#11SilêncioArteMúsica

Tacet

por Vera Terra

Era adolescente e caminhava por uma das ruas que atravessam o bairro do Leblon, Zona Sul do Rio, quando passei por uma loja de relógios antigos, daqueles de pêndulo. Fascinada, entrei e me pus a observá-los. Escolhi o que me pareceu mais bonito, empenhada em uma compra imaginária. O vendedor, um senhor de cabelos brancos, dorso curvado pelo tempo, contestou, convicto: “Esse não é o mais bonito”, e apontou para outro relógio. “Ouça o som deste. É o mais bonito.” Deu corda em vários deles e os fez soar.

Até então, nunca havia pensado em escolher um relógio pelo som que produz. Isso me parecia surpreendente, sendo eu um músico. A tecnologia digital silenciou os relógios. Não ouvimos mais o tic-tac da engrenagem ou o som remoto de um cuco. O visor dos relógios eletrônicos apenas pulsa. Em silêncio. Vemos um ritmo.

Repouso por um momento o mouse e, no monitor, o cursor começa a pulsar. Em silêncio. Vejo um ritmo.

Um dos sentidos do silêncio, talvez o mais difundido, é o de uma dimensão (espaço/tempo) na qual buscamos nos libertar dos condicionamentos que a cultura nos impõe. Livres dos hábitos, podemos, por exemplo, apreciar um relógio por sua sonoridade e não só pela precisão ou design. Ver um som.

Ouvir uma imagem. Incomum sinestesia.

Dimensão cultuada pelos poetas, visitando-a, “crenças e escolas em suspenso”, Walt Whitman compôs a Canção de si mesmo. Inebriando-se de sons, perfumes, em comunhão estreita com tudo o que existe no universo, para o bem e para o mal, o poeta se solta para sentir o enigma dos enigmas: aquilo a que chamamos ser. Silêncio: despir-se para encontrar-se com o eu verdadeiro que celebra a si mesmo, sondando o insondável. “Marca a hora o relógio; mas o que marca a eternidade?”, canta o poeta.

A noção de silêncio mudaria por completo quando o músico norte-americano John Cage se dispôs a experimentá-lo, encerrando-se em uma câmara anecoica, um ambiente especialmente projetado para absorver os sons, tornando-os inaudíveis. Cage se surpreendeu ao ouvir dois sons: um grave e um agudo. O engenheiro que o auxiliava explicou-lhe, então, que o agudo era o de seu sistema nervoso e o grave, o da circulação sanguínea. Cage concluiu que não existe silêncio. Há sempre sons. Basta ter disposição para ouvi-los.

O silêncio deixa de ser entendido como ausência de sons para se tornar os sons do ambiente. Cage chama estes de sons de silêncio, porque não fazem parte de uma intenção musical. Fora do isolamento da câmara anecoica, em contato com o mundo, percebemos os sons em atividade: graves ou agudos, com um timbre particular, uma intensidade, uma duração.

Cage afirma ser o silêncio a experiência sonora que lhe é mais prazerosa, mesmo se comparada à música. O mais sábio a fazer, aconselha, é abrir imediatamente os ouvidos e escutar um som antes que o pensamento consiga transformá-lo em algo lógico, abstrato ou simbólico.

E se surpreende, ao ler os Diários de Thoreau, com o modo como o filósofo norte-americano explorou a paisagem sonora de Concord, sua cidade natal, observando cada som, musical ou não, como o faria um compositor contemporâneo.

A conceituação de silêncio é formalizada por Cage na peça 4’33”, obra emblemática da música contemporânea ocidental. Uma única palavra compõe a partitura: Tacet. As indicações de duração dos três movimentos que organizam a peça (30”; 2’23”;1’40”) revelam que não há intenção de controlar os sons; apenas de propor um recorte do tempo que nos coloca em contato com os sons do ambiente.

O silêncio cageano é, assim, uma experiência do tempo. Não o tempo do relógio que marca as horas, mas o do instante que nos revela a imprevisibilidade do acontecer e a impermanência de tudo. “Viver acontece a cada instante e esse instante está sempre mudando”. Experimentá-lo requer um despojamento, uma abertura total para o mundo.

Vera Terra é pianista e compositora, e estudiosa da obra de John Cage. Integrou o concerto realizado pelo compositor no Rio, em 1985. É autora do livro Acaso e aleatório na música: um estudo da indeterminação nas poéticas de Cage e Boulez (SP: EDUC/FAPESP, 2000) e de artigos sobre música e arte contemporânea. Foi co-curadora da exposição Begin anywhere: um século de John Cage, realizada em maio de 2012 no MAM-RJ.

#11SilêncioCulturaSociedade

Club Silêncio

por Facundo Guerra

O silêncio não existe, e isso precisa ficar claro desde já. Não que não exista; existe, mas não pode ser apreciado por nenhum de nós, os que respiramos. Portanto, para todos os efeitos ele não existe, não pode existir enquanto pudermos dar nomes às coisas. O silêncio pertence à ordem das ideias, da fé: tendemos ao silêncio, cada vez mais, à medida que tudo depende do cérebro, de uma educação múltipla para a produção eletrônica; mas existe algo antes dele, esse limite último, uma tendência a calar, sem no entanto silenciar.

Trata-se de um absoluto que é demolido pela simples enunciação da palavra, pelo simples pensar sobre ele, e aqui recorro um pouco à física de botequim: o som se propaga pelo ar, todos deveríamos saber disso, e aquelas explosões em batalhas no cosmos, que acompanhamos desde miúdos em filmes de ficção científica, não passam de açúcar para os olhos. Uma explosão no espaço seria triste, contida, silenciosa, se isso fosse possível, e monótona do ponto de vista do fenômeno – uma implosão, se preferir. Nada de labaredas ou kaboons. Ainda que nos desloquemos para o espaço, onde, sem o ar, nosso silêncio ideal seria teoricamente possível, na prática seria impraticável apreciá-lo: nosso corpo produz ruídos todo o tempo. Só a morte o silencia, e, ainda assim, nem ela não o faz de imediato.

Faça a prova: tente silenciar. É tão impossível quanto tentar se suicidar ao prender a respiração. Se existe o som da respiração, se existe o ruído na barriga, se existe a cacofonia de pensamentos em nossas mentes, não existe silêncio. O silêncio é o inimigo da vida. O silêncio, como o nada (outro absoluto), é análogo à morte. Só os mortos são silenciosos.

Por silêncio então entendo seu limite: as alusões, os subentendidos rápidos, que se oferecem à interpretação, o vacilo antes de falar, aquilo que ainda não tem nome ou que nunca terá, o inefável. A fragilidade de algo que é temporário: o silêncio sempre se refugia entre dois sons. E esse silêncio ordenado entre dois sons, bem, esse pode ser chamado de música. Sua antítese, o ruído, cada vez mais corriqueiro; sua expressão mais útil, a ordenação da harmonia.

Criar ambientes que projetam essa música de maneira mecânica é meu ofício. Como no filme de David Lynch, este último, surrealista, Club Silêncio de Mulholand Drive, é um paradoxo: não existe clube silencioso, e esse silêncio só pode ser interpretado por outras chaves. Dependo do silêncio e, ao mesmo tempo, todos os dias, preciso conjurá-lo: um clube de música representa a antítese deste, e também o seu limite: antítese, pois o silêncio é afastado pelas centenas de decibéis projetados pelas caixas de áudio; e aproximação do seu limite, porque a música não só é silêncio ordenado, mas também, em um clube, tem a função de calar pelo volume e pela intensidade. Essa tensão entre o limite do silêncio, a música, e sua antítese, o barulho ensurdecedor, é meu frágil abrigo.

Em um clube, a música precisa ser anatômica. Para cumprir a função de potencializar os estados de humor, deve ser captada por outros sentidos; tem de ser também tato e visão. A luz de um clube precisa saber traduzir em intensidades de cores as batidas sonoras; as frequências projetadas pelo subgrave precisam chegar até a pele. Em um clube, a música poderia e deveria ser apreciada por surdos.

Ao mesmo tempo, a música em um clube cria um silêncio metafórico e subjetivo. Sim, existem a festa e a celebração de vida, que dão razão de existência à música, mas também existem o triste torpor e a encenação falsa do imperativo da felicidade obrigatória e compartilhada através de meios tão sintéticos quanto esta, e as redes sociais estão aí como um exemplo quase palpável dessa expressão. Não existe miséria em rede social: no máximo, uma denúncia estéril desta.

Não importa estar feliz, e sim parecer feliz. O silêncio gera a reflexão, a reflexão cria ameaças para este delicado estado de felicidade, daí a razão de existência dessa música, em tão alto som em um clube, que chega a ser física, que precisa calar, porque não podemos refletir sobre o fato de que, bem, não temos lá muitas razões para expressar tamanha felicidade, o que não nos impede de estar felizes vez ou outra.

Em nenhum outro lugar o silêncio encontra tantas peles quanto em um clube: é ali, paradoxalmente, pela sua falta e pelo seu ordenamento, que o silêncio existe com mais intensidade e que pode ser apreciado de tantas maneiras, sejam estas objetivas ou subjetivas. É em um clube que o silêncio, estranhamente, tem sua expressão máxima. Finalmente faz sentido pra mim Lynch chamar o espaço onde se encontram os protagonistas de Mullholand Drive de Club Silêncio.

#11SilêncioCulturaSociedade

No hay banda

por Helena Cunha Di Ciero

O silêncio sempre é um palco para uma série de experiências. Vem antes do primeiro beijo, ou quando encontramos a pessoa amada. Pode ser a festa que for, o trânsito, o caos; basta olhar para aquele alguém e tudo se aquieta, ao fundo, e a gente só ouve a batida frenética do coração. Pronto. Mãos ao alto, estamos reféns. O mundo se cala para conceber aquela história que vai se iniciar. Talvez seja essa a impressão quando diante de uma tempestade, que mudará para sempre nossa vida.

O silêncio é tanto o começo como o fim de tudo. Mas comunica sempre. Caminha junto com a existência humana. O silêncio da sala de parto antes de um filho nascer é cortado por um grito de amor que se instala em nosso peito, nomeando aquele alguém dentro da gente eternamente.

Tem o silêncio do segredo, do não dito, aquilo que paira pelo ar e que de alguma forma se impõe e guia secretamente, sombreando a história de alguém. Este aprisiona de forma constante. São aqueles segredos familiares que sempre estão presentes, mesmo nunca revelados.

O silêncio pode indicar tanto um excesso de intimidade – estar só na presença do outro com tranquilidade; aqueles que estão tão à vontade a ponto de não precisar das palavras como forma de entretenimento – quanto escancarar sua falta: aqueles casais que nunca desejamos nos tornar em restaurantes, indiferentes à presença um do outro.

Tem também a calada da noite, na qual somos visitados por nossos medos, dúvidas e ansiedades. Existe um lugar no meu silêncio onde tudo pode acontecer; minha fantasia.

E tem também o silêncio que fica depois da morte de alguém.

Como experiências tão antagônicas podem ser tão semelhantes e ter em sua essência o mesmo barulho?

Depois que meu pai morreu, virou silêncio. E os objetos que ficaram gritam alto o nome dele quando os encontro. E hoje são meu pai, já que ele não mais diz nada.

Enquanto ele existia eram apenas acessórios. Uma agenda preta, óculos, luvas. Hoje são os que me contam a história do meu grande amigo perdido. Olho para eles, resignada, como quem olha para o que sobrou de alguém tão especial, esperando uma migalha daquela existência que era tão vital para mim. Respondem-me em sua imobilidade e, curiosamente, eu o escuto falar novamente.

Dentro de mim, a voz dele ecoa dia após dia. Lá eu o encontro, e então conversamos outra vez. São as lembranças que dançam em minha mente quando estou só, quieta, antes de dormir. Ou quando estou num impasse, diante de uma escolha: dou um passo para trás e ouço-o falar. Respeito essa voz, que agora mora em mim, na minha quietude. O único lugar em que ele continua vivo e, paradoxalmente, onde é imortal, pois vive comigo. É minha herança preciosa, com a qual dialogarei enquanto existir.

Engraçado isso da vida. As pessoas não precisam ser eternas para manter-se dentro de nós. Basta terem sido especiais para deixar um registro. Em psicanálise, a gente chama isso de objeto interiorizado. O trabalho do luto é justamente o de fazer com que se entenda que a pessoa perdida não mais existe na realidade.

No filme O escafandro e a borboleta, o personagem principal é vitima de um AVC e fica completamente paralisado, comunicando-se apenas com os olhos. Compara seu corpo a um escafandro e suas memórias, a borboletas – com as quais viaja a qualquer lugar. Esse objeto interno são essas borboletas. Eternas, coloridas, livres. Devemos nos movimentar a despeito da música que a vida canta.

Não é à toa que, em espanhol, a palavra luto é traduzida por duelo – uma vez que é uma luta aceitar que o mundo não mais abriga aquele objeto de amor. A realidade fica calada, mas, dentro de nós, o barulho pode ser infinito – basta saber se ouvir.

Saber se escutar, se respeitar, é um dom raro, especialmente no mundo de hoje, onde tudo é tão barulhento, rápido e rasteiro. Mas às vezes, se a gente se dá chance, esse contato se faz, puro e genuíno. Nessa hora, escuta-se a intuição e aprende-se a respeitar esse segredo que nosso inconsciente nos conta, tão poderoso mas que, ao mesmo tempo, pode passar despercebido.

Esse seria um silêncio mais contemplativo, que transita em nós com a liberdade de colher imagens, sensações, para compor nossas ideias e percepções. E, quando acertamos com nossa intuição, vem uma sensação de poder e de liberdade indescritível. Diria que é tipo mágica. Algo que nos aproxima da divindade. Esse seria o mesmo caminho da fé.

A fé no sentido não de dogma, ou de doutrina, mas de uma crença interna, que nos alinha a pensamentos de ordem espiritual, sensação rara de estar em contato com o universo como um todo. É nesse lugar que se encontra a paz. Já dizia Gilberto Gil: “Se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar só, tenho que apagar a luz, tenho que calar a voz, (…) ter a alma e o corpo nus”.

E como não falar de como meu silêncio impacta o outro? Marina Abramovich, na instalação The Artist is Present, fica dias calada, sentada, e se oferece ao encontro de estranhos. Nada é dito. Quem chega e a encara tem diversas reações: choram, gritam, tentam fazê-la rir, contam suas histórias… Encontram-se consigo a partir daquele ser imóvel, que os encara. E assim, sentindo-se contemplados por um olhar forte e silenciosamente marcante, têm reações espontâneas.

Basta um olhar contemplativo para que a gente se sinta existente. Um olhar puro, calmo, que recebe e aconchega. Esse também é o papel do analista, quando recebe a história de alguém em seu consultório. Os dois nunca sabem o que está por vir.

A surpresa só pode vir do silêncio. Assim como a tempestade, a saudade, o amor, a vida, a morte e a paz.

#11SilêncioArteArtes Visuais

Portfólio: Mariana Tassinari

por Mario Joia

A série Requadros faz a produção da artista paulistana Mariana Tassinari avançar em vetores poéticos bastante interessantes. Uma relação mais imbricada com a arquitetura é um desses ganhos. É bem evidente o quanto a serialização de formas e temas da artista é influenciada pelo lugar de onde partiu a criação de Tassinari: uma planta industrial no interior de São Paulo, típica da arquitetura paulista, tributária do brutalismo em âmbito internacional na área, a destacar estruturas, concreto, e soterrar quaisquer adornos e excessos.

O dado autobiográfico é forte na realização do conjunto. Mariana passou férias de infância e adolescência na região e, hoje, revê com o olhar de artista vestígios, volumes e edifícios que povoam seu repertório desde cedo. Com Requadros, une memória, construção, rigor conceitual e um olhar singular na sedimentação de sua obra, cujo corpo fica cada vez mais robusto.

Companhia Açucareira Vale do Rosário. A etiqueta em um desbotado amarelo grudada em um antigo pôster mal revela suas borradas inscrições, mas dá indícios da imagem que acaba se expandindo para o extracampo do atual registro. Retangular, lembra e reflete – já que existe uma fotografia do conjunto exibido em Requadros, na qual a artista insere suas formas geométricas, de modo digital – as intervenções de cor que Mariana Tassinari trabalhou e desenvolveu em variadas séries, desde 2005, de maneira discreta e consistente.

Requadros talvez seja o recorte de Tassinari mais próximo da arquitetura que assina, ela que, antes de optar pelo curso de artes plásticas, trilhou alguns anos entre as pranchetas, os croquis e as maquetes. Representa ainda um momento mais silencioso na produção da artista, quando demora mais na seleção das imagens a serem trabalhadas e exibidas. Tais recortes, contudo, mexidos com sutileza, evocam com mais força a especificidade desses registros.

Boa parte de Requadros foi captada na metalúrgica Morlan, em Orlândia, próximo à Ribeirão Preto, no interior paulista. A antiga terra roxa de lá, que turbinou a política café-com-leite da República brasileira, hoje é território para a massificada cultura de cana, com usinas ainda de grande poderio econômico. Nesses campos particulares, a planta fabril da Morlan, fundada pelo avô de Tassinari, tem uma história com traços peculiares. O projeto de Eduardo de Almeida, um dos principais nomes da escola paulista de arquitetura, ao destacar estruturas e eleger o concreto como um dos seus eixos, por que não, poéticos, une simplicidade e um caráter permeável a todo o conjunto da construção. Isso transparece nas fotografias de Tassinari, que evidentemente guarda uma perspectiva afetiva – passou na região muitas férias – a respeito da edificação e cuidadosamente retira extratos imagéticos que servem para estabelecer sua série.

O cinza das paredes, o verde dos blocos, o amarelo esmaecido dos pôsteres, o ocre das poltronas e, principalmente, o branco-gelo das lousas geram as relações cromáticas que vão guiar boa parte da sedução visual do conjunto. Combinados numa atmosfera melancólica, esses elementos enfatizam um momento mais fragilizado da escola paulista de arquitetura, tributária do brutalismo e do modernismo na área, a evidenciar a robustez dos materiais e os diálogos entre essa presença e os vazios criados nos prédios. É como se esse discurso da arquitetura brasileira, que teve dias felizes, de ressonância internacional, até a década de 1960, não obtivesse mais receptividade, perdesse interlocução e se desfizesse nas próprias formas.

Parece que o aspecto igualitário, concretamente trazido nos projetos de Almeida e outros grandes nomes, recuou e hoje, com honrosas exceções, sucumbiu a programas bem mais individualistas e cerrados ao público – é só citar o estilo neoclássico, os condomínios fechados e os shoppings/arranha-céus à beira de vias ‘marginais’ para atestarmos a derrocada do modelo. Assim, o esplendor de um movimento próprio e autoral na área parece hoje resistir apenas em memórias, tornando o caráter vestigial – tão destacado por teóricos da fotografia como Susan Sontag e François Soulages – empreendido por Tassinari uma atitude de resistência política. “Uma foto não é uma prova, mas um vestígio do objeto a ser fotografado […]; é, portanto, a articulação de dois enigmas, o do objeto e o do sujeito”, ressalta Soulages.

A geometria sensível criada pela artista vai se revelando aos poucos. Se em Requadros as intervenções de cor são menos presentes, o trabalho em cima dos registros, via sobreposições, reenquadramentos, cortes e referências ao extracampo, é ainda forte, mas não é visível a priori ao observador. Em dípticos, trípticos e polípticos feitos em 2008, um de seus anos mais produtivos, existia uma ressignificação de registros triviais que, pela edição e nova ordenação dela, avançavam rumo a questões da pintura, por exemplo. Em outras séries, Tassinari parecia enfatizar que não era apenas uma artista de pós-produção, colocando então, sobre imagens fotográficas, o traço de desenhos bastante delicados. Hoje, em Requadros, parece assimilar mais o que é dado, o que, diante do caos de informações e imagens, pode ser recolhido e reinterpretado, mas com uma visada menos ostensiva. Dialoga com a solidez do que mais nos ladeia, “corporificada” nos móveis tão sóbrios, que cria como uma proposta multidisciplinar, a dar conforto e estimular o olhar nos momentos mais ordinários, mas não menos potentes.

#11SilêncioCulturaLiteratura

Silêncio! Silêncio, por favor, silêncio!

por Caito Ortiz

Quem pede silêncio pressupõe autoridade. O silêncio como forma de educação sublime, como forma de disciplina, de elevação espiritual.

Ele achava impossível fazer silêncio: “o que fazer, nasci barulhento…” Falou alto desde sempre. E muito. Sua avó dizia para as amigas que ele morava atrás da cachoeira; por isso, o pobrezinho falava tão alto. Era feliz. Cresceu e descobriu o rock’n’roll. Tocou discos, fitas K-7, depois CDs, AIFFs, MP3s, tudo sempre muito alto. O barulho como forma máxima de expressão. Logo pôs as mãos em uma guitarra, que aprendeu a tocar e tocou muito. E alto. Bem alto. Alto, alto, alto.

Nunca ouviu John Cage. Preferia J.J. Cale. Punk rock sempre, sempre em festa e sempre cercado de alegria. Um homem feliz. A felicidade é barulhenta.

O volume da vida aumentou, o trabalho aumentou, a família aumentou, o dinheiro aumentou, as preocupações aumentaram, as responsabilidades, os acertos, os erros, a angústias, as necessidades, os desejos, as decepções, as escolhas erradas. Tudo era excesso, a forma máxima de barulho.

“Silêncio! Silêncio, por favor. Silêncio!”

Um dia acordou diferente. No começo, não percebeu o que estava errado. Sentia-se perdido, como se estivesse vazio por dentro, como se sua natureza o tivesse abandonado. Estava envolto em silêncio. Um silêncio puro, denso, profundo. No fundo da sua alma, sabia que o silêncio um dia o alcançaria.

Em silêncio, a sua essência se fora.

E agora, José?

O silêncio é vazio, é ausência. Com o silêncio veio o medo. Medo de ficar sozinho, de viver sozinho, de morrer sozinho. Só o barulho lhe dava forças. Em silêncio, descobriu-se fraco, como um Sansão às avessas.

Conheceu a tristeza profunda. Chorou muito, sozinho, em silêncio.

A ausência do barulho lhe doía na alma. Uma saudade profunda, uma tristeza que lhe esmagava o peito. Em silêncio, não conseguia mais fazer amor.

Como poderia ser que agora fosse obrigado a viver assim?

Tentou de todas as formas trazer o barulho de volta, mas não conseguiu. Nunca se sentiu tão impotente perante a vida. Descobriu sentimentos que não conhecia e entendeu que sua essência havia se perdido para sempre. Resignado, seguiu em silêncio. Entendeu que o silêncio é uma gruta escura. Aprendeu a sentir prazer em explorá-la, mas essa não era sua essência.

Nunca conseguiu ser verdadeiramente feliz em silêncio.

Mas existe uma esperança: morrer em silêncio deve ser o melhor tipo de morte. Sem agonia, sem barulho.

“Silêncio! Silêncio, por favor. Silêncio!”

#11SilêncioCulturaLiteratura

Je vais te dire un secret

por Hermés Galvão

Vou te falar ao pé do ouvido para prestar um pouco de atenção no que eles dizem. Olhos nos olhos e orelhas em pé, mas nada de ficar cabisbaixo ao perceber que falta sentido no que se fala – por mais que se escute bem. Logo cedo você vai entender que não há (e não cabe) compreender. Vou te pedir – e se precisar, repetir – para não desistir deles por isso, mas também não invista: apenas os mantenha à vista. Porque pode ser divertida a conversa quando vão a fundo.

Só não espere que quebrem a cara ao mergulhar no raso de suas intenções, pois todos ao redor flutuam na insuportável leveza de ser o que são por não saberem ser de outro jeito. Não vão notar. Nem anotar. Simplesmente vão esquecer, deixar passar. Ficam as imagens. A memória é visual e, aparentemente, são todos muito inteligentes aos olhos deles, que acreditam por não conseguir sentir. Mas não são pesados por isso, e boiam porque não sabem nadar. E, te digo, nem querem aprender. Para não ir longe demais, percebe? Vivem à beira, contentam-se molhando apenas os pés. A cabeça vive à seca, de onde saem histórias ao vento que eles chamam de movimento. Palavras, apenas.

Mas desejam eles, com a pureza dos estagiários, deixar com elas uma marca, para que no futuro outros voltem atrás e os reverenciem como tais, intelectuais. Seria naïf se não se fosse tão, como dizer, leitmotif. No calor da vernissage e no frio das salas de reunião, galeristas da boca pra fora e publicitários de última hora trazem à tona ideias que, como numa batalha naval de papelaria, cruzam letras e figuras em busca de uma mira certeira. Mas é água o que vem de suas direções. Canhão apontado para o nada, a disparar bombas de efeito moral para alvos fáceis que não resistem a uma prosa pomposa.

Falta assunto para preencher uma existência inteira. Monólogos monotemáticos, cada um por si falando dos outros. Por mais tediosos que possam ser, hoje fico com os monossilábicos – talvez seja puro mistério e não vazio o que pensam em silêncio. Talvez entendam que frases precisam fazer sentido como a vida, que formá-las sem eira não é como jogar conversa fora, mas papo furado. Estou com eles e não abro: sem um pio. Porque perder a chance de ficar calado é o meu novo suicídio moral.

#11SilêncioCulturaLiteratura

O país dos muitos hinos

por Juliana Cunha

Na cozinha, um radinho inofensivo é a voz do Estado dentro de sua própria casa. Ele toca notícias sobre o novo satélite lançado ao espaço e músicas que enaltecem a cumplicidade familiar e a amizade entre colegas de trabalho. O volume pode ser reduzido, mas não dá para desligar o aparelho. E você só queria fritar um ovo.

“Minha esposa é aquela que me ajuda a transmitir o espírito revolucionário para nossos filhos” – diz a canção, que se pretende de amor, mas cuja grandiosidade esmaga esses pequenos sentimentos que um sujeito possa ter por sua mulher, como uma vontade súbita de abraçá-la enquanto ela lava a louça.

Estamos em Pyongyang, na Coreia do Norte, lar do Grande e do Querido Líder. A única dinastia comunista da história. O país mais fechado do mundo. Um povo que baniu o silêncio de seu território a machadadas. Ficar na sua é difícil. Em algum lugar sempre está tocando uma música com cara de hino nacional. Todas, absolutamente todas as músicas têm cara de hino nacional. E, como todos sabem cantá-las, a impressão é de um hasteamento de bandeira que não acaba nunca. Mais e mais alto com a bandeira da DPRK, chegaremos até a lua de modo mais eficiente que nossos foguetes.

Convivo bem com a ideia de usar as mesmas roupas e o mesmo xampu que as outras pessoas. Convivo bem com a ideia de ver padronizados minha casa e o iogurte que tomo pela manhã. Nada disso é muito diferente do que vivemos no ocidente, só a embalagem. Mas ouvirmos sempre, todos, as mesmas músicas, aí já é demais. Pense no quanto as canções te ajudaram, lá no ginásio, a delimitar o que era o outro e o que era você. Pense no quão abjeto é o gosto musical das outras pessoas, do seu próprio irmão. Até seu melhor amigo – uma pessoa sensata em outros aspectos da vida – ouve Coldplay. Um rádio doméstico que não pode ser desligado. Um repertório musical uniforme e limitado, que unifica gerações e diferenças individuais numa ensurdecedora falta de opção. Essas são algumas lembranças complicadas que trago das férias que passei na Coreia do Norte.

#11SilêncioCulturaLiteratura

O pior mudo é o que não quer falar

por Léo Coutinho

Não há virtude no silêncio. Os que pregam o calar no lugar do falar o fazem porque se envergonham do que teriam ou não a dizer. Quem teme a palavra teme a verdade. Quem teme o debate teme a presença e a luz. O silêncio é o vácuo, é a treva, atraente e perfeito como valhacouto da ignorância, da antiética, da covardia.

O silêncio é a burca da alma. E a palavra, sua nudez. A beleza dos corpos e das opiniões está na diferença: quanto mais ampla e diversa, melhor. Quão variadas são as formas da beleza física, e quão parecidas com o espírito das pessoas? Quanto mais inocente e despido, mais bonito e verdadeiro é o ser humano. A nudez das crianças, dos povos primitivos, dos miseráveis é sempre bela e comovente. Ridículo e abjeto só pode ser o general sem farda, o acadêmico sem fardão, o padre sem batina, o senador sem casaca e, sobretudo, o rei sem manto.

Qualquer opinião é melhor do que o silêncio. Tinha toda razão Martin Luther King quando falou que “o que preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. O verbo está no tempo certo, porque, ao contrário do homem, a palavra é viva. O silêncio, não. Pode até ser lembrado, mas sempre como um morto.

As razões para a boca calada são muitas. Há quem cale por medo, há quem cale por dinheiro, há quem cale por interesse, conveniência, inconsciência. E há quem cale por amizade, solidariedade, compaixão; por amor há quem se cale – é mais raro, porém. Por virtude, de modo geral, só se cala sob tortura.

O Homem afirma a própria existência quando rompe em um berro, pondo fim à paz uterina. Feito isso, é orientado a calar novamente, ser um bom menino para a própria tranquilidade e para o conforto dos que o cercam. Assim, atravessamos a vida, associando o silêncio à paz, sem perceber que esta só será verdadeira quando todos puderem dizer o que bem entenderem. O pior mudo é o que não quer falar.

#11SilêncioCulturaSociedade

Trilha sonora cósmica

por Leticia Lima

As batalhas travadas no espaço sideral, na trilogia original de Guerra nas Estrelas, formaram a trilha sonora de minha infância. Quando fecho os olhos, nitidamente vejo – e ouço – a nave Millennium Falcon entrando em hyperdrive, com um apito de chaleira escaldante, transformando as estrelas num borrão distante. Perturba-me, então, acreditar que o espaço é um silêncio absoluto, pois o som é produzido pela vibração de átomos no ar e – essa é a chave fundamental da coisa – não há ar no espaço.

Ok, ok, você pode estar pensando. Não há ar, mas o espaço não é vazio; está cheio de coisas, gases, líquidos e sólidos. Por que as ondas sonoras não podem passar por esses materiais e vibrar seus átomos, produzindo som no espaço?

A verdade é que até poderiam, mas nós, meros humanos, jamais iríamos escutá-los, pois as nuvens de gás no espaço são bem menos densas que a atmosfera do planeta Terra. Ou seja, têm menos átomos por metro cúbico – e mais espaço entre os átomos. Imagine-se no espaço, tentando ouvir uma onda sonora que se aproxima. A onda afetaria poucos átomos a cada segundo, e nossos ouvidos não teriam a sensibilidade para captar algo tão disperso.

Se o gás está fora de cogitação, o que dizer dos sólidos? Há muitos sólidos no espaço: luas, asteroides, meteoroides, e assim por diante. Mas, veja bem, o som até poderia se propagar por dentro destes sólidos, mas não entre um sólido e outro, porque não há matéria suficiente entre eles. Existe, em outras palavras, apenas um vácuo, e, infelizmente, as ondas sonoras não podem se propagar no vácuo. Por isso, nós, meros humanos, não conseguimos ouvir nada no espaço. Aos nossos ouvidos, o espaço representa o silêncio absoluto. Um pensamento que me deixa levemente inquieta. Afinal, o som é a nossa ferramenta primária de comunicação. Se não posso expressar meus pensamentos através de sons para os outros, perco o sentido da minha existência como animal social. Eu anseio – preciso – ser ouvida para saber quem sou. Como disse Jean-Jacques Rousseau, “O silêncio absoluto conduz à tristeza. É a imagem da morte.”

Mas não nos desesperemos. Se olharmos mais atentos para o espaço sideral, veremos que existem fenômenos que oferecem densidade de matéria suficiente para comportar ondas sonoras. Um bom exemplo: uma nebulosa – uma imensa nuvem composta de poeira, hidrogênio, hélio e outros gases. Esse conjunto oferece, frequentemente, condições ideais para formação de massas pesadas capazes de atrair mais massa. Eventualmente, essas serão pesadas o suficiente para formar estrelas. Como o processo de formação estrelar é muito violento, os restos de materiais lançados ao espaço por sua ocasião formarão planetas e outros sistemas planetários.

Mas mesmo com tanta atividade dentro de uma nebulosa, suas partículas de gás ou poeira ainda se encontram no vácuo do espaço. Nossos ouvidos ainda não detectariam ondas sonoras. Porém, cientistas intrépidos descobriram que, mesmo que ondas sonoras não possam se propagar no espaço, as eletromagnéticas podem, e nós podemos “ouvi-las”.

Os telescópios mais poderosos do planeta contêm aparelhos chamados espectrógrafos, que registram as ondas eletromagnéticas. O astrônomo Paul Francis, da Universidade Nacional da Austrália, converteu alguns destes registros em som, reduzindo sua frequência em 1,75 trilhões de vezes, e assim os tornando audíveis aos humanos. Deste modo, o Dr. Francis gravou uma sinfonia de nebulosas, cometas, quasares, e até o nosso sol. Suas gravações estão disponíveis no site da universidade.

Em nada se parecem com os efeitos especiais de Guerra nas Estrelas. Parecem mais uma cruza de meditação tibetana com um carro viajando a toda velocidade, com suas janelas entreabertas. Mas pouco me importa o tipo de som que produzem. Fico radiante com o fato de conseguirmos “ouvir” um som qualquer. Somos gerados no útero, onde, durante nove meses, ouvimos a batida do coração materno, a pulsação do sangue no cordão umbilical.

Nosso primeiro contato, ainda no útero, com o mundo externo é através do som.

Para a humanidade não pode haver silêncio absoluto. Pode haver apenas diferentes maneiras de “ouvir” o som.

#11SilêncioCulturaLiteratura

O único silêncio

por Eduardo Andrade de Carvalho

31 de dezembro de 2011, Rio de Janeiro. Acordei com um SMS de um amigo em que não acreditei: “O Daniel Piza morreu”. Do celular, entrei no site do Estadão. Era verdade. Aos 41 anos, aparentemente muito saudável, desde os 26 anos Piza publicava semanalmente sua coluna Sinopse (primeiro na Gazeta Mercantil, depois no Estadão), e era assunto constante de nossas conversas. Mais novos, com quinze, dezesseis anos, começamos a ler sua coluna e descobrimos nela um mundo novo de livros, filmes, músicas e ideias, que iam de Henry Adams aos debates mais atuais sobre evolucionismo, de Flaubert a Pelé, de Hopper a Hitchcock. E – especialmente – havia em seu texto, na sua postura com relação ao mundo, uma curiosidade infinita, um interesse sincero por tudo que fosse bom, bonito, inteligente.

Uma postura muito parecida com a de Paulo Francis e de Cyril Connolly, aliás. Daniel Piza escreveu uma pequena biografia de Francis, de quem foi amigo e que foi provavelmente sua principal influência. E sobre The Unquiet Grave, de Cyril Connelly, publicou em 2007, no seu blog: “Li nesses dias um livro que, de tanto ouvir falar a respeito, soava algo lendário. E de fato é”. Seus exemplares de O afeto que se encerra – uma espécie de autobiografia de Paulo Francis – e de The Unquiet Grave estão grifados e anotados em quase todas as páginas. Fotografamos algumas passagens de suas anotações, que apresentamos nas páginas a seguir. São maravilhosas.

Sobre a morte, uma vez Daniel Piza escreveu: “Priva-nos da companhia dos outros; sempre, para nós, só se representa na morte alheia. Por isso choramos, entramos em parafuso, perdemos a referência quando noticiamos de sua ocorrência. Mas ela não existe para nós – porque não podemos concebê-la, muito menos qualificá-la. Ela não tem predicado. É o único silêncio”. Que as próximas páginas – de Francis e Connolly, anotadas nos livros do Daniel – sirvam então, senão para quebrar esse silêncio, pelo menos para nos consolar dele.

#11SilêncioArteArtes Visuais

White noise

por Silas Martí

O silêncio é branco. Do inglês white noise, é quando a imagem da televisão desaparece, e o que sobra é chuvisco indecifrável. O silêncio está atrás do barulho, filtrada a sujeira dos pontos negros que afogam a transmissão. Lá atrás está a febre, uma piscina de leite tão cega e densa quanto os lampejos brancos que chegam à superfície no meio da tempestade. Uma vez eu sonhei com soldados albinos se digladiando ali, elétricos e quietos, como se o silêncio fosse um estado constante de tensão entre pontos opostos que vez ou outra se fundem, feitos da mesma coisa. Se branco é todas as cores, o silêncio é todos os sons reduzidos ao ponto de partida primordial, um nada sacrossanto. Véu ou white noise.

Não existe som na busca pela baleia de Ahab. É uma mancha fúnebre que desliza sem abalos no fundo do mar. Ela oprime pelo destino que carrega e pelo contraste de seu corpo alvo contra a escuridão da água. Que sons, aliás, fazem as orcas assassinas? Quantas testemunhas sobraram, com um só pulmão e meio coração, para contar a história? O mar amortece todo ruído, mas o branco se adensa na forma de obsessão, nos cortes secos, na distância entre realidade e ficção. É a cor de Moby Dick e dos lençóis da cama, que mais lembra um caixão.

John Cage queria isso quando encheu seus quatro minutos e 33 segundos de silêncio com o ruído aleatório de uma plateia diante de um piano mudo. Desde que li sobre isso, penso no incômodo suspenso na sala de música como a enorme baleia de Herman Melville. É como se um aquário tomasse o lugar dos ouvintes e, dentro dele, uma baleia branca gigantesca dançasse em silêncio. Sem graça, porque a ausência de som é sepulcral.

Esse silêncio branco e maciço opera como espelho. Escrevo esse texto no avião, sobrevoando o coração da África. Tenho uma febre que não consigo medir a 36 mil pés de altitude, e fecho os olhos desconsolado. Não há escuridão. Dentro das pálpebras parece estar gravada – ou queimada – a intensidade do sol árabe que resplandece nos pátios de pedra e areia, uma cegueira só, de um branco só, onde não cabe o som. Nunca.

Esse espelho é como a paz de ver pela primeira vez um Maliévitch, mas, mais ainda, um Robert Morris. Estou falando dessas telas brancas, só brancas, que ele afixava na parede com prendedores metálicos. Eram a chave, o elo com a realidade. Morris rebate a sala vazia numa composição sem composição, num ato extremo de economia, contenção e silêncio. É como olhar nos próprios olhos vermelhos, fundo no espelho, depois de uma crise de choro. Eu disse paz? Talvez, mas não sem certa angústia. É o medo do vazio que devolve o olhar ali, uma afronta às expectativas. Não, não há nada para ver, talvez só a beleza crua dos prendedores metálicos, pecinhas que devolvem o chão.

Mas o silêncio prescinde de chão, terra firme ou coisa parecida. Walt Whitman, lá pelas tantas em suas Folhas de relva, fala dos homens nadando no lago. Tudo para no verso em que fala das barrigas dos homens, barrigas brancas estufadas sob o sol. É a pausa que mergulha as palavras de Whitman no mesmo silêncio surdo de James Joyce e os meninos, “uma miscelânea de nudez molhada”, que se atacam com toalhas – brancas – e “inchadas de água”, saindo de um banho de mar em Retrato do artista quando jovem.

Juventude carrega certa brancura. Dentes de leite, pele virgem. Eu penso na toalha encharcada, um estado em potencial, tal qual uma nuvem carregada. Sem trovão, não há tempestade. É a nudez muda do silêncio. Outro artista quando jovem também fez de suas obras uma reflexão imaculada e muda. Ascânio Maria Martins Monteiro, como lembra o crítico Paulo Herkenhoff, foi buscar nos becos da pequena Fão, onde passou a infância em Portugal, as formas de suas primeiras esculturas, todas brancas. Mais tarde, sua obra se tornaria um embate entre o construtivismo mais rígido e a fluidez das formas no espaço, um esqueleto ou espinha dorsal que não perde dinamismo no espaço. É como se a orca fosse fisgada, morta e desnudada em silêncio, exibindo entranhas só brancas, ou pérolas insuspeitadas.

#12LiberdadeCulturaSociedade

Culpa, essa cretina

por Valentina Castello Branco

A culpa é uma cretina. Poderia dizer que não poupa ninguém, mas seria injúria. De tão torpe, libera apenas os de mau-caráter, psicopatas e deputados. Sobra para as boas almas, como nós. Se a humanidade fosse de fato organizada, aproveitaria a onda das manifestações para se revoltar contra a culpa. Alguém precisa acabar com a ditadura do remorso.

Ardiloso que é, esse sentimento, com múltiplas áreas de atuação, chega quando menos se espera. E ninguém consegue vencê-lo. Você pode tentar a terapia, como recomenda a maioria. Mas sabemos de antemão que, depois de incontáveis sessões, o analista vai simplesmente culpar seus pais.

Uma amiga, por exemplo, trabalhava como um camelo e finalmente se libertou do capataz, que, claro, era ela mesma. Sua alforria foi festejada com entusiasmo. Mal sabia, porém, que o preço da liberdade costuma ser uma dose, maior ou menor, de culpa. Recentemente, admitiu envergonhada que não se sentia à vontade para fazer nada prazeroso durante o horário comercial. Primeiro, tratou de substituir a aula de ioga do meio-dia pela das 9h, mesmo preferindo a primeira professora. Era difícil se concentrar na postura enquanto pensava em cada pessoa que batia o cartão para almoçar no refeitório onde ela deixara 10% de sua alma.

Seus dias passaram a ser preenchidos com idas ao banco, conversas sobre imposto de renda, discussões sobre encanamento e o que mais de tedioso pudesse encontrar. Livros? Só se fossem bem chatos. Filmes? Só os iranianos. Um caso patológico, diriam os pessimistas. Infelizmente, é comum.

Se as escolhas andam de mãos dadas com as renúncias, libertar-se de uma situação, ou de alguém, costuma funcionar da mesma forma para todos. Por melhor e inevitável que seja a troca que fazemos, o que deixamos para trás continua nos afetando.

No seu restaurante preferido, por exemplo. O burburinho não deixa dúvidas. Gordos e magros sofrem pelos exageros cometidos nas refeições. Os comensais mergulham em cestinhas de pães, se lambuzam de massa e terminam entregues à mousse de chocolate. Em seguida, choramingam arrependidos, como se uma entidade esganada os tivesse possuído sem possibilidade de reação.

A culpa também tem o hábito de se aprochegar depois de mentiras inocentes. Você evita o amigo chato. Ele então o persegue: telefone, e-mail e facebook. Sem ter para onde correr, você inventa uma desculpa. Explica que está com escarlatina, ou qualquer doença erradicada, e que não poderá encontrá-lo naquela noite. A lei das probabilidades diz que ele estará no mesmo show que você. Derrubado por sua consciência, será impossível aproveitar a banda e, na hora de escovar os dentes, você evitará o espelho, arrependido. Imensa injustiça. Sua atitude foi um ato de misericórdia. Somente o chato que passa por tamanha rejeição tem a chance de entender sua situação e finalmente parar de amolar a sociedade. Concluímos, portanto, que você agiu como um herói.

Se as amizades são um campo fértil para a culpa, no amor a perspectiva é ainda mais delicada. Depois da estação da paixão, a intimidade traz consigo hábitos hediondos. O pijama se torna o uniforme, as declarações românticas desaparecem e transar de lado se torna a regra. É compreensível, portanto, que eventualmente homens e mulheres se deixem seduzir pela pessoa interessante mais próxima. Meia hora de flerte no café, porém, é suficiente para que alguém com valores rigorosos se sinta a pior pessoa a caminhar pelo planeta. Claro que a traição é uma opção cafona, mas esse arrebatamento inicial por terceiros pode salvar um casamento. Basta chegar em casa, fingir que um é o outro, jogar seu marido no tapete de vaca e materializar suas fantasias. Para arrematar, ateie fogo nos pijamas destruidores de libido e evite um segundo encontro com o galanteador.

A solução talvez seja esta, apenas ficar trocando de culpas enquanto a paz não chega. Ou uma manifestação nas ruas. Ou um abaixo-assinado, sei lá.

#12LiberdadeArteArtes Visuais

Portfólio: Marcelo Gandhi

por Gabriel Brito Nunes

Série Lugares Ingovernáveis (2010 – 2012)

Marcelo Gandhi dá à sua linguagem artística um papel. Literalmente. Superfície por excelência de seu desenho, o papel ganha status de pele sobre a qual Gandhi traça suas experiências, no mundo e em sua produção artística. Suas formas abstratas em cadeia, à primeira vista constituintes de uma só figura, não representam uma realidade vivida a priori, nem estabelecem um programa a seguir-se. A linha de tinta nanquim costura ao mesmo tempo que abre sulcos nos painéis de diferentes dimensões criados por Gandhi, esboçando a possibilidade de diálogo entre sua obra e o observador. A pele, assim, deixa de ser fronteira para se tornar o locus onde desejos e signos se articulam em plena corporeidade.

Do erotismo de seus primeiros desenhos, que o fizeram recipiente da bolsa Rumos Artes Visuais Itaú Cultural em 2006, à hibridez das técnicas que vem adotando, é o aspecto intimista de seu traço que tece o desenvolvimento de sua obra. Com a mudança do artista para São Paulo, onde reside há cinco anos, o corpo particularizado que servia de base para sua obra entra em conflito, com a dissolução do espaço privado no público, na série Sem Estrutura, de 2008. A cartografia do espaço urbano, onde tudo vira homogêneo e superexposto, invade o aspecto lúdico de seu desenho e gera um novo entendimento do indivíduo perante a monumentalidade da arquitetura metropolitana.

Busca aparente de retorno a um universo onírico e a um ideologismo perdido – mas, também, constatação do caráter efêmero das coisas –, surge em 2010 a série intitulada Ukiyoye Night Shot. A partir da identificação da perspectiva sem gravidade de seu desenho com a suspensão inerente ao estilo de pintura japonesa do século XVIII, Gandhi apropria-se da designação Ukiyo-e, “retratos do mundo flutuante”, para submeter seu traço a uma nova experiência. Composições em nanquim prateado sobre papel Fabriano preto, os exemplares dessa série fazem referência à história da arte e à própria materialidade da superfície de seu trabalho. Gandhi destaca, dessa forma, o tempo do evento não-cronológico suscitado por seu desenho.

Tempo suspenso no qual o observador é submergido quando em contato com a obra de Gandhi. Essa nunca se faz na memória de quem a observa, mas no acontecimento que se constitui quando nos encontramos frente à ela. Uma relação de surpresa renovada a cada olhar subsequente, sustentada na memória que se encontra na própria materialidade do papel. O desenho convida o espectador a vestir-se na projeção de seus próprios desejos sobre o universo contingente do trabalho artístico de Gandhi. Influência direta da prática de performance, que este desenvolve paralelamente, a performatividade de sua linha, que se afirma enquanto é traçada, convida nossa visão a testemunhar o processo do caminho – tanto do olho como o da linha – sobre o papel.

Convite do olhar a ser testemunha e dar origem a novos sentidos, quando Gandhi se utiliza de objetos encontrados ou culturalmente estabelecidos, como no caso de Pinball, parte integrante da exposição Jogos de Guerra, de 2011, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro. Em cada um dos dez joguetes, Gandhi substitui a cartela de pontuação por seu desenho, subvertendo os objetivos do jogo e tornando sem limites a suspensão do tempo e do espaço em sua obra. O alvo agora são as formas criadas por seu traço e o objetivo, o maior tempo possível que se consegue deixar a bola percorrer o caminho sobre elas e por elas delimitado.

Apropriações outras de diversas fontes permeiam a mais recente série de desenhos de Gandhi, 3×4: símbolos da cultura pop, códigos de barra, palavras, números, campos de cores etc. Dispostas de tal maneira em relação à linguagem do desenho, essas referências não negam que tudo já foi produzido, mediado ou processado de outra forma por outros, outro autor, e, ao mesmo tempo, tomam uma posição crítica perante o material cultural existente. Num desses painéis, desponta a seguinte afirmação: “o performer é seu próprio signo”. Ela parece nos lembrar que, independentemente daquele que traça sua linha de experiência no mundo (da arte), seja ele o autor ou o observador, ambos são a(u)tores de suas respectivas histórias.

série Ukiyoye Night Shot

#12LiberdadeCulturaLiteratura

Para o raio que o parta

por Vanessa Agricola

Vou te contar, em menos de dois meses a minha vagina vai dilatar dez centímetros até que a cabeça do meu filho apareça e todo o seu corpo saia por ela. Menos de dois meses. Dez centímetros.

A saga começa dez horas antes. Quando uma cólica, maldita, me dá vontade de fazer cocô na calça. Se Deus for justo, devo estar em casa, e vai dar tempo de correr pro banheiro, pra minha privada, e ficar lá, até a dor (e o que mais) passar.

Dali a pouco, a tal cólica volta. E eu, já sem nadinha a colocar pra fora, vou entender que não se trata de uma dor de barriga, que não comi nenhuma comida estragada, que finalmente chegou a hora. “Contrações regulares, com duração curta, dores lombares, vontade de evacuar”. São as descrições do início do trabalho de parto que aprendi no curso. Como lidar: tentar dormir, se for noite. Dar um passeio (se for a She-Ra). Escrever uma carta para o bebê sobre a emoção da chegada (se for completamente louca).

Se me conheço, vou chorar. Não tanto pela dor, mas pela euforia. Vou ligar pro meu marido, ele vai ligar pra doula, os dois vão chegar mas nenhum dos dois me deixa mais calma. Meu filho vai nascer, pomba. Vou ter que me controlar. Até que o tempo entre uma contração e outra não passe de dez minutos é melhor ficar em casa, quieta. Pode durar horas, não sei se vou conseguir. Talvez eu me apresse: Liga pro doutor David, liga pro doutor David! Pra ver se o doutor David libera a ida pro Einstein.

No carro, um puta trânsito. Chegando no Einstein, um puta mau-humor. Bom dia, mamãe, esse neném vai nascer hoje? Quem responde por mim é meu marido, André, que não tem mau-humor nunca. Tá nascendo. Consegue uma LDR pra ela?

LDR é a sigla de Labor Delivery Room, uma sala de parto com banheira para onde as raras grávidas que decidem tentar um parto normal vão. Só tem cinco salas dessas no Einstein (não parece muito, mas considerando a taxa de 79% de cesáreas do hospital é bastante coisa), e como um parto normal não tem data prevista, não tem como reservar uma LDR. O que se sabe, com certeza absoluta, é que as contrações passadas em água quente ficam mais fáceis de suportar. Por isso eu quero tanto a banheira. E por sorte, consigo uma.

Em poucos minutos estou numa água quentinha. Marina, a doula, massageia a minha lombar, e por uns instantes sinto que vai ser tudo bem mais fácil do que eu imaginava. Mas não. Vem uma nova contração, típica da fase ativa do parto, com “contrações mais próximas, de mais ou menos um minuto, muito mais fortes do que a fase anterior”. Como lidar: apoio. Relaxamento. Movimentar o corpo.

Sabe aquela bola de ginástica, a bola suíça? Marina me ajuda a sentar nessa bola e rebolar. Achava constrangedor fazer os movimentos no curso, mas não é que funciona? Eu rebolo na bola e a dor alivia.

André me incentiva, diz que estou tirando de letra, só que a calmaria termina logo, a bola me deixa tonta e chega uma nova fase mais intensa, terceira e última, chamada de transição. “Contrações de mais de um minuto, muita dor, náuseas, tremores, irritação”. Como lidar: mais banheira. Mais massagens. Entrega.

Xingo o doutor David que até agora nada. Uma enfermeira avisa que ele jájá chega e mede a atual dilatação da minha vagina: Sete centímetros. Jajá essa neném sai. Percebo que ela nem sabe que eu vou parir um menino, mas que se foda. Sinto um calor enorme na barriga, lembro que dos oito aos dez centímetros o bicho pega, sinto medo, pânico. Vomito.

Marina me limpa. André me faz carinho. Rejeito os dois. Começo a considerar as dicas de uma parteira badauê da Vila Madalena, que dizia que as vogais do nosso nome tem poder de cura. Ao doer muito, grite as vogais do seu nome, Vanessa, aaaaaa, eeeeeee. Tenho vontade de morrer.

Doutor David entra pela porta. Nem consigo reclamar do atraso. Me anestesia, me anestesia! Ele pergunta: Tem certeza? E eu: Absoluta, esquece a carta!

Pra você entender, eu escrevi uma carta pedindo que o anestesista não me anestesiasse em hipótese alguma. Eu não queria uma anestesia, queria ir até o fim, entrar no transe da Partolândia, quando as contrações são tão fortes, e a dor é tão aguda, que a grávida entra em um estado de demência, ou de não consciência, como se tivesse tomado uma droga.

Em um livro, Quando o corpo consente, li que a dor que uma mulher sente no parto é a mesma que todas as dores que ela sentiu na vida, considerando todas as dores da vida somadas, e que a partir daí, ela se livra de todas elas. Quiçá tenham sido palavras bonitas, que a autora usou só para enfeitar, acontece que essas palavras não saíram mais da minha cabeça. Eu queria gritar, sem anestesia, sem episiotomia, sem nada! Queria sentir todas as dores do mundo, todas as dores que já senti na vida. Queria me livrar delas! Mas quer saber? (Coisa que eu só soube agora). Tanto faz o jeito que meu filho vai nascer. Eu posso ter uma cesárea, posso ter um parto normal, nada é certo. Só que o meu filho vai nascer de qualquer jeito. Com ou sem anestesia eu vou sentir ele sair do meu corpo, vou sentir ele no meu colo, e ele vai olhar pra mim, parecido comigo, ou com o pai que eu amo tanto… e aí, gente, aí ferrou. Eu vou sentir aquele amor, como se fosse um raio. Pum! E é o raio que me liberta. De tudo.

#12LiberdadeCulturaLiteratura

Tema livre

por Hermés Galvão

Minha liberdade impropriamente dita se perdeu no meio do discurso. A caminho do real, cruzou o virtual e parou no tempo. Eu, perdido no espaço, já não dava a mínima para ela, que já não era aquela. Assim, deixei que ficasse para trás a boa ideia que tinha sobre o assunto. Cansado de procurá-la, sufocado por sua aparência forjada, me dei por vencido e dormi o sono dos presos – reticente e perturbado.

Tiraram de mim o que era nato e inexorável, ou talvez tenha sido eu que abri mão de ser livre por medo do acaso. Sei ao certo que já estive solto uma vez e era alto o que via lá de cima, maior que o próprio mundo em si. Me restam dúvidas se fiz a escolha certa, ao mesmo tempo não sei se tive outra opção.

O que tenho agora, ou o que sobrou por ora, é uma liberdade genérica – talvez placebo. É de efeito moral o que nos permitiram viver, não é sensação por assim dizer, por bem sentir. Tão pouco tudo isso, quase nada, é um ir e vir cheio de amarras sob os olhos atentos de quem eu sequer dei liberdade para vigiar.

Estamos acobertados por nuvens que pairam baixas sobre as cabeças, que, se não seguem a mesma sentença, hão de rolar ladeira abaixo, pedra sobre pedra, de sapato em sapato. Vingo-me deles acreditando que, sim, o que tenho é o que posso ser: livre até a contracapa, até que traduzam minha biografia autorizada, afinal permito que vejam minhas fotos, que me sigam online, que saibam onde estou, a quantos metros de quem, há quantos minutos offline e, claro, com quem ando e de quem digo o que penso.

A mesma liberdade que me deram para falar e escrever como quem finge não querer nada foi estendida a todos, para alívio seu. Ou então de que outra maneira teríamos atores ruins, curadores mirins, jornalistas chinfrins, militantes e afins? Isso sim é ser livre, sempre livre. Absorvente.

Minha liberdade só pode ser aquela que larguei no passado: seria pesado demais seguir adiante com ela, dada a sua grandiosidade original, que só crianças e loucos suportam ou tem permissão de carregar. A de agora não é exatamente leve, no máximo leviana. E cheia de moral – em nome dos bons costumes. Os meus são da pior cepa, tão libertinos que tornaram-se vícios. O maior deles? Experimentar no limite do equívoco, à beira do ridículo.

Minha liberdade é tão amoral que só engorda e faz crescer os olhos de quem vê. Mas o tema é livre, não se prendam por mim.

#12LiberdadeCulturaLiteratura

A vez do peru

por Juliana Cunha

Muito se falou sobre uma hipotética perua chateadíssima com a PEC das empregadas. Pouco ou nada se falou a respeito do peru, seu marido. Em casa onde a mulher se sente ultrajada em ter de esquentar o próprio jantar, o homem não deve limpar sequer a própria bunda.

A PEC das empregadas revelou duas obviedades. A primeira é que nosso espírito escravocrata permanece intacto a ponto de uma lei que simplesmente iguala o trabalhador doméstico aos demais gerar comoção. A segunda é que, na falta de um escravo externo, o trabalho doméstico tende a cair no colo da perua, nunca de seu querido e bem assado peru.

Nenhuma surpresa. Remunerado ou não, o trabalho de casa sempre foi coisa de mulher, basta ver que o emprego doméstico só deixou de ser a principal profissão das brasileiras em 2011. Antes disso, éramos mais domésticas que médicas, advogadas, professoras. Hoje somos mais vendedoras.

Dos 6,65 milhões de trabalhadores domésticos do Brasil, só 31% têm carteira assinada. A precarização do trabalho não é coisa só dos tais grotões do Nordeste. É maioria em todas as regiões do Brasil.

Tenho dificuldade em imaginar uma casa de classe média sem filhos que exija mais do que duas visitas semanais da diarista para se manter apresentável e, quem sabe, até com um feijãozinho congelado na geladeira. Chamar uma diarista duas vezes por semana não configura vínculo empregatício e custa cerca de R$ 640 mensais. Achou caro? Chama uma vez só.

Para quem tem filhos a coisa é mais complicada: a pequena dose de independência e de vida externa que nossas mulheres de classe média conquistaram nas últimas décadas devem-se em parte às mulheres mais pobres que ficaram em casa, cuidando dos filhos delas.

Uma empregada que ganha salário mínimo (em São Paulo, R$ 755), que não faz hora extra nem adicional noturno e que recebe R$ 180 mensais de vale transporte (ida e volta de ônibus em São Paulo), R$ 200 de plano de saúde e R$ 250 de auxílio-creche vai custar R$ 1.777 pela nova lei. Três mil é o salário base de um repórter nas melhores redações do país. Para boa parte da classe média, é notável que essa conta não fecha, mas a pergunta é: como fazê-la fechar?

Para uns, a resposta é “contratar” uma empregada mensalista pagando os mesmos R$ 640 que citei aqui como valor de duas diárias semanais de uma faxineira. Os outros – os que me interessam – vão procurar alternativas. E se a gente criasse esquemas de compartilhamento de babás nos condomínios? Melhor ainda: creches comunitárias em que os pais se revezassem no cuidado com as crianças? Que tal se dessa vez nossos perus fossem convocados a resolver o problema?

#12LiberdadeCulturaLiteratura

Dura lex?

por Léo Coutinho

A aula de direito mais remota que me ocorre tomei de André Franco Montoro, meu tio-avô. Criança privilegiada, pude aprender descontraidamente com o professor que formou tantos juristas e que, através de seus livros, continua formando.

Ele dizia que o conceito básico do direito é a maleabilidade. Por ser matéria humana, de obra humana, deve servir sempre ao ser humano – e se adaptar a ele. Com as ciências exatas não há escapatória, são duras, fatais. A matemática já existia, um mais um sempre foi e sempre será dois, o Homem simplesmente organizou. Com o direito é diferente, sempre cabe interpretação e adequação da regra.

O exemplo do tio André é ótimo: num espaço público há uma placa proibindo a entrada de cães. Então, chega um cego com seu cão guia e o guarda na porta o impede de entrar. Logo em seguida, outra pessoa chega com um urso e entra sem encontrar resistência. Dura lex?

Aí está o ponto. A lei não pode ser dura, tem de ser maleável, se adaptar à sociedade. Aqui no Brasil temos a piada antiga segundo a qual há leis que “não pegam”. Ora, aqui, ali e em qualquer lugar onde houver gente uma lei que for contra os costumes só vai pegar à força – o que não é bom. O ideal da lei é que reflita a sociedade, e sociedade deve ser um lugar tranquilo, leve, agradável para se viver.

Se, ao contrário, emerge na sociedade o clamor pelo embrutecimento da regra, a ponto de inclusive gente boa e tida como esclarecida defender que o Estado endureça as leis e suas aplicações, reduzindo a maioridade penal, instituindo a pena de morte e até recriando presídios medievais, isto é, defendendo que, justamente como fazem os criminosos, prenda, arrebente e mate, como se assim se resolvessem os problemas, fica claro que, antes de qualquer lei, o que precisa de atenção é a sociedade.

Não é razoável que a política de segurança ignore justamente o seu princípio, que é a liberdade individual. Reagir na mesma moeda só vai dar impulso ao pêndulo eterno, que, se hoje está em nível de calamidade, é porque, na outra ponta, também foi longe demais. Ou alguém pode negar o descaso social histórico no Brasil?

A gente colhe o que planta, recebe o que dá, é o que come. Se a ideia é ter uma sociedade melhor, mais justa e honesta, precisamos de uma rede de proteção social, que eduque, cuide, atenda, conforte, proteja. Mais grades, mais chumbo, mais mortes definitivamente não vão nos ajudar. яндекс

#11SilêncioCulturaLiteratura

Indiana Jones + James Bond + Grahan Greene = Patrick Leigh Fermor

por Eduardo Andrade de Carvalho

Quando Patrick Leigh Fermor foi condecorado como cavaleiro da Coroa Britânica, em 2004, um jornalista da BBC o definiu como uma mistura de Indiana Jones, James Bond e Graham Greene. Faz sentido. Paddy – como era chamado pelos amigos – foi um viajante erudito, agente secreto (por dois anos, escondido nas montanhas em Creta, organizou a resistência grega contra os alemães, na Segunda Guerra) e um excelente escritor.

Seus dois livros sobre uma viagem que fez a pé, aos dezenove anos, de Roterdã a Constantinopla, A time of Gifts e Between the Woods and the Water, são muitas vezes considerados os melhores livros de viagem do século XX. Além de bonito,

o historiador Max Hastings disse que Fermor tinha “a maior lábia de toda sua geração”, o que provavelmente o ajudou a conquistar a fotógrafa Joan Elisabeth Rayner, musa de Cyril Connolly.

É curioso, portanto, que um homem de personalidade assim tão expansiva – um herói de guerra bon-vivant, extremamente culto e cheio de amigos – tenha escrito também um ensaio sobre a vida monástica. A Time to Keep Silence – um pequeno volume de menos de cem páginas – é basicamente a descrição de Fermor de duas experiências suas em monastérios: nas abadias de St. Wandrille de Fontenelle e de La Grande Trappes, na França. Quando procurava hospedagem barata e um lugar silencioso, tranquilo para escrever um livro, procurou os monges St. Wandrille de Fontenelle – e, inesperadamente, foi muito bem recebido pelo abade. Para quem esperava um lugar simplesmente calmo, já nas primeiras horas, lendo sozinho no quarto as regras para os visitantes, Fermor se assustou com o rigor da rotina monástica: os dias começavam às quatro da manhã e as refeições transcorriam em silêncio total, intercaladas por missas, leituras e meditação. “O lugar tomou ares de um grande túmulo, uma necrópolis da qual eu era o único habitante vivo.”, escreveu.

Depois do choque inicial, porém, sentiu que as vontades de falar e de se movimentar não encontravam resposta na abadia, e desapareciam no vácuo. E percebeu então que a vida livre dessas pequenas ansiedades urbanas, que trazia de Paris, era uma “lliberade divina e absoluta”. E – ao mesmo tempo em que descobriu o quanto a rotina silenciosa pode fazer bem ao espírito – Fermor também encontrou nos monges, nos poucos momentos liberados para conversa, companhias tão agradáveis quanto a de um francês bem educado, “com todo o equilíbrio, erudição e espirituosidade que se possa esperar”: e sem nenhum sinal da melancolia medieval que o ambiente poderia inspirar. O próprio abade que o hospedou, Dom Walser, aliás, é um exemplo dessa civilidade: exilado da Alemanha assim que Hitler chegou ao poder, o responsável pela organização – da econômica à espiritual – da comunidade é capaz de conversar sobre assuntos variados como teologia, arquitetura, artes plásticas, misticismo, arqueologia e história.

Talvez seja a descrição de Fermor sobre como era acordar no mosteiro, num dos últimos parágrafos sobre a abadia de St. Wandrille de Fontenelle, um dos momentos mais bonitos do livro, e um excelente exemplo do seu estilo: “Não havia cortinas nas janelas, e nada para esconder a beleza da luz batendo contra a parede ou as silhuetas curvas do batente. É um quarto maravilhoso no qual acordar. Noites iam e vinham sem sonhos, interrompidas de manhã como a leveza do toque de um barco raspando o casco na areia ao chegar à praia”.

Não à toa, se foi difícil se adaptar à disciplina do monastério, Fermor achou a adaptação ao ambiente de fora pelo menos dez vezes mais difícil. No trem de volta a Paris, um cartaz da Cinzano, na época símbolo de liberdade, lhe pareceu um insulto pessoal. Se a abadia parecia, no primeiro momento, um cemitério, escreveu, o mundo de fora seria um inferno de barulho e vulgaridade cheio de gente maliciosa, vulgar e pilantra.

Depois de passar rapidamente pela abadia de Solesmes, na segunda parte de A Time to Keep Silence descreve suas duas semanas de experiência numa ordem muito mais, digamos, severa: a dos monges trapistas, que acordam às duas da manhã, comem praticamente só raízes, trabalham pesado no campo, passam sete horas por dia rezando, usam a mesma roupa durante toda uma estação do ano, dormem em cubículos sem aquecimento e praticamente não têm nenhum tempo de lazer ou para estudar. De novo, Fermor encontra nos monges homens caridosos e felizes, sem ranço e sem, como poderia esperar um psicólogo, sinais de repressão sexual. E fica impressionado com a disciplina mental dos trapistas: “tudo é silêncio e paz, e a privacidade do silêncio individual é ligada por um autêntico e fraterno amor”.

A Time to Keep Silence, apesar de descrever alguns rituais católicos, não é em nenhum aspecto religioso e, apesar de descrever lugares diferentes, não é exatamente um livro de viagens. Na introdução, Fermor diz que a experiência mais importante que descreve é a sua descoberta da capacidade para ficar sozinho e se recolher, e a claridade espiritual que acompanha a vida monástica. “Pois, no isolamento de uma cela – uma existência ininterrupta exceto pelas refeições silenciosas, a solenidade do ritual e as longas caminhadas na mata -, as águas turvas e agitadas da mente se acalmam, e muito do que está escondido ou é obscuro sobe à superfície, onde pode ser escumado; após um certo tempo, chegamos a um estado de paz que é impossível de imaginar no mundo lá fora”.

A Time to Keep Silence é um elogio ao momento a que o título nos convida: o momento para ficar em silêncio.

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Silêncio: ação

por Jair Lanes

Em 2012, dois filmes homenagearam a sétima arte e foram sucesso de público e crítica, angariando prêmios ao redor do mundo. O diretor norte-americano Martin Scorsese fez um ousado tributo em 3D a Georges Méliès em A invenção de Hugo Cabret; já o francês Michel Hazanavicius, diretor de O artista, optou por reviver nas telas do mundo inteiro um formato considerado extinto há várias décadas: o cinema mudo. Inesperadamente, O artista conquistou a crítica mundial; não somente por homenagear o cinema mudo norte-americano, mas também por resgatar o cinema de uma época onde letreiros de diálogos dividiam espaço com mímicas, com explícita influência expressionista. Ao conseguir destacar-se no cenário cinematográfico mundial, onde produções com explosões em ritmo acelerado e franquias bilionárias monopolizam os mercados, o longa trouxe de volta a inocência de assistir a uma trama em que o silêncio é tão presente.

O silêncio, tão explorado por filmes de arte, foi durante muito tempo a essência do cinema mudo. O diálogo era transmitido através de gestos, mímica e letreiros explicativos, e por meio de poucos cenários, quando não um apenas. Era praticamente um “teatro filmado”. Os atores do cinema mudo foram os pioneiros das técnicas de linguagem corporal, ainda o único modo de comunicação experimentado.

Durante os primeiros anos do cinema, boa parte dos filmes era documental. Em 1896, os irmãos Louis e Auguste Lumière enviaram a vários lugares do mundo fotógrafos com câmeras. O propósito dos “caçadores de imagens” era o de registrar imagens de vários países e assim difundir diversas culturas mundiais na França. Experimentações com diferentes narrativas pipocavam pelo mundo. A percepção geral era a de que o cinema não tinha limites e era uma invenção muito pouco explorada. Porém, a cada produção suas ferramentas evoluíam exponencialmente. O advento da edição permitiu que histórias com construção narrativa pudessem ser contadas, atraindo espectadores para tramas, personagens e outros elementos inexistentes nas primeiras experiências cinematográficas. Assim o cinema flertava com a arte, com contextos claramente literários e teatrais.

Na década de 1910, o diretor norte americano D.W. Griffith conseguiu ampliar as fronteiras da linguagem do cinema. Parece ter sido o primeiro a entender como as técnicas poderiam ser usadas para criar uma linguagem expressiva. Dois de seus filmes mais importantes conseguiram dar ao cinema um contexto de espetáculo épico impressionante. O nascimento de uma nação (The Birth of a Nation, 1915) e Intolerância (Intolerance, 1916) são pilares da gramática cinematográfica, influenciando gerações de cineastas.

As primeiras comédias foram feitas na França, onde se combinavam personagens divertidos com perseguições. O ator mais popular da época, Max Linder, foi o criador de um tipo refinado, elegante e melancólico de muito sucesso na primeira geração de comediantes. Mas o verdadeiro gênio da comédia silenciosa foi o inglês Charles Chaplin, que, com seu personagem Carlitos, mesclava humor, poesia e crítica social. Um dos sucessores da comedia de Max Linder, Chaplin foi ator, roteirista, diretor e produtor de seus filmes. Mestre da pantomima e autor de clássicos desta era, foi defensor enérgico do cinema mudo até depois da consolidação do cinema sonoro.

A comédia norte-americana conseguiu dominar o mercado interno e, no final da década de 1910, também o externo. Os filmes passaram a ter duração cada vez maior, e as produções, cada vez mais complexas, pressionavam os realizadores da época a repensar seus filmes baratos, de onde não obtinham muito lucro, e a tratar de recriar o cinema como uma indústria, e seus filmes, como produtos a serem vendidos. Era o fim da inocência.

Um antigo subúrbio de Los Angeles evoluiu de aglomerado de produtoras à força motriz do cinema mundial. Depois da Primeira Guerra mundial (1914-1918), Hollywood superou a concorrência europeia, consolidando sua indústria cinematográfica. Descobrindo e inventando astros que perpetuavam o sucesso de produções, tornando conhecidos em todo o mundo comediantes como Charles Chaplin e Buster Keaton; atores como Rodolfo Valentino e Wallace Reid; e as atrizes Gloria Swanson e Mary Pickford, que, em 1919, juntamente com Chaplin, Douglas Fairbanks e D.W.Griffith, fundaram a produtora United Artists.

Gradativamente, diferentes olhares em vários países transformaram o cinema. Na Alemanha, surge o expressionismo e seu esteticismo delirante retratado nos filmes O autômato (Der Golem, 1914), de Paul Wegener, e O gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinet des Dr. Caligari, 1919), de Robert Wiene. O realismo russo fez parte do projeto bolchevique de poder. Porém, mesmo com esta premissa, obras fundamentais surgiram e cineastas criaram técnicas mimetizadas mundo afora. Surgiram nomes como Serguei Eisenstein, diretor de O encouraçado Potemkin (Bronenósets Potiomkin, 1925), e Vsevolod Pudovkin, de Mãe (Mat, 1926). A vanguarda francesa, a chamada renovação do cinema francês, coincidiu e assimilou os movimentos impressionista, dadaísta e surrealista. O cão andaluz (Un Chien Andalou, 1928) e A idade dourada (L’Âge d’or, 1930), de Luis Buñuel e Salvador Dalí, são referências. Hollywood bebia nestas fontes e invariavelmente convidava expoentes destas correntes cinematográficas para trabalhar em suas lucrativas fileiras. Tecnicamente, o desejo de sincronizar filmes com sons gravados é tão antigo quanto o próprio cinema. Até o fim dos anos 1920, devido à falta de tecnologia, os filmes em sua maior parte eram mudos. Curiosamente, cinema mudo nunca foi realmente mudo, pois utilizava orquestrações e até narradores durante as exibições. O som apenas acompanhava a imagem, antecipando ou não a atmosfera dos planos seguintes. A utilização da música proporcionava reações entre o filme e o público, ajudando a criar sensações.

Como sempre ocorre no capitalismo, a inovação é uma aposta arriscada, mas às vezes pode ser um tiro certeiro. À beira da falência, os irmãos norte-americanos Warner apostaram as fichas no arriscado sistema sonoro, e a ótima bilheteria de O cantor de Jazz (The Jazz Singer, 1927) consagrou o “cinema falado”. A partir dos anos 1930, com o aperfeiçoamento do som, o diálogo cinematográfico ganhou destaque junto com a mixagem de música, ruídos e silêncios. O cinema industrial se deparou com uma de suas mais complexas revisões e desenvolveu uma dramaturgia diferente das experiências já vividas com o cinema mudo. Por isto, todos os profissionais da indústria cinematográfica precisaram de alguns anos para absorver os novos recursos, até desenvolver a maturidade narrativa que permitiria o surgimento de novas técnicas dramáticas. No Brasil, em 1930, foi produzido Limite, de Mario Peixoto, filme mudo e surrealista cujo enredo consistia numa afirmação, melancólica e um pouco agressiva, sobre a limitação e a futilidade da existência. É considerado um filme fundamental na história do cinema brasileiro.

Na contramão dos seus pares, Charles Chaplin continuou a criar obras-primas à base de pantomima, como Luzes da cidade (City Lights, 1931) e Tempos modernos (Modern Times, 1936). Para ele, a pantomima e as imagens eram as principais conexões com seu público. O som tinha o poder de tanto ampliar e trazer maior realidade ao cinema quanto de restringir sua percepção, limitando seu significado. Rendeu-se, enfim, mas sua genial vingança foi continuar produzindo obras-primas, agora sonoras.

O frenesi visto em torno do filme O artista é, na verdade, uma celebração ao silêncio cinematográfico, que diz tanto a nossa alma e que nos relembra o ato quase banal de olhar uma sequência de imagens em movimento e compreendê-la em diversas dimensões. Para a maioria das pessoas de 115 anos atrás, este raciocínio lógico que é disparado e nos ajuda a entender o que estamos assistindo simplesmente não existia. Comparado a outras formas de linguagem, o cinema ainda esta em seu limiar, apesar dos excessos e piruetas técnicas. A imagem, na sua essência, tem movimento, tem dimensão e significado. Expandir os limites do silêncio e de bons roteiros parece ser, neste sentido, a lição que O artista ensinou ao cinema de hoje.

#11SilêncioCulturaLiteratura

Notícias do fulano

por Vanessa Agricola

– E o Fulano, hein?
– Quê?
– O Fulano, você não estava falando nele?
– Eu?
– Já mandei uns cinquenta e-mails, deixei uns trocentos recados.
– Putz…
– O filho da puta desapareceu.
– … será que aconteceu alguma coisa?
– Que coisa??
– Sei lá, alguma coisa…
– Eu sei que coisa, o Fulano deve estar de trololó com o tal do Batata.
– Você acha que o Fulano tá com o Batata?
– Quer apostar? Pau que nasce torto nunca se endireita.

– Ela perguntou do Fulano?
– Perguntou.
– Merda. O que foi que ela disse?
– Tá puta, falou que ele sumiu, que tá com o Batata…
– Com o Batata??
– Aquele cara das antigas.
– Nossa, como ela é chata.
– Nem me fala. Se ela souber onde o Fulano está…
– Nossa, vai ser uma fofoca…
– Fora o julgamento, né.
– Ela é muito escrota.

– Ai, ainda bem que você chegou.
– Você tá gelada!
– Eu tô muito nervosa. Senta. Quer uma água?
– Não, obrigada.
– Me conta, como é que ele tá?
– O Fulano ainda não pode receber visita, mas eu conversei muito com a psicóloga.
– Ai, eu detesto psicóloga.
– Mas essa psicóloga é boa, ela trabalha com isso há 20 anos.
– E o que ela acha? Ele vai ficar bem?
– Ela disse que o Fulano está muito bem, que é um cara totalmente dedicado ao tratamento, que é para a gente ter muita confiança que vai dar tudo certo.
– Ai, menina, graças a Deus, eu rezei tanto.

– Então ele não é adicto??
– Pelo que a psicóloga disse, existe uma grande chance disso tudo ter sido uma reação temporária causada por um estado de depressão profunda.
– Então não foi o vício que levou à depressão?
– Não existe nenhuma certeza ainda. Ela disse que “pode ser” que não.
– Pode ser que ele não tenha a doença?
– É.
– Só tristeza?
– Isso.
– Mas a depressão também não é uma doença?
– No caso do Fulano parece que não, era só uma tristeza que virou depressão.

– Igual o Chorão…
– Será que o Fulano soube do Chorão?
– Com certeza, ele deve ter lido no jornal.
– Lá na clínica pode ler o jornal?
– Por que não poderia?
– Sei lá, vai que as notícias deixam os pacientes inquietos, com vontade de sair.
– É, pode ser…
– Deve ser foda ficar lá dentro.
– Mas você sabe que o Fulano me pareceu sossegado. Nem comentou nada de sair mais cedo.
– Sério?
– Sério. O Fulano está zen.
– Puxa, que bom saber que ele tá bem…
– Te juro, ele tá tão bem que até eu pensei em me internar.
– Na clínica?
– Tô pensando seriamente.
– Como assim doida? Você também tá viciada?
– Todo mundo tem um vício.
(Silêncio)