Fotos de Gleeson Paulino

“O Rio é espaço de lazer, memória, escuta,
identidade e encontro”

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A importância do Rio São Francisco

Território Quilombola Águas do Velho Chico, localizado no município de Orocó, na Região do Médio São Francisco, sertão de Pernambuco, reconhecido pela Fundação Cultural Palmares (FCP) desde 2009, é formado por cinco comunidades, que são: Mata de São José, Caatinguinha, Remanso, Umburana e Vitorino. Elas estão localizadas às margens do rio e trazem consigo a identidade quilombola dos que este espaço habitam, povo ribeirinho que tem o rio São Francisco como local sagrado, místico, de vida, de resistência, alegria e lazer. 

Segundo relatos dos nossos mais velhos, essas áreas às margens do rio eram antes consideradas “locais cheios de matas e inóspitos”, até que alguns negros que vinham fugindo de Canudos, Bahia, por volta de 1897, e outros vindos da Serra do Umã em Carnaubeira da Penha, Pernambuco, chegaram e encontraram terra para, assim, gerarem a comunidade-mãe (Mata de São José) e a população hoje existente. Para os que residem nessas comunidades a importância do rio é, acima de tudo, a origem desse povo, local hoje chamado de território! Não se pode esquecer que o rio foi primordial, uma fonte de vida e de sobrevivência. Muitos só tinham o rio para tirar o seu sustento e de sua família. Os peixes eram abundantes, e as cheias traziam medo, mas, quando a água baixava nas áreas antes ocupadas (vazantes), era a maior riqueza. O plantio de batata doce, mandioca, algodão e feijão eram frequentes para o sustento de todos.  

Antes desse sentimento histórico regado de memórias ímpares para cada sujeito, eles  vivenciaram as duras fases de uma comunidade em que as condições de plantio eram um desafio – não pela falta de terra ou água, mas pela limitação econômica  que  essa população tinha, uma vez que  essas comunidades quilombolas se formaram bem antes da própria cidade. A forma de comércio era a troca dos produtos da agricultura familiar por carnes, peles ou ossos de animais em espaços pouco frequentes chamados de feira livre. O povo das áreas de cerqueiro vinham até o vilarejo de Orocó, ou “entre serras”, como é descrito por nossos parentes indígenas que habitam grandes áreas de ilhas desse município, e assim era feita a compra das mercadorias: peixe, macaxeira e seus derivados (farinha biju, goma), mel, carnes bovina, caprina e suína, tendo como meio de transporte a carroça de animal ou a própria canoa.  

Os relatos mostram que o único meio de transporte era a canoa, que ia de um município a outro, como, por exemplo, a cidade Belém do São Francisco, que fica a pouco mais de 100 km, ou até cidades mais distantes, como as de Minas Gerais, onde iam buscar toras de madeira para fazer canoas e jangadas. Eles passavam mais de seis meses andando pelo rio, levando as produções agrícolas que tinham para trocar por tecido, madeira, calçados e alimentos que não tinham na comunidade.  

Enquanto as comunidades iam se povoando, ganhando espaço, fazendo seus ranchos (moradias), outros olhares em torno daquele terreno eram direcionados para a exploração tanto das pessoas que ali viviam – a começar por sua força bruta, seus corpos e suas filhas, seus costumes e saberes – como de suas pequenas propriedades, que, sem condições financeiras, não podiam produzir. Muitas acabaram sendo invadidas ou trocadas por alimento, moradia, uma  canoa ou outra necessidade da família. Assim, passaram a produzir para um senhor (patrão), e nas poucas horas que lhes sobravam do trabalho (na roça de algodão, milho, legumes, na casa de engenho, entre outros afazeres) iam pescar ou cuidar do pouco que lhes restava – um pedaço de roçado contendo o feijão, macaxeira e/ou batata doce, nas margens do rio, para garantir o sustento.  

Falar deste rio é falar de suor. Muitas mulheres em sua gestação se banharam nessas águas doces e apresentaram ao rio aquele novo ser pedindo vida digna e direitos, pedindo proteção e bênção aos encantados d’água. Muitas esposas saíam para pescar junto com seus esposos à noite, ou durante o dia, enquanto eles estavam no roçado do patrão, com garra, determinação e fé. Como sempre fala a nossa mestre: “com fé em São José, vamos chegar!”(Maria José Gomes dos Santos, agricultora e parteira).  

Em conflito com a permanência desses povos em seus espaços sagrados estão os planos de desenvolvimento do governo brasileiro para o Nordeste, em especial no entorno do rio, com as construções das barragens. Desde a de Sobradinho, construída na década de 1970, onde as comunidades passaram a vivenciar durante anos as mudanças, até a transposição do rio São Francisco, que trouxe desordem e transtorno psicológico, alimentício, social, político, econômico, cultural e ambiental para a vida dos ribeirinhos, especialmente os povos e as comunidades tradicionais, que vivem em seus espaços secularmente. Em nossas comunidades não foi diferente. Vivemos o medo e a insegurança de um plano de desenvolvimento que fere a existência, o território e a história de um povo. E é um medo constante, antes, com o canal de transposição do rio São Francisco (Eixo Norte) e, depois, com a barragem de Riacho Seco e Pedra Branca, que interliga Bahia e Pernambuco e afetou diretamente a vida dessas comunidades.  

Atualmente, o rio é espaço de lazer, memória, escuta, identidade e encontro. Os mais jovens entendem a necessidade de preservar e cuidar, pois cada momento propiciado às margens do rio é um encontro do ontem com o hoje, um encontro com as histórias dos nossos ancestrais, que pescavam e contavam lendas como as do nego d’água e da mãe d’água. Esses relatos contribuem para a formação dos sujeitos que hoje vivem a pesca, se banham, dançam e escutam, tanto pela proposta da educação escolar quilombola de seus professores e familiares, que se reúnem às margens deste herói, quanto como forma de lazer, trabalho e, inclusive, prestar respeito a este que chamamos de pai e mãe, que é o bem mais precioso para toda a produção econômica, social, cultural e ambiental do nosso território: o rio São Francisco, ou Velho Chico, nosso maior bem.  

Assim, finalizo tentando exprimir nosso imenso amor e a necessidade de cuidar deste herói com um cordel de uma liderança deste solo sagrado chamado Águas do Velho Chico:

REIVINDICAÇÕES DO RIO SÃO FRANCISCO  
(Maria Senhora Gomes Dos Santos Gonçalves) 

Boa noite, minha gente
Estou aqui pra dizer
Seja fiel e consciente
cuide de mim e de você
Eu sou apenas uma semente
Estou vivo, mas posso morrer
Todo dia, o dia inteiro
Vocês precisam de mim
Pra pôr o feijão no fogo
Também pra molhar o capim
Cada dia morro aos poucos
Por que me tratam assim?
Se aumenta a inflação,
ficam todos preocupados
rádio e televisão
deixam todos informados
Por que não fazem um mutirão
em prol deste abandonado?
Meu café é esgoto
Meu almoço, agrotóxico
Estou até o pescoço
Poluído de remorso
Só me enxergam como um poço
Destinado a negócios
Muitos até se admiram
e falam da minha beleza,
Mas poucos se mobilizam
Em prol da minha defesa
Até meu coração partiram
em benefício das empresas
Se queres saber quem sou
procure no alfabeto
Sou um velho sofredor,
morador aqui de perto
Amigo do pescador
E refém dos projetos
É triste meu padecer
É pouco meu respirar
Estou cansado de sofrer
Ninguém me escuta gritar
A minha voz é você
já que eu não posso falar

Pâmela Carvalho Foto © Douglas Lopes

Se você tá a fim de ofender
É só chamá-lo de moreno, pode crer
É desrespeito à raça, é alienação
Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamado de negão
Se você tá a fim de ofender
É só chamá-la de morena, pode crer
Você pode até achar que impressiona
Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamada de negona

(“Alienação” – Ilê Ayê)

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“A preferência é ser chamada de negona”

Em 2015, Mario Pam e Sandro Teles escrevem “Alienação”, no contexto do movimento artístico-político Ilê Ayê. E é com o Ilê que começaremos este breve caminho por algumas cidades do Brasil, que trazem em suas ruas, rostos e movimentos artísticos importantes lições sobre mestiçagem, racismo e reeducação das relações raciais no Brasil.

O Ilê foi fundado por Antônio Carlos dos Santos e Apolônio de Jesus no bairro do Curuzu, sendo o mais antigo bloco afro do carnaval da cidade de Salvador. Veio do Terreiro Ilê Axé Jitolu em 1974. Sua história se costura com a do terreiro e de sua Yalorixá, Mãe Hilda. Antes de receber o nome que conhecemos hoje, a ideia era que o bloco se chamasse “Poder negro”, mas esse nome nunca pôde ser utilizado. A Polícia Federal proibiu o uso, alegando conotações negativas e “alienígenas”. Isto contribuiu para que o bloco ficasse associado a uma ideia de subversão no período.

A fundação do Ilê Ayê escancarou a falácia da democracia racial. O bloco foi duramente criticado publicamente. Um marco dessa perseguição política foi a manchete veiculada em 12 de fevereiro de 1975 no jornal A Tarde, onde se lia “Bloco Racista, nota destoante”. Já nos anos 1970, o Ilê seria acusado do que posteriormente viria a ser chamado de racismo reverso – um grande engodo contemporâneo, que só se sustentaria com a humanidade voltando no tempo e reescrevendo a história mundial. Nos dias de hoje, o Ilê é considerado como patrimônio cultural baiano, tendo cerca de 3 mil associados e oferecendo uma série de atividades ligadas à arte, cultura e combate ao racismo. 

Para além da contribuição musical, o consagrado “bloco negro do sábado de carnaval” traz uma proposta política e estética essencial para discutirmos a reeducação das relações raciais no Brasil. Um símbolo dessa proposta é a Noite da Beleza Negra. A festa ocorre desde 1979, inspirada nos concursos de rainhas do carnaval, mas, na noite do Ilê, a “rainha” escolhida é consagrada como Deusa do Ébano. 

Mais do que realizar a escolha da divindade, o evento é uma celebração da raça negra. Os parâmetros para a escolha não são os mesmos utilizados na maioria de concursos, que acabam por reforçar um padrão de beleza que exalta a branquitude, a magreza e a juventude. No Ilê, o que configura uma Deusa do Ébano é sua “força de deusa negra”, sua performance articulando dança, potência negra e práticas antirracistas que passam pelo corpo e pela música.

Pensar a música no Brasil por um viés racializado é essencial para compreendermos algumas relações de opressão e movimentos de resistência que muitas vezes não recebem o devido crédito ou visibilidade. 

Noite da Beleza Negra

Durante o século XX, a música foi muito utilizada como aliada na construção de um projeto de identidade nacional pautado pela miscigenação e pela mestiçagem – ferramentas para eliminar a população negra do Brasil de forma gradual apresentadas como algo positivo. A música sempre foi instrumento político, e não vê-la assim é um equívoco. Durante o século XIX, a mestiçagem foi largamente tratada como algo negativo, capaz de formar indivíduos “física e moralmente pervertidos”. Porém, na virada para o século XX, a mestiçagem passou a ser usada pelo Estado para encobrir conflitos raciais e disseminar uma imagem de paraíso racial, onde todas as raças conviveriam harmonicamente – teoria que ganhou força com intelectuais como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Noel Rosa e Ataulfo Alves.

Os termos “negro” ou “negra” aparecem associados a algumas produções musicais do século XIX. Um exemplo disso são as canções que recebem tratamento a partir do espectro religioso, como a conhecida canção “Lamento Negro”, interpretada pelo grupo Trio de Ouro em 1941 e composta por Constantino Silva e Humberto Porto. O jongo também acaba por entrar nesta categoria, que chamarei de “Lamento Negro”, pegando emprestado o título da canção já citada. Menos associada à religião e mais associada ao que era considerado “canto de trabalho”, a manifestação surgida no Vale do Rio Paraíba também é abarcada pelo guarda-chuva das musicalidades que costumavam ser acompanhadas do termo “negro” ou “negra”. O termo “samba” era pouco empregado, sendo mais comum encontrarmos termos como “batuques” ou “macumbas”, marcados por certo “africanismo” associado a escravizados, ex-escravizados e pessoas negras de pele escura ou retinta nascidas no Brasil. A estas, no campo da música, restava o lugar do sofrimento, do “lamento negro”, da escravidão.

Podemos observar uma expansão do samba como fenômeno nacional a partir dos anos 1930. A presença da figura do africano e do negro retinto diminuem, dando lugar à figura do moreno e do mulato, animado e alegre, associado à bebida, à dança e à sexualização, em especial quando se falava de mulatas. As marchinhas de carnaval acabaram por reforçar alguns desses estereótipos, endossando o mulato não como fruto de um processo de genocídio racial, e sim como produto da harmonia entre as raças no Brasil. Em “Moreno”, gravada por Aurora Miranda no ano 1936 e escrita por Synval Silva, temos que:

Moreno, tu nasceste para ser o meu amor […]
Não posso viver sem os carinhos teus,
Moreno, tu foste tocado pelas mãos de Deus.

Ao “moreno”, ou “mulato”, restam o lugar do sexo, do amor – objetificado – e até mesmo de identidade nacional ou de produto de exportação. Cabe ressaltar que essas categorizações, ao longo de nossa história, vêm majoritariamente de agentes externos, como pesquisadores e folcloristas brancos imersos em processos políticos de embranquecimento da população brasileira.

Muitos direitos foram negados a pessoas negras. Entre eles, o de ser senhor de seu destino, de sua identidade e de seu nome. O nome, geralmente escolhido pelos progenitores, ganha tons ainda mais relevantes quando são associados a pessoas negras, assim como apelidos ou eufemismos utilizados para falar de negritude. Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor, expõe a importância da palavra, do nome, ao narrar a vida de Luísa Mahin, mãe do líder abolicionista Luiz Gama:

Nós não víamos a hora de desembarcar também, mas, disseram que antes teríamos que esperar um padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha sido batizada em África, já tinha recebido um nome e não queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em terras do Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria através do meu nome que os voduns iam me proteger…” (Gonçalves, 2006, p. 63)

Capa do álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), dos Racionais MC’s

A forma como somos chamados diz respeito à nossa história, nossa identidade. E denuncia, também, estruturas de poder baseadas no patriarcado e no racismo.

Muitas vezes, vemos perguntas como “o certo é chamar de negro ou de preto?”. Reforço aqui que as questões não são sempre dicotômicas. Nem sempre será “ou isto ou aquilo”, especialmente quando falamos de uma questão tão complexa como as relações raciais no Brasil. É importante estar atento ao uso, ao tom e ao contexto dos termos. 

O vocábulo “nego” (leia-se “nêgo”) é importante nesse sentido. Usado entre pessoas negras, muitas vezes ele expressa carinho e proximidade. Principalmente quando acompanhado de “meu” ou “minha”, como em frases como “está tudo bem, meu nego?”. A mesma palavra, quando usada por pessoas brancas, em especial acompanhadas do termo “seu” ou “sua”, pode adquirir tom de agressividade e menosprezo, como em “o que é, sua nega?”, por exemplo. Os sufixos de diminutivo e aumentativo complexificam ainda mais esta questão. O termo “neguinho” pode desejar demonstrar afeto, mas pode também ser usado para ridicularizar e inferiorizar o indivíduo negro, além de falar de um sujeito indeterminado, sem identidade como em “aquele neguinho lá”. O mesmo serve para o aumentativo. “Negão” pode ser usado para exaltar um semelhante ou ser usado, por exemplo, para objetificar a pessoa negra.

Retomando a pergunta “o certo é chamar de negro ou de preto?”, é importante reforçar que chamar alguém pela sua cor e não pelo seu nome desumaniza o indivíduo. Segundo Luísa Mahin, narrada por Ana Maria Gonçalves no já citado livro, “através do meu nome que os voduns iam me proteger”. As palavras e os nomes têm um enorme poder nas tradições africanas e afro-brasileiras. Um indivíduo negro não se chama “Nego”. Também não se chama “Preto”. Nem “Moreno”. E muito menos “Escurinho”. Temos nome, sobrenome, identidade e trajetória.

Para além dos termos utilizados a fim de inferiorizar pessoas pretas, há também os eufemismos, palavras usadas para “suavizar” a negritude de alguém. E, especialmente, para não pronunciar a palavra “negro”, que, para alguns, ainda soa como ofensa ou como um termo que “não cabe em bocas civilizadas”. “Escurinho”, “moreno”, “moreninho”, “marrom bombom”, “pegado na cor” e “mulato” são alguns dos vocábulos usados. “Moreno”, por exemplo, é um termo muito utilizado a fim de trazer ambiguidade e “suavidade” ao debate racial. O “moreno” teria identidade indefinida. O “moreno” não pertence a raça alguma. O “moreno” é o termo-corpo que representaria o sucesso do mito da democracia racial. Por isso, a afirmação de que “a preferência é ser chamada de negona” é tão importante. A autoafirmação e autoidentificação racial foram direitos conquistados por pessoas negras – e que ainda estão em disputa. Assim, quando o tema é raça, não há por que usar eufemismos. 

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considera a categoria racial “negro” como a soma da população preta e parda. Essa definição também foi incorporada ao Estatuto da Igualdade Racial. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, 46,8% da população do Brasil se autodeclara parda e 9,4% se autodeclara preta. Temos, assim, 56,2% de população negra no país.

Retomando o termo adotado pelo IBGE, trago Mano Brown para nos ajudar a pensar o grupo racial “pardo”:

Eu sou o mano, homem duro, do gueto, Brown, Obá
Aquele louco que não pode errar
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk
E de onde vem os diamantes? Da lama
Valeu mãe, negro drama.”

Pedro Paulo Soares Pereira (mais conhecido como Mano Brown) é um intelectual, rapper e compositor brasileiro de São Paulo. É integrante dos Racionais MC’s, grupo fundado em 1988 que revolucionou a cena do rap nacional. Além de Brown, o grupo é composto por Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador) e KL Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões). São deles os versos acima, do rap “Negro Drama”, escrito em 2002 para o álbum Nada como um dia após o outro dia. 

A pele parda evocada pode causar estranhamento quando lembramos que quem a evoca tem o nome de “Brown”, que significa marrom, traduzindo-se do inglês. Porém, é preciso lembrar que, no Brasil, a maior parte da população negra se autodeclara parda. Segundo o já citado IBGE, pardos constituem o grupo étnico negro. É possível ser pardo e ser “brown” ao mesmo tempo. É possível ser pardo e “ver e viver o Negro Drama”.

“O termo “pardo” expõe o histórico de apagamento e abandono das populações negras e indígenas no Brasil”

Também é importante termos em mente que o termo “pardo” muitas vezes é utilizado para referir-se a populações indígenas. Em ambos os grupos étnicos, precisamos estar atentos aos possíveis apagamentos trazidos pelo termo. Na mesma canção, Brown reforça que:

Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olha outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro, sem rosto e coração
[…]
Luz, câmera e ação, gravando a cena vai
Um bastardo, mais um filho pardo, sem pai.
Ei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé.

O termo “pardo”, empregado com excelência por Mano Brown há 19 anos, expõe o histórico de apagamento e abandono das populações negras e indígenas no Brasil, ainda que seja essencial quando falamos de políticas públicas e dados oficiais. O Brasil apresenta população negra e indígena em infinitos tons de pele e diferentes contextos sociais, e isto não pode ser esquecido. Autodeclaração é política. Raça é política.

Precisamos observar o que significa “uma negra e uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço”. Precisamos nos atentar ao que Brown lança luz ao falar de “mais um filho pardo, sem pai”. A miscigenação no Brasil revela um histórico de estupro, misoginia e racismo. É importante nos lembrarmos do consagrado quadro A redenção de Cam, de Modesto Brocos, que apresenta o “produto do sucesso da miscigenação no Brasil”. Ainda e apesar de, estamos aqui.

É preciso ter sensibilidade e olhar historicizado ao analisar as conformações raciais em nosso país. É a partir da categoria negro (junção de pretos e pardos) que conseguimos disputar projetos de nação. É a partir desse grupo racial (negros) que podemos afirmar que o processo de aniquilação total das populações negras – ainda em curso – não vingou no Brasil. A deseducação racial oferecida pelo nosso Estado consiste num projeto de apagamento físico, histórico e epistemológico. 

O rap carioca também nos ajuda a pensar a música como ferramenta de reeducação das relações raciais. Em “Favela Vive 2”, o rapper da Cidade de Deus, MV Bill, canta:

Na gaveta gelada do IML
Vários amigos que foram abatido pela cor da pele
Tática inimiga, bota a bala pra comer e menos um nigga
Atiram na nuca primeiro, derrubam certeiro, pra perguntar depois

A cada 23 minutos, morre um jovem negro no Brasil. As ruas têm dito muitas coisas, e um dos dizeres que ouvi recentemente é que ser negro no Brasil é nascer com uma marca na pele. Por vezes mais escura, por vezes mais clara. Mas a pele negra, o corpo negro, ainda é sinônimo de alvo numa sociedade racista.

Movimentos negros contribuíram para a ressignificação de termos como “negro” e “preto”, que foram, ao longo de nossa história, largamente utilizados para referir-se à população escravizada a fim de desumanizá-la, criando, nas populações negras, medo e dificuldade de associar-se à sua própria raça.

Em 1992, o compositor carioca Jorge Aragão compôs “Identidade”, que acabou por se tornar uma espécie de “hino” entre sambistas negros e negras:

Se o preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade

A reflexão de Aragão reforça que necessitamos de um processo de reeducação das relações raciais. Demandamos letramento racial para que encaremos questões como mestiçagem, miscigenação e racismo como projetos criados de forma legalizada pelo Estado brasileiro a fim de fazer vencer a ideia de um país com identidade branca. É essencial que façamos o resgate da nossa identidade levantado pelo sambista. E pela porta da frente. Só assim alcançaremos cidadania plena, como diria a intelectual Azoilda Loretto da Trindade.

A escravidão – legalizada – durou aproximadamente 350 anos no Brasil. O processo foi responsável por trazer cerca de 4 milhões (37% da população de escravizados trazidos para as Américas) de africanos e africanas para o país. Esse processo deixou feridas em nossos corpos, histórias e memórias. Afirmar que temos nome é um caminho para a conquista de nossas subjetividades. Afirmar que “a preferência é ser chamada de negona” em detrimento de termos como “morena” é se levantar diante do apagamento de nossas identidades como população negra. E é desta forma que, acredito eu, daremos continuidade aos caminhos abertos por nossos mais velhos e mais velhas, reconstruindo nossas histórias e buscando um futuro ancestral.

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Sobre As Experiências Africanas e Indígenas Nos Quilombos Brasileiros

por Stephane Ramos da Costa

As pesquisas sobre história do Brasil que não se referenciam por um viés colonial e europeu crescem de forma exponencial. São muitos os trabalhos que buscam analisar os processos históricos sob uma perspectiva que não invisibilize as experiências não brancas. De todo modo, o caminho ainda é longo, e há muitos embates a serem travados. Um exemplo que confirma isso são os conteúdos expostos nos currículos das escolas de grande parte do país, que perpetuam noções dualistas e simplistas e muitas vezes reproduzem narrativas que não pontuam as permanências e descontinuidades com o tempo presente. Vamos voltar no tempo: há grandes chances de que, no período em que você, leitor, teve algum tipo de contato com as experiências negras e indígenas no colégio, estas tenham sido representados pelo viés da colonização e escravidão. A narrativa oficial que permanece até os dias atuais nas escolas é de que os indígenas foram utilizados como mão de obra escravizada até a chegada de africanos, sendo substituídos logo em seguida pois eram “preguiçosos” para trabalhar nas grandes lavouras e na casa grande. Não há qualquer menção sobre possíveis interações entre esses dois grupos, e hoje a historiografia já expõe indícios suficientes para se comprovar o contrário. É sobre isso que este texto versará, a partir de uma breve resenha crítica de um dos clássicos da historiografia brasileira. 

A obra do historiador brasileiro Flávio dos Santos Gomes, intitulada Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil mobiliza muitos detalhes sobre as formações, dinâmicas e permanências de movimentos de resistência das populações de origens africanas e indígenas. O autor menciona que, entre os primeiros indivíduos sequestrados para o trabalho compulsório no território que hoje compreende o Brasil, já havia o que era chamado de mocambo – denominação mais antiga, registrada no final do século XVI – e, posteriormente, quilombos – a referência a esse nome vem de regiões da África Central, no sentido de designar “acampamentos improvisados”, passando a ser mais utilizado a partir dos séculos XVIII e XIX (GOMES, 2015, p. 10). Na maior parte dos casos, associamos essas ações como exclusivas das populações que os europeus vieram a nomear de africanos. E trata-se de uma inverdade, visto que, desde o século XVI, a colônia portuguesa designava alguns territórios da Amazônia como “mocambos de índios” para caracterizar locais onde indígenas que conseguiam fugir se instalavam (GOMES, 2015, p.59). 

Em um país que recebeu mais de 5 milhões de homens e mulheres do continente africano para sistemas de trabalhos compulsórios e perversos durante os mais de três séculos sob o regime escravista, acredito que o debate sobre os movimentos de fuga e construção de quilombos ainda se restringe muito ao Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga, e a comunidades exclusivamente africanas/crioulas. Essas ações proliferaram no Brasil como em nenhum outro país das Américas. A população cativa de origem indígena formava alianças e fortalecia seus agrupamentos. Há indícios de quilombos construídos por negros e indígenas nas regiões baianas (especialmente na área do sertão baiano), Goiás e Mato Grosso (GOMES, 2015, p. 60-61). 

Como já mencionado, por muitas vezes o senso comum e até mesmo os currículos escolares tratam as experiências das populações de origem indígena no cativeiro de forma rasa, reproduzindo a ideia de que estes foram logo substituídos pela mão de obra escravizada africana devido a “maus comportamentos”, como desobediência e preguiça, que contrastavam imediatamente com a população de origem africana, caracterizada por sua adaptação e obediência em terras brasileiras (GOMES, 2015, p. 58). Essa afirmação, além de reproduzir noções racistas de populações indígenas “preguiçosas”, faz a manutenção de um discurso – também preconceituoso – de indivíduos negros como naturalmente dispostos a trabalhar em regimes desumanos organizados pelo sistema plantation no Brasil e nas Américas.

O que os estudos historiográficos vêm demonstrando é a multiplicidade étnica dos agrupamentos de cativos durante o período colonial. Grupos indígenas como os xavantes, carijós, maracazes, araxás e pataxós eram alguns dos que construíam essa empreitada com africanos escravizados, oriundos de regiões como a África Central e Ocidental, Luanda, Senegâmbia, Baía do Benin, entre outros. Foram cenários para acolhimentos, mas também tensões, ocasionadas por diversos motivos. Essas comunidades de fugitivos por vezes eram projetadas ainda em ambiente de trabalho. Segundo Flávio Gomes, não é difícil imaginar essas populações fugindo juntas e concretizando seus objetivos ao construírem comunidades quilombolas. O autor expõe aspectos que demonstram as possíveis “zonas de proteção” e de trocas culturais no sentido de impedir que seus inimigos em comum – no caso, os setores coloniais – adentrassem seus territórios de resistência, tendo inclusive a presença dos chamados “caborés”, frutos das reproduções entre indígenas e africanos. Todavia, é importante não mobilizar narrativas que endossem perspectivas românticas e que tratem dessas convivências de forma estritamente pacífica. As tensões eram evidentes, visto que há indícios de sequestro de mulheres africanas e indígenas por parte dos quilombolas, bem como ataques e disputas étnicas sob muitas justificativas (GOMES, 2015, p. 60). Esses processos impactaram as sociedades no entorno, influenciando elementos como os conflitos entre quilombolas e colonos – dos quais dou ênfase para o grupos dos bandeirantes –, miscigenações e o que entendemos como “religiosidade”.  

Outra narrativa que aparenta estar muito disseminada no imaginário de nós brasileiros é a que descreve as dinâmicas dos territórios quilombolas de forma isolada. Enganam-se aqueles que acreditam não ter havido ao menos trocas comerciais entre os quilombos e as regiões do entorno. Esses espaços também eram edificados em regiões fronteiriças das colônias de Portugal e da França. Mesmo que esses fossem territórios de disputas, os fugitivos se aventuravam e se encontravam para realizar seus sonhos de liberdade. Muitos dos mocambos e quilombos foram construídos em locais que pudessem contribuir para a permanência de indígenas e africanos, como florestas e regiões que beiravam rios e cachoeiras, bem como territórios com imprecisões fronteiriças e jurídicas entre Portugal, França e Holanda. O território limítrofe entre Brasil e Guiana Francesa em diversos momentos era ocupado por quilombolas, com várias fontes documentais que comprovam as disputas espaciais de agrupamentos como os que eram erguidos entre o então Grão-Pará e a Guiana Francesa, assim como a região amazônica e a então Guiana Holandesa. 

As trocas comerciais também merecem destaque, visto que esses homens e mulheres possuíam perspectivas de maior autonomia ao tingirem roupas, plantarem na roça, pastorearem gado e fabricarem tijolos no verdadeiro sentido de, apesar do receio das tentativas de destruição por parte da colônia, construírem suas estratégias emancipatórias (GOMES, 2015, p. 66). Com acesso a documentos do século XVIII, é possível perceber as negociações que as próprias autoridades locais possuíam com os quilombolas de determinadas localizações ao norte do país. É mais um exemplo de que as experiências dos mocambos e quilombos e os setores dominantes eram regidas por constantes tensões e acordos, relações bem mais complexas do que algumas pessoas descrevem ao darem preferência a simples narrativas de fuga, total isolamento e confrontos. 

À guisa de conclusões parciais sobre a temática, reafirmo a necessidade urgente de buscarmos os indícios de relações mais estreitas entre as populações de origens indígenas e africanas, assim como ampliar nossos olhares sobre as experiências de afirmação e resistência de quilombolas. Esse é um dos caminhos para que as narrativas e disciplinas históricas possam ganhar novos contornos, que sigam no sentido de olhar esses corpos não brancos como protagonistas de suas próprias trajetórias.

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Moda, identidade e (re)conhecimento

Fotografias: Gustavo Paixão
Modelo: Zaya
Styling e Direção de Arte: Dayana Molina 

O viés social aguça minha força criativa. Criar algo que faça sentido além da estética é possível? Eu penso que sim. O conjunto de características para construir sua identidade implica definir quem você é, quais seus valores e quais direções deseja seguir pela vida. Entende-se que identidade é uma concepção de si mesmo, composta de valores, crenças e metas com os quais o indivíduo esteja solidamente comprometido – o conjunto de características que distingue uma pessoa ou uma coisa e possibilita individualizá-la. Isso justifica o fato de que a minha quase desistência em integrar esse mercado de moda era uma falta de me (re)conhecer nesse espaço.

Uma ausência de representatividade que nos faz questionar a relevância das nossas vidas. 

Como os processos individuais refletem coletivamente? Como o trabalho produzido por um indivíduo pode fazer sentido para alguns e outros não? Identificações. Por meio da identidade, me enxergo além da individualidade. Dessa forma, vou tecendo, questionando, conscientizando e abrindo caminhos.

Crises identitárias também acontecem por questões externas. Pela forma como algumas circunstâncias podem afetar como você se enxerga. E quando você não se enxerga em lugar algum? Essa falta de representatividade gera um vazio sobre quem você é e onde seu corpo não está.

O autoconhecimento é um processo importantíssimo na busca por sua identidade originária. Só nos conhecendo conseguimos nos (re)conectar com nós mesmos. Na nossa forma mais pura, já estávamos conectados. Mas o mundo nos tira algo até se tornar inviável viver sem essa reconexão com nós mesmos, nossa identidade e a natureza integrada.

Comunicar-se através de imagens pode produzir impactos positivos ou negativos. Quando se pensa sob a lente eurocêntrica em um país latino, esse lugar de referências originárias torna-se um abismo. Mas, quando se produz de forma mais consciente, isso pode libertar as pessoas dessa necessidade de padrões inalcançáveis.

Refletir sobre essas questões me fez compreender a importância da pluralidade. As crises que atravessaram minha vida atravessaram muitas outras. A diferença de se perceber e conseguir mudar os rumos da história a partir disso é um dos caminhos que pode revolucionar os mundos, internamente e externamente.

Sendo assim, eu diria que a autenticidade é a ponte para muitas mudanças. Sem a coragem de ser quem se é, não se pode avistar horizontes. É urgente conectar-se a si mesmo e refletir sobre a diversidade que compõe a sociedade. Dentro e fora, na moda e na vida. Toda vez que nos reconhecemos nos traços de outros parentes, caravelas afundam e nosso povo avista um futuro com mais sentido e esperança.

Quais são as distâncias que separam Brasil e Moçambique? Poderíamos pensar que são as águas profundas e antigas dos oceanos Atlântico do lado de cá e Índico do lado de lá. Porém, se nos atentarmos melhor, perceberemos que existem muitos outros caminhos que podem ser traçados, ou, melhor dizendo, trançados.

Para esta edição da revista Amarello, que trata especialmente de afetos e resistências indígenas e negras, escolhi falar sobre o trabalho de Juh Almeida, diretora e fotógrafa baiana, residente em São Paulo. Na verdade, acredito que eu tenha sido escolhida porque, ao ver as imagens feitas durante sua estadia em Maputo, Moçambique, em abril de 2019 – resultado de um projeto premiado pela Secretaria de Cultura de Salvador junto com o Centro Cultural Brasil-Moçambique –, fui arrebatada pela profusão de beleza, cores e formas que Juh encontrou por lá. 

O intuito do projeto era dar aulas de fotografia para mulheres, mas o que vemos nas imagens são registros do cuidado de mulheres africanas com seus cabelos e tradições. As fotos aqui compartilhadas abordam dois momentos da fotógrafa em Moçambique: o seu encontro com Dona Aurora, retratada nas imagens em preto e branco e dona das tranças que abrem este texto. Uma mulher trabalhadora e atravessada pelas histórias permeadas por diferenças de classe no país, e um dia no salão de beleza da cabelereira Constance Chamboco, situado em Ngalanza, 7ª província de Maputo. As fotos coloridas por tons de rosa e verde água mostram Juh retratando crianças fazendo travessuras, mulheres cuidando de seus cabelos, trocando confidências cotidianas, transparecendo cumplicidade e familiaridade com as lentes. Imagens em que a fotógrafa nos mostra as semelhanças entre Moçambique e Brasil, algo que talvez só pudesse mesmo ter sido captado por uma mulher negra como a Juh. 

Ao reparar nas cores, texturas e jeitos de trançar, facilmente poderíamos confundir lá com aqui. A construção das belezas negras passa diretamente pelo afeto, pela diversão, pelo riso solto de Constance e de suas amigas e clientes, todas juntas. É um momento de celebração e encontro – ou melhor, reencontro. De Juh com o continente de seus mais velhos e de estéticas muito antigas que tanto no Brasil como na África se reinventam e se atualizam através das mechas de cabelos repartidos, no pente garfo que encontra e desfaz os nós do crespo prestes a ser entrelaçado por saberes ancestrais. As capulanas coloridas, tecidos tradicionais de Moçambique, adornam os corpos negros; o trançado parece uma costura.

Presenciar os processos de trançar em Maputo e em Salvador sugere uma travessia de saberes, uma permanência de vivências, que, por sua vez, estabelece um laço de identidade, um tipo de processo afetivo de construção da beleza que atravessa o mar e pode ser encontrado aqui. As tranças são, sobretudo, símbolos que não guardam apenas um rico patrimônio estético, mas também têm um sentido político: a experiência negra do trançar e do viver, com seus afetos, maneiras e pensamentos, seja na África, seja no Brasil, é uma experiência de luta e resistência. Estabelecer essas pontes de identidade é fortalecer-se com os dois lados do mar.

Em conversa com a Juh, tive a oportunidade de ler um fragmento do seu diário de viagem, relato que só coroa o que podemos ver nas imagens. Por isso, a convidei para assinar este texto comigo, compartilhando com vocês, leitores, algumas passagens:

Maputo, 26 de abril de 2019

Por Juh Almeida

Som de cabelo sendo penteado por um pente garfo, música baixa no rádio, vozes de mulheres falando como se cantassem, “homem, pega ali minha cerveja”, “trança do lado de cá também”, “você acha mesmo que eu fico bonita com esse penteado?” E foi com essa paisagem sonora que meus pés me levaram para dentro do salão da Constance, na sétima província de Maputo, em Moçambique. Com a licença, entrei, cumprimentei cada uma delas e meu coração confirmou que já nos conhecíamos há muito tempo. Meu corpo de mulher negra, afro-brasileira e diaspórica tremeu ao atravessar o Atlântico e pisar no Índico, e ali, entre as paredes esverdeadas, eu lembrei do mar, e não me sentia mais naufragada, mas como se pisasse em terra segura. Fui arrebatada pela potência e força que emanava daquelas mulheres. Suas histórias escoavam pelos meus pensamentos como lembranças antigas, do verde-água pintado pela própria mão da Constance, mão ligeira que agora ali trançava o cabelo das suas amigas, mãos que seguravam sua filha nos braços, mãos que amarraram como presente uma capulana na minha cintura e que, em um abraço-acalanto, eu pude entender: eu estava em casa.

Que possamos seguir em boas travessias.

Com afeto.


Ilustrações para o livro TYBYRA, de Juão Nyn, que conta o primeiro caso de homofobia no Brasil.

Denilson Baniwa é um artista antropófago, que se apropria das linguagens ocidentais para produzir um processo de descolonização em suas obras.

Engajado desde a juventude na causas dos povos indígenas, tem sua trajetória marcada pela ruptura de paradigmas, ao abrir caminho para o protagonismo indígena no cenário das artes visuais nacional.


Tradição Amazônica, 2020 Reescritura sob perspect – ativismo
Rasura sobre páginas de um livro

Antes Sertão, Hoje Centrão, 2020
Hydrargyrum 80 – Território

Hydrargyrum 80 – O que Você Come

Hydrargyrum 80 – Protetores da Floresta

Mito de Criação Ashaninka

Avó do Mundo

Detalhe de Se eu Fosse Vocês Olhava pra Mim de Novo, da série Pardo é Papel (2019)

No espaço da pintura, Maxwell compreende que pode manipular as marcas e símbolos que moldam as vidas e ditam os comportamentos”

#37Futuros PossíveisArteArtes Visuais

Pardo é papel: Maxwell Alexandre

O nome de Maxwell Alexandre apareceu quase instantaneamente no campo das artes. Em apenas 4 anos, o artista saiu do anonimato para a fama internacional. Literalmente, da Rocinha, a maior e mais populosa favela brasileira, onde nasceu e vive, para um dos museus de arte contemporânea mais prestigiados do mundo, o Palais de Tokyo, em Paris, onde tinha exposição marcada para junho de 2020 (adiada para outubro de 2021 devido à pandemia de Covid-19).

Narrada assim, sua história ganha ares de conto de fadas. Mas a verdade é que, por mais breve que seja, sua ascensão é marcada por determinação e, talvez mais importante do que isso, pelo entendimento lúcido sobre como funciona o circuito das artes. Lugar que, como ele mesmo aponta, é um espaço de privilégios, movido por uma lógica branca e elitista. Não por acaso, sua obra, contundente, fala sobre a cultura da sua comunidade, predominantemente preta e pobre.

Formado em Design pela PUC-Rio, onde foi aluno bolsista, foi lá que teve seu primeiro contato com a arte contemporânea, através das aulas com o artista Eduardo Berliner. Esse encontro foi decisivo para que compreendesse que era este o caminho que perseguia. A partir desse momento, começou a estudar a lógica do campo da arte e entendeu que era preciso operar de forma estratégica. De cara, compreendeu que se intitular “artista” trazia mais prestígio do que “designer”, além de alargar as possibilidades do seu futuro profissional. 

Foi em 2017, no evento Carpintaria para Todos, promovido pela galeria Fortes D’Aloia e Gabriel, no Rio de Janeiro, a primeira vez que Maxwell pendurou uma obra sua na parede de uma galeria tradicional do sistema das artes. Nesse dia, as portas estavam abertas a todos que aspiravam um espaço no circuito (e mercado) das artes. Bastava chegar com um trabalho que não ultrapassasse as dimensões da porta de entrada. Maxwell apresentou a obra Tão saudável quanto um carinho (2017) – parte da série Reprovados, que “surgiu para tratar de questões mais ácidas da vivência preta, como o conflito da comunidade com a polícia, a dizimação e encarceramento da população negra, a falência do sistema público de educação”, conforme escreve. 

Do evento na Fortes D’Aloia e Gabriel, Maxwell passou a ser artista representado pela galeria A Gentil Carioca, que o levou para a consagrada feira Art Basel. Apadrinhado, partiu para uma residência na Delfina Foundation, em Londres, e outra em Lyon, que resultou na sua primeira individual fora do país, Pardo é papel, no Museu de Arte Contemporânea de Lyon. No retorno ao Brasil, a mostra itinerou por importantes instituições nacionais, como o Museu de Arte do Rio de Janeiro e a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Nesse percurso, fez também sua primeira exposição solo no Reino Unido, na galeria David Zwirner, de Londres. 


Sem título, das séries Novo Poder e Pardo é Papel (2019)

Se o primeiro trabalho apresentado ao circuito trazia uma visão mais dura e pesada da periferia – e, é necessário apontar, extremamente realista –, expondo tudo aquilo que fica perversamente velado pelos donos do poder, a série Pardo é papel traz um pouco mais de humor. Nela, a figura do homem preto aparece em meio aos símbolos e marcas que representam o status de poder e de bonança dentro da favela. Danone, Toddynho, Adidas, correntes de ouro, jatinhos, carros conversíveis se misturam ao brasão da polícia, aos uniformes escolares da rede pública de ensino, à laje, à piscina de plástico da marca Capri (cujo desenho padrão se espalha como pano de fundo de muitas das obras), às viaturas de polícia, às armas. É possível identificar representantes da luta social, bem como ícones da cultura popular. Marielle Franco marca presença. E os pretos ascendendo às camadas de poder, também. 

Ao pintar corpos pretos sobre o papel pardo, afirma o ato estético também como político. Pardo é a designação utilizada em documentos oficiais, como certidões de nascimento, e pelo Censo do IBGE, por exemplo. Entretanto, hoje em dia, a comunidade preta entende que tal denominação está ligada a um processo de clareamento, e negação, da sua verdadeira cor. O crescimento das discussões e a tomada de consciência da população preta passa também pela construção de uma autoestima que aceita e enaltece suas características e que passa a enxergar, nesse tipo de termo, uma conotação pejorativa.

O personagem de cabelo descolorido que aparece nas pinturas é seu autorretrato. No espaço da pintura, Maxwell compreende que pode manipular as marcas e símbolos que moldam as vidas e ditam os comportamentos. Ao deslocar essa realidade para o plano pictórico, dando-lhes um novo tempo e espaço, seus trabalhos possibilitam o questionamento não apenas dos valores sociais, mas do lugar do preto em nossa sociedade, que por tantos anos negou sua existência. Os títulos de algumas de suas obras fazem essa conexão de forma direta: O mundo é nosso, Se eu fosse vocês olhava pra mim de novo, Até Deus inveja o homem preto, etc.


Detalhe de Pisando no Céu, da série Pardo é Papel (2020)

Detalhe de Megazord Só de Power Ranger Preto, da série Pardo é Papel (2018)

O grande formato de suas pinturas também tem a ver com isso. “Achei pertinente assumir esse formato de pintura monumental, para intensificar o diálogo entre a quantidade de papel articulada e o número de corpos pretos em posições contemporâneas de poder”, escreve em texto publicado no catálogo da exposição Pardo é papel. Para quem teve a oportunidade de ver tais obras ao vivo, fica evidente o contraste criado pela monumentalidade das obras e a fragilidade do material, que acaba tendo rasgos e remendas aparentes, algo que foi pensado propositalmente pelo artista. 

Maxwell é membro d’A Noiva, ou a Igreja do Reino da Arte, que reúne artistas de várias áreas e onde acontecem encontros, exposições, trocas de ideia, além de rituais próprios das igrejas, como batismo, peregrinações e festas. É também a partir desse templo, como ele se refere, que tenta levar a arte contemporânea para dentro da comunidade onde vive, na Rocinha. Ali, ele propõe o autoconhecimento e a salvação pela arte. É mais um caminho que traça para aproximar a favela do sistema excludente da arte contemporânea. Em um post em sua conta do Instagram, publicado em 27 de dezembro de 2019, ele escreve sobre um culto de batismo realizado na Igreja: “A Igreja se instalou aqui na favela muito para fazer valer de fato as máximas idealizadas e romantizadas pelo circuito: a Arte democrática, a Arte para salvação do mundo. Isso nunca foi uma verdade aqui, porque a Arte como objeto de valor especulativo e principalmente distinção social tem sido um programa implementado para que os crias daqui não se sintam à vontade de chegar perto, consumir ou entender. Se é que precisa entender, neh (sic)?”

A relação que mantém com a música, como pessoa e em sua produção artística, também faz parte dessa estratégia. Suas maiores referências e pares de trabalho são cantores de rap, sobretudo da geração atual, como Baco Exu do Blues, Djonga e Bk’. O rap é uma inspiração direta para sua pintura e também uma escolha perspicaz de como aproximar a sua comunidade do campo das artes visuais.


Detalhe de Não foi Pedindo Licença que Chegamos Até Aqui, da série Pardo é Papel (2018)

Poucas pessoas têm a coragem de falar sobre o sistema das artes com a franqueza que o faz Maxwell Alexandre. Para ele, nascido na periferia – um lugar aonde a arte não chega porque não há tempo a perder com algo que alimente o espírito e não mate a fome depois de um dia de trabalho –, o entendimento da arte como um lugar de privilégio e de acúmulo de capital simbólico e econômico é claro. Ciente de tudo isso, e uma vez dentro do sistema, seu trabalho vai na direção de provocar e desestabilizar esse cenário. Sua obra aparece em um momento em que a luta contra o racismo tem tomado força e somado vozes. Sua trajetória, sua obra e sua posição jogam essa luz no centro do campo da arte, ao mesmo tempo que apontam, também, para a necessária reflexão sobre a estrutura social como um todo. É preciso olhar atentamente cada pincelada, que, mais do que tinta e domínio técnico (e este está, sim, presente), sinalizam que os pretos não vão mais ficar calados. E nem poderiam. A nós, brancos, cabe, mais do que contemplar, refletir. 


Dalila Retocando Meus Dreads, da série Pardo é Papel (2020)
#37Futuros PossíveisArtigo

Eu sou um homem (I am a man)

por Zé Manoel

Dicen que por las noches
Nomás se le iba en puro llorar
Dicen que no dormía
Nomás se le iba en puro tomar

Na rodovia vazia, a voz de Caetano Veloso ressoa no lamento mexicano “Cucurucucu Paloma”.

Céu azul claro, um carro solitário percorre o asfalto. Cordão de ouro no pescoço, semblante triste, pulseira de ouro no braço, o homem negro ao volante tem, no peito, atrás da camiseta branca colada ao corpo, um coração de criança magoado.

Ay, ay, ay, ay, ay cantaba
Ay, ay, ay, ay, ay gemía.

Crianças negras de pele retinta surgem, em transição de cena, banhando-se alegres no mar, sob o céu noturno. Suas peles brilham azuis sob a luz do luar.

Moonlight é um filme de Barry Jenkins, inspirado na peça In Moonlight Black Boys Look Blue, de Tarell Alvin McCraney. É desse filme a cena descrita acima, protagonizada pelo ator norte-americano Trevante Rhodes. O enredo se desenrola em três atos, passando pela infância e adolescência de Chiron no subúrbio de Liberty City, Miami, até a fase adulta em Atlanta. Uma sucessão de situações abusivas e de gatilhos para quem, como eu, se identifica com o personagem da trama. Enquanto ele luta para entender e reconhecer sua própria identidade e sexualidade, passa, ao longo dessas transformações, por todo tipo de violência psicológica e física.

No desenrolar do filme, uma figura masculina, no entanto, surge para quebrar o ciclo de representações tóxicas. Juan, interpretado genialmente por Mahershala Ali (Oscar de melhor ator coadjuvante), é um narcotraficante, um homem preto na pele do estereótipo largamente explorado pelo cinema e pela mídia no geral, a mesma que faz vistas grossas à cor alva dos reais detentores do poder oriundo do tráfico de drogas.

Por vários minutos, o filme desafia nosso olhar condicionado e acostumado a representações estereotipadas do homem preto. Em que momento ele vai mostrar seu comportamento violento? Certamente será mais um a abusar da inocência e fragilidade de Chiron.

Juan amorosamente o acolhe, talvez se enxergue naquela criança amedrontada, o leva para conhecer sua namorada Teresa, vivida pela maravilhosa e multitalentosa Janelle Monáe, lhe fala sobre autorrespeito, lhe apresenta uma vida harmoniosa, numa casa pronta para recebê-lo sempre que quisesse ou precisasse fugir da rotina violenta em sua casa e na escola.

Um homem cheio de virtudes, preso, como tantos outros, à máquina de moer pretos e periféricos chamada de guerra às drogas. Vítima ou vilão são os papéis que restam para quem nasceu preto, indígena ou periférico, seja nos EUA, onde a trama se desenrola, seja no Brasil, ou em qualquer outro lugar do mundo.

Juan nos apresenta suas subjetividades e compreende as subjetividades de Chiron, menino delicado, introspectivo, violentado por uma cultura machista e racista. Juan é um homem. Um homem que ajuda na formação de outro homem.

A canção “My Time” de Gregory Isaacs tem uma frase que diz: “Eu mereço o direito de ser como qualquer outro homem”. Porque um homem negro é um homem negro, mas o homem branco é apenas um homem. “Eu sou um homem” (I Am a Man) é uma declaração dos direitos civis, que nasceu em países como Estados Unidos e África do Sul, como resposta ao termo “moleque” usado como insulto racista para homens de cor escravizados, presumindo serem menos do que homens, serem inferiores. Essas ideias parecem absurdas, às vezes até distantes, mas a realidade é que pouca coisa mudou de lá até os dias de hoje, e o cinema tem um importante papel nessa construção do que é ser um homem preto.

O filme Eu Não Sou Seu Negro, dirigido pelo norte-americano Raoul Peck e inspirado no livro inacabado Remember This House, do brilhante escritor e pensador James Baldwin, conta, dentre várias outras passagens, um pouco de como se deu essa construção, no cinema, do homem preto violento, fanfarrão, sexualizado, ridículo, submisso, que até hoje vemos facilmente retratados no cinema e na TV. Basta ligar qualquer canal brasileiro e assistir a qualquer programa policial, novela ou comédia, o homem e a mulher negra estarão lá sempre retratados de forma violenta ou jocosa, ridícula, quase sempre animalizados.

Tem uma passagem em que Baldwin narra a primeira vez que assistiu ao filme Esquecer Nunca (They Won’t Forget), de Mervyn LeRoy, de 1937: “Acho que foi um ator negro chamado Clinton Rosemond que fez esse papel. Ele parecia um pouco com o meu pai. Ele está apavorado porque uma jovem branca de uma cidadezinha do Sul tinha sido estuprada e assassinada e o corpo dela tinha sido encontrado no prédio onde ele é zelador. O papel do zelador era pequeno, mas o rosto do homem ficou marcado na minha memória até hoje. A brutalidade e a frieza do filme me assustaram e me fortaleceram”.

Essa construção foi e continua sendo massivamente utilizada pela indústria de entretenimento para colocar o negro, especialmente o homem negro, no lugar criado para “enjaulá-los” e resumi-los a estereótipos.

No cinema, enredos protagonizados por pessoas pretas habitualmente acontecem nas favelas, em comunidades pobres, violentas, nos presídios, ou retratam alguém oriundo desses lugares, como se corpos pretos habitassem apenas essas realidades. Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund), Tropa de Elite (José Padilha), filmes nacionais de sucesso internacional, são exemplos da exploração desses estereótipos – apenas para citar dois que me ocorrem mais facilmente, mas a lista é imensa e em constante atualização, com o agravante de serem majoritariamente produzidos e dirigidos por pessoas brancas.

Numa pesquisa rápida sobre os personagens vividos, por exemplo, pelo ator Babu Santana, você encontra: Birão, Bartu, Soldado, Mecânico, Capanga de Lourival, Montanha, Assaltante, Carniça, Coisa Ruim e por aí segue. Bem simpáticos, né? Esse mesmo ator nos enche os olhos de lágrimas e de amor com o personagem Ivan, um homem doce, apaixonado pelo marido, no belíssimo filme Café com Canela, roteirizado por Ary Rosa e dirigido por ele em parceria com Glenda Nicácio; um filme majoritariamente realizado e protagonizado por pessoas pretas.

Na TV, de forma ainda mais explícita, o povo preto é constantemente retratado como pessoas ridículas, grotescas, como no canal Multishow, que, apesar de se fazer passar por “moderninho”, descolado, exibe sitcoms como Tô de Graça, recheada de personagens animalescos, bizarros, de cabelos crespos desgrenhados em cenário de casas pobres, onde poderiam habitar pessoas trabalhadoras, estudantes inteligentes, artistas e profissionais talentosos, famílias amorosas, em suas mais variadas constituições – pessoas que lutam todos os dias contra o seu genocídio, que vivem contrariando as estatísticas de morte e violência de seus iguais, mas que são representadas como animais engraçados, que fazem graça com suas misérias e que usam sua estética de forma caricata para provocar risos. Velha história.

Além de tudo, esse tipo de programa frequentemente usa o blackface para retratar pessoas pretas. Não o blackface da cara pintada de preto, que causa revolta e comoção nas redes sociais, mas o blackface “aceitável”: perucas de cabelos crespos, narizes aumentados para os lados, peles escurecidas por maquiagem. Infelizmente, muitas vezes, pessoas pardas se prestam a fazer a parte suja desse jogo. A vontade de mencionar nomes de atores que vivem desse tipo de atuação é grande, mas não quero me demorar demais nesse parágrafo desagradável.

Isso tudo me faz lembrar um trecho da poesia de um amigo, escritor fabuloso, Marcio Vidal Marinho, de São Paulo, no livro 21 gramas.

(…) Sigo de mãos atadas, 
São ferros e correntes 
Impossíveis de destruir.
Meu espírito guerreiro grita
E não compreendo…
A única palavra que ouço,
Mas não entendo
É negro, 
Negro, negro…
O que será um negro meu Zaci?

E o que é um negro, senão uma construção da branquitude para designar, na América, aqueles que foram sequestrados no continente africano e que tiveram toda a sua história, cultura e subjetividades reduzidos a uma palavra? Essas mesmas pessoas, detentoras dos meios de produção e distribuição de conteúdo, donas dos grandes estúdios de cinema, das salas de cinema, das estações de rádio e TV, só para citar alguns, geração após geração, seguem alimentando o significado da palavra negro dentro de suas perspectivas racistas.

“Eu afirmo a vocês: o mundo não é branco, ele não pode ser branco. Branco é uma metáfora de poder. (…) Eu não sou um preto. Eu sou um homem. Mas, se vocês acham que eu sou um ‘preto’, significa que precisam dele. (…) Vocês brancos o inventaram, então vocês têm que descobrir o porquê” – essa é mais uma fala de Baldwin no filme Eu Não Sou Seu Negro.

Não há como falar sobre masculinidade negra sem passar pelo estereótipo e fantasia de medo e tesão criados pelo branco para designá-la.

O cinema não é pai desses estigmas, mas é responsável por fixá-los e perpetuá-los no imaginário coletivo. Por isso iniciei o texto narrando a bela cena do filme Moonlight, onde há um homem cheio de subjetividades, de profundidade. Um ser completo e complexo. Essa nova narrativa é uma das armas que nós, artistas, compositores, roteiristas, diretores, escritores, poetas, músicos pretos temos para construir no imaginário coletivo o que sempre existiu, mas nunca foi retratado.

No final de Moonlight, Chiron, já homem feito, vivendo em Atlanta, vai ao encontro do seu amigo de infância e adolescência, Kevin, com quem viveu descobertas e frustrações… Esse lugar especial que o amigo sempre ocupou na vida atribulada do menino Chiron acabou virando, também, um lugar de afeto e desejo entre ambos. Os dois se reencontram adultos, em Miami, depois de um pedido de desculpas de Kevin por telefone (por uma violência cometida por ele na época de escola, que gerou uma grande mágoa em Chiron), e, de repente, nos vemos em um restaurante tipicamente americano, onde Kevin ao mesmo tempo cozinha e atende todas as mesas, cenário do reencontro dos dois.

Kevin prepara para Chiron um prato bastante conhecido nosso, feijão com arroz. Na radiola de ficha, Barbara Lewis canta:

Hello stranger
It seems so good to see you back again
How long has it been?
(Ooh it seems like a mighty long time)

Torcemos pelo beijo e o final feliz desses dois homens que foram a vida inteira privados de demonstrar afeto e construir uma vida longe da violência e dos estigmas que reservaram para eles.

Eles não se beijam. Se consolam e se abraçam.

E, assim, concluímos que há muito caminho ainda para trilhar. Pois sigamos.

#37Futuros PossíveisArteFotografiaMúsica

Adupé Obaluaê

Obaluaê é o orixá das doenças, da saúde, da vida e da terra. Esta fotoperformance, intitulada A Cura através da Dança, surgiu dessa necessidade de respeito aos nossos ancestrais e como um pedido para que Obaluaê nos proteja e nos guie em meio a esse longo período de provações.

O xaxará, aqui apresentado como um totem de madeira e palha, é uma espécie de cetro, evidenciando o orixá como o “Rei da Terra” e senhor do portal entre o mundo dos vivos e dos mortos. A gamela, objeto cênico circular que o performer entra e carrega durante o vídeo, tem uma simbologia muito forte na Bahia, que é o prato de barro onde se come e onde se coloca a oferenda aos orixás. 

Um diálogo com nossa ancestralidade e o universo imagético religioso do candomblé. A fotoperformance foi registrada pela fotógrafa Maria Mango durante as gravações do videoclipe Adupé Obaluaê do pianista, cantor e compositor Zé Manoel, dirigido por Wendel Assis e Gil Alves, que, além de dirigir, também atuou no videoclipe. Coreografia de Jorge Silva, figurinos de Luciano Santana e elementos cênicos de Jorge Alberto.

#37Futuros PossíveisCulturaEducação

Dois e dois são dois: Kênia Freitas e Fábio Kabral

Pesquisadora, crítica e curadora de cinema. É doutora pela Escola de Comunicação da UFRJ e fez estágios de pós-doutorado na UCB e na Unesp. Realizou a curadoria das mostras Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica, A Magia da Mulher Negra e Diretoras Negras no Cinema Brasileiro. Integrou as equipes curatoriais do IX CachoeiraDoc (2020) e do Festival de Cinema de Vitória (2018). Escreve críticas para o site Multiplot!. Ministra cursos e oficinas sobre crítica, cinema negro, afrofuturismo e fabulações.

Escritor de ficção especulativa com foco em fantasia. No momento, passa seus dias pesquisando e escrevendo seu próximo livro: um épico de fantasia centralizado na mitologia afro-brasileira dos Orixás, que será publicado pela Editora Intrínseca em 2021. Seus livros publicados são: Ritos de Passagem (Giostri, 2014), O Caçador Cibernético da Rua 13 (Malê, 2017) e A Cientista Guerreira do Facão Furioso (Malê, 2019).

Kênia — Eu ouvi falar de afrofuturismo pela primeira vez no final de 2012, começo de 2013, e foi uma coisa muito por acaso. Fui escutar um programa de rádio de um camaronês-francês chamado Georges Collinet, em que ele fala sobre música de África, música da Afrodiáspora, música negra de forma geral, e o programa falava muito sobre uma certa ideia de pensar as raízes negras da música eletrônica e várias coisas que a gente ainda associa a uma cultura muito branca, como as raves. Nesse programa, eles mencionaram o techno de Detroit, e o chamaram de afrofuturismo. Eu nunca tinha ouvido falar nesse termo. O programa falou muito rápido sobre o que estavam chamando de afrofuturismo, a ideia desse som eletrônico, meio abstrato, que, ao mesmo tempo, tinha toda uma simbologia, todo um direcionamento para falar de coisas da ficção científica, de fazer música para extraterrestre, música para a Lua. Isso tudo no contexto daqueles jovens do final dos anos 80, começo dos anos 90. Jovens negros, de família de classe trabalhadora, sem muita renda, que viviam em uma cidade que havia sido por muito tempo um grande parque industrial e que, a partir dos anos 70, foi esvaziada, com desemprego e fábricas abandonadas. Então, por um lado, havia aquela cidade que foi supertecnológica e viu a tecnologia tornar-se decadente, e, por outro lado, esses jovens negros sem muita perspectiva de futuro. A música que eles fizeram como resposta a isso é uma música diferente, por exemplo, do universo do hip-hop, em que se fala das questões negras dos Estados Unidos de uma forma muito direta, muito explícita, muito realista. A solução do techno de Detroit foi pensar sobre a situação de uma maneira especulativa, mais voltada para essas ficções do imaginário.

Esse debate foi algo que me atravessou muito. Pensar nessas possibilidades e nesses termos significava entender que, talvez – e acho que esse foi o primeiro estalo – existam formas de falar sobre a experiência negra no mundo, inclusive sobre aspectos traumáticos e complicados, sem passar pelas narrativas naturalistas e realistas. Na época, eu estava no doutorado em Cinema, e me interessou muito pensar como isso poderia se dar em um novo registro formal, saindo da música para o cinema. Foi quando busquei textos sobre o assunto e comecei a pesquisa, que resultou em uma mostra de cinema em 2015, na Caixa Belas Artes de São Paulo. Essa curadoria era a vontade de pensar o afrofuturismo, relacionando o universo da música com o do cinema. Acho que pensar o afrofuturismo é pensar nesses conceitos em evolução, desde quando surge pela primeira vez, naquele texto de 1993, em que o Mark Berry entrevista pessoas negras, até os seus desdobramentos. Eu gosto de começar por um lugar mais simples, para entender, e depois, quando chegamos nos exemplos, eles obviamente se complicam. Mas, para mim, afrofuturismo é esse universo de criação que relaciona a experiência negra – e, quando eu falo de experiência, eu estou falando também de autoria e de reflexão, dentro das obras, da presença negra – com os universos das ficções especulativas, que são bastante variadas em si também e já são todo um grande debate, desde a ficção científica, a fantasia, alguns gêneros dentro do terror, enfim, esse guarda-chuva grande que chamamos de ficção imaginativa. De alguma forma, elas criam outras formas de abordagem em relação ao mundo, distintas do realismo. Eu me interessei muito em pensar esse conceito na sua concepção política, e essa política com seus formatos estéticos variados, como o techno de Detroit. Quando falamos de ficção especulativa a partir de experiências negras, estamos falando também de questionamentos que são diretamente políticos e estéticos. 

Fábio — Para mim, até hoje tenho dificuldade de falar e entender como foi a aproximação com esse termo. Na verdade, foi por volta de 2014. Eu não sei se alguém me falou essa palavra ou se eu vi na internet, em algum site de quadrinhos americanos ou videogames. O que eu lembro é que, quando me deparei com a palavra, eu pensei: “o que é afrofuturismo?” Imediatamente, pensei: “o que eu faço com isso, o que eu crio com isso?” Eu já tinha um livro de ficção publicado no mesmo ano, em janeiro de 2014, chamado Ritos de Passagem, que é uma ficção de fantasia, só que, obviamente, inspirado na África, não na Europa. Seria uma África fantástica sem ser a África. Digo que se passa na África por causa dos personagens, das vestimentas, da cultura ali apresentada. Eu estava para descontinuar esse universo do Ritos de Passagem quando surgiu o afrofuturismo, e comecei a criar um segundo universo, inspirado num jogo da série Final Fantasy, que habita um mundo futurista, com tecnologia mágica. Esse universo as pessoas hoje olham e entendem como um “mundo futurista” ou “o futuro da Terra”, mas eu nunca criei literatura baseada no planeta Terra. Quer dizer, toda ficção é baseada na realidade, mas não é uma ficção realista. Nunca fiz uma ficção que se passasse na Terra, e sim em universos alternativos. Iniciei esse universo com a cidade que chamei de Ketu 3, dessa vez inspirado nas mitologias do povo iorubá e na mitologia afro-brasileira dos orixás. Com isso, fiz um mundo alternativo mais próximo do nosso mundo real, no sentido de que as pessoas usam roupas, têm comportamentos e tecnologias semelhantes às nossas – só que é uma tecnologia obviamente fantástica. Quando você fala que um celular, ou qualquer tecnologia, é movida por energia eletromagnética dos ancestrais, e que parte da população tem poderes psíquicos, pessoas que voam, sacerdotisas, mães-de-santo empresárias com poderes paranormais, para mim isso é literatura fantástica, e isso é o que costumo fazer. Só que, quando esse meu segundo livro publicado, O Caçador Cibernético da Rua 13, chegou às livrarias, as pessoas passaram a associar com o afrofuturismo. Até hoje muita gente diz isso. Eu acho curioso. Ritos de Passagem foi publicado em 2014, e O Caçador foi publicado em 2017. Eu vi a primeira manifestação declaradamente afrofuturista no Brasil em 2015, graças à Kênia, na mostra Afrofuturismo do Cine Belas Artes, em São Paulo. Foi a primeira vez que eu ouvi a palavra afrofuturismo em solo brasileiro. Eu achei muito bacana, fiquei bastante inspirado, mas fui trabalhar no meu livro, que estava quase pronto, faltando os últimos trâmites com a editora. Ocorreu de, nesse período, me encomendarem um artigo, em 2016, para falar sobre afrofuturismo. Eu expliquei “gente, eu não sei falar disso”. Mas beleza, me encomendaram. E aí começou a minha tentativa de elaborar o que seria afrofuturismo. Sempre deixei nítido que não sou acadêmico, não sou jornalista, não sou, por exemplo, como a Kênia. A Kênia é uma profissional, analista, que faz análise conceitual, acadêmica. Eu sou só escritor de ficção. Mas tudo bem, já que havia poucas pessoas falando sobre, tentei dar minha contribuição. Nesse sentido, comecei a criar uma série de artigos, e hoje eu vejo que vários desses artigos, pelo menos na minha opinião, visto como o afrofuturismo está se desenvolvendo hoje, estão meio desatualizados. Então foi assim, comecei a criar esses artigos e as pessoas começaram a apontar, “nossa, ele é afrofuturista”. Continuei fazendo artigos, mas sempre deixando nítido: eu não sou especialista no assunto, sou só escritor de ficção, estou aqui só dando uma contribuição, procurem pessoas que saibam mais do que eu. Fui publicando meus livros, e quando lancei o A Cientista Guerreira do Facão Furioso o pessoal continuava comentando como se eu fosse “o mestre afrofuturista”.  

As definições que aprendi na época, naquele primeiro artigo de 2016, eram de um movimento de recriar o passado, transformar o presente e projetar um futuro através da nossa própria ótica. Isso, para mim, é a própria definição do afrofuturismo. Na verdade, essas linhas eu criei, botei no artigo, e aí em 2017 me surpreendeu muito ter essa definição citada no livro do Lázaro Ramos, Na Minha Pele. Em 2018,  surgiu um convite para ministrar uma oficina sobre escrita afrofuturista. Eu pensei: “eu sou escritor, não sou professor de escrita, como é que vou fazer isso?” Tive que pedir uma ajuda para minha esposa, que já trabalhou na área de educação. Como não gostamos de enganar as pessoas, estudamos o máximo possível sobre afrofuturismo e, na verdade, vimos que não havia muita coisa ainda. É um movimento, pelo menos no nome, muito novo, mesmo que haja quem diga, de forma retroativa, que o afrofuturismo existe desde o Egito Antigo. Eu não concordo com isso, mas eu respeito, entendo esse ponto de vista. Então a gente se ateve muito às definições mais acadêmicas, pegando lá de trás, desde Sun Ra e George Clinton. Fizemos leituras críticas sobre isso, e entendo que contribuímos de alguma forma. Mas hoje, inclusive, fiz um post dizendo que eu estou me retirando do afrofuturismo. 

Kênia — Só um comentário rápido: lembrei que Ritos de Passagem é um dos livros que o escritor Waldson Souza analisa na sua dissertação de 2019, sobre literatura afrofuturista no Brasil. Ele analisa três obras, uma da Lu Ain-Zaila, uma do Fábio e uma do Julio Pecly. E aí ele comenta que, de alguma forma, já é possível encontrar elementos que são identificados por uma lente crítica afrofuturista. E eu concordo muito com essa análise. Talvez isso seja uma coisa próxima de algumas questões que o Kabral tem, de que o afrofuturismo é mais do que uma caixinha em que a gente fecha as obras e diz que tem que ter tal e tal característica – porque isso limita muito a criação. Se você limitar tudo que o Fábio faz a afrofuturismo, parece que acabou a conversa aí. Não, isso é o começo da conversa. A ideia é pensar o afrofuturismo como uma lente crítica, uma lente teórica, que tenha alguns repertórios que partem dela e que dialogam com ela, mas que não é um fim em si mesmo. Ao criar uma caixinha e colocar todo o trabalho criativo ali, parece que o artista fica preso. Deixa de ser algo que move a criação e vira algo que quase mata a criação. Eu acho que, se a gente pensa mais nessa ideia de lente crítica e menos na ideia de categoria fechada, não sufocamos tanto as obras. Porque é possível pensar, por exemplo, os livros do Fábio junto com vários outros repertórios, não só com o repertório afrofuturista. O repertório das religiões de matriz africana, o repertório das histórias de super-herói… Acho que tem muita coisa ali que atravessa a criação, que se mistura e possibilita muitas leituras, muitas abordagens. Os conceitos se tornam perigosos quando eles ou são definidos de uma maneira bem louca, ou viram uma prisão.

Fábio — Sim, exatamente. O problema não é o movimento em si, mas é o que as pessoas fazem com isso. E aí eu, como autor, me sinto meio encurralado, no sentido de que se jogou muito isso em cima de mim. Primeiramente, eu não considerei justo, porque tanto você quanto o Waldson, por exemplo, na minha opinião, falam com mais propriedade sobre o tema – e não é questão de me colocar inferior, não é isso, só acho que cada um tem o seu papel. Meu papel é pensar na criação, e não necessariamente analisar. Eu gosto de criar, de fazer, e deixar que outros falem, expliquem o que eu estou fazendo. Pessoas como a Kênia vão explicar muito melhor o que eu estou fazendo, inclusive vão enxergar coisas que eu não enxerguei. Se, dentro da ficção, limitando o afrofuturismo apenas à ficção, como é a minha ideia, isso já me incomoda, isso se torna um problema quando as pessoas expandem para outros cenários, para outras possibilidades que estão fora do meu alcance. Quando as pessoas apontam o afrofuturismo como entendimento da sociedade, de ditar os rumos da sociedade, eu sempre chego e falo “não, eu não tenho como fazer isso, eu não sou cientista político”. Na minha cabeça, apenas crio mundos fantásticos. Eu entendo as implicações que esses mundos podem ter, eu entendo as motivações, o que eu represento ali, entendo quando alguém me diz isso, mas não tenho a pretensão de chegar e falar “eu quis fazer isso”, “eu quis passar essa mensagem”. Eu quero passar várias mensagens, mas não quero dizer que estou passando várias mensagens; quero só fazer, e que as pessoas analisem. Então isso estava me incomodando bastante, porque as pessoas me chamam mais para falar sobre afrofuturismo do que para falar sobre escrita. Se for para falar, eu quero falar sobre escrita, sobre o que eu estou fazendo, sobre o que me inspira a escrever. Também chegou num ponto em que o afrofuturismo começou a tomar rumos que estão fora do meu alcance, como o afroempreendedorismo. Para mim, não tem muito a ver, porque o afrofuturismo está no campo da ficção, e o afroempreendedorismo é algo prático, real, não tem a ver com o fazer ficcional. Eu acabei entendendo, de fato, o que diz a Nnedi Okorafor, uma autora afro-americana de origem nigeriana que nega veementemente ser afrofuturista. Porém, como a Kênia bem diz, a Okorafor criou o africano-futurismo, African futurism, para explicar o que ela faz, e o que ela diz que é o africano-futurismo é o que eu achava que era o afrofuturismo. Aí a Kênia diz que o africano-futurismo nada mais é do que uma vertente do afrofuturismo; não deixa de ser afrofuturismo. Por isso, eu entendo que tudo que eu escrever e fizer, por causa das características da forma como eu escrevo e do que eu escrevo, sempre vai ser considerado afrofuturismo. Tudo bem. Minha questão não é negar que eu seja afrofuturista, que o que eu escrevo seja afrofuturista, mas os rumos que o afrofuturismo está tomando hoje. Eu decidi que pararia de comentar sobre afrofuturismo porque não acompanho mais essa cena. Percebi isso quando vi que estávamos fazendo as oficinas no piloto automático. Entendi que nunca foi uma vontade minha, que eu estava só fazendo e seguindo a demanda. E, quando chegou a pandemia, senti que não tinha vontade de fazer live sobre isso. Até porque não tenho mais o que falar sobre o assunto.

Kênia — Mas acho que isso gera vários pontos, Kabral. De uns dois em dois anos, o afrofuturismo fica na moda. Teve o Pantera Negra, e tudo passou a ser afrofuturismo, surgia gente de tudo quanto é lado falando do assunto, da arquitetura, da música, etc. Aí veio a Beyoncé ano passado com Black Is King, e brotaram vários jornalistas para perguntar sobre afrofuturismo. E muita gente nem tem a preocupação de ler as coisas que você já escreveu, outras entrevistas que você deu, que eu dei ou mesmo o que muita gente tem produzido sobre o assunto. Eu vejo uma contribuição muito grande no que você fez, quando escreveu os textos no blog. Textos que não são acadêmicos e, portanto, são muito acessíveis. Isso é muito bom. E você comentava ou traduzia um trecho, já que muita coisa estava escrita em inglês, como você fez com o texto em que a Okorafor falava sobre africano-futurismo. Essas abordagens nos aproximam do conceito, trazendo ele para um lugar brasileiro. Era um jeito ao mesmo tempo elaborado e acessível, feito para as pessoas entenderem o debate. Isso cumpriu um papel muito importante. Agora começamos a ver dissertações como a do Waldson, sobre afrofuturismo no cinema, na literatura e na música, mas, quando você começou a fazer esse movimento de escrita, não tinha ninguém. Então acho que foi muito importante esse gesto. O problema é uma certa abordagem sobre afrofuturismo que fica, mesmo, muito superficial, como se gente preta usando roupa colorida, de preferência que brilhe, bastasse para significar afrofuturismo. Não, né? Espera aí. Às vezes me parece que há uma superficialidade – e não estou dizendo superficialidade no sentido de que só estudo acadêmico seja profundo e outras formas de abordagem não sejam. Acho que a sua forma de abordagem era muito condizente com a internet sem ser superficial. Tinha estudo ali, tinha vontade, tinha pesquisa. Pegar textos em inglês e fazer um comentário sobre ele, permitindo que um monte de preto que não sabe falar inglês tenha acesso ao debate, relacione e pense o conceito, é um gesto muito necessário. Você não tirava os negócios da sua cabeça e escrevia; sempre teve pesquisa. Então acho que a superficialidade está muito em algumas outras abordagens, que entram nesse modismo. Aí caímos nesse espaço perigoso. 

Fábio — Eu entendo, sim, que meus textos acabaram sendo uma linguagem acessível num primeiro momento, mas aí eu vejo que hoje tem uma galera muito mais inserida na internet. Na verdade, o que eu vejo é que eu fiz uns cinco artigos e muitos ali são redundantes. No segundo artigo, faço uma associação com afrocentricidade, e não é necessariamente isso, mas é como eu quis enxergar. E eu comecei a ver que muita gente também está enxergando como quer. Se, ao mesmo tempo, eu falo que tudo bem, porque eu acho que cada um faz o que quiser, também tenho a minha opinião. Da mesma forma que vi que eu estava errado em associar com afrocentricidade, também considero que não tem a ver associar com afroempreendedorismo, com militância negra. Sim, estão interligados; sim, tem uma questão política no afrofuturismo. Eu entendo. E seria leviano falar que a minha obra não é afrofuturista quando todas as minhas obras, absolutamente todas, têm um elenco 100% negro. Não é apenas um mundo de elenco 100% negro, são sempre mundos centrados numa mitologia e espiritualidade de matriz africana. Eu entendo o impacto que isso tem. Eu entendo o recado que isso dá. Então é igualmente leviano você ter uma causa e associar ao afrofuturismo somente por ser conveniente, porque é o nome da moda. Como a Kênia disse, o afrofuturismo estourou no Brasil com o Pantera Negra e, depois, com o Black Is King. A partir disso, vi muita coisa e pensei “não concordo”, mas, ao mesmo tempo que eu não concordo, repito: cada um tem direito de fazer o que quiser. No pouco tempo em que fiz faculdade de Letras, entendi que as palavras têm significados livres, não podemos prender as palavras nos significados. Elas ganham novos significados. 

Kênia — Eu fico contente com esses momentos de agitação. E eu acho que, primeiro, é um conceito novo, se a gente for pensar em termos de quando a palavra apareceu – o fazer afrofuturista é muito anterior à palavra –, e tem mesmo definições e usos que são diversos. Ainda tem algo, nesse campo, que me parece possível dialogar. Porque é diferente falar “ficção especulativa negra” e falar “afrofuturismo”, e as imagens que isso convoca. Acho que é um termo que mexe com o imaginário, mexe com as pessoas. Mas se, sei lá, no fim das contas o afroempreendedorismo ganhar, se virar só sinônimo de preto com roupa colorida, beleza. A gente vai continuar usando e pensando esse universo de criação e essas questões e vai chamar de outra coisa. Imagino que o Kabral já escrevesse isso que a gente chama de afrofuturismo antes de todo mundo chamar de afrofuturismo, e vai continuar escrevendo das formas criativas dele, mesmo que o termo seja usado para outras coisas. Eu concordo muito que se agarrar a um conceito e ter que defendê-lo não faz sentido; o conceito é livre, os usos são livres e os entendimentos que cada um faz dele também são. Não vou falar de coisas que eu não sei. Não vou falar de empreendedorismo, não vou falar de assuntos que eu não domine. Não acho que a gente tem que morrer abraçado nos conceitos. Um conceito é rico enquanto ele consegue despertar esse lugar de imaginação, de criação. Se ele já não desperta isso na gente, bom, talvez seja hora de se apaixonar por outras formas de falar. Eu, por exemplo, não sei o que vai ser do afrofuturismo, mas eu sei que, e me anima saber que, você vai continuar escrevendo, pensar no que vai acontecer com Ketu 3 e, depois, se virão outros universos. Isso me interessa mais do que ficar brigando se o afrofuturismo é isso ou aquilo.

Fábio — Eu fui criado naquela escola de grandes histórias, sabe? Histórias longas, livros, séries. Eu tinha intenção de fazer isso com Ritos de Passagem, mas aí, por questões profissionais, questões contratuais e tal, a editora deixava no ar que eu só podia escrever as histórias naquele universo. Aí eu fui para a editora Malê e decidi criar um novo universo, para não ficar preso a ninguém. Quando veio o convite da editora Intrínseca, até falei das histórias de Ketu 3 que eu tinha em mente, mas já não se interessaram. Aí eu falei de uma ideia que estava muito fresca, que surgiu quando eu estava jogando um videogame. É engraçado que a maioria das histórias surge quando estou jogando. Por isso jogo bastante. Quando estou lá, jogando, o ócio criativo é real. Quando eu comentei sobre essa ideia, ainda muito primitiva, eles se interessaram na hora. Agora, pela editora Malê, vai sair um terceiro livro, O Blogueiro Bruxo das Redes Sobrenaturais – para Ketu 3 eu vou sempre fazer esses nomes esdrúxulos, mas vou parar por aí, por enquanto. Não vou matar o universo, mas vou parar por ali. Quando eu estava estudando sobre técnicas narrativas, vi que Ketu 3 é meio que esse universo de episódios, um universo em que eu falo mais sobre questões do cotidiano e questões pessoais dos personagens. Agora, estou experimentando brincar com a noção de saga épica. Ao mesmo tempo que gosto muito de consumir esse gênero, nunca me vi escrevendo nesse estilo. Mas vou fazer uma brincadeira com esse recurso literário, que é a história não só sobre o universo particular do personagem, mas sobre os grandes acontecimentos de um mundo, geralmente sobre salvar ou destruir esse mundo. Então eu estou brincando com esse terceiro universo através de uma saga épica. 

Kênia — Daqui a pouco, vai ser mais difícil de acompanhar que o universo da Marvel. Vai ter que sair com tabela, cronograma, como cada universo se relaciona. Mas eu acho maravilhoso. Eu estou curiosíssima com esse novo.

Fábio — Ah, você vai adorar. O que me entristece é reduzirem o movimento a isso ou aquilo. Seria muito triste se o afrofuturismo fosse simplesmente negros na ficção científica ou negros na ficção fantástica. Se é assim, vamos chamar de ficção científica, de ficção fantástica, vamos chamar de ficção especulativa. Não tem por que botar numa caixinha, como se fosse para separar. Trata-se da mesma forma. Há várias camadas nisso tudo, e as pessoas resolvem reduzir a apenas afrofuturismo?

Kênia —Se olharmos o cinema negro atual, finalmente começou a ter maior participação de diretores e diretoras, críticos e críticas, curadores negros. Ainda muito aquém do que é a presença negra na sociedade brasileira, mas exponencialmente maior do que se comparado a cinco anos atrás. É possível ver um momento de efervescência. Por outro lado, tem sempre uma certa briga, que envolve tentar impedir que a arte negra seja aprisionada por questões que são repetições do racismo estrutural. Então, por exemplo, quando o cinema negro vai ser definido, em muitos lugares em que a curadoria é branca, é preciso ficar atento para que não sejam valorizados apenas filmes negros de uma mesma linguagem, que falem de racismo de uma determinada forma, filmes que sejam muito didáticos em relação ao racismo – quase aquele filme que ensina alguma coisa às pessoas brancas. Isso seria não valorizar toda a variedade de filmes negros que existe, e correr o risco de perpetuar essas caixinhas que limitam a criação e a sua diversidade. A ideia de que, se você é negro e faz filme, você tem que fazer um filme que preencha certas características, que fale da violência urbana ou de racismo, me parece muito perigosa e limitante. Pensando naquele texto do Gillespie e da Racquel Gates, que está no site da Abraccine [Reivindicando os Estudos de Filme e Mídia Pretos], gosto muito de falar de representação, porque essa discussão é complicada. A discussão não pode ser só sobre isso, como se – saindo do cinema, mas para voltar a ele – a gente olhasse os livros do Kabral, em que 100% dos personagens são pretos, e considerasse como um fim em si mesmo. Isso é um aspecto dos livros, é o começo de onde as narrativas se desdobram; a partir delas, você tem mais um monte de coisa acontecendo em termos de estrutura narrativa, estrutura formal e escolhas de escrita que os livros desenvolvem. Se você diz que o livro é bom porque todos os personagens são negros e ponto, então você limitou. Essas questões da representação, da representatividade – e é disso que o Gillespie e a Gates vão falar um pouco – , são um ponto de partida, são começos. As questões formais interessam, sem ir para uma essencialidade – o que é um cinema negro, uma literatura negra? Não existe essa essência. As experiências negras são muito variadas. Tentar criar essas caixinhas é algo que limita muito. Limita a possibilidade de criação dos artistas. Acho que tem que ficar atento a essas coisas. Se, num país tão grande e com uma população negra tão numerosa, a gente acaba em uma espécie de consenso estético acerca do 

Racismo e a tentativa de colonização dos corpos negros

O racismo é uma tecnologia de poder que opera por meio do controle a partir da discriminação sistêmica de grupos étnico-raciais subalternizados e, no Brasil, sempre esteve relacionado com o fenótipo, que é o conjunto de características físicas tais como a textura dos cabelos, o formato dos lábios, do nariz e, sobretudo, a cor da pele.

Um líder Iorubá conta que uma prática comum aos europeus que chegavam aos portos para sequestrar e trazer pessoas africanas em condição de escravizadas para os territórios invadidos (colonizados) era, antes de embarcá-los, obrigá-los a circundar uma árvore a qual chamavam de “árvore do esquecimento”. Assim, suas memórias sobre seu povo, sua família, sua cultura, tudo seria apagado, o que facilitaria o processo de subjugação.

A “árvore do esquecimento” que temos circundado até os dias atuais pode ser compreendida como o processo de apagamento ao qual a população afrodiaspórica tem sido submetida há séculos. Fomos paulatinamente desconectados de nossas origens étnicas, nossas ciências, nossos sistemas espirituais e nossos referenciais estéticos.

O processo racista de controle social atua, entre outras frentes, na destruição da autoestima e da autoimagem que pessoas negras têm sobre si e seus iguais. Temos sido expostos a imagens de homens, mulheres e crianças negras em contextos de violência e resumidos a estereótipos inferiorizantes. Corpos como os nossos são maioria no sistema prisional e nas estatísticas de assassinato. Esses estereótipos são repetidamente exibidos e reforçados nos livros didáticos, nas propagandas, passando pelos filmes e telenovelas exibidos em horário nobre. Dificilmente temos acesso a imagens de pessoas negras ocupando espaços de poder.

Embora sejam muitas as camadas de complexidade em um sistema estruturado no racismo, sempre houve articulação organizada e protagonizada pela população negra. Dos levantes quilombolas ao Black Lives Matter, pessoas africanas e seus descendentes têm se reerguido como morada de potência.

A geração tombamento: um movimento afrofuturista

Lacração ou tombamento são expressões muito utilizadas pela comunidade negra e LGBTQIA+ para reafirmar seu poder, sua beleza e sua ousadia em ser quem são diante de uma sociedade que impõe padrões hegemônicos aos corpos, entendendo como belos, dignos de afeto e respeito os corpos brancos, magros, heterossexuais e cisgênero. 

A partir de 2014, devido ao sucesso do hit “Tombei” da rapper curitibana Karol Conká, o movimento protagonizado pela juventude negra dos grandes centros urbanos do Brasil que se empodera através da estética passou a ser conhecido pelo nome “Geração Tombamento”. É importante, porém, ressaltar que o uso das estéticas negras como ferramenta de combate ao racismo está presente em diversos momentos da história e em muitos territórios ao redor do mundo.

Uma das principais inspirações estéticas para a “Geração tombamento” são os Sapeurs ou La Sape (Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes). Os Sapeurs são grupos originários de Kinshasa, na República Democrática do Congo, e Brazzaville, na República do Congo.

A rapper Karol Conká (Divulgação)

O movimento surgiu na década de 1920 como uma forma de resistência ao jugo da colônia Belga. Para eles, vestir-se bem é uma forma de confrontar o ideal de superioridade europeia. 

Ativa até hoje, a comunidade La Sape é extremamente respeitada pela população. Seus trajes luxuosos contrastam com a realidade de extrema vulnerabilidade socioeconômica à qual seus países estão submetidos, e é justamente através desse contraste que os Sapeurs expõem sua crítica. Ser um Sapeur é um ato de rebeldia. É dizer para o mundo que luxo, beleza e exuberância são direitos de todos.

Contestar os padrões impostos é um posicionamento político que vem de dentro para fora e do passado para o presente. Neste sentido, podemos afirmar que os movimentos políticos de resgate da autoestima de pessoas negras operam na perspectiva de Sankofa, um valor civilizatório de povos da África Ocidental que consiste em retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Sankofa vai dialogar diretamente com a perspectiva do afrofuturismo, corrente de pensamento na qual a “geração tombamento” muito se inspira.

 O conceito de afrofuturismo chegou ao ambiente acadêmico no início da década de 1990 através dos estudos do pesquisador estadunidense Mark Dery. Mark, homem branco, escreveu o artigo “Black to the future”, no qual pretendia investigar a ausência de narrativas negras na cibercultura, nas tecnologias computacionais e nas obras de ficção especulativa. O artigo de Mark e seus desdobramentos, inclusive dentro da comunidade negra, apontavam para um questionamento central: por que é tão difícil para a população negra vislumbrar imagens efetivas de futuro? 

O processo de apagamento do referencial cultural das pessoas africanas desterritorializadas e de seus descendentes negou o direito ao passado. Ora, sem imagens positivas de passado, como poderíamos gozar das mesmas possibilidades de projeção de futuro das quais gozam os grupos não racializados? 

Ainda na década de 1990, o conceito de afrofuturismo foi apropriado e ressignificado pela comunidade negra dos Estados Unidos e logo se tornou uma corrente crítica de pensamento em toda a diáspora africana, inclusive no Brasil.

A curadora de arte, pesquisadora e atriz estadunidense Ingrid LaFleur define o afrofuturismo como “uma forma de imaginação de futuros possíveis através de uma lente cultural negra”. É através dessa lente-espelho que a juventude negra tem se olhado e encontrado, no presente, trajetórias do passado que pavimentam as possibilidades de futuro.

Somos tombamento, somos Black Power – referências históricas da resistência negra através da estética

Para que fosse possível, no século XXI, a existência do movimento lacração/tombamento, houve uma longa caminhada de lutas pela emancipação, pelos direitos e pela recuperação da autoestima da população negra. A reconstrução dessa autoimagem só é possível através de um processo coletivo de retorno às raízes.

A pedagoga Nilma Lino Gomes discute essa temática em seu livro O Movimento Negro Educador. Ela diz: 

“O corpo negro não se separa do sujeito. A discussão sobre regulação e emancipação do corpo negro diz respeito a processos, vivências e saberes produzidos coletivamente

(…)

Há aqui o entendimento de que assim como “somos um corpo no mundo”, somos sujeitos históricos e corpóreos no mundo. A identidade se constrói de forma coletiva, por mais que se anuncie individual.” (Gomes, 2017, p. 94)


Manifestação do partido dos Panteras Negras, 1970. Divulgação.

Earth, Wind & Fire. Banda que traz em sua estética fortes referências africanas e futuristas. Divulgação.

Sapeurs do Congo. Divulgação.

Uma das principais referências no que diz respeito à reivindicação do orgulho negro é o movimento Black Power, que surgiu nos Estados Unidos na década de 1960. Inspirados no “Harlem Renaissance” da década de 1920, o movimento Black Power fomentou a criação de diversos espaços educacionais e culturais independentes para a população negra, além de romper com padrões estéticos impostos pela branquitude, tais como o uso de químicas para o alisamento dos cabelos. 


Priscila Carvalho durante participação do Coletivo As Panteras Negras na Marcha das Mulheres Negras do Rio de Janeiro, 2018.

Já no Brasil, um dos maiores símbolos do orgulho negro é o bloco afro Ilê Aiyê. Fundado em Salvador, Bahia, em 1974, o Ilê Aiyê se consolida no auge do renascimento cultural negro que se desenvolvia nas diásporas africanas.

Para além de um bloco, o Ilê é um movimento político de reeducação, conscientização e empoderamento para o povo negro.

Uma das atividades mais conhecidas do bloco Ilê Aiyê é a “Noite da Beleza Negra”, evento no qual é coroada a Deusa do Ébano, a rainha do bloco. O objetivo da coroação da Deusa é exaltar o poder, o talento e a beleza herdada dos ancestrais africanos.

A “Noite da Beleza Negra” tem um importante impacto social, econômico e simbólico na comunidade do bairro da Liberdade, onde fica a sede do bloco. Os impactos atingem também o campo do subjetivo, sobretudo para crianças e jovens negros. Muitas meninas negras passaram a reconhecer a própria beleza através da imagem das Deusas do Ébano. É a reconstrução da autoestima que o racismo fragmentou. 

 Retomando a perspectiva de Sankofa e do Afrofuturismo, percebemos que “tombamento” é o movimento constante de uma juventude negra que revisita o ontem e ressignifica o hoje para criar o amanhã. É essa juventude que tem ocupado as ruas e disputado os espaços de poder. É essa juventude que tem ditado moda, comportamento, consumo e nichos de mercado. É essa juventude que “lacra” na estética, afronta os padrões e se apresenta como corpos políticos exercendo seu direito de existir em plenitude.


Yemi Alade, cantora nigeriana que apresenta em sua estética referências de reinos e civilizações tradicionais do continente africano numa releitura futurista. Divulgação.

Resenha de
“Tudo Sobre O Amor: Novas Perspectivas”

Este texto é mais um convite do que propriamente uma resenha. É um desafio imenso resenhar as 269 páginas de um livro essencial para pensarmos o amor na contemporaneidade. Em especial, o amor dentro, com e para comunidades negras. Assim, apresentarei brevemente cada um dos capítulos de Tudo sobre o amor para, posteriormente, tecer algumas costuras e reflexões. O livro foi escrito em 2000 e é o primeiro de uma trilogia, da qual também fazem parte Salvação: pessoas negras e amor e Comunhão: a busca feminina pelo amor.

Cabe, também, retomar brevemente a trajetória da autora. bell hooks tem sido uma voz erguida no sentido das lutas das mulheres negras em âmbito mundial. Seu nome de registro é Gloria Jean Watkins, mas a feminista negra adotou o nome de sua avó, Bell Blair Hooks. A grafia em letras minúsculas de seu nome revela um importante aspecto sobre as narrativas evocadas pela escritora: para ela, o conteúdo de sua escrita deve pesar mais do que sua pessoa ou seu nome. Nascida em Hopkinsville, uma cidade ao sul dos Estados Unidos, bell se tornou professora e doutora em Literatura. Sua produção é vasta, já tendo escrito mais de trinta livros, entre eles Ensinando A Transgredir – A Educação Como Prática da Liberdade (2013, Editora Martins Fontes), Olhares Negros: raça e representação (2019, Editora Elefante), Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra (2019, Editora Elefante) e Tudo sobre o amor: novas perspectivas (2021, Editora Elefante), para o qual dedicarei as próximas linhas deste texto. Assim, estruturarei a apresentação em prefácio + 14 pílulas – nem sempre doces – sobre o amor.

PREFÁCIO – Sobre a arte de abrir caminhos

Prefácios me encantam. São a porta de entrada para os livros. Na publicação apresentada aqui, a responsável por abrir caminhos é Silvane Silva, doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora e pesquisadora do CECAFRO/PUC-SP. O prefácio à edição brasileira expõe uma perspectiva essencial para a leitura do livro: o amor é centro, e não margem. Se na canção “Deuses Ateus” o cantor e compositor Djonga afirma que “em tempos de ódio conservador, amar e mudar as coisas é luxo”, Silvane destaca que o desamor tem sido a ordem do dia. Diante disso, falar e praticar amor, em suas diversas formas, pode ser algo revolucionário.

INTRODUÇÃO: “Tocada pelo amor”

Na introdução a Tudo sobre o amor, a autora revela um aspecto que é essencial para a leitura do livro: o amor é necessário em qualquer movimento por justiça social.

hooks também fala sobre uma frase vista por ela em um grafite em Connecticut onde se lia “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. Essa frase inspirou reflexões e um movimento de autoencontro com bell. Algum tempo depois, uma construtora pintou o muro do grafite de branco, restando algumas linhas que tornavam possível – e difícil – inferir a frase. Isso motivou um encontro de bell com o artista, onde refletiram que o desejo público de ser amado pode ser visto como ameaça numa sociedade onde o desamor é a norma.

1. “Clareza: pôr amor em palavras”

No primeiro capítulo da publicação, hooks expõe que somos ensinados a chamar muitas coisas de amor. Isso torna o ato de amar mais difícil. O amor necessita de uma série de elementos; entre eles, afeição, respeito, carinho, comunicação aberta, reconhecimento e compromisso. Segundo a autora: “Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento” (hooks, 2021, p.55).

Amor é ação.

2. “Justiça: lições de amor na infância”

O machismo e o patriarcado são barreiras para o amor:

Um dos mais importantes mitos sociais que precisamos desmascarar se pretendemos nos tornar uma cultura mais amorosa é aquele que ensina os pais que abuso e negligência podem coexistir com o amor. Abuso e negligência anulam o amor. Cuidado e apoio, o oposto do abuso e da humilhação são as bases do amor. Ninguém pode legitimamente se declarar amoroso quando se comporta de maneira abusiva. Porém, em nossa cultura os pais fazem isso o tempo todo. As crianças escutam que são amadas, embora estejam sendo abusadas. (Idem, p. 64)

A punição severa não deve ser vista como ação positiva nos processos educativos. É na infância que temos o primeiro contato com o amor, a partir de nossas famílias. Isso chama atenção para a importância de garantirmos direitos para crianças e adolescentes. O desamor na infância acompanha o indivíduo por toda a sua trajetória, criando celeumas pessoais e coletivas.

3.“Honestidade: seja verdadeira com o amor”

Vivemos em uma sociedade onde a mentira é uma ferramenta para a manutenção do poder. O capitalismo e o consumismo também estimulam a mentira e o desamor.

Para termos uma sociedade pautada no amor, precisamos nos reeducar a partir da prática de emitir e receber verdades. A prática de temer a verdade – acreditando que ela sempre dói – nos afasta do amor.

4. “Compromisso: que o amor seja o amor-próprio”

O amor-próprio deve ser a base da prática amorosa. Os movimentos feministas contribuíram para que mulheres percebessem o poder da autoafirmação positiva. Muitas mulheres consideradas bem-sucedidas se observam em processo de auto-ódio, o que muitas vezes mina suas próprias realizações e seu encontro com o amor-próprio. Necessitamos trazer o amor para perto. A autora observa que: 

O amor-próprio não pode florescer em isolamento. Não é uma tarefa fácil amar a si mesmo. Axiomas simples que fazem o amor-próprio soar fácil só tornam as coisas piores. Eles levam muitas pessoas a se perguntarem por que continuam presas a sentimentos de baixa autoestima e auto-ódio se é assim tão fácil se amar. […] Quando vemos o amor como uma combinação de confiança, compromisso, cuidado, respeito, conhecimento e responsabilidade, podemos trabalhar para desenvolver essas qualidades ou, se elas já forem parte de quem somos, podemos aprender a estendê-las a nós mesmos. (Ibidem, p. 94)

5. “Espiritualidade: o amor divino”

A autora percebe que o interesse pela espiritualidade foi cooptado pelo capitalismo e pelo materialismo na sociedade estadunidense. Ir à igreja ou ao templo religioso não tem sido o suficiente para preencher o vazio observado nas sociedades contemporâneas, pois esse vazio vem de dentro, da alma:

O compromisso com a vida espiritual necessariamente significa que abraçamos o princípio eterno de que o amor é tudo, todas as coisas, nosso verdadeiro destino. Apesar da pressão massacrante para nos conformamos à cultura do desamor, nós ainda buscamos conhecer o amor. Essa busca em si é uma manifestação do espírito divino. (Ibidem, p. 115)

6. “Valores: viver segundo uma ética amorosa”

Para despertarmos para o amor, é necessário abrir mão da obsessão pelo poder. É necessário adotar uma ética amorosa, que abarque, inclusive, posicionamentos políticos como a empatia com pessoas que vivem sob sistemas de opressão.

O medo da mudança faz com que muitos de nós entremos num processo de traição contra nós mesmos. A mídia tem papel importante nisso, expondo massivamente imagens de desamor, ódio e violência. Não somos educados a ver o amor. 

Nosso espírito percebe quando agimos de forma antiética, e isso torna os caminhos para o amor mais tortuosos. Encarar nossos medos é uma das formas de se aproximar de uma ética amorosa pautada por cuidado, conhecimento, vontade de cooperar e respeito.

7. “Ganância: simplesmente ame”

A sociedade contemporânea tem se baseado na cultura do consumo desenfreado e do individualismo, em que o isolamento e a solidão causam ondas de depressão que acometem parcelas enormes da população mundial. Pessoas são tratadas como objetos. A autora provoca um exercício de viver a partir da simplicidade, o que nos conecta à comunidade e ao amor.

8. “Comunidade: uma comunhão amorosa”

O capitalismo afastou as famílias nucleares de suas famílias estendidas, fragmentando comunidades inteiras. Isso causa uma desordem sentimental e social, uma vez que é nas comunidades que começamos a construir e fortalecer laços de amizade. Esses vínculos nos trazem lições importantes na construção de núcleos familiares e do amor romântico.

O amor que criamos em comunidade nos acompanha pelo resto da vida.

9. “Reciprocidade: o coração do amor”

O amor nos permite adentrar o paraíso. Ainda assim, muitos de nós esperam do lado de fora, incapazes de cruzar o portal, incapazes de deixar para trás todas as coisas que acumulamos e que se interpõem entre nós e o caminho para o amor. Se, durante a maior parte de nossa vida, não fomos guiados no caminho do amor, geralmente não saberemos como começar a amar, o que deveríamos fazer e como deveríamos agir. (Ibidem, p.179)

Uma importante lição sobre o amor: é essencial olhar para nós mesmos. bell hooks estrutura este capítulo a partir de duas experiências amorosas que foram marcantes para ela, e isso nos empurra para um profundo mergulho em nós mesmos e nossos próprios caminhos.

Geralmente, são desenhados papéis dentro dos relacionamentos. Um é responsável por criar e cultivar o amor, enquanto o outro apenas o segue. Isso estabelece um jogo de poder nocivo para o amor. Precisamos rompê-lo, baseando-nos no princípio da reciprocidade.

10. “Romance: o doce amor”

O capítulo nos lança uma afirmação que soa como um soco na boca do estômago: “poucos de nós entram em relacionamentos românticos tendo capacidade de receber amor” (Ibidem, p. 200). Projetamos relacionamentos baseados em nossos traumas familiares e comumente temos dificuldade de olharmos para nós mesmos nos processos de busca pelo amor romântico. Ao longo de nossa vida, é introjetada uma ideia de que o amor necessita apenas de si próprio para existir. Porém, sem construção e investimento, não há amor.

11. “Perda: amar na vida e na morte”

A morte é um tabu em nossa sociedade, gerando uma sensação de medo coletiva baseado em estruturas de poder: “Culturas de dominação cortejam a morte. Por isso a fascinação constante pela violência, a falsa insistência de que é natural os fortes atacarem os fracos, os poderosos atacarem os sem poder. Em nossa cultura, a adoração da morte é tão intensa que se põe como obstáculo ao amor” (Ibidem, p.221).

O medo de parecermos fracos nos faz não olhar para a perda. hooks nos convida a fazer o inverso: olhar para o medo e deixar que ele nos olhe.

12. “Cura: o amor redentor”

Ao longo de nossas trajetórias, o sofrimento é inevitável. Mas está em nossas mãos o poder de decidir o que fazer com essas feridas. A cura é um ato de coletividade e comunhão. Curas individuais são árduas e muito mais propensas a possíveis decepções.

O amor é capaz de redimir. Retomando a frase que a autora destaca do grafite na introdução do livro, “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. E a busca continua porque, apesar de todo o desamor em nosso entorno, o amor é capaz de curar e regenerar. É necessário que comecemos um movimento de fazer as pazes com nós mesmos e com os outros através do amor.

13. “Destino: quando os anjos falam de amor”

Os anjos são aqueles que nos trazem boas notícias, que dão alento ao coração. Na igreja, a autora aprendeu que os anjos são “consoladores sábios nos momentos de solidão”. O amor divino muitas vezes traz conforto em momentos de solidão e os anjos são fortes aliados nesse sentido: 

Donos de perspicácia psíquica, da intuição e da sabedoria do coração, eles mantêm a promessa da vida plena por meio da união entre o conhecimento e a responsabilidade. Como guardiães do bem-estar da alma, eles cuidam de nós e conosco; Nossa virada em direção aos anjos evoca nosso anseio de abraçar o crescimento espiritual. Revela nosso desejo coletivo de regressar ao amor. (Ibidem, p.253)

O poeta Lande Onawale escreveu: “O amor é coisa que mói, muximba. E depois o mesmo que faz curar” – frase que pego emprestada para intitular este texto. E o faço porque entendo que Onawale e hooks se encontram, se entrelaçam e se complementam. O amor é aquilo que dói. Requer compromisso e responsabilidade, em especial numa sociedade pautada no desamor e na violência. Mas, ao mesmo tempo, é com e para o amor que podemos alcançar a liberdade.

Nos contam mentiras sobre o amor. A sociedade não nos ensina a amar. E nem nos empodera do gesto revolucionário que é o amor. bell hooks relaciona o amor com os principais problemas da sociedade contemporânea, observando que são as ações que constroem os sentimentos e que ele o atravessa enquanto comunidade. O amor não nasce e cresce sozinho. Amor é construção cotidiana. Amar dá trabalho. Mas saio alimentada de Tudo sobre o amor. bell hooks é mais uma vez vanguarda ao convocar, através de palavras, em tempos de guerra, uma revolução de amor.

#37Futuros PossíveisArtigo

O pensamento indígena contemporâneo e o papel da mulher na cultura Pankararu

por Elisa Urbano Ramos

Na narrativa mítica, na orientação espiritual e cotidiana do Tronco Pankararu, há uma visão de uma figura feminina vista como mãe do criador e da criação, a mãe natureza, que compreende e protege os espaços onde há vidas. Todos os seres vivos humanos e não humanos, também as pedras, as águas e espíritos sagrados femininos e masculinos. O entendimento e conhecimentos deixados por nossos antepassados: os saberes tradicionais.

Introdução

Ao constituir essa composição, procuramos buscar elementos a partir de dois contextos. O primeiro momento foi mergulhar no interior das aldeias e, assim, encontrar essências que fazem essa trajetória entre o passado e o presente. O segundo momento foi tecer um olhar acerca do que está conjugado sobre questões indígenas atualmente. O objetivo foi encontrar, a partir dessas reflexões, a importância da presença das mulheres nesses lugares.

A princípio, nosso lugar de fala é o território sagrado do Povo Pankararu. Nesse sentido, podemos dizer que vivemos em uma sociedade matriarcal também, dada a presença de grandes lideranças femininas que atuam nos mais diversos campos, seja na tradição ou em questões de políticas públicas.

Dessa forma, voltando a meio século atrás, ou um século, o convívio na aldeia teve, em diferentes momentos e espaços, várias mulheres que hoje seriam chamadas de lideranças, mas que naquele contexto eram mulheres de notoriedade, portanto figuras emblemáticas, que conduziam as demais pessoas no sentido de orientá-las individualmente e atuavam à frente de atividades coletivas.

O Povo Pankararu tem um histórico de lideranças femininas de bastante destaque em todos os campos. Desde a atuação com os saberes tradicionais e a organização social, de cunho interno, até outros campos diversos e políticos, como a participação em estâncias municipais, estaduais e nacionais, bem como a atuação no movimento indígena no que diz respeito a questões como educação, saúde e outras demandas que acontecem em espaços externos.

As mulheres da Tradição

Conforme os ensinamentos dos mais velhos e mais velhas, que são passados de geração a geração, existem seres sagrados em forma de mulheres, com hábitos de mulheres. Portanto, somos seres divinos na nossa representação e, no mundo dos mistérios espirituais, a essência feminina se faz presente em um mesmo patamar que os seres sagrados masculinos.

Muitas são as mulheres Pankararu que possuem a qualidade de guardiãs e detentoras de saberes tradicionais, que recebem ensinamentos da Mãe Natureza que chamamos de “dom”. São práticas que se traduzem através dos conhecimentos sobre a medicina tradicional em toda a sua diversidade e os procedimentos de cura. As mulheres também são capazes do conhecimento dos rituais e dos cantos de contato com os encantados, além de tantos outros procedimentos ligados a esses costumes.

Nossas mulheres conhecem e podem participar dos processos de cura, podem conduzir e zelar pelos objetos e rituais sagrados que simbolizam a crença, cozinhar a comida sagrada para os rituais e outras atividades. Devido aos saberes que essas mulheres detêm, elas são consideradas sábias, na mesma dimensão dos homens que detêm esses saberes e ocupam esses espaços considerados sagrados.

O encontro do tradicional com a contemporaneidade

Como os tempos vão passando e a história permanece, pensamos na contemporaneidade sob vários aspectos e vertentes, mas sem fugir da valorização e do fortalecimento da cultura Pankararu. As mulheres emblemáticas que, no passado, eram rezadeiras, curandeiras, parteiras, artesãs, chefes da tradição, chefes de família vão atravessando um caminho no tempo em que vão se encontrando com outras mulheres que são caciques, pajés, lideranças políticas, profissionais de saúde e de educação escolar, representantes de organizações de estudantes, de mulheres, associações, etc.

Nesse sentido, a contemporaneidade não tira o espaço do tradicional, mas se soma a este e se torna um conjunto de ações de fortalecimento, de luta por direitos, de valorização aos aspectos da cultura. Podemos encontrar diversas pessoas que protagonizam esse campo, ou esses campos tão diversos, mas que se encontram e se articulam.

Um dos tantos exemplos que trazemos aqui é que o Povo Pankararu é considerado um dos povos que atualmente têm o costume e a valorização do parto feito por parteiras do lugar, hoje chamadas de tradicionais. Esse fenômeno se deve ao fato de termos na história famosos nomes de parteiras, lembrados e seguidos como exemplo até os dias de hoje. 

O que fez com que essa tradição continuasse, já que o nosso acesso a bens da modernidade aumentou? Pois então! Não estou falando apenas de mulheres que fazem partos em casa, mas, sobretudo, mulheres que trazem consigo uma boa parte dos saberes diversos citados acima. Por isso inspiram confiança; pela ligação de fé e a relação com o sagrado que possuímos.

O que vem à nossa memória agora é a influência e a participação ativa que algumas mulheres do povo tiveram nos movimentos e atividades coletivas com a institucionalização das políticas públicas para saúde e a educação escolar indígena, embora, em relação à questão da terra, ainda haja uma complexidade de luta maior. A importância dessas poucas mulheres presentes é que, gradativamente, esse quantitativo vai aumentando.

Para o movimento indígena, essa questão é a mais importante, no sentido de que “a luta pela terra é a mãe de todas as lutas”. Na história Pankararu, a luta pelo território não seria diferente. E a participação das mulheres sempre foi efetiva, desde a década de 1930. Por exemplo, na Constituinte de 1988, Quitéria Binga Pankararu, que lutou juntamente com outras lideranças pela regulamentação do território e foi vítima de ameaças, mas faleceu em sua cama. Sua história é um grande exemplo e legado de lutas e conquistas do povo. Ainda hoje nossas lideranças femininas estão ameaçadas, por isso estão sob proteção dos defensores dos direitos humanos.

A luta pela terra por parte das mulheres começa com o zelo pela terra como mãe de todos os seres humanos e não humanos, árvores, vegetais e minerais. A proteção da terra é o que garante nossa sustentabilidade física, cultural e espiritual. É um território sagrado, morada dos nossos ancestrais, local dos espaços e rituais sagrados. Nossas mulheres têm uma identidade com a terra, com a narrativa mítica, por isso sua participação é tão expressiva em todos os contextos sociais, em Pankararu e além do território Pankararu.

As aldeias são os pontos de partida que dimensionam a construção dessas personalidades; a relação de convivência com pessoas mais velhas e o envolvimento nos movimentos internos são estruturas que norteiam essa trajetória. Para além da vivência, se constitui indiretamente uma relação de aprendizado dos saberes passados através das pessoas sábias nos povos. Nesse sentido, é importante mencionar os diferentes espaços de representatividade em que diferentes mulheres atuam, buscando na história, a partir da memória de nossas interlocutoras até a atualidade.

Assim, traçamos uma caminhada aos espaços que essas mulheres ocupam e como suas atitudes marcam suas presenças, traduzindo, através de um contexto momentâneo, o histórico de diversas formas organizativas no estado de Pernambuco e além deste.

Apresentaremos aqui organizações de mulheres e outras instituições de caráter e mistos, que atendem homens e mulheres, e outros coletivos que se destinam a uma população que inclui índios e não-índios. Nesses espaços, as mulheres se destacam na defesa da presença indígena, na busca de seus direitos e no reconhecimento de suas diferenças. A especificidade dessas organizações é que estão ligadas a bases como as organizações de jovens e mulheres e as associações comunitárias, mas elas podem ultrapassar as fronteiras das aldeias e compor conselhos municipais, estaduais e nacionais de diferentes naturezas. 

Educação escolar

Embora o protagonismo das líderes mulheres seja secular e inspire essa nova geração pós-anos 1990, há um marco temporal relativo a uma retomada das discussões sobre educação escolar indígena a partir do qual novas reflexões foram fortalecidas diante de alguns dilemas nos lares das professoras que representavam seus povos.  

Falaremos sobre a questão de dualidade indígena para além das questões de gênero e sobre a importância das lideranças tradicionais, que se configuram em pajés, caciques e detentores/as de saberes tradicionais, também ligados à espiritualidade, que em certas ocasiões transportam seus papéis diretamente das aldeias para se unir a pessoas consideradas como lideranças políticas. Essa segunda categoria pode ter o perfil da primeira, mas possui uma identidade de entendimento mais técnico sobre os assuntos que se coloca a debater, e até está mais ligada à luta por questões institucionais, como educação escolar, saúde, enfim, contextos administrativos.

As lideranças femininas desse movimento foram constituídas no decorrer de uma luta por direitos relacionada às instituições escolares presentes nos territórios indígenas e aos elementos objetivos e subjetivos relacionados a elas. Nesse caso, ganha visibilidade esse papel de influências e, consequentemente, o fato de estarem em um espaço de poder devido à sua função social própria e às relações que a partir dali são tecidas.

Mesmo antes de 1999, já havia uma mobilização por parte das lideranças indígenas no sentido de refletir sobre “a escola que temos e a escola que queremos”, trazendo à tona a necessidade gritante de uma escola que fortalecesse e valorizasse a cultura daqueles grupos e, principalmente, existisse em prol de um projeto societário e de futuro. Essa mobilização foi intensificada em 1999 por força da legislação vigente, que, naquele contexto, contemplava os ideais do movimento indígena e indigenista e, sobretudo, as necessidades dos povos indígenas.

Ao fazermos menção ao protagonismo das mulheres, poderia se pensar que, naquele contexto, em Pernambuco, o número de mulheres professoras era maior. No caso dos povos indígenas, havia uma característica diferente nessas profissionais, que diz respeito ao perfil. Atender a esse perfil é exatamente ir além do espaço escolar, nas lutas coletivas dos seus povos. Trata-se da relação de convivência com os demais membros da comunidade no que tange ao projeto societário, uma educação escolar articulada com a vida nas aldeias.

No que se refere à educação escolar indígena e o protagonismo das mulheres, temos a estruturação da COPIPE como organização indígena de âmbito estadual. A Comissão de Professores/as Indígenas em Pernambuco (COPIPE), desde sua criação em 2000, é composta pela representação de duas professoras e uma liderança de cada um dos 11 povos que a compõem: Xukuru, Kapinawá, Tuxá, Pipipã, Kambiwá, Pankararu, Entre Serras Pankararu, Pankaiucá, Atikum, Pankará e Truká.

Essa participação mais efetiva de mulheres no campo da educação escolar indígena, em todos os povos e ao mesmo tempo, não se resume aos muros dos prédios escolares nem a ações meramente pedagógicas. Alcança uma dimensão social muito intensa e de caráter crescente, à medida que se interlaça a outras temáticas, a outros sujeitos internos e externos. Ou seja, perpassa o que comumente se trata da instância escolar nas demais sociedades não-indígenas. 

Contextualizar a trajetória da educação escolar indígena nesses últimos vinte anos consiste também em observar suas formas de aplicabilidade nas aldeias e pelos mecanismos governamentais. Encontraremos entraves e conquistas, mas uma luta constante através das mulheres mencionadas aqui. A partir de suas reflexões sobre o papel da mulher indígena em seus territórios, elas abrem caminho para outras agentes de transformação e se tornam corresponsáveis pelo formato de organização de mulheres em Pernambuco.

No entanto, não podemos deixar de mencionar a célebre frase do movimento indígena em Pernambuco: “educação indígena se aprende mesmo é na comunidade, e a escola sistematiza esses saberes” – o que nos remete a uma conexão contemporânea entre os saberes da escola e os saberes do Povo.

Saúde

Para os povos indígenas, em suas maneiras de viver antes e depois do contato com o colonizador, houve e ainda há a convivência com seus próprios sistemas de saúde. Tratar da saúde indígena como sistema ou sistemas também é compreender que existe uma rede de elementos relacionados a um complexo envolvimento de saberes, desde o conhecimento das plantas nativas até a comunicação com os espíritos sagrados.

A partir dessa compreensão, vamos pontuar ações em que se destacam mulheres tanto nas práticas de saúde tradicional como na militância pelo direito aos serviços de saúde no âmbito das políticas públicas, bem como na execução e administração destas. Essas figuras femininas possuem conhecimento sobre a manipulação das ervas nas diversas formas de cura e rituais envolvendo outros elementos da natureza. A partir das práticas dessas pessoas em prol da saúde da comunidade, várias são as denominações a elas atribuídas: parteiras, pajés, curandeiras e benzedeiras, entre outras.

Para buscarmos nossas personalidades no âmbito da saúde indígena, que chamamos de medicina tradicional, se faz necessário compreender esta como uma rede saberes que existe há séculos, sendo, por isso, um sistema de saúde que perpassa gerações e gerações e sobrevive até os dias de hoje. Esse sistema de cura tem as mais variadas dimensões, compreendendo a cura das mazelas do corpo, da mente e da alma, o que, obviamente, tem a ver com a forma de vida desses povos.

Considerações

Ao observar e trazer experiências no Povo Pankararu sobre contemporaneidade e atuação de mulheres, podemos afirmar que há um feminismo indígena em curso, protagonizado por lideranças femininas que atuam em diversas áreas sociais e em conjunto com os homens nos blocos de direitos coletivos.

Nessa construção histórica, de ação participativa nas aldeias e de luta dentro do movimento social, barreiras vão se rompendo, e as mulheres vão ganhando acesso ao mundo que subjetivamente se propõe aos homens. Esse movimento de ação contínua nos faz compreender que mulheres indígenas não são apolíticas e que a ação dessas mulheres vem trazendo uma nova onda de feminismo.

A partir dos nossos acompanhamentos e observações, podemos definir feminismo indígena como um conjunto de ações das mulheres indígenas em prol dos direitos coletivos, que refletem, no presente, a trajetória de luta dessas mulheres fortalecidas nas suas espiritualidades, de forma que seus corpos estão para seus territórios como um corpo coletivo dotado de histórias, culturas e memória de seus antepassados. Além disso, na sua especificidade, comunga com a luta de outras mulheres contra violências de qualquer natureza.

Falar de feminismo indígena é falar do heroísmo dessas mulheres que, na condição de seres humanos, a partir do sofrimento e das angústias de seus povos, chamam para si a luta pela causa coletiva. Onde e em quem buscar compreen- são e colaboração para situações tão diferentes de nobreza e de conflitos? A busca na ancestralidade traz respostas para que a força da palavra convoque os homens a conjuntamente conduzirem essas jornadas. Mas também é preciso vencer o pensamento machista, que, infelizmente, ainda é uma mazela dentro dos povos e do movimento indígena.

Afetocolagens é uma série de colagens digitais a partir da apropriação de imagens de domínio público. Neste processo, interfere-se no contexto inicial, desconstruindo visualidades estereotipadas de pessoas negras na fotografia, ressignificando esses corpos ou trazendo uma identidade que lhes foi negada. A pesquisa surge a partir da inquietude com fotografias de escravizados feitas pelo fotógrafo alemão Alberto Henschell. Nelas, encontramos imagens sem identificação como nome ou idade, parecendo, assim, a criação de um catálogo de pessoas/objetos. A “negra pernambucana’’ me faz pensar em quantas mulheres negras pernambucanas têm suas especificidades, e, com o tempo, começo a perceber e me questionar como essa objetificação se reflete até hoje, qual a responsabilidade da fotografia em criar essa semiótica racista e quantas vezes se é dito que “todo negro se parece”, que toda mulher negra é igual. Isso se dá pela repetição de um padrão do que é ser negro, justificando, assim, o genocídio da população negra e as injustiças cometidas contra ela – como quando nos deparamos com a prisão de um negro porque ele se parece com o verdadeiro culpado, porque “preto é tudo igual”. Essa investigação imagética e fotográfica embasa a construção das colagens decoloniais, principalmente pela necessidade de discutirmos as consequências diretas e indiretas das visualidades racistas.

Escrito poético surgido no processo criativo da colagem digital Nossa Senhora Comparecida:

Queria saber o nome dela;
ela nasceu de algum ventre;
sua mãe quem era?
Qual era a comida preferida dela?
Quantos anos ela tinha quando morreu?
Acho que ela não tinha filhos, ou será que teve vários descendentes, ela? Será que ela se chamava Vitória?
Acho que ela era vaidosa… 
Será que ela gostava de música, ou será que ela não lembrava o nome?
Ela tinha nome, nasceu em algum lugar, alguém chorou sua partida e, mesmo sem saber de onde você veio, eu sei que alguém esperou você chegar.
Quem quer que ela seja e onde quer que ela esteja, agora eu só quero que ela saiba que me importo com quem ela era.

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Nove expoentes da cultura indígena que você tem que conhecer

por Gean Ramos

Kunumi MC

Rapper

Rapper e escritor, Kunumi tem se destacado como um dos expoentes mais originais no cenário da música indígena contemporânea. Colaborou artisticamente com nomes clássicos do rap nacional, como Racionais MC’s e Criolo, e publicou dois livros, Contos dos Curumins Guaranis e Kunumi Guarani.

“Eu sou escritor, compositor e cantor de rap. Fico muito feliz porque Nhanderu me deu esse dom. Agradeço muito por poder usar essa ferramenta, que é a arte da música, da literatura, para falar sobre o meu povo. Nós sempre tivemos nossa arte, nossa música e a contação de histórias dentro das aldeias. Uma cultura que, desde 1500, com a invasão dos portugueses, vem sendo desvalorizada. É triste perceber que mesmo pessoas que moram bem pertinho da aldeia passam a vida toda sem conhecer a diversidade do povo indígena. Por acreditar que a natureza é o que nos mantém vivos, somos responsáveis por preservá-la. A Terra não é nossa, nós que somos da Terra.

Eu tenho dois livros publicados. O primeiro é Contos dos Curumins Guaranis, que lancei junto com meu irmão, Tupã Mirin, e o segundo livro é o Kunumi Guarani, que fala sobre a vida de um jovem Kunumi que vive numa aldeia Guarani. Em breve, vou lançar um livro chamado Kunumi, o Guerreiro da Copa e suas Músicas, que fala sobre a minha trajetória, quando participei da Copa do Mundo. Sinto que essa é a minha e a nossa missão: tentar fortalecer e divulgar a nossa cultura para que ela seja valorizada. Sou muito feliz por poder representar um pouco do meu povo.

 

Márcia Kambeba

Escritora, ativista e fotógrafa

Márcia é escritora, poeta, fotógrafa, ativista e educadora. Lançou 4 livros: Ay kakyri Tama, O lugar do saber, Saberes da Floresta e Kumiça Jenó: narrativas poéticas dos seres da floresta. Professora universitária, atua como palestrante de assuntos indígenas e ambientais no Brasil e no exterior. 

“Como ativista, tenho atuação em várias áreas. A literatura é a que mais se sobressai, unida ao trabalho de música e fotografia e às palestras que tenho feito. Não é fácil ser escritora e viver de literatura, especialmente quando temos que lutar por espaços de visibilidade e escuta para fazer nossa mensagem ser ouvida e lida pela arte da escrita. A literatura é fundamental não só para o ativismo que fazemos, mas também para que as crianças e as novas gerações possam ter registro da memória de seu povo, história e, assim, darem continuidade à resistência.

Ser escritora indígena requer coragem, vontade e determinação. Como poeta, uso a poesia para levar mensagens não só aos indígenas, mas também aos que vivem na cidade. Abordo temas que me são especiais, como educação, a questão ambiental e a Amazônia. Publicar um livro é difícil, mas não é impossível. Percebo que as portas estão se abrindo cada vez mais para a literatura indígena. A cada novo escritor e escritora indígena, ampliamos os olhares. Fazemos arte com ativismo, e isso é necessário neste tempo tão difícil que vivemos, em que construir territórios é fundamental para novas territorialidades.” 

Brisa Flow

Cantora e compositora

Brisa Flow é mineira, radicada em São Paulo. Filha de artesãos chilenos, recebeu desde criança a influência da cultura dos povos nativos de Abya. Seu primeiro álbum, Newen (2016), significa “força” na língua nativa do povo mapuche e foi seguido pelos trabalhos Selvagem Como o Vento (2018) e Free Abya Yala (2020).

“Meu nome é Brisa de la Cordillera. Eu vejo a arte como um reflexo do tempo e do espaço. Meu corpo está no mundo em constante relação com a Terra. Ser indígena é ser gente originária da Terra e se sentir sozinho nos lugares em que se está. Por conta do genocídio do nosso povo, muitas vezes precisamos recorrer a referências que vão nos deixando cada vez mais distantes do presente. Não ter memória e território cria um problema constante na busca por pertencimento. Quando estou no meio urbano, me sinto solitária. Lembro da minha bisavó, em seu território vasto, rodeada de ovelhas, me ensinando sobre a vida. É nos sonhos que me conecto. Ali, escuto o vento e sinto a água correr. Existe mais vida na Terra do que imaginamos. Nós não deixamos de existir conforme a cidade aumenta. O genocídio segue em curso, mas estamos vivos na existência ancestral, que é o nosso corpo, e no canto, que é a arte da memória. A quebra dos estereótipos coloniais é urgente.”

Cacique Marcos Xukuru

Ativista e líder político eleito

“Sou Marcos Luidson de Araújo, mais conhecido como Cacique Marcos Xukuru, tenho 42 anos e sou filho do Cacique Xikão. Assumi a liderança muito jovem, tinha apenas 21 anos, logo após o assassinato do meu pai. De lá para cá, me dediquei ao projeto de vida do povo Xucuru do Ororubá, dando continuidade ao legado do meu pai e conquistando uma estabilidade na minha liderança e um reconhecimento até internacional na defesa dos direitos humanos. Nosso território Xukuru do Ororubá, que está localizado no munícipio de Pesqueira, interior de Pernambuco, tem mais de 28 mil hectares de terra e mais de 12 mil indígenas espalhados em 24 aldeias. Tenho como missão de vida lutar para garantir os direitos de todos os nossos irmãos. Já sofri perseguições, ameaças, emboscadas e outros milhares de ataques, mas isso jamais irá me calar ou me impedir de seguir lutando pelos nossos direitos e pelos povos indígenas em geral. Estou cumprindo com a missão que os nossos encantados nos concederam, como eles também concederam ao meu pai, o eterno Xikão Xukuru.

Nossa atuação como liderança indígena no cenário político em nosso município é e foi uma quebra de tabu. Bateu de frente com todos os preconceitos e quebrou todas as amarras relacionadas aos povos indígenas do Brasil. O processo eleitoral em nosso município não se refletiu apenas em âmbito nacional, mas também em esfera internacional. Está ligado diretamente aos direitos fundamentais previstos em nossa Constituição Federal de 1988.  Isso significa que nossa luta diária vem dando resultados, e estamos colhendo nossos frutos.”

Carmem Pankararu

Ativista

Indígena do povo Pankararu e residente na aldeia Bem Querer de Cima, Carmem é ativista indígena e assessora de gestão do distrito sanitário especial indígena de Pernambuco.

“Sou militante nata. Minha história se pauta pelos princípios familiares da solidariedade, os quais aprendi ao dividir na prática o pouco adquirido e compartilhar todos os espaços com meus amados 11 irmãos. Sou parte de uma comunidade indígena do sertão nordestino, onde as secas prolongadas secavam o chão. Sobrevivi às faltas d’água e à ausência de plantação.

As minhas motivações para me tornar uma militante comprometida foram as lutas sociais do meu povo, especialmente na causa da saúde indígena. Ao me envolver com as questões do meu município, conseguimos reduzir a mortalidade materna e infantil nas aldeias, antes sem qualquer assistência. Passaram-se 20 anos desde que comecei essa empreitada, e sigo na mobilização para incentivar as pessoas a participarem nas decisões do Estado. O envolvimento no campo social é tão intenso e exige tanta dedicação que absorve completamente a rotina, muitas vezes prejudicando as nossas relações pessoais. A busca pelo benefício coletivo é uma atividade que demanda comprometimento social, político, capacidade operacional e honestidade. 

A minha batalha está em fortalecer o  Sindicato dos Trabalhadores e Profissionais de Saúde Indígena (SindCopsi) e transformá-lo em ferramenta de interlocução entre os movimentos indígenas, os governos e autoridades. Tudo isso com o sentimento de que ‘Juntos somos mais fortes’.”

Katú Mirim

Rapper, cantora e atriz

Katú é rapper, cantora, ativista e indígena do povo Boe-Bororo. Em suas músicas, reconta a história da colonização através da ótica originária, resgatando questões de ancestralidade e abordando suas vivências na periferia. No campo social, é a fundadora do Visibilidade Indígena e do coletivo Tibira – Indígenas LGBTQ.

“Sou indígena, nascida e residente da periferia. Ser uma indígena periférica é um recorte que me impede de avançar mais na minha carreira porque o racismo atrelado a esse estereótipo me coloca na posição de inferior. Sempre preciso provar que posso cantar rap, que está tudo bem eu morar na periferia e continuar sendo quem eu sou. Antes de ser indígena, eu sou artista, mas ser indígena me faz ter um muro gigante, que eu sempre precisarei quebrar para ocupar os espaços que são meus por direito.”

Djuena Tikuna

Cantora e compositora

“Eu sou cantora do povo Tikuna, a maior nação indígena do país. Canto a cultura popular do meu povo, mantendo viva a sua história como símbolo de luta e resistência para as futuras gerações. Como jornalista, trabalho para difundir a musicalidade indígena e o universo cultural dos povos originários. 

A cultura tem pautado minha trajetória. Com ela, trago os ensinamentos dos meus ancestrais, que são a voz de nossa identidade, nossa forma de ver o mundo e compreender que a natureza vive em nós a sua plenitude. 

Carregamos vivo em nosso espírito o canto de quem veio antes, em uma luta diária para afirmar que não somos um fantasma do passado, mas estamos presentes, exigindo a garantia de nossos direitos – entre eles, o maior de todos, que é o direito à vida.”

Graciela Guarani

Produtora cultural e cineasta

Pertencente à nação Guarani Kaiowá é formada em audiovisual, produtora cultural, comunicadora, cineasta e curadora de cinema. Mulher indígena pioneira em produções originárias para o audiovisual brasileiro, assina a direção e roteiro de 8 curtas-metragens, além da série Nhemongueta Cunha Mbaraete (IMS/RJ) e do longa My Blood is Red. Atua como formadora no curso Mulheres Indígenas e Novas Mídias Sociais (ONU Mulheres Brasil) e na oficina de cinema Ocupar a Tela: Mulheres, Terra e Movimento.

“Tem sido desafiante estar no campo em que transito. Permanecer resistindo para garantir que narrativas originárias sobrevivam no audiovisual/cinema não é glamuroso, pode ser muito violento para corpos originários, pois estamos sempre à margem da veiculação de grande massa. Um dos grandes desafios é poder acessar esses meios para que minimizemos a grande ignorância que a maioria da sociedade tem sobre nossas realidades diversas. Outro desafio não menos importante é permanecer neste meio sem subsídio e sem políticas públicas, pois o que muitas vezes temos são ações de apoio esporádicas, pontuais, sem rotatividade. Precisamos pautar políticas que tornem este meio mais acessível e com condições de sobrevivência. Que consigamos sobreviver de nossas artes, pois sabemos que também é nosso direito.”

Kaê Guajajara

Cantora e atriz

Kaê é indígena do povo Guajajara, cantora, compositora e atriz. Fundadora do Coletivo Azuruhu. Como escritora, publicou o livro Descomplicando com Kaê Guajajara – O que você precisa saber sobre os povos originários e como ajudar na luta antirracista

“Atuar no mercado da música é muito complicado, ainda, como indígena, pois já na hora de registrar uma música não temos o nosso idioma dentro dos idiomas que se escolhe para identificar aquela música. E é daí para pior, pois não temos espaços como artistas em geral e, por isso, muitos acham que não precisamos receber pelos nossos trabalhos, nos desqualificam e acham que não somos capazes de fazer uma música ou nos expressarmos de outras formas. É uma área que ainda está evoluindo para que seja 

DesignInterioresMobiliário/objetosViagem

Itcoisa: Oleiros

por Gil Alves

Vem do recôncavo baiano essa tradição de mais de 300 anos, que ainda mantém suas olarias com instalações rústicas de origem indígena. Conhecimentos que perpassam gerações, a educação artesanal de Maragogipinho, distrito da cidade de Aratuípe, a 90 km de Salvador (Bahia), está fundada na ancestralidade através de uma herança que conserva a conexão com o passado ao mesmo tempo que se reveste de novos símbolos e significados no presente para fortalecer a identidade dos criadores e de suas comunidades, dando sentido ao futuro.

De pouco mais de 3 mil habitantes, 80% são produtores de artesanatos, que fazem a coleta do barro em jazidas da região, onde a massa é pisada e preparada para a fabricação das peças. A escolha da técnica de modelagem depende do tipo de peça a ser fabricada, podendo ser realizada a mão, com uso do torno ou moldagem (utilização de formas previamente moldadas). Tais técnicas registram o contato e a troca entre povos indígenas, escravos e portugueses. Maragogipinho é considerada atualmente o maior polo de cerâmica da América Latina.

Antonio Obá retrata Chico Rei
Reprodução: Filipe Berndt
ArteArtes Visuais

Enciclopédia Negra

Pinacoteca de São Paulo inaugura exposição destinada a revisar a narrativa de artistas colocados à margem da história

Em cartaz a partir do início de maio, Enciclopédia Negra marca um momento importante na trajetória da Pinacoteca de São Paulo. Inspirada no livro homônimo de Flávio Gomes, Lilia M. Schwarcz e Jaime Lauriano, a exposição atua como um desdobramento do projeto editorial, ampliando o debate acerca de narrativas mais diversas e inclusivas. 

Mulambo retrata Aleijadinho
Moisés Patricio retrata Salustia

A mostra apresenta 103 trabalhos inéditos, concebidos por 36 artistas contemporâneos, a partir das 550 biografias negras presentes no livro publicado pela Companhia das Letras, no início do ano. Organizada a partir de seis eixos temáticos — Rebeldes, Personagens atlânticos, Protagonistas negras, Artes e ofícios, Projetos de liberdade e Religiosidades e ancestralidades —, a proposta não apenas recupera, dentro das possibilidades, parte da invisibilidade social causada a nomes apagados ou nunca registrados na história cultural brasileira, como serve de manifestação dos interesses atuais da curadoria e de uma política mais heterogênea para constituir o acervo da instituição.

Para falar sobre esses assuntos, conversamos com o pesquisador e autor do livro Enciclopédia Negra, Jaime Lauriano, e a curadora da Pinacoteca, Ana Maria Maia

Dalton Paula retrata Daniel
Juliana dos Santos retrata Caetana Diz Não

Como nasceu a ideia da exposição Enciclopédia Negra e como se deu o processo de transportar o conteúdo do livro para o espaço da Pinacoteca?

Jaime: A ideia de realizar uma exposição com os retratos produzidos para a Enciclopédia Negra acompanha o projeto desde seu início, pois mesmo antes de pensarmos em quem convidaríamos para retratar os biografados, eu, a Lilia Schwarcz e o Flávio Gomes já sabíamos da importância de exibir as obras originais. Porém, ainda não tínhamos um formato que nos agradasse, porque não gostaríamos que as obras integrassem o acervo de um museu privado, ou então que o conjunto fosse desmembrado em diversas coleções particulares. Nosso maior receio era que se tornasse impossível a realização da exposição completa no futuro. Como sou conselheiro da Pinacoteca e conheço de perto o importante trabalho de renovação do acervo, propus que, junto aos artistas, doássemos os retratos para o acervo da Pinacoteca e montássemos uma exposição para mostrar a importância dessa doação para a história da Pina. Por isso, o que pode ser visto na exposição Enciclopédia Negra não é a simples conversão do conteúdo do livro em um espaço expositivo. O que se vê ao adentar as 3 salas destinadas à mostra é a ação conjunta de muitas pessoas que trabalharam arduamente para fazer, mais que uma exposição, uma importante intervenção na história da arte brasileira.

Ana Maria Maia: A Pinacoteca tornou-se parceira da Enciclopédia Negra enquanto a escolha de artistas e o comissionamento de obras estavam sendo planejados. Esse processo criativo resultou em 103 obras em diversas linguagens a serem doadas pelos artistas para o museu. Diante do conjunto, discutimos algumas premissas para iniciar a curadoria da exposição. Pensamos que, contrariando a lógica alfabética do livro, seria interessante agrupar as obras em núcleos temáticos, que enfatizassem aspectos e permitissem aos visitantes acessarem histórias de vida e luta afins, mesmo que muitas vezes ocorridas em momentos e lugares bem diferentes. Também pareceu imprescindível preservar o teor literário e discursivo da Enciclopédia e, para isso, editamos pequenos verbetes que apresentam as personagens e podem ser vistos logo abaixo das obras. Por fim, destacaria o modo como procuramos aproximar a coleção que chegou com a Enciclopédia Negra (a dita Pinacoteca Negra) com obras que já pertenciam ao acervo do museu. Criamos uma sinalização gráfica para marcar as salas de exposição de longa duração com a presença de artistas biografados pelo projeto. Ainda para situar artistas biografados, e para estabelecer relações mais próximas deles com os núcleos curatoriais, trouxemos para as salas de exposição temporária estudos de Sidney Amaral e esculturas de Mestre Didi e Rubem Valentim. Além dessas obras, destaco a opção por mostrarmos a obra Baiana, um comodato do Museu Paulista, com autoria desconhecida, feita no século XIX, quando dificilmente uma pessoa com esse perfil de gênero e raça era retratada individualmente. A pintura apresenta uma mulher negra cuja caracterização mistura vestes de mulheres brancas de elite a colares de matriz africana e afro-brasileira. Apesar da natureza afirmativa da imagem, a autoria desconhecida faz perceber como as estruturas sociais e artísticas podem ter mantido essa identidade invisível por tanto tempo. Essa invisibilidade é muito significativa para se pensar a que contexto e herança se dirige um projeto como a Enciclopédia Negra.

Desali retrata Inacio da Catingueira
Desali retrata Joaquim Pinto da Silva
Desali retrata Hilaria

A exposição exibirá um conjunto de 103 obras, de um total de 550 personalidades negras registradas no livro. Em que consistiu o desafio de realizar esse recorte e qual foi o critério utilizado para tal?

Jaime: Nosso principal desafio foi conseguir reduzir uma lista gigante, que conta com maravilhosas narrativas, para uma lista um pouco menor. Para isso, tivemos que adotar alguns critérios, que conduziram o recorte que podemos ver na exposição. Eu vou elencar, aqui, os principais critérios que utilizamos para escolher os biografados que seriam retratados. O primeiro deles foi escolher biografados que não possuíssem retratos, ou que, se possuíssem, não condiziam com a sua história de vida. Outro critério que adotamos foi buscar um equilíbrio de gêneros, porque queríamos, sempre que possível, fugir da obviedade de nomes – e por que não dizer de representações? –, da história do povo negro no Brasil. Mais um critério que posso destacar foi mostrar a complexidade das histórias da população negra brasileira; por isso escolhemos retratar diversas lutas, diferentes profissões e múltiplas formas de existência.

Jackeline Romio retrata Ana de Jesus
Ayrson Heráclito retrata Domingos Sodre
Elian Almedia retrata Vitória, Catarina e Josefa

As obras são assinadas por 36 artistas contemporâneos. Como se deu a escolha desses nomes? É possível pensar um diálogo uniforme entre as obras ou cada artista produziu de forma independente?

Jaime: Desde o princípio do projeto, a descentralização do eixo Rio-São Paulo foi um dos fios condutores tanto para a escolha dos biografados retratados quanto para a escolha dos e das artistas que os retratariam. Por isso, pesquisamos em diversas fontes (mídias sociais, exposições, publicações e perguntando para nossos pares) nomes de artistas negros e negras de todas as idades e níveis de inserção no circuito institucional de artes e, principalmente, que residissem e trabalhassem fora do eixo. A partir disso, reunimos informações de diversos artistas e começamos a fazer uma conta que, no final, equilibrasse gênero, localidade, idade e inserção no circuito institucional de artes. Com isso, chegamos à lista de 36 artistas que compõe tanto o livro quanto a exposição Enciclopédia Negra.

Outro ponto importante de destacarmos aqui é que a escolha dos biografados retratados pelos 36 artistas se deu a partir do cruzamento da história da personalidade retratada com o trabalho e a história de vida do ou da artista retratante. Essa foi uma escolha curatorial; queríamos que a obra fosse produzida a partir do impacto desse encontro, pois assim o resultado seria um retrato com afeto (no sentido de produzir afetos múltiplos). Por isso, mesmo sendo 103 obras únicas e distintas entre si, podemos traçar alguns diálogos que norteiam toda a exposição/coleção. E o mais importante deles é que, em sua grande maioria, as obras refletem, também, a história de quem produziu uma imagem sobre a história de outra pessoa negra.

Talvez a principal diferença entre o livro e a exposição esteja no método de apresentação das biografias. Enquanto o livro segue a ordem alfabética, a exposição optou por seis eixos temáticos. Como esses temas se articulam e que história sua disposição pretende revelar ao público que visitar a Enciclopédia Negra?

Jaime: Eu não diria que a divisão por núcleos seja uma diferença entre o livro e a exposição, pois todo o projeto foi pensado a partir desses núcleos. Porém, por se tratarem de mídias diferentes, a exposição e o livro têm particularidades que são impossíveis de serem replicadas. Por isso fica a percepção de que existem diferenças gritantes entre uma e outra. Falo isso porque o projeto se desdobra em diferentes frentes, e sempre que isso acontece todos os envolvidos pesquisam a fundo as particularidades de cada mídia que vamos trabalhar. Pegando como exemplo o que você apontou na sua pergunta, a Enciclopédia Negra é organizada alfabeticamente no livro, pois é assim que as enciclopédias são organizadas. Porém, ao expandirmos o conteúdo do livro para uma sala expositiva, tivemos que pensar como trazer uma outra forma de leitura para o conteúdo produzido, pois aqui o protagonismo é das obras originais. Por isso, precisamos, além de evidenciar os núcleos (que estão presentes no livro nos apontamentos de leitura ao final de cada verbete), adaptar os verbetes para textos que pudessem ser lidos em uma exposição. Essas e outras adaptações tornam o projeto um organismo vivo, que se molda ao mesmo tempo que transforma as estruturas com as quais se relaciona. Assim, constrói, a cada novo desdobramento, diversas possibilidades de contar e escrever a História do Brasil.

Sonia Gomes retrata Luzia Pinta
Mônica Ventura retrata Dona Afra

Nos últimos anos, a Pinacoteca, os museus e os agentes culturais como um todo estão fazendo sua parte para interromper e reparar uma história de invisibilidade evidente. De que forma podemos pensar a Enciclopédia Negra como um novo momento na trajetória da Pinacoteca em termos de exposições futuras, aquisição de acervo e formação de público? 

Ana Maria Maia: Não sei se a reparação é tão simples e imediata assim, mas encarar o problema do racismo e do colonialismo nas diversas instâncias da sociedade brasileira é urgente, e cabe às instituições culturais fazer os movimentos que estiverem ao seu alcance, tanto na programação quanto nas suas estruturas de trabalho e poder decisório. A Pinacoteca tem vivenciado essa reflexão, o que envolve também pensar a história da instituição e o perfil do seu acervo. A gestão de Emanoel Araújo, entre 1992 e 2002, teve um papel fundamental na busca por representatividade negra. Nos últimos anos, criar bases para confrontar a prevalência da branquitude voltou a ser uma missão central do museu. Isso envolve refutar hegemonias, revezar vozes e paradigmas, tornar cotidianos não só a temática e tampouco só as obras, mas artistas, pensadores, curadores negros e negras, indígenas. A nova exposição de longa duração do acervo do museu, inaugurada em 2020, conta com obras de 26 artistas afro-brasileiros, enquanto a anterior só tinha 7. Apesar de ainda tímido em relação à presença de artistas brancos, esse número já é resultado de diversos esforços que a Pinacoteca tem feito e continuará a fazer. A programação de 2022 terá maior protagonismo de artistas negros, por meio de um projeto no Octógono e uma individual na Pina_Estação, de artistas cujos nomes ainda serão divulgados. 

A mostra e a doação da Enciclopédia Negra representam um aporte muito importante para essa construção institucional. Ao trazer obras de 36 artistas negros e negras que, em grande parte, ainda não constavam no acervo do museu, o projeto cria uma intervenção imediata nessa representatividade. Para além dos números, o faz enfatizando um caráter coletivo, as possibilidades de articulação de artistas de diferentes gerações, regiões e circuitos. A rede, isso que chega ao museu junto com a Enciclopédia, fica posta como uma estratégia contundente para se lidar com problemas de ordem estrutural, como a necropolítica e as diversas formas de invisibilização das populações negras e indígenas no Brasil.  

Micaela Cyrino retrata Henriqueta Maria da Conceição
Arjan Martins retrata Zumbi
Panmela Castro retrata Catarina Cassage

Exposição Enciclopédia Negra
Pinacoteca de São Paulo
01.05.21 a 08.11.21
Curadoria: equipe do projeto Enciclopédia Negra e da Pinacoteca de São Paulo

Mais informações: www.pinacoteca.org.br


direção de arte: lucas jimeno
fotos: tinko czertwertynski

Arte e acervo do artista Jejo Cornelsen

“Numa manhã de estúdio resolvemos brincar com máscaras. Sacos de papel pintados. Entre amigos e chapéus de plástico, casca de bambu, montamos e desmontamos construções de madeira e compusemos novos cenários. Como num set de filmagem, tudo passou sem sentir o tempo passar. Trabalhos antigos empoeirados saíram da gaveta para virar objetos em foco. 

Uma história de amor entre cinema e cenografia. Entre pássaros e bichos, a memória do Pantanal.” 

Jejo Cornelsen

#11SilêncioArtigo

Flora

por Nick Knight

Ao ter acesso ao Museu de História Natural de Londres, em 1993, o fotógrafo Nick Knight iniciou a sua pesquisa acerca da relação entre o ser humano e as plantas.

Durante três anos, Knight se propôs a mapear as mais de seis milhões de espécies de flora e fauna presentes no ervário do museu. A pesquisa resultaria na instalação “Plant Power”, e na publicação do livro “Flora”, em 1997.

O Nordeste chega para ser realidade, desta vez na voz de Juliana Linhares. Mais conhecida como vocalista do grupo Pietá, a cantora estreia o seu primeiro álbum solo, Nordeste Ficção. Além de carregar a originalidade característica de Juliana, o projeto autoral busca resgatar as raízes de um nordeste afetivo, desapegado de estereótipos. Na conversa a seguir, Juliana nos conta a experiência de lançar o primeiro álbum, as suas principais influências e a sensação de trabalhar com nomes como Zeca Baleiro, Tom Zé e Chico César.

Mesmo tendo uma trajetória musical como vocalista da banda Pietá, como tem sido a experiência de encarar a estreia de Nordeste Ficção, o seu primeiro álbum solo?

Um disco solo é um aprendizado diferente. Já fiz alguns discos e, ao mesmo tempo que tem um lado que é rico, da troca, de não fazer as coisas sozinho, tem também o lado de você às vezes passar por cima de um desejo seu pelo coletivo. No disco solo, eu tentei ouvir muito os meus desejos e o que eu queria. Sempre fui uma pessoa muito da ideia do colaborativo, do trabalhar em conjunto, e eu não deixo isso de lado, mas eu quis muito olhar para mim, para a força que estava gritando aqui dentro, como eu me potencializo como artista através da minha voz e da minha música. Eu queria que isso fosse fluido, que me sentisse firme nas coisas que eu estava escolhendo. Então eu acho que está sendo muito interessante, porque você se conhece muito depois que o disco sai. E é muito rico o retorno, porque você não sabe muito bem quem você é quando o disco é lançado. Você vê que uma música ou outra é boa, mas não sabe muito bem como o todo vai soar. A escolha de realmente lançar um álbum inteiro traz isso, do olhar para a dramaturgia, para a obra, para uma história que você conta sem saber como vai chegar. E está sendo muito interessante ver minha história e minha trajetória chegando nas pessoas, sendo ouvida, compreendida e questionada.

A parceria com Zeca Baleiro resultou no single Meu amor afinal de contas, uma composição intensa, tomada por uma atmosfera lírica e teatral. Como essa música antecipa e dialoga com o álbum?

Eu acho que essa música antecipa o álbum, trazendo um compositor e artista nordestino que agregou à música brasileira uma obra que quebrava, e quebra, estereótipos da música tradicional nordestina. Então era uma coisa que eu queria. E a gente apostou numa composição que fosse mais densa, mais lírica mesmo, mais orquestral. Tem uns arranjos de cordas. Eu queria quebrar uma expectativa, também, de abrir um disco com uma música que já remete diretamente a uma imagem de um Nordeste que é mais estereotipado. Além, claro, de querer contar com o Zeca, que é um cara que tem um grande público e poder de abrir caminhos para o disco. Tudo isso ao mesmo tempo. O clipe, da mesma forma, veio nesse desejo de trazer um roteiro poético que construísse imagens diferentes das tradicionais remetidas pela ideia de Nordeste.

Tom Zé, Chico César e Carlos Posada também estão presentes no álbum. Como essas parcerias foram pensadas e aconteceram?

O Pousada é uma pessoa por quem eu tenho uma admiração muito grande há muitos anos. Ele foi uma das primeiras pessoas que eu busquei. Em 2019, eu estava numa crise de garganta, perdi a voz, no meio da gravação do disco de Iara Ira, e mandei uma mensagem para o Pousada dizendo, “preciso fazer meu disco, preciso de um ponto de partida, estou querendo ouvir canções, você tem alguma coisa?” E ele me mandou umas canções e, entre elas, estava “Bombinha”, que é a música que abre o disco, não à toa. Foi a música que realmente abriu meu desejo com mais segurança, sabe? “Bombinha” foi a primeira música que eu escolhi desse repertório todo. Quando eu ouvi, eu disse “é isso”. É isso que eu quero cantar. E ela me deu um futuro. O Tom Zé veio através do Marcus Preto, que é diretor artístico do disco. Quando a gente conversou, ele teve a sensibilidade de sugerir, a partir da minha vivência na música e como atriz, uma canção. Ele falou: “Juliana, lembrei de uma coisa. A gente encontrou no rolo de fita do Tom Zé de 1972 essa música”. Quando eles fizeram um disco juntos, acho que foi o Vira Lata na Via Láctea, ele falou que o Tom Zé não curtiu a letra da música e preferiu mudá-la. E o Marcus chegou para mim com a letra original e falou: “eu acho que você devia gravar essa”. Eu ouvi e falei “caramba, que curioso, interessante isso, bate, gosto”. E o Tom Zé, para mim, era um símbolo tropicalista muito rico para essa desconstrução do estereótipo nordestino também. E aí eu juntei tudo. O Chico César é um cara que eu amo, admiro muito. Escutei Chico minha vida inteira. Meus pais, meu irmão, todo mundo que conheço é fã dele, sabe? E eu tive a oportunidade de fazer um espetáculo como alternante da Laila Garin em A Hora da Estrela, que estava em cartaz aqui no Rio, e o Chico fez a trilha toda da peça, inédita. Assim fui me aproximando dele, acompanhando mais de perto. O Chico já participou de músicas do Pietá também, então é uma pessoa que me inspira politicamente, poeticamente e no ofício da composição. Eu acompanhei o Chico durante a pandemia, e ele quase todos os dias postava um vídeo com música nova. E eu achei aquilo genial. Pensei “cara, vou escrever para ele, já que ele faz uma música por dia, quem sabe ele joga duas aí para mim, com as minhas letras?” E rolou. Foi muito legal.

Quais as principais influências que você levou durante a produção de Nordeste Ficção?

Eu acho que a música nordestina – digamos assim, quebrando esse estereótipo mas se utilizando dele – dos anos 70, Amelinha, Belchior, muito Alceu Valença, Elba e Zé Ramalho, Ednardo. Desde uma coisa mais Geraldo Azevedo, “Talismã”, mais mística, mais moura, até “Frevo Mulher”, da Amelinha, que eu queria no Nordeste Ficção, na música-tema. Então essas são as referências principais do disco. Abrindo para outras possibilidades, essas são referências que quando ouvia queria me transportar pra esse lugar. Queria lembrar disso em mim, desse fazer de Nordeste rock’n’roll, Nordeste quente.

“Eu gostaria de trazer um Nordeste cada vez mais amplo na cabeça das pessoas”

O que podemos esperar do novo álbum e como ele retrata Juliana Linhares em sua versão solo?

Eu acho que o disco é um convite a um diálogo sobre a invenção do Nordeste. Era o que eu queria, que o disco abrisse uma fresta, uma porta, para a gente conversar. Não que ele resolvesse alguma questão. Eu não me proponho a isso. Mas eu queria que o disco fosse uma brasa, sabe? Para a gente assoprar a fogueira dessa discussão sobre a invenção do Nordeste, para que as pessoas hoje possam, cada vez mais, olhar o Nordeste como um lugar múltiplo, rico, profundo, menos superficial e estereotipado, como a gente vê ainda hoje se repetir nas discussões, no imaginário. O nordestino ainda é visto de uma forma muito estereotipada, e às vezes muito inferior, e ainda submissa. Então eu queria que o disco fortalecesse a discussão sobre a pluralidade e a quebra desse estereótipo, lembrando que a região é uma invenção e, se ela é uma invenção, ela não existe. Mas ao mesmo tempo existe, não de uma criação natural, não fruto da natureza, e sim de uma escolha geopolítica mesmo. Fronteiras são escolhas políticas da humanidade, assim como os preconceitos. E eu queria que o disco abrisse um pouquinho essa luz na cabeça de quem fosse ouvindo, de quem fosse vendo a capa, “caramba, vamos ouvir, vamos pensar um pouquinho”. Eu gostaria de trazer um Nordeste cada vez mais amplo na cabeça das pessoas. E eu, como versão solo, estou ainda descobrindo. No meio dessa pandemia, tudo que eu queria era poder fazer show com o disco. Não vejo a hora de poder me colocar à disposição do público mesmo, da troca, do calor. Quero poder potencializar essa discussão a partir da minha presença, ao longo da minha trajetória solo. Essa discussão do Nordeste ficção, “Nordeste nunca houve”, como disse o Belchior.