É sábado em Londres, bem cedo, e caminho apressadamente à galeria de arte White Cube, onde assistirei à projeção da mais recente obra do artista contemporâneo Christian Marclay, chamada O Relógio. A cidade ainda não acordou. O cinza e a neblina tomam conta dos monumentos, ainda vazios, em mais um final de semana de outono.
Ao chegar na galeria, um cubo branco no meio de uma pracinha escondida no centro de Londres, sou imediatamente direcionada ao subsolo. Lá, numa sala escura, é apresentada a obra-prima do artista. Marclay demorou dois anos para finalizar o filme, que consiste em milhares de cenas fragmentadas retiradas de várias películas. O resultado é um trabalho original, com 24 horas de duração.
Christian Marclay iniciou sua trajetória artística no final dos anos 1980 com obras baseadas em outras já existentes. Foi um dos primeiros a fazer isso com música, reproduzindo composições alheias para criar a sua própria. Foi um dos pioneiros da , denominada posteriormente, pelo crítico Nicolas Bourriaud, de Arte de Pós-produção, uma resposta à crescente troca cultural decorrente da era da informação.
São apenas cinco da manhã e a sala está lotada. Na tela, um relógio digital ecoa um alarme: é hora de acordar. A próxima cena, um relógio analógico dos anos 1960. Está tudo muito calmo. Segundo o artista, “não acontece muita coisa entre cinco e cinco e meia da manhã nos filmes”. Mas, apesar disso, eu e mais cinquenta pessoas continuamos vidrados. Cinco e meia da manhã: as cenas ainda escuras começam a ficar mais bizarras; “é a hora em que mais sonhamos” – afirma Marclay.
O Relógio é construído apenas com sequências em que a hora está evidente ou em que um personagem interage com ela. Dessa forma, seguem em tempo real. O meu percurso até a galeria de fato não fora muito diferente do clima que descobri na tela, no subsolo daquele cubo branco.
Com um compromisso marcado para as oito da manhã, eu tinha de partir logo, e o filme me informava, a cada minuto, que a hora se aproximava. Porém, como todos os demais espectadores, a experiência de ver o desenrolar da hora em uma série de narrativas diversas me fez esquecer do tempo. Naquela obra, a hora transita por diferentes períodos, cidades, ambientes e situações, e facilmente me perdi.
Umas das mais antigas invenções humanas, o relógio é um mecanismo concebido para nos informar as horas. Em sua criação, o artista explora a relação entre a métrica da hora e o que ela realmente determina em nossas vidas. Marclay nos faz refletir sobre a objetividade da hora e a questão abstrata do tempo.
Obras de arte contemporâneas são frequentemente descritas como ilusórias ou artificiais. O trabalho de Marclay certamente não se encaixa nesses perfis. O tempo mostrado ou falado é o real – aquele que controla e manipula nosso cotidiano. De fato, com as incertezas e as milhares de possibilidades da vida moderna, o correr das horas é a única constante que temos, e isso causa muita ansiedade. As cenas que o artista editou estão sempre expondo essa engrenagem.
Nesta sala de exibição, essa constante se torna variável, pois todas as cenas do filme demarcam, a cada segundo, a hora. Continuamos sem poder parar o tempo ou controlá-lo.
Teorias da filosofia e da psicologia definem três tipos básicos de tempo: o simbólico, a métrica do relógio; o imaginário, uma concepção de continuidade e de duração; e o real, o que acontece quando o tempo não segue o imaginário.
Quando estamos em um estado psicológico de transe, perdemos a consciência do tempo, da continuidade e da duração do que é apontado pelo relógio. Assim, a métrica da hora não funciona mais. E isso o artista consegue sublinhar em sua obra de forma bastante peculiar, exibindo incessantemente a hora através de cenas de ansiedade, terror e surpresa.
O transe na criação de Marclay pode ser visto como algo conceitual. Com muita técnica e sensibilidade, utiliza a arte como instrumento para induzir tal transformação em nossa consciência. Essa técnica pode ser percebida por meio do uso de sons ou do ritmo na transição de uma cena para outra. Isso é essencial para unir as narrativas e nos levar a esse transe.
As pulsões rítmicas são utilizadas pelos homens, faz muitos séculos, para transportá-los além do estado vígil e proporcionar-lhes novas experiências. Estas mesmas pulsões são adicionadas em de modo a gerar uma alteração na percepção do espectador. As narrativas díspares integram uma obra maior, em que experimentamos a perda da consciência sobre o passar do tempo.
Em , porém, não apenas a música é importante para se atingir esse estado. A utilização do filme como veículo é também fundamental para tanto. O cinema é capaz de construir um tempo artificial: as cenas editadas podem nos levar ao futuro e ao passado.
Já são quase oito da manhã e perdi meu compromisso; perdi a hora! Olhando ao redor, percebo que não sou a única. A grande maioria das pessoas também está hipnotizada, num transe temporal e espacial. Não há nada que possamos fazer, o tempo sempre passa. Nesse estado de transe, contudo, perdemos a noção dele.