#8AmorAmarello Visita

Amarello Visita: Guerreiro do Amor

O Gladiador do Amor mora num dos bairros mais caros da cidade. O endereço impressiona. Grades de ferro elétricas logo na entrada. O cenário higiênico bate de frente com a precariedade dos lambes-lambes dos postes. Rabiscados em tinta vermelha, anunciam os serviços de amarração. Subo os degraus da entrada, cruzo com duas pessoas. A primeira, uma mulher. Saião acinturado, uns trinta anos, cabelos ruivos e cacheados. Ela fala no celular e quando eu passo, espia. Um pouco antes do elevador, um homem de uniforme branco, com emblemas costurados nas duas mangas, segura uma boina de aviador e analisa o céu. No céu, duas massas robustas acinzentam ainda mais o asfalto. Aperto o botão do décimo andar. O hall do consultório é emoldurado por um papel de parede com flores violetas e os números do 1002 estão colados de forma irregular, lembram uma onda. A onda remete-me aos minutos de espera no meu pediatra, há anos. E a espera tinha o mesmo gosto de nuggets vencido.

— Escreva aqui embaixo o nome, completo, da pessoa para quem vou dirigir o trabalho.
— Então, Sacerdote. É uma longa história.
— É?! Conte, conte tudo!

O entusiasmo mexe com ele, o Sacerdote puxa para si o tarô, emparelha o monte de runas violetas e ajeita o pano indiano da mesa. Eu tento explicar a teoria; vim pedir um trabalho para os meus personagens, entende? Personagens de uma história que estou escrevendo, um romance, uma ficção! Que nome eu coloco aqui embaixo? O Sacerdote do Amor fita o meu terceiro olho (assim reconheço o gesto), ou seja, o olho contido dentro da pele que separa os dois olhos visíveis. Fixa o ponto na minha testa e muxoxa um mantra rabugento. Ele aponta com o nariz o vazio acima de mim e sentencia.

— Só posso ajudar se você disser nomes! Para efeito de amarração, o trabalho precisa de carne. É impossível fazer qualquer tipo de trabalho para personagens de uma história inventada pela mente. Nem Deus! Nem Deus! Escuta só: a magia está dentro da Verdade e a Verdade é feita de carne e energia. Tudo tem carne, entende? Sem carne não tem nada-nada que eu possa fazer por você. Pense num homem que você queira encontrar. Uma mulher quer tocar alguém, e isso eu faço!

Eu leio os lábios do Sacerdote sem prestar muita atenção no sentido daqueles sons. A boca estica as vogais e o seu olhar tão preto não separa a íris da retina. Uma única bola pisca, e na altura do meu terceiro olho, um calor desagradável condensa. Um inseto infiltra a sala pelos micro furos do radiador ao lado da janela. Não encontrando pouso seguro entre as dezenas de entidades, nem mesmo na organização cabalística das runas violetas, o inseto, meio mosca meio libélula, instala-se no ar, batendo mil asas por segundo; ele levita entre o Sacerdote e eu. O inseto é um bicho-oráculo. Encaro os mil olhos do bicho e eles espelham os diferentes ângulos do consultório, por fragmentos. As imagens se sobrepõem. A estatueta de Oxum caminha sobre as cartas abertas do tarô. A runa de número V rola no tapete de onça. As mãos de Shiva suspendem o chapéu do mago de cerâmica. Os colares pérolas de Yemanjá emolduram o ar condicionado encaixado na parede. Shiva abraça a Cigana das Sete Saias e uma criança de cera estica o arco de Oxossi. A Virgem Maria nina o meu dedo esquerdo agigantado. A porta do consultório caindo sobre o chão. Um certo enjoo rói as minhas costas, algo parece me atacar por trás. A mosca bate as asas. O Sacerdote ajeita o cabelo grisalho e desliza o anular na testa sem rugas, sem traços. O Sacerdote é quase uma máscara.

— Eu sinto que ele, o homem de carne, se esconde atrás da sua história inventada pela mente! Perversa mente! Serpente da ilusão! Você quer, Priscilla, uma ajuda para descobrir a carne desta pessoa que assombra você? Olhe para você, Priscilla, a sua aura está preta! Prefira saber o que deixa você tão menor… Entregue-se, Priscilla!

O Sacerdote apaga a luz do consultório. Eu deixo, apesar do medo do escuro, vim aqui com o intuito de explorar o fundo da minha teoria e dos meus personagens. Vou até o poço! A mosca encosta a pata na minha bochecha e eu quero abaná-la. O Sacerdote aplaca o meu gesto. Não, Priscilla, você precisa mergulhar em você mesma e o mergulho é imune às sensações, deixe a mosca, solte as cordas do presente e lance o corpo no mergulho do Divino, eu estou aqui para ajudar você nesta pequena morte. O Sacerdote repete bem perto dos meus ouvidos, eu engasgo. É quase pavor.

— Sacerdote, você pode acender a luz, por favor?
— Claro, Priscilla. Claro. Esse pouco de escuro já soprou o nome do seu homem. É Gustavo!

Em cima da mesa de jogo, a carta do Enforcado está virada. O nome Gustavo, assim, arrancado da minha cabeça em nanossegundos me deixa bamba. O Sacerdote me consola.

— Relaxa, Priscilla. Relaxa. Eu só quero ajudar.

Ele pede detalhes, qualquer detalhe. Preciso desenhar Gustavo, aglutinar nesse desenho o máximo de energias. O sacerdote adora essa palavra: energia. Começo a anotar na folha em branco. Gustavo gosta de manga. Gustavo dorme pelado. Gustavo anda de bicicleta. Gustavo planta manjericão na varanda. Gustavo mudou de celular e foi para Fortaleza. Gustavo só dava fora de área. Gustavo e a máquina fotográfica. Clique. Mais para a esquerda. Não, seja mais natural. Gustavo mora em São Paulo. Gustavo gosta de zonas de conflito. De homens com turbantes. De ketchup. De uva passa. De escovar os dentes deitado na cama. De falar francês e vestir bata peruana.

— Agora chega!

O Sacerdote grita como se cronometrasse o tempo da minha descrição. Como se o tempo curto, aqui, carregasse de mais Verdade o próprio Gustavo fabricado por mim. Pelos fragmentos dele jogados no papel. Mas o retrato é metade de Pablo, o personagem. Metade de Gustavo. Eu conto essas metades, do que é passado, do que é ficção. O Sacerdote arranca a folha com as minhas anotações e sanfona o papel. Risca um fósforo. Ateia fogo. As cinzas amontoam-se e o Sacerdote berra.

— Olhe para o fogo e diga em voz alta quem é Gustavo! Fale!

Eu mastigo palavras; Guerra, Ketchup, queijo, Gustavo, Pablo, manjericão, Gustavo de calção florido, celular sem rede, Priscilla, areia branca de Fortaleza, lente grande angular, Gustavo dorme pelado. Enquanto eu dito flashes para o fogo, o Sacerdote entoa um sermão pesadão que me lembra a aura preta em volta de mim e das minhas olheiras.

O Sacerdote ordena: – Assopra o monte de cinzas! Essas cinzas são Gustavo, você o quer de volta! Sopre! O chão do consultório incinerado, os pedaços de Gustavo e de Pablo amontoados. Sopre! As estatuetas gemem nas prateleiras e os Santos parecem suar. Clique. Este será o fim do meu romance. Clique. Após uma transa tântrica (posso intercalar Santos gemendo), Priscilla entra no mar (eles estão em Fortaleza) e Pablo foge enquanto ela mergulha. A última cena será a praia vazia, sem carne e sem memória. Fim. O tempo da consulta se esgota.

Despossuído e de voz suave, o Sacerdote recomenda um banho de flores vermelhas e frutas amarelas; é para Oxum e Maria Padilha acordarem de bom humor. Descanse por hoje, Priscilla, e tome um chá de margaridas bem quente. Você não precisa pagar pelo trabalho, é só deixar uma doação com a recepcionista. Não volte para a sua casa; é preciso descarregar. Deite uma rosa na encruzilhada mais próxima ao endereço do primeiro encontro com Gustavo e durma em paz. Gustavo morreu. Pelo menos, nunca mais tive notícias. Nem ouvi tambores.

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Estender-se

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O traidor

O carioca que sai do Rio de Janeiro será sempre apontado como traidor.­ É mesmo um desrespeito abandonar tanta beleza, uma ousadia achar que pode haver coisa melhor. Se mudar do Rio para São Paulo, então, é caso de pena de morte. É pior que trocar de time ou de nome. Falsidade ideológica – daí para baixo. Bate uma culpa sincera no primeiro dia em que um carioca se sente realmente feliz em São Paulo. E os amigos que ficaram não ajudam… “Como pode? Logo você, que amava a praia? Justo você, que abria a janela e se sentia feliz até em estar parada no trânsito da Lagoa?”

E desandam a falar da feiura, da grandeza, dos tons de cinza, dos engarrafamentos, das enchentes e da frieza paulistana. “Como é que você foi largar isso aqui?” – pergunta o carioca já apontando para qualquer direção, sabedor de que sempre vai encontrar uma montanha ridiculamente bem posicionada ou uma beira do mar por perto. Covardia. E é tão difícil entender quanto explicar.

Mas tento. Amigos: se tem alguém que sabe como o Rio é maravilhoso este é aquele que foi embora. Essa praia dói mais ainda em quem não a tem. Voltar para São Paulo na segunda de manhã e deixar para trás o Rio amanhecendo é de uma violência que não se pode contar. Todas as fotos de pôr-do-sol no Arpoador me magoam a ponto de querer sair do Instagram. E a cada sábado de verão em que alguém me chama a uma praia “pertinho, só três horas de carro”; a cada “vista linda” que o paulista, com a maior boa-vontade, quer mostrar, mas que se revela apenas uma visão panorâmica para um monte de prédios, juro: a vontade de chorar não é metafórica.

“Então volta” – seus amigos falam. “Fica” – insistem: “Aqui é gostoso, quentinho, seguro”. É mesmo tentador. O Rio é um colo de mãe. E os argumentos cariocas para não se sair da cidade são os mesmos que sua mãe usou para você não sair de casa. Por que ir, se aqui é tão bom? “Você tem tudo de que precisa: casa, comida, roupa lavada. Você não gosta mais da gente?”

Sim, Rio, ainda amo você profundamente. Não é você. Sou eu. A gente ama os pais, mas um dia precisa sair de casa. Eu me mudei de um apartamento gigantesco, com a vista do Pão de Açúcar, para um quarto-e-sala sem elevador e voltado para uma parede. Sim, eu amava meus pais, mas precisava ter meu cantinho. São Paulo parece grande. Porém, se olharmos de perto, é só o cantinho de muita gente.

É a chance de começar uma nova história o que conquista quem vem para cá. O Rio já está pronto. São Paulo tem cheiro de cimento, barulho de prédio em construção. De um lado, uma montanha de cinco bilhões de anos; de outro, um terreno escrito: em breve. É o conforto do estabelecido versus a adrenalina de todas as possibilidades. Tem quem se acanhe diante de tanto desconhecido. Mas para mim, que aprendi a correr antes de engatinhar, São Paulo é um alívio.

Claro que dá medo; saudade. Sai caro. Há dias em que tenho vontade de voltar correndo para a casa da mamãe. E volto, de preferência no fim de semana, cheia de saudade. Aí, até as piadas em que não achava graça ficam engraçadíssimas. Quando volto pro Rio, acho tudo divertido e bucólico. O serviço ruim não me atrapalha, a impontualidade fica charmosa, as eternas promessas de “passa lá em casa” têm o efeito de um abraço carinhoso.

Mas minha saudade não é o suficiente para os cariocas. “Porque você gosta tanto de lá?” – perguntam-me, inconformados. Como toda mãe, o Rio é passional e exagerado. Oferece muito, mas cobra uma fidelidade polarizada: ou gosta de mim ou de São Paulo. O Rio é uma mulher deslumbrante que, por isso mesmo, lida muito mal com a rejeição.

São Paulo é mais humilde, está acostumada a ser maltratada. É feia, sim, mas tem espelho em casa. Sabe que não pode sair botando banca.

Ela te pega aos poucos, vai comendo pelas beiradas. Conquista primeiro seu conforto, depois sua simpatia. Quando você se dá conta, não sabe mais viver sem.

São Paulo aceita tranquilamente ser “a outra”, até porque é a outra cidade de quase todo mundo. Aqui, como não podia deixar de ser, aprendi os tons de cinza: não existe só feio e bonito, perto ou longe, verão ou inverno. Todas as estações do ano podem ocorrer em um dia, e isso dá uma sensação de liberdade danada. Apesar da dureza aparente, São Paulo é muito flexível.

“Que palhaçada! Liberdade é correr na praia de manhã” – dirão os amigos, e estarão certos também. A natureza do Rio estabelece o horizonte como limite. Mas a sombra e a água fresca me causavam certa preguiça de ir até lá. O Rio é uma mãe manipuladora, que manda e desmanda, e você nem percebe por que é gostoso receber as ordens dela. “Vá à praia, sorria, coma direito, fique mais um pouquinho, descanse.”

São Paulo é mãe de ninguém. Nem vem pedir colo que aqui não tem. Se vira malandro. O que é que você vai fazer com essa tal liberdade? – já perguntava o pagode paulistano anos atrás. São Paulo impõe muito pouco. Será interessante, mas só se você também for. É uma relação de parceria, longe do amor incondicional. No Rio, basta estar ali. Aqui, não. Não se vive em São Paulo, mas com São Paulo.

Se isto é melhor que aquilo, impossível dizer. Nem precisa. Fui muito feliz com o Rio mandando em mim por 27 anos. Sentia tanta obrigação de ir à praia que, de vez em quando, torcia para chover só para poder fazer qualquer outra coisa. Só um carioca consegue entender esse sentimento.

O Rio é uma linda história com começo, meio e fim – e na qual todos viveram felizes para sempre. São Paulo é assunto para a vida toda, é futuro que não acaba mais, final aberto. Se nem meu GPS consegue dar conta de tanta atualização e novidade, imagine eu.

Quando bate a preguiça de ir tão pra frente, voo pro Flamengo, pra vista do mar, pra tudo que já conheço. Depois de uma semana, volto correndo com saudade de meu anonimato, saudade de ser de fora. Taí mais uma coisa boa que só um exilado pode sentir: o prazer de dizer numa mesa, com certo ar de superioridade, “sim, eu sou carioca”, sabendo que atrairá algumas antipatias, mas também, certamente, toda a atenção do mundo.

O carioca se acha, sim, e se acha porque é. É um luxo ser do Rio. Nós somos uma grife que eu, pelo menos, uso sem parcimônia, em estampas bem grandes. E o paulista, generoso que só, abre espaço para toda essa prepotência e gosta da gente. Um paulista vê muito mais graça num carioca do que um carioca em outro carioca.

E não será esse textinho bobo a fazer meus amigos mudarem de ideia e me absolverem. “Quem diria? Até a Patrícia se vendeu” – dirão. Carioca não se enrola nem se convence, eu sei bem. Por isso, se você sair do Rio para morar em São Paulo, já vá sabendo: será sempre considerado um traidor. Mas, talvez para aliviar a culpa que ainda sinto, peço clemência ao júri: traidora não, vai… No máximo me deixe ser condenada por bigamia: sou capaz de ter dois amores profundos ao mesmo tempo.

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Pintura Íntima

por Hermés Galvão

No início era o amor pela ideia. Depois, a paixão por quem estava atrás dela. Mas desde sempre houve intimidade entre as partes interessadas, algo sensorial que aproximava criaturas e criadores. Rolava um clima, por assim dizer. Era pura troca. De um lado, o patrono. De outro, o artista. E entre eles, além de muito dinheiro, bastante diálogo. Funcionou bem de Isabella d’Este, primadona do Renascimento, até Peggy Guggenheim, que, a partir da Segunda Guerra, diluiu o mecenato ao concubinato estrelando a maior fotonovela artsy-erótica de que se tem notícia. Serial lover, sadomasô, avarenta e adunca como um rosto de Guernica, colecionou obras grandiosas e homens grandiosos, escritores, pintores e escultores. Da parede da sala para o quarto, da mesa de cabeceira até a cama, e vice-versa, com Laurence Vail, Kay Boyle, John Holms, Samuel Beckett, Marcel Duchamp (há controvérsias) e, tcharan!, Max Ernst, Peggy fez de seu Palazzo Venier dei Leoni, em Veneza, uma casa de tolerância onde livres pensadores ensaiaram o que mais tarde chamariam de liberdade sexual.

Mestres pintaram e bordaram ali, entre lençóis e canvas, sob os olhos mercenários da baranga boêmia que, fato, fez tudo por amor. Seu filme de sacanagem tinha enredo. Com final feliz para todo mundo, até para quem não passou pelo seu infalível teste do sofá – Peggy também promoveu (e não comeu) Jean Cocteau, Kandinsky, Henry Moore, Brancusi, Calder, George Braque e Picasso. Tudo em nome da arte. Misturava o lado pessoal com o profissional –, nada mais feminino… Mas fazia sentido, havia o tesão. E a coleção não mudava com a decoração, tampouco era tratada como investimento, papel, ação. Com Marguerite “Peggy”, a figura do mecenas ganhou outro rumo, outros valores. Foi além do patrocínio e do papel de incentivar a produção artística com o mero objetivo de melhorar a imagem na sociedade – afinal, nada mais déclassé que ter e não investir. Dividir nunca foi o caso… Fomentou exposições, protegeu gerações de artistas da fome e da crise, salvou talentos do anonimato e livrou o circuito da mesmice. Criou, também, a partir de suas iniciativas nobres, uma nova maneira de os milionários sine nobilitate frequentarem o café society sem sentir falta de sobrenome real. Com ela, o dinheiro novo parecia estar nas mãos certas. Paramos aqui. Pois é passado.

Estamos no agora. E talvez seja preciso rediscutir a relação do art patron com o artista (art dealer fica de fora, três é demais), perder o hábito de desaguar capital sobre alguém e alguma coisa que, ouviu-se dizer, “vai valorizar” sem sequer gostar ou, pior, entender. É papo contemporâneo, mas que vem a público não é de hoje. Tom Wolfe, em 1984, alertou sobre a falta de comunicação entre quem compra e quem vende em cínico texto para a Harper’s Magazine: “A arte se tornou um ritual social no qual os ricos investem por não ter nada melhor para gastar, como outrora faziam com a religião”. Susan Sontag, vinte anos antes, em ensaio intitulado Against Interpretation, defendeu a ideia de que, antes de mergulhar no hermetismo das artes, era necessário “aprender a ver mais, sentir mais e ouvir mais. Para que o papel da arte na vida não seja meramente decorativo, mas, sim, subjetivo. Para evitar, assim, o grande mal-entendido que se fez entre os que incentivam e aqueles que aceitam”. Mora na filosofia, mas procede. Há de se sentir qualquer coisa maior que um sentimento de posse. Há de se ter, mas sem se achar. Que colecionadores saibam a fundo o que trazem para casa. Nem que para isso levem o personagem para a cama. Personagem, o artista. Não o galerista.

Fala-se hoje de crowdfunding, ou financiamento coletivo de projetos. Mecenato new age, onde artistas sem um tostão apresentam seus projetos nas redes sociais em busca de patrocínio. Quem acredita na ideia paga para ver, financia a iniciativa, doa o que pode e pronto. É hype garantido ou o dinheiro de volta. E, quem sabe, a possibilidade de amar, de fato, a ideia e até seu idealizador. Nem que seja no plano virtual. É só dar um poke.

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Amor imenso

por Tomás Biagi Carvalho

Um sonho de amor é o filme mais bonito que já vi.

A trágica história, a atuação espetacular de Tilda Swinton e a direção de arte impecável transformam a obra de Luca Guadagnino numa maravilhosa e dramática ode ao amor.

De origem russa, Emma Recchi, personagem de Tilda, é retirada de seu habitat para casar-se com um rico industrial de Milão. Tem três filhos, mas, visivelmente, não é feliz. Seu olhar é vago, distante, perdido em meio à espetacular casa art deco onde mora. A residência, cuja riqueza de detalhes enche os olhos de qualquer um, é a protagonista do filme, e o trabalho da set designer Francesca di Mottola, portanto, quase de direção.

O filme retrata a mudança de controle – no centro de uma família abastada – sobre o poder e o dinheiro. Afinal, em sua festa de aniversário, o patriarca, Edoardo, anuncia sua aposentadoria e, ao contrário do que todos pensavam, informa que os negócios familiares não serão cuidados somente pelo filho Tancredi, mas também por seu neto Edoardo.

Esse mundo ordenado e plácido começa a rachar justamente nessa ocasião, quando surge na vida dos Recchi a figura de Antonio, sócio do jovem Edoardo num restaurante em San Remo. Numa visita ao novo negócio do filho, Emma descobre sabores que parece nunca ter experimentado. A dureza da mulher de gelo quebra-se para sempre.

Lindo esteticamente, o filme tem poucos diálogos e abusa do silêncio, da trilha sonora e dos olhares. Não à toa impressionou tanto a crítica. Há tempos não despontava no cinema italiano alguém com a capacidade de um Visconti para utilizar a cenografia e os espaços vazios de forma tão dramática.

Conversamos com Francesca di Mottola – carioca que se mudou para Roma, com a família, aos sete anos – sobre seu trabalho e, particularmente, a respeito do processo de construção dessa maravilhosa obra.

Fale-me um pouco sobre você. Onde nasceu? Morou no Brasil?
Nasci no Brasil. Passei minha primeira infância aí e, aos sete anos, mudei-me para a Itália. Sou brasileira, mas minha formação é italiana.

Você fez faculdade de quê?
Fiz Theatre Design na Central St. Martins, em Londres, e então comecei a trabalhar com um pessoal de cinema, que estudava no mesmo prédio, produzindo curtas-metragens. Terminei a faculdade em 2001 e fui trabalhar no time de Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo (production designer e set decorator – três vezes vencedores do Oscar), com quem fiz Cold Mountain, na Romênia, em 2003. Depois, voltei ao Brasil. Passei três anos trabalhando com cinema aí.

Li mesmo que você fez aquele filme, Cleópatra, com a Alessandra Negrini.
Sim, como assistente de direção de arte.

Então, isso foi na época em que morava aqui?
Isso. Depois de algumas experiências profissionais aqui na Europa, senti o desejo de passar uma temporada no Brasil. Trabalhava no art department de Un Long Dimanche de Fiançailles, de Jean Pierre Jeunet, em Paris, e fiquei muito amiga da dupla PaulaGabriela (artistas plásticas cariocas, cuja obra é muito teatral). Elas então preparavam uma instalação e insistiram muito que o Brasil estava “bombando” em termos de artes e criatividade. Ao chegar ao Rio, introduziram-me ao mundo da arte contemporânea e da moda, e senti a energia criativa de que tanto falavam.

O que a fez voltar para a Itália?
Voltei porque recebi um convite para trabalhar novamente com Dante e Francesca, em Sweeney Todd (2007), de Tim Burton, em Londres; e também porque, apesar de ter uma conexão muito forte com o Brasil, sentia-me um pouco isolada.

O que mais fez por aqui?
Trabalhei três meses na Grande Rio, com o Joãozinho Trinta ainda vivo. O enredo era sobre a camisinha. Foi muito louco. Desenhei muito e contribui nos adereços dos carros. Depois, comecei a trabalhar com o diretor de arte Gualter Pupo e fiz um filme do Flávio Tambellini, Passageiro. Fiz vários trabalhos menores também, como a instalação de uma exposição sobre cinema brasileiro, sempre como assistente. Foi muito legal e aprendi muito no Brasil – uma ótima escola pra mim.

Seu caso de amor com o cinema começou na escola, né?
Começou. Sempre tive um relacionamento de amor com o cinema, mas, quando estive na Inglaterra, pude passar muito mais tempo no teatro e no cinema. Londres oferece abertura total e acesso a muita informação: teatro, cinema e exposições maravilhosas. Ia, toda noite, a uma peça ou a um filme. Aquele ano foi, informativamente, muito importante, período em que entendi que queria fazer cenografia.

Você identificou o que queria fazer.
Totalmente. Foi maravilhoso. A faculdade de cenografia era muito aberta, não só baseada em teoria do teatro, ou na parte técnica, mas dedicada também a estimular o desenvolvimento de ideias e a análise criativa de textos. Nisso, os ingleses estão muito à frente, tanto que os cenógrafos britânicos são meus preferidos.

Quais são esses cenógrafos?
De teatro, Paul Brown, Ralph Koltai, Richard Hudson e Rae Smith, com quem inclusive estudei. Ela fez os cenários de algumas peças grandes, como War Horse.

Em que momento você começa a se envolver no processo de criação de um filme?
Depende muito do relacionamento que estabeleço com o diretor. Se trabalho com alguém que já conheço, o processo se inicia muito cedo. Por exemplo, meu marido é diretor. Desenvolvemos juntos, agora, o projeto de um filme, que possivelmente filmaremos no ano que vem, no Brasil. Meu envolvimento nesse projeto, portanto, começou com o screenplay. Fizemos o location scout juntos, e meu trabalho já entrou no script. Mas, normalmente, sigo um roteiro já estabelecido. Tenho trabalhado com diretores que possuem uma visão muito forte sobre o que desejam, o que é legal, pois me oferecem uma rota definida, como foi no caso de Um sonho de amor. A pesquisa visual do diretor era imensa, e tive de dar sentido ao que já imaginara. Foi muito interessante, porque ampliei certas coisas; outras, tive de condensar.

Quais são suas influências?
Crescendo em Roma, estive cercada de arte a vida inteira. Fiz o liceu artístico quando pequena, e a história da arte sempre esteve presente em mim. É difícil dizer quais são especificamente minhas influências. Depende muito do projeto, mas, na maioria das vezes, busco inspiração em quadros, pintores e fotografias.

Você pesquisa, ou se trata de algo natural, que já está em você e que compõe seu repertório?
É como se já tivesse tudo dentro de mim. Daí, claro, amplio este campo de conhecimento e parto para a pesquisa. A de Um sonho de amor é ridícula. Tenho um folder tão lotado de imagens que sequer o consigo carregar.

Você pode contar um pouco sobre essa pesquisa?
O diretor já tinha uma grande parte dela, dividida da seguinte maneira: “A fábrica”, “A natureza”, “A cidade”, “O mundo de Emma” e “A Rússia”. Artistas do movimento construtivista russo, como Malevich, serviram de inspiração para contar o mundo da fábrica de tecidos e de seus trabalhadores; as imagens no ritmo da música de John Adams inicialmente foram estudadas como título de abertura, mas não levamos a ideia adiante. Entre os artistas russos, como referências, tínhamos pinturas de Kuzma Petrov-Vodkin, Ivan Kostantinovich, Ilya Repin, Zinaida Serebriakova, Valentin Serov Alexandrovich e Leon Bakst. Foram muitas as influências. Por exemplo, possuíamos imagens de muitos quadros de De Nittis, Sargent, e também Cézanne, Matisse e Vuillard.

Para a natureza, as referências partiram de fotos como as de Thomas Struth e de Fischli & Weiss, cujas “flores” inspiraram as cenas de amor campestre entre Emma e Antonio. Falar da natureza era importantíssimo porque era o mundo de Antonio; o universo onde se perdiam e para o qual – representado por sua casa em plena Ligúria – levou Emma. A natureza tem a ver com a paixão deles, com o amor, uma paixão mais forte que todo o resto.

Já o mundo de Emma iniciava-se na cidade. O diretor tinha várias imagens de fotógrafos nas quais a arquitetura é muito poderosa, como Andreas Gursky e Thomas Struth, e desenhos de Vespignani, Umberto Boccioni e Paolo Pace. Assistir aos filmes Rocco e i Suoi Fratelli, de Visconti, La Notte, de Antonioni, e ao documentário de Scorcese sobre Armani, Made in Milan, também ajudaram na pesquisa sobre como contar a cidade.

Finalmente, teve a casa, a principal locação. Com sua beleza pura e formal, situa-se como um mundo paralelo. Dentro de seus muros, que contêm as dinâmicas complexas de uma família, definem-se as relações com o mundo exterior. Embora esteja situada bem ao centro de Milão, faz – devido, por exemplo, a seus opulentos jardins – com que nos sintamos isolados. Serve de fortaleza para a família, mas também de prisão.

É uma casa particular?
Foi uma casa particular, que se transformou numa fundação que se ocupa de casas-museu na Itália, chamada Villa Necchi Campiglio. Quando a vimos pela primeira vez, estava vazia e em processo de restauração. Foi construída nos anos 1930 e se trata de um exemplo de arquitetura racionalista, então muito valorizado na Itália. Durante algum tempo, a casa manteve o que Piero Portaluppi, o arquiteto, originalmente projetara e desejara. Depois de alguns anos, os donos começaram a achá-la muito fria, muito austera, e chamaram um decorador importante nos ano 1950, Tommaso Buzzi, que possuía um estilo muito ornamental e que nada tinha a ver com a arquitetura original, o que resultou numa mistura de estilos muito esquisita. O desafio de meu trabalho foi, em primeiro lugar, mexer na decoração para que pudéssemos sentir a beleza fundamental do edifício, ocultando ou removendo muitos dos elementos adicionados pela intervenção posterior. Assim, permitimos que a elegância dos espaços e a riqueza dos materiais respirassem e se impusessem. Em segundo lugar – possivelmente, o maior desafio –, nos dedicamos a fazer com que os espaços grandiosos e minimalistas tivessem vida.

Através de minha pesquisa, estudei alguns exemplos de casas art déco para ter noção de como os interiores poderiam ser organizados de modo a que parecessem contemporâneos, já que o filme se passa em 2001. Logo percebi que todos os objetos, móveis e quadros escolhidos tinham de “pertencer” ao espaço e aos personagens que ali viviam. Por exemplo, tudo o que pertenceria a Emma seria extremamente feminino e delicado. Inspirei-me muito na obra de Anna Asp, na forma como define, em ambas as casas, os espaços internos em O Sacrifício (A. Tarkovski) e em Fanny e Alexander (I. Bergman), e também em Being There, de Hal Ashby.

De fato, o minimalismo da casa traz muita força à história…
O minimalismo nos interiores e a maneira como foram filmados esses espaços (os ângulos e os framings) fazem com que os personagens fiquem muito “pequenos” em comparação aos ambientes; ou seja, a casa é o símbolo de algo que os representa, mas, dentro desse set em que a família vive, há muitas áreas “vazias”, cujo ego de um pai e marido despótico não consegue preencher suficientemente. Emma anda por esses vãos, perdida, e parece estar em outro lugar, pois sente este vazio. Os filhos entram e saem da casa como se já não pertencessem ao lugar. Então, se de um lado foi importante dar vida à residência, para que o espectador acreditasse mesmo tratar-se de uma casa de uma família contemporânea, de outro, tivemos de calcular, de medir mesmo, para que se mantivesse o equilíbrio deste vazio, que reflete a melancolia de Emma.

Os figurinos também têm um peso crucial para a personagem de Tilda Swinton.
O estilo “Jil Sander” foi um acerto para os figurinos dela. Essa linha minimal, que desenha o corpo, sempre muito simples, muito austera, quase como uma freira, segura-a, controla-a. Afinal, não é uma mulher exuberante. As cores das roupas são bem fortes, como laranja e fúcsia, e servem para destacá-la do resto do mundo e das pessoas do filme. Nos frames em que aparece, você sempre a lê muito claramente. Ela pode estar andando na cidade ou no meio da multidão, e estará sempre em destaque. O corpo e o jeito de se movimentar da Tilda também colaboraram muito.

Conforme a história se desenrola, isso vai mudando…
Ela vai ficando mais livre; libertando-se dessa forma que a contém. No começo do filme, está em casa, sempre muito formal, muito dura. Quando, porém, mergulha na história de amor, de paixão e de liberdade sexual, transforma-se em outra pessoa, totalmente aberta, até chegar ao final, em que tudo se rompe e ela surge de preto.

O título do filme se dá por conta da personagem de Emma, que concentra todos os tipos de amor, de mãe, de esposa e de amante?
Não sei se você percebeu, mas há uma cena em que assiste, no quarto, com o marido, à parte de Philadelphia em que a Maria Callas canta um trecho da Tosca, “Io sonno l’amore”. O diretor é totalmente fanático por esse filme e pelo diretor Jonathan Demme. Ele quis fazer uma homenagem.

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Lego >> Louisiana

por Maru Scatamacchia Widden

Meu caso de amor com a Escandinávia começou em 1989, quando viajei em família para Dinamarca, Noruega e Suécia. A única lembrança forte que tenho dessas férias, contudo, é a de ter conhecido a Legolândia – uma cidade dinamarquesa feita inteirinha de… Lego! Jamais me esqueci deste dia. Para uma menina então com oito anos foi quase um sonho, e eu não podia acreditar que aquela mini-cidade-de-lego fosse de verdade. No último Natal, meu marido me deu uma viagem para a Dinamarca, e achei que quisesse me surpreender com uma nova visita à Legolândia. Afinal, ele sabia que essa memória de infância ainda me fascinava. Mas este não foi bem o presente, e confesso que, de início, fiquei muito decepcionada. Meu marido tentou me explicar calmamente, como um bom sueco, que iria me levar a conhecer o Louisiana, e que esta seria uma experiência surpreendente.

Tenho de admitir que estava certo. A visita superou minha viva recordação da Legolândia e me deixou em estado de êxtase, como se ainda fosse aquela criança.

O Museu de Arte Moderna e Contemporânea Louisiana fica 35 quilômetros ao norte de Copenhague, numa pequena cidade da costa chamada Humlebæk, e é um dos mais visitados do mundo. Seu nome foi dado pelo primeiro proprietário da estância, Alexander Brun, que teve três esposas chamadas Louise e as quis homenagear. Foi apenas em 1958, no entanto, por iniciativa do terceiro dono, Knud W. Jensen, herdeiro de uma das famílias mais ricas da Dinamarca, que a propriedade transformou-se em museu. Knud era um grande colecionador de arte e investiu boa parte de sua gorda poupança na idealização do Louisiana. Seu maior desejo era modificar a maneira como os escandinavos enxergavam a arte e a própria instituição “museu”. Queria, em suma, proporcionar ao espectador a sensação de estar em casa.

Para que fosse possível abrigar sua vasta coleção, Knud teve de expandir a sede da estância. Contratou, então, uma dupla de arquitetos modernos dinamarqueses, Vilhem Wohlert e Jorgen Bo, que passaram alguns meses estudando atentamente a área da propriedade e criando um projeto capaz de relacionar intensamente arte, arquitetura e natureza. O propósito era o de que se pudesse contemplar o museu como um todo: paredes, corredores, pinturas, esculturas, natureza e a vista do mar. O resultado foi despretensioso e magnífico. O visitante podia, por exemplo, observar uma escultura de Giacometti numa sala com janela de mais de cinco metros de altura e assim ainda avistar, ao fundo, um dos lagos da propriedade. Este foi, aliás, um dos pontos altos de meu passeio.

Os arquitetos foram fiéis ao desejo de Knud de estimular sentimentos de aconchego e tranquilidade – algo que se pode resumir na famosa expressão francesa “joie de vivre”. Foi o primeiro museu da Escandinávia a ter uma cafeteria, flores frescas e materiais de acabamento simples em vez de mármore, pilares e os jardins de palmeiras tão comuns nas instituições culturais nórdicas da época. Wolhert e Bo cuidaram de todas as expansões pelas quais o Louisiana passaria nos 33 anos seguintes e jamais permitiram que o projeto perdesse o ar convidativo.

Apesar de sua inauguração coincidir com um período muito próspero da Dinamarca, os anos 1960 do século XX, o modelo proposto pelo Louisiana causou controvérsia. Muitos achavam absurdo não se obedecer ali as regras de etiqueta então universalmente impostas aos visitantes de museus e válidas ainda hoje em algumas instituições. Era permitido, por exemplo, fumar dentro das salas de exposição e não havia sinais de silêncio ou pedindo para que não se encostasse nas obras.

Knud introduziu um conceito inovador e mudou a maneira como os escandinavos enxergavam a arte. Foi muito questionado por isso. Alguns chegaram até a chamar o Louisiana de “Circosiana”, pois, para enrijecidos críticos, estava mais para um circo do que para uma instituição séria. Segundo os mesmos detratores, cercado pela impressionante beleza natural da propriedade, seria impossível alguém se concentrar em arte naquele museu.

Aos poucos, porém, Louisiana conquistou e multiplicou admiradores: aqueles que entenderam o quão única era a experiência de passar uma tarde em meio a tantas coisas belas; aqueles que experimentaram as sensações de liberdade e felicidade decorrentes da interação entre arte e natureza. A fadiga, algo comum após longa visita a um museu sem janelas e sem vista (imagine-se no Louvre numa tarde de sábado), não tinha vez no Louisiana.

Para preencher as salas do museu e complementar sua coleção, Knud pediu obras de colecionadores privados e da Fundação Carlsberg – atualmente transformada no Museu Ny Carlsberg Glyptotek, em Copenhague. Originalmente, o acervo do Louisiana consistia apenas numa coleção de arte moderna dinamarquesa, da qual pretendia ser uma espécie de “santuário” e por meio da qual Knud queria declarar seu amor pela cultura do país. Alguns poucos entusiastas, contudo, questionaram por que uma estrutura tão vanguardista abrigava pinturas nem tão modernas, o que trouxe à tona o grande vazio que o Louisiana ainda não era capaz de preencher: não havia grande acesso à arte moderna e contemporânea internacional; para muitos, um grande buraco cultural na Dinamarca.

Como um bom empreendedor, Knud entendeu a necessidade de expandir o horizonte de sua disposição inicial e – apenas um ano após a inauguração do Louisiana – viajou para a Alemanha, onde teve contato com a produção de novos artistas, como de Kooning, Kline, Rothko, Vasarely, e também com a dos já muito bem conhecidos Picasso, Calder e Henry Moore. Ele admitiu que estava errado em relação ao acervo de seu museu e principalmente a respeito de seu significado para a Dinamarca. O conteúdo do Louisiana estava enraizado na tradição do país e, erradamente, não se abria à arte revolucionária internacional. Para modernizar a coleção, portanto, resolveu trazer algumas exibições contemporâneas internacionais e assim construir – lentamente e a partir dos artistas participantes da Documenta de 1959, da Vitality in Art de 1960 e do Movement in Art de 1961 – um novo acervo, aos poucos transformando o museu num centro de arte moderna e contemporânea. Hoje, a coleção contém mais de três mil obras, muitas de peso e importância internacional, e inclui nomes como Picasso, Dubuffet, Rauschenberg, Calder, Vasarely, Philip Guston, Miró, Jorn, Polke, Kiefer e Per Kirkeby.

Ao longo das décadas, a curadoria do museu tentou preencher todas as lacunas possíveis geradas pelos novos movimentos artísticos e foi capaz de construir uma coleção que abrange o novo realismo europeu, com Yves Klein, a pop art americana, com Warhol e Lichtenstein, e a arte alemã dos anos 1980, com Kiefer e Baselitz, além de algumas importantes vídeo-instalações dos anos 1990, com trabalhos de Bill Viola e Paul Mccarthy. Mais recentemente a instituição adquiriu obras de Louise Bourgeois, Philip Guston, David Hockney, Doug Aitken, Thomas Demand e Jonathan Meese, entre outros.

O Louisiana é um dos poucos lugares verdadeiramente especiais do mundo, e até hoje transpira uma atmosfera de conforto e aconchego. Entre passeios por seu extenso parque, repleto de esculturas, chás na cafeteria com vista para o mar, corredores envidraçados e obras de arte, oito horas de meu dia se passaram sem que eu percebesse que já era tempo de voltar a Copenhague. E não estava nem um pouco cansada…

#8AmorArtigo

Amizade como forma de Amor

por Carmen Maria Gameiro

Pintura de Gabriela Machado

Aquele que conhece outros é sábio.
Aquele que conhece a si mesmo é um iluminado.
– Lao-Tsé

Está no coração o desejo de amar na forma filos. Porém, se na memória a dor estiver viva, o medo impedirá a entrega ao amor. Através da experiência profissional, o terapeuta Lowen comprovou que a maior dificuldade para as pessoas se abrirem ao amor é o sentimento de culpa e seu decorrente estado de tensão. Os infelizes têm o coração fechado, inacessível ao outro.

Amar é quando o coração se abre por completo. Do fenômeno em que o coração é tocado pode acontecer o amor à primeira vista. A excitação por um olhar, um aperto de mão ou um beijo envia uma onda de calor ao corpo todo, e essa sensação cria o desejo de ficar tão perto quanto possível do ser amado. O contato físico aumenta a excitação e há uma descarga da tensão criada pelo desejo. Lowen defende a tese de que só a aceitação sem culpa ou julgamento é capaz de nos abrir ao amor filos.

Há pessoas que nutrem o tabu de não manter contato sexual com a pessoa amada. Esse tabu, segundo Lowen, advém de experiências de infância, do período edipiano, e tem como efeito a separação da personalidade: a distinção entre o amor no coração e o desejo sexual no aparelho genital – o que bloqueia a satisfação amorosa. Muitas pessoas infelizes jamais têm contato com a sensação e o desejo de amar ao mesmo tempo.

Diz o mito – relatado por Aristófanes em O banquete de Platão – que, no início, os seres eram duplos e esféricos, e os sexos, três: um, constituído por duas metades masculinas; outro, por duas metades femininas; e o terceiro, andrógino, metade masculino, metade feminino. Zeus cortou-os em dois para enfraquecê-los. Cada um tornou-se então um ser fendido, e o amor recíproco se originaria da tentativa de restauração da unidade primitiva. Muitos chamam esta busca de encontro da alma gêmea.

Os seres iniciais, no mito, não eram apenas bissexuais. Na sociedade helênica, era valorizada a amizade homossexual, sobretudo a masculina, como forma possível desse encontro. Hoje, porém, ainda há sociedades que não admitem a amizade, o carinho e o contato físico entre as pessoas do mesmo sexo. Em outras, não há qualquer possibilidade de amizade entre pessoas de sexos diferentes. Tudo é apenas uma questão antropológica e moral. O significado mais aceito sobre o mito é o do anseio do ser humano por uma totalidade do ser, um completar-se que representa o processo de aperfeiçoamento do próprio eu.

Uma pessoa com alma generosa se relaciona num contexto filos, amor ou amigo-amante, e busca qualificar a vida numa completude, contrariando a forma do amor eros, que projeta a masculinidade ou feminilidade no outro. Neste, ama-se a pessoa porque tem algo que não se tem. É ciumento, mesquinho e invejoso. A busca pelo bem e pelo belo leva o ser humano a desejar a felicidade, numa procura incessante por se apaixonar. Não se apaixona pela pessoa ou por tudo que representa, mas por uma representação interna da pura beleza, segundo Platão.

O amante filos sabe separar-se do ser amado. Vê o outro. Sua atenção está na pessoa amada. Seu relacionamento amoroso é material, ou seja, o outro existe, está aqui ao meu lado. É muito confundido, erroneamente, com um amor espiritual ou idealizado, também chamado de amor platônico. No amor eros, por sua vez, a atenção está no eu, no ego. O outro é coisificado e serve para completar e satisfazer necessidades. É egoísta.

O casamento necessita ser reestruturado. Os pares devem se perguntar: o que busco neste relacionamento? A resposta influenciará no contato amoroso com os filhos. As dúvidas e as controvérsias sobre a sexualidade devem ser amplamente discutidas entre pai, mãe e filhos, pois há um desnorteamento quanto à educação sexual, os limites e responsabilidades de cada um na educação.

Quanto aos jovens, há sinais de que não estão tão livres como pensam. Não apreenderam, não viram, não vivenciaram relacionamentos familiares maduros e amorosos. Muitos pais não exercitaram o amor filos. Desta forma, dificilmente a família poderá sobreviver, e a consequência será o vazio existencial, não raro o grande uso de drogas – legais e ilegais – que simulam a sensação de liberdade e de transgressão às normas. Contudo, a dita educação moderna sinaliza para a necessidade de uma progressiva libertação amorosa individual dentro da vida conjugal e familiar. Nem a fórmula antiga de relacionamento deu certo, muito menos a contemporânea. As mudanças e as implicações sociais são imprevisíveis.

Para uma existência feliz há de se ter coragem para as amizades verdadeiras. Filos prioriza a qualidade e não a quantidade dos amigos. É um sinal de maturidade. Olhar nos olhos e começar um relacionamento amistoso consigo antes de encarar o outro face a face.

A amizade verdadeira é uma grande mestra. Quando o coração e a mente estão abertos, a aprendizagem flui numa relação dialética, como Apolo, o deus grego, que tem por característica a harmonia resultante da tensão entre contrários. Sócrates, ao buscar respostas no oráculo em Delfos, viu escrito no portal: conhece-te a ti mesmo. Tornou essa sua meta.

É político o relacionamento filos, que nasceu na polis, precisamente no Ágora, lugar democrático onde se dialogava sobre a vida pública em Atenas. É uma noção plural. Agita e provoca mudança social. Tem a capacidade de transfundir as estruturas que sustentam o ser isolado.

A dificuldade encontrada por alguns em manter um relacionamento filos é a própria dificuldade de se relacionar com o próprio self. A amizade é um bom e poderoso motivo para criar vínculos numa estrutura social geradora de inimigos. Se as pessoas fossem mais generosas, relacionar-se-iam de forma a superar idades, gêneros, preferências sexuais e obstáculos legais e culturais.

O instinto sexual comprova o empenho da vontade ou do amor erótico para perpetuar a espécie. O amor, nesse sentido, é ilusão, visto que nele, ao conquistar o outro, cada indivíduo pensa em levar vantagens. Na verdade, apenas realiza um trabalho gratuito em favor da reprodutividade ou do desejo. Presume seguir interesses pessoais, mas segue os da espécie, na maioria das vezes sem se saber a serviço.

Com quem fazer projetos de vida se não com amigos? Quando pequenas ou grandes perdas rompem o dia a dia, nada melhor que um amigo a quem pedir o ombro ou o colo.

Felizmente, a amizade encontra vias de expressão na literatura universal, nos livros sagrados, nas belas artes, no atletismo, na culinária e no design. Está intrinsicamente ligada ao bem, ao bom e ao belo.

A amizade mais profunda é entre Gaia (a terra) e a humanidade. Através desta ecologia, entra-se em contato com o todo. É o centro da relação com o mundo descoisificado, que provoca a consciência da existência e da vida no universo.

Filos nos faz ver a luz da verdade. É um caminho para se sair da ignorância. Não abarca para si toda a verdade, mas a possibilidade de amar o conhecimento. Daí nasce o filosofar.

#7O que é para sempre?Crônica

Bicho-papão

por Léo Coutinho

Primeiro é o bicho-papão. Seus pais, querendo obrigá-lo a dormir, contam que debaixo da cama mora o tal monstro, que ataca no escuro, mas que você não corre risco se ficar comportado, quieto e se concentrar, ainda que não esteja com sono. Então, um belo dia, exausto de pavor ou com vontade de fazer xixi, você reage, controla o medo e bota o pé no chão. Sem levar a tal mordida, agacha, levanta a coberta e espia. Não ha bicho algum. Dali em diante, portanto, para fazer você dormir, seus pais abandonarão o chicote emocional e adotarão o torrão de açúcar, prometendo vantagens e facilidades se for obediente.

Na escola, é a vez do padre, do professor e do bedel. Unidos, dedicam-se antes a prevalecer sobre crianças do que a ensinar o beabá. Para eles, ser um bom aluno não significa aprender rápido, mas ser estudioso, disciplinado e obediente. Até que um dia você se cansa, deixa sua natureza curiosa, criativa e divertida fluir, e faz uma pergunta óbvia, porém tida como inconveniente, e, no lugar da resposta de quem deveria ensinar, recebe palmatória, advertência, suspensão ou coisa que o valha. Se mesmo assim não se emendar, a escola acenará com possibilidades de notas melhores e com a atenção especial do diretor. Os poucos que não se venderem acabarão expulsos.

Em família o processo é parecido. Se os avós e os tios não têm graça, compram a simpatia dos netos e sobrinhos com açúcar. Aos que não possuem sequer açúcar, resta impor a autoridade conferida pelos anos vividos. E para isso não precisam de motivo especial, basta a presença do pirralho. Um bocejo distraído pode ser entendido como falta de respeito. Quando você enfim percebe que o tempo ajuda, mas não determina o caráter nem a inteligência de quem quer que seja, resta a ameaça de que sem aquelas pessoas, que jamais escolheria como amigos, os Natais, que acontecem uma vez por ano, serão muito tristes para você e principalmente para os entes queridos de verdade. Quase toda gente fica.

Quando vem a hora de ganhar o pão, a ideia estabelecida é de que você, recém-chegado, está recebendo um favor por ser aceito naquele mercado de trabalho que funciona há anos, mesmo antes de sua existência. Ninguém ali precisa de você, mas curiosamente o pagam, ainda que pouco, pelo favor de aturá-lo. Portanto, não convém chegar antes do horário, sair depois e discutir ordens, por mais absurdas que pareçam. Se o chefe disser que dois e dois são cinco, você concordará e repetirá até ter a oportunidade de contar para o chefe do chefe que, na verdade, dois e dois são quatro. É das fases mais arriscadas. Se não for muito bem explicado, o chefe do chefe pode não entender e o demitir. Mas sempre há a chance de ganhar uma promoção, que, por sinal, é irresistível. Os que resistem se aposentam jurando que dois e dois são cinco, e vão para Peruíbe comer manjuba – o que, guardadas as proporções, não deixa de ser um prêmio.

A tirania do homem é para sempre. É o chamado instinto selvagem. Diante dela, há a opção de enfrentar o chicote ou se confortar com os torrões de açúcar. A maioria das pessoas prefere a segunda opção. Outras não aguentam e encaram as chibatadas. Os que sobrevivem levam cicatrizes profundas, que engrossam a pele e diminuem a sensibilidade, e que, tanto por imunizar a dor quanto por evidenciar as más lembranças, produzirão um novo ditador. Todos os homens da história que acreditaram no “olho por olho, dente por dente” acabaram cegos antes e banguelas depois, esquecendo-se de que a luta era pela liberdade, para no fim serem depostos pela geração consequente. Napoleão Bonaparte, Benito Mussolini, Fidel Castro, Muammar Kadafi que o digam. Por isso, muito melhor seria nem brincar com a hipótese do bicho-papão. Mas diante dela, antes que o monstro cresça e se torne realidade, convém sempre vigiar debaixo da cama.

#7O que é para sempre?Crônica

Para sempre é para poucos

por Hermés Galvão

Para sempre é para já. Para amanhã é para sempre também, para todos. Mas ontem, mudei de ideia. Porque vi o passado sentado ao meu lado, com cara de ontem, como quem sempre quis algo que durasse para sempre, mas nunca sentiu nada além de um sopro passageiro. E vi ali que para sempre é para poucos. E bons. Porque sempre é grande demais, é tempo demais. Difícil de alcançar, pela grandiosidade da coisa. Assim, ó: sempre é para sempre, muito mais eterno do que o tempo que dura. Pensar sempre é pensar grande, é ser maior que a própria vida em si. Será que te dou uma ideia da dimensão que para sempre pode ter? Está além do alcance, mas você ainda pode ser, há tempo. Porque não faz sentido estar onde se quer sem sequer saber o seu lugar. E sempre foi assim. Ontem mesmo vi. E por alguns minutos tive a impressão que aquela noite duraria para sempre. Até poderia, mas, de repente, para sempre ficou oco, sem sentido, como quando um diz para o outro “te amo pra sempre” só por assim dizer. E por assim dizer não me diz nada, nunca me disse. Não estimula, não sobe. Não rola. Rola no sentido de não acontecer e também no sentido “picatórico” da palavra. Por assim dizer, não me fala ao pau. E no broxar da noite, para sempre se tornou uma jornada longa e exaustiva, arrastada com uma internação, como assistir o soro fisiológico pingando, descendo lentamente pelo tubo até a veia. E para sempre nunca é a conta gotas. Para sempre é dose cavalar. É muito. Muito mais, muito maior. Para sempre. Sabe?

#7O que é para sempre?Crônica

Eternidade Sangrenta

por Leticia Lima

Contos de vampiros existem há milênios, mas vampiros evoluíram muito através dos séculos. Praticamente todas as culturas ao redor do mundo têm mitos referentes à criatura que sobrevive do sangue de outros, das chupacabras à Lilith, a primeira mulher de Adão na tradição judaica. Mas não foi até o final do século XIX que o vampiro atual começou a se formar. O Vampiro, que começou com Bela Lugosi e passou por Gary Oldman na adaptação cinematográfica de Drácula, do autor Bram Stoker, que foi de Brad Pitt e Tom Cruise na Entrevista com o Vampiro, de Ann Rice, e que finalmente se tornou a salsada composta por Crepúsculo, os Diários do Vampiro, True Blood e outras variações adolescentes hollywoodianas.

Mesmo aqueles que não são fãs do gênero – e confesso que sou – já conhecem todas as características básicas de um bom vampiro. Ele deve ser charmoso. Misterioso. Podre de rico. Sensível e, por trás dos dentes afiados, ter um coração muito humano (mesmo que não bata mais). Deve, é claro, viver eternamente. Na verdade, acredito que venha daí nosso fascínio por estes seres. Num mundo em que temos acesso aos recursos mais impressionantes, o que faríamos se tivéssemos todo o tempo do mundo?

Ganhar dinheiro, é claro. Sairiam pela janela aqueles empregos com carteira batida, escravos de nossa necessidade de ganhar o suficiente para pagar as contas ao final do mês. Com uma eternidade à frente, e sem ter de gastar no supermercado, por que não se arriscar com seu dinheiro? Roubar? Fraudar? Juntar uma fortuna familiar, mesmo que não seja de sua família? Não teríamos mais aquelas responsabilidades chatas que nos pesam, como a hipoteca ou o seguro do carro, a escola das crianças, o fetiche de bolsas da esposa.

Mas também não teríamos mais os laços familiares e de comunidade. Não teríamos mais as coisas que nos tornam, bem, humanos. Amor, amizade, carinho. Os laços que fazem a nossa vida valer. Ser mãe, pai, filha, filho, amigo, amante. O toque caloroso de uma outra mão, o carinho amoroso dos lábios de outro sobre nossos lábios, o olhar de pura admiração de uma criança. E então chegamos ao xis da questão – porque, apesar de sonharmos com a eternidade, livre de responsabilidades, confessamos que, no fundo, no fundo, sentiríamos falta dessas conexões. A vida eterna perde seu charme se tivermos de passá-la sozinhos, perdidos no ártico emocional.

Pois é aí que entra em cena o vampiro moderno, que pode ter o melhor dos dois mundos. Bill Compton e sua amada Sookie; Bella e Edward, que, de tão adoráveis, me dão ânsia; Damon e Stefan, os irmãos eternamente atormentados que disputam o amor de Elena – os vampiros hoje podem viver para sempre e também viver o momento, viver o amor, viver, de fato, a VIDA em cheio.

E se assim for, quem não gostaria de viver para sempre?

#7O que é para sempre?Amarello VisitaArquiteturaDesignEstiloInteriores

Amarello Visita: Ricardo Salem

Num tempo em que as únicas luzes do lugar eram das estrelas cadentes, Ricardo Salem – até então, por profissão, explorador do mundo – chegou à Trancoso.

Após uma temporada na Índia e na Europa, voltara ao Brasil com sede tropical – e foi assim que desembarcou no sul da Bahia, onde sentiria, enfim, o sabor das origens indígenas de seu povo.

Ricardo nunca pensara em ser arquiteto. Formado em Direito, tinha o sonho de se tornar diplomata, mas, em decorrência do AI-5 e, portanto, do recrudescimento da ditadura, logo desistiria. Não queria ser representante “dos milicos”. Foi para Londres disposto a “pensar” e se divertir um pouco ao lado dos amigos – também pensantes – Caetano e Gil. Em seguida, viajou pelo Rajastão e por Goa, onde adquiriu grande parte de seu repertório e de suas referências de estilo na decoração.

Refém dos encantos da mágica Trancoso, foi nesse pedaço histórico de terra brasilis que Salem resolveu ficar, 36 anos atrás, quando nativos e biribandos se misturavam a forasteiros, cineastas, mochileiros e intelectuais bicho-grilo para fazer do lugar mais uma bandeira da irmandade mundial Flower Power dos anos 1960. Sua vida passou a ser a daquela comunidade, com a qual estabeleceria profundas amizades – que atravessaram gerações e que permanecem ainda hoje.

No início, morava de favor com amigos, de galho em galho, até que resolveu ter sua própria casa. Comprou, então, um terreno no “quadrado”, a preço de banana, e começou a erguê-la – sempre com a ajuda e o conhecimento da comunidade local. “Naquela época, já tinham a cultura da marcenaria e da palha. Faziam uma colher de pau em minutos, construíam bacias para banho, mas era tudo muito tacanho e tive a oportunidade de aprimorar e sofisticar um pouco mais as dobradiças, a projeção de luz indireta, os acabamentos da palha, dando ângulo e funcionalidade a cada etapa da construção”, diz Salem.

Em terra de cego, quem tem olho é rei! Graças a este capricho extra e ao investimento na durabilidade dos materiais, Ricardo passou a ser procurado e se tornou o “fazedor de casas” da região. “Resolvi fazer algo, primeiro, que não caísse e, depois, que aproveitasse o material local da melhor maneira possível. Foi fácil, pois tudo que já existia na arquitetura indígena me parecia, com alguns melhoramentos, coisa boa!”

Assim, pegando gosto pelo trabalho, Ricardo desenvolveu uma marcenaria natural, que não usa prego nem vidro, e investiu no aproveitamento das linhas arquitetônicas locais, replicando em seus projetos, por exemplo, medidas das portas arredondadas das igrejinhas históricas.

Ricardo fundou uma escola de arquitetura baseada em elementos brasileiros e materiais rústicos, como madeira, tijolo de adobe, chão de cimento e detalhes em palha, e transferiu todo esse conhecimento para seu atual escritório, na mesma casa em que mora – a mais charmosa de Trancoso.

#7O que é para sempre?CulturaSociedade

Entre o muro e a Jabuticabeira. Eu vejo e me lembro, não vi, nem tava lá

por Helena Cunha Di Ciero

Certa vez, um pai contou-me que, quando pequeno, seu filho temia ir à praia. Um dia, ajoelhou-se junto ao menino para entender como via o mar. Compreendeu rapidamente sua aflição: aos olhos de uma criança, o oceano é uma imensidão assustadora.

Essa imagem ilustra o modo como vemos – em termos de intensidade – o trauma: o frágil indivíduo que lhe é exposto sente-se sem saída, sobrecarregado, obrigado a lidar com seus próprios recursos. Por isso é comum falar-se de experiências traumáticas na infância, já que, nessa fase da vida, estamos mais desprotegidos e menos preparados para o mundo externo.

Proveniente do grego, a palavra trauma significa ferida, que, por sua vez, vem de furo. Trauma é ruptura, cicatriz. Todos se utilizam banalmente desse conceito, sem saber do que se trata e sem refletir sobre o funcionamento da mente humana.

Vivemos à procura de satisfação e de nos desfazer daquilo que nos faz mal. Podemos dizer que estamos sempre em busca de prazer e de nos livrar do que é desagradável.

Em psicanálise, trauma é definido como um afluxo excessivo de excitação em relação à tolerância do aparelho psíquico: a quantidade de emoção é tão violenta e intensa que somos incapazes de suportá-la. Isso ocorre porque a pessoa ali exposta encontra-se despreparada, e o volume de sensações e de estímulos torna-se, em termos psíquicos, maior do que aquele que pode aguentar.

Na situação traumática, somos afogados por um excesso de emoções – como se uma cachoeira, durante a chuva, transbordasse, dentro de nós, sentimentos intoleráveis. Essa vivência ficaria armazenada, como uma explosão que tinge nosso mundo interno. O registro do ocorrido, porém, não permanece integralmente, tamanha sua força. Embora o estímulo traumático seja reprimido, sobram marcas e detalhes daquela cena. Um cheiro, um som, um lugar, uma cor, tudo de repente contaminado por aquela circunstância. De tudo fica um pouco – já dizia Carlos Drummond de Andrade.

Esse resíduo permanece então registrado em nossa trama mental; e de tal forma que, quando algo se aproxima daquele marco, sensações que pareciam adormecidas despertam. O trauma é uma vivência emocional que muitas vezes parece esquecida, podendo de súbito acordar, a despeito de nosso desejo de eliminá-la. Ficamos de alguma forma reféns dessa experiência, aprisionada, congelada dentro de nós, indigesta.

“I’ll carry it in my heart” – diz o poema de E.E. Cummings. Esse tipo de situação emocional acaba não sendo expresso em palavras, pois seu conteúdo muitas vezes é tão doloroso que se torna inominável. O inconsciente então se utiliza de imagens, representações cujo colorido emocional remete àquele momento.

Por isso são frequentes os sonhos que repetem uma passagem traumática. Durante o dia, a mente se dispõe a esquecer aquilo que a feriu. À noite, porém, com a censura adormecida, as imagens regressam. Esse retorno é uma tentativa, promovida por nosso inconsciente, de elaborar a vivência dolorosa. É como se, à noite, trabalhássemos de forma a digerir o que se passou, já que se trata de algo intoxicante. No entanto, a intensidade do fato é tamanha que este, para que a mente continue funcionando ao acordar, acaba reprimido.

Recentemente, vi a instalação da artista Rosangela Dorazio, que narra uma cena forte, ocorrida entre o muro e a jabuticabeira de uma casa durante sua infância. O que o expectador escuta sobre o episódio carrega sua imaginação com uma intensidade brutal. Ao ouvir o relato, feito por uma contadora de histórias de voz doce e suave, é como se fôssemos novamente crianças. Somos tomados por um sentimento de cumplicidade e horror, como se obrigados a testemunhar o incidente. Queremos fugir, esquecer aquela história, que, no entanto, permanece, impregnando-nos como uma memória que não quer ser esquecida e que, a qualquer momento, pode voltar a assombrar, tal qual um fantasma adormecido.

Entre o muro e a jabuticabeira, algo se passou. Eu vejo e me lembro. Vejo o muro, vejo a árvore – e isso me remete a uma situação. Contudo, não vi, nem estava lá, pois não aguentei testemunhar aquela cena. Meus pequenos olhos infantis tentaram se afastar, dividir minha mente, e fingi para mim mesma que a esquecera.

Mas há algo que se passou num espaço entre o cimento e as plantas. Ali, tomado de lembranças, nada mais crescerá. Nada que brotasse naquele canto poderia ser fértil. Aquela imagem, dali em diante, ficaria em mim, impregnada, enrijecida. Pois eu vi; não queria estar lá, mas estava. Não houve escolha.

#7O que é para sempre?Crônica

Lembranças

por Vanessa Agricola

Primeiro dia de aula. Três anos. Um menino mordeu minhas costas. Choro. Colo de mãe. Leite com farinha. Carinho. Beijinho. Consolo.

Revistinha de colorir e pintar. Lápis de cor. Um sapo dentro da piscina. Macaco que joga banana na minha cabeça. Zoológico. Bozo. Festa Junina. Sítio em Atibaia. “A Kika morreu, a Kika morreu!” Minha mãe chorando pela Kika. Mamadeira. Leite com Nescau. Casa de marimbondo. Bala Chita. Mamãe limpando minha orelha. Cotonetes. Um líquido rosa da Johnson. Toalha com capuz. Cavalinho de pau. Mudinha de roupa. Mudança. Viagem. G.Aronson.

Joãozinho e Maria. Cuca. O Sítio do Pica-Pau- Amarelo. Daniel Azulai. Vassoura piaçava. A zebrinha do Fantástico. Cid Moreira. Meu pai.

Aquela música do Caymmi: “Boi, boi, boi.” Cadeira de balanço. Vovó Alzira. A poltrona de assistir TV do vovô. Chacrinha. Domingo. Telefone de disco. Bibelô.

Brincar de escolinha com meus primos. Brincar de tudo com meus primos. Pique-esconde. Suco de caju. Quindim. O galinheiro. Medo de escuro. Dobradinha. Rock in Rio e Queen.

A separação de meus pais eu esqueci. Outras coisas importantes: aniversário de cinco anos, bolo de chocolate, fuscão preto, arroz com feijão. Paraty.

Mambucaba. Pereira Barreto. O uniforme de camisa xadrez bordado com Vanessa. “Vanessa, que nome feio”. Frase dita por Ádila, a menina malvada. Porrada na menina malvada na hora do recreio.

Cheiro de xampu da Turma da Mônica. A Turma da Mônica. Chico Bento. O Rolo. O japonês gatinho da primeira série. Foto 3 x 4. Fim de semana. Namoro.

Fralda de pano fedida. Selva de Pedra e Roque Santeiro. São Francisco de Assis. Noite de chuva. Dormir triste e acordar feliz. Pesadelo.

Cheiro de cabelo queimado. Chevette marrom. Andréia, primeira melhor amiga. Foi morar em Jacareí. Boneca Moranguinho. Saudade, gripe forte. Despedida.

Meia-calça branca com bota da Xuxa. Mochila da Company vermelha. A roupa da Viúva Porcina. Ana Alice, minha madrinha. New Wave com purpurina.

Carnaval no clube. A turma. “Olha a cabeleira do Zezé/Será que ele é/Será que ele é.” Fantasia de bailarina. Óculos de natação. Aula de piano, jazz, caligrafia, balé.

Nick. Raça Poodle com Tenerife. Dormir com Nick na casinha de cachorro. Xampu Tratto. Ração Frolic. A Pulga e o Percevejo. Carrapato. Esporro.

Andar a cavalo. Montanha. Férias em Campos do Jordão. Hotel Vila Inglesa.

Patins no gelo. Suco de cenoura com beterraba. Bife à milanesa. Macarrão.

Tia Nélia, Miss Vivian, Professor Nelson Basic Olic e Dona Elis. O Iluminismo. O Iluminado. Hello Kitty, He-Man, She-Ra, Giz.

Aquele estojo do Paraguai com régua e termômetro. Febre de 40 graus. Mononucleose. Diarreia. Vômito.
O primeiro porre de tequila. O segundo porre de tequila. O terceiro e último porre de tequila.

Mobilete Caloi verde. Trevo de quatro folhas. Amarelinha. Chocolate Surpresa. Tigre. As quatro estações. Mozart. Veneza.

Biotônico Fontoura. Própolis. Circo, mágico, o globo da morte. O dia em que vi o homem de duas cabeças no “Isto é incrível”. O dia em que achei uma nota de mil cruzados novos. Sorte.

O primeiro beijo foi no Leandro. Pêra, uva, maçã, salada-mista. Misto-quente. Gudang Garan. Maksoud Plaza. O Exorcista.

Boiar de barriga pra cima. Enterrar-se na areia. Ver o pôr do sol e o nascer do sol na praia. Os Goonies. O menino que tinha asma. Senhor dos Anéis. São Paulo, Nova York. Samambaia.

Correio elegante. Amar é… álbum de figurinhas. Julio Iglesias. Papel de carta. Legião Urbana, Kid Abelha, Elvis Presley. Tio Édio e Tia Marta.

Aquela música do Lobão: “Essa noite não/Essa noite não”.

Engraçadas as primeiras lembranças, vêm e nunca mais vão.

#7O que é para sempre?CulturaEducaçãoSociedade

Precisamos falar sobre Kevin

por Ana Paula Rocha

Um menino que mata colegas na escola em uma quinta-feira de 1999, alguns dias antes de completar dezesseis anos. O relato de sua mãe, de como entende a atitude de uma pessoa que saiu dela e a quem dedicou tempo e amor. Amor? Será que todos os seres têm mesmo capacidade de entender e absorver o amor? A maldade é uma característica adquirida ou congênita? Quanto o meio é capaz de influenciar o desenvolvimento do caráter de alguém?

Sempre achei que uma criança que cresce em um ambiente de amor, compreensão e segurança tem pelo menos 50% das ferramentas de que vai precisar (talvez sejam 80%, mas, depois do livro, tive de rever esses números). Os valores ali definidos, ou adquiridos, serão carregados para a vida e transportados para todas as relações estabelecidas no futuro: amizades, amores, filhos, netos.

Questionar o amor por um filho parece algo cruel. Somos instintivamente condicionados a amar um filho mais do que qualquer outra coisa. Eles são uma extensão de nós mesmos.

Eva e Franklyn tinham um casamento feliz. Gostavam um da companhia do outro, moravam em Manhattan, eram bem-sucedidos profissionalmente. Ela montou uma empresa de guias de viagem de baixo orçamento e viajava o mundo todo em busca das melhores recomendações. Teve contato com outras culturas e voltava para os braços de seu marido sempre renovada por seu aprendizado. Ele era um produtor de locação para comerciais de carros. Vivia contente com sua liberdade enquanto viajava pelo campo de janelas abertas, ouvindo música em sua picape, em busca do lugar perfeito.

Ela não queria ter filhos. A relação de afeto, cumplicidade, companheirismo e amor a deixava mais do que satisfeita. Não sabia se estava disposta a abrir mão desse equilíbrio. Ele queria mais. Precisava de mais. Sentia falta de poder transmitir amor para um filho, poder brincar no terraço, levar para as aulas, fazer o dever de casa e ver uma pessoa independente de você, ao mesmo tempo feita da sua própria matéria, tomar seus passos na vida.

Amor incondicional. Acho que esse é um mito e, paralelamente, um anseio de todos nós. Será que o amor de um pai é que o se aproxima mais desse ideal? Uma coisa é certa: na vida, essa é a única decisão para sempre. A ideia de que teremos uma continuidade nesse mundo é muito atraente. Nos ajuda a aceitar a morte. Nos ajuda a prezar a vida.

Kevin nasce em meados dos anos 1980. Franklyn insiste em que se mudem para uma casa fora da cidade, de modo a usufruírem das melhores escolas e de um jardim. Mais uma vez contrariada, Eva se rearranja para incorporar essa nova vida. Enquanto está em uma viagem a trabalho pela África, o marido compra uma casa que, para ela, é um pesadelo. O contrário do que considerava como lar.

Passada a tempestade, ele decidiu se afastar por um tempo do trabalho para cuidar do bebê. No período em que ela tinha viajado, tentaram algumas babás, mas nada muito duradouro. Kevin era um bebê muito insatisfeito. Urrava durante todo o dia, sem que fosse por sono, fome, frio ou dor. Nada o fazia contente. Só ela poderia assumir aquele fardo. O único momento de alívio era quando o pai chegava em casa e o menino mudava radicalmente de atitude. Ficava meigo e obediente.

Conforme vai crescendo, o comportamento diferente do menino se torna mais e mais evidente. Ele insiste em não tirar fraldas até os seis anos de idade. Não se envolve com atividade esportiva alguma, tampouco com música, filme, livro, brincadeira ou trabalho criativo. Simplesmente não tem interesses e não parece entender por que os outros gostam de coisas tão bobas.

A dificuldade de se conectar com esse ser faz Eva insistir em ter um novo filho. Precisa responder a si mesma sobre se é capaz de amar. Será que o problema é com ela? Mesmo com mais de quarenta anos, engravida; nasce uma menina, Celia. Dessa vez, a experiência da maternidade é diferente. Celia é uma menina adorável, que responde com sensibilidade a todos os estímulos trazidos pela mãe. Ela se encanta pelo mundo nos seus menores detalhes. Kevin não gosta muito da ideia de ter uma irmã, e apronta tudo que está a seu alcance para que essa criança não se sinta feliz.

Acho que um das coisas mais tocantes do livro é a forma da narrativa. Eva escreve cartas ao marido que está afastado. A sequência dos fatos é contada por ela. As emoções, as frustrações, a raiva e sua enorme tristeza. Sabemos que Celia e Franklyn foram afastados dela, e que agora vive uma vida simples, em uma casa pré-moldada em um subúrbio qualquer, e que mantém um emprego em uma agência de viagens da região. Ela relata sua nova vida ao marido, suas visitas a Kevin na penitenciária.

As cartas lhe servem como instrumento para entender o acontecido e qual a parcela de sua culpa na desgraça. É estarrecedor e muito, muito comovente. Apesar de sabermos que a genética tem papel fundamental na formação de um ser, é demasiado frustrante assumir que se perdeu o controle sobre uma tragédia.

Certamente esse livro não é para todo mundo.

#7O que é para sempre?Crônica

A nossa vida já é eterna

por Bruno Hoera

Se não está mais na internet, você praticamente nunca existiu

Desde que me lembro por gente, ao conhecer uma pessoa, tenho a terrível mania de enchê-la de perguntas. Gosto de saber sobre seus filmes preferidos, restaurantes prediletos e pessoas nas quais se inspira. Pratica esportes? Qual o livro de sua vida? Me mostre suas fotos! (Eu sempre quero ver todas)!

E, depois de muito ver e ouvir, solto a pergunta final – aquela que me apontará os verdadeiros valores de cada um: se você morresse nesse exato instante e todas suas lembranças fossem deletadas da memória, qual seria o único momento que guardaria por toda a eternidade?

Um silêncio repentino sempre decorre. São poucas as pessoas que respondem no ato e com convicção.

Porém, depois que a internet apareceu como necessidade de sobrevivência humana e, com ela, as redes sociais, tudo simplificou-se. Não há mais porquê afogar alguém em pontos de interrogação. Está tudo lá! Abra o Facebook e pronto; faça sua própria análise. Veja os filmes wannabe cult preferidos, o livro pseudo-intelectual da vida, os restaurantes caros prediletos, todas as fotos das incríveis viagens e a citação brega favorita.

Sinto, entretanto, que ainda fica faltando a questão que revela os verdadeiros valores. Falta também o silêncio repentino, a resposta que demora e a não-convicção. Tudo o que se vê é tão superficial e egocêntrico quanto uma foto tirada na frente de um espelho.

De qualquer forma, ando pensando: talvez essa minha pergunta já não faça mais sentido. Afinal, na era digital, não somos só nós que escolhemos o que ficará guardado. A internet simplificou muitas coisas e complicou tantas outras.

Tudo o que, de alguma forma, compartilhamos nas nossas redes sociais não é mais nosso. Assim, o que não está mais em nosso poder não tem mais nosso controle. Na verdade, não importa se você está vivo ou morto, as coisas que fez online estarão lá independentemente de sua vontade.

Por isso, considero a internet o canal da contradição: vídeos nos fazem rir, palavras nos fazem refletir, fotos nos fazem lembrar, mensagens nos fazem chorar. E, diferentemente das fotos reveladas e das cartas escritas à mão, essas informações nunca mais serão perdidas por completo.

Nossa caixa de cartas pode pegar fogo e nossas fotos podem perder a cor. Apesar disso, se jogadas no mar da grande rede, um dia serão encontradas pelo Google dentro de garrafas de vidro, boiando entre outras infinitas informações.

Não à toa, já foram criados sites especializados em deletar tudo a seu respeito antes que vire algo para sempre. 

Estranho é pensar que, se não está mais na internet, você praticamente nunca existiu.

Por fim, caso a gente se conheça e você me pergunte qual a única lembrança que guardaria por toda a eternidade caso morresse nesse exato momento, responderia rapidamente e com toda convicção: o dia em que acessei a internet pela primeira vez e descobri que podia fazer eternos todos os meus mais incríveis momentos.

Bruno Höera é publicitário, entusiasta das mídias sociais e acredita que a evolução da humanidade está na orkutização das boas ideias.

#7O que é para sempre?ArteArtes Visuais

Fêmea

por Monica Rizzoli

#7O que é para sempre?CrônicaCulturaSociedade

Votos

por Carlos Andreazza

Num sábado recente, Carol cochilou no sofá enquanto víamos algo na televisão. Fechou os olhos, encolheu-se um pouco, de lado, posicionou a mão sob o queixo, para apoiar a cabeça – de um jeito delicado que é só dela – e repousou. Tive então, olhando para ela, uma sensação de grandeza, de segurança, de conforto, de paz. Respirei fundo, absolutamente deslumbrado, e suspirei… De repente, percebi, meu mundo estava todo ali, nela, com ela, descansando, apaziguado, lindo, protegido, entregue, resolvido, reunido, intenso, puro, tão poderoso e ao mesmo tempo tão simples, tão humano; tão meu, tão nosso – e experimentei o sublime sentimento da completude, uma forma de eternidade, a sensação de que me bastava inteiro ali, com ela, para sempre: porque meu mundo, senhoras e senhores leitores deste ilustre fanzine, meu mundo é a Carol, meu mundo, meu máximo, meu melhor, onde sou melhor, onde vou além, onde posso; e tive então vontade de chorar, e de abraçá-la, e de acordá-la, de sacudi-la loucamente para declarar meu amor, de esmigalhá-la num abraço forte, desesperado, e de abrir a janela e gritar à cidade minha alegria, de rufar ao universo como a bateria do Império Serrano, de bradar aos vizinhos que ali estava um homem realizado, pleno, pronto e urgente para singrar e vencer os mares de uma vida a dois, e no entanto, quieto, comovido, zeloso, guardião, eu apenas a observei, admirado, minutos a fio, e fui completamente feliz.

Sou completamente feliz, assim como sói a quem ama e é amado, e grato – muito grato – por ter consciência deste amor.

Nas noites ansiosas que antecederam o dia em que nos casamos, ao longo das madrugadas anteriores àquele desejado dia, sempre encontrei o sono – a tranquilidade – pensando no modo como Carol descansou naquela tarde de sábado; pensando em que tudo que me interessava estava ali, tudo de que preciso, nos metros quadros de alcance do meu corpo; pensando em que as coisas são bem mais singelas e autênticas do que impõem a propaganda e a pressa; pensando em que, nos momentos difíceis do porvir, quando algo não der certo, sempre a terei, minha Carol, para dormir e despertar ao meu lado, para criar e recriar um canto nosso, só nosso, para me oferecer uma palavra de carinho e incentivo, um longo abraço ou um frondoso sorriso, um beijo, e que é assim – desse jeito – que eu quero que nossa vida siga e se renove, de um jeito tão intimamente fabuloso quanto a imagem dela cochilando no sofá, com a mãozinha de princesa acomodando a cabeça; e ora agradeço pela graça de ter a mulher cujo amor me é ao mesmo tempo calor e sereno.

É nisto que acredito, senhoras e senhores leitores deste romântico fanzine, para sempre, por para sempre; é nisto que aposto, que me aposto, por horizonte, por fé, por fim, e amanhã ainda mais que hoje – mais, mais e mais: nos valores da família, na fortuna de ter amigos e no amor de minha Carol, na generosidade de minha Carol, no jeito dela, nos detalhes dela, na pele dela, no olhar verdadeiro dela, esta mulher cuja leveza rejuvenesce e dá norte à minha existência, ao meu universo.

É nisto que creio: em voltar para casa, para sempre, para ela.

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Amor Dantesco

“Era uma vez, uma nobre garotinha chamada Francesca…”

Poderíamos começar assim. Mas não se trata de uma fábula, muito menos de um conto de fadas; antes, sim, de uma história verdadeira, ocorrida durante a Idade Média, aos pés do castelo de Gradara.

Situado na costa adriática, entre a “Romagna“ e “Marche”, ali um casamento político uniu Francesca da Polenta a Giovanni Malatesta. Estamos em 1275. Francesca, filha de Guido, o senhor de Ravenna, era conhecida por sua beleza e serenidade; já Giovanni, de tão feio, era chamado de “o Aleijado”. O casamento foi arranjado para selar a paz com a família Malatesta, contra a qual o pai de Francesca estivera em guerra. Quando as famílias negociavam um acordo, Guido, por conveniência, concedeu Francesca para Giovanni, o filho mais velho de Malatesta da Verucchio, lorde de Rimini.

Giovanni era um homem culto; porém, de péssima aparência, com o corpo deformado. Guido sabia que Francesca não concordaria com o casamento, de modo que a união foi realizada por procuração, através do irmão mais novo de Giovanni, Paolo Malatesta, jovem e bonito.

Francesca e Paolo foram seduzidos pela leitura da história de Lancelote e Guinevere, e logo se tornaram amantes. Um certo dia, em setembro de 1289, Paolo foi flagrado em uma de suas visitas habituais à amada, talvez por Malatestino, seu irmão mais novo – “que traidor!” –, que então advertiu Giovanni. Este saía para Pesaro todas as manhãs, onde exercia as funções de prefeito. Neste dia, porém, fingindo manter a rotina, foi embora para logo voltar e, valendo-se de uma passagem secreta, surpreender os amantes se beijando – “um beijo casto”, como depois escreveria um grande autor. Cego pelo ciúme, o monstro atravessou-os com a espada, destruindo o elo de beleza que lhe era impossível, para que morressem num abraço do qual jamais pudessem se desvencilhar, e determinou que fossem enterrados no mesmo túmulo. Mais tarde, essa cena seria para sempre imortalizada em O beijo de Rodin. Na escultura, o livro que despertou o seu amor encontra-se na mão de Paolo.

A trágica história de luta, guerra, esplendor, poder, e, acima de tudo, amor sublime entre Francesca da Rimini e Paolo Malatesta foi imortalizada por Dante Alighieri em sua A divina comédia, no canto I, no primeiro Círculo do Inferno, em que o poeta, por meio de célebre verso, imagina encontrar os amantes ainda colados em um arrebatamento de amor “… e questi che mai da me non fia diviso la bocca mi bació tutto tremante”.

Os versos de Dante, especialmente aqueles que se referem a Francesca, merecem, indubitavelmente, a máxima consideração do ponto de vista histórico, porque escritos poucos anos depois da suposta data do acontecimento e por tratarem de famílias famosas, que comandavam o temido domínio perto de Ravenna, onde o poeta passaria os últimos anos de sua vida. Esses versos têm o valor de uma verdadeira “crônica”; ou melhor, de um ato público, que as testemunhas contemporâneas da tragédia não teriam endossado não tivessem achado no relato a mais perfeita consonância com a realidade.

Depois de Dante, inúmeros foram os poetas, dramaturgos, músicos e pintores que ligaram seus nomes à trágica morte de Paolo e Francesca. De Silvio Pellico a Byron e D’Annuncio; de Mercadanete a Mancinel; de Zandonai a Caikowski e Pierre Maurice; de Ingres a Cabanel. Se é provável que cada um tenha colocado um pouco da própria alma, e um pouco do próprio coração, nessa história, cada um a seu lugar e época, revivendo o “fatal beijo de Gradara”, não se pode dizer, contudo, que algum deles tenha violado substancialmente a primeira e original versão “dantesca”.

Interrompido e sepultado para a eternidade, o amor de Francesca e Paolo, além de imortalizado por grandes artistas, é até hoje uma história envolta em uma aura de mistério, que atrai milhares de pessoas ao castelo de Gradara.

#7O que é para sempre?ArteArtes Visuais

Souvenires

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Eu poderia apenas dizer que sim

por Ana Bagiani

“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Apesar do Chico Buarque, de você e de mim, amanhã será outro dia. Apesar do Brasil, do Carnaval, do Natal, da guerra nos países árabes e até da paz mundial, amanhã será outro dia. Apesar dos anos, das décadas, da moda, dos terremotos e da tecnologia, o amanhã chegará. Apesar ainda do reino dos céus, da terra prometida, da ressurreição dos mortos, da vida eterna (amém), da Cinderela e do paraíso, o sol vai nascer a leste e brilhará absoluto no centro de nosso universo. E este sim, o sol, embora às vezes encoberto por nuvens, fumaça ou desgraça, despontará a cada novo dia.

Poderia dizer apenas que sim, há um infinito de possibilidades para além de nossos olhos. Que, assim como o horizonte, o que enxergamos é quase uma ilusão do limite inexistente. Também poderia dizer que, condição inerente, inexorável e irrenunciável da existência, a morte (e seu mistério) é o propulsor fundamental da vontade de viver, aquilo que torna a vida preciosa, única. Mas o que posso e vou afirmar é que, pensando no que é para sempre, só me vem à mente o que não é. Talvez minha dinâmica seja a da negação. Talvez minha lucidez seja minha maior condenação.

Diante da soberania e do esplendor do magnífico astro-rei, o que dizer da mínima e insignificante trajetória de uma vida? Hoje, 2011, acompanhamos em velocidade vertiginosa a evolução da criação da vida. E em outro canal da TV, simultaneamente, há um especial sobre a degradação de povos inteiros. Populações dizimadas, abandonadas à própria sorte, fruto da maior das mazelas: o esquecimento. Na verdade, não é privilégio dos nossos tempos a convivência de grandes avanços e enormes retrocessos. Há mais de quinhentos anos o homem europeu deu um grande salto evolutivo ao vencer o medo, superar o mar e chegar ao novo mundo. Mas este mesmo homem cometeu o maior genocídio da história. Exterminou tribos inteiras, e toda uma cultura se perdeu para sempre. Meu ponto é que, para o homem, não há limites. No que diz respeito a seus interesses, é incansável, invencível, destemido, egoísta. Até que um dia ele, este homem poderoso e absoluto, morre. Ele também morre, assim como tantos outros que morreram em seu nome ou pelas suas mãos. Herói, vilão. Tutancamon, Herodes, Siddartha, David, Moisés, Alexandre – o Grande, Julio Cesar, Jesus, Maomé, Tancredo, John Kennedy, John Lennon, Hitler, Lenin, Stalin, Fidel (ops!) – todos mortos. E, dentro de alguns anos (muitos, espero), você, leitor, e eu também estaremos.

Posto isso, a cabeça viaja em busca de sentido. O coração arrefece e logo tenta pulsar mais forte, como se quisesse garantir o bombeamento de sangue para sempre. Ah, coração… eu também queria que fosse assim. Mas não é. Então, o quê? O que habita nosso corpo que não seja perecível? O que é que há, para além do óbvio, que nos faz pensar em eternidade? Que poder é esse de ver, sentir, ouvir aquilo que já não mais existe? Seriam sinais de uma dimensão desconhecida, ou o simples desejo de ser imortal?

Contrariando todas as religiões, esoterismo e bruxaria, aposto na mente. No grande e desconhecido abismo que é o cérebro humano. O universo pessoal de cada um – sua mente – é um pedaço do grande painel holográfico em que consiste o planeta. Holografia é o princípio do todo em cada parte e, assim como o DNA (o código que nos define como somos), cada um de nós pode conter o universo, o todo. Nosso aproveitamento cerebral é baixíssimo, e um dos que melhor o utilizou desenvolveu uma teoria revolucionária para toda a história. A teoria da relatividade de Einstein abriu um caminho nunca antes imaginado e propôs possibilidades até então completamente ignoradas. Se as relações entre espaço, tempo e matéria não são mais absolutas, muitos fenômenos “sobrenaturais” podem ganhar status de eventos físicos. Assim como o bater de asas de uma borboleta na Ásia pode reverberar sobremaneira e se transformar em um tufão na América, as ondas de um som emitido há décadas, por se propagarem ininterruptamente, poderiam fazer este mesmo som ser ouvido hoje em algum lugar. Não se pode ainda comprovar. Tampouco duvidar.

Mas o que há em comum entre cada parágrafo acima é o que importa para este momento. Sim, acredito que haja algo que dure, que permaneça. Não sei se para sempre, até porque o próprio sol – fonte inspiradora para este devaneio – também pode um dia se extinguir. Mas há, de fato, uma coisinha que passa por todos os instantes, que faz com que cada coisa aconteça, inclusive este texto: a energia. E este é o ponto, a energia, seja ela do sol, da minha voz, de uma cachoeira, da dança dos índios, da música dos Beatles, do salto de um gato, da fúria do mar, da vida de um inseto, de uma planta que brota, de um bebê que nasce, de alguém que morre – esta fica. A energia que vem da transformação das coisas. De cada pequena coisa. De cada pequena coisa da grande coisa. De bom ou de ruim. Do choro e do riso. Da ação e da reação. Do gozo ao entorpecimento. Da explosão inicial ao fim de tudo. Do momento da concepção ao suspiro derradeiro. De mim e de você.

Em última instância, somos todos energia. Chame-a como quiser. Pra mim, é inconsciente. Não tem nome nem pronome pessoal. É atemporal. É o que faz com que me sinta comum, soberana, divina, profana. É o que é.