáforas e imagens que deem sentido às experiências mais íntimas, a querer nomear para entender e acolher o que lhe escapa, a desejar se confessar a um Outro, que o entenda. Dessa maneira, mais do que um ex-companheiro, esse tu é um personagem necessário no texto, pois é a partir dele que a narradora poderá articular seu discurso. E sobre o que são as palavras e imagens de “Água Viva”, afinal?

Romance sem história, personagem sem identidade. Nesse livro, Clarice vai além de uma escrita que já vinha ensaiando em obras anteriores, como “A paixão segundo GH”: a autora se desvencilha dos andaimes do enredo tradicional, abandona a caracterização dos personagens e nos entrega um jogo de palavras, no qual uma palavra atrai a outra, para com ela captar e criar o instante como se este fosse uma borboleta. A própria identidade da personagem protagonista é abandonada. Sabemos que ela é uma pintora e, assim como nos comunica a epígrafe de Michel Seuphor, a ela não interessa a pintura figurativa em que brilhe o objeto; o que se deseja é a música que não ilustra coisa alguma; o que se busca é evocar, por meio da palavra, os reinos incomunicáveis, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência. Em determinado momento, a personagem-narradora diz:

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. o que salva então é escrever distraidamente.”

Essa escrita é uma tentativa de ver além da articulação semântica da realidade, da característica humana de criar o real a partir das lentes da cultura. Em “Água Viva”, a narradora propõe uma experiência abolitiva do sentido, em que não há um eu concreto e pessoal separado do mundo, mas uma experiência na qual se deseja a fusão com a natureza e o universo, um estado em que não se está separado das coisas, mas no qual tudo é sentido, em que há a soberania do agora sobre o eu e a vida segue livre e entregue ao presente, este instante-já, ao contínuo estético indiferenciado, o reino de sensações que percorrem as veias, o corpo, o reino de um corpo que cria e sente, de uma escrita que tenta capturar e criar o inefável.

Irmã de alma de escritores obscenos e malditos, embora também desejosos de crer e de captar a realidade última, como Hilda Hilst e Caio Fernando Abreu, Clarice nos escreve em “Água Viva” uma nova liturgia, transfigurando a realidade em outra realidade, sonhadora e sonâmbula. Assim como Emil Cioran testou os limites da lucidez que assombra o insone, a pintora-escritora cria e é criada pelo instante e pelo que escreve. É uma escrita que se faz jogo, improvisação, jazz, um isto, no qual é possível vislumbrar e se aproximar da forma essencial do ser, é-se, é-se em voz média, não conjugando, mas usando o verbo “ser” não como ligação, mas como intransitivo. É-se e a vida está completa. E a escrita continua para além das páginas do livro, rumo ao coração e à tua vida, leitor.

Aos vagidos já curiosos de alguém que questionava seus arredores desde que chegou ao mundo, um nascimento mútuo: o de Fabiana Queiroga e o de seu trabalho. A artista e poeta visual vê sua curiosidade de criança que jamais deixou de se manifestar, apesar da passagem dos anos como parte fundamental de seu percurso profissional. Natural de Goiânia, começou a estudar desenho e pintura ainda jovem, desenvolvendo habilidades artísticas na mesma lufada em que se desenvolvia enquanto pessoa. É nessa história de formação confluente que temos o símbolo maior de alguém que, para além da extensa bagagem acadêmica, se interessa sobretudo pelas relações humanas. 

Provocar reações afetivas, retratar corpos no espaço, aflorar sensibilidades, tudo no universo de Fabiana e, consequentemente, no de suas criações gira em torno daquilo que fez seus olhos brilharem quando ainda tateava superfícies com as mãos lisas de uma menina que vivia por novos descobrimentos. Os encontros e desencontros que se desenrolaram lá atrás seguem acontecendo, resultando num processo criativo que se dá através do estudo da natureza, atentando-se para suas formas, estruturas, texturas e possibilidades. Não à toa, ministra aulas de design e processo criativo a partir desse viés natural. 

Gosto de pensar que o universo nos deu tudo de forma generosa. Basta a nós saber olhar e ter a curadoria desse olhar em nosso dia a dia”

Fiel às suas origens goianienses, faz questão que o natural tenha presença central em sua produção, como é o caso da recente série Herbário, cheia do frescor típico de frutas e de questionamentos maduros, prontos para serem colhidos. A série, aliás, conversa diretamente com a parceria feita com a Revista Amarello para a Coma Bem, Viva Melhor. O lindo trabalho de Fabiana articula sobre o hibridismo emocional e o deslocamento do objeto de sua função, além de conjurar o viço encantador de rosas e rizomas. 

Ao falar da natureza, também fala sobre o mundo virtual em que vivemos hoje, inundado de relações não-táteis que trazem à superfície reflexões profundas, especialmente sobre os lugares que tomamos como imutáveis mas que, à bem da verdade, com as constantes degradações naturais e transformações sociais, estão mais mutáveis do que nunca. Há no mundo um espaço que ainda nos cabe? Onde você se encaixa nessa configuração atual? Naturalmente, nos vemos sobrecarregados de fascínio, admiração e ressalvas, numa só eis, então, as emoções híbridas evocadas pela série.

Entre as criações de Fabiana para a Feira, estão: 

Peso de Mesa Maçã

Peso de Mesa Pera

Brinco Broto Rosa

Abacaxi de Parede

Broche Plana Miúda

Broche Bromélia

O que inspira a artista plástica? “A vida. As pessoas na rua, nos cafés, as conversas, a forma que as folhas das árvores caem ao chão. O tom de azul do céu e a força da chuva. O ambiente e as relações. O amor.” 

Dessas fontes de inspiração, surgem trabalhos autênticos que veem humanidade e natureza como um único ecossistema. Todos, no fim incluindo os que vieram antes da série Herbário e da parceria com a Amarello, assim como os que virão depois , são respostas dadas àquela menina do cerrado que tanto se aprazia ao tentar desvendar cada pequena dobra do mundo. Talvez “desvendado” seja a última coisa que o mundo esteja hoje em dia, para Fabiana e qualquer um de nós, mas, nas perguntas, enxerga-se novos azuis e amores. 

Da curiosidade, nasce arte. 

Na canção-assinatura dos Novos Baianos, Mistério do Planeta, ouvimos a síntese perfeita de tudo aquilo que uma conexão humana deveria ser — Pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto. A ideia é simples, mas precisa: para que haja qualquer tipo de contato real em nossas relações, para que energias distintas se somem e criem rajadas efetivas de comunicação, a troca se faz necessária. Um encontro, afinal, não pode nunca acontecer de maneira unilateral, não é verdade? Talvez, se formos nos apegar tão somente à lógica do conceito, sim, é verdade, os encontros são, por natureza, uma via de mão dupla. No entanto, nos atendo aos fundamentos da vida atual, em que temos um controle quase ditatorial de nossas relações pessoais, a frase cantada pelo saudoso Moraes Moreira no álbum Acabou Chorare (1972) ganha novos contornos — pela lei natural dos encontros modernos, deixamos o que der na telha e recebemos apenas o que quisermos.

“Pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto.”

Estes stories pseudo-cults são chatos, nada a ver, não querem dizer nada? Unfollow nessa pessoa. Este conhecido da escola vota naquele político? Unfollow nele também. Opa, este TikTok é exatamente o que você procura? Bendito seja o algoritmo! A partir de agora, você vai receber um caminhão de conteúdo igual. E emojis e mais emojis de coração para o mundo hermético em que, não por coincidência, as pessoas pensam e votam como você. 

O livre-arbítrio de segmentar ao extremo nossas relações virtuais a bel-prazer pode ter um efeito negativo gigantesco em nossas relações pessoais, uma vez que a vida digital, em termos bastante comedidos, pulsa tão forte quanto a vida real. A polarização que vivemos não vem da discórdia propriamente dita — vem do distanciamento voluntário de tudo e todos que não compartilham de nossas opiniões. Os encontros não viraram colisões, eles na verdade foram sombreados pela autopreservação.

Os encontros, aliás, agora no sentido date da palavra, servem bem como indicativo da profundidade à qual a coisa toda chegou. Foi-se o tempo em que política e relacionamentos eram sinônimos de água e óleo, quando um simplesmente não batia com o outro. Isso, analisando em retrospecto, por óbvio não fazia qualquer sentido e estava a anos-luz do que seria ideal. Relacionar-se, romanticamente ou não, sem trocar visões políticas, não faz bem a ninguém. Porém, hoje em dia, a água e o óleo de outrora estão mais para leite e Nescau em pó, misturando-se como princípio e criando um gosto próprio de norma. De tão eu-aqui-e-eles-lá que estamos — especialmente às vésperas de eleições presidenciais —, a política se faz presente até nos aplicativos de relacionamento.

“emojis e mais emojis de coração para o mundo hermético em que, não por coincidência, as pessoas pensam e votam como você”

Um passeio rápido pelas bios de Tinder, ou de qualquer outro app similar, nos mostra um sem-fim de frases com posicionamentos políticos que se impõem como condição irrevogável para que qualquer futura relação possa acontecer. Parece inacreditável, mas aconteceu: nem mesmo o sexo é capaz de quebrar esse rol de barreiras construídas com tanto afinco, nem mesmo ele tem o poder de permitir que duas manifestações políticas se encontrem e se enriqueçam — não tem sequer a capacidade de fazer com que esses pontos de vista coexistam num mesmo espaço dialogal, ainda que se esgrimindo num vozerio que, porventura, não leve a lugar algum. 

Tomando de empréstimo o popular bordão de Isabelle Drummond na novela Caras e Bocas: é a treva!

O momento histórico traz à mente o filme A Bolha Assassina (1958), clássico do horror B hollywoodiano, dirigido por Irvin Yeaworth e protagonizado pelo ainda desconhecido Steve McQueen, em que um meteorito gosmento cai próximo a uma pequena cidade norte-americana (o roteiro abstrai-se de fazer quaisquer explicações mais detalhadas sobre o detrito vindo do céu). Envolvendo tudo que vê pela frente — de pessoas a lanchonetes —, e ganhando força a cada engolição, a bolha não para de crescer. 

Como não poderia ser diferente, a cidade entra em fuzuê diante daquela massa indestrutível, estranha, disforme, sem rosto — isso até o personagem de McQueen descobrir que, no final das contas, o monstro tem um ponto fraco: baixas temperaturas. Numa resolução típica de ficção científica, cujas mensagens mais elaboradas se anunciam timidamente por trás da envolvente trama principal, a cidade junta gente de todo o tipo para, com extintores coletados nas escolas e fornecidos pelos bombeiros, congelar a bolha-inimiga.

Se a cada unfollow ou fuga de um possível constrangimento — ação também extremamente comum quando diante de alguém que explicita opinião política contrária — acabamos por cortar laços com aquilo que não nos diz respeito, a cada unfollow ou fuga nós aumentamos a nossa bolha, isolando-nos assustadoramente em nós mesmos. Diferente do filme de horror B, não temos Steve McQueen para nos salvar, no auge de seu heroísmo, do mal que nos assola. A lei dos encontros já não é mais tão poética e natural como a dos Novos Baianos — uma grande ameaça digital, política e social paira sobre as cidades da nossa existência.   

As bolhas não param de aumentar e, no processo, nossos mundos é que vão ficando cada vez menores.

No ínterim entre a construção de Brasília, símbolo desenvolvimentista projetado por Oscar Niemeyer, e a instauração do regime militar, marco ensanguentado de uma luta amparada pela suposta “ameaça comunista” no Brasil, formava-se o grupo Arquitetura Nova

Escola Estadual Dinah Lucia Balestrero (Brotas, SP)

Idealizado por três colegas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP — popularmente conhecida como FAU —, nascia com o intuito de estruturar um arcabouço teórico e prático de uma linguagem arquitetônica que assumisse todos os rejuntes do seu papel social. Abandonaria-se aquele elitismo engessado que até ali se manifestava como inerente à atividade e, batendo de frente como uma possível revolução, enfim se consideraria a carência como a base para novas edificações — algo bem mais à caráter da maioria da população brasileira.

Os colegas da proposta inovadora eram: Sérgio Ferro, artista de mão cheia e principal responsável por formalizar o corpo de ideias do grupo; Rodrigo Lefèvre, intelectual e grande defensor do “mínimo útil, construtivo e didático”; e Flávio Império, que, além da arquitetura, também se dedicou aos temas sociais com uma longeva e notável carreira no teatro. Pela breve descrição, percebe-se as similaridades entre as visões urbanistas e as essências de cada um como pessoa, e imagina-se, portanto, que a aproximação do trio tenha se dado sem muito esforço. 

Embora isso seja verdade, a faísca que de fato despertou as chamas revolucionárias e fez com que os três caminhos se cruzassem com mais intensidade foi o contato acadêmico-afetivo com o professor e ícone do modernismo arquitetônico, Vilanova Artigas, cujas ideias e ligações iam todas de encontro ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Assim, chegaram aos ouvidos dos pupilos ideias como a reeducação da burguesia paulistana e a criação de projetos com desenhos mais sóbrios, deixando toda e qualquer ostentação de lado, por mais que isso porventura ferisse os princípios imodestos de opulência, típico das classes mais abastadas que faziam questão de alardear seus status sociais.

Sérgio Ferro. Foto: Reprodução/Folhapress.

Sérgio, Rodrigo e Flávio, afogueados pela labareda acesa pelo professor Artigas, decidiram dar partida a iniciativas tanto no campo das artes plásticas quanto no da academia, com elaborados artigos escritos a seis mãos, sempre a partir do viés crítico à situação político-social do Brasil. Na contramão da tapeçaria do pensamento médio brasileiro da época, que com frequência exaltava Castelo Branco e cia., queriam discutir o papel social da arquitetura, ansiavam porjogar luz sobre a rivalidade intrínseca entre o desenho e a produção de um projeto, buscavam reformular as técnicas tradicionais e enaltecer o comedimento de materiais — tudo com enfoque nas construções habitacionais. 

Sérgio Ferro. Foto: Reprodução/Folhapress.

Durante os anos 1960, com a eventual chegada e as dificuldades impostas pela ditadura, trabalharam na corda bamba para manter um escritório com o qual elaboraram sobretudo residências de classe média, projetos que davam vida ao que eles mesmos, em um artigo de 1963, chamaram de “poética da economia“. No livro “Grupo arquitetura nova: Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro“, de 2003, a autora Ana Paula Koury define “poética da economia” como um meio de “superar as resistências de ordem material, representadas pelo subdesenvolvimento, para efetivar uma proposta social e cultural autônoma”.

O conceito, então, remonta a um grupo de técnicas construtivas simples, aptas para serem aplicadas recorrentemente pela população por serem viáveis mesmo em meio à escassez de recursos. A título de exemplo, podemos citar o projeto de baixo custo que é um sistema de abóbadas de tijolo, uma solução construtiva para coberturas em blocos de alvenarias sem recobrimento — vê-se um processo produtivo com franca e verdadeira participação popular, pensado nos mínimos detalhes de contexto e que, por ser assim, chegava a economias de 30% a 40% do custo geral, mesmo aumentando o salário dos trabalhadores.

Uma das grandes contribuições do grupo é a crítica social ao canteiro de obras, mais tarde teorizada e esmiuçada por Sérgio Ferro no seu “O Canteiro e o Desenho“, de 1979, livro que se sustenta especialmente sobre as palavras de Marx, mas que também cita nomes como Hegel, Le Corbusier e até Edgar Allan Poe. Chamada humildemente de “introdução” pelo próprio autor, a obra contém passagens com conceitos-base da Arquitetura Nova que seguem sendo aplicados e respirando relevância até hoje. 

Aqui, um deles:

“A harmonia e o equilíbrio, em colusão com a ranhura tirânica do emoldar, oprimem porque separam: 

1. o trabalhador de seu trabalho e de seu produto (…);
2. o produto da produção (…);
3. o produto de outro produto (…);
4. e confundem todos os produtos (…).

A harmonia e o equilíbrio oprimem em função do princípio mesmo que os anima o princípio geral da opressão: a separação, sua fonte e sua fraqueza. O desenho, com suas características atuais, é filho da separação. Se a produção é separada, o desenho, para impor-se como norma (regra e medida) de coagulação do trabalho dividido no produto que é mercadoria, não pode perder-se no movimento da produção. Para rejuntar o trabalho dividido, faz-se direção despótica — e, portanto, separada.” 

Critica-se, entre outras práticas, o uso de revestimentos, por esses “esconderem” o trabalho do operário e, como consequência, apagarem a marca da mão de obra verdadeiramente responsável pela construção, quase que como uma anti-assinatura. A “alienação do trabalho no canteiro” se amplificaria com a hierarquia e a distância entre as equipes que concebem a edificação — de um lado, fora da obra em si, temos um conjunto de pessoas que transcrevem suas intenções por meio do projeto executivo; e, do outro, temos o conjunto do canteiro, pessoas de origem mais simples que são responsáveis por de fato colocar a mão na massa, mas que, não obstante, são submetidos à autoridade técnica do primeiro grupo.

Sérgio Ferro continua: 

“Separado, o desenho faz buscar força para convencer em si mesmo. Daí ser desenho só, em si. Na ausência de necessidade efetivamente real que resultaria de sua dispersão transformadora no movimento de produção, procura envolver-se de ‘necessidades’ abstratas – harmonia, equilíbrio, margeação… Mas tais recursos têm como corolário o aprofundamento da separação. O desenho separado da produção, ao hipostasiar sua intervenção autoritária, se exibe como desenho da separação.” 

Escola Estadual Dinah Lucia Balestrero (Brotas, SP)

Infelizmente, a pressão política ferrenha do regime militar, especialmente com o decreto do AI-5, fizeram com que a dissolução do grupo acontecesse por volta de 1970. Por estarem ligados a valores comunistas — ou, tão somente, a valores que não batiam com os valores do governo ditatorial e das classes dominantes —, foram presos e interrogados, acusados de envolvimento com grupos da reação armada de oposição ao governo. 

Rodrigo ficou mais alguns anos no Brasil para, em 1975, se mudar para territórios franceses; já Flávio intensificou a atuação no teatro, além de retomar a atividade como artista plástico e seguir lecionando; e Sérgio, o único integrante que segue vivo, logo em 1972 foi obrigado a mudar para a França, onde se dedicou à pintura e à carreira docente.

Apesar do desmantelamento precoce, o grupo Arquitetura Nova continua sendo lembrado por quem pensa a arquitetura como um instrumento social, sem jamais deixar de reverberar pelos canteiros de obras e conjuntos habitacionais de todo o país — e até fora dele. De colegas da FAU a verdadeiros divisores de água da arquitetura brasileira: décadas depois, Sérgio, Rodrigo & Flávio seguem contribuindo para a ideia de um Brasil que não tem medo de se enxergar no espelho e construir poesia a partir da realidade do que vê.

O homeschooling é uma das bandeiras do presidente Jair Bolsonaro, mas o método é mesmo possível ou não passa de ilusão? Em maio deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que autoriza a modalidade de ensino, atualmente proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O texto, que ainda será avaliado pelo Senado, altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para que o ensino domiciliar seja admitido na educação básica — pré-escola, ensino fundamental e médio. Desde já, portanto, é importante entender os seus impactos. 

“Capitão Fantástico” (2016), de Matt Ross

Há muito se critica o ensino formal, condenado por ser engessado e pouco atrativo para muitas crianças, além de apresentar uma estrutura que até hoje não consegue blindar os estudantes do bullying. As práticas convencionais, é verdade, às vezes soam ultrapassadas: carteiras enfileiradas, aulas verticalizadas, conteúdos nada convidativos… Isso tudo nos leva a aventar novas possibilidades de educação que repensem o modelo rígido que conhecemos bem.  

Arte: Michelle Mildenberg/New York Times

Evidente que há muito a ser feito pela educação brasileira, muito embora somente sejamos lembrados disso a cada dois anos, quando o assunto ganha respiro momentâneo nos meses que antecedem a ida às urnas. Mas, dentre os muitos possíveis caminhos para melhorarmos, o ensino domiciliar representa um passo à frente ou um passo atrás? Estamos diante duma quebra de paradigmas positiva ou tão somente da edificação de mais e mais muros? E a educação pública, como fica nisso tudo? O preparo técnico do homeschooling é minimamente similar ao das escolas? E quanto ao contato das crianças com outras realidades para além da sua própria, vai parar de acontecer?

Primeiro, analisemos o contexto mundial do ensino domiciliar. A modalidade surgiu, da forma como a conhecemos, há pouco tempo. Foi só no final do século XX que sua aplicação ficou mais estruturada e comum, especialmente nos Estados Unidos  — não à toa o termo inglês homeschooling é de longe o mais popular. “Comum”, claro, é relativo: sua situação atualmente varia bastante conforme o país em que se dá, sendo proibido em potências como Alemanha e Suécia, mas amplamente aceito em países como Austrália e EUA, os dois que mais abraçam o método de ensino. Em outros casos, embora não seja proibido, é restrito a crianças que não podem ir à escola por razões distintas. 

No fim, é notável que, no pouco tempo de vida respirando por intermédio de moldes mais definidos, o ensino domiciliar já tenha recebido acolhimento (dentro e fora de territórios norte-americanos).

Pensando no Brasil, é sabido que, desde que o samba é samba, um dos principais problemas da educação é a escassez de recursos financeiros. Mesmo com o aumento de investimento ocorrido nas últimas décadas, as escolas públicas ainda não têm infraestrutura para atender adequadamente os estudantes, muitas vezes sobrecarregando professores com proporções descabidas de turmas e cargas horárias — tendo a sub-remuneração como a cereja podre do bolo. Por essas e outras, é um dos países da América do Sul com os piores indicadores educacionais. 

Para Jair Bolsonaro e apoiadores do governo, a educação domiciliar é uma forma de pais e responsáveis legais blindarem seus filhos de supostas ideologias transmitidas dentro da sala de aula. A lógica é a de que valores tradicionais de família e religião são passados com mais facilidade se os arredores são mais controlados. No entanto, numa visão diametralmente oposta e mais abraçada pelos especialistas em pedagogia de todo o mundo, Paulo Freire dizia que “o educador tem o dever de não ser neutro“. Ou seja, o papel do educador não é colocar o estudante num ambiente hermético e protegido, é desenvolver seu conhecimento e pensamento crítico a partir de uma escola emancipadora voltada para a promoção da cidadania e do desenvolvimento social-cultural.

De acordo com as regras previstas no texto-base da nova lei, o ensino domiciliar vem acompanhado de algumas condições — que, por sua vez, não são tão simples assim, por demandarem um nível de fiscalização improvável. Antes de tudo, os responsáveis deverão fazer matrícula anual em uma escola regular, onde também devem formalizar a escolha. Feito isso, será necessária a comprovação de escolaridade de nível superior, por pelo menos um dos pais ou responsáveis legais, além do envio de relatórios trimestrais com a relação de atividades pedagógicas e avaliações anuais de aprendizagem.

A ala da “não-doutrinação”, composta em sua grande maioria pela parcela mais conservadora, argumenta que algumas milhares de crianças já vivem o homeschooling e a lei viria, portanto, para regularizar a prática; enquanto que a contra argumentação alega que o projeto, na verdade, visa a individualizar o processo educacional e diminuir a força já exígua da escola pública. Isso garantiria a reprodução das ideias da classe dominante e a inibição da formação de pessoas cujas ideias nasçam de outras perspectivas e subjetividades. 

“Dente Canino” (2009), de Yorgos Lanthimos

De acordo com o artigo 207 Constituição Federal, “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Com isso em mente, tomemos algum tempo para refletir sobre a palavra “liberdade” — ela é a principal justificativa de quem defende o Projeto de Lei que autoriza o homeschooling, sob a ótica de que é uma forma mais livre de ensino; mas, ironicamente, a mesma palavra também é o conceito-chave para quem é terminantemente contra a ideia de ensino domiciliar, com o entendimento de que a libertação insuspeita só vem por meio da educação plural oferecida em escolas. 

Deixando toda a maleabilidade teórica de lado, parece claro que, desde o começo da pandemia da Covid-19, quando o ensino domiciliar angariou força junto ao contexto de quarentena, está cada vez mais premente pensarmos sobre como os métodos de ensino vigentes se encaixam na atualidade. 

Que os tempos mudem, mas a educação siga acontecendo como prática da liberdade.

A carreira da cineasta Laís Bodanzky é recheada de incursões bem-sucedidaspor diferentes gêneros e matizes — do comentário social e antimanicomial de “O Bicho de Sete Cabeças” (2000), passou pelo conto de amadurecimento de “As Melhores Coisas do Mundo” (2010) e chegou ao complexo estudo da mulher moderna de “Como Nossos Pais” (2017). Isso para não citar o envolvimento com diversas outras produções, entre elas a animação “Uma História de Amor e Fúria” (2013) e o documentário “Ex-Pajé” (2018), ambas assinadas por Luiz Bolognesi.

Cauã Reymond em A Viagem de Pedro / Foto: divulgação Vitrine Filmes

Agora, explorando a famigerada lacuna de registros acerca dos meses em que se deram o regresso de Dom Pedro I à Europa, pouco depois de abdicar ao trono do Brasil, a realizadora toma a liberdade de, por meio do olhar contemporâneo, falar retroativamente sobre o apagamento histórico da mulher, a masculinidade tóxica e o racismo — problemas que perduram até hoje. Em ritmo de bicentenário da Independência, “A Viagem de Pedro” chega aos cinemas para explicitar as contradições daquele Brasil incipiente de 1831 e refletir sobre este de agora, tão incoerente quanto. 
Não por acaso, encontrando nos paradoxos a sua espinha dorsal, o drama histórico de Bodanzky se passa quase que totalmente dentro de um navio, enquanto o imperador é assombrado pelas memórias do passado. A “viagem” conclamada no título, para além do literal itinerário marítimo, também faz referência às alucinações pelas quais o personagem interpretado por Cauã Reymond passa ao longo do período de confinamento na embarcação. Para que a deterioração do imperador se faça gritante e se manifeste não apenas com recursos superficiais (roupas puídas, olhos esbugalhados, cabelo e barba desgrenhados), os personagens que o circundam representam valores e problemáticas que asfixiam sua imponência e probidade.

Maria Leopoldina (Luise Heyer), primeira esposa de Dom Pedro, morta em 1826, aparece em forma de lembrança para realçar a perspectiva feminina do roteiro. Amélia (Victória Guerra), a segunda esposa — essa, no entanto, totalmente viva na fragata —, joga luz sobre a insegurança do marido, que a trata com rispidez e violência por não conseguir engravidá-la. Lars (Welket Bunguê), o contra-almirante da tripulação, evoca a temática da escravidão a partir da perspectiva de seus “privilégios”, sendo a única pessoa negra que senta à mesa com Pedro. E Dira (Isabél Zuaa), trabalhadora livre e negra da embarcação, faz respingar comentários sobre a mulher e a escravatura, oferecendo com sua forte presença as melhores pinceladas de todo o quadro que é o filme. O elenco também conta com Sergio Laurentino e Francis Magee, além da participação especial de Sofia Marques, filha de Reymond.

Muito embora tenhamos personagens importantes pelos arrabaldes, a personalidade central ainda é a de Dom Pedro I. Por mais que se fuja do ufanismo típico das biopics norte-americanas, evitando a todo custo aquilo que hoje entendemos como “passação de pano”, a perspectiva da história contada é, acima de qualquer outra, a do imperador hegemônico. Mas, às inevitáveis e compreensíveis críticas que surgirão à tal característica, pode-se argumentar que o propósito do longa-metragem é justamente traçar um paralelo entre aquele homem branco europeu e os cacos provenientes de sua figura despedaçada, estilhaços que fustigam o Brasil de hoje

Vemos em “A Viagem de Pedro” uma pessoa que perdeu o controle, inundado em contradições, presa entre duas nações que não possuem o seu coração (o que é irônico, tendo em vista a atual exposição do órgão torácico do imperador, conservado em formol). Bodanzky e Reymond derrubam o herói da Independência de cima do seu cavalo para construir a imagem de um imperador indefeso e sem trono, de alguém que segue à deriva por suas imperfeições e comportamentos erráticos. Todos — de Dom Pedro e Maria Leopoldina à população brasileira, de então e de agora — estão a bordo de uma jornada que, na realidade, nada tem de heróica. O navio se encaminha para uma grande tragédia. 

Em dado momento do filme, o imperador se questiona “Como vou ganhar uma guerra de pau mole?“. Da pior maneira possível, a frase faz coro à esdrúxula reivindicação de Jair Bolsonaro ao título de “imbrochável”, esbravejada em pleno bicentenário da Independência, evidenciando a falência de muito do que foi imaginado para o país. O Brasil contraditório, nem lá nem cá, é tropical mas continental, servil mas opressivo, plural mas desigual. E, ao que tudo indica, também é impotente — mesmo no auge de sua imbrochabilidade. 

Brasil, 2022: os grilhões reluzem à luz do sol e Dom Pedro segue de mãos dadas com a nação que libertou há 200 anos.

Recentemente, o indígena popularmente conhecido como “índio do buraco” foi encontrado morto em sua palhoça, na terra indígena Tanaru (RO). Por mais de 30 anos, depois que os últimos membros do seu povo foram massacrados em 1995, viveu sozinho e afastado na floresta Amazônica, em um tapiri — cabana coberta com palha, cuja estrutura é de lascas e cascas de madeira, palmeiras e troncos de pau. 

Apesar de monitorado pela Funai (Fundação Nacional do Índio) desde 1996 e, de quando em quando, voltar às pautas dos portais de notícias, sua etnia e língua jamais foram descobertas. O mesmo vale para o seu nome, tendo o apelido nascido por conta do costume de deixar valas profundas na mata, método que servia tanto de armadilha para caça quanto esconderijo. 

Imagem de Laszlo Mates

Talvez você leia, ou tenha lido nas últimas semanas, que se trata de “um símbolo da resistência dos povos indígenas isolados no país“. E é verdade. Mas o que entender por “indígenas isolados”?

Indígenas Isolados

Estima-se que a colonização tenha provocado a morte de 70% dos povos originários do Brasil. Natural, portanto, que ainda hoje os indígenas não se sintam seguros diante da sociedade não-indígena. O genocídio explica o porquê de muitos optarem pelo distanciamento total, alguns se isolando até de seus próprios povos. Para além da violência desenfreada, ainda há o possível contágio de doenças: a proximidade tem o potencial de dizimar essas populações, cujos sistemas imunológicos muitas vezes ainda não tiveram contato com diversas doenças infectocontagiosas e, por isso, são mais suscetíveis a elas. Assim, alguns se refugiam como estratégia de sobrevivência, em áreas mais remotas.

Embora esses grupos tenham o objetivo comum de refúgio, eles vivem cada qual à sua maneira. Alguns não possuem moradia fixa, sobrevivendo da caça e coleta de alimentos. Outros, com hábitos mais próximos do sedentarismo, aproveitam-se da agricultura e cultivam mandioca, além de outros vegetais. Há grupos pequenos e há grupos numerosos. E, claro, há também casos de um único indivíduo autossuficiente, como o recém-falecido indígena de Tanaru. 

Um outro conceito importante para entender a extensão do que representava a resistência do “índio do buraco” é o da política de não contato.

Política de não contato

Nas décadas de 1970 e 1980, a Funai adotava uma política de “atração” dos índios isolados, agindo em prol da total ausência do Estado. Desnecessário dizer que o resultado foi desastroso para os povos indígenas, que ficaram à mercê de fazendeiros, madeireiros, garimpeiros e tantos outros invasores que representavam perigo. O cômputo final foi de grandes perdas populacionais e, em alguns casos, até de extermínio de grupos inteiros em decorrência de surtos epidêmicos. 

A política do não contato veio depois do fim da ditadura militar, com a Constituição de 1988, que respeitava a opção desses povos de viver o isolamento, uma vez que ele se dava de maneira voluntária. O órgão, dali adiante, assumiu as tarefas de identificar e monitorar indígenas isolados, com o intuito de protegê-los e interditar ou demarcar seus territórios. Ir ao encontro deles já não era o objetivo, isso somente aconteceria em caso de perigo iminente ou a partir da decisão dos próprios isolados.

Imagem Ricardo Stuckert

Monitorado pela Funai apesar da constante e forte pressão política, a interdição legal do território em que o “índio do buraco” habitava é um dos maiores exemplos dessa política. Por se recusar a fazer qualquer tipo de contato, o indígena fez seu direito valer a todo custo, ainda que sem ter dimensão do que suas ações representavam. O duplo homicídio de Bruno Pereira e Dom Phillips deixou dolorosamente claro — os interesses escusos falam mais alto, gritando a língua do sangue. É por isso que toda e qualquer forma de resistência deve ser valorizada.

Ao nos despedirmos do “índio do buraco“, vemos partir o último homem de seu povo, alguém que, sem saber, lutava uma luta bem maior. Um herói por falta de opção. Um paladino de uma causa que, do seu isolamento, era pura e simplesmente uma questão de sobrevivência.

Por mais que vivamos numa espécie de ditadura de “o passado nunca mais” o que, sim, tem sua beleza, especialmente quando na voz de Belchior , a verdade é que nem sempre devemos ignorar ou apagar as marcas deixadas pelo tempo. Lembrar é, numa só, um ato de coragem e afeto: coragem para reconhecer o valor e o poder de transformação que as lembranças têm; e afeto para enaltecer personagens e cenários, a ponto de, com eles, conseguir aprender. Em linhas gerais, é nisso que acredita o belga Axel Vervoordt, conceituado designer de interiores e criterioso colecionador de arte.

Wabi-Sabi é uma antiga filosofia japonesa que tem a imperfeição como paradigma do que é belo. Por “imperfeição”, entende-se: assimetrias, irregularidades, acanhamento, um punhado de características sucateadas nas sociedades modernas. “Wabi” vem da simplicidade, da elegância e do rústico, enquanto “Sabi” nos leva à galhardia da idade, do desgaste e das rugas do tempo. Isto é, o Wabi-Sabi enxerga a beleza de tudo “falhas” e rachaduras inclusas.

Como alguém que está à cata desses encantos que de algum modo se escondem mesmo estando na frente dos nossos olhos, passando despercebidos e residindo nos detalhes, Axel Vervoordt vive e respira o Wabi-Sabi. É da sensibilidade atinada, portanto, que germina o seu maior talento: daqui do presente, notar e dar nova vida à graciosidade do passado.

Se o século passado foi de produção, consumo e descarte, a história agora é outra. A sensação atual predominante, literal e metafórica, é a de que tudo está se esvaindo – nossos recursos naturais, nossos lugares para despejar lixo, nossas relações pessoais. O século XXI, se tomado como um ensejo de mudança, caracteriza-se pela necessidade de recuperação. Com o resgate, o antigo torna-se atual novamente, e a verdade, como acredita Vervoordt, pode estar contida no paradoxo e na ambiguidade. Não à toa, os seus designs investigam os conceitos de tempo-espaço e a natureza do ser, duas instâncias que latejam contradições.

Para atribuir coesão e harmonia à tal complexidade, a humildade é imprescindível. Pensemos em alguém cuja percepção é sempre respeitosa e que não faz questão de se evidenciar no que produz, preferindo escutar os sussurros de um espaço para então compreender como amplificá-los ao máximo e transformá-los em uma voz própria. Com essa abordagem orgânica, até os elementos da natureza se fundem aos ambientes, combinando a austeridade do design moderno com uma aceitação humana dos efeitos do tempo.

“A simplicidade é a sofisticação máxima.”

Vervoordt, o designer, e Vervoordt, o colecionador, se amalgamam. O olhar apurado para identificar essências que emanam complementaridade é o que faz com que sua coleção priorize peças com espírito, descartando superficialidades e modismos. No fim, é a lógica dos seus designs aplicada ao próprio inventário: coleciona não para possuir, mas para fornecer um pedestal digno dos artigos em questão. Um desses pedestais é sua casa, onde a justaposição de obras e objetos formam um diálogo precioso. O designer-colecionador, que, aliás, projetou os interiores das residências de diversas celebridades de Kanye West a Calvin Klein ,passa seus dias morando no campo em um castelo do século XII e, assim, a interlocução de épocas faz parte das minúcias do seu cotidiano. 

“Gosto de ser fascinado por algo antigo que parece muito contemporâneo e algo contemporâneo que parece muito antigo.” 

Falando em contemporâneo e antigo, agora jogamos o holofote sobre o projeto Kanaal, um complexo cultural e residencial em Antuérpia,charmosacidade belga. Originalmente construído em 1857, Kanaal funcionava como uma destilaria. Em 2017, porém, os armazéns industriais de tijolos e os silos de grãos de concreto viraram apartamentos de alto padrão e um hub de escritórios moderníssimo. 

A antiga destilaria foi restaurada e complementada com uma ou outra adição, de modo que os períodos se encontram de forma natural. Respeitando a história e dando um abraço caloroso nas características originais do edifício, todo o terreno recebeu uma nova perspectiva para o futuro. É assim que Vervoordt, já há algum tempo, é referência máxima.

Por que deveriam arranhões na madeira desvalorizar uma mobília? Abraçar imperfeições é uma maneira criativa de se reinventar. A filosofia por trás do Wabi-Sabi talvez não vá de encontro com os fundamentos de “o passado nunca mais”, nem mesmo se cantado por Belchior. Mas, partindo da sabedoria japonesa e de sua paixão pela contradição harmoniosa, Axel Vervoordt sabe que é no passado que está o futuro. E, como diria Belchior ajudado pelo coro do designer, “precisamos todos rejuvenescer”

ArteCinema

“Homem-Peixe”: Uma conversa com Allexia Galvão e Gleeson Paulino

Osklen e Amarello apresentam curta-metragem filmado na Amazônia, em um encontro entre os saberes ancestrais e as inquietações modernas.

O Pirarucu é um peixe da bacia Amazônica que chama a atenção pelo seu tamanho, podendo chegar aos 2 metros. Além da envergadura, outro aspecto marcante do peixe é sua aparência pitoresca, um “jeitão” primitivo que fica gravado na retina de quem o vê. Não à toa, é uma figura lendária — e, no caso, “lendária” de verdade, sem afetações de discurso.

Eis a famosa lenda do Pirarucu: um jovem guerreiro indígena dono de um coração perverso, além de gostar de criticar os deuses aos quatro ventos, ainda tinha o oprobrioso costume de, a bel prazer, executar outras pessoas da sua aldeia. Descontente, Deus Tupã — o deus dos deuses — afundou o guerreiro malfeitor nas profundezas do rio e o transformou em um peixe gigante. Assim, Pirarucu renasceu escamoso, em um corpo com o qual não poderia mais praticar atrocidades.

Talvez você já tenha ouvido essa história, mas ela agora ganha novos ares, como o ponto de partida de uma reflexão profunda sobre nós enquanto seres humanos e filhos da natureza, no formato de um filme que estreou no Cannes Indie Shorts Awards deste ano — “Homem-Peixe”, uma parceria Osklen & Amarello. A produção, realizada na Amazônia, insufla os pulmões com lendas originárias e contemporaneidade, bombeando um respiro que provoca um intertexto intenso entre as duas realidades.

Para falar sobre o filme e refletir sobre os seus desafios e significados, conversamos com a diretora Allexia Galvão e o diretor criativo Gleeson Paulino

Se você quer se banhar com uma história legitimamente brasileira, você está no lugar certo.

O ‘Homem-Peixe’ propõe um resgate da nossa ancestralidade, tendo como pano de fundo as lendas e tradições, tão presentes no nosso mundo imaginário.” 

O que significa fazer um filme desses, tão na contramão do ritmo proclamado pelo mundo digital, nos dias de hoje?

Gleeson Paulino: Começamos o filme com um pedido de pausa, de tempo, de respiro. No mundo digital em que vivemos, isso é pouco valorizado e muito menos notado, já que tudo é instantâneo, artificial e descartável. O “Homem-Peixe” propõe um resgate da nossa ancestralidade, tendo como pano de fundo as lendas e tradições, tão presentes no nosso mundo imaginário. 

Allexia Galvão: Antes de tudo, acredito no poder da linguagem cinematográfica, na combinação de elementos que ultrapassam as esferas físicas ​e transportam para um outro universo — um universo que se permite ser, como em um processo de meditação. Ao mesmo tempo, a experiência só se torna completa a partir do momento em que o filme é visto e, então, a montagem entra como um elemento de equilíbrio entre tempo e fluidez, ​despertando o nosso olhar, a nossa atenção.

Quais os maiores desafios de uma produção como essa?

AG: Fazer um filme​ sempre​ é um exercício de coragem. Os desafios são sempre inúmeros. Transpor o roteiro para imagem e som, conciliar vontades, reunir equipe, levantar uma produção, entre tantas ​outras ​coisas. Tudo isso só é possível porque o cinema é uma arte que nasce do coletivo.

GP: E a natureza é tão rica e vasta que um dos desafios, talvez o maior, foi conseguir condensar tantos elementos, símbolos, energia e histórias tão potentes em uma fração de tempo tão pequena.

AG: Filmar na Amazônia é inspirador. Mas, como a natureza está em constante mudança, é preciso ter desapego para lidar com as constantes adaptações necessárias de decupagem​. A natureza te dá​​ presentes maravilhosos, mas ​não podemos esquecer que ​ela é viva​ e se transforma a todo instante. Tudo muda muito rápido. O dia está ensolarado e, de repente, estamos no meio de um temporal.​ Se a cena final foi decupada em determinado lugar e horário no tech scout [visita técnica feita pela equipe], pode-se ter certeza que, em função da luz, no dia seguinte, no mesmo horário, ela estará completamente diferente. ​​Dirigir um filme todo rodado na Amazônia é lidar com os desafios impostos pela própria natureza. ​

A natureza, aliás, é uma grande personagem do filme. Em termos de ofício (fotografia, direção, roteiro…), como reproduzir isso?

AG: A natureza é a força sutil do universo, a manifestação mais profunda da vida, é onde a beleza mora. Como cineasta, considero​ ​o nosso maior desafio​ ​levar às telas a natureza de todas as coisas e,​ com isso​, emocionar. Através das emoções, podemos acessar a nossa própria natureza​ e a de quem assiste ao filme​. Os elementos cinematográficos são os nossos grandes aliados nessa missão. Tudo nasce de um roteiro, nosso ponto de partida; a produção possibilita que tudo aconteça; a fotografia apresenta o olhar atento do filme; a arte pulsa o universo dos personagens; o som vem como o recurso capaz de envolver e ultrapassar as barreiras físicas; a montagem arremata como o equilíbrio​ fundamental​. E a direção ​traz a harmonia de todos esses componentes.

Como se deu a relação das pessoas da produção com as pessoas das comunidades indígenas?

AG: O filme resgata a lenda do Pirarucu, indígena guerreiro da área dos Uaiás, aldeia que se localizava na região do Amazonas. A primeira missão foi partir até a Aldeia Cipiá​, localizada na região do Rio Negro em Manaus,​ em busca do nosso personagem. ​Fomos recebidos por Guy. 

GP: Eu já tinha uma relação muito boa com o Guy, que hoje é o novo líder da Aldeia Cipiá. Essa relação tornou o ambiente com a produção agradável e leve. 

AG: Passamos alguns dias na aldeia fotografando e observando até que nos demos conta que nosso personagem estava a todo tempo na nossa frente: era o próprio Guy! Ele tinha o dom da palavra e a lenda já habitava seu imaginário, tudo era natural para ele. ​No segundo dia de filmagem, fomos fazer uma focagem ​noturna ​e, no meio de todos os sons da Floresta, pedi ao Guy para me contar,​ em tukano — língua falada por todas as aldeias localizadas na extensão do Rio Negro —,​ a lenda do Pirarucu. ​Toda a equipe ficou emocionada escutando a história. E foi essa a gravação que usamos para guiar o filme.​

Há uma frase no “Homem-Peixe” que diz “O outro existe para você sempre se olhar no espelho”. Como ela ressoa pra vocês?

GP: Nós aprendemos muito um com o outro, certo? A outra pessoa nos inspira. É assim que adotamos novas perspectivas sobre nós mesmos e o mundo. “O outro” é nosso maior poder.

AG: A frase ressoa ​para mim ​com​o​ um valor​ primordial. Sem dúvidas, o mundo seria muito melhor se todos tivessem esse princípio. Somos seres semelhantes em vida, ainda que tenhamos a nossa singularidade, nossos desejos e vontades. 

Tupã jogou um raio no coração de Pirarucu para ele abrir os olhos e ver outro peixe. No nosso caso, qual pode ser o raio?

AG: Vivemos em um mundo com estímulos vindos de todos os lados. A era digital, ao mesmo tempo em que é fascinante por todo seu progresso tecnológico e por romper as barreiras da comunicação, nos traz muita distração. No filme, o raio aparece como uma força da natureza que desperta o personagem, ​trazendo-o para o seu cerne. De alguma forma, a natureza sempre irá se impor, seja em questões individuais ou coletivas.

GP: Acho que nós, seres humanos, precisamos sempre estar abertos a aprender, não podemos ser tão autocentrados. Quando estamos abertos, tudo flui em um ritmo diferente, nossa visão se amplia, enxergamos com mais clareza e vivemos de uma forma mais leve. O abrir pode ser o nosso raio.

Qual o maior ensinamento tirado da experiência? Vale profissional e pessoal.

GP: Pessoalmente, estar na Amazônia e ter essa vivência com os povos originários foi uma imersão e conexão com meu interior, o que acabou por ressignificar muitos dos meus valores pessoais. Profissionalmente, foi o elo do mundo digital com o mundo imaginário, dos contos, lendas e valorização da cultura. Estar nesse set foi uma grande honra, eu queria que todos pudessem ter essa experiência.

AG: Nas minhas pesquisas para o filme, li o livro “Amazônia Indígena”, de Márcio Souza. Foi com esse livro que entrei em contato com a citação da etnia Ye’kuana que fala sobre ciclos, renascimento e esperança. Passei a observar que a maior parte dos indígenas com a qual tive contato, tanto no “Homem-Peixe” quanto em “Olhos do Xingu” — meu próximo filme —, tinha a serenidade e a sabedoria de quem tem o entendimento ancestral do ciclo da vida. Talvez nesse entendimento resida toda a força e resistência necessária para se manter vivo e reluzente. A força da mudança é a mais profunda propriedade do tempo e a vida sempre será imperativa. Se colocar no fluxo é saber lidar com o imutável de maneira leve. Acredito que esse tenha sido meu maior ensinamento.

Olhando para a história da Humanidade e tudo que nos é contado nas instituições de ensino, quanto do que acreditamos ser verdade inconteste é baseado em fatos e evidências?

O cânone ocidental — que, no contexto e com requintes de ironia, também pode ser chamado de o “grande dono da verdade” — nos diz que os antepassados da espécie humana eram figuras bidimensionais, irreflexivas e não passavam de caçadores-coletores que se adaptavam ao meio de maneira inata. A base desse viés, claro, é o Iluminismo, que define as noções modernas de liberdade, civilização, Estado e democracia. Esse dois-mais-dois-igual-a-quatro, apesar de simplista, vem sendo reproduzido pela cultura do Ocidente há tempos. Mas, parando para pensar, especialmente neste momento em que a reparação histórica é pauta quente e cada vez mais pega-se (justificadamente) no pé de homens brancos outrora tidos como heróis, será que, na realidade, a conta simplista não soa como a matemática de uma rejeição eurocêntrica a sociedades distintas? 

Imagem registrada pelo telescópio James Webb

Para questionar as visões consagradas sobre a história da Humanidade, e com a esperança de levantar mais pilastras sobre as quais possamos nos fundamentar, chega o livro “O Despertar de Tudo: Uma Nova História da Humanidade”, escrito em parceria pelo antropólogo americano David Graeber e pelo arqueólogo britânico David Wengrow. A perscrutação que se dá ao longo das mais de 600 páginas da obra é fruto de uma pesquisa longuíssima, dando ao leitor um parrudo senso do porquê deveríamos, no mínimo, repaginar tudo aquilo que nos foi ensinado sobre a nossa história. Rechaçar, aliás, não está fora de debate. 

O grito, é bem verdade, já é dado há algumas décadas, ecoando de ideias proferidas por Claude Lévi-Strauss e outros antropólogos nos anos 1960. Porém, aos olhos dos acadêmicos, o que antes não tinha fôlego para se alastrar, simplesmente não pode ser ignorado e a mudança agora tem a chance de ser real. 

Está mais claro do que nunca que sociedades pré-históricas e povos indígenas criaram formas de organização político-sociais tão desenvolvidas quanto as que conhecemos, celebramos e vivemos. Com a arqueologia gozando de sua idade de ouro — devido à série de revoluções tecnológicas recentes —, milhares de arqueólogos estão fazendo descobertas a todo vapor na China, na África Subsaariana, no Brasil e nos EUA. É possível, hoje, reconstruir mais e mais aspectos da Antiguidade, entendendo toda a complexidade das suas dietas e formas de mobilidade. Agora, e somente agora, começamos a saber dos detalhes de regiões que previamente foram descritas como se nada tivessem a oferecer.

Por mais que as interpretações conceituadas sigam irradiando através de sua força orgânica e da ajuda de obras populares, como “Sapiens“, de Yuval Noah Harari — com a qual Wengrow e Graeber fazem questão de antagonizar —, o impacto dessas novas técnicas arqueológicas faz surgir um renovado arcabouço de perspectivas. Como resultado, temos o enfraquecimento do arco narrativo que começa com o ser-humano primitivo sem inteligência e consciência político-social — culturalmente representado por povos cruelmente colonizados —, e chega às cidades, onde a democracia toma forma e progride. “O Despertar de Tudo” põe em xeque esse modelo linear de evolução que, sutilmente (ou não tão sutilmente assim), nos apregoa a noção de que um povo é melhor do que o outro. A grande repercussão do livro, no entanto, ficará desconhecida a um de seus autores: poucas semanas depois da conclusão do livro, em 2020, David Graeber morreu subitamente, aos 59 anos. É o companheiro David Wengrow que agora toma a frente das controvérsias, sendo uma das principais caras e vozes dessas reinterpretações e redescobertas tão importantes para o nosso futuro.

David Graeber e David Wengrow

Mudar o curso da História ao olhar para o passado parece ainda mais fundamental nos dias de hoje, já que devemos escapar de uma visão de mundo reduzida que diminui a amplitude de nossa percepção sobre o que está acontecendo no presente. Mais do que nunca, o contexto nos apresenta enormes desafios e, ao abrirmos o olhar coletivo para enxergar outras possibilidades e naturezas, aumentamos o leque de potenciais alternativas para o que vem pela frente.

Quem sabe assim a matemática daqui adiante seja de soma, não de subtração.

Imagine o espírito de Machado de Assis, um tanto confuso, esbarrando em discussões ensandecidas que, à luz do presente, problematizam um punhado de obras canônicas (como a dele próprio), sobretudo no que diz respeito à linguagem. Agora coloque ao lado de Machado o espírito de um José de Alencar igualmente aturdido — porém mais desgostoso —, olhando tudo com pavor e fascínio, como um acidente de carro do qual, mesmo enquanto uma entidade vinda de um plano superior, não se consegue tirar os olhos. Para finalizar o quadro com pinceladas sorridentes, pense num campus do Rio de Janeiro cheio de alunos e alunas em entusiásticos palavrórios, esbravejando opiniões e pronomes inclusivos. 

Esse é “A Vida Futura“, o bem-humorado e agradavelmente rocambolesco novo romance de Sérgio Rodrigues.  

O escritor e jornalista Sérgio Rodrigues. Foto: Bel Pedrosa

Autor de outros títulos como “O Drible” (2013), que abocanhou prêmios importantes há quase uma década, Rodrigues olha com bom espírito para as questões linguísticas hoje tão em voga — “Ser ou não ser?”, se perguntava Hamlet, no reino podre da Dinamarca; “Escrever ou não escrever todxs/todes?”, nos perguntamos nós, no reino esfumaçado da atualidade. Eis a grande questão, talvez uma das maiores dos nossos tempos.

Tudo começa com uma professora, dona orgulhosa de um projeto chamado “Luta de clássicos”, que visa a reformulação de certas obras clássicas, em especial as que costumam figurar nas listas de leitura das escolas, com o intuito da simplificação delas em prol da acessibilidade. O grupo de revisores, no entanto, parece pender com mais força para o lado da formatação moral de tais escritos. Aviltados, Machado de Assis e José de Alencar decidem baixar em solos cariocas na forma de espíritos — tudo para pegar no pé da docente. No meio disso, somos apresentados à Mar, personagem negra e não-binária que expressa opiniões fortes sobre as reverberações da literatura machadiana aos ouvidos da contemporaneidade. 

Para tratar do assunto espinhoso de forma inventiva, à guisa de um distanciamento das páginas vigentes da história, “A Vida Futura” tem o próprio Machado como narrador. Dessa opção pela primeira-pessoa, percebe-se de cara a proposta não-panfletária de Rodrigues, que se propõe a abrir um diálogo entre épocas se esquivando de antagonismos — sem fugir, contudo, de questões hoje centrais, como a negritude do autor. Ao dar o bastão de fala a Assis, coloca-se em perspectiva tudo aquilo que é feito de sua imagem no presente, seja pelo vozerio da militância política ou de qualquer fórum que corra pelas beiradas do que está escrito em seus livros.    

Um ponto marcante e relevante do romance recém-lançado é o retrato, construído a partir de uma situação sobrenatural um tanto quanto crível, do quão picaresco pode ser ficarmos ultra obcecados com algo e levarmos a contenda aos seus extremos, a ponto de sentirmos a necessidade de canetar obras canônicas, tamanho é o ensimesmamento com a nossa época e valores. A reavaliação de muito do que foi, e ainda é, dito, configura um passo significativo para um desprendimento benéfico do que tem de danoso no passado, mas aplicá-la a determinadas circunstâncias talvez não adicione muito ao pleito. 

É comum ouvirmos ou lermos por aí o bordão “a língua é um organismo vivo que está em constante transformação”. Seguindo essa linha, a comunicação sempre se dá dentro de um contexto, da época em que ela está inserida, e vai evoluindo conforme às mudanças dos panoramas das sociedades atuais. Novos momentos sociais, reparações históricas, valorizações atrasadas de culturas antes negligenciadas, acolhimento de termos que nasceram pejorativos… São muitos os porquês que acabam por alterar a maneira como falamos — ainda bem. Tendo em vista a história que nos precedeu, no Brasil e em qualquer lugar, melhor que seja assim. 

Machado de Assis

No registro informal, essas adaptações se naturalizam num tiro mais ágil; ao passo que, na norma culta, o processo se dá em marcha lenta e, muitas vezes, nem chega a ver a luz do dia. Claro que não devemos negar sua importância, mas que se tenha em mente que, muito embora dê certa estabilidade à língua e continue sendo um recurso de legitimação de discurso, ela reflete o mundo em que os mais privilegiados ditam as regras de acordo com o próprio umbigo.  

Rafael Julião, no texto Cuidado com a língua, para a edição Amarello Fagulha, diz com propriedade: “Os preconceitos linguísticos não são inerentes aos fenômenos linguísticos; eles são fruto de preconceitos culturais que, por sua vez, estão amparados em preconceitos sociais.”  

Ou seja, mais do que nunca, é necessário que se tenha dimensão e controle sobre o que falamos ou escrevemos. Cada vez mais, vem-se explicitando a origem problemática de muitas expressões, termos e adjetivos que moravam na ponta da nossa língua. Exemplo disso é o caso recente da cantora Beyoncé, cujo sétimo álbum, “Renaissance”, mal saiu e já teve letras trocadas duas vezes — uma delas, por ter sido acusada de capacitismo pelo termo spaz (de espasmo), o mesmo ocorrido com Lizzo, outra diva pop, há alguns meses. 

Caso Machado de Assis descesse do céu dos escritores para nos fazer uma visita, talvez tomasse um belo dum susto com a comunicação mais célere, empática e feroz de agora. José de Alencar, então, podia muito bem desejar uma segunda morte. As ponderações sobre isso estão bem representadas em “A Vida Futura”, mas, recorrendo novamente a Julião, “o fato é que a língua é sintoma e prenúncio, consequência e causa, acompanha as tensões sociais, traz dela questões novas e projeta futuros possíveis.”     

Trocando em miúdos — assim caminha a humanidade e, consequentemente, assim caminha a linguagem.

INDICAÇÕES

Febem – Champions | A Colors Show


Minha primeira indicação de hoje julgo ser fundamental para o entendimento dos movimentos de vanguarda do rap e é apenas a ponta do iceberg da ebulição cultural que vive no underground da música e das periferias do brasil. A cena do Grime é uma das coisas mais interessantes do passado recente e vem cavando com força seu espaço no mainstream nacional.

O rapper paulista Febem, ainda que não se defina por um único gênero musical, é um dos rostos mais reconhecidos e respeitados desse movimento. 

“A Colors Show”

“Champions” é seu lançamento mais recente, faixa inédita produzida por seu parceiro de longa data CESRV e gravada em performance ao vivo a convite da plataforma alemã Colors. A não ser que você tenha passado os últimos anos debaixo de uma pedra, os visuais vibrantes do canal não devem ser novidade. De qualquer maneira, vale dizer que Colors é uma das maiores plataformas culturais em atividade hoje: entre matérias, editoriais e entrevistas, os destaques ficam para as rendições ao vivo de artistas do mundo todo. Com uma curadoria incrível, é uma excelente porta para conhecer novos trabalhos. 

Mesmo com uma proposta de pluralidade, demorou um bom tempo, desde os primórdios da plataforma, para que brasileiros conquistassem seu espaço em meio aos selecionados. Até meados de 2019, os protagonistas dos vídeos ainda ficavam concentrados, majoritariamente, por artistas americanos e europeus com carreiras já estabelecidas. Os EUA e a Europa ainda são gigantes exportadores musicais no mundo e o panorama mainstream se constrói em torno disso. 

Com quase 6 milhões de inscritos e mais de 2 bilhões de visualizações no canal alemão, essa performance de FEBEM projeta para o mundo a voz de um recorte social marginal do Brasil e é um marco muito simbólico para o movimento Grime como um todo.

“Esse é meu estilo”

Sempre empurrando os limites de estilo e ainda questionando as fronteiras e definições categóricas acerca do seu trabalho, Febem apresenta um conteúdo lírico e estético que é essencialmente resultado da hibridização de diversas influências musicais e do intercâmbio cultural entre Brasil x Inglaterra.. 

Para compreender melhor essa mescla é preciso primeiro falar de Grime:

O gênero, nascido e cultivado em Londres, é derivado da música eletrônica, e mescla elementos dos instrumentais de UK Garage com jungle, dancehall e a lírica do hip hop. Abaixo, separei duas referências sonoras de ambos os estilos para ilustrar melhor cada sonoridade.

UK Garage: https://www.youtube.com/watch?v=x8kdG2jAPtQ 
Grime: https://www.youtube.com/watch?v=MQOG5BkY2Bc 

A sacada é: aqui no Brasil, o Grime tomou vida própria e incorporou o grosso da cultura nacional. Musicalmente, o ritmo e o bpm do do estilo gringo é muito próximo do funk brasileiro, por exemplo, o que tornou a incorporação algo muito natural. Essa proximidade dá toda a cara da versão brasileira do gênero, e a abrasileirada do Grime nos trouxe uma dicotomia que não pode ser ignorada: enquanto boa parte da cena do rap olhava para os Estados Unidos, Febem e outros artistas foram buscar referências muito mais próximas da realidade das quebradas daqui, correndo na contramão direta dos americanismos do trap, que vêm ditando a estética do mainstream na última década. 

O amor pelo futebol, por exemplo, atua como um eixo de simetria entre o circuito periférico dos dois mundos (Brasil x Europa),  e é um fator importantíssimo para o entendimento do movimento como um todo.

“Brasil Grime Show”

Catalisado por coletivos como o Brasil Grime Show e artistas como SD9, Fleezus, N.I.N.A  e Leall, o Grime ganhou tração e números nos últimos anos, sinalizando um flerte com o mainstream e se tornando um estilo mais acessível e difuso também entre outras massas sociais. Isso também significa muito mais dinheiro injetado, interesse de marcas e atenção da mídia.

Brime! (2020)

Brime! é um álbum de 2020 de Febem, Fleezus e CESRV. Resultado de uma viagem à Inglaterra e de um trabalho de pesquisa sonora dos integrantes, é uma excelente porta de entrada para entender melhor o que aconteceu com gênero no Brasil.

Em Raddim, faixa que abre o projeto, o produtor CESRV apostou no uso de percussões brasileiras e graves distorcidos, em consonância com timbres mais clássicos de Grime – como o sample que toca no fundo e estabelece a base da canção – para criar o que ele mesmo apelidou de Grime de Paredão.

Em Yin Yang, os versos de Fleezus são mais melódicos e cantados ao invés de rimados; sobrepostos a uma batida de funk e adotando uma estética de baile. A caixa bate forte usando de um timbre que não é padrão, mas imprime a mesma sensação. Quando FEBEM entra (00:52 – 01;17), o tempo desloca e o beat desliza em direção a uma célula de grime, e o flow das rimas acompanha a transição. 

A canção tem uma sacada simbólica no final, que é a inversão dos papéis: Fleezus canta em cima do Grime e Febem rima no funk, quase que poeticamente atestando a ingestão da cultura gringa, digerida, remodelada e regurgitada em algo novo e local.

“Vai Corinthians”

Voltando um pouco a “Champions”, é Impossível falar do Febem e não destacar a sua destreza lírica, extremamente ácida e sua facilidade para desdobrar os flows de rima.

“Moleque problema, filho bastardo da cena
Que te dá a melhor cadeira e deixa pronta a guilhotina
Onde ‘cê vira prêmio em dois ponto’ de vista
Com a coroa na cabeça ou com a cabeça na bandeja.”

O título da faixa “Champions”, entoado em coro e que enaltece a Liga dos Campeões da UEFA, é costurado por comentários sociais no refrão e reforçado no final com cantos de torcida: “Olê, olê, olê, olê“. Destaque para o arranjo comedido da faixa, que possui poucos elementos, muito bem orquestrados entre si, ainda mantendo uma característica estética muito original. 

A cereja do bolo vem no final:

Existe algo muito irônico no fato de que um músico que veio das quebradas de São Paulo; que produz um catálogo artístico em um estilo que não é padrão comercial; que se apresenta no maior e mais importante canal de música do mundo; e finaliza sua performance com:

“Vai corinthians”.

Ouça:

Brime!  (álbum completo – 2020)

Febem – Jovem OG (álbum completo – 2021)


ESTREIA

Amen Jr. – Mysterio

O gospel é o segundo gênero musical mais consumido no Brasil e um dos segmentos da indústria fonográfica que mais movimenta capital. Para quem circula por bolhas um pouco distantes desse meio, o estilo pode muitas vezes parecer até mesmo um mundo à parte. 

Sinto que o quarteto brasiliense Amen Jr. vem também para provocar a cadeia produtiva já bem estabelecida da música gospel e das noções estereotipadas dos limites entre a produção cultural secular e religiosa. O grupo está muito longe de ser definido apenas como uma banda cristã, ou como uma banda de rock. O maior trunfo da Amen Jr. é, justamente, conseguir dialogar com todo e qualquer tipo de público. 

Mysterio” é o último lançamento do grupo. A faixa é impecavelmente calculada, cautelosamente produzida e recheada de referências aos anos 1980. O trabalho vem acompanhado de um videoclipe dirigido por Cadu Millet e Xerxes Frozi,  que materializa muito bem a paisagem sonora da banda. Existe um carinho estético na apresentação do trabalho que é surreal, e que prepara o terreno para o lançamento do seu antecipado primeiro álbum, intitulado “Buraco no Tempo”

Desde 2018, a banda amadureceu um estilo que recorta algumas referências muito específicas dos anos 1980 e as remodela para criar uma identidade única. De Michael Jackson a Phil Collins, passando por Yes e Tears for Fears,  a produção musical absurda de Carlos Bezerra transborda pesquisa de timbres e alta proficiência técnica.

“Mysterio” presta homenagens a vários clássicos (a introdução da faixa, por exemplo, é um aceno a “Beat It” do Michael Jackson e “Owner of a lonely heart” do Yes), e utiliza recursos como sintetizadores, reverbs e timbres de guitarra da época para criar uma sensação de viagem no tempo que vai além da simples provocação nostálgica. As escolhas minuciosas de arranjo e dos timbres brincam com as noções de passado, presente e futuro.

Amen Jr. atravessa os mais jovens porque promove identificação e os mais velhos exatamente pelo mesmo motivo. Para além do domínio do universo oitentista, a ideação criativa da banda gera representatividade independente da crença religiosa.

Ouça: Voltar no Tempo, Ethos, Futuro.


RADAR

Melly – Azul

Tive a oportunidade de assistir a um show da Melly no Trapiche Barnabé em Salvador, e posso afirmar que o que aconteceu durante a apresentação dela é raro. Todos os muitos ouvidos presentes ficaram atentos, os olhares surpresos e houve um um clima espesso de arrepio coletivo. Dona de um textura vocal muito marcante, a artista baiana parte do R&B para criar composições pop, com classe nas escolhas melódicas e que passeiam por várias vertentes da música preta. 

Do soul ao axé; do jazz ao samba. Azul é o EP de estreia da cantora – e é uma excelente porta de entrada para entender sua pluralidade artística.

Ouça: Feels, Ceder, Luv

Fala que eu te escuto: Estou sempre em busca de sonoridades novas, e todo mês reviso e ouço com muito carinho todo o material enviado. Aguardo sua sugestão e, se possível, uma justificativa breve do motivo da escolha — [email protected]


Esta coluna faz parte do projeto Escuta, um ambiente de entrevistas e debates sobre música e cultura de realização do Instituto de Apoio à Orquestra Sinfônica do Paraná. Siga as nossas redes abaixo para mais informações!

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Em março de 1915, num Estados Unidos ainda neutro em plena Primeira Guerra Mundial, chegava ao mundo Rosetta Nubin. Filha de pais religiosos que participavam ativamente das atividades da igreja, desde cedo Rosetta foi incentivada a fazer o mesmo: aos 6 anos de idade, juntou-se à mãe para se apresentar regularmente pelo sul dos EUA com um itinerante grupo musical evangélico. Daí em diante, nada parou a menina de desenvolver seu talento musical prodigioso — dona de vocais potentes, arrebatou as pessoas trovejando uma gravidade emocional ímpar, e, com a sua guitarra sempre a tiracolo, fez o mundo tremer. 

No auge dos 19 anos, já no norte do país, casou-se com o pastor Thomas Thorpe. O casamento durou pouco, mas serviu a um grande propósito: ao adotar oficialmente o sobrenome do pastor e assumir o erro de grafia que veio junto (um “o” que virou um “a”), encarnou o nome artístico Sister Rosetta Tharpe, que nunca deixou de ser usado. Com vinte e poucos anos nas costas, apesar da pouca idade, Rosetta amadurecia um estilo inigualável de tocar, unindo o blues, jazz e gospel com distorções elétricas mirabolantes, em uma fórmula que jamais havia sido ouvida. Tamanha era a intensidade com que se apresentava e tamanho era o peso do que esmerilhava na guitarra que voos maiores não demoraram a acontecer. No final da década de 30, lançava o seu primeiro disco. 

Era o rock’n’roll tomando forma. 

Em 1945, lançava aquela que é considerada a primeira gravação do gênero, “Strange Things Happening Every Day“. A versão acelerada, cheia de arpejos e com aquela levada típica que hoje conhecemos como os primeiros estágios do rock, chamou a atenção de muitos e as revoluções não arredaram o pé: Rosetta seguiu influenciando gerações e mais gerações. Munida de seu virtuosismo na guitarra, em suas performances gostava de conclamar a plenos pulmões, para o mundo inteiro ouvir: “Nenhum homem toca como eu!”

A frase icônica ecoa em alto e bom som. Como as palavras escritas no violão de Woody Guthrie (“Esta máquina mata fascistas”), a mensagem era um berro de alguém que vivera a vida lutando contra o establishment. Contra tudo e contra todos, era uma ameaça viva ao conservadorismo vigente. Além da inventividade musical, que, por si só, era um alerta à preponderância masculina no meio musical, por não ter medo de se relacionar com mais de um sexo, Rosetta ainda foi uma grande representante na luta pela ampliação de espectros sexuais — e tudo isso na sociedade americana de mais de 60 anos atrás, fazendo parte de uma comunidade religiosa, sendo mulher, sendo mulher negra.

É seguro dizer: nenhum homem tocou como ela.

No filme recém-lançado de Baz Luhrmann, Elvis, Sister Rosetta Tharpe é interpretada por Yola, musicista britânica. Como não podia ser diferente, com um quê de justiça histórica, ela é apresentada pelo roteiro como uma influência gigantesca sobre o desengonçado adolescente de Memphis, Tennessee, que amava sua música e que, sem ela, nada teria conseguido. A cultura negra, como um todo — indo de Arthur “Big Boy” Crudup até Chuck Berry e B.B. King —, recebe atenção especial na produção, que deixa claro que o “rei do rock’n’roll” seguiu passos que já haviam sido pisados, ainda que à sua maneira.

Morta em 1973, após um derrame, foi introduzida ao prestigiado Rock’n’roll Hall of Fame somente em 2018. Para dizer o mínimo, a honraria tardou a acontecer, com bons 40 anos de atraso. Pelo menos, aos poucos, vem-se falando mais sobre o impacto para lá de substancial causado pela artista, por aquela menina negra oriunda de família humilde e religiosa. Rosetta traçou um “pré” e um “pós” na história da música que, felizmente, estão cada vez mais evidentes a quem estiver disposto a enxergar.

Quem sabe, com o sucesso do blockbuster protagonizado por Austin Butler e Tom Hanks, não se ventila por Hollywood a ideia de jogar luz sobre uma das principais pioneiras da música popular, conferindo à ela o devido reconhecimento e contando de forma categórica, de uma vez por todas, a história de quem foi a verdadeira mãe do rock’n’roll

Pois, se Chuck Berry e Elvis Presley inventaram o rock, Chuck Berry e Elvis Presley foram inventados por Sister Rosetta Tharpe. 

Cultura

A Mão no Brasil: A cerâmica pessoal de Cunha

A Mão no Brasil é uma série de reportagens originais, produzida para apresentar e valorizar histórias da manufatura e do trabalho artesanal brasileiro.

Em Cunha, município localizado no leste de São Paulo, o sol se levanta cedo. Não diferente, às luzes laranjas da alvorada, os ceramistas logo despertam para desfrutar de um café da manhã reforçado e, no calor que começa a se manifestar com imponência, encontrar a inspiração para o que estão prestes a confeccionar — é mais um dia de produção no Atelier Suenaga & Jardineiro

Neste cenário rural que mais parece um Haikai vivo, além das cigarras que não deixam de cantar e da cadela Maru, que fareja o chão como se não conhecesse cada centímetro dele, as lenhas de eucalipto estão empilhadas, a argila está descansando e um deslumbrante forno está construído sobre uma rampa. Tudo faz parte de um cotidiano cuidadoso e carinhoso de artesanato, desse bonito ciclo que é a cerâmica em um dos polos ceramistas mais famosos do país. 

Na ativa desde 1985, fundado pelo casal Kimiko Suenaga e Gilberto Jardineiro, o ateliê produz principalmente cerâmica de alta temperatura, por meio do forno Noborigama — ou “Dragão de fogo de Cunha”, como também é conhecido nas internas. Na língua japonesa, Noboro é o verbo “subir” e Gama equivale a “forno”, resultando num termo que quer dizer algo parecido com “forno construído na subida”. Ou seja, essa arte milenar japonesa se dá na forma de um forno de dimensões gigantescas, capaz de comportar de 1500 a 2000 peças por vez. Com câmaras refratárias sucessivas, interligadas e construídas em aclive, o fogo vai sendo alimentado em etapas por cada uma das bocas, chegando a até 1400°C.

O Noborigama em si representa bem o espírito do Suenaga & Jardineiro e da gênese por trás de cada um de seus produtos: tradição e sofisticação solidificados em uma só fórmula. De olho nos antepassados, faz-se um presente inesperado e místico que evoca proximidade e afeto com a natureza. 

Primeiro, alimenta-se a fornalha a partir da boca de baixo; depois, a boca mais elevada é que recebe as lenhas de eucalipto; por último, é a vez das câmaras intermediárias serem aquecidas, no momento em que o forno crepita em uníssono e as temperaturas chegam ao ápice. O processo de queima pode chegar a até 30 horas de duração, culminando no ponto da transformação do barro em pedra e da fusão do esmalte. No decurso de queimação, lenhas de todos os tamanhos são usadas, variando entre pequenas, médias e grandes, cada qual com o seu propósito. 

Uma vez que terminado, chegamos ao clímax glorioso do ciclo: a abertura da fornada.  

Chamadas de Kamabiraki, as aberturas acontecem 5 vezes ao ano e são empolgantes por apresentarem resultados imprevisíveis, surpreendendo até os ceramistas mais experientes, que já sabem que não devem se apegar a uma visão fechada do que vai ser aquele produto final. O processo, como qualquer dinâmica da natureza, contém variáveis que criam belezas raras e únicas. Adornadas com o pincel habilidoso de Kumiko, as peças de cada Kamabiraki são inigualáveis. Gilberto Jardineiro, que costumava ser mestre-de-cerimônia dos rituais de abertura até passar o bastão ao filho Giltaro, não à toa gosta de dizer que a cerâmica é uma atividade ligada, acima de tudo, às pessoas, que, em suas individualidades, são singulares como cada vaso, pote ou tigela que sai do Noborigama. 

No final das contas, dia após dia, há pessoas envolvidas na preparação e na modelagem de toda a argila, assim como nas queimadas, pinturas e vendas que vêm depois. Saber de quem vem e para quem vai: é esse o ideal que move as estruturas instaladas em Cunha há quase quatro décadas. 

Gilberto finaliza: “Vejo a cerâmica como uma analogia da vida — expostas às mesmas circunstâncias, cada peça é um fruto diferente, e, dentro em breve, pra alegria de todos nós, o ciclo se reinicia.”  

Já é quase noite e a cadela Maru se refestela na porta de entrada com a língua para fora, tão cansada quanto os ceramistas, que botaram a mão na massa ao longo de mais um dia produtivo. O repouso é necessário não só para eles e Maru, mas para toda a moção ceramista, que se faz também de pausas — seja da argila, da lenha ou das peças em modulação. Quando a noite chega e os grilos cricrilam, fica claro que mais um mini-ciclo se encerra.

O amanhã há de chegar no Atelier Suenaga & Jardineiro, e chegará com calma. A próxima fornada há de queimar em seu devido tempo, o próximo Kamabiraki há de acontecer quando for propício, o processo há de se reiniciar com espaço de sobra para o novo se criar. 

Pessoal e paciente assim, a cerâmica da natureza acontece.