#5TranseArteArtes Visuais

O Relógio

por Alessandra Modiano

É sábado em Londres, bem cedo, e caminho apressadamente à galeria de arte White Cube, onde assistirei à projeção da mais recente obra do artista contemporâneo Christian Marclay, chamada O Relógio. A cidade ainda não acordou. O cinza e a neblina tomam conta dos monumentos, ainda vazios, em mais um final de semana de outono.

Ao chegar na galeria, um cubo branco no meio de uma pracinha escondida no centro de Londres, sou imediatamente direcionada ao subsolo. Lá, numa sala escura, é apresentada a obra-prima do artista. Marclay demorou dois anos para finalizar o filme, que consiste em milhares de cenas fragmentadas retiradas de várias películas. O resultado é um trabalho original, com 24 horas de duração.

Christian Marclay iniciou sua trajetória artística no final dos anos 1980 com obras baseadas em outras já existentes. Foi um dos primeiros a fazer isso com música, reproduzindo composições alheias para criar a sua própria. Foi um dos pioneiros da Turntablism, denominada posteriormente, pelo crítico Nicolas Bourriaud, de Arte de Pós-produção, uma resposta à crescente troca cultural decorrente da era da informação.

São apenas cinco da manhã e a sala está lotada. Na tela, um relógio digital ecoa um alarme: é hora de acordar. A próxima cena, um relógio analógico dos anos 1960. Está tudo muito calmo. Segundo o artista, “não acontece muita coisa entre cinco e cinco e meia da manhã nos filmes”. Mas, apesar disso, eu e mais cinquenta pessoas continuamos vidrados. Cinco e meia da manhã: as cenas ainda escuras começam a ficar mais bizarras; “é a hora em que mais sonhamos” – afirma Marclay.

O Relógio é construído apenas com sequências em que a hora está evidente ou em que um personagem interage com ela. Dessa forma, seguem em tempo real. O meu percurso até a galeria de fato não fora muito diferente do clima que descobri na tela, no subsolo daquele cubo branco.

Com um compromisso marcado para as oito da manhã, eu tinha de partir logo, e o filme me informava, a cada minuto, que a hora se aproximava. Porém, como todos os demais espectadores, a experiência de ver o desenrolar da hora em uma série de narrativas diversas me fez esquecer do tempo. Naquela obra, a hora transita por diferentes períodos, cidades, ambientes e situações, e facilmente me perdi.

Umas das mais antigas invenções humanas, o relógio é um mecanismo concebido para nos informar as horas. Em sua criação, o artista explora a relação entre a métrica da hora e o que ela realmente determina em nossas vidas. Marclay nos faz refletir sobre a objetividade da hora e a questão abstrata do tempo.

Obras de arte contemporâneas são frequentemente descritas como ilusórias ou artificiais. O trabalho de Marclay certamente não se encaixa nesses perfis. O tempo mostrado ou falado é o real – aquele que controla e manipula nosso cotidiano. De fato, com as incertezas e as milhares de possibilidades da vida moderna, o correr das horas é a única constante que temos, e isso causa muita ansiedade. As cenas que o artista editou estão sempre expondo essa engrenagem.

Nesta sala de exibição, essa constante se torna variável, pois todas as cenas do filme demarcam, a cada segundo, a hora. Continuamos sem poder parar o tempo ou controlá-lo.

Teorias da filosofia e da psicologia definem três tipos básicos de tempo: o simbólico, a métrica do relógio; o imaginário, uma concepção de continuidade e de duração; e o real, o que acontece quando o tempo não segue o imaginário.

Quando estamos em um estado psicológico de transe, perdemos a consciência do tempo, da continuidade e da duração do que é apontado pelo relógio. Assim, a métrica da hora não funciona mais. E isso o artista consegue sublinhar em sua obra de forma bastante peculiar, exibindo incessantemente a hora através de cenas de ansiedade, terror e surpresa.

O transe na criação de Marclay pode ser visto como algo conceitual. Com muita técnica e sensibilidade, utiliza a arte como instrumento para induzir tal transformação em nossa consciência. Essa técnica pode ser percebida por meio do uso de sons ou do ritmo na transição de uma cena para outra. Isso é essencial para unir as narrativas e nos levar a esse transe.

As pulsões rítmicas são utilizadas pelos homens, faz muitos séculos, para transportá-los além do estado vígil e proporcionar-lhes novas experiências. Estas mesmas pulsões são adicionadas em O Relógio de modo a gerar uma alteração na percepção do espectador. As narrativas díspares integram uma obra maior, em que experimentamos a perda da consciência sobre o passar do tempo.

Em O Relógio, porém, não apenas a música é importante para se atingir esse estado. A utilização do filme como veículo é também fundamental para tanto. O cinema é capaz de construir um tempo artificial: as cenas editadas podem nos levar ao futuro e ao passado.

Já são quase oito da manhã e perdi meu compromisso; perdi a hora! Olhando ao redor, percebo que não sou a única. A grande maioria das pessoas também está hipnotizada, num transe temporal e espacial. Não há nada que possamos fazer, o tempo sempre passa. Nesse estado de transe, contudo, perdemos a noção dele.

#5TranseCulturaSociedade

Reflexão Iogue

por Sandro Bosco

de Fábio Gurjão

Transe tem a ver com a perda ou com a não perda da consciência? Parece mais algo impossível de descrever. Se estou em transe, não estou consciente. Então, como descrevê-lo? Não é assim que mais comumente define-se o transe? Ou esta não é a grande justificativa para não defini-lo?

Seja como for, é preciso observar e considerar mais de perto tanto as explicações alheias quanto as situações propriamente vividas, se é que você já viveu a experiência do transe. Uma vez nele, tem-se a impressão de estar fora da consciência, mas, a partir do olhar iogue, deve-se antes perguntar – o que é consciência para mim? Aquela que diz tão somente “eu sei que existo”. Esta noção da própria existência é dada a todos os seres humanos que nascem com o mínimo de saúde. Não é necessário repetir a máxima do filósofo francês, “penso, logo existo”; basta “eu existo”, pois, pensando ou não, a todo homem esta percepção é clara. Se não fosse assim, o principal medo, o da morte, não existiria.

Em sânscrito – língua em cuja fonte se encontram as centenas e centenas de escrituras do ioga –, a palavra que retrata a existência é sat e desta deriva-se satya: a verdade.

Em transe, não se tem consciência da própria existência. É algo que extrapola a normalidade, a vida cotidiana. Isto ocorre porque vivemos identificados com o que nos parece ser essa normalidade. Por exemplo, se pergunto: “Quem é você?” Você me responderá com seu nome, com o que faz, com sua profissão ou com sua relação de parentesco com alguém. Os sábios iogues nos falam que esta é a ilusão da própria noção de existência, pois esses são papéis assumidos ou escolhidos artificialmente, por força das circunstâncias.

Quando digo que sou um professor, e que me chamo João ou Maria, estou apenas dando nomes para fugir ou me distanciar de quem realmente sou. Estou simplesmente mantendo bem firme a grade da prisão de minha existência. Por que os iogues afirmam que essas funções, as quais nomeio por conveniência, são meramente casuais e, portanto, muito distantes de minha verdadeira essência? Porque temporárias, impermanentes e, pois, transitórias.

Ao longo de toda a vida o ser humano prioriza o efêmero, esquecendo-se do que é perene. Exemplifico melhor: a grande maioria dos valores do homem convencional está ligada ao corpo e à matéria, tais quais fama e dinheiro, bens passageiros, ou talvez, se preferir, permanentes enquanto durar esta vida.

Como diz o ditado, “desta vida não se leva nada que se tem ou que se possui”. No ioga, contudo, podemos assegurar: desta vida leva-se o que se é. Leva-se o quanto se pôde perceber da própria natureza. Somente em transe temos notícia da existência além do corpo físico. Será que ele serve para isso?

O transe é uma percepção temporária do quanto se consegue e se suporta sentir e experimentar a existência para além de nomes, profissões e elementos de identificação com o corpo. É algo misterioso porque excede os limites da mente. Muitos o temem pelo apego à própria existência mental.

Quanto mais identificados ao ego formos, mais estranho nos será o sentido e a experiência do transe. O ioga, porém, começa a existir no momento em que se extrapola a mente. Faz-se presente quando o sujeito faz-se presente no momento presente. É, ao mesmo tempo, o mapa e as ferramentas necessárias para se viver em um estado repleto de satisfação e deslumbramento.

Enquanto ainda não tenho pés e coração preparados o suficiente para suportar, aceitar e viver este estado maior que a vida, terei apenas instantes de êxtase – degustações de algo que excede o próprio transe.

#5TranseCulturaSociedade

Transes coletivos e a briga do pessoal

por Bruno Pesca

de Fábio Gurjão

Certo dia olhava as capas de jornais pelo smartphone e me deparei com uma notícia curiosa. Era sobre um hipnotizador britânico que prometia bater o recorde mundial de transe coletivo. Pela internet, hipnotizaria ao mesmo tempo milhares de pessoas, usando como ferramentas as redes sociais Twitter e Facebook. Nunca ouvira falar sobre recordes de hipnose em massa até ler aquilo, e nunca mais ouvi. Mas a notícia jamais saiu de minha cabeça. Não sei qual foi o resultado da experiência, nem qual é a definição das patologias que configuram cientificamente uma hipnose. Mas, numa análise estritamente social, me arriscaria a dizer que o sujeito não chegou sequer perto do recorde: transes coletivos são a coisa mais velha das sociedades, e nessa disputa sobre quem manipula mais mentes estariam hoje, mesmo que por vezes involuntariamente, governos e órgãos de imprensa de diferentes países.

Comecemos por um diagnóstico mais fácil e menos polêmico: Coreia do Norte. Em Pyongyang, por alguns momentos tive a sensação de estar em um filme de ficção científica, daqueles em que toda a população tem olhos coloridos e reluzentes, com expressões não-humanas – consequência de alguma hipnose geral. Acontecia nos museus, nas bibliotecas e em qualquer lugar onde a história do país – e até a da humanidade – era contada em versões, digamos, suspeitas, mas sem manifestação alguma de desconfiança pelos cidadãos presentes. O mais chocante eram as versões sobre como grandes inventos (materiais ou teóricos) da humanidade teriam nascido, supostamente criados pelo Great Leader comunista, e sido roubados pelo “ocidente”. Convicções percebidas como falsas acabam inevitavelmente descredibilizando seus defensores, mesmo quando mudamos de assunto para algo do qual nada sabemos. É assim entre duas pessoas e entre dois países. Compreendo então o possível ceticismo de alguns ao ouvir dos norte-coreanos sobre suas experiências com o Japão ou mesmo com os EUA, embora muito do que tenha escutado lá seja fato comprovado. A verdade, porém, é que a população da Coreia do Norte analisa o mundo de forma bem diferente de nós porque recebe dados bem diferentes (de seu governo apenas). Desconsideram fatos reais? Sim. É um comportamento coletivo? Sim. Mas se tratará de um caso isolado? Serão muito diferentes de nós por isso? Acredito que não.

Vamos para seus inimigos. Digo, inimigos dos norte-coreanos; não seus, leitor (espero). No ano de 2003, quando começou a guerra no Iraque, 75% da população dos EUA apoiavam a invasão, e 25% diziam que seria um erro. A mesma pesquisa foi feita recentemente e o resultado, bem diferente: 60% dos estadunidenses disseram que a invasão sempre fora um erro, desde seu início. Como explicar essa mudança de percepção coletiva sobre uma coisa tão séria? A resposta óbvia é que hoje dispõem de mais notícias sobre as implicações da invasão, viram o que aconteceu, e puderam reavaliá-la. Assim sendo, reconhecer isso não seria admitir que, em 2003, não compreendiam a realidade, ou melhor, que as informações que então detinham não eram o bastante para uma análise sóbria da situação? Talvez não fossem suficientes, mas foram eficazes, vide o apoio de 75% da população à iniciativa militar. Sim, poderíamos dizer que foi apenas uma aposta errada. Mas, por que razões? Não seria isso um transe coletivo? Entretanto, antes de acusarmos a imprensa de hipnotizar propositalmente as massas, vale lembrar que transes coletivos também acontecem por acaso, e que os próprios jornalistas integram a massa.

O famoso escritor inglês George Orwell, num ensaio intitulado In front of your nose, lembra que todos somos capazes de acreditar em ideias já provadas e comprovadas como falsas, e que é especialmente em nossas reflexões e decisões políticas que esse vício aflora. Orwell cita vários exemplos notórios da história britânica, cuja repetição seria desnecessária, e alerta para que, cedo ou tarde, convicções coletivas falsas chocam-se contra a sólida realidade, “geralmente num campo de batalha”. Seu texto, escrito em 1946, parece perfeito para explicar a invasão ao Iraque em 2003. Eventos geopolíticos, porém, não são o ponto aqui. A questão é que o autor chegou a usar o termo “esquizofrenia” para explicar a capacidade que o homem tem de, em graus variados, acreditar e defender ideias que se anulam porque contraditórias.

Explicar a psique humana em suas múltiplas facetas exigiria credenciais e interesses que não tenho. Mas identificar situações de transe coletivo parece tarefa mais fácil a um visitante – como em meu caso na Coreia do Norte – do que a alguém que participa do grupo em questão.

E convém lembrar que o simples instinto pelo exagero, que dá humor e fascínio à história contada, conferindo portanto graça à vida, contribui também para a criação desses transes. Talvez daí possa-se compreender a imprensa ou, quem sabe, perdoá-la pelas supostas manipulações em massa de que os mais exaltados a acusam, muitas vezes com razão. Outro escritor, dessa vez brasileiro – Stanislaw Ponte Preta –, disse uma frase sensacional quando questionado sobre o boato de que seria homossexual: “O pessoal exagera um pouco”.

Talvez então a própria proposição do hipnotizador britânico – com a qual inicio esse texto – fosse um exagero. Afinal, como disse Stanislaw, “o pessoal” gosta de exagerar. Ou talvez tenha sido o jornalista – já que estamos suspeitando da imprensa – a tentar dar graça à história. Conseguiu, pois lembro até hoje da reportagem. Fato é que transes coletivos estão por aí aos mil, sejam seus responsáveis autoridades, imprensa, ídolos ou meros boateiros.

O curioso é que, apesar da pretensa lucidez nesse discurso, também perco horas a esmo no Twitter e no Facebook, as ferramentas que o britânico utilizaria. E enquanto cumpro essas rotinas, na maior parte do tempo inúteis, não acho que ainda precise de outra pessoa no papel do hipnotizador. Já me sinto parte de um transe coletivo.

#4ColonialismoArteMúsica

Na batida da Antropofagia

por Leticia Lima

Gaby Amarantos

Gaby Amarantos, loira-de-garrafa estonteante, dona de curvas de dar inveja à qualquer mulher hortifruta, foi recentemente coroada com o título de “a Beyoncé brasileira”. Título duvidoso, pois a trajetória das duas é bastante distinta. Beyoncé Knowles, nascida no Texas, canta desde criança, vencendo seu primeiro show de talentos com apenas sete anos de idade. Fez parte do grupo musical Girl’s Tyme, que mudou seu nome para Destiny’s Child em 1993. Mas foi apenas em 1997, quando Destiny’s Child assinou um contrato com a Columbia Records, que sua carreira deslanchou. O resto todos já conhecem.

Já Gaby trilhou um caminho diferente. Gabriela Amaral dos Santos começou na carreira de cantora com quinze anos de idade, como cantora “gospel”, na Paróquia de Santa Terezinha do Menino Jesus em Belém, onde já chamava atenção por sua voz grave. Passou a cantar com a Banda Chibantes, onde o repertório misturava pop-rock com MPB. Depois passou a cantar em bares da noite de Belém. Em 2000, Gaby caiu nas graças do brega. Logo se tornou uma estrela da música paraense ao lado de sua banda, Tecno Show. Mesmo com todo o sucesso ela grava seus discos no computador que tem no quarto. Embora seja já uma veterana no cenário musical de Belém, ela repete o mesmo processo a cada CD. Uma vez pronto o conteúdo, ela improvisa uma capa e se divulga pessoalmente em rádios, tevês e com DJs que tocam o tecnobrega. Graças ao tecnobrega, Gaby fez aparições no Fantástico, Altas Horas, Caldeirão do Huck e se apresentou junto com seus dançarinos no Domingão do Faustão.

O tecnobrega nasceu no Pará. Terra da guitarrada. Terra do Calypso. Nos anos 1970 e 1980, o brega se consolidou no Pará. Nos anos 1990, o tecno estourou mundo afora, e chegou também à Belém, onde ganhou essa roupagem toda especial e foi rebatizado de tecnobrega. Hoje é uma mistura de ritmos tradicionais do Pará, como o Carimbó, o Síria, o Lundu. Filho bastardo do brega tradicional e todas essas influências musicais e do tecno, veio ao mundo graças à tecnologia e através de uma revolução no modelo de indústria fonográfica.

O sucesso de Gaby Amarantos vem não apenas do fato de que ela se apropriou de uma música e a tornou sua. Na voz de Gaby, Singles Ladies de Beyoncé se tornou o megahit Hoje estou solteira. O fato é que o sucesso de Gaby vem de um modelo de indústria criado no Pará e único no mundo. Neste caso, os verdadeiros antropófagos são os paraenses.

Com o barateamento do custo do equipamento eletrônico, os paraenses começaram uma revolução na indústria fonográfica. Todos entendemos a trajetória de Beyoncé – ela consegui alcançar o sucesso assinando contratos com gravadoras, que lançaram seus discos para o mundo. Ganha dinheiro com os direitos autorais destas musicas. No Pará, de pouco vale um direito autoral. De fato, os artistas do tecnobrega trabalham em um mercado que depende justamente da pirataria de suas músicas. Gravadas por bandas e DJs em estúdios caseiros, que muitas vezes não passam de um computador e alguns equipamentos precários de som em um sobrado, as musicas são deliberadamente distribuídas à vendedores de rua, onde são pirateadas e redistribuídas para a população local.

Na indústria tradicional, o rádio determina o sucesso de uma música. Se tocar, pega. No tecnobrega, o gosto da população determina o que toca na radio. Os CDs e DVDs de bandas e artistas são comprados nas ruas por volta de R$5,00. Se caem no gosto da população local, são pedidos em festas. Estas festas de aparelhagem reúnem milhares de pessoas em torno de um DJ, porém a grande estrela é sempre a aparelhagem – ou o poderio dos equipamentos eletrônicos. Quanto melhores, mais barulhentos e mais tecnológicos, com direito a máquina de fumaça e show de iluminação, melhor. É nestas festas de aparelhagem que o futuro dos artistas é determinado. Será um sucesso aquele que conseguir conquistar o gosto do público, através da divulgação de sua arte em CDs e DVDs pirateados na rua. O público então clama por estas músicas. Os artistas que fazem sucesso serão chamados para participar ao vivo nessas festas, e com isso ganham cachê. Este é o ganha-pão dos tecnobregueiros. Por último, essas músicas saem do âmbito das festas de aparelhagem e chegam às rádios.

A antropofagia pressupõe um canibalismo cultural: que uma cultura se aproprie de diversos elementos de outras culturas para criar uma identidade nova, única e exclusiva. O tecnobrega se apropria de musicas já conhecidas, de Michael Jackson à Madonna, e vai além – se apropria da tecnologia para virar um modelo de indústria há muito estabelecido de pernas para o ar. A indústria funciona debaixo para cima, com o povo das periferias e bairros mais pobres de Belém criando tendências e estrelas como a Gaby Amarantos. É um mercado que criou novas formas de produção e distribuição. E que veio para ficar.

#4ColonialismoCulturaSociedade

Tão longe, tão perto

por Andrea Simioni

Quilômetros e mais quilômetros no asfalto, trecho de terra dentro de um carro, sete horas em um barco e uma longa trilha a pé parecem uma odisséia, mas na verdade fazem parte de um ritual. É a preparação do homem branco que ruma em direção ao Alto Xingu. A distância percorrida prepara aos poucos o viajante para o mergulho no coração da mata e na alma do povo Mehinaku. O homem branco é um convidado na aldeia, por isso nada de colonizar, catequizar ou “civilizar” os povos do Alto Xingu. A idéia é vivenciar, sentir, fotografar, trocar, registrar gestos, olhares e o dia a dia de uma tribo que resistiu à colonização.

Carregados de influências indígenas, a maioria dos brasileiros não conhecem os índios. Pensam nele como seres mágicos, personagens de histórias fictícias e tem visões preconceituosas ou idealizadas sobre os indígenas. O que todos esquecem é que muitas vezes o brasileiro já nasce falando, comendo e vivendo como muitos índios. Falamos tupi, mesmo sem saber. Por exemplo: “Velha coroca” é velha resmungona – kuruk é resmungar em tupi.

As influências indígenas estão na língua, na culinária, no folclore e no uso de objetos caseiros diversos, como a rede de descanso. O folclore do interior brasileiro é povoado de seres fantásticos como o curupira, o saci-pererê, o boitatá e a iara, entre outros. Na culinária brasileira, a mandioca, a erva-mate, o açaí, a jabuticaba, inúmeros pescados e outros frutos da terra, além de pratos como os pirões, entraram na alimentação brasileira por influência indígena.

ALTO XINGU

Visitar os Mehinaku é revisitar a história. É voltar no tempo e refazer os passos dos colonizadores, só que dessa vez com suavidade. Apenas registrando a beleza do diferente. O povo Mehinaku sempre viveu na região do Alto Xingu. Eram muitos, mas o contato com os brancos trouxe doenças e mortes.

Em 1887, a expedição liderada pelo alemão Karl Von Den Steinen encontrou cerca de 3.000 Mehinaku, vivendo em duas aldeias. Esse primeiro contato dos Mehinaku com o homem branco foi desastroso. Epidemias de sarampo e gripe mataram crianças, adolescentes e adultos. Hoje eles são aproximadamente 200, que vivem às margens do Rio Curisevo, no Parque Nacional do Xingu, município de Gaúcha do Norte (MT),seguindo as tradições de seus ancestrais.

Os Mehinaku não possuem escrita, por isso muito de sua historia é transmitida através de mitos. Seu idioma é o Mehinaku, do tronco Aruak. Todos os membros das duas aldeias mehinaku (Utawana e Uyaipiuku) falam a língua materna, os mais jovens falam o português, mas preferem se comunicar em mehinaku, mantendo viva a língua, a cultura e a história.

BELEZA DO RITO

Chegar à tribo a noite em meio as comemorações da Yamarikumã é um privilégio, principalmente se você é mulher. Mulheres com crianças no colo dançam na praça central da aldeia. Na comemoração do Yamarikumã as mulheres invertem a situação e assumem o comando da tribo por assim dizer. Durante o rito elas usam armas, movimentos tipicamente masculinos, ornamentos de penas e chocalhos nos tornozelos, que normalmente são usados por homens; lutam, inclusive, o huka-huka. As mulheres entoam canções que se referem à sexualidade masculina. Os homens, que podem ser agredidos, se retraem.

Os Mehinaku contam que antigamente as mulheres mandavam na tribo, e possuíam a flauta do Jacuí. Numa revolta os homens tomaram a flauta e por conta disso o trabalho pesado fica por conta das mulheres. A flauta do Jacuí, símbolo de poder, não pode ser olhada pelas mulheres. Se alguma delas olhar a flauta será obrigada a ter relação sexual com todos os homens da Aldeia, com exceção dos parentes de sangue. Por isso a flauta permanece escondida, bem protegida do olhar feminino. Durante o Yamarikumã as mulheres recuperam o poder, mas continuam proibidas de olhar a Jacuí.

DIFERENÇAS

Para viver na tribo o visitante deve ser adotado por uma família indígena e passa a fazer parte daquele clã. Quem visita a tribo dorme na maloca da família, onde terá pai, mãe, irmãos. As casas estão dispostas em círculos na aldeia, em torno da praça central, que é usada para cerimônias, ritos, danças e prática de esportes tradicionais.

Querer fazer parte da tribo sem destoar é tarefa impossível. Ao pisar na aldeia, crianças e adultos correm em sua direção para olhar as diferenças. Pegam, apertam, cheiram os visitantes. Tudo isso ao fundo de um burburinho em mehinaku. Comentários diversos acontecem sem que o homem branco entenda sequer uma palavra. Tentando fazer parte da cultura local, os visitantes se arriscam apresentando a sua nudez. Mais uma vez, a diferença é brutal, os indígenas têm por beleza e estética padrões diferentes dos nossos. Imberbes por natureza, os mehinaku estranham os pelos espalhados pelos corpos dos visitantes. A estranheza do novo e do diferente reforça a sensação de que o que não é espelho ou extensão de mim mesmo, eu não entendo.

A admiração de Pero Vaz de Caminha registrada em carta, durante a sua estada no Brasil entre 22 de Abril a 10 de Maio de 1500, mostra o espanto com as diferenças. Na carta, ele diz que as moças tinham “suas vergonhas tão altas, tão serradinhas e tão limpas de cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha” (P. V. Caminha, ibidem: 36-7). Em outra parte, conta de outra índia que “sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela” (ibidem: 40).

QUEM TEM CHEFE

Nunca uma frase foi tão falsa como esta: “Quem tem chefe é índio”. Conviver em uma tribo é aprender que existem líderes naturais que desempenham algumas tarefas com maior habilidade, como caçar, construir canoas, mas nunca chefes. O respeito pelos mais velhos, e pelo conhecimento, é visível. O cacique tem importância e destaque, bem como os pajés ou xamãs, mas não reina sobre os outros integrantes da tribo.

Os portugueses sabiam disso desde 1501, quando Américo Vespúcio, cosmógrafo da segunda expedição enviada por Dom Manuel, relatou sua experiência junto aos gentios. Depois de passar 27 dias comendo e dormindo entre os “animais racionais” da Nova Terra, ele conta: essa gente não tem lei, nem fé, nem rei, não obedece a ninguém, cada um é senhor de si mesmo.

O indivíduo tem importância, é respeitado em sua singularidade. Para se ter uma idéia, o nome de um mehinaku é sua propriedade. O cacique Yumuim deu o seu nome ao neto recém nascido, por isso teve que adotar outro nome. Hoje ele se chama Kutapiene.

BALANÇO

O impacto da colonização sobre as populações nativas das Américas foi imenso. Estima-se que a população indígena do território brasileiro em 1500 variava entre 1 e 10 milhões de habitantes. Acredita-se que cerca de 1.300 línguas diferentes eram faladas. Tribos inteiras foram dizimadas em conseqüência do contato direto e indireto com os europeus.

Hoje, o Brasil abriga mais de 200 tribos, sendo que cerca de 50 de índios permanecem isolados. Acredita-se que 180 línguas, pelo menos, são faladas pelos povos indígenas.

#4ColonialismoHistória

O Brasil pega, devora e faz seu tudo o que quer e nunca pergunta se pode

por Alexandra Waldman

Há certas questões com as quais o mundo está se debatendo hoje. Uma delas, na minha opinião, é a questão do eu nacional em relação ao Estado, também conhecido como Nacionalismo. Vindo do México, vemos essa disputa em uma escala muito palpável. As idéias de soberania e de identidade nacional estão sendo rasgadas a pedaços pelo avanço da globalização. Certos fatores geográficos, como sermos vizinhos dos Estados Unidos, misturados com a nossa herança cultural Indígena/Espanhola estão causando uma crise esquizofrênica. Para mexer ou mudar algo no México é difícil e confuso e bate de frente com o peso dos nossos muitos passados.

O México tentou criar uma noção clara do que é ser mexicano pegando a idéia do mestiço e criando símbolos nacionais ao redor dele. Nossa bandeira verde, branca e vermelha com o emblema da águia parada sobre um cacto comendo uma cobra é o perfeito exemplo disso. As cores representam as idéias racionais de união, esperança e sangue que criaram o estado mexicano moderno enquanto a imagem da águia é tirada de uma lenda asteca sobre um oráculo do deus da guerra, Huitzilopochtli, que veio ao seu povo nômade e lhes disse que iriam se assentar no lugar onde encontrassem a cobra. Os astecas vagaram pelo que hoje é o México até encontrarem a cobra em uma ilha em meio a um lago, onde, conforme instruídos por seu deus, construíram a cidade de Tenochtitlán (a atual Cidade do México).

Mas o que esta nação mexicana não entendeu foi que vários povos indígenas do México não compartilham os mesmos valores e que com o passar do tempo não necessariamente irão querer fazer parte desta nova identidade mexicana. Mais de 10% da população é indígena e ainda há mais de 63 dialetos indígenas falados ao redor do país.

Enquanto que o Brasil, aos olhos de uma mexicana, aparenta ser um país livre desse peso: um tipo de sociedade-de-viver-constantemente-no-presente-e-no-futuro que não parece ter incertezas sobre como ou de onde veio. Acredito que o tamanho do país, sua intensa diversidade natural com sua distância da influência do mundo desenvolvido lhe permitiu crescer livre e sozinho. A imigração também ajudou muito. Como os Estados Unidos, o Brasil recebeu ondas de imigrantes das classes trabalhadoras, vindos em sua maioria da Europa e também do Japão (ambos na virada do século XX).

E é por isso que parece natural que o Brasil seja um dos países mais receptivos ao modernismo. O princípio básico do modernismo de ter que reavaliar e se desprender das idéias iluministas sobre Deus, o governo, a ciência e a razão para entender a complexidade do mundo moderno se encaixa perfeitamente com o desprendimento brasileiro a estas noções do velho mundo e sua identidade multicultural. A arquitetura moderna brasileira deu estrutura a estas ideias, a começar pela criação de Brasília (onde mais Brasília teria sido construída??), e o alastramento da arquitetura moderna nas metrópoles tropicais urbanas. Pense por exemplo em alguém como Roberto Burle Marx. Sua repaginação agressiva do Rio de Janeiro, transformando as ruas em oceanos. O Brasil, pega, devora e torna seu o que quiser, sem perguntar se pode.

Você pressente uma leveza e uma segurança na atitude dos brasileiros. E é por isso que não acho surpreendente que o Brasil tenha desenvolvido a música, por exemplo, acima de quase todas as outras formas de expressão cultural. O carnaval e o samba são primordiais ao ‘eu’ brasileiro. A música sendo um campo livre de limitações econômicas e culturais onde permite-se discutir as desigualdades.

Acho que é uma das razões pelas quais, em um mundo que está tentando redefinir suas noções de identidade nacional e encontrando dificuldades, o Brasil avança a largos passos sem necessidade de parar e perguntar. O que é brasileiro muda na mesma velocidade em que demorou para se tornar brasileiro.

#4ColonialismoCrônica

Para felicidade geral, digo que fico

por Adriana Calabró

A construção que abriga a Casa Watanabe, na cidade de Registro, tem mais de 100 anos. Como uma autêntica remanescente da típica lojinha de “Secos e Molhados”, tem tudo para oferecer: armadilhas, iscas, bolsas, panelas, objetos de prata, artigos de papelaria, doces, cachaça, artigos típicos da região e muito mais. A frente do negócio está o Seu Watanabe, 82 anos, um senhor de origem japonesa que, com seu jeito polido e uma simpatia ao mesmo tempo tímida e encantadora, atende os clientes. A paciência oriental monta as traquitanas, explica os ingredientes, separa os objetos, embala cuidadosamente as compras. Nesse movimento, em que a venda também é puro artesanato, ele não está só: o filho e a esposa, dona Conceição, dão o suporte na loja, a única que permanece aberta em uma ensolarada tarde de domingo. Seu Watanabe, que mora na casa que fica bem atrás do estabelecimento com o seu nome, é uma espécie de versão de carne e osso do Museu Histórico da Colônia Japonesa que fica quase em frente. Em uma das inúmeras histórias guardadas em seu arquivo mental, ele conta que seu tio foi um dos responsáveis pela carta que requisitava formalmente ao presidente Getúlio Vargas que a comunidade japonesa pudesse permanecer na região durante a Segunda Grande Guerra. Por ser uma área com fácil saída para o mar, era considerada estratégica pelo governo e não poderia abrigar o “inimigo”. Inimigo? Os ancestrais de Seu Watanabe e de Dona Conceição? Difícil imaginar. Bem, mas o importante é que graças a essa movimentação – um verdadeiro Dia do Fico Nipônico -, Getúlio voltou atrás em sua decisão e concedeu o direito de permanência à colônia que está até hoje estabelecida na região. Por toda a parte, é possível observar vestígios da cultura e da história de um povo que, com olhinhos puxados e atentos, deu sua contribuição para a cultura de Registro e de todo o estado de São Paulo. Além do já mencionado Museu, edifício do começo do século XX que funcionava como um misto de engenho e armazém e que abriga desde fotos antigas de navios até um impressionante acervo de Tomie Ohtake, a cidade traz outras pérolas. Entre elas, estão o Templo Budista, que fica a apenas 2 quilômetros do centro, e o Bunkyo, sede da Associação Cultural Nipo-Brasileira, construído com arquitetura típica japonesa e onde há aulas de ikebana, tai chi chuan , origami e língua japonesa. É possível fazer uma autêntica massagem terapêutica por lá também. E por falar em tradições, vale lembrar que Seu Watanabe e dona Conceição se casaram de acordo com um dos mais arraigados preceitos da cultura de seu país de origem. Foi há 57 anos que um Naka Udo, ou seja, um padrinho que apresenta jovens “casadoiros”, escolheu um para o outro. Olhando para os dois senhores, lindos, afetivos e muito dedicados um ao outro, não há como não pensar na sorte que tiveram. A mesma boa fortuna não se apresentou para aqueles que trabalham no mercado, também próximo da lojinha e logo ao lado do rio. Quem explica é o Benedito, 74 anos, 11 filhos, ex-pescador e atual comerciante de peixes: “Antes não havia a estrada, então tudo era feito por embarcação, lancha, vapor. Tudo acontecia aqui no rio. Depois que a estrada chegou, a cidade ficou em torno dela, lá para cima”. Realmente o edifício malcuidado parece mais uma sombra do que já foi no passado. Nada que faça o seu Benedito, que é descendente de índios, mas tem o mesmo jeito tranqüilo do Seu Watanabe, perder a esperança. “Meus clientes fixos não compram em outro lugar”. Pelo jeito mais um brasileiro que, apesar de tudo, diz que fica.

Adriana Calabró é escritora e jornalista.

#4ColonialismoCrônica

Brasil colônia

por Nuria Basker

Ó Ditinha, que cheiro é esse? É meu cheiro mesmo, tal e qual, ô sinhô. Ó Ditinha, que eu fico louco. Fica, não, sinhô, que sinhá num vai gostá. Ó Ditinha, é lá de fora ou daí de dentro esse cheiro de flor que tomou chuva, de doce que acabou de fazer? É meu cheiro mesmo, tal e qual, sinhô. Ó Ditinha, que eu fico louco. Fica, não, sinhô, que sinhá vai zangá. Esse cheiro, esse cheiro, vem ligeiro, ó Ditinha. Óia meu sinhô, que eu tenho que confessá, pra arriba de tudo, aqui no cangote, botei duas gota da colônia de minha sinhá. Ó Ditinha, mas ademais do seu cheiro e do cheiro de colônia francesa, que mais que lhe deixa assim, com esse aroma meio fruta que se come, meio vento que se escolhe? Ô sinhô, que eu tenho que confessá, ainda não fui no rio me banhá, e passô por mim um português que deixô cheiro lá do mar. Ó Ditinha, que esse português cobriu suas vergonhas embaixo do meu nariz? Foi sim, sinhô, e também o meu nego Anastácio, que tem cheiro de mato, de caça e de mau trato. Ditinha, Ditinha, olha que eu lhe bato. Bate, não sinhô, que senão meu cheiro mistura com vermeio e eu sujo tudo, até pano de prato. Ditinha, esse cheiro, esse cheiro. Ô sinhô, esqueci de mencioná, tem também o índio matreiro, que gostava de brincá, e me levou na taba, na rede e na floresta pra mó de me enfeitá. Ditinha, Ditinha, esse índio safado deu de cacique em meu reinado? Foi, sim, sinhô, e também o cafuzo Rozildo que me benzeu com água de rosa e me defumô com capim santo pra mó de me perfumá. Deu no que deu, Ditinha, esse seu cheiro confuso tá melhor que a colônia de sinhá. Ô sinhô, ô sinhô, num fala assim que sinhá num vai gostá. Ande, Ditinha, vamos ali no quarto que sinhá foi comprar novidade do turco, ao pé do Jacarandá. Vô, não, sinhô, que agora tenho que misturá tudo lá no fogão e botá pra arriba de mim o cheiro preto do carvão. Ó Ditinha, deixa disso, que num instante eu boto meu cheiro na sua pele, por dentro e por fora. Vô, não, sinhô, que despois de me cafungá, a sinhá vai brigá (Ditinha é que vai apanhá). Eu tô mandando, Ditinha, não tem que-não, nem mas-quê. Ô sinhô, ô sinhô, que essa minha vida é só de dô e odô. Ó Ditinha, ó Ditinha, esse cheiro é rio e taba, fruta e doce, mato e trato, carvão e rosa. Ó Ditinha, vem comigo lá pra dentro que minha colônia é vosmecê.


Nuria Basker é uma escritora brasileira, de ascendência italiana, nome árabe-anglo-saxão e alma xavante-nagô.

#4ColonialismoHistória

A ópera e o boi: Fitzgerald, Fitzcarraldo e Lindolfo Monteverde

por Fernando Falcon

Em 1875, Paris inaugurou sua ópera. O edifício projetado por Charles Garnier coroou o processo de renovação urbana iniciado no século XVIII, por Luis XV, e intensificado e concluído pelo barão de Haussman, em meados do XIX. Mais do que o principal local de encontro da burguesia parisiense, l’Opéra simbolizou a transformação da cidade industrial na cidade cultural, pela qual as metrópoles ocidentais passariam nos cem anos seguintes. Vinte séculos de história tinham gerado — para aquele contexto — o que de melhor a civilização ocidental produzira: o estado laico (com o fim da monarquia absolutista e da influência católica), a democracia burguesa, a arquitetura, as artes plásticas, a literatura, a música e a tecnologia (a cidade luz, com seus sistemas de água e esgoto, trens e metrô). Pode-se imaginar que um irlandês empreendedor e viajante como Brian Sweeney Fitzgerald tenha flanado por suas ruas e assistido a um espetáculo na ópera. Se já não o era, torna-se um amante dessa arte e idolatra os seus deuses — os cantores e cantoras — primeiros ídolos globais da história.

Algumas décadas mais tarde, a demanda por borracha no mundo cresceu vertiginosamente, para abastecer a recém nascida indústria automobilística. A única fonte conhecida para produção desse material era a seiva de uma árvore amazônica, a seringueira. A súbita riqueza de algumas pequenas cidades dessa região transformaram-nas em grandes pólos de geração de trabalho e oportunidades. Belém e Manaus, no Brasil, e Iquitos, no Peru, produziram uma elite que emulava os costumes europeus. A navegação a vapor tornava essas cidades mais próximas da Europa do que das cidades do sul e seus filhos estudavam em Paris e Londres. Os barões da borracha de Manaus e Belém patrocinaram a construção de teatros de ópera inspirados em Paris como ato civilizatório das cidade amazônicas. Nosso personagem, Fitzgerald, denominado a partir de agora Fitzcarraldo, foi atrás de riquezas em Iquitos. Lindolfo Monteverde, o outro protagonista, ainda não nascera, mas seus pais, lavradores miseráveis do interior do Maranhão, fugindo de uma sequência de secas, acabaram em Parintins — região extratora de látex ligada à Manaus —, misturando-se à massa de migrantes miseráveis e índios escravizados. Carregavam, além de seus poucos pertences, a tradição do bumba meu boi.

Há registros sobre a festa do bumba meu boi no Brasil desde o século XVII. Suas raízes podem ser traçadas até às festas pagãs pré-cristãs, posteriormente incorporadas à tradição católica, e a algumas tradições indígenas e africanas sincretizadas de diversas maneiras no território brasileiro. Maranhão e Piauí são os estados onde a brincadeira mais se agregou à tradição local. A festa constitui uma espécie de ópera popular. Basicamente, a história se desenvolve em torno de um rico fazendeiro que tem um boi muito bonito. Esse boi, que inclusive sabe dançar, é roubado por Pai Francisco (ou Mateus), trabalhador (ou escravo) da fazenda, para satisfazer a sua mulher Mãe Catirina (uma mulher negra, em geral muito desinibida), que está grávida (ou finge estar) e sente desejo de comer a língua do boi. Ele mata o boi. O fazendeiro percebe o sumiço de seu animal, descobre o autor do roubo e manda que Pai Francisco o traga de volta. Pajés são chamados para salvá-lo dessa enrascada e quando, depois de muitas tentativas, o boi ressuscita urrando, todos começam a cantar. Pai Chico e Mãe Catirina são perdoados.

Fitzcarraldo, interpretado por Klaus Kinski, é o personagem do filme homônimo de Werner Herzog. Retrata esse irlandês, que no fim do século XIX, já instalado em Iquitos, busca formas de gerar riqueza para construir uma ópera na cidade e trazer Enrico Caruso para ali se apresentar. Sua primeira tentativa é uma ferrovia, a trans-andina, que conectaria a região Amazônica ao Pacífico. Abandona a empreitada quando se mostra inviável sua construção e começa, então, a produzir gelo. Essa nova tentativa também fracassa. Don Aquilino, um barão da borracha, mostra a Fitzcarraldo a única região de floresta ainda não explorada e explica o porquê: o rio que acessa essa área é cheio de corredeiras e cachoeiras. Pelo mapa da área ele percebe que um outro rio, esse navegável, numa de suas curvas, se aproxima muito daquele primeiro numa área depois das corredeiras, separados apenas por um morro. Ou seja, se conseguisse atravessar um barco de um rio para o outro, dominaria essa rota e poderia se tornar outro barão da borracha. Usando seus contatos e influência, consegue a concessão dessa região e com um empréstimo dado por sua amante (Molly), dona do bordel, compra um vapor — o qual nomeia Molly Aida — e monta uma tripulação. A viagem transcorre com alguns percalços até o ponto da travessia. Ele consegue envolver os nativos no seu plano. A floresta na área é toda derrubada. Através de um sistema de cordas, roldanas, força de muitos braços e uso do próprio motor a vapor, sem contar todas as situações dramáticas, mortes e ferimento resultantes dessa empreitada épica, movem esse navio de 340 toneladas de um rio para o outro, subindo e descendo inclinações de até 40º. Comemorando o feito, embriagam-se. Praticamente desmaiados, não percebem que o barco é arrastado pela correnteza do rio. Quando acordam, já estão irremediavelmente reféns das forças das águas. O barco é bastante comprometido, mas Fitzcarraldo sobrevive e retorna à Iquitos. Todo o esforço foi em vão. Ele perde o barco e a concessão das terras. Don Aquilino, num gesto de consolação, patrocina a apresentação de uma orquestra dentro de um barco no rio para deleite de Fitzcarraldo. Fim.

Lindolfo Monteverde nasce em Parintins e desde cedo brinca de boi nas festas de junho. Ainda jovem, fica gravemente doente e faz uma promessa a São João Batista: se curado, celebraria o santo todo junho, pelo resto da vida, com uma festa do boi. Cumprindo com sua palavra, cria, em 1913, o boi Garantido e passa a festejá-lo anualmente. Em 1925, é fundado o boi Caprichoso, a rivalidade entre os dois se inicia e a partir de 1965 as celebrações ganham o formato de festival folclórico que mantém até hoje.

Fitzcarraldo nunca existiu. Ele foi inspirado pelo barão do café Carlos Fermín Fitzcarrald. Filho de pai norte-americano e mãe peruana, era uma figura violenta, que explorava trabalho escravo dos índios da região e que realmente transportou um barco através de uma montanha. O barco, muito menor do que o do filme, foi desmontado antes de ser carregado. Ele morreu num acidente com seu barco, aos 35 anos.

Klaus Kinski não foi a primeira opção de Herzog para o papel. Ele substituiu Jason Robards que teve que abandonar as filmagens ao ficar doente. Herzog teve que refilmar com Kinski as cenas já filmadas, quase 40% do total. Esse era seu quarto filme com o diretor e os dois haviam desenvolvido uma relação de paixão e ódio. A instabilidade do ator quase comprometeu a realização do filme, sendo ameaçado de morte por Herzog. Sua interpretação apaixonada e enlouquecida é um dos pontos altos de Fitzcarraldo e talvez tenha sido a última vez em que atingiu tamanha intensidade. Klaus Kinski morreu de ataque cardíaco, aos 65 anos, na Califórnia.

Werner Herzog já produzira um filme na amazônia peruana — Aguirre: a cólera dos deuses (1972) — com Kinski no papel principal. Dez anos depois iniciou a produção de Fitzcarraldo. Sua insistência em filmar somente em locações fez a Fox desistir da produção, que foi assumida por ele e seu irmão. A grande questão das filmagens era as cenas da travessia do morro e do barco nas corredeiras. Com o envolvimento dos nativos e locais, a ação foi executada conforme descrita anteriormente, sem uso de qualquer efeito especial ou ajuda mecânica. Vários participantes ficaram seriamente feridos e o próprio Herzog relata que um local pediu pra ter a perna amputada após ser picado por uma cobra. A cena das corredeiras foi filmada a partir do próprio barco, ferindo gravemente três pessoas da equipe. É comum se dizer que a identificação entre diretor e personagem na produção desse filme beira a insanidade. O epíteto de Fitzcarraldo, Conquistador do Inútil, aplicar-se-ia também a Werner Herzog.

Hoje o diretor vive e produz seus filmes em Los Angeles.

Iquitos não tem uma ópera e sua principal atração turística são as locações do filme de Werner Herzog.

Manaus conseguiu, depois de 100 anos da inauguração do teatro, criar um importante festival de ópera, mas assim como Belém, luta pra definir suas vocação como cidade e conectar-se ao restante do país.

Parintins construiu, em 1988, o bumbódromo, a arena do boi, celebrado todo ano por milhares de pessoas, sincretizando índio e branco, na disputa do vermelho e azul, garantido e caprichoso, em memória da promessa de Lindolfo Monteverde para São João Batista.

#4ColonialismoHistória

Escurecendo o chocolate: raça, exotismo e escravidão

O “branqueamento” do chocolate através de misturas com o leite, a infância, famílias e paisagens nacionais não foram capazes de apagar a coloração que ganhou como produto colonial: muito pelo contrário. A disseminação e a transformação do chocolate no hemisfério norte durante o século XIX foram acompanhadas por uma profunda mudança na economia do cultivo do cacau. A medida que o cacau começou a se desenvolver nas colônias tropicais no final do século XIX e começo do século XX, a imagem do chocolate, especialmente na Europa, foi “escurecida” de diversas maneiras.

Os especuladores buscavam novos cantos para o plantio do cacau, especialmente devido à turbulência que ocorria na produção do chocolate na America Latina. Através de vias imperiais, o cultivo do cacau se alastrou até colônias europeias no continente Africano e especialmente colônias holandesas na Indonésia. Quase no início da exploração europeia, as plantas começaram a circular no que se tornaria o mundo colonial (aparentemente mudas de cacau mexicanas foram levadas à Indonésia já em 1515), mas no século XIX isso passou a ocorrer sistematicamente.

Os pioneiros foram os portugueses, que, logo antes de sua colônia brasileira se tornar independente, levaram estacas de cacau forasteiro à sua colônia na ilha de São Tomé, próximo à costa oeste da África, em 1819. Durante as próximas décadas, o cacau se espalhou primeiramente para outros territórios portugueses, incluindo a ilha vizinha de Príncipe e a espanhola Fernando Pó (hoje Bioko), e mais tarde para o continente e assim para territórios franceses, alemães, e britânicos adiante.

O boom do final do século XIX no consumo de chocolate na Europa e a disputa acirrada europeia por territórios africanos são intimamente ligados. Em 1910, ano em que atingiu sua produção máxima, a pequena São Tomé era a maior exportadora de cacau no mundo. Foi fatalmente superada três anos depois pela colônia britânica Costa do Ouro (hoje Gana). Estavam sendo semeadas, literalmente, as sementes para a atual produção do cacau: especialmente após milhares de árvores de cacau serem atingidas por uma doença em 1986. Hoje, a líder em produção, Costa do Marfim (que não exportava cacau até 1904), e Gana, juntas são responsáveis por 70% da produção mundial.

Este deslocamento na economia do chocolate não passou desapercebido por consumidores. Como parte da absorção do produto nas fantasias nacionais dos consumidores, o chocolate se tornou uma lente através da qual os europeus podiam ver seu império. As autoridades imperiais na Alemanha e na Bélgica em especial enfatizavam a negritude do chocolate. Doces de creme cobertos de chocolate ficaram conhecidos como Negerkusse (“beijo de negro” – uma expressão, alias, emprestada dos franceses), e Mohrenkopfe (“cabeça de mouro”), nomes que carregaram até muito recentemente tanto na Alemanha quanto na Holanda. A marca alemã Sarotii tem como logotipo o “Mouro Sarotti”, que permanece até hoje uma das figuras mais reconhecidas entre as marcas alemãs. A figura, apresentada em 1918 – e não por coincidência por volta da mesma época em que a Alemanha perdeu suas colônias – é de um criado negro usando trajes mouros. Antigamente a figura também era racialmente caracterizada, com olhos esbugalhados e lábios vermelhos bem carnudos. Enquanto a imagem na verdade é uma homenagem ao endereço da sede da empresa, na Mohrenstrasse de Berlin (Rua do Mouro), sua popularidade se deve muito mais aos desejos e fantasias coloniais dos alemães. É interessante notar que, em 2004, o “Mouro” foi transformado no “Mago dos sentidos” da Sarotti – sua pele foi clareada e sua bandeja de serviçal foi substituída por estrelas mágicas – assim substituindo as fantasias raciais sobre o africano servil por fantasias igualmente raciais sobre o sensual e mágico Oriente.

Da mesma forma, o chocolatier belga Charles Neuhaus batizou sua nova fábrica de chocolate de Cote d’Or (Costa de Ouro) após voltar de uma viagem de prospecção de cacau à colônia homônima, em 1883. A embalagem de seu novo chocolate apresentava uma mescla de símbolos exóticos africanos: um elefante, uma pirâmide e uma palmeira, este último o único que realmente poderia ser encontrada no oeste da África. A empresa (hoje subsidiaria da Kraft Foods) ainda orgulhosamente emprega os mesmos símbolos, especialmente o elefante, hoje como demonstração da “experiência exótica” e, paradoxalmente, a tradição e permanência do produto.

Enquanto as embalagens e o marketing levavam o consumidor europeu a fantasiar com mundos exóticos onde se cultivava o cacau, quando o produto final chega de volta aos países africanos (o que, até hoje, é relativamente raro), representavam aos consumidores africanos a essência do requinte metropolitano e a influência civilizadora do império. Uma imagem conhecida dos shows de aventura colonial mostram os colonizadores tornando a colônia mais aconchegante com produtos alemães, especialmente o espumante Mumm e o chocolate Stollwerck. Já menos otimista, uma propaganda da Fry’s do começo do século XX mostra um engradado de chocolate que se salvou do naufrágio de um navio Britânico (uma imagem ambígua na melhor das hipóteses, dada a associação da Fry’s com a Marinha Real Britânica) e foi levado pelas ondas à praia africana, onde está cercado por nativos de pele escura que o admiram boquiabertos. Também em “casa”, o chocolate mostrava aos europeus a benevolência do império. A Banania, conhecida bebida de banana e chocolate na França, tem na embalagem um soldado senegalês que diz, “Y’a Bon” (É Bom), que une, em uma figura só, o “poder negro” do chocolate e a influência civilizadora e benevolente do império.

A fantasia colonial foi também repetidamente desmascarada pela amarga realidade. O trabalho escravo, especialmente por africanos capturados e transportados para o outro lado do atlântico, se tornou parte fundamental do cultivo do cacau durante o século XVIII, especialmente no Caribe e na costa leste da América do Sul. Aqueles que se opunham ao tráfico de escravos já há muito conheciam suas ligações com a indústria chocolateira, e empresários Quakers como o Cadbury se esforçavam pela sua abolição. Porém a abolição foi um processo lento, longo e complicado que se arrastou durante todo o século. Enquanto o tráfico de escravos foi proibido no início do século, de jure ou de facto através de bloqueios britânicos ou conflitos revolucionários, a escravidão em si continuou. A Colômbia oficialmente aboliu a escravidão em 1851 e a Venezuela (aonde, devemos lembrar, os latifundiários se rebelaram, em parte, para manter seus escravos) em 1854. Os portugueses demoraram até 1875. De qualquer maneira, nós veremos que a abolição oficial da escravidão não necessariamente acabou com a escravidão. As leis muitas vezes eram ignoradas, ou novos sistemas legais de trabalho forçado eram criados. Seja como for, o trabalho escravo continuou a produzir grande parte do cacau no Brasil até meados de 1880, e até mais tarde no oeste da África. De muitas maneiras a escravidão não foi tirada da indústria do cacau, mas sim recolocada. De uma maneira, foi isto literalmente o que aconteceu. A medida que o tráfico transatlântico de escravos diminuiu e secou durante o século, os territórios no oeste da África procuraram outro “commodity” para substituir o escravo na exportação, e o cacau, muito popular, se tornou uma excelente opção.

Os portugueses levaram, junto com o cacau, seu sistema de trabalho forçado das plantações no Brasil às suas colônias no oeste da África. Uma vez que o tráfico de escravos foi oficialmente abolido, já não era mais viável atravessar o Atlântico, mas em sua fonte, no oeste da África, ainda era funcional pois permanecia invisível aos olhos internacionais. Um escândalo abalou a indústria de chocolate britânica no começo do século XX, depois que o jornalista Henry Woodd Nevinson viajou até as colônias portuguesas de São Tomé e Angola, em 1905, a fim de investigar boatos de que a prática da escravidão ainda estava em vigor nestes lugares. A Cadbury, que há muito comprava o cacau de São Tomé, estava investigando os boatos quando o relatório – e fotos – de Nevinson foram publicados, primeiro na revista Harper’s Monthly Magazine, e depois em seu livro A Modern Slavery. A Cadbury foi acusada de ser conivente com a escravidão. Em 1908, a Cadbury Bros. processou o jornal Standard, de Londres, por difamação após publicarem um artigo no qual acusavam a empresa de hipocrisia em continuar a comprar o cacau de São Tomé. No julgamento que seguiu, a Cadbury argumentou que apesar de estar ciente de alguns abusos de trabalho, sua posição como comprador de cacau era o que lhe dava algum poder para ajudar a melhorar as condições de trabalho (este argumento seria usado novamente em conflitos na África do Sul, bem mais tarde). O júri votou a favor da Cadbury, mas a publicidade não foi de todo boa, e a indenização no valor de um farthing (moeda inglesa) por danos não demonstrava muito altruísmo por parte da empresa.

O que pode ser chamado de um último suspiro esquizóide do longo século XIX na história do chocolate pode ser visto em uma campanha de marketing holandesa de 1958. A propaganda começa com as recomendações padrão para as mães darem apenas chocolates “puros” e “nutritivos” aos seus filhos: “Mamãe, dê a eles algo gostoso. Dê a eles algo nutritivo também…. Chocolate granulado Venz. Assim eles comem o chocolate mais puro – repleto de gorduras, proteínas e cálcio altamente digeríveis.” Ao lado da imagem do produto, completo com a imagem da criança feliz na embalagem, tem uma imagem dos indonésios nativos, generosa e gentilmente oferecendo seus frutos de cacau. Como sempre, esta imagem esconde uma relação bem mais complexa do que a aparente. Esta visão da benevolência maternal/colonial veio, ironicamente – mas provavelmente não coincidência – no mesmo ano que o governo da Indonésia nacionalizou a indústria holandesa e os holandeses foram formalmente expulsos de sua ex-colônia. Como em tantas outras circunstancias, foi o chocolate a ferramenta escolhida para “adoçar” os âmagos – ao menos simbolicamente.

Trecho do capítulo 3 do livro “Chocolate A Global History”, de Sarah Moss a Alexander Badenoch, publicado pela Reaktion Books, Londres 2009.

#4ColonialismoArteArtes Visuais

Storytelling

por Theo Firmo

#4ColonialismoArteFotografia

Terra do nunca

#4ColonialismoCulturaSociedade

Espaço brasileiro em espaços complicados

por Bruno Pesca

Gosto muito da etiqueta com a qual nossos anfitriões em países de segurança conturbada geralmente se referem a grupos rebeldes, terroristas ou qualquer interessado em decapitar algum turista desavisado no local. “São pessoas complicadas, vocês precisam tomar algum cuidado”, disseram-me em um país do chifre africano. Ao ouvir estes termos, meus primeiros pensamentos remetem a uma breve revisão de conceitos pessoais, sugerindo que a experiência com aquela ex-namorada na adolescência nada me ensinou sobre o que é lidar com uma pessoa realmente “complicada”. Antes do pânico, porém, ouve-se em nosso caso um confortante atenuante: “Mas vocês são brasileiros, sabe? É menos mal!”, completou o anfitrião.

Por conta do nosso futebol, e cada vez mais também pelas novelas, apresentar-se como brasileiro tende a ser uma vantagem na maior parte do planeta. Muitos cronistas esportivos já escreveram muitas linhas sobre a magia da camisa amarela de nossa seleção. Mas fora de campo, é viajar a lugares conturbados que nos faz conhecer essa magia de perto. Desde liberar a entrada na fechada Coréia do Norte, até evitar a prisão em um incidente policial em Teerã, a camisa canarinha já tinha feito de tudo por mim. Não por outra razão tinha meia dúzia delas na mala ao pousar em Bagdá, e ao cruzar a fronteira somali.

Não é difícil testemunhar a influência cultural avassaladora da televisão e cinema estadunidense, mesmo em países onde os EUA não são exatamente queridos. Política, economia e ódio nem sempre se misturam com a diversão pessoal. Nosso futebol, como vem do Brasil, não remete a diversos assuntos, e por isso vai além e baixa a guarda mesmo de pessoas consideradas bem complicadas. Não é de hoje que testemunhamos soldados, mercenários, jornalistas ou aventureiros britânicos, norte-americanos ou de onde seja, vestindo nossa camisa amarela quando em países como o Irã ou Iraque.

No Iraque foi onde, aliás, mais depositei esperanças no fato de ser brasileiro como forma de segurança. Havíamos pousado há mais de duas horas na capital do país, e ainda não tínhamos uma maneira razoavelmente confiável de chegarmos até o hotel. O percurso, segundo as fontes, levava de meia a duas horas, dependendo dos check-points e de possíveis contratempos no caminho. “Contratempo” aqui é outro termo fino usado por pessoas desesperadas por uma vida normal em Bagdá, e no caso engloba um conjunto de possibilidades entre as quais a chance substancial de você jamais chegar ao hotel, ou a nenhum outro lugar.

Já no primeiro check-point, fomos obrigados a exibir o passaporte, e o resultado imediato foi um soldado iraquiano pedindo para tirar fotografias com a gente. Acenou para seu comandante, fazendo sinal de que iríamos tirar fotos. Negativo, recebeu de volta por gestos. O soldado pediu nossos passaportes, afastou-se do carro e os levou até as mãos do comandante, provando a ele que não seria uma quebra de protocolo qualquer. Agora o soldado estava autorizado, e o comandante só não pediu ele mesmo por fotos com a gente pois havia muita gente observando toda a ação.

Dias antes, em Teerã, tivemos um incidente que quase culmina em cadeia, e tensão diplomática entre Brasil e Irã. Nessa ocasião, evitamos nossa prisão ao falar em Ronaldo e no futebol brasileiro. Filmávamos em local proibido, e fomos detidos por uma patrulha. A polícia diplomática do país foi acionada, e chegou com atitude de poucos amigos. Após minutos de desculpas e explicações em vão (com ajuda de um tradutor voluntário), uma segunda patrulha foi acionada, e depois uma terceira, até a coisa escalar a proporções bem assustadoras. A disposição em nos levar para a cadeia só relaxou quando invoquei – ou melhor, inventei – a enorme simpatia de nossos craques pelo país deles. Por sorte, o chefe de polícia tinha muito interesse e muitas dúvidas sobre as informações que recebia na imprensa em relação a forma física de nosso Fenômeno, recém chegado ao Corinthians.

Nossa penetração cultural também se dá em países longínquos com as telenovelas. No Timor Leste assiste-se a capítulos inéditos de Malhação e outros folhetins de sucesso por aqui. Na Albânia, semanas atrás, nossa recepcionista e todo staff do hotel eram incapazes de desgrudar os olhos da televisão, na expectativa que a Patricia Pillar fosse enfim desmascarada na novela A Favorita. Cruzei com novelas brasileiras recentemente em mais de dez países, e lembrar de mais exemplos seria desnecessário. Pelas vias do talento, influenciamos a vida e conquistamos a simpatia de diversos povos. Muito se discute hoje se maiores interferências do governo brasileiro em delicadas questões internacionais não seriam capazes de alterar o sentimento desses povos sobre o Brasil.

O que as vezes parece ser a regra, num espectro maior fica claro que é a exceção: não surpreende o fato de cidades como San Diego, Madri, Sydney ou Miami não abrirem os maiores sorrisos para a camisa da seleção brasileira. Isso porque estão abarrotados de brasileiros sem educação, com ou sem dinheiro. Jaques Atali previu há décadas atrás um futuro onde jovem ricos e pobres seriam nômades globais, os primeiros atrás de diversão e experiência, e os segundos atrás de emprego. No que se refere a diversão e experiência, nossos jovens viajam ao exterior, voltam sem ter aprendido praticamente nada, e ainda repetem no ano seguinte a mesma viagem, trazendo excessos de bagagem por compras de supérfluos. De outro lado, os jovens da elite de países bem educados, como os escandinavos, têm lotado os albergues e praias da zona sul carioca, e procuram meios para residir aqui. Esses parecem ter mais chance numa prova de história brasileira do que quase todos os meus amigos brasileiros em San Diego.

Gosto muito da mesma etiqueta com a qual esses gringos residentes e apaixonados pelo Rio se referem aos problemas da cidade, em conversas onde o anfitrião subdesenvolvido agora sou eu. É interessante que em um caso ou em outro, aqui ou no chifre africano, é o brasileiro que sempre parece ser o privilegiado da conversa. E do planeta. Apesar de alguns de nós sermos bastante complicados.

#4ColonialismoHistória

O “bom” Nassau: Um invasor muito genial

por Carlos Andreazza

Albert Eckhout (1610 – 1665)

Não me engano naqueles discursos – mui críticos da colonização portuguesa do Brasil – segundo os quais a cousa teria sido diferente (e melhor) acaso fôssemos uma ex-colônia holandesa, por exemplo. Diferente, é provável. Melhor… Não sei. Ou não estará aí o miserável Suriname, vizinho nosso, para nos pulguear a orelha?

Portanto, exercendo a minha soberania (concessão, dirá meu nobre editor) sobre este território impresso, informo: o presente escrito não se destina a teses de supremacia de um projeto colonial em detrimento de outro, tampouco se lança a especulações sobre como nos teríamos quedado se – olha o se aí – a empresa holandesa no Nordeste afinal triunfasse. Ora ignoro – ou quero ignorar – os exércitos, as estratégias, os modelos de exploração (quais sejam, estabelecidos em maior ou menor pilhagem dos recursos nativos), o poderio econômico etc.; e desprezo apaixonadamente a noção de pátria e a ideia vulgar de nação. (Ressalvada, claro, a Nação Rubro-Negra). Portugueses, holandeses, espanhóis, ingleses, assim, de modo geral, os colonizadores!, eles pouco me importam e eu os descarto solenemente.

Meu interesse é personalista e se detém a uma só figura – razão fundamental deste texto: João Maurício de Nassau-Siegen (Johann Moritz von Nassau-Siegen), o conde alemão que, contratado pela Companhia das Índias Ocidentais neerlandesas para governar o Brasil Holandês, chegou a Recife em 1637 e ali fundou a sua ambiciosa Cidade Maurícia (Mauritsstad).

A prova clamorosa do sucesso da empreitada de Maurício de Nassau no Nordeste e da força de permanência de sua influência cultural-afetiva junto à população do Recife está, entretanto, no desaparecimento – quase imediato – de seu legado arquitetônico. É sintomático e curioso… Dispostos a apagar – sem vestígios – qualquer marca que remetesse ao período de dominação neerlandesa, os portugueses, ato contínuo à expulsão dos “invasores”, destruíram, de forma consciente, tudo quanto fora erguido pelos holandeses.

E não foram poucas as obras de engenharia encomendadas por Nassau, por meio das quais, de resto, disseminava os valores de sua formação protestante: com a pretensão declarada de transformar Recife em uma capital moderna e dinâmica, investiu na construção de Mauritsstad, cujos traçados urbanísticos ainda conformam os atuais bairros de Santo Antônio e São José, aterrou áreas alagadiças, drenou terrenos, abriu canais, construiu diques, ergueu pontes etc. Para si, mandou edificar dois palácios, Friburgo e Boa Vista, os quais cercou de monumentais jardins que, por sua vez, continham jardins botânicos e zoológicos.

Tudo isso – salvo uma ou outra ruína – perdeu-se. Não fosse a arte, sempre ela, e nada teríamos de material – de físico, concreto, palpável, visível – sobre os quase sete anos de governança de Nassau no Nordeste. É espantoso; milagroso – eu diria. Tudo foi ao chão, prédios inteiros, sólidos edifícios, frondosos palácios; e hoje, improvavelmente, são os desenhos e as pinturas de artistas viajantes os únicos guardiões daquele tempo; os derradeiros heróis ilustrados, senhores daquela história.

Jamais me parecerá pouco que um colonizador – um “invasor”, comandante frio de um exército acostumado a guerras e conquistas – tivesse a preocupação de contratar para sua comitiva, em pleno século XVII, um grupo de artistas; e isso com a clara intenção de documentar, para si, os cenários e os povos do Brasil.

Quando ouço alguém exaltar a de fato extraordinária Missão Francesa de Dom João VI – que, em 1816, fez vir ao Rio de Janeiro artistas como Debret, Taunay e Grandjean de Montigny, entre outros –, sempre me pergunto, sempre deslumbrado, sempre instigado: e Nassau, meu deus?; o que dizer da iniciativa de Maurício de Nassau!?

Sim, é evidente que havia muito de vaidade naquilo. O conde, cultíssimo, ao mesmo tempo bem-relacionado e ambicioso, não estava alheio aos costumes da aristocracia europeia, cujos gostos então já se voltavam para as artes, compreendidas também como um símbolo de status; e era natural que desejasse constituir uma coleção própria e, mesmo, acumular bens culturais para, num futuro incerto, presentear poderosos e lhes colher a proteção e as benesses.

Mas e daí?

Nassau era, antes de tudo, um amante das artes. Enquanto esteve no Brasil, entre 1637 e 1643, e a partir das poucas notícias de que dispomos sobre os seus palácios em Mauritsstad, aventa-se que telas de Frans Post e Albert Eckhout lhes tenham decorado – com destaque – os salões mais importantes. Sabe-se que esses artistas eram então tratados com as melhores deferências e distinguidos – algo ainda incomum – como membros especiais daquela corte, e que almoçavam e jantavam à mesa do conde. Eram muito bem remunerados e, ainda que tivessem obrigações artísticas contratuais a cumprir, estimulados a produzir livremente e providos de todas as facilidades para tanto.

A idéia do mecenas moderno – o homem poderoso, hoje comum, quase banal, que financia criações artísticas generosamente – tem em Maurício de Nassau um de seus mais relevantes fundadores. E isso – repito – na década de 1640!

Venho de me dedicar longamente – por quase um ano – ao catálogo raisonné do pintor Albert Eckhout. Já conhecia a obra completa de Frans Post – publicada, com sucesso, pela editora em que trabalho – e era, como se nota, antigo admirador e entusiasta de Nassau. Sabia, porém, muito pouco de Eckhout.

Apesar das belíssimas paisagens de Post, creio (hoje posso afirmar) que nenhuma obra representa melhor o período holandês no Brasil e, portanto, as pretensões intelectuais de Nassau e o modo como compreendia e se relacionava com as culturas aqui de súbito reunidas, que a de Eckhout; e isso por um motivo simples: ele foi o retratista oficial daquela corte e, com fabulosa originalidade e inegável habilidade técnica, pintou alguns óleos cuja observação é impactante mesmo para os padrões visuais correntes e que representam e documentam um momento muito peculiar de transformação. Mais do que retratos das gentes, dos brasileiros, dos índios, dos negros, dos mestiços etc. – o que, por si só, já significaria uma inovação espetacular –, são retratos do encontro entre esses povos; e se carregam de todas as consequências imediatas disto.

Que se tenha em precisa conta sempre o seguinte: Frans Post e Albert Eckhout foram os primeiros pintores viajantes que retrataram o Brasil; os pioneiros. É evidente, pois, que criaram sob um olhar condicionado, certamente contaminado pela busca do exótico e em perfeita consonância com a visão eurocêntrica segundo a qual tudo quanto estivesse do outro lado do Atlântico seria excêntrico e genericamente definido por Novo Mundo.

Uma vez que fosse o retratista de Nassau e que se dedicasse especialmente a representar as pessoas recém-chegadas que compunham a novíssima população brasileira, é em Eckhout – no trabalho desse pintor – que se revelam de maneira mais candente os preconceitos, as tensões e as expectativas daqueles encontros.

Aqui, vou me dedicar, brevemente, à Mulher africana do artista, este monumento à sexualidade e à fertilidade ou, mais formalmente, à interação entre as gentes e à fluidez entre os limites étnicos; quadro que avalio ser uma obra prima. Afora o fato de que a figura seja a precursora – ainda não reconhecida e valorizada – do modelo de silicone em voga nos seios (prestes a explodir) de algumas moças da tevê, representa, por meio de seu corpo vigoroso, mas, também, de suas (breves) vestes e de seus adereços, e do panorama de fundo, a reunião idealizada de vários povos do planeta em um ambiente tropical, e simboliza, de uma maneira não menos fantasiosa, o projeto colonial de Maurício de Nassau e o jeito pacífico, ameno, miscigenado, firme mas discreto, como desejava impor o seu domínio. (Tudo seria maravilhoso, mas desde que sob seu controle).

Trata-se – não nos esqueçamos – de uma negra africana e, pois, de uma escrava. Tal qual Eckhout, no entanto, ela é igualmente estrangeira – o que os aproxima. A composição da tela é, como se diz, “uma viagem”, e agrupa, por exemplo, num litoral claramente brasileiro (em que índios pescam à praia), um cesto transbordante de frutos tropicais, uma saia e um chapéu africanos característicos e um cachimbo tipicamente europeu, assim como podem ser também classificados os brincos burgueses e o colar de pérolas.

O conjunto resulta numa saborosa mistura – francamente artificial – de elementos de diversas partes do mundo, espécie de Epcot Center da época, que se destinaria, especulemos, a forjar a identidade cultural do futuro sob as rédeas dos holandeses e, especificamente, de Nassau. (Aliás, a mesma interpretação serviria, com singelas adaptações, à Mameluca de Eckhout). A criança do quadro, o filho, ouso dizer, indica – nada a ver com o norte malicioso que dá à espiga de milho – este porvir de dupla nacionalidade harmônica, ao segurar o cereal, próprio às Américas, e o pássaro identificado como a “ave do amor africana”. Era a paz – a união – permitida pela generosa matriarca da humanidade, a Sra. Europa, e concedida, como uma graça, pelo Governador-Geral, o conde Maurício de Nassau.

Estou entre aqueles que consideram que os maiores personagens históricos brasileiros só logram de fato a grandeza quando enfim homenageados por um enredo de escola de samba carioca. É verdade que nem sempre funciona, como nos lembram os desfiles que reverenciaram tipos como Beto Carrero, Chico Recarey etc. Exceções terríveis que confirmam a deliciosa regra.

Nassau, não obstante fosse o “invasor” e, logo, o inimigo, aquele que desafiou a ordem portuguesa e o orgulho da tradição conquistadora lusa, brilhou, direta ou indiretamente, em dezenas de enredos que cruzaram a passarela ao longo das décadas – os do Império Serrano em 1959 e 1968, o da Vila Isabel em 1972 [obra de Martinho da Vila, que, aliás, refere-se ao conde, com imensa felicidade, como “Bom Nassau”], o da Beija Flor em 1982, o da São Clemente em 2004, entre outros – e que resultaram em alguns sambas memoráveis.

Ao menos um deles é supremo: aquele – “Pernambuco, Leão do Norte”, de Silas de Oliveira – com que o Império Serrano foi vice-campeão do carnaval de 1968. Trata-se de uma letra concebida sob a visão dos portugueses, dos vencedores, e que dignifica a luta daqueles que expulsaram os holandeses e restabeleceram o controle patrício do Nordeste. No entanto, a despeito do tom de glorificação à reconquista triunfal, o samba-enredo, bem a seu início, reconhece e distingue – num verso tão curto quanto elegante – o nome e a honra de Nassau:

“Esta admirável página
Que o passado deixou
Enaltece a nossa raça
Disse um famoso escritor
Que Maurício de Nassau
Na verdade foi um invasor
Muito genial (…)”

Não poderia ser mais justo.

#4ColonialismoArteArtes Visuais

Qué ficar bunitu?

por Paulo Nazareh

#4ColonialismoCrônica

Cenas de uma história mal contada

por Vanessa Agricola

O JEITINHO BRASILEIRO

Eu soube outro dia que está rolando um suicídio em massa dos Guarani. Você sabia? Os primeiros brasileiros vão sumir. Daqui vinte, trinta anos, talvez nenhum índio mais sobreviva…E eu comovida com a extinção dos tigres, puxa vida.

CORTA

Sabe aqueles planos de viagem, Índia, Rússia, Japão? Agora acrescentei uma tribo na minha lista, e em primeiro lugar. Quero ter uma foto minha com um índio do lado, eu e o Leonardo di Caprio, pelado. Vamos ficar sem roupa, pintar a pele com urucum, dormir na rede, humm. E ah, tomar um Ayahuasca junto com um cacique. “Tin-tin”. Acho chic.

CORTA

Aquele portuga que casou com a Paraguaçu, como ele chamava?…Caramuru! Esse cara deve ter sido muito legal, “Vou é me casar com a índia”. Não é animal? Eu imagino que Caramuru quando viu ela, olhou pro céu, ajoelhou na terra, gritou: “Viva o Brasil!”. E aqui ficou. E fez acontecer Salvador… Pensa na Bahia, aquele jeito, aquela gente, aquela alegria, aquela pulseirinha do Bonfim… enfim. Pra mim, Caramuru foi um herói brasileiro. O primeiro.

CORTA

Nada é por acaso. Se não fosse haver aquele outro tipo de portuga, mais filho da putão, negociando navio negreiro… imagina, o que seria de nós? A gente sem samba e feijoada na quarta? Sem Carnaval, sem bunda, sem mulata? E o Brasil sem o Pelé? Imagina? Pára! Não vou nem falar mais nada. Parece mesmo que tudo tem um propósito e que ele é sempre positivo. Não é não? Mesmo a escravidão… sei lá. Ai, posso falar só mais uma coisa? Yemanjá!

CORTA

Orgulho de ser brasileiro não dá pra negar. Quando você viaja e alguém te pergunta de onde você é, e daí você responde, “Brasil”… Fala sério, o que é que você sente? Orgulho? Lógico! O Brasil é o país mais lindo do mundo, puta que pariu.

CORTA

Eu não conheço o mundo mas eu tenho um amigo que conhece, por isso eu posso falar. Ele já foi pra todo lugar do mundo que é bonito. Indonésia, Patagônia, Taiti, lugar bonito eu nem sei. Mas ele que sabe já me disse: “Nê, o lugar mais lindo do mundo é Búzios”. Daí eu relaxei.

CORTA

Era uma vez eu em Búzios, em alto mar, admirando a vista. Era um dia ensolarado, a vista era uma praia deslumbrante, uma pequenininha em formato de C… Sabe? Esqueci o nome, era uma praia linda de morrer. Daí ouvi toda a história da praia: “Tá vendo aquela pedra ali no canto direito? Vão construir um hotel em cima daquela pedra”. Tipo assim, já tinha um outro hotel no outro canto esquerdo em cima de outra pedra. Um novo hotel do lado direito…ia cagar a praia! Ia virar um cenário de beldades, tipo aquele seriado americano, com aquele condomínio com uma piscina no meio, como é que chama aquilo?… Crime.

CORTA

Chegaram meu pai e um amigo em Tampa, na Flórida, e foram dar uma volta. Os dois ficaram embasbacados com o lugar, estava tudo totalmente diferente do que era antes, pouco antes, quando Tampa ainda era um lago sujo, cheio de sapos dentro, e agora era um jardim do Éden perfeito. E o amigo: “Mas essa porra era um pântano!”. E meu pai: “Impressionante como o americano transforma merda em ouro e no Brasil a gente transforma ouro em merda”.

CORTA

Domingo à noite, a do primeiro-turno, não vai dar pra esquecer. Eu toda atrasada, cheia de coisa pra fazer, cheia de vinho, na frente da TV. Queria ver a cara Dilma, e o sorriso da Marina Silva… “Vamos abrir outro vinho?”. Vamos, vamos comemorar. A Dilma não ganhou ainda.

#3MedoArteFotografiaModa

EPM: leve ansiedade e pânico

por Revista Amarello

Mulher nua,
casa, cavalo

por Ana Fay

O vento de passar suave em lentidão de coisa que leva pelo ar, abre janelas e entra e rodopia e se desfaz e dobra e desdobra-se e vai e venta e se sobra em curvas, esquinas, paredes e cortinas, a impregnar a casa de um tempo que já não é; com sua boca invisível de deus sopra para dentro de retratos mudos e escuros, estórias de mundos submersos e brisas de vida antiga.

No chão, o frasco que continha o melhor perfume dorme quebrado e seco, derrubado por vento outro que há muito passou: casa de hálito velho, que meus pés nus e frescos respiram das frestas de pequeninas pedras, grande mosaico de fendas profundas.

Levanto na poeira que voa, a memória da casa; a cada passo, cortes que se desenham em minha pele de pé rasgam traços de um passado que eu não reconheço, a inflamar-me as entranhas sob minha pele macia de neve, em seu trote impetuoso e violento de tempo. Abismo de segredos monumentais, dilato e estremeço, arremessada que sou à lembrança do que se me apropria me dando contornos de coisa explodida.

Eu, que vim de outro lugar.

Olho e o que vejo é minha estampa que jaz amputada no espelho; infinito, grandioso e fatigado guardião do silêncio, olhos dos que já morreram, túmulo velado de figuras cujas expressões eu vejo craqueladas em rostos sombrios pendurados na parede.

Em grito rápido e seco minha boca me cala, eu já não ecoo e adormeço separada de mim mesma.

O rosto
é rosto
sem gosto
sem resto
sem rosto
fosco e reto.

Reflexo.

Mas os espelhos não a retêm: seus dedos são compridos demais, sua pele fresca demais, o contorno dos seus seios delicados demais. Ela abre as portas e sou eu que atravesso os velhos espaços a ranger a madeira roída, carcomida pela ausência; eu a cavalgo por dentro e direciono o movimento de seu corpo de acordo com o que preciso recordar.

Ao fazer-me presente no corpo ainda quente, os pelos de ouro, macios e suaves se misturam aos meus pelos duros e selvagens; ao percorrer-lhe vasos, veias, ossos, ventre, sinto-me vivo e forte e bicho e homem. Vou destruir o meu retrato; os meus olhos pintados são apenas imagem seca: a minha expressão eu umedeço na memória dela, que roubei.

Pó, névoa e rastro.
Mal posso mover-me.
Ouço gritos.

Quem dorme?

Lembranças de
S. Clemente

por JPM

A campainha da porta da entrada talvez seja a única coisa que lembre o passado… chega a dar arrepio de tão igual que era seu timbre, nos tempos de minha avó! Época que o Palacete era, digamos, a porta da frente das casas de meu pai e do meu tio… todas davam pra alguma parte dos jardins. A nossa dava para a horta, e a do tio, para a garagem e a lavanderia. De qualquer maneira, a entrada/saída de todos os carros era pelo seu grande portão de ferro.

Sempre ouvi dizer que “é o dono quem faz a casa”. Não importa o tamanho, estilo, local, etc. e, nesse caso, todo o manejo e protocolo do palacete era ditado por minha avó, que ficou viúva antes de meu pai se casar e que comandava o batalhão de empregados, fornecedores e mantenedores com disciplina, porém com amizade.

Sua personalidade se espalhava pelo enorme casarão, em todos os vasos de flores, sempre vindos de seu jardim ou da casa de Petrópolis, da arrumação da casa em si, da mesa de jantar, dos menus que todas as manhãs ela ditava para a cozinheira chefe que aguardava sua chamada no hall do segundo andar, que dava para seu quarto de vestir e escritório. Depois fazia as contas com o mordomo e estava livre de seus afazeres “burocráticos”.

Outro detalhe que chamava atenção de todos de fora, menos de mim, pois nasci vendo aquilo como “fato feito”: ela abria os jardins da frente, que davam para a rua principal, para todas as crianças do bairro, onde haviam balanços e outros brinquedos. Achava um absurdo que crianças morassem em “apartamentos”.

Ah…como me lembro de detalhes…

Dos jardineiros colocando estrume, que vinha das nossas cocheiras do Jóquei Clube, para adubar os canteiros de flores e os gramados.

Da minha avó, pequena de estatura, mas sempre muito magra e elegante, agachada nos canteiros da horta, arrancando tiririca e nos dizendo da importância de se trabalhar com as mãos na terra.

Da estufa, com os vasos de antúrios, avencas e orquídeas para serem trocados semanalmente nas salas e na capela da casa, com aquele cheiro de húmus inesquecível.

O galinheiro onde, no Natal, os perus engordavam, a diversão era ver os funcionários darem cachaça para eles embebedarem e depois serem mortos com um corte certeiro no pescoço para serem colocados na água fervendo, depenados e levados em tabuleiros para a cozinha para os preparos da ceia.

Na enorme garagem ficava parada eternamente a Rolls Royce de meu avô, que nunca vi circular, mas que se tornou palco para inúmeras brincadeiras e fantasias.

Minha avó era muito religiosa, de modo que ia à missa todos os dias na Igreja do outro lado da rua, nos jesuítas de Sto. Inácio, colégio onde meu pai, tios e nós todos, netos, estudamos. Era só atravessar a rua, facilidade que dava margem a muitas “fugas” na hora do recreio, assim como matanças das aulas chatas como Latim e Canto!

Tinha entre seus hábitos rezar um rosário em seu oratório particular, atrás do quarto de dormir, onde haviam centenas de escapulários, imagens de santos, terços de todos os materiais, medalhas, água benta, etc. e uma coisa que me impressionava muito: uma “farpa da cruz de Cristo”, que meus avós receberam do Papa por alguma obra realizada para a Igreja, e que depois de sua morte doamos à PUC no Rio. Aliás, foi em seus salões que um grupo de intelectuais e novos cristãos, com o apoio financeiro dela, criaram a Pontifícia Universidade Católica do RJ.

Nos dias de seu aniversário, nas primeiras quintas-feiras do mês e em algumas ocasiões especiais, às 8h tinha missa na capela do segundo andar, aí sim com a presença dos filhos, netos e funcionários, depois seguido de um lauto café da manhã.

Poderia ter sido uma beata chata, mas não! Era ativa em todos os sentidos. Sabia temperar sua fé com o dia a dia do mundo em sua volta, principalmente sua família! E fazia tudo para agradá–los.

Apesar de sua vida social se restringir muito após a viuvez, e mais ainda depois da morte de sua única filha, a mais velha e adorada por todos. Foi um câncer fulminante!

Assim mesmo era de lei: todos os domingos, às 20h, reunia para jantar filhos, netos (depois dos 11 anos) e seus irmãos, com suas famílias, na enorme sala de jantar, numa longa mesa, onde ela sentava na cabeceira da esquerda, e seu irmão solteirão, meu tio avô, que foi morar com ela depois da morte do meu avô num acidente aéreo, na da direita.

Ai de quem faltasse sem uma boa razão! Havia sempre presente alguma autoridade do clero, literatura ou da política, quando o assunto invariavelmente era se o Brasil viraria comunista e nós todos iríamos para o “paredon a la Cuba“.

Às vezes algum artista protegido/ afilhado, após o jantar, tocava suas músicas preferidas no piano do salão ao lado. Ela, abanando seu inseparável leque, olhava sorrindo para o além.

Os jantares de domingo e aniversários de família eram complementados com os chás de toda quinta-feira, quando ela recebia as amigas. Não havia convites, já era um costume: aquele bando de senhoras de cabelos grisalhos, roxo ou branco, que ela apelidava de “meninas” e que ao longo do tempo foram diminuindo pela evolução natural da raça. Mas era o dia que eu mais gostava. Mal chegava em casa do colégio, largava a pasta e corria para a cozinha do casarão para devorar as sobras dos doces e sanduíches.

Quanto a seus hábitos pessoais, ela tinha enorme apego aos netos, a quem reservava todas as manhãs, e a cerimônia de sua preparação era um teatro, sempre igual, mas fascinante para nós, crianças. Ela como protagonista, enquanto a camareira escovava os longos cabelos que depois iam se transformar num coque, presos por um grampo de tartaruga, contava histórias e passava água de colônia, pó de arroz e depois fazia em cada face uma bola de rouge, espalhando no rosto, dizendo que tinha ido à praia. Aquilo para mim era mágica!

Depois ouvíamos discos, dançávamos com ela, brincávamos, tudo neste quarto de vestir onde os espelhos multiplicavam todos nós, fazendo ser uma festa.

Depois do despacho com o mordomo e a cozinheira, descia no elevador e ia esperar o carro na porta da frente (essa mesma da campainha). Independente do tempo, levava um guarda-chuva que ficava batendo no mármore do piso, impaciente com a demora do motorista que sempre tinha uma dor de barriga na hora de sair.

Era uma visita a um convento de freiras, uma obra social ou à Copacabana para um passeio pela praia e depois nas mesmas lojas: Sloper, Bicho da Seda, Pernambucanas, onde comprava muitos cortes de tecidos para enviar aos necessitados, ou então, para mim a melhor: uma ida à confeitaria COLOMBO no Centro. Na época das festas eram centenas de bolos, panetones, ovos de páscoa e outras guloseimas que seriam enviadas às obras que ela ajudava. Ficávamos na sala do gerente, que mandava me servir um bom lanche para eu sossegar e deixar ela fazer os cartões com sua caneta PARKER preta e ouro, com uma letra firme e elegante.

Na Páscoa, depois da missa e do café da manhã, a caça aos ovos no imenso jardim; em junho a Festa de S. João, em que um tio se encarregava dos fogos. A fogueira era enorme, assava milho, batata doce, pipoca, e nós, netos, fazíamos as bandeirinhas de papel de seda – metros e metros – era a nossa contribuição. Ela decorava tudo com lanternas japonesas embaixo das mangueiras, uma excitação ficar acordado “até tarde”. Em outubro, no Dia das Crianças, armava um circo no gramado e chamava o Fred e o Carequinha, a dupla mais famosa de palhaços daqueles tempos. Era uma alegria! No Natal fazíamos “presépio vivo” e o amigo oculto dos “mais velhos”.

Realmente era um feudo, no meio do trânsito da cidade que cada vez mais crescia, onde não havia lugar para esnobismos, tudo era normal e incrivelmente envolto de carinho e amor, afastando assim qualquer pretensão de show off.

#3MedoCulturaSociedade

Transe

por Bruno Pesca

Bamiyan é um vale verde vivo cercado por montanhas sem fim, cujos cumes mais altos e esbranquiçados pela neve – mesmo no verão – são plano de fundo de um visual cinematográfico. Dois budas gigantes e monumentais, esculpidos ao estilo grego há quinze séculos, decoram o enorme paredão montanhoso de frente ao pequeno vilarejo e avisam que há muito mais história ali do que se poderia imaginar. Ficava claro o nosso privilégio. Foi somente no carro, durante a viagem de volta, que o êxtase passou e a realidade voltou: pegamos o caminho errado, e por instantes estávamos perdidos sozinhos em meio ao Afeganistão em guerra. Eu estava com medo.

Durante as décadas de 1960 e 70, aquela beleza toda fazia a cabeça dos hippies. A chamada hippie trail levava os jovens de imaginação por estradas desde a Europa até a Índia ou Nepal com um dólar por dia. Um dos ápices da viagem era bem ali. Em 1979 veio a invasão e guerra soviética, nos anos 1990 o Talibã, e na última década os falcões norte-americanos. Hoje não há muitos curiosos passeando na região, não mais. Como quatro cariocas foram parar em uma área tão remota, há duzentos quilômetros da capital de um país em guerra há trinta anos, é uma história longa, porém muito simples.

Uma reflexão desperta sentimentos – entre eles o medo – que podem te levar a lugares inalcançáveis, onde as pessoas dizem que você não pode chegar. O medo, no caso, seria o de ver a vida passar, de não usufruir de suas capacidades e de tomar decisões de vida por limites inexistentes desenhados por outros. Seria um medo de acreditar em si mesmo, que é cada vez mais comum. Em tratamentos de choque, esse medo de não viver empurra alguns ao desejo de sentir a vida na pele, e o perigo nasce quando isso exige situações que nos levem até, no limite, a perder a vida. Mas essa não é minha onda, e todas essas viagens, apesar do rótulo, são sempre lúcidas. Ou pelo menos acreditava nisso até aquele momento na estrada.

Fazer diariamente algo que te assuste um pouco pode ser uma receita de vida saudável. O segredo talvez seja a dosagem, embora não se possa esquecer que perigo é algo muito relativo. Duas pessoas igualmente sensatas podem ter disposições diferentes para a mesma situação de perigo. Um piloto profissional acelera tranquilamente a 300 km/h num carro de corrida, e sua análise de risco é diferente da de um gaiato. Mas em nosso caso ali, perdidos no Afeganistão, a análise de risco era diferente apenas porque as informações são diferentes. Operamos em cima do imaginário popular sobre certas realidades, e vamos de maneira “inconsequente” atrás da “verdade”. Mas essa é outra ideia relativa. E inconsequente, para nós quatro, é quem dá as costas para as mazelas do mundo que habita.

Nesse mundo aparece, às vezes, muita gente que não vive onde se vê quase todos os dias o risco real de se estar vivo, como em zonas de guerra; vive com o medo de viver como gostaria, e poderia. Porém, tecnicamente, diria o astrônomo, não é em nosso planeta onde o medo orbita em volta, e sim em Marte. Fobos é uma das duas luas daquele planeta. A outra é Deimos, que em grego quer dizer terror, assim como Fobos quer dizer medo. Dos gregos também vinham estilo e habilidade arquitetônicos exibidos nos Budas de Bamiyan, que sobreviveram a Genghis Khan, a séculos de islamismo, sol e chuva, mas não à boçalidade do Talibã, em 2003.

Foi pensando que não pouparam nem a história do próprio povo que nos ocorreu que seria o fim da linha se cruzássemos com o Talibã na estrada. Em Cabul, as instruções haviam sido claras: “sigam por esta estrada mais lenta, pois sabemos que os vilarejos em suas margens são seguros, e sabemos que o exército a controla, mas nas outras pode ser roleta-russa”, disse o dono do carro alugado. Felizmente, nosso motorista achou o caminho de volta para a estrada certa, e uma vez de volta voltamos a não pensar no medo, agora novamente gerenciado. A próxima parada seria, naturalmente, em mais um lugar cinematográfico onde se sente o valor de se estar vivo.

Por mais paradisíaco que possa ser Marte para algum ser, parece apropriado o nome de seus astros. Não importa o quão belo um mundo pode ser, mas medo e terror estarão sempre à volta.

#3MedoCulturaSociedade

Notas para um terrorista moral

por Carlos Andreazza

Tudo bem que já não se sequestre aviões (romanticamente) como outrora. Os tempos passam, as modas mudam, as passagens ficam baratas, as práticas se tornam anacrônicas e/ou vulgares; tudo isso é tão orgânico (e vital) quanto humano (e desumano) que as pessoas se valham de atitudes extremas – uma bomba ou um bumbum de fora – para chamar a atenção.

O terrorismo, mortal ou meramente ambiental, é a mais rigorosa modalidade de propaganda já constituída; e nem o Boninho terá compreendido as infinitas possibilidades da televisão ao vivo com a mesma clareza dos terroristas.

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Descobri, graças a Johan Grimonprez (autor do instigante filme Dial History), que as técnicas ancestrais que uso para fugir dos atores de teatro interativo – jamais sentar no corredor e nunca buscar o olhar do algoz – são as mesmas historicamente recomendadas aos que não querem ter o pescoço degolado por um sequestrador de avião.

(Incontornavelmente seguro, porém, é não andar de avião e, sobretudo, não ir ao teatro).

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Poucas palavras foram mais raptadas pelo clichê psiquiátrico que paranoia. Sei que muitos ficam milionários (ou viram presidentes da Venezuela) explorando delírios sistematizados vagos e cafonas; mas eu vou direto ao ponto, com a exatidão decorrente do notório saber: a única estirpe de paranoia que se deve temer é ciúme crônico de mulher (tenha ela razão ou não).

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Só recentemente tomei conhecimento de que o bêbado maluco aqui do bairro – que nos cruzava a porta cantando sambas-enredo do Império Serrano em francês – era depressivo, bipolar, esquizofrênico e dependente químico; e soube que já não poderia (deveria) mais chamar por Negão o amigo fraterno a quem sempre chamei por…Negão.

Pela mesma época, fui também informado de que vivíamos um poderoso drama, o aquecimento global, que de repente botava o planeta a contar os últimos giros, embora antes Hollywood devesse produzir todos os filmes sobre o fim do mundo (e apesar de que, em meus trinta anos, tivesse já experimentado muito mais calor e muito mais frio aqui nesta província do Leblon).

Aquele foi o verão (ou seria inverno?) em que o pavor presente – o terrorismo contemporâneo – consolidou dois grupos associados pesos-pesados: os politicamente corretos (ou ONGs) e os ambientalistas (ou ONGs).

E nada nunca mais foi como antes.

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Em qual momento um atentado – o 11 de setembro, por exemplo – deixou de ser episódio extraordinário para se esparramar em perenidade? Quando foi que aquela ocorrência – tão nefasta quanto efêmera – veio e simplesmente ficou, aboletada, fundida nos meios como lidamos com o mundo e com os outros?

Quando?

Subitamente, o terrorismo – aquele, clássico, com sequestros, bombas etc. – deixava de ser evento pontual para se desdobrar em permanência e, pois, em possibilidade. Um medo baixinho, sem explosões ou faces definidas; antes de tudo, ameaça, patrulha, desconfiança e, logo, licença para os maiores assaltos à democracia e às liberdades individuais. Um medo que espreita; que é um estado mental, hipocondria social (e que está sempre a um passo da histeria).

Ao dobrar da esquina… O terror! O terror! O terror!

Exagero?

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Brasileiramente, tudo afinal ecoou no preciso instante em que o jornalismo transformou-se em assessoria de imprensa e o politicamente correto virou movimento – “Basta!” – da classe média zona sul (foi um ai-jesus)! A bourgeoisie carioca estava cansada, já não aguentava mais a impunidade, a tamanha barbárie de traficantes cujas balas-perdidas encerravam-se em nossas crianças – e então decidiu levar Fernando Gabeira a sério.

Aquele foi o verão (ou seria outono?) em que Zuenir Ventura ganhou coluna em jornal, a crônica criminalizou a polícia e se pôs a serviço do onguismo, e o AfroReggae de repente se tornou o futuro (e a esperança) do Brasil.

E nada nunca mais foi como antes.

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O medo individual só raramente resulta em reação individual. Para tanto, os medrosos contam (contavam) com o governo. Mas e se este for corrupto, segundo a imprensa indignada, culpado de todos os males? E se o político e a política – tudo coisa ruim – estiverem também criminalizados, lá no degredo ético para onde mandaram a polícia?

Quem doravante protegerá a sociedade? (Afinal, alguém precisa lucrar). Quem pegará na mão dos ceguinhos?Ora, é simples: uma ONG. Ou milhões delas – todas curiosamente financiadas pelos… governos!

(Então: “Ficha limpa” neles)!

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Os governos – os políticos – são injustiçados?
Não, não é isso. Mas que tal ampliarmos a lista – o bloco – dos sujos?
Há mais de trinta anos, alternando vigarices, com maior ou menor competência e, logo, irresponsabilidade, todos os governantes do Rio conjugaram formas de adiamento e embromação, retardando-evitando os choques e empurrando o problema das drogas para os sucessores, e investiram em acordos tácitos espúrios e precários que, a rigor, cultivaram (em silenciosa estufa) o clima de ameaça-medo-terror constante: o tráfico podia controlar, como desejasse e sem maiores incômodos repressivos, os morros, mas desde que minimizasse os delitos no asfalto; pacto ao qual compareceu – agradada – a classe média (olha ela aí), que assim teria a segurança possível se com efeito indisposta a abrir mão do pó (ou como lhe restaria a vida social ou o glamour)!?

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Pegue o trecho acima, adapte a qualquer nação e a seus conflitos – da guerra no Afeganistão ao flagelo do Haiti, do bolsa-família brasileiro à velhacaria ideológica cubana – e repare em como o terror permanente financia a mais lucrativa (e viciante) indústria (elite) já erguida pelo homem: a da exploração da miséria (difícil será achar quem não a integre).

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Citei o filme Dial History – por meio do qual Johan Grimonprez radicaliza (e denuncia) a linguagem sensacionalista do que se convencionou chamar por media – e preciso lhe sublinhar o ritmo quase enloquecido da montagem, que consiste numa sucessão cronológica febril de sequestros de aviões mundo afora: eventos espaçados em um ou mais anos, cada qual com seus pormenores políticos-ideológicos-religiosos, normalmente desconexos entre si, no entanto apresentados em sequência, como se ávidos diariamente, um atrás do outro, e sob a mesma motivação; e logo se estabelece a massa do pavor, o grande lixão do medo, o espetáculo do pânico…

Pergunto-especulo: haverá neste desenrolar o instante em que o terror se desliga do terrorismo para assumir e desenvolver uma existência autônoma e multiplicadora na voz do Datena? Haverá o momento em que a reportagem do fato (do terrorismo) se transforma num terror (fato) novo, independente? Haverá aquele átimo em que o veículo deixa de noticiar terrores e terrorismos para amplificá-los e mesmo causá-los?

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E eis que chegamos ao verão (ou será primavera?) em que fumar cigarro é pior que fumar maconha.

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Uma questão muito séria: o Rio de Janeiro está mais violento hoje ou seremos vítimas do acúmulo de violências? A cidade é mais barra-pesada ou foi simplesmente o tempo que passou e as histórias-mazelas individuais que se sobrepuseram? O Rio vai mais agressivo ou tão-só ricochetearão as memórias? O crime é de fato crescente ou ora terá apenas mais instrumentos para repercutir?

Pode-se pretender uma atitude blasé ante os estímulos – midiáticos – que nos empurram ao curso do medo. Pode-se também desprezá-los; ignorar-lhes a influência. Pode-se quase tudo a propósito, desde que se faça a seguinte reflexão, importantíssima para a regularidade das noites de domingo: o que será do Fantástico – o “show da vida” – sem o medo?


Carlos Andreazza, fundador do site Tribuneiros.com e editor da Capivara Editora, é co-autor do livro Contra a juventude.

#3MedoCulturaSociedade

“Coragem é medo administrado. Falta de medo é burrice.”

por Léo Coutinho

O editor da Amarello me pediu para preparar, além da crônica política, algo sobre o medo, e sugeriu que eu tentasse conversar com um presidiário a fim de descobrir seus medos, inclusive os que ele transmite para a sociedade. O formato estava indefinido, e acho que ainda está. Aliás, tudo estava aberto para mudanças, e a proposta original sofreu metamorfoses diversas até chegar nesta história que vou contar para o leitor.

A partir da ligação que fazemos entre um detento e o crime, imaginei qual seria o pior deles, o mais hediondo, mais covarde e com o efeito mais temido por cada um de nós, e obviamente encontrei o sequestro. Para mim – e acredito que para todo mundo – o medo está no desconhecido, no receio do que está por vir. Um assalto, ou mesmo um assassinato, tendem a acontecer depressa, transformando a sensação da vítima ou das testemunhas num susto. Um sequestro, mesmo que seja relâmpago, vai durar tempo suficiente para apavorar a vítima, e se virar uma noite, que seja, vai aterrorizar familiares e amigos.

Assim entendendo que o medo é muito mais da vítima, decidi procurar conversar com pelo menos uma pessoa que já tivesse passado pelo trauma, e fui bem recebido por Celio de Melo Almada Neto, o Celito, que foi sequestrado há mais ou menos dez anos. Ele era um advogado em começo de carreira e, tendo ganho como parte de seu primeiro pagamento realmente grande um Audi TT, não pensou duas vezes na hora de adotar o bólido como forma oficial de condução. Aos vinte e poucos anos não se sente medo nem de violência, nem de inveja, nem de nada. Até que um dia, saindo do videoclube, foi abordado, encapuzado e atirado no chão de uma Kombi, na qual foi levado para o cativeiro em que passou os quatro dias seguintes.

Quer dizer, o Celito foi sorteado: teve a má sorte de ser transformado em vítima de uma hora para outra, obviamente por causa do carro, num crime não planejado, o que tende a aumentar o medo das pessoas vitimadas, família e amigos envolvidos. Mas mesmo assim ele me garantiu que não, não sentiu medo, ou pelo menos não o identificou, dado o turbilhão de sensações experimentado. As necessidades básicas do ser humano, por exemplo, só foram aparecer lá pelo terceiro dia. A pressão psicológica administrada pelos bandidos também contribuiu. O momento mais tenso, segundo ele, foi na hora da chamada “prova de vida”, que a polícia orienta a família a pedir para ter certeza que seu filho está vivo. Para tanto ele foi levado para um ermo qualquer, atirado numa vala e obrigado a pedir socorro e a simular maus tratos ainda mais graves do que vinha sofrendo, tudo para impressionar seus pais, algo que naquela situação lhe pareceu impossível. Durante o telefonema, até disparos de pistola foram efetuados, provocando uma sensação apavorante e curiosa ao mesmo tempo: Celito já não sabia se estava vivo ou morto, tamanha sua confusão emocional.

Dizem que na morte sofre quem fica. No sequestro também. Porque se durante o episódio, o Celito não sentiu medo, hoje sente, e muito, não de passar por tudo de novo, mas de estar, como pai, do outro lado da linha, negociando a vida dos filhos com um meliante. O trauma é tão grande que, assim como na vítima principal, os efeitos do choque podem só vir a aparecer depois de meses, ou até anos. E como sempre, numa situação dessas, a orientação é procurar ajuda profissional, isto é, de psicólogos. Foi o que fiz.

Procurei a Cristina Felamingo, advogada que, do acompanhamento do sequestro da filha de uma amiga, saiu determinada a fundar uma ONG chamada Apoio, para atender às famílias das vítimas durante e depois do crime. Um trabalho muito bonito que durou doze anos e ensinou muito. Por exemplo: todos somos sequestráveis. Assim como o Celito, que foi por engano, acontecem muitos casos, ou até de gente humilde, que vai pagar pouco, mas rápido, justamente por não ter a quem pedir socorro. A doutora Cristina viveu e sofreu junto com muitos parentes e amigos de sequestrados, e por isso não consegue perdoar marginal algum; entende que são todos covardes movidos por uma crueldade atroz.

Através da doutora Cristina, conheci a psicóloga especialista em estresse pós-traumático, Dra. Marisa Fortes, num papo bastante esclarecedor. Primeiro: medo é saudável, é ele que nos permite sobreviver, nos salva dos perigos da vida, mas igual a tudo na vida, deve ser bem dosado, na mesma proporção do remédio e do veneno, cuja diferença é o tamanho da dose.

Outra: o estresse pós-traumático é o medo de sentir medo, que vai se agravar a cada crise, como uma bola de neve, dificultando o tratamento, que quanto antes for iniciado, mais chances terá de êxito.

Mais: a Síndrome de Estocolmo, como ficou conhecida a patologia que faz a vítima querer proteger seu algoz, nada mais é do que um mecanismo de sobrevivência, uma vez que o sequestrado precisa do sequestrador para permanecer vivo, levando-o a adulá-lo como a um patrão tirano. E há o inverso, ou seja, casos em que o bandido se apaixona pela vítima e, à revelia do bando, proporciona sua libertação. Pior: há casos de vítimas que, temendo o desconhecido por trás da oferta, se recusam a fugir, criando um impasse tragicômico.

Ainda: assim como na Física, toda ação que envolve sentimentos, quando interrompida, tende a provocar uma reação proporcional e contrária. Quer dizer: livre da Síndrome de Estocolmo, a vítima de sequestro tende a odiar com todas suas forças o sequestrador.

Por fim, ainda a partir de um conceito da Física, os psicanalistas agora estão estudando um fenômeno conhecido como resiliência, princípio dos objetos maleáveis, capazes de se moldar a tudo que sofrem, tornando-se assim mais fortes e preparados para a vida. A fábula do carvalho que nunca verga, mas acaba se quebrando definitivamente quando de um vento muito forte, em contraponto ao bambu, que à menor brisa já balança, mas se mantém inteiro mesmo durante o furacão é a melhor metáfora. Quer dizer: a busca da ciência é pelo caminho que fará capaz o ser humano de transformar em bagagem e sabedoria o estresse sofrido, melhorando a própria vida e a das futuras gerações.