#23EducaçãoCulturaLiteratura

Corpo campo

por Poli Pieratti

Trabalhos de Charlotte Heal

Aprender e cultivar são palavras que combinam. Quando olho o meu corpo adulto, penso que ele já foi nada. E então átomo, célula, semente de gente. O corpo, mesmo crescido, segue construindo e destruindo, brotando e decompondo.

É gradual, quase não notamos, mas o tempo colide com nossos poros. Cria relevos, saliências e reentrâncias. As horas são escultoras sutis, os dias lapidam mais, a década deixa vincos.

Dia desses mirei minha pele bem de perto, sob a luz, como quem analisa um terreno visto de cima, em perspectiva aérea. Quis ler minha paisagem, minha idade, mapear meu crescimento. Quando sabemos onde estamos, sabemos como somos?


corpo campo

Tudo começou quando senti um arrepio no braço.

Meus pelos em pé, levemente inclinados, pareciam um campo de capim. Entre as folhas finas, vi um solo cheio de cor. Imaginei um rio passar por aqui.

Por mim, pela minha pele.

A correnteza romperia o corpo–corpo, irrigaria o espaço. Despertaria o corpo–campo.


O olho migra do pulso para a mão. Lá, o capim é ralo, o bioma muda. Olhe agora para a sua mata de transição, veja se não é verdade. Árida e marcada, a mão direita parece um sertão rachado de sol.

Não fosse pela baleia. No polegar direito, na margem da digital, tem um desenho minúsculo e triangular que forma um rabo de baleia. E então o sertão duro, da pele seca, vira mar aberto. E o maior dos bichos vivos vem avisar que há água. E há peso.

A minha boca saliva esse peso, eu sinto a língua viva, os dentes duros, um gosto confuso, a sede. Lembro dos meus fluidos literais, como a água salgada dos olhos.

Lágrima é mar, choro é oceano. Uma baía tem todos os prantos?

Relaxo a pupila, fecho as pálpebras e um azul chega marinho, profundo. Nas costas dos olhos é sempre noite.

Abro, volto à luz. Para não me perder, ancoro a visão na palma da mão. Ela parece ter um mapa, ela parece ser um porto.

Pela palma, chegam todos os corpos do mundo. Cada dedo um cais a reagir às marés. Vou imaginando os atracadouros nas dobradiças e acho, no susto, duas marcas na lateral da mão.

De perto, vejo que são pintas, aparentam ser manchas rupestres ou continentes. Quando foi que elas surgiram aqui? Eu não tinha pintas nas mãos. Será que teve um parto? Será que o marrom era um vermelho que secou?

Pinta é pigmento, pintura. E, nesse caso, é pontuação também: dois pontos a afirmar a vida.

A gente leva muito tempo para essa equação: se ver como mundo. Até que um dia seremos outra coisa. Perderemos o corpo de vista.

O projeto SITU, desenvolvido pela Galeria Leme com curadoria de Bruno de Almeida, é uma plataforma de produção e pesquisa artística que promove um diálogo entre arte, arquitetura e cidade, especificamente criado para o espaço externo da galeria Leme, projeto arquitetônico comissionado ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha.

Fazer a instalação para a terceira edição do projeto foi um desafio novo para mim. Além da complexidade de pensar uma obra que se relacionasse às enormes proporções do espaço, ela teria de ser uma extensão natural do meu trabalho e, também, precisaria dialogar com as linhas conceituais propostas pelo curador. Depois de inúmeros esboços, reuniões e conversas para resolver de forma coerente a pesquisa, o conceito e a materialidade da instalação – esta finalmente possível com a precisa execução da equipe Marton Estúdio, que procurei sem hesitar para levar minha visão à realidade com absoluta perfeição e com o mesmo rigor que apresenta o projeto arquitetônico.

Para a obra, usei madeirite plastificado, um material utilizado na construção civil para moldes de concreto in situ. Sua escolha está relacionada com o próprio método construtivo das paredes de concreto da galeria e, por outro lado, é um material que garantiria uma grande resistência da obra às mudanças climáticas.

Do ponto de vista técnico, uma das principais preocupações foi o escoamento das águas do pátio. Como a instalação anula o espaço entre os dois edifícios da galeria, ela acaba cobrindo todos os pontos de escoamento de água. Como o período de exposição iria coincidir com a época mais chuvosa do ano, decidimos, no momento da montagem, para minimizar complicações maiores, deixar pequenas frestas entre as chapas de madeirite e, também, entre a instalação e o edifício, que facilitariam o escoamento sem perder o aspecto de volume maciço.

A principal intenção da obra é interromper o funcionamento normal da galeria, cortando o fluxo habitual do edifício e dificultando algumas das funções prescritas pelo projeto arquitetônico, como a entrada e o estacionamento de carros no pátio, o uso das portas laterais e o acesso à campainha, que ficava, literalmente, dentro da obra.

O projeto é um grande volume escultórico à primeira vista, mas é como se fosse parte integrante da arquitetura e obstrui e ocupa o espaço de modo extremamente disfuncional

Como todo Brasileiro no exterior, vivo uma constante dicotomia.

Estou longe da minha cultura e sofro para tentar entender um Brasil tão complexo, mas, ao mesmo tempo, me sinto em uma posição privilegiada, onde consigo ter uma visão de fora muito mais ampla. Daqui, enxergo o país em um eterno misto de nostalgia e olhar quase turístico, fascinado com a cultura do meu próprio país.

Com isso, acabei obcecado com o mundano e o cotidiano brasileiro, e, para tentar entender mais o país que deixei, e me aproximar mais de algo tão distante, comecei o Leitura.

Vivendo no Brasil, talvez nunca enxergaria, ou demoraria mais para enxergar, o que consigo ver hoje com esse distanciamento.

A beleza, a poesia e a arte nas pequenas coisas. Esse é o meu Brasil.

Como a minha mãe sempre diz, com sarcasmo, quando não percebo algo muito perto da minha vista: “Se fosse uma cobra te mordia”.

Retratos Pintados

O dia em que a fotografia digital foi introduzida mudou a vida de muita gente. Mas, principalmente, mudou a vida dos retratistas.

Essa arte popular tão difundida pelo Nordeste perdeu a maioria de seus consumidores, que agora carregavam seu próprio equipamento, antes exclusivo ao retratista. A onipresença de câmeras digitais foi lentamente tirando a arte da mão do artista e passando-a, sem muita estética e cuidado, ao grande público.

A selfie substituiu o retrato pintado, o pau de selfie substituiu o pincel, e a tela digital substitui o papel fotográfico.

Mas o que não pode ser substituído é o valor dessas imagens.

Os retratistas não só davam cor às imagens preto e branco, mas, como o fotógrafo William Eggleston, davam a essas imagens um novo significado, um novo olhar.

Interpretando e colorindo os retratados, eles os elevavam à condição de arte.

A Arte Pop dos Brasões


Com o fim do Estado Novo, em 1946, os estados e municípios brasileiros ganhavam autonomia e liberdade para escolherem seus próprios símbolos.

No momento em que os estados e cidades buscavam sua própria identidade e independência Federativa, os brasões foram muito importantes para unir pessoas, culturas e regiões do Brasil. Imagine a dificuldade de cada estado e cidade para criar seu próprio logo, escolher um ícone que representaria e agradaria a maioria dos seus clientes, os cidadãos. Ícones como a araucária, a foice, a arma, o mar, o milho foram escolhidos e desenhados de uma forma quase naïf, simplista, e que acabaram alcançando seu objetivo para a união necessária naquele período. Um ato quase altruísta de artistas
desconhecidos que, sem querer, alcançaram uma qualidade estética incomparável. Pop art dos Brasões.

Maracatu

O Maracatu da fotógrafa Barbara Wagner é distinto do Maracatu conhecido pela maioria dos brasileiros. Esses retratos não contêm as fantasias, os apetrechos e as camadas que geralmente descem as ruas de Recife e Pernambuco todos os anos. Nessas fotos, vemos um ritual mais cru, mais real, com um olhar quase antropológico da fotógrafa, que não tenta julgar nem buscar um clichê, mas sim capturar uma outra dimensão desse complexo ritual.

Barbara capturou os maracatuzeiros em ensaios noturnos pelo Nordeste. Muitas vezes, eles, os maracatuzeiros, estão imersos em um transe, um misto religioso e alcoólico. Daí as poses e caras, que parecem transcender o físico e atingir uma esfera espiritual.

Benjamin Guimarães

Um barco a vapor do Mississipi nas águas brasilienses? Parece conto de pescador, mas é verdade.

Benjamin Guimarães veio do Mississipi na década de 1910 e é o último barco a vapor em funcionamento do mundo. Minha mãe grávida da minha irmã, na década de 70, fez a jornada de Minas até o Pernambuco. Hoje, o Benjamin, mais velho e com mais de cem anos de serviço, faz só parte desse trajeto no Rio São Francisco.

Rendeiras de Cariri

O vale do Cariri em Pernambuco é um lugar onde o tempo ainda passa mais devagar, e as rendeiras aprenderam a lidar com o tempo de sua própria maneira, ponto a ponto. Esse ofício é passado de rendeira a rendeira, de geração em geração. Cada renda, cada manta, cada vestido é um esforço coletivo que às vezes toma um ano ou mais para ser completado. Em 2016, as rendeiras viraram fashion, o trabalho delas teve projeção nacional na coleção de Fernanda Yamamoto no São Paulo Fashion Week. É o Brasil profundo ditando moda.

O Brasil é um país predominantemente cristão. Mais precisamente, 87% da população. Mas quem não mistura tudo, santo, candomblé, mandinga, fita do Senhor do Bonfim?

O sincretismo que o país vive me encanta daqui de fora. Um grande amigo, cristão no papel mas sincretista de carteirinha, todo ano novo experimenta algo novo, numerologia, umbanda, camdomblé, espiritismo, borra de café; já passou por tudo e às vezes me leva junto com ele. Sua mente aberta à experimentação e a ausência total de intolerância religiosa, para mim, definem o Brasil. Um lugar onde todas as fés vivem em uma certa harmonia. Exceto o futebol, é claro.

Os Nonatos

Ouvi os Nonatos pela primeira vez no filme Boi Neon, de Gabriel Mascaro. A canção tema do filme, “O Astronauta”, não saiu da minha cabeça, como chiclete, mas chiclete bom.

Ela me levou para um lugar no Brasil que eu nunca havia estado.

Os Nonatos não são irmãos. Nasceram em cidades distintas, um no Paraíba e outro no Ceará, e são um dupla de repentistas, tratada como celebridade por quem os conhece.

Mais de trinta e cinco bandas brasileiras já interpretaram suas músicas, entre elas “Mudar pra quê?”, “Metamorfose” e “Ponto G”. Essas são algumas das mais tocadas na minha playlist.

Samico

Gilvan Samico é um desses artistas que trabalhava do seu jeito, avesso ao mundo que cada vez corre mais rápido. De uma forma calma e lenta se preocupou em resgatar e recuperar o romanceiro popular brasileiro e a literatura de cordel.

Nos últimos dez anos antes de sua morte, produziu apenas um trabalho por ano. Mesmo ao seu tempo, conquistou o mundo com suas xilogravuras complexas e seu reino rico de temas folclóricos brasileiros que já ocuparam as paredes do MoMA, do Caixa Cultural e outros museus mundo afora.


Miss Penitenciária

A primeira coisa que um grupo de soldados americanos fez ao descobrir prisioneiras nos campos de concentração da Alemanha nazista foi dar-lhes um batom. Esse ato simples devolvia a condição de humano e de mulher que as foi renegada durante o regime. O ato devolvia a autoestima.

Algo muito parecido acontece todos os anos em mais da metade dos estados brasileiros. Desde 2004, penitenciárias femininas de todo o Brasil tomam um ar mais leve, mais feminino, mais humano, pelo menos por um dia, quando realizam o concurso de beleza. O Miss Penitenciária de 2015 atraiu até personalidades como Raul Gil e Anna Hickman, e entre as vencedoras estavam, além das brasileiras, uma sueca e uma angolana.

#23EducaçãoEditorial

Editora convidada: Ligia Cortez

por Ligia Cortez

“Todas as artes contribuem para a maior de todas: a arte de viver.”
Bertolt Brecht

Tratar sobre o tema educação numa revista especializada em arte soa, à primeira vista, um pouco incomum, mas a proposta não poderia ser mais pertinente. Arte e educação estão mais próximas e organicamente mais relacionadas do que parece.

A atividade artística no período de formação possibilita à criança aprender a pensar sobre o mundo em que vive, sobre ela mesma, e a adquirir recursos críticos para atuar no futuro. A experiência artística traduz com palavras, sons, cores e música o que não precisa ser dito, e sim compartilhado. É a comunicação para o outro, o pensamento, a reflexão sob novos paradigmas – o que é, a meu ver, a essência da educação. Abre a possibilidade do indivíduo em formação se tornar responsável para com o outro e o lugar em que vive. A produção artística da criança passa a ser importante não só como realização pessoal, mas também como fonte de pensamento e resultados para uma sociedade. É com a experiência da arte que ela passa a ser respeitada pela sua capacidade própria de gerar e atuar. Porém, sentimos que a educação está cada vez mais distante da experiência e do pensamento crítico.

Existe um equívoco, cada vez mais valorizado na atualidade, segundo o qual educação é acúmulo de bagagem de informação. A quantidade de matérias e assuntos que um aluno recebe é o que servirá de parâmetro para avaliar uma boa ou má educação recebida. Todos os índices de avaliação, como rankings escolares, exames, vestibulares, caem em cima do resultado. Difícil estar preparado para a vida adulta sob tanta demanda de performance, de resultados, na fase de formação. As crianças passam a ser aceitas e valorizadas pelo que realizam, e não pelo que são e virão a ser.

Anthony Seldon, historiador político, um dos mais importantes pensadores contemporâneos sobre a educação na Inglaterra, propõe, entre várias outras ações, que as escolas voltem a oferecer aulas sobre Shakespeare e que os alunos também atuem nas peças assiduamente. Uma ideia ótima para qualquer indivíduo em formação. Assistir a peças e, principalmente, atuar nelas abre portas para a compreensão profunda da natureza humana. Shakespeare pode vir a ser uma grande ferramenta educativa, e a profundidade da experiência que as crianças teriam, também.

A proposta é importante, mas poderia se dar com qualquer outro exemplo artístico.

A educação deve ser pensada sob um conceito mais amplo. A responsabilidade de formar uma nova geração de indivíduos preparados para o novo século, para a ação em coletivo e em prol do crescimento da sociedade, parece menos presente do que poderíamos desejar. Um currículo que também contemple habilidades como criatividade, trabalho em equipe, empatia, resistência, perseverança, honestidade, seria o melhor dos mundos. Mas como isso se daria se não através da arte, dos conteúdos humanos, do sentido de existência, dos conteúdos simbólicos que ela proporciona?

A educação está inserida no campo da cultura. Binômio difícil de ser compreendido até pelos setores mais experientes. É impossível haver educação sem cultura e cultura sem educação. Existe uma inter-relação de organismos que conversam e se alimentam. A cultura ainda é vista como algo descartável ou de segundo plano, ainda mais quando se fala de um país em crise.

Nosso país tem dimensões continentais, com diversidade cultural riquíssima. A difusão, o fomento e o respeito pelas diferenças começam pela junção entre educação e cultura, com a riqueza de manifestações sendo, além de respeitada, também conhecida. Ainda a cultura é vista equivocadamente como algo erudito, sofisticado, de elite, ou então é ligada à diversão, frequentemente confundida com o entretenimento.

Em relação às ações públicas que têm sido feitas no Brasil, sem educação básica forte e abrangente será difícil termos um país desenvolvido no futuro, pois sabemos que a escola pública consegue alcançar metas bastante modestas de qualidade de ensino e que o cenário só tende a piorar. Se desejarmos uma melhora, no Brasil, será preciso um esforço coletivo. Muitas vezes penso como seria se tivéssemos a possibilidade de parar tudo e imaginar uma nova forma de educar. A tarefa não é fácil. Seria necessário reavaliar valores e resgatar um compromisso civil de todos nós.

Imagino o estado de espírito de animação e entusiasmo que se instaurou na Rússia quando, após a revolução civil, no começo do século, os organismos públicos responsáveis pela formação foram instados a repensar as formas de educar. Instaurou-se um departamento cultural que abrigava um setor de teatro voltado, prioritariamente, para a prática teatral com crianças. Momentos criativos como esse chegam muito perto do estímulo de origem da ação artística.

Hoje, quando pensamos em educação no Brasil, temos uma apatia, uma impotência, uma angústia. Afinal, como uma sociedade consegue colocar ações que de fato transformem? O melhor, então, talvez seja nem pensar sobre o assunto. Ir levando. E, com isso, toda uma geração de adolescentes é levada a estado de cisão. Genuinamente, todos os jovens querem agir, mudar, transformar. Há uma força de pensamento e ação que está sendo perdida.

Certamente, se pararmos para pensar sobre educação, teremos uma série de boas ideias que poderiam contribuir para uma melhora. A revista Amarello é um enorme sinal de que já contamos com ótimas iniciativas. Arte e educação sendo debatidas num espaço independente, ligado à realização artística, feito de um material tão criativo e sensível que, por si só, já é veículo de educação. A partir disso, o que mais poderíamos sonhar?

#23EducaçãoCulturaSociedade

Dos filhos deste solo, és mãe gentil?

por Flavia Milioni

Pátria s.f.: país em que se nasceu, e ao qual se pertence como cidadão.
País s.m: 1 – Região, terra. 2 – Território habitado por um grande conjunto de famílias, que constituem determinada nação.

Nação s.f.: 1 – Conjunto de indivíduos que habitam o mesmo território, falam a mesma língua, têm os mesmos costumes e obedecem à mesma lei. 2 – Sociedade politicamente organizada que adquiriu consciência de sua própria unidade e controla, soberanamente, um território próprio.

São os brasileiros que fazem o Brasil, e não apenas os mais de 8 milhões de quilômetros quadrados muito mal distribuídos. Aliás, se sua terra fosse melhor distribuída – melhor entende-se por mais justa –, os brasileiros não seriam quem são e, portanto, o Brasil não seria o que é. O que esperar de um país quando ele próprio, na figura de seu cidadão, não cuida de si mesmo? Como uma pessoa que negligencia sua própria saúde pode lamentar a doença?

Em 2007, o senador Cristovam Buarque*, então filiado ao PDT, apresentou um projeto de lei que poderia ser a força motriz de uma grande guinada na educação pública do país e, por consequência, base para a maior das revoluções: a política.

O projeto determinava a obrigatoriedade de os agentes públicos eleitos matricularem seus filhos e demais dependentes em escolas públicas. A matéria nunca foi votada porque foi arquivada antes mesmo de chegar ao plenário. O senador ouviu inúmeras críticas de seus colegas, em grande parte dizendo que seu projeto era inconstitucional, pois feriria o livre-arbítrio. A resposta de Buarque é tão oportuna quanto sua proposta de lei: ninguém é obrigado a ser candidato.

Ser ou não ser, eis a questão.

Política vem de polis: cidade em grego; e de polites: cidadão, no mesmo idioma. Não por acaso, a democracia (demo = povo; cracia = poder) teve origem na Grécia. E funcionava mais ou menos assim: a cada ano, quinhentos cidadãos eram sorteados para compor o Conselho, onde se decidiam, em assembleias abertas à audiência dos demais cidadãos, todos os assuntos relacionados à polis. Eram todos políticos, quer queira quer não. Não havia escolha. Também não havia eleição, candidato, partido político, e muito menos a desculpa de não gostar de política. Vive em sociedade? É político. Portanto, político não era profissão, era obrigação. De todos. A qualquer momento, o sorteado poderia ser você. E detalhe: nenhum cidadão poderia ser sorteado mais de duas vezes no período de uma vida inteira.

Com a deturpação do sistema democrático, ou, como alguns diriam, com a adaptação do sistema, da democracia direta para a representativa, a sociedade só perdeu. Quem ganhou foram os que fizeram carreira nesta que é das profissões mais infames já inventadas.

E a representatividade? A sociedade brasileira é composta por 53% de negros, e o Congresso não tem nem 20%; 51% da população brasileira são mulheres, e no Parlamento tem apenas 10%; 37% da população possui ensino superior, e no Congresso são 80%; 60% do povo brasileiro ganha até dois salários mínimos (isto é, até R$ 1.760,00), e 50% do Parlamento – metade de seus eleitos – têm patrimônio acima de R$ 1 milhão. O Congresso tem 153 deputados integrantes da bancada ruralista, sendo o Brasil o país com uma das mais dramáticas concentrações de terra do planeta. Representa?

Quando Cristovam Buarque responde, em tom irônico, para não dizer lacônico, que ninguém é obrigado a se candidatar, traz à tona a grande fissura de nossa democracia representativa. Trocando em miúdos, a pessoa que, deliberadamente, escolhe se candidatar deveria ter consciência de que seu trabalho será para o coletivo e que, se for eleito, terá de seguir algumas regras. Existe um rol de atribuições para cada função pública, e ter seus filhos e demais dependentes matriculados em escola pública seria apenas mais uma delas. Se o emprego diz respeito à máquina púbica e se o salário vem da mesma máquina pública, por que a relutância em usar uma instituição de ensino pública? É óbvio que a resposta que não se quer dar é: porque o ensino público é ruim. E não se quer dar porque, se assim o fizer, estará com isso atestando que o próprio trabalho, e de seus colegas, não é bem feito.

E por que o trabalho não está sendo bem feito? Porque os agentes políticos eleitos no Brasil representam, em sua imensa maioria, a classe média alta e os empresários. Porque política virou profissão, invertendo a prioridade: o eleito trabalha para si e seus pares, não para o país.

O ponto crucial do projeto de lei de Buarque, preciso como um mapa, é que, se o político, e não apenas a população distante de sua classe social, sofresse as consequências de seu próprio trabalho, certamente cuidaria para que este fosse o melhor possível. E, para ser justo até com a classe política, o senador estabelecia uma vacatio legis (período entre a publicação da lei e sua entrada em vigor) bem generosa. Ou seja, os municípios, estados e união teriam alguns anos para deixar as escolas públicas com melhores equipamentos, professores bem remunerados e gabaritados, material escolar de referência, currículo tal qual o melhor colégio particular, carga horária adequada e merenda saudável, entre outras coisas, tudo em perfeito estado para receber as crianças. E o motivo para fazerem isso é triste e simples. É porque suas crianças estariam entre elas.

O pensamento político mais corrente no Brasil é: se eu não sou afetado diretamente por um problema, ele não é meu. Ledo engano. As rachaduras no ensino público, que tiveram início com a migração em massa das classes média e alta para o ensino particular, nas décadas de 1960 e 1970 principalmente, trazem consequências para todos. A falta de educação, ou uma educação precária, para os mais pobres pode até parecer interessante para uma elite que quer se manter no poder indefinidamente; mas ela sabe, porque teve boa educação, que toda ação corresponde a uma reação. E a reação de uma camada enorme da população, excluída, marginalizada, sem estudo apropriado, sem qualquer preparação para a vida civilizada, depois de um curto prazo de obediência e subserviência, é a revolta, a violência e o caos. Curioso pensar nos altos índices de violência atuais e observar o início do sucateamento das escolas há quarenta anos. A quantidade de meninos de rua, abandonados à própria sorte, na década de 1980, e o crescimento do tráfico de drogas, nos anos 2000. Pensar nos menores infratores de hoje é prever uma guerra civil em, talvez, uma década? Um país não é desenvolvido e possui excelentes índices sociais do nada. São anos, décadas de investimento em programas sociais de base. E o Brasil só vai ser o país que queremos quando a elite brasileira se apropriar e se responsabilizar por uma de suas piores mazelas.

Certa vez, durante um debate promovido por uma universidade americana em 2000, o mesmo senador Cristovam Buarque foi questionado sobre o que achava da internacionalização da Amazônia, e o jovem que perguntava pediu para que ele respondesse como humanista e não como brasileiro. Claro que a questão trazia em si uma preocupação com o futuro da floresta, por conta de sua enorme relevância ambiental para todo o planeta. A resposta de Buarque é uma aula, especialmente no que se refere às crianças:

“Comecemos usando essa dívida [os candidatos à presidência dos EUA naquele ano defendiam a ideia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca do perdão da dívida externa] para garantir que cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que morram quando deveriam viver.”

À elite brasileira, esta que detém o poder político e econômico, cabe o maior desafio. Cuidar de todas as crianças como se fossem suas. A única saída para um país mais justo a longo, é levar sua criança bem nascida para dentro da realidade das crianças mais pobres, para que elas tenham o mesmo tratamento, o mesmo ponto de partida. Ou vice-versa. Temos que começar a nivelar por algum lugar. A escolha está entre nivelar por baixo ou por cima. As duas opções estão na mesa.

Uma mãe não pode privilegiar um filho em detrimento de outro. Nem a pátria.

*Nota de esclarecimento: a autora não faz campanha para o senador citado no texto.

#18RomanceCulturaSociedade

Call it magic, call it true

por Helena Cunha Di Ciero

Will you let me romanticize,
The beauty in our London Skies,
You know the sunlight always shines,
Behind the clouds of London Skies.

Jamie Cullum

Uma amiga foi na cartomante pedindo a volta do seu amado: “Come o nome dele durante sete dias”, disse a senhora. A jovem apaixonada, formada, madura e bem resolvida, saiu de lá decidida: passou uma semana engolindo um papel com o nome do moço, em jejum. Levantava da cama e, numa folha, escrevia até o sobrenome do eleito. Sim, ele voltou depois de um tempo.

Tem algo de triste e de bonito nessa cena de mulher apaixonada que suplica para um amor não partir. Podia ser eu, uma prima, uma vizinha. Onde há amor, há romance e magia. Toda mulher, em algum momento da vida, se torna menos princesa, mais bruxa em defesa do território do encantamento. Qualquer loucura é justificável para a preservação do sonho. Chico Buarque canta lindamente a cena da mulher abandonada: “dei para maldizer o nosso lar, para sujar seu nome, te humilhar e me vingar a qualquer preço, te adorando pelo avesso… para mostrar que ainda sou tua”. Mesmo Shakespeare se curvou dizendo que, entre o céu e a terra, não existe fúria maior que a da mulher rejeitada. E a velha Medeia é a precursora desse movimento.

“Malévola” é um filme revolucionário: a fada que se vinga do homem que corta suas asas com ferro quente em troca do poder de outro reino. (Será que há imagem mais rica do que essa para falar de amor? Se esse é o sentimento que rouba nossa liberdade e entrega de bandeja ao outro? Dizem que o primeiro amor é educativo, nunca nos entregamos novamente com a mesma força e ingenuidade da primeira vez.)

Desiludida pela traição de seu amado, a personagem transforma-se numa bruxa poderosa e vingativa. E lança seu feitiço para a filha do homem que a trocou por outro reino. A bruxa, porém, observando a Bela princesa crescer, vai entrando em contato novamente com outro amor, o materno – e sua ira vai sendo suavizada.

Perfeição politicamente correta falta à Malévola para ser a protagonista de um conto de fadas, mas sobra humanidade – o que a torna apaixonante para o espectador, que perdoa e compreende suas charmosas travessuras de “bruxa má”, e, solidário, identifica-se com ela. Afinal, ridículo é quem nunca escreveu uma carta de amor.

Me pergunto se a Bela Adormecida não representa essas mulheres que passam a vida inteira aprisionadas num sonho de ideal romântico esperando que alguém generosamente as desperte. Um amor como solução de todos os problemas, como a causa de um despertar. Mas, no filme, o único amor passível de despertar a Bela Adormecida seria o materno. Esse, sim, teria a condição da eternidade. O resto são só promessas.

Sou de uma geração que cultuava a perfeição das princesas: Cinderela vitimizada, a alva pele de Branca de Neve e sua pureza. Tudo muito cindido, o bem contra o mal, bruxas contra príncipes, a Bela e a Fera. Confesso que fico esperançosa pelos novos ventos que se apresentam, quando um dos maiores livros de sucesso infantil, atualmente, tem como título: Até as princesas soltam pum. Tomara que minha filha (se eu tiver uma) não viva em busca de ser perfeita e à espera de um príncipe encantado e sem sal. Talvez essa próxima geração escape dessa ilusão do amor perfeito. Talvez.

A minha ainda sofre dessa herança do sonho de uma vida cor de rosa. A menina que sonhava em ser uma princesa desperta depois de um longo tempo de baladas em Maresias, trilhas e viagens à Bahia dormindo em pousadas nas-quais-toma-se-banho-de-havaianas. Esse despertar se dá ao conhecer um rapaz que novamente a faz acreditar que existe, sim, um final feliz, que é possível ser uma princesa. Ah, o amor…

As festas suntuosas de casamento quase enganam as jovens moças de que a vida adulta é pura celebração. Escolha o vestido que você quer minha filha, faça sua lista de presentes, dê uma linda festa, convide todos os seus amigos, vá ao melhor maquiador, encha de flores e boa música “e bibidibobidiboo”: gire as saias do seu vestido na pista de dança de olhos bem fechados – vai quase ser real. E, na volta da lua de mel, que susto! Existe um negócio chamado conta de açougue, o namorado apaixonado é meio bagunceiro, tem que arrumar a cama e nada disso parece assim tão encantador depois que a noiva vira abóbora e se torna esposa. (Abóbora mesmo, pois, na lua de mel, a gente engorda tudo que tinha emagrecido antes de casar.)

Essa tal lenda do príncipe encantado acaba com o mercado masculino, já que ocupa um ideal de impossível competição. Não dá para comparar um marido que vem com mil defeitos (assim como as mulheres) com o príncipe encantado tão sonhado e propagado há gerações nos contos de fada.

Mas ninguém contou também que o dia a dia tinha lá seus encantos, escondidos no meio da rotina, de uma dupla que opta por tentar se aventurar no mundo numa parceria, abandonando um universo que anteriormente era confortável. É preciso muita coragem para sair do reino conhecido e começar uma vida nova. E que há também algo de mágico no aconchego de voltar para a casa e ter alguém ali que te desafia e convoca a buscar amor todo dia, dentro de esconderijos internos, para suportar a tal da convivência.

O excesso de romance por vezes acinzenta a realidade. Faz com que a gente espere muito do que vem de fora e estrague o que tem, só porque não é assim tão mágico. Mas é de verdade. Anos de lágrimas podem ser economizados se essa figura encantada deixar de ser tão importante, tão definidora, e puder ser simplesmente uma pessoa, que assim como a gente está tentando acertar. E não é eterna. Não existe o para sempre. Para sempre é muito tempo. Ainda bem.

Talvez o conto de fadas do futuro termine com: felizes por enquanto. Tirando esse peso da eternidade, nos aliviamos e, de brinde, valorizamos o hoje: se não é eterno, preciso aproveitar, cuidar. E principalmente: sobrevivo sem. Embora essa última parte a gente esqueça quando apaixonado. E talvez precisemos disso para amar… Afinal, somos reféns do romance e dos clichês, todas as cartas de amor são ridículas mesmo. Sem elas, a vida perderia o pó de pirilimpimpim. Freud define o sonho como um processo vital e necessário para que suportemos estar acordados. Isto é, suportamos a realidade, pois dela nos retiramos quando sonhamos. Sem a ilusão, o mundo gira numa constante repetição, fria e acinzentada.

Assim como Dom Quixote precisa de Sancho Pança para fincar os pés no chão, a vida real precisa do romance e da ilusão. Sem esses temperos, tudo fica morno, sem sabor. De fato: não há um final feliz no fim do conto de fadas da vida, mas pode haver bons momentos durante o caminho das pedras amarelas, bem ali, somewhere over the rainbow. É só não nos esquecermos de fechar os olhos de vez em quando e sonhar.

#18RomanceCulturaSociedade

Minha vida é uma novela

por Hermés Galvão

Subestimemos de tudo um pouco da nossa quase nada pop cultura, mas jamais sejamos injustos com as nossas novelas. Esqueçamos de ontem em diante e voltemos no tempo para lembrar de como éramos felizes, e sabíamos, diante da televisão de tubo sem controle remoto. Não cometamos a injustiça de desonrar o passado de glórias do nosso mainstream áudio e visual, tão longe da ficção de hoje, tão distante da produção pós TV aberta que, urgente, devia fechar para balanço e olhar para trás – pois o amanhã é mais duvidoso do que nunca para quem não soube se reinventar. No país onde só tem valido a pena ver de novo tudo que é velho, e o nosso velho era moderno demais para a época, é bom lembrar que era uma vez uma história com roteiro original e enredo sempre magistral: qualquer tema discutido, elenco escalado, tarde da noite ou censura prévia, não havia razão, enterro de ente querido ou discussão com vizinho ou paquera de ocasião que nos fizesse perder um capítulo de novela. Seja ela qual fosse.

A vida e o mundo lá fora passavam na TV e a gente acompanhava, as modas e as manias, os romances que começavam como um beijo técnico e terminavam nas revistas semanais com histórias reais baseadas em fatos surreais – e nem havia foto de paparazzi para ilustrar o fato, o que deixava a história, pelo menos suas nuances, ainda mais colorida pela nossa imaginação. Ficção e realidade caminhavam lado a lado em tênue diferença, quase imperceptível de tão fiel ao fato – e era, aliás sempre foi, preciso dizer que “esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”. Mas era tudo tão verossímil, mesmo quando tudo que se queria no folhetim era morar em outro lugar ou imaginar um país menos irreal que o original.

Misturavam-se a literatura e a mitologia, folclore, fantasia, essa era a receita de sucesso mesmo quando o enredo era um fracasso. Fazia parte do show dar errado, e mesmo assim muito mais da metade do país não mudava o canal. A morte assistida era parte do show e acompanhar uma novela, por pior que fosse, era um pacto de sangue inquebrável. Afinal, faltaria assunto àqueles que não soubessem o paradeiro, o assassino, o suspeito, o amante. Amávamos e odiávamos por inteiro cada capítulo, éramos tão noveleiros quanto os franceses são cinéfilos. Nosso orgulho nacional tinha nível internacional; fomos vistos da China a Portugal, dublados e legendados, traduzidos, adorados. Criamos para sempre personagens que foram morar no eterno; foram-se os cenários, viraram eles lembranças que vagueiam na memória e no inconsciente: tornaram-se todos eles os heróis, vilões e mocinhos que mal tivemos nos livros e no cinema feito em casa.

Formamos nossa identidade cultural na televisão, aprendemos um pio de inglês ao cantar as canções dedicadas a eles, aos pares românticos e aos amores impossíveis. Desenvolvemos através deles a capacidade de imaginar como seria o futuro, mesmo que a curtíssimo prazo. E aquele “a seguir cenas do próximo capítulo” era a deixa para desenharmos a sós, antes de dormir, como seria o dia seguinte na vida paralela que vivíamos ali, diante da pequena tela, quando todo o real à volta perdia a importância e a cor. A imagem e as palavras, a cidade fictícia, o galã e a namoradinha, o Brasil de verdade num faz de conta seriado que partia corações quando o FIM estava próximo. E, logo após a cena final, cabia a nós juntarmos todos os pedaços, as tramas e os dramas para formar uma única história antes de arquivá-la para, então, recomeçar tudo na segunda-feira seguinte, no primeiro capítulo de uma nova história, quando esperanças davam lugar às lembranças. Novas trilhas, novos personagens, novos cenários – para ninguém dizer que a vida não passa na TV.

Amarello: Nos conte um pouco do seu “background” e de como você se interessou por música.

Marcelo Jeneci: Me lembro bem de uma situação. Tinha cinco anos de idade e estava voltando do hospital no colo do meu pai. Eu assoviava uma música que tinha escutado uns dias antes, na ida pra lá. Me lembro muito de assoviar, e do meu pai ficar espantado, e falar da memória musical que eu tinha. Logo cedo ele percebeu essa vocação, e a partir daí começou a me incentivar a tocar um instrumento. Acho que, durante sua adolescência, ele guardou o desejo de ser músico. Existe a coisa dele realizar uma vontade própria em mim. Ele tocava violão em um boteco perto da casa dele, se não me engano, mas nada a sério. Isso tudo lá em Guaianazes, na COHAB Juscelino, no fundão da zona leste, e de lá pra cá são várias estações e vários pit-stops.

Está ligado diretamente ao seu pai?

Com certeza está, mas existe uma maneira minha de agarrar isso, ter a minha leitura e separar. Isso é meu, não dele. Tudo bem ele se alimentar disso, mas é um desdobramento. Como se ele fosse o artilheiro do time e me passasse a bola, deixasse comigo.

Como acontece seu processo de criação?

É bem desordenado e maneiro como acontece, nunca do mesmo jeito. Por exemplo, ontem estava falando com o (Luiz) Tatit, de uma música que eu havia mandado pra ele uns dias antes, e que gravei como a gente está gravando essa entrevista, voltando pra casa, dirigindo o Opala. Com os quatro vidros abertos, e o maior barulho, improvisei uma melodia, uma métrica de uma canção com começo, meio e fim. Mesmo com o barulho do carro (um Opala 1973), a inspiração veio. Sair cantando do nada é uma maneira de compor, sem nenhum instrumento. Componho bastante na farra também, com amigos queridos, pessoas que eu amo, me divertindo. Alguém pega o violão, e simplesmente compomos, sem pensar. Eu e o Arnaldo Antunes sempre marcamos de nos encontrar pra compor… E assim é com vários outros parceiros.

Você considera toda sua casa seu espaço de trabalho?

Trabalho na casa inteira. Na sala, na laje, no “chuveirão”, às vezes na cozinha. Quando a balada está acabando, sempre tem a hora da musiquinha, das madrugadas adentro, e lá no estúdio. Tenho certeza que, quanto mais relaxado, melhor você faz o que tem pra fazer.

De que maneira ela influencia seu trabalho?

Minha casa é um retrato da maneira que tento me expressar e da maneira que trabalho. Estamos na cidade de São Paulo, no alto da Lapa, e, daqui da sala, não dá pra ver nenhum prédio, não dá pra ver muitas casas. Tem árvores, plantas, palmeiras. É meio Piracaia, Piracainha, minha futura Piracaia! E isso foi uma escolha romântica. Escolher um lugarzinho que traga esse romance no escolher, no observar. Eu acho que é mais do que influência, está tudo diretamente ligado. Essas escolhas, de aproximações de belezas, de singelezas, são bem parecidas com o disco Feito pra acabar, que nasceu todo aqui.

Tudo nasceu nesse exato cantinho em que estamos. Toquei com Laura pela primeira vez aqui. O pai dela me recebeu muito bem, quando cheguei de Guaianazes, aos 19 anos. Ele foi um excelente cantor, multi-instrumentista. Tocava violão, pandeiro, cantava que nem o Chet Baker, essa linha de voz plena, raro de ouvir, sabe? Quando mudei para a Pompéia, comecei a conviver com ele, ensaiando um show em homenagem ao Baker, e ele me apresentou São Paulo toda. Aí Ariano descobriu que estava doente, passou dois anos se cuidando e faleceu no dia do aniversário dele, dia 6 de abril, um dia antes do meu. Depois de um tempo, Laura apareceu cantando em sua homenagem. Eu não sabia que ela cantava. Eu a via na casa dele, quando ia ensaiar lá, muito jovem, com calça de moletom. Ela cantou com os óculos que ele usava. Ela é muito parecida com ele fisicamente, o rosto. O timbre, inclusive, acho que também veio do desenho do nariz, do crânio, isso tudo influencia muito a voz. E ela cantou “Across the universe”. Nessa época, eu tocava com o Cidadão Instigado, e ela era muito fã do Rodrigo Amarante, que ia participar do show. Ela pediu pra mãe dela entrar em contato comigo, pra levá-la no camarim, na passagem de som, pra conhecê-lo. Foi quando eu a chamei pra passar uma tarde aqui em casa, isso foi em 2006. Nesse dia falei “poxa, em vez de seguir com músicas que já existem, vamos compor um negócio nosso!”. A primeira que compus para ela cantar foi “Amado”, e o álbum nasceu. A mãe dela, ao descobrir que ela havia passado a tarde aqui, me escreveu, dizendo que passou a adolescência nessa casa, pois era amiga das donas. Tudo tem romance, existe uma opção de olhar por esse lado real e belo! Eu dou mais foco nele. Combina com esse lugar.

Acha que existe algum trabalho seu, ou projeto, no qual você se sinta mais realizado?

Gosto muito de uma música da gravação do DVD do Arnaldo Antunes, chamada “Luzes”, do Paulo Leminski. Eu toco sanfona, o Betão toca violão, e o Arnaldo canta. Além do DVD ser lindo esteticamente, todo preto e branco, com uma luz expressionista bem forte, de baixo pra cima, gosto dele porque foi num momento um pouco antes de começar a labuta da carreira solo. Um momento em que estava ali transbordando, querendo mudar de posição, sabe? Toda vez que eu vejo e ouço essa gravação sou levado a esse momento. O momento do Big Bang. Foi a mudança de instrumentista para compositor. Como se as notas já não dessem mais conta, quando comecei a desejar “Vou gravar um disco”.

Quem você citaria como maiores fontes de inspiração?

As pessoas verdadeiras. Percepções da vida e maneiras de lidar com ela, com isso, com aquilo, algumas com mais dificuldade, outras com menos. Também tenho uns artistas que, estética e artisticamente, são meus pilares. Mas vêm depois das pessoas verdadeiras. Kevin Parker, do Tame Impala, por exemplo. Ele tem uma coisa de dominar harmonicamente o instrumento, que tem a ver com Toninho Horta. Gosto muito também do Clube da Esquina. Eles têm uma junção muito boa de melodias lúdicas com movimentos femininos e letras com aquela voz de sereia do Milton, que faz ainda mais sentido quando você está naquele trajeto doido de Minas Gerais. Musicalmente, eu olho mais pra essa órbita do que para aquelas que têm o discurso filosófico mais importante. Erasmo Carlos, Arnaldo Antunes, Wisnik. Acho bonita a maneira que Vanessa da Mata leva sua carreira; cada vez com mais perfeição ao lapidar um disco pop. Muito segura, bonito de ver. E é claro, meus amigos que tocam comigo: Régis Damaceno, João, Prado, Riff, DeLauro.

O que você gostaria de fazer que você não fez?

Tenho muita vontade de fazer uma trilha pra cinema, com um orçamento legal (risos), e gravar um disco de música pra pista, um disco totalmente Disco, com uns refrãos bons. Vivo fazendo isso, já tenho todas, só falta encarar, e encontrar um parceiro pra fazer uma batida legal.

Na canção “Alento”, você fala de encontrar aconchego em suas próprias memórias e pensamentos. É possível falar de romance sem ser “para alguém” ou “de alguém”?

Acho que sim, se falarmos mais das relações verdadeiras que temos, com tudo que não sejam os homens. Com as flores, é um bom exemplo. Falar de conexão, de elo, de beleza. Acho que incentiva a gente a olhar isso ao nosso redor. A indústria televisiva optou por focar somente as brutalidades da humanidade, e não no que estamos falando aqui, sensibilidade, profundidade, respeito, admiração. Tudo é somente focando justamente onde o ser humano deu “chabu”, e isso é chato, torna o viver mais pesaroso.

O que é um final feliz?

É ter vivido com intensidade todas as etapas da vida: infância, adolescência, fase adulta, ser pai, avô. E aí sim, vou estar satisfeito, proto para a próxima viagem, quero saber qual vai ser a próxima fase. É assim que eu vou tentar fazer!

Seu trabalho tem um tom leve e livre, você acha que é possível falar de amor e de liberdade?

Sim. Fiz uma música que se chama “Gravitacional” e que fala justamente sobre isso. Fiquei muito feliz quando Elba Ramalho, uma pessoa muito bonita, me pediu uma música nova e eu dei pra ela. Ficou linda na voz dela. (Marcelo toca a música):

A saudade tá batendo muito forte
Nem parece que eu te vi antes de ontem
Você foi e me deixou o mundo inteiro
Mas agora o meu mundo é um cinzeiro

Que gira em torno de um sistema solar
Tal qual a terra com o sol e o luar
Assim sou eu com essa mão no meu isqueiro
Com a outra no cinzeiro eu faço o mundo flutuar

Com o meu pulmão respiro o ar celestial
Com pés no chão me sinto gravitacional
Na solidão procuro a minha outra metade
Que apesar da gravidade pode ouvir o meu sinal

Pois o universo é como um homem abandonado
Estrelas cadentes são e-mails e recados
Que vão correndo para dizer a quem já foi
Que a liberdade é boa e pode ser vivida a dois
Que a liberdade é boa e pode ser vivida a dois
Que a liberdade é boa e pode ser vivida a dois

Quando se fala de amor, se fala em liberdade no final das contas. É assim que eu tento amar. Amar a outra pessoa dentro da existência dela, do espaço que ela precisa ter pra lidar com a sua missão. Apertar de um lado, afrouxar de outro, liberdade para mim é isso.

No clipe “O Melhor da Vida”, você coloca dois bailarinos, que parecem mais estar em um duelo que em uma dança. Mas sua outra canção de sucesso tem ritmo de valsa. Seria o amor esse duelo ou uma valsa? Em qual dos ritmos o amor te parece durar mais?

Duelo! Com certeza, duelo! (Risos) Valsa enjoa! Duelo é atrito, fricção, é o que está no antes do antes de qualquer coisa que existe. Daí que surgiu a primeira célula. Tentamos representar no clipe a salvação da relação! Queria que fosse uma briga, porque penso que devemos partir em busca da distância perfeita, já que se vive junto. Acho mais interessante pensar em distância do que em proximidade como frequência perfeita entre um casal ou mais pessoas. A distância perfeita é o que equilibra, ela dá o espaço e a liberdade que precisa haver dentro do cometa que você é! Ela é como um café perfeito, não é forte nem fraco – uma delícia.

O que há de diferente entre o primeiro e o segundo disco?

A minha saída plena na hora de encontrar o caminho para o segundo disco foi entender que precisaria me aproximar da minha verdade, dizer o quer estava sendo vivido. No período entre os dois discos, muitas mudanças aconteceram na minha vida. Eu era casado, me separei, fiz 30 anos, e parei de me preservar tanto, dizer mais sim e experimentar o que achava que me convinha! Mais ou menos como uma planta que precisa quebrar o seu vaso para crescer do seu próprio jeito! Eu ainda não tinha vivido esse momento. Saí de casa novo, sempre tive uma mãe amorosa, e já conheci uma namorada. Tive sempre uma proximidade maternal, e de repente tudo isso precisou se quebrar: chega! Foda-se! Deixa eu ficar aqui sozinho!

Isso me colocou em um outro lugar, para que tivesse um ponto de vista mais amplo das coisas. Essa é a maior diferença entre um disco e outro. Tudo que diz respeito às sensações, aos prazeres, à esfera sexual, às relações, às amizades – viver a vida e tentar ficar mais presente no presente. Assim surgiu o segundo disco, cujo nome veio de uma frase que eu escutei do Curumin: o melhor da vida é de graça.

Vale a pena largar tudo e casar domingo, se a vida tem muitas segundas-feiras também?

Acho que vale. Botar o volume no máximo da intensidade das coisas que a gente consegue viver. É dizer: vamos no máximo que dá pra ir no que a gente está sentindo, nesse namoro, nesse romance. Mas é justamente por causa da segunda-feira que a gente tem que entender que a vida é aqui e agora. Que todo dia tem uma coisa nova e temos que aprender a lidar com isso, negociar. É aí que está a graça de viver pra mim. E, nessa correnteza, não tentar levar muita coisa contigo. As coisas vão dando certo.

O que mudou na sua visão de amor? De mais jovem a hoje?

No começo da adolescência a gente acha que amar é contar para o outro tudo da sua vida. Existe esse exagero. Mas quando crescemos, entendemos que amar não tem nada a ver com isso e, sim, com saber a distância perfeita, com oferecer o espaço que a pessoa precisa para ser inteira e verdadeira sempre.

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Beijo por beijo

por Vanessa Agricola

Era domingo, eu tinha tomado um pé na bunda, talvez eu fosse a pessoa mais triste do planeta naquela hora. Tentei ver uma série americana, não consegui, achei um cigarro no meio dos cardápios delivery. Ia pedir uma pizza. Melhor voltar a fumar.

É uma dor que nada adianta. Nada faz você achar que o mundo é menos que um cocô de pomba que caiu na sua cabeça. Lembrei do dia que ele chegou de madrugada, tive certeza que estava com outra. Estou cansado, ele disse.

Eu também estava. É exaustivo amar uma pessoa que não ama você de volta. E você fica tentando dar um jeito daquilo funcionar, mas não tem jeito. E não é culpa da pessoa. Ela não é a malvada e você a boazinha. Não era pra ser!, não é isso que diz o clichê?

Mas naquele domingo nada disso me ocorria. Nenhum amor meu vai dar certo. Nunca. Antes desse teve aquele outro, e aquele outro, estou fadada ao fracasso! Vou envelhecer sozinha, fumando, eu comigo aqui trancada nesse apartamento, igual uma música do Leandro e Leonardo.

Passei o resto desse ano odiando os homens. Em janeiro, conheci um coitado num bar do Itaim, ele me disse eu te amo em duas semanas, quase vomitei. Mas deixei rolar. Gostei tanto de ter de volta uma companhia pro cinema… o ser humano é egoísta. Deixei o coitado ter esperanças, fui dando corda, deixei o coitado me escrever coisas. Só parei o dia que ele escreveu um negócio muito triste, que eu estava distante, que eu não liguei da praia, que se ele tinha me feito alguma coisa, qualquer coisa… O que é que eu ia falar? Não é você, sou eu. Me perdoa.

Outro clichê da vida é o aqui se faz, aqui se paga. Um pouco depois do coitado, eu me apaixonei por um cara, ele era casado com uma chinesa. Estava numa pista de dança, me achando, quando esse sujeito me apareceu vestido de preto. Claro que ele não se apresentou dizendo, oi tudo bem, eu sou casado, mas quando eu já achava que ele era o amor da minha vida, em duas semanas, ele contou que tinha uma pessoa. Ela estava na China, ia chegar na sexta, ela morava com ele ainda e eles eram casados. Como é? Não, calma, deixa eu explicar. Ela não tem onde morar, eu não tenho como mandar ela embora, ela não tem grana, a gente nem se fala, porra!

Você acredita que eu comprei essa história? Passei quase um ano almoçando e jantando em restaurante de quinta, dormindo em motel. Quase um ano, até dar de cara com os dois numa festa, beijando na boca de língua…

Tem um filme brasileiro que eu adoro, chama Pequeno “Dicionário Amoroso”. Andrea Beltrão e Daniel Dantas são casados, daí eles se separam, o filme é sobre isso. Perder, recomeçar. Em uma cena, a personagem da Andrea Beltrão descreve o que está sentindo. “Parece que me arrancaram um braço”. É uma dor que nunca me esqueço.

Beijo por beijo, sonho por sonho, amores vão mas a verdade é que os braços voltam. Dali a pouco, atento aos seus próprios afazeres, sentado do outro lado da mesa, um outro amor nos fará companhia.

E ele não dá a mínima se estou aqui há horas sem lhe dirigir a palavra. Com fones de ouvido, cantarolando minha música sertaneja. Ele é o meu amor em paz. Meu amor que não me cobra. Não acabou ainda? Não vai jantar? É o meu amor que não faz meu coração saltar pra fora. Não liga se eu não atender o celular. Não me prega bronquinhas porque eu sou avoada. Não li a mensagem de texto, não sei se hoje é sábado ou domingo. É o meu amor que não acha que eu tenho que consertar os meus defeitos, não me pede pra eu ser diferente… É o meu amor de verdade.

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Em busca da pureza perdida

por Eduardo Andrade de Carvalho

Raymond Radiguet morreu aos 20 anos, de febre tifoide, com uma obra literária perfeitamente acabada. Nascido em 1903, em Saint-Maur, subúrbio de Paris, filho de um famoso cartunista, Maurice, era o mais velho de seis irmãos. Foi um aluno exemplar até, aproximadamente, os 8 anos; largou o liceu Charlemagne em Paris, onde era bolsista, aos 10, como um estudante medíocre – e continuou estudando sob a sensível orientação do seu pai. Radiguet não era bobo: em vez do monótono ambiente escolar, preferia ler os clássicos franceses deitado em um barco amarrado na margem do rio Marne, aproveitando a atmosfera calma e agradável da cercania parisiense de mesmo nome, onde morava com a família. E lia intensamente: de acordo com uma passagem provavelmente autobiográfica de Com o diabo no corpo, uns 200 livros entre os onze e doze anos.

Aos 14 anos, numa ocasião em que foi entregar os desenhos de seu pai ao jornal L’Intransigeant, conheceu o poeta André Salon e apresentou a ele seus primeiros poemas. Salon ficou impressionado e conseguiu espaço para que publicasse seus trabalhos em jornais e revistas. Apresentou-o também a Max Jacob, que o introduziria, depois, ao seu futuro amigo e amante, Jean Cocteau, que tinha o dobro da sua idade. Aos 15 anos, Radiguet já começara a frequentar os círculos de Montparnasse, “a Meca da modernidade”, com Picasso, Apollinaire, Breton, Modigliani, Coco Chanel, Stravinsky, entre outros, e, aos poucos, foi conquistando também a alta sociedade parisiense, convivendo com príncipes e princesas – em um lugar em que, diga-se, o termo “alta sociedade” parece ainda corretamente aplicado.

Sua precocidade literária é normalmente comparada com a de Rimbaud, que nasceu em 1854. Faz sentido. Aos 19 anos, Rimbaud já era um reconhecido fenômeno das letras, com a publicação de Uma estação no inferno e O barco embriagado. Apesar de uma morte erradamente anunciada, quando desapareceu aos 27 anos, Rimbaud também morreu relativamente novo, aos 37, de doença desconhecida. Mas dificilmente se conhece um caso, em toda literatura universal, tão extraordinário como o de Radiguet, que escreveu maravilhosamente ainda adolescente e morreu assustadoramente jovem.

Mas ele jamais pretendeu ser reconhecido por isso: nem pelo gênio precoce nem pela morte inesperada, características dos poètes maudits que ele simplesmente abominava. “Idade não significa nada”, escreveu, “O que me impressiona é o trabalho de Rimbaud, não a idade com que ele o escreveu. Todos os grandes poetas já tinham escrito aos 17 anos. Os maiores são aqueles que nos fazem esquecer disso”. A vida que levou durante o último ano de sua vida, porém, consumindo pesadamente álcool e ópio, contribuiu para sua identificação com eles, apesar do seu forte e lúcido desprezo pela figura do poeta solitário e sofredor. Radiguet não viveu uma vida nem solitária nem sofredora.

Seu primeiro livro, e o único que saiu enquanto ainda estava vivo, foi publicado quando o autor tinha apenas 20 anos, resultado de um trabalho que começara aos 17. Com o diabo no corpo, baseado numa relação amorosa que supostamente teve aos 14 anos, foi escandalosamente recebido em Paris, pelos críticos e pelo público – mas vendeu amplamente (45 mil exemplares, de saída) e, de quebra, recebeu o importante prêmio Nouveau Monde. Radiguet conta a história de uma relação amorosa de um jovem de 16 anos com uma mulher casada, de 19, cujo marido se encontra no front de batalha durante a Primeira Guerra Mundial. Marta, a amante, engravida do garoto, e morre durante o parto.

A capacidade de observação psicológica de Radiguet é surpreendente, mesmo sem considerarmos sua idade – que ele, enfim, nos faz esquecer. Seu estilo é claro e direto, como queria que escritores escrevessem, e flui encantadoramente, com capítulos curtos e sequências de aforismos inesquecíveis, como esta:

“Nada absorve mais do que o amor. Quando se ama, fica-se à toa, mas nem por isso se é preguiçoso. O amor sente confusamente que seu único desvio real é o trabalho. Ele também o considera como rival. E não suporta nenhum rival. Mas o amor é preguiça bem-aventurada, como a chuva branda que fecunda.

Se a juventude é tola, é por não ter sido preguiçosa. O que invalida nossos sistemas educativos é que eles se dirigem aos medíocres, por causa da quantidade. Para um espírito alerta, a preguiça não existe. Nunca aprendi tanto quanto naqueles dias compridos que, para um espectador, teriam parecido vazios, nos quais eu observava meu coração noviço como um novo-rico observa seus gestos à mesa.”

Difícil acreditar que o segredo da adolescência, e do amor, durante essa fase, tenha sido revelado com tanta elegância e precisão como ele o fez. E mais do que isso: seus dois romances são histórias de adultérios tão sofisticadas que mesmo Proust, como reparou Paulo Francis, talvez não tenha ido tão longe, nesse aspecto. E Radiguet parecia ter consciência disso, quando escreveu sobre seu segundo livro, O baile do bonde d’Orgel, publicado depois da sua morte:

“Romance de amor casto, mas tão escabroso quanto o romance menos casto. (…) Não é a pintura do mundo, ao contrário de Proust. O cenário não conta. O único esforço de imaginação utilizado aqui não está nos acontecimentos externos, mas na análise dos sentimentos”.

Se no seu primeiro livro, então, o romance entre o narrador e Marta se consumou, materializando-se o adultério que, no final, será castigado, a relação entre François de Séryeuse e Mahaut d’Orgel, personagens principais de O baile, não poderia ser mais casta – e não poderia ser mais forte. E é precisamente por ter resistido a essa força quase incontrolável que Radiguet, como um moralista do século XVII, os considera tão virtuosos e interessantes. O que, aliás, eles realmente são, como justifica o autor, a respeito da condessa, já no primeiro parágrafo, em uma introdução irresistivelmente bonita:

“Os movimentos de um coração como o da condessa d’Orgel serão antiquados? Tal mescla de dever e inação talvez pareça inacreditável em nossos dias, até mesmo numa pessoa de estirpe e nascida nas Antilhas. Não será que nossa atenção se desvia da pureza, sob o pretexto de que esta oferece menos sabor do que a desordem?

Mas as manobras inconscientes de uma alma pura são ainda mais singulares que as combinações do vício. É o que respondemos às mulheres que, algumas, acharão Mme. d’Orgel excessivamente honesta, e às outras, que a acharão fácil demais”.

François tinha 20 anos, era muito inteligente e respeitado pelos mais velhos. Não fazia nada. Vivia com sua mãe, que possuía um espírito suficientemente nobre e compreensivo, segundo Radiguet, para entender que, nessa idade, é justamente isso que um jovem deve fazer.

“Toda idade produz seus frutos, e é preciso saber colhê-los. Mas os jovens são tão impacientes por atingir os menos acessíveis, e por se tornar homens, que negligenciam os que se oferecem.

Numa palavra, François tinha exatamente sua própria idade. E, entre todas as estações, a primavera, se é a estação que nos assenta melhor, é também a mais difícil de usar.”

François, portanto, pertencia a essa espécie rara: era um sujeito que, apesar de novo, sabia aproveitar a vida em sua plenitude, reconhecendo, inconscientemente, os limites que a idade lhe impõe, e formando, assim, uma personalidade, digamos, saudável. Era um cara bacana. Diferentemente do seu melhor amigo, o diplomata Paul Robin, que procurava a todo custo ascender socialmente, construindo, assim, uma personalidade corrompida: “Paul acreditava ter sido bem-sucedido na construção de uma imagem; na realidade, ele se contentara em não combater os próprios defeitos”, escreveu Radiguet.

A atração de Paul pelo casal d’Orgel, que ele e François conheceram juntos, é obviamente limitada, centrada em mesquinhos interesses sociais. François, porém, encanta-se com Mahaut, e, como novo e íntimo amigo do casal d’Orgel, passa a frequentar a casa deles. E apaixonam-se François e Mahaut, um pelo outro, sem, no entanto, saberem que são correspondidos. Até que, preocupada com que essa atração ficasse definitivamente incontrolável, Mahaut confessa seus sentimentos para a mãe de François, pedindo que essa tentasse afastá-los um do outro. Não adianta.

Na jantar que os d’Orgel oferecem, na mesma noite, a um príncipe russo refugiado, François comparece. Mahaut não sabe se ele foi avisado ou não pela sua mãe, e fica confusa, com ciúmes de François, que conversa com uma convidada jovem e linda, mas exercita sutilmente seu autocontrole. Em uma cena delicada e complexa, Mahaut defende publicamente seu marido em uma situação inesperada – que, exceto o leitor, só o convidado russo compreende: Mahaut decide continuar com Anne, seu frívolo marido.

Em Com o diabo no corpo, Radiguet narra o complexo processo da perda da pureza de um adolescente inocente e inteligente; já em O baile do conde d’Orgel, essa pureza perdida é, na figura de Mme. d’Orgel, virtuosamente redescoberta.

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As cicatrizes do imperador

por Alberto Rocha Barros

Em 30 de outubro de 130 d.C., há mil e oitocentos anos, o corpo de um jovem entre dezoito e vinte-e-tantos anos foi encontrado morto no rio Nilo. Pouco depois verificou-se a identidade do rapaz: tratava-se de Antínoo, o favorito do Imperador romano Adriano Augusto (reinou de 117 a 138 da nossa era), que visitava o Egito com sua esposa, Sabina, e seu séquito. Ao saber da morte, Adriano ficara profundamente afetado, mergulhado num luto excêntrico: fundou uma cidade em nome do jovem no local de sua morte (Antinópolis), instituiu cultos a sua pessoa, ora como um deus (theos) encarnado ora como um heros (“herói”: um mortal deificado); organizou jogos regulares em sua homenagem em Atenas e em partes do Egito e da Turquia; por fim, fomentou e/ou financiou uma tradição estatuária celebrando suas feições – é um lugar comum dizer que, ao lado de Alexandre Magno, Augusto César, e do próprio Adriano, Antínoo é a personagem histórica mais comumente retratada da antiguidade clássica!

A figura de Antínoo, e sua relação com o Imperador Adriano, há tempos é objeto de intenso interesse, que atravessa a história ocidental e oriental: suas feições foram impressas em monumentos e em moedas que circulavam pelo Egito e Ásia Menor (moedas com seu perfil foram encontradas em mais de 30 cidades do oriente); uma quantidade significativa de textos antigos o mencionam repetidas vezes e especulam sobre sua vida, seu significado e sua morte; o artista renascentista Rafael Sanzio teria passado instruções precisas a Lorenzetto Lotti para esculpir a estátua do Jonas bíblico na Capela Chigi (em Santa Maria del Popolo, Roma), inspirada no busto conhecido como L’Antinoo Farnese (hoje, no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles); no romance mais famoso de Oscar Wilde, a beleza de Dorian Gray é comparada a de Antínoo; Fernando Pessoa compôs um poema em inglês sobre ele (Antinous, de 1918), e o jovem é personagem crucial no romance Memórias de Adriano (1951), de Marguerite Yourcenar. De atendente, pajem ou favorito de Adriano, Antínoo tornou-se objeto de culto religioso e, no mundo contemporâneo, até ícone da sensibilidade homoerótica.

Mas teria sido Antínoo amante de Adriano? Do mundo antigo, sobreviveram dois tipos de fontes de informação a esse respeito: evidência textual (escritos pagãos, cristãos e fragmentos de papiros) e evidência material (estátuas e inscrições). Essas fontes sugerem que havia sim um elo erótico entre eles, mas isso apenas levanta outras questões. Sabemos que Adriano favorecia uma estratégia de marketing que o tornava mais “grego” – talvez tenha sido um dos imperadores romanos mais helenizantes. Mas a pederastia ateniense favorecia relações com jovens (12-17 anos) aristocratas, e Antínoo não era nem tão jovem (alguns estudiosos acham que poderia ter morrido com cerca de 25 anos) nem aristocrata. Fugir dos ditames da altamente ritualizada pederastia ateniense era sinal de depravação e mau gosto. A versão romana da pederastia ateniense era mais brutal, com senhores abusando sexualmente de seus escravos e escravas – e as fontes sugerem uma relação mais complexa de companheirismo entre Antínoo e Adriano (e são raras e tardias as sugestões de que ele fosse um escravo. Ao que tudo indica, era um homem nascido livre).

É também importante ressaltar que a linguagem grega do amor (que inclui os conhecidos vocábulos eros e philia) contém em seu campo semântico não apenas referência aos laços sexuais e/ou afetivos, como nós os entendemos, como também a ideia de algo que demanda de nós profunda atenção, uma mobilização da alma. Daí uma dimensão pouco lembrada da palavra “filosofia”, usualmente traduzida, de modo vago e meio New Age, como simplesmente “amor ao saber”, mas que também implica uma prática intelectual voraz e dominadora que demanda atenção absoluta, chegando aos extremos de comandar que o filósofo sacrifique seus prazeres mundanos para se dedicar exclusivamente à ela. A retórica do erotismo greco-romano não é necessariamente sexual, podendo implicar um anseio ou desejo casto e contemplativo.

Embora tenhamos boas razões para acreditarmos que a relação entre Antínoo e Adriano fosse sexual, gostaria apenas de deixar aberta outras possibilidades. O escritor e satirista Luciano de Samósata, contemporâneo de Antínoo e Adriano, em seu Descida aos Infernos, ou O Tirano lista os atributos do soberano: “ouro, prata, roupas sofisticadas, cavalos, banquetes, pajens no esplendor da juventude, mulheres…” Trata-se de um catálogo do luxo associado ao poder. A palavra que traduzi como “pajem” é também a utilizada para “favorito” ou “rapaz”. Assim, Antínoo poderia ter sido um sinalizador de luxo extremo, um objeto de beleza rara que apenas imperadores podem possuir, desfilar e imortalizar em pedra: como os tigres e os leões tão desejados por casas reais através da história.

Mas há também uma estranha (e potencialmente macabra) reviravolta no destino de Antínoo. O historiador Cássio Dio, que escreveu 80 anos depois dos eventos que relata, nos diz que o jovem “morreu no Egito, ou porque caiu [acidentalmente] no Nilo, como escreve Adriano, ou porque foi sacrificado, que é a verdade”. Existem duas anedotas sobre o sacrifício de Antínoo. De acordo com uma, sua morte coincide com um festival no Nilo por volta do dia 30 de outubro: data na qual um jovem e belo Osíris fora assassinado e teve seu corpo jogado ao Nilo. A posterior transformação de Osíris em deus está associada à fertilidade do vale. Nesse caso, Adriano poderia estar engajando-se num engenhoso plano político-cultural: fundindo um mito egípcio com um novo evento mítico romano, para unir as duas culturas… Mas outras fontes dizem que Antínoo se sacrificou voluntariamente, por amor a Adriano, num ritual mágico que garantiria ao Imperador longa vida.

Essas múltiplas possibilidades estimulam a nossa imaginação, mostrando-nos, ao mesmo tempo, o quanto e o quão pouco conhecemos de certo na Antiguidade Clássica. Os bustos do jovem certamente são curiosos: com rara maleabilidade, Antínoo aparece no estatuário ora com feições egípcias, ora como avatar de Osíris; por vezes como Dioniso ou outros heróis gregos. Certamente, é a derradeira encarnação da tradição grega de celebrar a beleza da juventude do corpo masculino.

Adriano Augusto é um dos imperadores que mais deixou marcas em nosso mundo físico: a famosa Muralha de Adriano, no norte da Inglaterra, marcava as fronteiras do império; sua famosa Vila Tivoli (“Vila de Adriano”). É um dos pontos turísticos mais visitados em Roma; ele foi o responsável pela reconstrução do celebrado Panteão e do Castel Sant’Angelo em Roma (concebido para ser o Mausoleu de Adriano)… além de nos ter legado um sem número de estátuas de Antínoo… Seriam essas meras marcas de um complexo projeto de poder, ou cicatrizes mais profundas?

#18RomanceCulturaLiteratura

Um pouco de valentia

por Bárbara Mastrobuono

Uma noite, no início da década de 1940, um pai passava em frente à porta aberta do quarto da filha quando ouviu-a dando gargalhadas. Colocando a cabeça para dentro do quarto, viu que ela lia um livro sobre uma babá mágica que levava as crianças para viverem aventuras fantásticas. Esse pai era Walt Disney, e foi assim, por meio de sua filha Diane, que conheceu Mary Poppins.

A relação entre Walt Disney e a personagem teve muitos altos e baixos, graças a uma figura que, até pouco tempo, permaneceu às margens do conhecimento popular: P. L. Travers, sua autora. Embora no filme “Mary Poppins” sua existência seja revelada apenas por um crédito discreto, ela é figura central do recente “Walt Disney nos bastidores de Mary Poppins”, filme que conta a versão “disneyficada” da venda dos direitos do livro.

Os estúdios Disney representam o ideal de família perfeita. Seus filmes pregam uma infância romantizada, a infância que todos nós gostaríamos de ter tido, e convenhamos que é impossível não assistir a um filme deles sem que uma parte nossa secretamente deseje estar lá, vivendo aquela história e cantando aquelas músicas. Se você é um excluído, se ninguém te entende, se a sua família não é funcional e parece não te amar, não tema! Até o final do filme tudo estará resolvido. E foi exatamente isso que aconteceu na versão cinematográfica de “Mary Poppins”. Embora o livro seja uma obra delicada, com uma construção aprofundada da personagem de Mary, criado em base do misticismo de sua autora, o filme apresenta uma versão superficial e adocicada da babá. E vemos um lado negro daquilo que Disney considera a família ideal: para que o público americano entendesse a necessidade da família Banks de contratar uma babá (algo muito distante da realidade dos espectadores de classe média), os roteiristas acharam melhor apresentar os Banks como uma família “quebrada”, que precisava de um agente externo – no caso, Mary Poppins – para consertá-la. A babá só terá sido bem-sucedida quando sua presença não for mais necessária. No caso da família Banks, o problema era devido ao fato do pai banqueiro ser emocionalmente ausente e da mãe sufragista passar mais tempo lutando pelo direito dos votos das mulheres que cuidando dos filhos. No final do filme temos a cena de redenção derradeira, onde o Sr. Banks se aproxima dos filhos ao consertar a pipa deles e a mãe reassume seu papel na casa, simbolicamente amarrando a faixa de sufragista na pipa para servir de rabiola. Um final um tanto quanto assustador, apesar da música que nunca mais vai sair da sua cabeça.

O filme “Mary Poppins” foi lançado em 1964. Cinquenta anos depois o estúdio lançou um novo filme sobre o assunto: “Walt nos bastidores de Mary Poppins”, que conta como Disney passou vinte anos tentando comprar os direitos do livro, chegando ao ponto de convidar a autora para visitar os estúdios para ela ver por si mesma o desenvolvimento do roteiro e dar a aprovação final – uma concessão extremamente rara. Embora o filme capture, com um afinco por vezes até desnecessário, o mau-humor e as particularidades de Travers, ele rejeita as partes mais preciosas de sua personagem em prol de um ideal de família bastante antiquado. Travers, que abandonou a Austrália, seu país de origem, aos 24 anos, era uma poetisa que corria entre os grandes nomes da literatura irlandesa, como W. B. Yeats e Bernard Shaw. Seu maior mentor foi o poeta AE, um homem casado de sessenta anos com quem Travers cultivou uma relação emocionalmente carregada e permeada por gestos de afeto quase que românticos em que durou até a morte dele. AE introduziu-a aos ensinamentos do guru espiritual Gurdjieff e a apresentou a Madge Burnand, com quem Travers manteve uma relação de dez anos, chegando até a morar juntas. É sabido que a autora se relacionava com homens e mulheres, e inclusive estava iniciando um relacionamento turbulento com a americana Jessie Orage quando as negociações com Disney começaram. Outro fator um tanto fora do comum para a época com o qual a autora lidava durante as negociações era o encarceramento de seu filho Camillus.

Camillus fora adotado por Travers quando ela tinha quarenta anos, algo já bastante raro para o tempo, ainda mais quando consideramos que ela era uma mulher solteira (seu relacionamento com Madge já havia terminado). O menino tinha um gêmeo, Anthony, que Travers se recusou a adotar. Camillus só ficaria sabendo sobre Anthony aos 17 anos, quando um estranho curiosamente parecido com ele lhe acostou em um bar. Após descobrir a verdade sobre sua família, o menino passou a beber cada vez mais até ser preso por dirigir bêbado.

Relacionamentos bissexuais, crenças místicas, um filho que descobre aos 17 anos ter um irmão gêmeo… é uma pena que isso tenha ficado de fora da construção cinematográfica da personagem de P. L. Travers. Reduzida a um clichê de velha ranzinza, eles a pintam como uma mulher frígida e solitária, e, como espectadores, não conseguimos entender como essa mulher foi responsável por aquecer corações de crianças de todas as idades, até hoje. Eles esquecem que, se uma pessoa é capaz de produzir tanto amor nos outros, ela mesma deve estar transbordando da coisa. E P. L. Travers tinha amor; amor por seu filho, seus namorados e namoradas, e, principalmente, amor por sua vida. Pois ela nunca, em nenhum segundo, se reduziu a viver a vida de maneira diferente daquela que queria.

E, embora a Mary Poppins de P. L. Travers não cante e dance como a de Walt Disney, ela nos ensina uma lição valiosa: na vida, não adianta se esconder. É preciso enfrentar os problemas de frente. Mary, com sua mão firme e coração quente, nos mostra que não importa o quão assustadoras as coisas são, se formos fiéis a nós mesmos, abrirmos nossos olhos e seguirmos em frente, mesmo com todas as dificuldades, tudo ficará bem. É uma ternura valente que nos faz sentirmos seguros, mesmo quando a missão dela estiver terminada, mesmo quando ela já tiver partido naquele vento do Oeste e não estiver mais do nosso lado, quando formos apenas crianças solitárias presas em corpos de adultos.

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Tarsila romântica em duas mãos

Há tempos eu não acordava com a sensação que tive hoje pela manhã ao abrir os olhos. Adormeci na casa de meus pais, onde já não moro há mais de 15 anos, e ali, entre palpitações e calafrios, passei a infindável madrugada. Ao despertar de uma noite mal dormida e angustiada, em virtude da quebra da bolsa de Nova York, fui tomada por um sentimento estranho e de total alienação. De olhos bem abertos (junto ao nascer do sol nas montanhas do sul), porém como se ainda estivesse vagando pelo universo onírico – era como se não pertencesse, ali, àquele momento.

Gradualmente, com a retomada da consciência, fui me dando conta de que todo aquele estranhamento nada tinha a ver com a casa da fazenda colonial dos meus pais – aquele lustre de bronze velho, a sanca do quarto que um dia foi representativo de status ou as paredes de taipa cobertas por papel de parede francês amarelado e esgotado pelo tempo, e, ao olhar pela janela, o mato que crescia e devorava terras outrora férteis e produtivas. Ainda assim, minha alienação era de outra ordem, muito mais profunda do que a estrutura material que me acolhia. A minha sensação de deslocamento era consequência concreta do fim de uma relação que até então vinha nutrindo com o meu país. Veio então a realização de que eu e o Brasil enfrentávamos uma crise de relacionamento. Eu já não mais me sentia representada por ele, e ele, muito provavelmente não identificado em mim. O romance havia chegado ao fim…

Não tinha sido o melhor dos romances. Nasci, cresci e fui educada com uma noção clara de estar na periferia do mundo, longe do progresso, da sofisticação, do pensamento real. Era preciso atravessar o oceano, voltar à Europa para buscar lá umas raízes que aqui não vingariam, por mais fértil que seja esse solo. Paris era uma festa. Mas foi lá, enquanto eu e o Oswald mostrávamos como fazer caipirinha e tentávamos adaptar a receita da feijoada aos ingredientes franceses, que me dei conta de estar perdendo algo que só poderia mesmo existir aqui. Tinha vontade de algo além dos volumes coloridos que aprendi a pintar com o Léger. Era preciso mais cor, mais volume e um certo calor que a Europa nunca teve.

Quando voltei para o Brasil, comecei a me lembrar da infância, dos negros na fazenda, das criancinhas mulatas. Tudo tinha outro gosto. Estava seduzida, intoxicada, talvez até mesmo apaixonada. Fui para o Rio no carnaval, levei o Blaise Cendrars para conhecer as cidades históricas de Minas Gerais. Descobri que as cores de Paris, por mais inebriante que lá pudesse ser a vida, eram um tanto esmaecidas. Pau Brasil. Foi aí que eu entendi o que tanto faltava nos meus quadros, uma herança tropical que não pode ser negada. Mas também tenho minhas dúvidas se não forcei a mão, se isso tudo não era um exotismo fingido, se eu não era a caipira que negou a raça por um prisma parisiense quando tudo ainda era rude e tosco, irremediável. Estava instaurada uma crise tão aguda quanto o desbunde das cores da minha paleta.

Assim passa o meu tempo, entre dias adormecidos e noites em claro – na eterna e inebriante dúvida entre lá e cá. Meus sonhos e fantasias antropofágicas desejam o estrangeiro, para que dele eu absorva novas influências e cresça mais forte. Mas, em seguida, meus ideais tão completamente enraizados em terras do Brasil profundo me jogam de volta para cá, para além dos mares e oceanos gélidos da Europa, novamente retorno em busca da minha identidade tropical.

Nem aqui nem ali – pois não mais me encontro entre o novo e o velho. O que me chama é a possibilidade de um novo romance. União Soviética, é pra lá que eu vou.

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A ignição e o motor

por Thiago Blumenthal

Na tradição judaica, a Torá sugere o primórdio, a gênese, a fonte fundamental. A Torá vem antes da figura do deus abraâmico, e sem ela nada existiria, nem mesmo o grande protagonista de toda a Criação e testemunha das nossas mais corriqueiras intrigas e paixões. Sem a Torá, Deus não existiria – ainda que o livro mais sagrado dos judeus a Ele esteja condicionado. Desrespeitar a Torá, como objeto de culto e adoração infinitos, revela-se muitíssimo mais grave do que afirmar o ateísmo, por exemplo. A Torá a Deus precede.

Penso em uma associação muito parecida quando me debruço sobre o tema do romance, assunto privilegiado por esta edição de Amarello. Popularmente, e muito corretamente, o termo está ligado a certa concepção de amor, de amor romântico, de uma aventura sentimental guiada pelo coração. Estaríamos todos destinados a buscar romances em nossas vidas? É o romance que traz um pouco de sentido a uma existência sem muitas respostas e sem muitas motivações? Ou seria o amor, esta instituição tão celebrada dentre todos os sentimentos humanos, o grande motor para algum sentido? Penso que o romance precede o amor.

Somos matéria feita de memória e de romance, já nos dirão os grandes escritores românticos em todos os tempos. E nossa memória acaba por revelar que muitos dos amores aos quais nos apegamos partiram essencialmente de algo anterior, de uma subcamada sentimental que liga os pontos entre o coração e a mente, e que gosto de chamar de romance. Criamos uma fantasia amorosa, uma intriga com repentes bruscos, e nos envolvemos, tudo isso muito antes do amor. Leva-se um tempo para dizer “eu te amo” porque aguardamos o trânsito, os destinos e os desdobramentos dessa narrativa para então abrir o coração e nele inserir esta que é uma das frases mais universais de toda a história. Como a ignição ao motor.

Não se trata de diminuir o sentimento, de rebaixá-lo a uma subcategoria presa a lógicas próprias da ficção que criamos de nossos cotidianos e de nossos estímulos. Vivenciar, ou tentar, uma narrativa não compromete o amor que dela resulta; ao contrário, penso que o romance reverbera o amor. Uma boa história, um romance, costuma criar os amores mais apaixonados ou os mais cinematográficos.

Se tomarmos o conceito mais próximo do literário, ou aristotélico, o romance é uma obra geralmente em prosa que se destaca pelo tipo de abordagem eleita pela narração: enquanto a poesia se demarca pelo subjetivo e pelo eu, em versos que se dirigem sem intermediário a um leitor ou a um determinado objeto de sua paixão, a prosa pressupõe um narrar com maior mediação entre todos os elementos da história: eu conto algo a você, te mostro onde aquilo se passa, em que tempo, quem são as personagens que vão viver comigo (ou sem mim) aquela história, que não necessariamente será de amor. Uma história ou um romance não precisa ser de amor, embora em quase tudo já escrito ele esteja ali presente – o que se varia é a maneira como se olha para este amor. Diferentemente também do gênero dramático, em que os diálogos são reproduzidos para a posterior representação de atores em um palco, o romance não precisa se prestar à representação. Tudo nele basta.

Ao longo da história, o termo já foi moldado ao sabor das épocas e das escritas. O romance já foi uma língua, já foi até mesmo uma forma peculiar de versos épicos; hoje chamamos de romance o que James Joyce apresenta em Ulysses ou o que Machado de Assis relata nas páginas de Dom Casmurro. No entanto, se voltarmos à origem do termo, é possível estabelecer associações interessantes com seu significado mais moderno. Começa a ser usado entre os séculos XIV e XV, do francês antigo, romancier/romanz, e estava ligado à ideia de “traduzir uma narrativa para o francês”. Para nossa surpresa, tinha o valor sintático de um advérbio! Essas narrativas medievais figuravam, em geral, guerreiros e heróis em suas aventuras épicas.

Mas foi do latim romanus, para designar tudo o que vem de Roma, a partir de 1300, que todas as suas adjetivações e acepções surgiram. Traduzir o que vinha de Roma para o francês, em romancier/romanz, adquiria um papel importante na narrativa daquele período da história, em que o tom aventuresco dos antigos relatos romanos precisava se desprender um pouco de seu estrato latino e ganhar uma cara mais “moderna”, por assim dizer, francesa. Fato é que, desde sua origem, o termo tem intensa ligação com um contar de história, como processo criador de universos, de intrigas, de aventuras, de amores.

O romance tem seu ápice com Balzac, na mesma França, que é quem determina basicamente tudo o que será e continua a ser escrito até os nossos dias. Balzac foi o grande mestre do romance universal e não me parece exagerado associá-lo a uma tradição do romance também no sentido em que trato na introdução deste texto: os amores de Balzac lidam com essas intermitências da narrativa que, para existirem, precisam deste grande narrador que, ao colocar dois personagens juntos, revira o cenário, do íntimo, até o social e parisiense, para fazer surgir algo que se compreende como amor. E não seríamos nós frutos de uma influência abstrata e invisível de uma comédia humana? Somos, ainda, um retrato balzaquiano em nossas relações. Como um Lucien de Rubempré atrás de suas glórias, seus amores e suas ilusões.

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Um apontamento de identidades

por Arthur Telló

“Madame Bovary sou eu”, assim respondeu Gustave Flaubert ao processo movido contra ele por obscenidade, atentado à moral e conivência com o adultério após o lançamento do seu célebre romance. Se pensarmos, no entanto, na figura do escritor como um reflexo da sociedade burguesa da qual participava, Madame Bovary era também a imagem de todo francês daquele tempo, fruto dos seus costumes, instituições e da sua educação; e são tanto quem era esse francês quanto como ele foi retratado dentro da obra as perguntas que tal frase nos enseja.

Antes de entrarmos propriamente em tais questões, mas já entrando nelas de forma oblíqua, cabe-nos fazer um recuo ao horizonte de expectativas romanescas e estéticas que figuravam na época do lançamento do livro. Naquele tempo, a experiência de leitura dos futuros leitores de Flaubert era dada pelos romances de Stendhal e de Balzac, nos quais os protagonistas, em geral vindos do meio rural, deparavam-se, cheios de sonhos e de vontades pungentes, com o grande cenário de Paris, com o clima de boemia, com os teatros e as tentações da metrópole em meio ao turbilhão da Revolução Francesa e do período napoleônico. Personagens de modo algum vulgares, destinados a enfrentar os limites impostos pela ordem social vigente num clima de euforia e de crença nas capacidades e liberdades do indivíduo, educavam as mentes e os corações dos franceses até a inversão cáustica proporcionada pelo romance flaubertiano: em vez das luzes e dos cafés de Paris, os personagens de Madame Bovary nascem, pertencem e vivem no mundo rural, provinciano – sem grandes chances de moverem-se dali.

A ação é ambientada num lugarejo de nome Yonville, cujo centro urbano mais próximo é a cidade de Ruen, uma espécie de Paris de segunda ordem nas palavras do crítico Samuel Titan Jr. Em vez dos tempos conturbados da revolução, o autor nos situa no tempo pós-revolucionário, conhecido como a Monarquia de Julho, um hiato entre dois Napoleões, época do reino de Luís Felipe, da crescente fé na revolução industrial e da consolidação do bem-estar burguês, na qual as pessoas não se dão mais o luxo de serem excêntricas, mas se movem de acordo com o interesse, o lucro, o desejo material e o esclarecimento científico baldio de alguns se contrapondo à fé dogmática de outros; e, principalmente, em vez de heróis, somos apresentados à gente inepta para as tramas românticas de então, incapazes de triunfar no mundo como ele é, quer pela falta de talento, quer pela falta de uma vontade legítima, seja pela mediocridade provinciana, seja pelos ares campestres que reproduzem. Desse modo, o autor parodia, tomando como modelo e rebaixando, toda a produção literária precedente e, indo além desses pontos, inova o que vinha sendo produzido ao procurar o emprego da palavra exata, o realce do detalhe, o alto grau de percepção visual, a compostura não sentimental sem comentários supérfluos, a verdade mesmo que sórdida, a neutralidade ao julgar o bem e o mal. O narrador desaparece em prol da matéria narrativa, dos personagens que, quase independentes de seu autor, por meio do confronto de caracteres e vontades, deverão ser responsáveis por guiarem seus destinos até o fim de suas tramas. Nas palavras de Flaubert, “um autor deve ser como Deus no Universo, presente em toda parte e visível em parte alguma”.

Tais considerações contribuem para nossa resposta, que, não obstante, deve levar em conta a impotência feminina retratada no livro, contra a qual a protagonista se revolta a ponto de desejar na gravidez que seu filho nascesse varão. Sendo, porém, o realismo como uma nódoa de sujeira numa calça branca, Emma dá à luz uma menina, que, ao final do romance, será largada ao acaso do mundo e a parentes distantes, tendo de trabalhar numa fábrica de tecelagem para suprir suas necessidades. Na França de 1827-1846 – tempo cronológico da obra –, somente os homens tinham o poder de guiarem suas vidas no bem e no mal, de terem acesso à riqueza e à propriedade. As únicas alternativas de Emma para satisfazer suas aspirações, portanto, ou se darão por meio do sucesso profissional de seu marido Charles, que poderia levar o casal a um novo degrau da estratificação social, o que não se torna possível devido à incompetência dele em todas as esferas, ou recorrendo ao seu corpo como moeda de troca, utilizando-se do fascínio que despertava nos demais. Assim, o adultério da heroína é a sua maneira de ter algum controle sobre o próprio destino, possibilitando seu empoderamento sobre os amantes, resultando no seu endividamento e consequente suicídio.

Fruto de uma educação sentimental em um convento, de natureza idealista, numa espécie de paródia quixotesca, cuja insatisfação crescente com a realidade a leva a cada vez maiores exageros, Emma Bovary revolta-se contra as convenções de sua classe. Ela é o contraponto entre os ideais românticos e a realidade asfixiante de seu meio, de modo que, ao assumir a responsabilidade por seus atos, é esmagada pelas dívidas e pela desilusão em relação ao amor pobre que seus amantes lhe votavam; seu charme lhe serviu ainda uma última vez para convencer Justin, ajudante do farmacêutico Homais, a lhe permitir a entrada no aposento onde este guardava arsênico. De todos os ângulos em que se a olha, a punição da personagem feminina, que ousou alimentar uma força maior que a de seus pares masculinos, é a morte: o recurso ao suicídio, que, no lugar do sono tranquilo da promessa de felicidade romântica, vem carregado de dores, de vômitos e de sangue, de uma tortura que dura muito tempo.

A resposta de Flaubert sobre a identidade de sua protagonista em nada nos alenta em relação a quem era o francês seu contemporâneo. Enquanto Emma revoltava-se, a vida burguesa seguia sem grandes sobressaltos. Os demais personagens da obra se esvanecem se comparados a ela. Contudo, é a mediocridade deles que triunfa: a sua falta de gosto, as suas ambições em matéria de conhecimento e crença numa tecnologia de que não entendem. Charles é um homem vulgar, ordinário, que não logrou ser médico, mas um simples oficial sanitário; o farmacêutico Homais é o pretenso homem de ciência; partidário dos ideais positivistas e crente no progresso, sua linguagem é recheada de lugares comuns de desprezo à Igreja e à burguesia (da qual faz parte), fala de tudo e de todos, escreve à imprensa, faz alarde de sua presença, mas é limitado e cego aos próprios defeitos, sonha com glórias como a Legião da Honra, a qual, por fim, consegue; Monsieur Lhereux é um mercador manipulador que, por meio de algumas alusões aos casos de Emma, convence-a a consumir e a renovar suas dívidas até desesperá-la e impeli-la ao suicídio; os dois amantes da protagonista são ambos superficiais: Rodolphe Boulanger é um típico conquistador, homem de certa nobreza e de certo saber, que, sentindo-se atraído superficialmente pela heroína, a enquadra num estereótipo de mulher ingênua e seduzível, perdendo o interesse por ela, por não ser capaz de corresponder à intensidade de seus sentimentos, ao passo que Léon Dupuis compartilha as ideias românticas da amante, juntamente ao seu desprezo à vida comum; mas, ainda que fosse educado em Paris, se mostrasse corajoso em confronto com a gente de Ruen, se amedrontaria em frente a qualquer moça de família parisiense; no início de seu caso, o casal ama-se com toda a vontade de seus corações, porém o escrevente também não é capaz de manter a reciprocidade dos ímpetos de Emma, sentindo-se a parte fraca da relação. Quem seria enfim a Madame, ou, melhor dizendo, os franceses a quem ela apontou o dedo na cara?

Fracos, manipuladores e vulgares são os homens sob o crivo da pena de Flaubert. Embora sejam eles que detenham a capacidade de movimentar-se livremente na sociedade, todos se tornam presenças e caracteres mais fracos que a protagonista, cujo destino, uma ironia do autor à sociedade da época, prefere a morte dolorosa ao convívio com eles.

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A crise dos sete anos

por Facundo Guerra

Tenho uma teoria íntima: as redes sociais transformaram profundamente a maneira como nos relacionamos, obviamente, mas essa transformação foi tão aguda que mudou a nossa relação com os espaços que costumamos ocupar. Me explicarei: sou um construtor de palcos. Espaços de convivência, pequenos aquários que servem de cenário para os dramas humanos acontecerem. Talvez esta seja a maior recompensa do meu trabalho: saber que pulsões de vida e morte são sustentadas pelo contexto que criei. Quantos bebês nasceram porque seus pais se conheceram em um dos meus lugares, e quantas vidas abreviadas tragicamente atrás de um volante depois de uma noitada. Não existe o morno: as intensidades estão todas ali.

Enfim, os clubes, ou a nova denominação deles, as “baladas” (termo abominável), nasceram sociais, espaços que aglutinavam em seu eixo pessoas com interesses em comum. Não farei uma genealogia dos clubes, basta dizer que, a partir da década de 1970 e, de maneira mais contundente, da de 1990, a música, não o espaço, passou a ser o eixo que enfeixava as pessoas: a música em si era a expressão de certa estética de existência, de uma maneira de ver o mundo e, nesse sentido, um importante vetor de cultura. Os iguais se encontravam na pista para ouvir um determinado DJ, e sair ou não acompanhado era um detalhe, sendo comum você sair sozinho e encontrar os seus na pista. Afinal, era pra isso que ela também existia: além de servir de um momento de escapismo, para afirmar determinadas maneiras de viver.

Esta maneira de afirmar sua existência exigia um segredo: ao descobrir um espaço, você o comunicava somente aos mais íntimos, àqueles que compartilhavam contigo a sua maneira de existir: quantas vezes lugares descobertos eram passados de boca a orelha, mão em concha, como segredos, seguido de um “não espalha”? Porque este lugar, pobre do dono, não era para todos: era para nós, para nós existirmos, para nós expressarmos nossa maneira muito peculiar de vivência. Forasteiros não eram bem-vindos: eles permitiam que o véu de sonho fosse rompido pelo mundo que a porta que dava pra rua ajudava a conter. A imagem clássica dos filmes de western vem à cabeça: os olhares todos dirigidos como balas contra aquele que irrompia pela porta do saloon sem ser convidado.

O segredo, quando passado adiante, criava um laço de gratidão. Fazia do doador um generoso, e criava no receptor uma nova responsabilidade, a de compartilhar dele apenas com aqueles que eram como nós. Ali se criava um pacto: esse é o lugar onde existiremos ora em diante. Isso fazia com que o lugar fosse ocupado apenas por alguns, sequestrado para a formação de identidades. Não era apenas ou tão somente um negócio, era um palco para determinadores atores sociais se apresentarem.

Mas tudo isso mudou em 2007, ou um pouco antes disso: passamos a operar as redes sociais como manifestos de existência: eu curto, logo existo. Manifestar através das redes sociais suas predileções, sejam elas as obras que te agradavam ou os lugares que você frequentava, era tão ou mais importante que frequentar ou fruir estas mesmas obras ou espaços. Curtir, termo tão anacrônico, passa a representar existir.

Daí que espaços que antes, por conta do segredo, tardavam meses para encher e se transformar em economicamente viáveis passaram a virar hits da noite para o dia. Não existia mais o segredo: um post de Instagram, um check-in de Foursquare ou Facebook, ou um tweet que compartilhasse o segredo de maneira exponencial faziam com que seus seguidores soubessem do mesmo e urgissem para compartilhar com seus seguidores o lugar que exprimia sua maneira de existir, e assim sucessivamente, em cadeia.

Fruir o espaço é uma preocupação de segunda ordem: primeiro se coleciona o registro amplificado pelas redes sociais para depois se pensar o que fazer com o lugar. Colecionar estes registros e usá-los como dardos contra os seus seguidores, algo como um “estou aqui, me inveje”, é uma obsessão no confessionário de existências em que se transformaram as redes. O que era impensável, quase apocalíptico há dez anos, o uso de coleiras eletrônicas que nos localizariam no tempo e no espaço, como vaticinou Deleuze em seu Sociedade de controle, hoje fazemos de bom grado.

Os espaços são descartáveis, reclamamos continuamente da falta do novo, da falta de um lugar para encontrar os nossos. Esta íntima relação entre o espaço e sua identidade nas redes sociais criou novos problemas para os mesmos, doces e amargos. Doces porque não é mais necessário esperar para um bom projeto se tornar economicamente viável, uma vez que ele encherá em tempo recorde. Amargos porque será rapidamente descartado, depois da massa confessar que ali esteve. Talvez seja o início de uma era de espaços temporários, fugidios, voláteis e transitórios, tão fugazes quanto suas curtidas.

#21SolidãoCulturaLiteratura

Gaviões noturnos

por Ananda Rubinstein

Perto de casa, num bar/café que é a cópia perfeita do diner de “Nighthawks” do Hopper, tomo um café morno, tristonho. A cafeteira gigante com ar retrô, os homens de chapéu, as mulheres que forjam um mistério distante, de outro tempo, como se o que existe não desse conta, as revistas de época espalhadas pelo balcão e a música vinda do jukebox compõem o clima emocional do Phillies – uma ilha de nostalgia pelo que não se viveu, onde tudo é analógico e hiper-real.

Ou quase tudo. Debaixo de um chapéu de feltro pork pie, um tipo interessante bebe algo e folheia uma Manchete, na capa “a grande festa do Carnaval de 76”. Percebe o meu olhar e eleva o dele, sem esboçar sorriso; um olhar fixo e circunspecto que mexe, imediatamente, com meu ritmo cardíaco. O homem acende um cigarro eletrônico e volta a ler. Meu corpo treme em ondas erráticas.

Faz semanas que não troco mais de meia dúzia de palavras com outro ser. Falo sozinha, para não esquecer o som da minha voz e quebrar o silêncio; invento diálogos em que travo as duas partes. Penso nos ensinamentos do Dr. Sidharta, meu neo-psicanalista que flutua, e me esforço para resgatar memórias, colocando-as no papel. Mas elas são uma faca de dois gumes: preenchem o vazio ao mesmo tempo em que desenham novas fronteiras de isolamento.

Escrevo cartas curtas que serão lidas por mim mesma no futuro – se é que este presente um dia acaba. Escrevo diariamente para que a “futura eu” possa compartilhar do que sinto agora. O homem de chapéu pork pie lê a Manchete de mais de meio século atrás como se buscasse ali uma resposta. Escrevo como se fizesse o mesmo.

Querida Futura Lara,
Você teve alguns relacionamentos no último semestre, mas nada sério e todos com bots. Há um limite de intimidade possível de ser compartilhada com um robô que emite frases automáticas como “tira a sua calcinha agora” e “vou te comer todinha” (mesmo que ele o faça com maestria). Logo a bateria acaba e é você com você mesma, diante do espelho, tirando o rímel, (des)acompanhada de um robô que cessou de existir e tudo o que resta é sua ausente presença metálica, vagamente assustadora e, sobretudo, entediante. Fuja dos que te privam da solidão sem te fazer, em troca, qualquer companhia.

Com afeto,
Lara de 2049.
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Sinto o peso do olhar do homem de chapéu pork pie. Alguns momentos se passam (quanto mesmo?). Ele fecha a revista, se levanta, vem em minha direção; apoiado no balcão, fixa seus olhos em mim e pede ao deprimido cara do bar um café curto. O homem de chapéu pork pie fica de pé, ao meu lado, pensativo. Eu não mais escrevo; ele não mais lê. Ficamos os dois ali, existindo. Do jukebox, Tom Waits canta “Jersey Girl”. O homem de chapéu pork pie olha para mim e sorri. Ele deposita um pacotinho de sal em seu café. Eu tento impedi-lo, em vão. As linhas que delimitam meu isolamento se redefinem.

Na teia infinita profunda da web, eu tinha contato com fragmentos de arte que de alguma forma me curavam da sensação de não-pertencimento adensada pela vida a cada segundo. Minha última relação começou online com um Surreal Doll® de silicone, um robô bonitão, barbudo. Douglas® – era seu nome de fábrica –, como tantos outros bots, agia como um ser humano normal, de inteligência artificial mediana, com “opiniões” – pouco importava se eram dele ou não – sobre política e cultura pop. Ele gostava de mim, de forma meio programada, mas e daí? O que ele não tinha era um inconsciente. Eu mesma vivia num enorme deserto de alienação, com alguns oásis em forma de insights e pretensas tomadas de consciência, e passava a maior parte dos dias com saudade de algo que não sabia o que era. De alguém que ainda não conhecia.

O fato é que, antes das sessões de terapia com o Dr. Sidharta surtirem qualquer efeito e eu conseguir ter acesso a pastas ocultas de memórias, minhas horas livres eram gastas em chats de encontros virtuais, onde todos os gatos eram pardos.

André, o homem de chapéu pork pie – ou Cyberman 13®, seu nome original –, não é homem nem ciborgue. Não há nada orgânico em seu corpo. Mas ele sonha. Estou diante de um dos primeiros bots dotados de consciência artificial. Não sei por que estou te contando tanta coisa, ele me confessa, entre goles do seu terceiro café, agora açucarado e que, por alguma razão, não tem efeito sobre ele. Tomamos um vinho?, sugiro.

Falamos livremente, Cyberman e eu; e muito nem precisa ser dito. Nossa comunicação se dá em outros níveis. Passo a desconfiar de que talvez não sejamos mais os indivíduos que já fomos um dia. Ainda sólidos, com barreiras de pele e ossos que nos separam brutalmente uns dos outros, sim. Ainda impossibilitados de realmente conhecer outro ser. O que e como sente a minha mãe? Meu ex-namorado? O que Cyberman deseja lá no fundo? Já fui amada? Mas, além de sermos os corpos que nos separam, somos também redes, máquinas que habitam a mente de outras pessoas. Somos memória e estamos o tempo todo deslizando para dentro uns dos outros, nos entremeando e saindo de novo, ad infinitum e sem nenhuma explicação.

O relógio de parede aponta 1 da manhã, a hora instável, quando o nó no peito aperta. Dou por mim e estamos só nós dois no Phillies, além do deprimido atendente do bar, por quem sinto a maior compaixão do mundo. Respiro profundamente. Sou feliz neste instante. A música é interrompida e o cara do bar avisa, ainda mais deprimido, que é hora de fechar.

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To be an island

por Thais Graciotti

A Islândia é desses cantos do globo que pertencem à ordem da ficção, lugares que só Julio Verne escolheria como centro do mundo. A sensação é a de estar no começo e no fim de tudo. O vento gelado, o verde do musgo, o cinza da pedra, o azul do mar e do céu, a luz constante do verão que lembra, a cada minuto, que você está na extremidade do mundo.

Durante meu período de residência em Reykjavík, li numa enciclopédia que as ilhas começam no fundo do mar, que são coisas passageiras, criadas hoje, destruídas amanhã. Fotografar ilhas a partir de uma ilha, ou mesmo de uma ilha-barco em movimento, inverte o olhar para uma perspectiva quase tautológica. Tarefa obsessiva a que me dediquei sempre que estava em trânsito pelo país, e que a foto instantânea ajudou a promover, sobretudo a experimentação com a luz. O erros decorrem da linguagem escolhida, embora por vezes o que surge seja o nada, aquilo que some no escuro ou explode em luz, em outros momentos pontos, linhas, traços, riscos. As ilhas emolduradas demarcam fronteiras entre o mar e um formalismo geográfico que vai delineando a sequência desses pedaços de terra que emergem e desaparecem ao mar.

Drummond, divagando sobre ilhas, em algum momento disse que seriam “uma fuga relativa”. Já Deleuze pensa que a partir da ilha que se opera “a recriação, não o começo, mas o recomeço. Ela é origem, mas origem segunda. A partir dela tudo recomeça. A ilha é o mínimo necessário para esse recomeço, (…)”. Eu, assim como Verne, diria que a Islândia é uma viagem ao centro da Terra.

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Um tesouro esquecido

por Shogyo Gustavo Pinto

“Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!”

“Lisbon Revisited” (1923),
de Álvaro de Campos

As palavras quase gritadas nos versos que Álvaro de Campos, o heterônimo, “ditou”, em 1923, a seu escriba, Fernando Pessoa, soam com extrema atualidade hoje quando celulares apitam e os cães de Pavlov em que nos convertemos salivam rápido a atender seu tirânico Senhor.

Perdemos um tesouro, e nem temos consciência de quanto nossas vidas se empobreceram. Perdemos o prazer de estar a sós. A solidão, bênção que nossos antepassados souberam cultivar, tornou-se palavra de conotação quase pejorativa.

É sublime, evidente e inegável a maravilha da companhia dos seres amados, cuja presença ilumina nossas vidas, mas sua ausência é desafio maior ao humano coração. Os entes queridos têm o dom de nos alegrar só por se fazerem presentes.

Esquecemos, porém, de que há maravilhas opostas, e complementares, o que só pode acontecer entre os diferentes. Mesmidade gera redundância, reiteração, não complementariedade.

Os chineses ensinavam na doutrina do Yang e Yin que os opostos existem no interior do Tao, unidade que os transcende, engloba e fundamenta. Heráclito dizia que “os contrários convergem e dos divergentes nasce a mais bela harmonia”.

Os velhos mestres recomendavam que, ao descobrirmos uma maravilha, não esquecêssemos de buscar a maravilha oposta, senão restaríamos coxos como o saci que hoje nos tornamos, incapazes de reconhecer a solidão como tão admirável e desejável quanto o seu oposto.

Sempre prezaram a solidão aqueles em busca de Deus. Não deve ser impossível, mas talvez seja um pouco mais difícil ouvi-lo em meio ao alarido de muitas conversas, a digitar sem parar mensagens, ou com fones de ouvido a estrondar incessantemente músicas ensurdecedoras. Usar novas tecnologias é sem dúvida uma maravilha. Falta descobrirmos a maravilha complementar, que é a liberdade de sabermos quando não usá-las.

Aos que há muito vivem aprisionados no imperativo da companhia, talvez seja útil um roteiro de introito à estética da solidão.

Sugerimos quatro perambulações a sós em meio à natureza. A ordem em que são apresentadas escolheu principiar pelo declínio e terminar no apogeu do curso das estações que giram contínuas em sua invariável sequência. Começo e fim são apenas humanas interpretações da eterna mutação. No outono, ao caminhar entre árvores frondosas, ouvir atentamente o silêncio se romper ao som das folhas secas que encobrem a terra quando crepitam aos passos do visitante. Apreciar o tom rubro, ardente qual brasa, daquelas folhas que parecem incendiar-se quando partem dos galhos onde nasceram e viveram. Enrubescidas, aquecem através dos olhos os viandantes nessa estação em que Apolo prepara sua viagem anual à Terra dos Hiperbóreos.

No inverno, quando as temperaturas descem a extremos, caminhar no ermo a contemplar as breves nuvens que surgem e desaparecem ao ritmo da respiração. A quietude ama o frio e a vida se acalma enquanto a estrada aparente que o sol percorre, a eclíptica, inclina-se buscando o horizonte. As plantas dormitam, os animais recolhem-se a seus ninhos e tocas. A mudez dominante ressalta cada esporádico som. Vez ou outra um pássaro canta, e sua voz estilhaça o silêncio tal como o relâmpago rompe a escuridão. Se estiver nas latitudes mais distantes do Equador, ou nas alturas de montanhas majestosas, ouvir a neve calar os passos de tudo que se move, e ver como cintila cada sinal de cor que resiste e persiste em meio ao branco.

Na primavera, observar o irromper do verde que esteve ausente e retorna nas primeiras brotações. Ouvir o alvoroço das abelhas ante as floradas, e o estrondo dos raios anunciando chuva. A despedida do frio convida as vozes que estiveram caladas a entoar seu canto. O caminho do sol que se inclinara volta a se erguer, os dias prodigalizam luz e instigam os seres vivos ao movimento. Os animais que hibernavam recolhidos fazem-se andarilhos, animam-se em folguedos, enamoram-se, procriam. O mundo que submergira no cinza renasce pródigo em cores.

No verão, observar o vigor poderoso das plantas que seguem o exemplo do bambu em seu célere crescimento, e ver como prosperam agora os filhos da primavera. Quando sob o sol a transpiração salgar a pele, sentir o contraste ao entrar lentamente nas águas doces de um riacho, ou então no mar para que o sal quente do suor se encontre com o sal fresco das águas. Ao irromper da sede, contemplar a promessa na verde esfera entre as folhas da palmeira. Ouvir o som surdo do fruto ao cair sobre a areia macia, e depois o estalo claro da lamina a romper a rija casca. Por fim, descobrir o sabor leve da água dadivosa que se resguardou fresca sob o sol escaldante.

Muitas das descobertas narradas nos quatro parágrafos anteriores teriam inevitavelmente passado despercebidas a quem caminhasse entretido numa conversa, ou no prazer de receber e responder mensagens. A companhia, seja física ou eletrônica, exige uma redução da atenção a si e ao entorno para se dedicar também ao interlocutor.

A experiência estética da solidão é apenas a antessala do tesouro. O sacrário que guarda a joia maior está adiante, na dimensão metafísica da solidão. O êxtase da beleza precede a entrada no mistério do silêncio em que brilha o sentido de cada fugaz instante aqui em nosso “mundo flutuante”, como disse o poeta chinês Li Mi-an no século XVI. Essa descoberta cada um faz a sós consigo para então descobrir-se uno com tudo e com todos.

A companhia nos oferece a maravilha da alegria quando uma presença torna ensolarado o dia chuvoso, e nos ensina a amar o outro. A solidão nos oferece a maravilha da serenidade que vê este mundo com olhos de além, e nos ensina a amar a nós mesmos. Os dois amores nos ensinam o amor da Vida Infinita pelos seres finitos.

A companhia é um bem. A solidão é um bem. O melhor é usufruirmos às vezes de um, às vezes do outro. Só assim seremos inteiros, só inteiros seremos quem somos, e só em quem somos encontraremos a inexplicável felicidade.