Apartamento de Chanel no 31 da Rue Cambon, em Paris.

Em 1918, Gabrielle Chanel se instalou no segundo andar da 31 Rue Cambon. Ali criou uma decoração atemporal, barroca e harmoniosa, um convite para uma viagem que reflete as suas amizades artísticas e abre as portas para sua imaginação.

Perfeitamente preservado desde que ela faleceu em 1971 e classificado como monumento histórico pelo Ministério da Cultura em 2013, este lugar inspirador oferece uma visão fascinante da personalidade de Mademoiselle Chanel.

O apartamento, localizado acima de seus Salões de Alta Costura, é um talismã repleto de talismãs. A composição parece ter poderes mágicos ou sobrenaturais, o espaço é delicadamente edificado por detalhes dotados de história, força, memória e intenção. 

Há, ao redor de cada centímetro, uma aura aromática. Uma experiência traduzida por contrastes e sensações. Para além da profundidade narrativa de cada escolha, há uma relação invisível entre os objetos. Como se juntos formassem um alfabeto – signos tridimensionais que até hoje inspiram criações e coleções Chanel.

Entre seus amigos que ali estiveram, um episódio em específico nos mostra o quanto o seu pensamento, tanto em sua vida particular como em seu trabalho, enaltecia as mulheres e o poder do feminino. Durante um jantar, com o seu então marido Richard Burton, Elizabeth Taylor parecia apreensiva. Quando Chanel a perguntou o que estava acontecendo, Taylor respondeu que estava ansiosa pois em alguns dias iria conhecer a rainha da Inglaterra. 

Gabrielle disse para ela não ficar nervosa, explicou os protocolos, como ela deveria se portar e no final disse: “Mas lembre-se que foi a rainha que pediu para conhecer você.”

As paredes absorvem força estética, bem como um longo passado de encontros e segredos. Os espelhos e biombos chineses que as cobrem, parecem resguardar portais. É muito impactante adentrar o apartamento-talismã da 31 Rue Cambon. A imersão afeta o corpo todo e transborda fascínio para os outros andares. É como um amuleto que mantém pulsante o legado e as virtudes valorizadas e cuidadosamente materializadas por Gabrielle Chanel.

Conheça mais sobre o apartamento-talismã de Coco Chanel aqui.

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Mancha ou alguma hora a gente precisa usar short

por Marina Lattuca

Quando eu tinha 7 anos apareceu a primeira manchinha no meu nariz. Parecia um pingo de leite branquinho. Mas logo os pingos se tornaram poças, as poças se tornaram manchas e, por fim, as manchas se tornaram grandes nuvens nublando partes do meu corpo. Meu rosto tinha uma máscara branco-rosada, minhas pernas pareciam botas cor de creme. E eu comecei a me incomodar com os olhares.

Na época o vitiligo era uma doença pouquíssimo falada. A única pessoa que eu conhecia com vitiligo era o Michael Jackson. E nem conhecer eu conhecia. 

Dois anos depois a minha irmã gêmea teve seus primeiros respingos lácteos pelo corpo. Éramos duas, então. Começamos a buscar tratamentos por todos os cantos da cidade junto de nossa mãe. Bebíamos refrigerante mineirinho com folha de serralha. Passávamos pomadas caríssimas. Tostávamos no sol até a pele e os ossos doerem. Até que começamos a fazer um tratamento de luz, em que entrávamos em uma espécie de cova de bronzeamento artificial. A caixa irradiava raios tóxicos que matavam o vitiligo e tudo que existia embaixo dele. Foram anos assim. 

Morávamos em São Gonçalo e frequentávamos o Hospital do Fundão três vezes por semana para queimar a pele por opção. Alguma hora aquilo começou a ser demais. Desistimos. Eu usava calças grossas e bermudas abaixo do joelho com vergonha das minhas botas brancas. Os olhares maldosos sempre superavam os curiosos. 

A minha mãe na época começava a ter algumas manchas também. Mas não de vitiligo. As dela eram mais escuras, arroxeadas, e não vinham de dentro para fora, mas de fora para dentro. Do meu pai. De certa forma, as nossas que vinham de dentro, eram semeadas pelas manchas que, de fora, ele causava na minha mãe. Batia, empurrava. E estávamos resignadas: as manchas não tinham tratamento. 

Quando pela enésima vez ele tentou mais uma vez marcar minha mãe com a mancha escura e dolorida ela carregou as filhas e foi embora. Fomos pulando de casa em casa. E minha mãe de emprego em emprego. As manchas foram diminuindo aos poucos. As dela sumiram. As nossas insistiam em aparecer. E eu cobrindo a pele. Mas o vento insistia em soprar a nuvem por lugares do corpo que eu não conseguia cobrir. 

E eu tinha meu primeiro encontro. Sofria de antecipação por medo das danças que as minhas roupas poderiam fazer, pregando peças em mim. Mostrando as manchas. 

Vai de short. Alguma hora ele vai ver que você tem vitiligo, não tem jeito. Disse uma amiga da escola na época. E era verdade. Alguma hora ele ia ver que eu tinha vitiligo. 

Alguma hora minha mãe entendeu que cobrir as manchas, não fazia elas doerem menos. E eu, também. E vesti meu short.

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A Volta do Cortejo: um conto Amarello e Gucci

Em uma coreografia de luz e sombra, Gucci e Amarello apresentam A Volta do Cortejo, um conto quimérico, imaginado para exaltar a dualidade do espírito brasileiro, que incorpora inúmeras camadas, num movimento entre o encantamento e a ilusão.

A cantora e compositora Maria Luiza Jobim em cena do filme A Volta do Cortejo

No filme, Cabeção é um símbolo da cultura popular. Intenso e cativante, o personagem simboliza a fantasia, o lúdico e a magia da alegria, formas que se encontram perdidas num momento de fragilidade, fraqueza e insegurança. Recluso em um ambiente tomado por desilusão e incertezas, Cabeção encontra em Maria Luiza Jobim a ajuda que poderá romper com o isolamento e renovar suas perspectivas. A cantora e compositora será o elemento responsável por entregar brilho, vida e elegância à realidade sombria, assim como o Carnaval inspira a renovação da esperança no coração do seu povo.

Em uma história de reformulação do presente, o passado se coloca também em movimento, ao vestir Maria Luiza com o icônico terno de veludo vermelho da Gucci, concebido em homenagem à peça original, desenhada pelo estilista Tom Ford. Na releitura do diretor criativo Alessandro Michele, a peça unifica a potência artística e a sensualidade do estilista norte-americano, refletindo-as no trabalho realizado no brilho do tecido.

Maria Luiza veste terno Gucci, inspirado na peça original, desenhada pelo estilista Tom Ford

Na marca que o próprio Michele define como um laboratório de hacking, no qual recupera incursões estéticas e as metamorfoseia para o mundo da moda, a peça vestida por Maria Luiza desafia a silhueta de Marilyn Monroe, o glamour da antiga Hollywood, enfrenta o charme discreto da burguesia e os limites da alfaiataria masculina para aventurar-se no tempo, renascendo – assim como o Carnaval – para reafirmar constantemente a sua elegância e singularidade.

Assista A Volta do Cortejo, um conto Amarello e Gucci:

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Yes, nós somos barrocos – Amarello 39

Ao apresentar uma identidade brasileira formada a partir da exuberância, dos excessos e das suas inúmeras contradições, a Amarello lança a edição de número 39, trazendo o músico Jorge Mautner na capa.

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O calor intenso faz o suor correr por todo o meu corpo. Suo muito e, por muito tempo, lutei contra o meu suor. Ora pela umidade excessiva, ora pelo odor exagerado. Perdi. Penso que assim, tentava superar, talvez por ser descendente de italianos, onde faz frio, o nojo que me foi ensinado a ter do suor. Perdi.

O Barroco legitimou exageros. Nasceu na Europa, como ferramenta da Contrarreforma para tentar resgatar fiéis para a Igreja Católica, que andava em baixa naqueles tempos. Estética boquiaberta, afirmava a fé pela matéria. Ouro, ornamento, adorno. O Barroco encontrou no Brasil o seu melhor palco.

Penso quando o indígena encontrou o branco e adoeceu. Quando encontrou o negro e povoou. No europeu, quando aqui viu pela primeira vez a força da luz de Salvador. Quando Henry Ford sentiu o calor molhado da Amazônia, e viu seu sonho americano ser vencido pelo trópico. Yes, we are bananas. Yes, estamos digerindo mal há muito tempo. O Brasil é uma apropriação que nem da própria apropriação se apropriou.

Aqui tudo é excesso, emoção, incoerência, contradição. O corpo e a alma. O barulho, a linguagem, o espaço, a luz onipresente, o ouro, o calor, a mata, o contraste de classe. O terror e a glória. A alegria e a tristeza acachapantes. Somos um país de verdades múltiplas, coberto pelo manto de candura da hipocrisia tropical, que aqui se formou onde tudo se dissolve no “pitoresco”, no “saboroso”, no “gorduroso”, no “apimentado”. Na nossa cultura moralista, que demole e não contrasta, é preciso passar por uma revolução de costumes. Tirar o véu dos olhos do querubim. O Brasil é um sonho que precisa ser despertado.

Por fim, não há coisa mais excessiva e confusa que a impossibilidade de conseguir definir a identidade brasileira – algo que, inclusive, faz parte da nossa própria identidade. Ah, e a esperança num futuro melhor: precisamos perdê-la para então reencontrá-la de outra forma, menos romantizada, nem “leve” nem “etérea” – barroca.

Antes de definir um entendimento restrito desse barroquismo, preferimos nos identificar como tal, com orgulho e alegria. 

Brasileiro não é antitranspirante. Se não aprendermos a conviver com o nosso suor, seus excessos e exageros, nem amor fazemos mais. Por isso, peço desculpas aos minimalistas, aos simplistas, aos perfeccionistas e aos simplórios – porque Yes, nós somos barrocos!

Tomás Biagi Carvalho

Há 8.500 anos a.C, os homens começaram a produzir grãos para facilitar a alimentação e melhorar a digestão. Para auxiliar nesse processo, surgiram os moinhos. Os registros mais antigos nos mostram que os modelos a vento eram utilizados na China, aproximadamente 2.000 a.C. para irrigar a plantação. Posteriormente movidos a água ou tração animal, os moinhos se tornaram peça essencial na produção de farinha, na extração de suco e na moagem de vegetais.

No Brasil, os primeiros moinhos acompanharam a chegada dos colonizadores europeus. O Velho Continente trouxe até nós a tradição do moinho hidráulico – cujas origens remontam ao Mediterrâneo helenístico -, fazendo o engenho parte marcante da paisagem rural dos estados do Centro-sul do país.  

Considerado como o processo perfeito para se obter o melhor fubá – ou farinha de trigo – o moinho de pedra elétrico surgiu como uma tecnologia moderna para substituir a força da água e tornar o processo mais acessível. Apesar da aparente extinção da técnica, Zé da Amélia faz questão de manter viva a tradição que aprendeu com o pai. É no interior de Minas Gerais, em Piracema, que o artesão se debruça esculpindo pedras e mais pedras para produzir moinhos sob encomenda, num processo que chega a levar até 40 dias. 

Um esforço recompensado pelo sabor e qualidade do fubá e da farinha de trigo que Zé da Amélia nos ajuda a obter. 

#39Yes, nós somos barrocosArteCulturaMúsicaSociedade

Dois e dois são dois: MC Martina e Acauam Oliveira

por Revista Amarello

Foto: Thaís Magalhães

MC MARTINA é rapper, poeta e produtora. Idealizadora do Slam Laje, a primeira batalha de poesia falada do Complexo do Alemão, e um dos slams pioneiros a ser realizado dentro de uma favela no Estado do Rio de Janeiro.

Foto: acervo pessoal

ACAUAM é Doutor em Literatura Brasileira pela USP, professor da Universidade de Pernambuco. Atualmente sua área de pesquisa envolve os campos da literatura, música popular e crítica cultural, bem como questões relacionadas à afrodescendência e às relações étnicorraciais. É autor da introdução ao livro Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s.

MC Martina – Eu sou a Martina, tenho 23 anos e sou poeta do slam e MC. Tudo que eu faço hoje é porque alguém me ensinou. Eu sou cria de projeto social, tanto do Complexo do Alemão quanto do Complexo da Maré. Foram nessas favelas que eu consegui criar senso crítico, e vi uma forma de comunicar as coisas que eu penso, a minha realidade, através da poesia. Eu queria falar em primeira pessoa da minha realidade e uso a poesia para isso. Eu faço o Slam Lage, que é a batalha de poesia; o Ataque Poético, que são ataques de poesia; e me apresento sozinho, de MC Martina. Cada evento é uma metodologia diferente. Já fui em novela, mas vou na escola, na rua, no metrô. Cada lugar é uma dinâmica, uma demanda diferente. Com a batalha de poesia, que se chama Slam Lage, não é só poesia, a gente faz também a batalha de passinho e faz a batalha do conhecimento, além do show. Agora vamos voltar com a batalha de TikTok, pra envolver mais as crianças. No Ataque Poético são um bando de oito pretos recitando uma mesma letra, sempre homenageando algum artista, um escritor preto e periférico. Oito pessoas recitando a mesma poesia, ao mesmo tempo, no mesmo lugar, em qualquer espaço. É bem legal, as pessoas gostam. Mas tem que tomar cuidado… teve situação que eu fui recitar com meus amigos e as pessoas correram achando que era arrastão. Teve situação que a gente foi recitar e levamos dura. Então são várias situações bem pesadas de racismo. Hoje em dia tá ficando mais acessível. A gente tem tentado humanizar o assunto. Falamos sobre o sistema, mas também queremos falar de amor, de esperança, de outras coisas. Não quero só denunciar algo, eu quero humanizar também. Ano que vem, 2022, faz 100 anos da Semana de Arte Moderna no Brasil e pô, várias coisas aconteceram a partir de lá, eu reconheço, sabe? Só que eu sei que se eu fosse uma pessoa viva na época, eu não entraria dentro do Theatro Municipal de São Paulo. Essas culturas como o Barroco, Arcadismo e Modernismo são muito baseadas na Europa, algo muito embranquecido. Hoje em dia, graças a Deus, passaram outras gerações e a gente tá aprendendo a fazer arte da nossa forma, pegou a visão? Tem coisas que não tem rótulo e outras que é importante ter. O funk, o rap, que é o cenário que eu faço parte, e o slam – que é um grande movimento de literatura tão importante quanto –, a gente precisa ter a oportunidade de valorizar a cultura nacional. De todos os tipos musicais que você for observar – pagode, samba, rap, funk, bossa nova –, a maior parte das músicas e pessoas que têm protagonismo na cena e no mercado são pessoas não negras. E eu acho que isso tem muito a ver com padrão de comportamento. Tem algo errado aí.

Acauam Oliveira – Eu concordo muito com você nessa percepção diversa mesmo do que é um Barroco, de uma inclusão, do Modernismo, para a maneira como a música realmente se organiza. Mas, deixa eu me apresentar… Eu sou o Acauam Oliveira, eu nasci em Marechal, Martina! Meu pai, inclusive, morou aí a vida toda, em Marechal Hermes. Só que daí eu fui para o interior de São Paulo muito cedo. Eu fui criado no interior de São Paulo desde muito cedo, lá em Marília. Depois eu fui fazer universidade na capital e depois, enfim, vim trabalhar aqui em Pernambuco, em Garanhuns. Bom, eu acho que quanto a esse tema maior, o Barroco, quanto em relação a essa questão da pluralidade, na verdade são dois temas que convergem, porque por um lado é uma ideia interessante – essa ideia de que nós somos um país continental, plural, com múltiplas visões, com múltiplas culturas que conversam, que dialogam e que também não se bicam em determinados momentos. Por um lado, tem um Barroco que vai ser legitimado, no interior de uma determinada história da cultura brasileira, da música popular, o Barroco que vai tá lá no Tropicalismo, que vai tá lá no Modernismo, que vai ser recuperado com essa ideia de nação, de mestiçagem. Uma ideia de caldo cultural que forma essa nação a partir de uma pluralidade – preto, branco, índio, tudo misturado – e essa mistura que daria força para a cultura brasileira. Essa é uma narrativa forte. Mas, por outro lado, você percebe que é uma sociedade marcada por processos de exclusão. Então ao mesmo tempo que sim, de fato, tem uma pluralidade muito grande, ao mesmo tempo essa pluralidade é marcada por um processo sistemático de exclusão, em que alguns se beneficiam muito mais dessa dita pluralidade do que outros. É uma pluralidade cultural, mas não necessariamente uma vivência, uma pluralidade dos lucros. Os lucros ficam divididos muito claramente entre quem ganha tudo e quem recebe muito pouco. Então é por isso que a gente pode falar que existe algo dessa pluralidade no Modernismo, mas ela era muito mais plural. Na mesma época da Semana de Arte Moderna aconteceu uma revolução no samba do Rio de Janeiro, nos anos 1930, com o Pixinguinha e a turma do Estácio. No entanto, na história oficial, é muito mais contada a história do modernismo paulista, aquela meia dúzia de sujeitos. Claro que tem a sua importância, mas obviamente não estavam pensando na nação como um todo. Então, existem duas formas muito distintas de se pensar essa pluralidade. A gente pode pensar no lado positivo disso, como no carnaval. Carnaval é essa exuberância barroca, um movimento extremamente popular; por outro lado, se você pensa esse barroco a partir de uma ideia de democracia racial, de pluralidade, integração do Brasil mestiço, do Brasil grande, onde todos estão felizes e contentes construindo a nação, todos juntos de mãos dadas, obviamente que tem uma dimensão ideológica muito forte e carregada nesse discurso. E na música isso é muito claro. A música é um dos ambientes mais plurais que a gente tem na cultura brasileira, mas é também um espaço de exclusão, obviamente. Você tem primeira e segunda classes, e às vezes os gêneros mais populares, como o funk, como o rap, são excluídos. Então em que medida a gente pode falar de uma perspectiva de inclusão, de pluralidade? A gente não pode pensar essa perspectiva sem pensar nas tensões decorrentes desse país que a gente vive. A gente pode pensar a história da cultura, de tudo que se faz da cultura brasileira, a partir desses dois polos, dessa ideia de uma inclusão. Na música isso é muito forte, a impressão de que ela é feita por todas as cores, todos os matizes, pretos, brancos, classe média. Então, você vai ter um movimento de classe média, como a bossa nova e um movimento popular urbano, como o samba carioca dos anos 1930. Mas você também vai ter um movimento rural, do sertanejo e das manifestações de cultura popular tipo maracatu, enfim. Essa é a ideia do Brasil plural-mestiço-barroco. Esse discurso é muito forte, sobretudo até a MPB das décadas de 1970 e 1980. Por mais que tenha uma visão crítica sobre a ditadura, também tem essa visão de que é na música popular que a gente é o Brasil. A partir de um determinado momento nos anos 1980, 1990, principalmente com o rap, com o funk e depois com o slam, vai ficar muito claro que essa narrativa não comporta a totalidade, porque justamente tem esses processos de exclusão que são permanentes. A gente é o Brasil do carnaval, o samba mistura todo mundo, mas quem vai fazer sucesso no exterior com a bossa nova são os brancos, cariocas, de uma região muito pequena da Zona Sul do Rio de Janeiro. Então foram selecionados meia dúzia de sujeitos. A história da música popular é a história da música do Brasil como um todo. O que tem de melhor na sociedade brasileira é resultado dos momentos em que o povo preto, sobretudo, tem a possibilidade de falar e de construir a sua voz, mas sempre essa possibilidade é barrada em termos de democratização real, no momento de dividir os lucros e dividendos, no momento de dividir quem tem o protagonismo e quem não tem, quem vai falar e vai representar e quem não vai. Então é como se a gente continuasse esses processos do período colonial, em que os pretos produzem aquilo que tem de melhor no Brasil, mas, na verdade, quem fica com a principal parte dessa produção são os brancos. Isso tá na cultura e, logo, na música popular também.

MC Martina – Você falou tudo, hein? Caraca! Tenho que dizer que eu não entendia o que as pessoas cantavam na MPB porque o termo era muito diferente e a forma de cantar também. A sonoridade é uma sonoridade diferente, ainda mais quando eu era mais nova. Eu entendia que era uma música pra branco, sendo sincera. Agora eu entendo que não, não é sobre isso, é sobre muitas outras coisas, mas porque eu tive essa informação. Então eu consigo entender o que eles tão dizendo, mas é um outro dialeto. Um outro vocabulário. Mas também existe uma nova forma de se reproduzir a MPB. Se eu pegar algumas músicas dos anos 1970, do Chico Buarque, talvez eu não entenda como entenda hoje, do Gil, do Caetano Veloso. E eu não curtia tanto, até escutar algumas dessas músicas na voz do Criolo, que fez algumas releituras e me ajudou a entrar nesse mundo. E hoje em dia tem outras pessoas na MPB, tipo Doralice, Bia Ferreira, Luedji Luna, Luellem de Castro. Mulheres pretas, pô! Na periferia a música é mais acelerada. O funk aqui no Rio de Janeiro é em 150 bpm, e em São Paulo, um pouquinho mais devagar. Essas músicas, por serem mais velhas, de uma outra geração, chega diferente aqui. Eu acho que a gente que é jovem tem muita coisa pra falar, aí a gente fala muito. Se tu for ver uma letra de rap… é letra pra caraca! A MPB é metade de uma folha e volta várias vezes o mesmo verso e era isso. 

Acauam – Veja, a MPB é uma música que se autointitula Música Popular Brasileira! Então, além de ser a música do Brasil, é a música do povo brasileiro. E daí de repente chega a sua geração, Martina, chega a geração do rap falando “Essa música não é pra todo mundo”. Ou seja, isso que vendiam como música do Brasil, na verdade, tá muito mais localizado numa classe específica, que se comunicava com uma classe específica. Enquanto isso, muita gente criticava o Roberto Carlos, por exemplo, que aí sim é muito mais popular. O que a minha família mais ouvia era Roberto Carlos e pagode. Isso significa que a MPB era muito mais restrita do que acreditava ser. Ela acreditava que tava falando com todo mundo, com todas as classes, com todos os gostos, e de repente ela se reconhece como uma música de uma classe média progressista. É uma classe média ainda menor, porque não é toda a classe média, mas é uma classe média ligada a um certo pensamento de esquerda. Hoje, isso é um baque do qual a galera ainda não se recuperou completamente. Por outro lado, dentro dessa música, acho que não é de todo correto falar que ela é sempre elitizada, sabe? Um exemplo é Jorge Ben, que tocava nos bares. E, no entanto, existe uma disputa pelo Jorge Ben. Tem a galera da MPB, que vai dizer que o Jorge Ben é nosso, o que faz dele o cara do carnaval, do futebol. E tem a galera que vai falar que Jorge Ben é comunidade negra periférica. Jorge Ben falando do Charles, falando do dono do morro, fazendo black music. Existe essa dualidade, mesmo. Quando a MPB percebe isso – na verdade a MPB não percebe, a periferia é que reconhece isso: “Bom, vocês não tão falando pra todo mundo e agora nós temos a nossa voz. Nós podemos construir na nossa voz e agora a gente vai fazer uma voz que nos represente, sem precisar dessa perspectiva integradora que, na verdade, não integra”. Você tem uma história da música brasileira contada até os anos 1980, 1990, quando o rap começa a ganhar força e o funk também, e uma história depois. E, hoje em dia, a narrativa da MPB, essa narrativa de que aquela música tava dizendo respeito a todo Brasil não se sustenta mais, não cola mais. Você não chega e fala: “Ó, essa música aqui tá falando do Brasil como um todo”, porque ela não representa inúmeras realidades. É um choque cultural que possibilita um ganho de qualidade, de conhecimento extraordinário. Depois disso ainda tem esse outro movimento, com Emicida e Criolo. Esses caras tão hackeando a MPB. Milton Nascimento e Jorge Ben são pretos desde o começo. A gente não tá falando da mestiçagem, da integração. Tá falando de uma tradição de escravizados que subverteram as suas condições de negação de existência pra fazer uma das coisas mais extraordinárias do Brasil. É preto isso. Se tão falando que não é, é preciso subverter isso. 

MC Martina – É muito isso. Sobre esses processos de inclusão e exclusão, acho que tem dois lados da moeda. Eu sou artista de rua e comecei a fazer minha correria primeiro na favela, depois eu fui pro metrô, pro bar, pro trem. Fui recitar minhas letras e é muito louco como as pessoas demonstram nitidamente que não queriam nossa presença ali. Essa reprodução, de até alguns preconceitos, quando a gente fazia poética nos transportes públicos, não é nem maldade, não. Não é algo como a pessoa não tem cultura e não entende que a gente tá fazendo cultura. Não confunda o oprimido com o opressor. Eu acho que é questão de, primeiro, cansaço emocional; depois, falta de acesso. Você voltando do trabalho, cansadão, aí vem as pessoas falar várias verdades da tua realidade, tu vai ficar é sem paciência mesmo. Às vezes a pessoa não quer pensar em nada, porque a realidade dela é muito complicada, entendeu? Então, no meu ponto de vista, todas as culturas no Brasil – que é um país tão diverso –, hoje em dia, elas acabam muitas das vezes embranquecidas. E é importante falar sobre esse processo de embranquecimento porque é uma realidade que é desde sempre. A maior parte das apresentadoras, desde sempre, são brancas. Na literatura, se você for jogar no Google, quais são os poetas, artistas, escritores mais consumidos? São autores brancos heteronormativos. Agora que eles viram que estão perdendo – como eu posso dizer? Dinheiro –, que passaram a escrever de forma mais popular. Porque se você fosse numa livraria não dava nem pra entender o que estava escrito em praticamente todos os livros. Tipo assim, nada contra não, mano, porque me amarro num Machado de Assis, mas se eu for ler um Dom Casmurro, eu tenho que ler duas, três vezes pra entender o que tá escrito. A cultura muda, a linguagem muda. Só que esse embranquecimento acontece desde sempre e na indústria também. Se você for pegar, qual é um dos filmes brasileiros mais famosos que foi indicado ao Oscar? Cidade de Deus! Cadê o elenco de Cidade de Deus? Quanto o elenco de Cidade de Deus ganhou no filme? Cadê esses atores? A maior parte dos atores não tiveram oportunidade no mercado de trabalho porque – e eu me boto nesse papel também porque eu faço teatro – as pessoas quase sempre só enxergam a gente pra fazer papel de bandido. Papel de ladrão, papel de empregada, papel de faxineira. Eu sei que é mais do mesmo o que eu tô falando, que parece um discurso repetido, mas é a minha realidade. Trazendo um pouco pra música, a maior parte dos cantores de todos os gêneros musicais, que ganham dinheiro mesmo com isso, são brancos. O cara que criou o slam se chama Marc Smith, ele criou o slam lá na década de 1970, numa área industrial. Era algo como um sarau pra galera que saía do trabalho ir recitar. Mas o slam não nasceu no intuito de ser uma denúncia social. Ele pegou essa característica aqui no Brasil. Se você for ver, o slam existe no mundo todo. Durante a Copa do Mundo de slam o conteúdo dos poetas de outros países é diferente da denúncia social. Tem gente que fala de amor, tem gente que fala sobre imigração. Eu conheço um poeta que é de um país do continente africano, um dos primeiros poetas publicados depois do processo de ditadura. Ou seja, o cara é pioneiro. Mas mesmo o slam é embranquecido à beça! Se você for ver as pessoas, no Brasil, que mais ganham dinheiro com isso, são pessoas brancas. Então não tem porque eu falar uma realidade que eu não vivo. 

Acauam – Tu tava falando, Martina, dos ataques poéticos. De ir apresentar poesia no metrô, no ônibus e encontrar todo mundo cansado depois do trabalho, não querendo se concentrar em nada. Eu queria perguntar como é que você fez, ou você faz, para conquistar o coração e a alma da galera? Qual estratégia, se é que tem uma, pra ganhar o trabalhador mesmo? 

MC Martina – A estratégia não existe, não tem um macete, uma fórmula. Mas, com o dia a dia a gente vai pegando o jeito. Por exemplo, eu me apresentei na barca, no trem, no ônibus, no BRT, na rua e nas escolas. Cada um é um público diferente. Normalmente, a gente pega e dá bom dia, pergunta se tudo bem a gente recitar naquele espaço e as pessoas normalmente ignoram. Se geral não levantar a mão, a gente recita. Tem uns que levantam, que fazem até ataque racista com a gente. Eu já sofri muito racismo no transporte público. Normalmente, a gente tenta recitar as coisas mais leves, entendeu? Pra não fazer o trabalhador ficar transtornado com o sistema. Mas depende do horário. Se você pega o transporte público no feriado, a pessoa tá tranquila, vai curtir o rolê. Se é de noite e tá querendo voltar do trabalho, aí tu já lança uma poesia de amor, uma poesia de mãe, que ele se identifica. No início do dia, geral tá indo pro trabalho, daí se tu manda uma poesia tem que ser pra pessoa começar o dia, aí tu dá um papo de esperança. Aí no meio do dia, já dá uma mensagem cheia de ódio do sistema. “Pô, caraca, meu décimo terceiro não caiu; fui no médico porque passei mal, meu patrão me chamou de vagabundo”. É tudo uma questão de sentir o momento e apostar no diálogo. O slam nasceu na década de 1970, nos Estados Unidos, na mesma década que o hip-hop. A diferença que o slam é um rolê embranquecido. No Brasil, chegou em 2007, por aí. Quem trouxe foi uma moça paulista, chamada Roberta Estrela D’Alva, e aí ela criou o primeiro slam do Brasil, o Zap Slam – Zona Autônoma da Palavra. Depois surgiu o Slam Guilhermina, e em seguida surgiu o Slam do Tresor, esses foram os primeiros slams do Brasil. Aconteceram todos em São Paulo e foram se espalhando para outros estados. Chegou aqui no Rio de Janeiro também por outras pessoas. Só que no início, quando chegou no Brasil, não tinha esse cunho social tão grande, tão enfatizado. Eram mais denúncias sobre feminicídio, questões sobre feminismo, questões populares, nem digo sociais, mas sociais de certa forma. Depois de 2015, 2016, começou a se popularizar cada vez mais. Aí, o que aconteceu foi que a gente, pretinhos, hackeamos a cena, dando um cunho mais social porque falamos a nossa realidade. É interessante falar sobre o slam porque a maior parte do perfil dos poetas é mulher. O que é diferente do rap. O cenário do rap é mais masculino. No slam, as mulheres têm um pouco mais de espaço. E até pra realizar as letras. No Rio de Janeiro, eu realizei a primeira Batalha de Poesia de Favela, aqui no Alemão, e depois vieram outras. Tem o Slam das Minas, que é um slam com recorte de gênero, só pode mulher, é uma outra temática. Hoje em dia já existe uma frente de favelas de slam. Não existe uma organização oficial, mas existe entre nós. 

Acauam – O slam se aproxima muito do rap, inclusive nas origens históricas, mas com uma questão, com um diálogo muito grande de ideias mesmo, de ideologia. Porque o rap, na música brasileira, ele representou uma ruptura radical. Enquanto o Chico Buarque cantava “o meu pai era paulista, meu avô pernambucano, meu bisavô mineiro, meu tataravô baiano, mestre soberano Antônio brasileiro…”, o Racionais cantava Homem na Estrada. Um dizia que nós, todos juntos, somos o Brasil – preto, pobre, branco –, enquanto isso o rap cantava que “ó, os de cima tão lucrando com a morte dos debaixo”, porque é essa visão que o rap coloca. O slam também, muito claramente, coloca essa ideia do que o Brasil significa, o que define o Brasil, antes de mais nada, o Brasil oficial. O Brasil oficial é uma máquina de extermínio, de matar preto, pobre e periférico. Isso define o Brasil. Aquilo que sobrevive, que é o que tem de mais bonito aqui, por exemplo, poesia na quebrada, isso é o que resiste ao Brasil. Não é aquilo que o Brasil dá para o seu povo. O que o Brasil oficial oferece ao seu povo é morte, extermínio e ausência de perspectiva de futuro. O que que tem de bom aqui é aquilo que resiste a essa tragédia. E eu acho que o rap e o slam colocam essa questão de uma maneira incontornável. Depois desse banho de realidade, da força que esse discurso vai ganhando, não tem mais como pensar em formas de integração. Aí você vai ter uma galera de quebrada com uma visão muito do conflito mesmo. Uma visão de que a sociedade é conflito. A cultura brasileira, tudo bem, ela é linda, mas aquilo que tem de positivo na cultura foi criado pela gente, e onde estamos até hoje? Então tem alguma coisa de errado. E não é por acaso que eu acho que esse discurso ganha força dentro do slam também. Pensando em história do rap norte-americano, o rap brasileiro ficou crítico durante muito mais tempo. Eu acho que Racionais é um dos grupos mais críticos da história do rap mundial. Mais radical do que Tupac, e olha que Tupac é Tupac…

MC Martina – Eu também acho, hein?

Acauam – E a galera fica em choque quando você fala isso. O que os Racionais fizeram pouca gente faz. Eu acho que não é por acaso que o slam aqui é tão fortemente marcado pelo discurso de crítica social, mas porque o rap brasileiro trouxe isso. A ideia de “rap é compromisso” tomou uma dimensão aqui que tem em poucos lugares do mundo, porque significa compromisso com a sobrevivência da galera mais pobre. Você falou da questão das mulheres no slam e no rap, eu queria que você falasse um pouco mais. Por que que você acha que tem mais? Porque isso é muito notório. A gente percebe muito claramente que elas têm um espaço muito maior – não que não tenha no rap, mas que tomaram a cena de assalto de uma maneira muito mais radical no slam. No rap parece ter um machismo maior, uma misoginia, não sei. Por que que você acha que isso acontece? 

MC Martina – Não é querer falar mal do rap, não, entendeu? O rap é brabo, mas, como acontece em qualquer outro grupo social, o rap é o reflexo da sociedade. E aí reproduz, sim, muito machismo. Se você for ver os trabalhos que têm na pista, é muito mais fácil, no consenso geral mesmo, você escutar o trabalho – mesmo inconsciente isso acontece – de um homem do que de uma mulher. Isso não quer dizer que o da mulher é inferior, mas inconscientemente ele já enxerga como se fosse. Como se tivessem lugares diferentes. No trabalho é a mesma coisa. Mas acho que a gente tem que se rever. Eu, enquanto MC, eu denuncio essa parada que parece que tudo que nós, mulheres, fazemos tem uma qualidade menor. E não, mano. Não é sobre isso. E outras coisas também, homofobia, todo o grupo da sociedade reproduz homofobia. O rap também reproduz. Eu reconheço, não preciso falar que não. Mas acho que isso é algo que a gente tá revendo. Hoje em dia a gente tem poucos nomes, mas temos aí o Quebrada Queer, tem o Rico Dalasam – Dalasam veio do rap, entendeu? E tem outras pessoas LGBT no rap também. Tem o Mana Brutal, a Bicharte, outras mulheres trans, outras pessoas foda que eu tenho ouvido. Porque só precisa de espaço. A minha crítica não é nem ao cara que tá ouvindo, não. Mas a galera que tá ouvindo precisa se ligar porque a gente consome. Mas a galera que tá nos pagando, que tá contratando, precisa pensar numa política antirracista também. Não é só pra fazer show pontualmente, não. Tem que nos colocar no espaço e em cargos de poder mesmo. 

Acauam – É interessante pensar que a universidade hoje, como um espaço de poder, tem os Racionais quase como um cânone marginal dentro da sala de aula. Tem bastante pesquisa e inclusive apareceu no vestibular da Unicamp. Isso significa que esses espaços estão sendo tomados… Mas é o que eu costumo dizer: o disco do Racionais, Sobrevivendo o inferno, está na Unicamp. Vitória do povo preto, vitória do Racionais, vitória do rap, vitória do slam. Sim. Mas, os pretos estão lá? Os pretos estão na Unicamp? Porque esse movimento de abrir espaço, entre aspas, pra cultura negra periférica, existe na universidade desde sempre, desde que seja como objeto e não como sujeito, não como agente. Se estuda a escravidão desde que a escravidão existe. Desde que tem universidade no Brasil, se estuda escravidão. Isso não significa que os negros estejam na universidade. A gente segue como objeto, não como sujeito. Então é importante celebrar essas conquistas, é importante reconhecê-las e é importante reforçá-las. E dizer que tem que ter cada vez mais um espaço maior, sim. Hoje eu, por exemplo, dou aula de literatura afro-brasileira e educação étnico-racial. Isso não seria uma realidade dez anos atrás. Seria impossível pensar numa coisa dessas aqui no Brasil. E, no entanto, hoje eu estou dando uma cadeira titular de literatura afro-brasileira. Mas, por exemplo, meus colegas, a maioria dos meus colegas professores não são pretos. Tá longe de ser. Então é preciso nunca perder de vista essa perspectiva do conflito. Celebrar as nossas vitórias, celebrar as nossas alegrias. É por isso que eu acho que o slam é incrível. Ele celebra as nossas alegrias, celebra nossa coletividade, mas sem perder de vista que o conflito é constante. E só pode ser assim pra gente conseguir conquistar alguma coisa no Brasil, porque nada é dado pra gente nessa sociedade.

MC Martina – Pra mim, eu tenho até respeito por essas instituições, porque hoje em dia a gente tem um pouco mais de abertura, mas acontece que costumam pensar que a gente só existe em novembro. Aí todo mundo quer falar de racismo. Outro problema é pensar que a gente só sabe falar sobre racismo, como se nós não tivéssemos inteligência o suficiente pra falar de tecnologia, meio ambiente, urbanização, segurança pública. Segurança pública é outro tema que nos chamam pra falar , principalmente quando tu mora em favela, porque eles querem saber como que é ser morador. Eu tenho conhecimento também. Não tenho diploma, pô, mas meu conhecimento é oral, e aí? Eu sei coisas que uma pessoa de doutorado de Harvard não vai saber fazer. Assim como ele também sabe umas coisas que eu não vou saber fazer, cada um tem seu conhecimento. Eu boto fé que o diploma é importante mesmo. Mas por que a minha sabedoria é menos que a outra?  A minha crítica não é nem sobre os espaços, mas enquanto um corpo que realiza atividades pontuais nas instituições culturais do Brasil e que quer humanizar os artistas pretos nesse ambiente. Queria dizer que a gente é muito aberto pra conversar, pra trocar ideia e que é preciso parar de ver a gente como um produto, ou uma mercadoria. Acho que a cultura nunca foi protagonista em nenhum governo, não que eu saiba. Às vezes tem um investimento no esporte, porque esporte também não tem investimento nenhum. Mas se tu for ver, os medalhistas são tudo preto de favela. A gente precisa de política pública. Um governo que nos dê mais edital e que os editais tenham uma linguagem mais acessível pra gente poder se inscrever e fazer mais shows. Que as escolas públicas e particulares nos deem oportunidades também. Conteúdo pra falar nós temos. Algumas letras de slam são uma aula de sociologia em três minutos. E os estudantes vão se identificar, porque a gente tem a mesma idade, ou quase isso.

#39Yes, nós somos barrocosCulturaLiteratura

Horácio Costa conversa com Roberta Ferraz

Foto de Pedro Stephan

Professor de Literatura Portuguesa da USP, Horácio Costa pesquisa o barroco e suas pervivências poético-culturais. Autor de inúmeras obras de poesia, recebeu o Prêmio Jabuti em 2014 pelo livro Bernini. Atualmente na Cidade do México, onde assumiu a Cátedra José Saramago, na Universidade Nacional Autônoma do México, Horácio conversou com a editora de literatura Roberta Ferraz sobre o tema dessa edição da Amarello.

Roberta Ferraz: Horácio, nosso tema é pensar uma identidade brasileira alicerçada numa sensibilidade barroca, você concorda? O que você acha disso?

Horácio Costa: Sim, olha Roberta: escrevi um ensaio chamado “Sobre a visualidade na poesia brasileira”, que está no meu livro de ensaios Mar Aberto. Nele eu falo da questão da imagética na poesia brasileira desde o barroco e situo a poesia concreta como dentro de uma tradição barroca. Recuso a terminologia ‘neobarroco’; falo que nós sempre fomos barrocos. E uma forma de entender o barroquismo ou a barroquidade da cultura brasileira é que a literatura brasileira nasce barroca e, na poesia brasileira, o apelo à visualidade, ao apelo visual, é muito grande. Eu conheço poucas culturas que tenham um apelo visual tão grande no escrito. Por exemplo, temos Gonçalves Dias que escreve um poema que se chama “A tempestade”, que começa com 1 sílaba, vai até 14 ou 16, em estrofes sucessivas, depois diminui até 1 sílaba novamente: assim ele descreve uma tempestade chovendo no papel. É uma experiência imagética, cinemática quase, que é puramente barroca.

Você se refere a uma questão específica da poesia ou das artes de modo geral, dentro desta questão do barroco?

HC: Estou pensando na poesia, mas acho que dá para generalizar para outras coisas. Por exemplo, o Niemeyer diz que a arquitetura brasileira moderna é barroca, ele afirma primeiro pensar nas curvas, depois na estrutura. Ele se vê como um carioca imbuído da sinuosidade tropical; diante das montanhas do Rio diz “eu não sou linear, penso em volumes que são curvas”, etc. Então chegamos a Brasília, onde há um esquema viário muito ortogonal, muito racional na maior parte da cidade; e, na zona monumental, uma explosão de curvas. Estruturalmente falando, o Palácio da Alvorada é de uma complicação…

Estamos situando o barroco na noção do difícil, de assumir o caminho mais complicado…

Do mais sinuoso… primeiro pensar a forma, depois a estrutura, pensar a estrutura depois de imaginar o impacto visual…

E esses tópicos na cultura popular, pensando a questão de uma identidade barroca?

Eu vejo em tudo uma identidade barroca, porque nós somos muito contraditórios. Em alguns aspectos, somos muito conservadores e hipócritas, muito cheios de retórica pra falar. Há toda uma pervivência e uma sobrevivência de uma modalidade antiga de tratamento, ou seja: você faz a Constituição de 1988 e ainda pede “vênia”, chama um de “excelência”, outro de “meritíssimo”… Na Espanha, por exemplo, que é uma monarquia, o Rei é majestad, a princesa é alteza, mas na Câmara todo mundo é tu. No discurso político você não trata o outro de “Excelência”. Precisamos saber se a pervivência destas formas de tratamento tem a ver com apenas a tentativa de preservação ritual de uma sociedade muito caracterizada por castas – não classes, castas.  Nós vivemos uma espécie de ancien regime. Ou se é de fato uma sociedade barroca. Ou as duas coisas juntas.

Como investigar, avaliar isso?

Os índices que a gente tem, sinais objetivos de barroquismo no Brasil são muitos. Primeiro, o carnaval, que tira todo mundo da sua classe social, leva pra rua, apresenta desfiles que são enormemente multitudinários, coisa de multidões. É o país que tem mais carnaval no mundo e se orgulha disso.

Embora não deixe de ser um evento rigorosamente organizado, planejado, que também ilustra o barroco. Acho importante sublinhar isso, desmanchando uma falsa imagem do barroco como elogio do improviso. Estamos falando de um modo de representação que tem uma arguta organização, apoiado na lógica… Pensar o Brasil enquanto elogio da exuberância selvagem não é barroco.

Não, não é. O barroco é extremamente formal, não tem nada de informalidade, é cheio de código. Como é uma cultura muito forte, você não opta por ser barroco; você é ou não é. É o caldo de cultura que é barroco, então você cresce barroco. Pode até vir a ter movimentos antibarrocos, etc, mas quando tem um sistema jurídico como o brasileiro, que não é demais chamar de infernal… Fizemos uma Constituição de 588 artigos, que é uma das maiores do mundo e é bastante liberal, mas tem tanta contradição, e alíneas e anexos, etc., que dentro dela há pedaços que negam outros.

O barroco fala então da explosão da energia frente a um número extremamente codificado. Mas essa explosão também não é total. Voltando ao carnaval, por exemplo: ele não é libertino. Ele é libertário, não libertino. Porque no Brasil não há lugar pra libertinagem de fato, além do livro do Bandeira. O Brasil é um lugar tão codificado que, até hoje, o sexo é papai-mamãe. O corpo também está codificado. No Brasil, há corpos humanos que são liberados, são lindos, mas o que é que eles fazem, quando você chega ao lugar do sexo? Estou falando como homossexual. É um panorama muito conservador. Tenho experiência grande neste sentido, porque saí do Brasil antes da AIDS, e não é possível acreditar que em 40 ou 50 anos tenha mudado tudo. Não mudou. Nós temos a maior parada GAY do mundo e temos, paralelamente, uma sociedade uniformemente homofóbica. Então, não confere.

E isso é barroco.

Isso é barroco. Essas contradições tão violentas não conferem.

Você diria então que esse nosso barroquismo inerente tem mais uma qualidade crítica, de problematização, do que algo que fale de um esbanjamento mais inclinado à alegria, à saúde?

Estamos falando de um sistema cultural que é em si um poço de contradições. As oposições coincidem. Por exemplo: Filipe IV da Espanha era o rei mais poderoso de seu tempo e estava quebrado financeiramente porque fez guerra contra todo mundo, e a Espanha não conseguiu segurar a barra do seu poder. Esse homem, que era ao mesmo tempo super católico – o bastião do catolicismo – se lanhava, porque tinha muitas amantes, vivia em culpa. Na família, eles casavam entre si, e assim foram se degenerando e nunca ninguém se deu conta de que não dava para, ao mesmo tempo, o filho ser sobrinho do pai e primo da avó; coisas que aconteciam nessa dinastia e são patéticas. Estavam se degenerando. Tudo super ritualizado. E ninguém falava em ciência. Em pleno século XVII, Carlos II foi tratado com feitiçaria. 

Falando da Espanha, lembro-me das festas da Semana Santa na Andaluzia, aquele gestual carregado, um pathos no modo de andar, vestir e carregar os Cristos crucificados… há esse lugar importante também pro barroco que é o lugar da morte, né?

Sim, o lugar da morte, o lugar da festa, o lugar da ópera, o lugar do silêncio, o lugar da autoflagelação, o lugar da orgia… ou seja, são coisas tão contraditórias que acontecem ao mesmo tempo e muitas vezes depende do momento do ano ou da classe social ou do feriado religioso… São códigos não totalmente abertos, porque uma característica do nosso barroco ibérico é a hipocrisia e o silêncio: muitas vezes o mais importante não se diz. Como a palavra está muitas vezes submissa a rituais, formas, esquemas retóricos, não é revelação, é encobrimento, e algo pode ser muito importante ou uma bobagem. Na vida interpessoal, o código do não dizer importa tanto quanto o código do dizer. Para nós de um modo especial.

Como se dá este velar, também ligado ao silêncio e à mortificação, na expressão cultural barroca?

Na cultura moderna, em qualquer lugar, o código do dizer, do revelar, do ser sincero, etc, são seus sinais. O iluminismo é isso: você vai falar e o que você falar te leva a responder pela palavra que você está usando, quem está falando é um sujeito que emite aquela opinião, não se trata de uma opinião de classe, embora possa refleti-la; há um eu falando, emitindo uma opinião. Já nos lugares afetados pelo barroco, de modo geral na América Latina e talvez até peculiarmente no Brasil, há um falar que não diz nada, um falar que sequer permite a inferência. Não se gosta que se infira nada, porque assim você tiraria as pistas possíveis daquilo que se quer dizer. E se isso funciona bem na retórica latina de característica barroca, imagina quando transferido à esfera política: temos a hipocrisia como método.

Haveria neste encobrimento uma estratégia não só de sedução mas também uma isenção da própria responsabilidade pela fala? Não poderíamos pensar este aspecto como uma infantilização?

Mais uma vez entramos na questão política. Nós nos constituímos como cultura na qual os homens héteros acima de não sei quantos mil réis são, no Império do Brasil, os eleitores. Na Monarquia Constitucional havia 25 mil eleitores. Era constitucional, havia eleições respeitadas. Mas o Colégio Eleitoral – que não podemos propriamente chamar deste modo porque não era um Colégio Eleitoral – era de 25 mil varões, casados, maiores de 25 anos, com uma renda acima de tanto. Segundo os historiadores, num universo talvez de 5 milhões de pessoas há 25 mil eleitores, 0.5%. Podemos chamar isso de um sistema constitucional de fato, 100 anos depois da Revolução Francesa? Não. Então sim, a nossa constante é infantilizar a população. Todo mundo te chama de Doutor no Rio de Janeiro. São Paulo já não é bem assim: somos uma cultura dentro da cultura brasileira.

Eu sou arquiteto e havia vivido nos EUA muito tempo, onde fiz meu mestrado e o meu doutorado. Lá, sabemos, é o do it yourself. Você faz a sua estante, monta as coisas, limpa sua casa, etc, a não ser que você seja muito rico. Quando comprei um apartamento no Rio, comecei a fazer tudo. Chegava com meus pacotes e subia com eles. Um dia, o porteiro desse prédio de classe média emergente, falou, escandalizado: “Mas o senhor não quer que a gente ajude?”. Ele se sentia fora do papel dele. Respondi: “Claro que eu quero”. Ficou agradecido e me chamou de doutor. É um país em que o porteiro não é porteiro, ele também carrega os pacotes, etc. É um exemplo pequeno, mas estamos falando de um país com códigos escritos que não conferem na realidade, que é muito mais contraditória do que esses códigos poderiam codificar. O código fala de um desiderato, uma projeção desejosa de realidade segundo o espírito ocidental. Para passar do código à realidade é necessária uma revolução de costumes.

E na sua opinião, o Modernismo tentou escancarar esse código, abrindo suas contradições todas, pensando em Mário e Oswald de Andrade...

Sim, o Modernismo nesse sentido foi uma grande limpeza, mas que ficou aquém porque esses caras tinham uma formação de classe média e eram, em geral, funcionários públicos. Eram indivíduos com medo de perder o seu lugar na sociedade, eles tinham emprego, eram pais de família… Não tem veado nem mulher no Modernismo. A Cecilia Meireles, que é excelente poeta e de quem eu gosto muito, é uma andorinha que não faz verão. Eu acho, por exemplo, que o melhor poema dela, “Romanceiro da Inconfidência”, foi escrito como se por um homem. Quando ela lida com a história se masculiniza. Pretendo escrever mais sobre isso, porque é uma ideia que me interessa: na hora da entrada da história, “o” poeta brasileiro é heterossexual e homem, mesmo que ele seja mulher e mesmo que ele seja veado.

Porque essa é a voz autorizada…

Sim, daí eu nos meus poemas procurar falar da história a partir de uma posição assumidamente gay. Procuro falar da história, cada vez mais, mas o meu ponto de vista não é o da historiografia oficial nem da poesia brasileira que trata da história do Brasil.

Podemos finalizar então pensando o barroco como um problema na elaboração de uma identidade cultural brasileira?

O barroco não é um problema, é uma questão. Eu acho que no nosso sistema de valores e de produção de cultura e de referência, o barroco é uma questão que nos cobre muito bem, nos representa muito bem. De um ponto de vista geral, a historiografia literária sobre o barroco no Brasil é muito pobre em relação ao barroco, fica aquém do barroco na série literária. Primeiro que o barroco brasileiro não é brasileiro, é luso-brasileiro. A dificuldade em lidar com o barroco é que, de fato, fica muito mais simples se você não considerar o barroco. Se você vier com uma ideia de modernização, de progresso, etc., sem considerar o barroco, tudo fica simples. O que é que se faz com esse passado, com o fato de que o primeiro livro de poesia publicado por um brasileiro foi, no começo do século XVIII, muito depois dos hispano-americanos, muito depois mesmo, chamado “Música do Parnaso”, que foi publicado em 4 línguas? Tem poemas em português, espanhol, latim e italiano, porque ele queria mostrar que era um poeta culto. E teve que publicar em Portugal. O que quer dizer esse lugar desse monte de gente que escrevia nas Academias e formou uma sensibilidade que era completamente contraditória, nos séculos XVII e XVIII?  O que disso se manteve e qual a autoridade de um pensar modernizador da história que não dá atenção para esses séculos, nesses dois séculos e meio da formação brasileira?

Não podemos deixar de lado a identidade entre o barroco e o Brasil Colônia, com destaque para o lugar da Igreja, essa longa duração formadora da sociedade brasileira.

Sim, chegamos no século XIX achando que éramos liberais, europeus, temos uma constituição e é como se aquilo tudo ligado ao passado colonial não nos dissesse mais nada, não tivesse formado nosso modo de ser e pensar, e basicamente a relação entre escrita culta e vida popular… Com o barroco, o sonho brasileiro de modernização, que foi acalentado a partir do modernismo, simplesmente não se mantém, porque nós não nos modernizamos. O projeto modernizador no Brasil não foi plenamente moderno. O sexo continua sendo papai-e-mamãe. Ainda te chamam de Doutor. Ainda se pede vênia. Tem uma coisa também da língua também, que é só para os especialistas. Você sabe o que quer dizer vênia? Para navegar na maré brasileira, você precisa ser especialista. Então não me venha dizer que o projeto modernizador de fato responde por uma questão brasileira. De alguma maneira, é uma utopia que nos realizou, e nós agora vivemos numa distopia. Os modernistas de 100 anos atrás foram heróis sim, lidaram com um país burro, oligárquico e fizeram o que puderam. Mas há que ressaltar duas coisas: primeiro, pensaram que o passado podia ser obliterado, que porque mudou a regra ou a forma de vê-la, mudou a realidade. Segundo, quando você compara o Modernismo brasileiro enquanto representação da diversidade da população, ele é pífio. Porque neste universo fundamentalmente de funcionários públicos bem-formados não há mulheres, e disso já dissemos. E mais: a cultura literária brasileira é a única que eu conheço – e quero enfatizar que é a única – que chega ao século XXI só agora formando memória de uma palavra homossexual. Por quê? O que quer isso dizer? Todas as línguas neolatinas têm uma tradição de irreverência e diversidade que vem, ou de antes, como o caso da França do século XVIII com o Marquês de Sade, ou, nas demais línguas, ao longo do século XIX e principalmente os movimentos de Vanguarda contêm discursos de homossexualidade, normalmente masculina. Menos o Brasil. Em Portugal tem, foi difícil, mas tem. Tem no México, cuja sociedade é parecida com a nossa. Então, por que não tem aqui? Fui estudar a correspondência do Mario de Andrade, que era um veado não assumido, e que sofreu bullying do Manoel Bandeira. Isso está na correspondência deles. Por muitos anos, não se pode sequer falar da homossexualidade do Mario de Andrade. Até 15 anos atrás era impossível falar disso. E há também a questão racial, de que somos uma democracia racial e pronto. Onde podemos colocar todas essas questões senão no barroco?

Então o barroco pode ser lido como a chave que diz melhor de nosso conservadorismo estrutural?

HC: Sim, é a coisa que não se fala. Por não falar, você silencia. Isso por um lado, mas por outro lado porque os acadêmicos brasileiros não falaram. Acadêmicos brasileiros por algumas gerações não falaram disso. E compraram por face value que o modernismo tinha sido uma enorme conquista. Não deixou de ser! Não estou jogando pedras no meu telhado… Mas a questão é a seguinte: não cumpriu com a totalidade da verdade. Ficaram na verdade deles. Daí eu penso o seguinte: o Brasil é um país? Um só? Eu vejo o Brasil como um Império sem imperador. Espécie de estado pirandelliano, à procura de um autor, que seja um homem bom, alguém que vai dar jeito, o pai da Pátria, etc. É muito curioso que o líder brasileiro mais respeitado da História seja D. Pedro II… O Império acabou há 130 anos e estava decadente! Há muita questão para pensar o Brasil e eu acho que sem a clave do barroco você não vai para lugar nenhum. Há que pensar no barroco, na continuação do barroco, nas condições do barroco, no que é o homem barroco. O momento é positivo porque a pós-modernidade é um labirinto. Você e eu vivemos um labirinto cotidiano, qualquer um que está dentro da tecnologia e da informática experiencia o labirinto todos os dias. Se o grão do barroco é a ideia de labirinto, o mundo como labirinto, e nos vivemos num mundo labiríntico, então agora só nos falta pensar seriamente no barroco.


HORÁCIO COSTA, nascido em 1954, é poeta, gay, tradutor, professor universitário de Literatura Portuguesa no Departamento de Letras Clássicas da USP desde 2001, ensaísta, viajor e amigo querido. Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela USP, realizou mestrado em Artes pela New York University e doutorado em Filosofia na Yale University. Está agora na Cidade do México onde assume a Cátedra José Saramago na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México, na qual foi professor entre 1987 e 2001 e realiza pesquisa sobre “Livros e autores portugueses na Nova Espanha”, lidando com a presença de Portugal no Império Espanhol durante os séculos da colônia, a partir da circulação letrada.

Pesquisador do barroco e suas pervivências poético-culturais, Horácio é autor de inúmeras obras de poesia, traduzidas para a línguas espanhola, inglesa, francesa, catalã, alemã, sueca, italiana, holandesa, macedônia, romena e búlgara. Seus mais recentes livros de poemas foram: Ravenalas (2008); Ciclópico Olho (2011); Bernini (2013), Ravenalas y otros poemas (Buenos Aires, 2013), 11/12 – Onze Duodécimos (2014), A hora e vez de Candy Darling (2016), Duas ou três coisas airadas (2018) e o último, escrito e lançado durante a pandemia de COVID 19, intitulado São Paulo, 24 de março de 2020 (2021) . Com Bernini foi o vencedor da 56ª edição do Prêmio Jabuti na categoria poesia, em 2014. É um dos organizadores da obra Retratos do Brasil Homossexual. – Fronteiras, Subjetividades e Desejos (São Paulo: Edusp, 2010).

A presente entrevista nasceu de uma parceria entre a Revista Amarello e um grupo de estudos intitulado Desbunde: corpo, cidade, canção. Trata-se de uma pesquisa interuniversitária, coordenada por Eucanaã Ferraz (UFRJ), Guilherme Wisnik (USP), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Rafael Julião (UFRJ) e Washington Drummond (UNEB), que busca compreender as relações que se estabeleceram entre os corpos, as cidades e as canções no Brasil dos anos 1970, mais especificamente por meio do conjunto de manifestações comportamentais, filosóficas, culturais e artísticas associadas à ideia do “desbunde”. As questões foram formuladas pelo grupo, em colaboração com Bruno Cosentino, também pesquisador de canção popular e parceiro frequente da Revista Amarello. Em seguida, foram enviadas a João Paulo Reys, o produtor que vem sendo fundamental para o processo de organização e divulgação da obra de Jorge Mautner, que também contribuiu com suas perguntas e colocações para a entrevista que segue. 

PRA ILUMINAR A CIDADE

Seu primeiro disco se chamou Para iluminar a cidade, de 1972. Vamos então começar conversando sobre as cidades pelas quais você passou e a sua história com elas. Onde você mora agora, Mautner? Como tem sido a sua relação com as cidades em que você vive nos últimos anos? 

Moro no Rio de Janeiro e aqui fiquei durante a quarentena, no meu apartamento. A minha relação com as cidades é relacionada primeiramente, e segundamente (risos), aos seus habitantes. Então, nesse Brasil, seja São Paulo, seja Rio de Janeiro, seja Recife, você encontra os brasileiros que gostam de histórias, gostam de anedotas, é o Brasil que me alimentou, desde pais de santo até ateus geniais. Não há limite. O próprio Brasil, ele é o mais original dos países. 

Você passou a sua infância e a sua adolescência entre o Rio de Janeiro e São Paulo, nas décadas de 1950 e 1960. Como foi crescer nessas duas cidades, nesse período?

Uma coisa é que no Rio tinha o mar e em São Paulo não tinha, mas tinha outras coisas que compensavam o mar. As pessoas. A minha história é… por exemplo… vou contar direito, olha só: do um ano de idade até sete anos de idade… Minha mãe estava paralisada. Então quem cuidou de mim era minha babá, que era mãe de santo. Então, durante cinco, seis dias por semana, ela era minha babá e depois ela me levava pro candomblé, onde eu ficava três dias no candomblé. Então, do um aos sete anos, a minha vida era essa. Eu não só participava das cerimônias; ela me botava no colo, os tambores tocando, e ela dizia assim: “seus pais vieram de um lugar de gente muito ruim, muito cruel, mas aqui você vai encontrar os seus amigos e suas amigas para sempre”. Enquanto os tambores tocavam, eu adormecia no colo dela. Depois da cerimônia, ficávamos mais dois dias lá, nos quais eu brincava com a garotada que era toda de etnia negra, mas eram meus irmãos e a gente brincava o tempo todo. E tinha uma vigilância da minha babá e de outros adultos também nas brincadeiras das crianças. Eu nunca vi coisa mais impressionante, educativa e amorosa. 

Aí encerra essa fase e chega São Paulo. Como foi a experiência de mudança da cidade? 

É o seguinte: meu pai era um gênio, mas ele era jogador. Viciado no jogo, roleta, tudo, ia para o Cassino da Urca. E quando ele teve dinheiro para comprar um apartamento para ele, para minha mãe e, naturalmente, para mim, ele foi para o cassino e torrou tudo. Aí minha mãe ficou… Nós tivemos que mudar do lugar em que nós estávamos, porque o dinheiro tinha ido embora, e fomos morar seis meses no Rio, na pensão de um cara chamado Dr. Frankestein. Acontece que nesse lugar, minha mãe já estava com ódio do meu pai e estava nessa pensão um alemão brasileiro, primeiro violinista do Theatro Municipal de São Paulo, Henri Müller. E minha mãe se apaixonou por ele. Se apaixonaram. Aí, de repente, eu tinha um novo pai e fomos para São Paulo. E em São Paulo tudo acontece. Porque, veja só, o meu padrasto, que era o primeiro violino, ele admitiu a presença do meu pai dentro da nossa casa! Então, tinha minha mãe, o ex-marido e o marido atual, e ela mandava nos dois. Então eu fui educado… Eu podia fazer tudo! Receber pessoas. Ideias avançadas de ambos os lados. Primeiro, do candomblé. Depois, deste meu padrasto genial que me ensinou violino, e o meu pai que era realmente um gênio de literatura, de filosofia e de ciência. 

Nos anos 1960, você esteve nos Estados Unidos. Que cidades você conheceu? Nessas cidades você chegou a viver, a conhecer a cena underground americana?

Primeiro eu morei a maior parte em Nova York. Morei no Village, morei em outro lugar. Eu passei uns cinco, seis, sete anos lá, porque eu fui secretário literário do poeta laureado Robert Lowell, que por sua vez foi também do Ezra Pound e tudo. Em Nova York, eu encontrava com o grupo de brasileiros, entre os quais despontava o Neville de Almeida, cineasta. E era impressionante, porque era bem na Guerra do Vietnã, mas tinha uma barraquinha que era para dar dinheiro para favorecer a vitória dos americanos na guerra, isso em Nova York. Ao lado tinha uma tendinha, sei lá, espírita, e na outra tinha uma tendinha comunista…

De apoio ao vietcongue? 

Exatamente. Na mesma calçada. Do Robert Lowell, eu tenho memórias incríveis e eu me admiro porque ele era fascinado pelo Brasil. Então, ele me pedia para contar histórias do Brasil. E tem uma pessoa, que é amiga dele, que é aquela poeta, Elizabeth Bishop…

Tem uma figura, Jorge, que eu acho que é importante nessa cena underground e bastante nova-iorquina, para ficar na coisa das cidades, que era uma figura que era uma espécie de decano dos undergrounds, porque ele era de uma outra geração, mas foi uma pessoa que você conheceu, que era o Paul Goodman, e se você pudesse falar um pouco das ideias dele… 

Ah, sim. Outro grande. Eram pessoas quase cotidianas, o Robert Lowell e o Paul Goodman. O Paul Goodman foi muito, muito, muito, porque ele se interessava pelo Brasil e todas as ideias dele também estão, de certo modo, na minha obra literária. Me influenciou demais porque ele era à esquerda, né? Enquanto o Robert Lowell era da alta sociedade, que era outro mundo. Mas o Paul Goodman foi genial.

Tem uma outra cidade, que eu sei que você esteve, se você puder dar um pouco do relato, que foi Washington DC, que eu me lembro de uma história, se você puder contar melhor, que era um cara do Peace Corps, que você já conhecia do Brasil e você foi para a casa de um senador. Você se lembra dessa história? Um senador e o filho dele ouvia música negra, você ouviu rock em Washington…

Eu me lembro vagamente, mas é tanta coisa… Eu conheci Albuquerque, conheci o Texas, conheci o Novo México… 

Foi quando você foi morar no Chelsea, não foi?

Foi, exatamente! Aí eu morava no Chelsea Hotel. Não era só um apartamento, eram três. Era de um grande amigo meu, que também faleceu, ele era pintor e paraplégico. E eu sou também massagista. E ele me encontrou assim: eu fui massageá-lo e aí começamos a conversar e nos tornamos amigos, e ele abriu aquele mitológico Hotel Chelsea pro meu pai morar lá e a Ruth também. Então no apartamento ao lado desse. 

Essa figura, cujo nome eu não me recordo, mas depois eu sou capaz de me lembrar, ele era um cara muito rico, não era? Ele era mecenas, apoiava artistas… 

Apoiava artistas… Bill Bomar (William “Bill” Bomar, 1919 – 1991). A terceira cidade principal lá do Texas era dele, Forth Worth. Ele era realmente muito, muito, muito, muito rico. Por exemplo, nós recebíamos as pessoas que vinham do Brasil, veio um grupo italiano, e tinha três quadros de Van Gogh, dois do Gauguin e de outros. A tal nível ele era milionário. E eu era massagista e escritor e então nós ficamos amigos. Eu fazia uma massagem que fazia muito bem para ele. 

Há uma cidade que foi muito importante na sua trajetória. De uma certa maneira, a primeira cidade da contracultura brasileira foi Londres, porque lá estavam os exilados brasileiros, que se reuniam sobretudo em torno das famílias de Gil e Caetano. E a sua presença, Jorge, foi fundamental pelo intenso fluxo de ideias e também pelo mais significativo registro das movimentações do grupo no período, o filme O Demiurgo (1970). Você poderia falar um pouco sobre esse período? 

Quem morava em Londres era um amigo meu, do Colégio Dante Alighieri. Um cara genial, o Arthur de Mello, com a esposa dele, Maria Helena. E eu estava em Nova York e ele mandou um recado: “olha, venha para Londres porque Caetano e Gil, por causa da Ditadura, saíram do Brasil e eles estão aqui quase hóspedes”. E aí eu fui para lá, com a Ruth, e então você imagina… Eu, a Ruth (minha esposa), com Gil e sua esposa na época (Sandra), e Caetano com sua esposa na época (Dedé), e o Arthur de Mello Guimarães com sua esposa. Então, a Londres que eu conheci era essa. Todos eles foram ver o festival da Ilha de Wight. Acontece que eu fui lá, mas só fiquei três horas. Eu não aguentei. Mas minha esposa ficou, Gil ficou, Caetano ficou e o grande amigo meu e grande pensador Claudio Prado teve a iniciativa de chegar para os diretores do festival e dizer: “Olha, chegaram os maiores músicos do Brasil. Eles têm que se apresentar”, e ele nem sabia. Então, ele conseguiu fazer com que Caetano e Gil subissem ao palco e foi um estrondo de sucesso. 

Jorge, e lembrando O Demiurgo, no qual você registra muito aquilo em Londres… aquelas casas, as pessoas, o parque, o porto… Você se lembra um pouco disso? Da feitura do filme em Londres?

Eu pouco focalizei em Londres. Eu ligava só para o Brasil. E a história com o Caetano e Gil, como eles estavam exilados, tinha que ser uma linguagem muito alegórica, com frases subversivas encapuçadas ou mimetizadas ou assim… Gil é o Deus Pã, e Caetano é o Demiurgo, o que é verdade. Então o Arthur de Mello Guimarães participou, minha esposa participou, foi uma coisa incrível. E eu fiz isso com o dinheiro que eu tinha ganho da época de Nova York. Então eu que investi tudo para fazer esse filme. E prontamente o Gil, o Caetano e todos os outros que estavam lá deliraram com a ideia e toparam fazer. 

Seguindo novamente no trajeto das cidades, Jorge, você saiu de Londres e aí, logo que você voltou, no início dos anos 1970, você foi conhecer a Bahia. O que você se lembra desse encontro com a Bahia pós Londres? 

Primeiro que eu já era amigo de Caetano Veloso e de Gilberto Gil e suas esposas. Então, de repente, ao chegar em Salvador, eu disse: “Aqui é o ápice de tudo!”. É isso. E o tempo todo, realmente, é o Brasil em sua negritude máxima, de cultura infinita e principalmente de carinho humano, de compreensão, de risadas… Imagina só… A Bahia… É com Jorge Amado… É uma coisa que eu sou baiano por adoção, né? E realmente os candomblés de lá… Por exemplo, Filhos de Gandhy… Gil e eu, nós fizemos uma passeata enorme dos vários sábios da sociedade então incluindo… Enfim, aí nasceu uma amizade eterna, porque eu os encontrei na casa do Arthur, onde meu pai começou a falar dos números, do zero e tudo… 

Este período da virada dos anos 1960 para 1970, no Brasil, é frequentemente referido pelos historiadores como a época do desbunde. Para você, no seu entendimento, o que foi o desbunde e como foi a sua experiência desse momento?

O desbunde foi a democratização. Eu estava muito bem de tudo. De dinheiro… Houve uma reunião na Venezuela e foi lá que eu conheci o grande poeta Robert Lowell, que logo me nomeou secretário dele e então eu pude ficar muito tempo, aliás, sempre, com artistas, filósofos, e o Neville de Almeida… Nós bolamos fazer o filme, que chama Jardim de Guerra. O Neville de Almeida já morava em Nova York e…

Você falou que o desbunde foi a democratização, mas você pode falar um pouco do que eram as atividades de vocês aqui, durante aquele momento, o que que vocês pensavam, quais eram os valores… O que queria dizer essa ideia do desbunde? 

Eu voltei para o Brasil porque eu já era do partido comunista e eu vim e era secretário literário do Robert Lowell, que foi de Ezra Pound e eu fui dele. Mas eu desisti de ficar nessa beleza de plenitude… Porque eu recebi o recado de que era necessária a minha volta para a democratização. Por isso eu voltei. E a primeira conversa foi com Golbery do Couto e Silva. E o Golbery disse: “escreva como será a democratização”. E saíram os Panfletos da Nova Era, que foram editados pelo jornal de notícias e depois publicados em livro. 

Então, isso que se chama de desbunde, esse movimento cultural, artístico, no seu entendimento aquilo ali foi a democratização. O desbunde era um desmonte da estrutura autoritária. 

Isso.  

Tem uma história que eu sei que você conta bem, que é importante pra você… Em uma época em que o direito de reunião das pessoas era muito limitado por causa da ditadura, o fato de que os eventos culturais e os shows eram oportunidades para que as pessoas se reunissem, se encontrassem. Você pode falar um pouco disso? A realização dos eventos e esse papel duplo…  

A democratização se fez através da música popular. Quando eu vim para o Brasil, e o Golbery pediu para eu escrever como seria, era uma ordem e uma permissão dada para fazer justamente isso. Então coincidia ali a necessidade histórica daquele momento e uma coisa que sempre existiu, que era essa cultura brasileira da umbanda, do candomblé, do frevo, do xaxado, do miudinho.

Eu me lembro de um contato importante que você conta que foi a uma feira no Parque Ibirapuera onde você viu o maracatu…

Ah, sim! Isso foi no quarto centenário. Foi a primeira vez que vieram dos estados do Brasil os grupos musicais característicos desses estados e o maracatu do mestre Capiba. “De São Paulo de Luanda, me trouxeram para cá… eeeee” [cantarolando]. Então, quando eu vi isso, eu vi que São Paulo… E quem me revelou como escritor foi o poeta Paulo Bomfim, cuja maior obra é a saga em poemas dos bandeirantes.

O KAOS, A FILOSOFIA E A ARTE

Você fez a trilogia do Kaos nos anos 1960. Deus da chuva e da morte (1962), Kaos (1964) e Narciso em tarde cinza (1966). Mas essa ideia, do Kaos (com K) acaba atravessando as suas canções, o seu filme O Demiurgo e as suas conversas filosóficas. Qual é a história desse seu conceito de Kaos com K? Ele foi se transformando ao longo do tempo? Hoje é outra coisa, é a mesma coisa? 

Kaos com K, começou sendo o partido político. Kaos. E tinha quatro definições. Kaos de Kristo ama ondas sonoras; Kamaradas anarquistas organizando-se socialmente; Kolofé Axé Oxóssi Saravá; e a última cada um colocava a sua. 

Ou seja, era um conceito que já era aberto…

Exatamente isso! 

Mas Jorge, a dissolução do partido do Kaos e o seu ingresso no partido comunista não significam o encerramento, para você, do Kaos enquanto conceito…

E nem para o partido comunista! Eles adoravam a ideia porque eles queriam sair do realismo socialista. Eles queriam essa ideia do Kaos. 

O Kaos tem alguma coisa a ver com a curtição, com a coisa da contracultura da época dos anos 1960, especialmente 1970? Como o Kaos se materializa no corpo, na canção, na cidade?

Olha, o Kaos é tudo. A imperfeição. Não existe uma formiga igual a outra. É tudo. Não tem a generalização abstrata, então o Kaos tem várias interpretações, como eu disse: K de Kamaradas anarquistas organizando-se socialmente; Kristo ama ondas sonaras; depois vem Kolofé Axé Oxóssi Saravá; e a outra cada um colocaria a sua. Então é nessa dimensão de liberdade, multiplicidade e simultaneidade das coisas. Os opostos não apenas se atraem, eles são enlouquecidamente apaixonados. 

Como o Kaos se relaciona com o mistério?

O mistério é tudo, porque tudo é misterioso. O mistério desvelado revela três mistérios. Três resolvidos produzem quarenta, e assim vai. E o Brasil não oficial, o Brasil do candomblé, da umbanda, da quimbanda, dos indígenas… Esse é o Brasil mais avançado que existe. São mentes iguais à de Einstein. E chega a ser grotesco a falta de escola. Mas eu vou repetir uma coisa importante para mim: a principal coisa foi a seguinte… Quando houve a abolição dos escravos que fizeram tudo, Joaquim Nabuco e os irmãos Rebouças disseram: “Não, isso não é libertação de escravos. Tem que haver a segunda libertação dos escravos”, que inclui reforma agrária e educação. Então, reforma agrária para que todos os escravos brasileiros pudessem comprar uma terrinha, ser gente; e depois da reforma agrária, a educação. Do jardim de infância até o diploma universitário, tudo de graça e da melhor qualidade. Esta é a segunda abolição, apregoada pelos irmãos Rebouças e por Joaquim Nabuco. E para impedir que se desse essa segunda abolição é que o exército derrubou o Império. Enquanto o Brasil não fizer isso, exatamente isso, essa segunda abolição, reforma agrária e estudo do jardim de infância até a universidade grátis para todo o povo brasileiro, se não fizerem isso, o Brasil se perderá. Mas eu acho que isso acontecerá. Talvez imposto pelos estrangeiros que vierem para cá…  Olha só, esse incêndio do Amazonas já criou… Eu sei que tem um tratado de que se continuarem a incendiar a Amazônia, virão a China, a Rússia, a comunidade europeia e os Estados Unidos ocuparem a Amazônia. 

A sua abordagem de temas místicos, religiosos ou míticos é uma mirada, é um olhar político-cultural ou é um olhar existencial-metafísico?

É tudo isso junto. As coisas não são separadas. Isso é uma bobagem cartesiana. É tudo simultâneo e nada é igual a nada. É ao mesmo tempo, é simultaneidade. 

Você também, desde antes, sempre abordou muito fartamente as questões de gênero e de sexualidade na sua obra de modo geral – incluindo as canções, as performances, etc. O Kaos com K também se relaciona com esse debate, da identidade de gênero e da sexualidade? 

Para nós era óbvio ululante que qualquer prática sexual é uma obtenção do prazer… Não tem lero-lero em cima disso. Isso é gozado… (risos) E o Brasil tem o carnaval, tem Jorge Amado, Guimarães Rosa… Tem tantos poetas geniais e eu recomendaria que lessem, de Gilberto Freyre, China Tropical

Quando você começou a escrever literatura, você já compunha canções, apesar de só ter gravado discos mais tarde. Como que foi acontecendo essa sua relação, de um lado com a literatura, do outro com a canção popular?

Nunca houve separação. Uma coisa levava às outras. Os músicos adoravam e adoram histórias de política, histórias de literatura, histórias da mitologia. Só que não chegam a conhecer. Só que quando conhecem são essas conversas que interessam todo mundo até hoje, pessoas desde o Robert Lowell, Gilberto Gil, Caetano, Luiz Melodia, Wally Salomão… É tanta gente que mora dentro de mim, porque a primeira categoria de tudo é o amor. É a solidariedade sem palavras. E é o mais profundo dos mistérios. 

Dos inúmeros livros que você escreveu, gostaríamos de destacar o Fragmentos de sabonete (1976), e o Panfletos da Nova Era (1980), pois nos dois você elabora uma defesa da canção popular brasileira aglutinando tanto a velha guarda – Ismael Silva, Wilson Batista –, quanto os então novos compositores – como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil – ou os ainda novíssimos, como em sua defesa do trabalho de Luiz Melodia. É intenso o debate sobre a canção brasileira no período através de livros e artigos em revistas e jornais de grande circulação. Como você vê essa relação da canção popular com o debate público? A que você atribui essa posição de destaque que a canção tem nos debates midiáticos sobre a cultura daquele momento e ainda de hoje? 

Porque ela, além da letra, transmite a música e permite a quem a ouve ter suas próprias ideias encadeadas com o que a letra está falando. E mais ainda, tudo é música. Por exemplo, Einstein, quando não conseguia resolver um problema, pegava o violino e tocava, dormia e nos sonhos surgia a resposta. Assim que é. Então, a música ao mesmo tempo é um carinho, uma compensação, é o fim das mágoas, a superação delas, reconhecendo-as mas transfiguradas de que alguma coisa vai melhorar. Alguma coisa foi muito importante. Essa divisão das coisas interessa mais ao mercado capitalista, só isso. 

A gente debate a literatura, as canções, a política. E a filosofia? Entra aonde no meio disso? Como você acompanhava o que estava saindo, o que era relevante? 

Eu leio; li muito. Não se pode ler tudo, mas eu li os livros principais da cultura russa, da cultura alemã, da cultura francesa, da cultura portuguesa… e aqui dos grandes autores brasileiros, que estão até, não só na literatura, mas nos batuques, no candomblé, eles estão na umbanda. Então o que dirige o Brasil é isso. Na verdade, o governo e as decisões de cima são frágeis e pálidas intenções, são de uma fraqueza monumental. E o medo de que os escravos… Porque para mim não houve abolição da escravatura, tem que ter a segunda abolição, se não, não é ainda. Ainda é um país de escravos.

O seu primeiro instrumento musical emblemático é o violino, e não uma guitarra elétrica, como foi de muitos. Você começou a contar a sua história com esse instrumento, mas você poderia desenvolver um pouco mais? 

Foi como eu contei. Nós estávamos no Rio de Janeiro. Eu acabara de fazer sete anos e meu pai jogou todo o dinheiro na roleta e perdeu. Minha mãe ficou furiosa porque nós perdemos o apartamentozinho que era alugado e fomos morar na pensão do Dr. Frankenstein. Lá a minha mãe conheceu o meu padrastro, Henri Müller, primeiro viola do Theatro Municipal de São Paulo. A música era totalmente filarmônica e clássica. O violino foi aos sete anos de idade, dentro de casa. Porque ele se casou com a minha mãe e permitiu que meu pai morasse junto. Então era meu pai e meu padrasto na mesa de jantar e minha mãe mandava nos dois. 

E aí outra coisa pela qual você é conhecido, para além do violino, é enquanto performer de música, é o seu canto. E o seu canto tem, como a sua leitura de poesia inclusive, uma dicção muito particular. Qual é a história de Jorge Mautner cantor? Como que isso veio acontecer? Como você desenvolveu esse talento?

Eu tinha verba aberta e ilimitada para comprar livros e discos, e o meu padrasto fazia bico. Além de tocar no Theatro Municipal, ele ia para as rádios acompanhar Aracy de Almeida e tudo. E eu ia com ele. Então eu conheci Aracy de Almeida, Blecaute, Jorge Veiga, toda a turma e íamos às vezes, por exemplo, para Atibaia, ou um lugar desses de excursão… Eu ia junto! Eu fui no colo da Aracy de Almeida. 

A sua literatura e até mesmo a sua discografia, a despeito da sua riqueza e da sua importância, acabaram se colocando um tanto quanto à margem do que seria o mainstream comercial ou até mesmo acadêmico. Talvez por isso, houve certa insistência crítica no uso do termo marginal para se referir a você. Como você lidou, lida com esse rótulo de marginal e a que você atribui essa hipotética marginalidade?  

Na verdade, é um elogio máximo. Um marginal tinha coragem de ser diferente e, no entanto… O marginal é o que está à margem do que a caretice da lei e da ordem pregam e que, às vezes, é usado para tirania. Então eu fico, logicamente, muito: hay gobierno, soy contra

Em contrapartida, essa questão da marginalidade, algumas de suas obras se tornaram um estrondoso sucesso como, por exemplo, especialmente, sua parceria com Nelson Jacobina, “Maracatu atômico”. Quais têm sido os seus sucessos ao longo da sua carreira artística e a que você acha que se deve o fato de essas músicas tornarem-se sucesso? Seriam elas menos marginais? 

Não, não. São intensamente marginais. Elas são proféticas, são atuais. A palavra encaixa mais logicamente a ideia; na música, ela continua dançando. Então a música é a coisa mais atávica do ser humano, porque são as batidas do tambor do coração. Quando você se apaixona tum-dum-dum [imita o som do coração acelerado] e começa por aí… Os piu-pius de pássaros, os assobios de tribos, e isso começa a ter um encantamento próprio. E a música nos leva para a quarta dimensão e para todas as outras dimensões. 

Há duas obras que celebram parcerias importantes na sua vida, que é o show, que depois virou o disco com o Gil, O poeta esfomeado, de 1987, e o disco com Caetano, Eu não peço desculpas, de 2002. Foram parceiros importantes, são obras importantes. O que você tem a dizer sobre esses momentos?

São meus irmãos. São ápices. São momentos de alegria eterna, de esperança e de muita alegria, amor e paixão.

O seu trabalho mais recente, em disco, se chama Não há abismo em que o Brasil caiba (2019). Esse título tenta disputar uma narrativa sobre o Brasil. Como esse disco foi pensado e o que que veio primeiro? As canções ou o título?

Eu não sei te dizer isso, se foram as canções ou se foi o título. Eu acho que não teve separação. Brota naturalmente. Não tem, digamos, uma lógica aguda para definir… Não tem isso. É como o Brasil. É amálgama. É mais do que mistura, é amálgama. 

Você, na sua obra, no seu pensamento, você falou de maneira densa sobre duas coisas: uma coisa da experiência íntima, da autorreflexão, desse tempo; do outro lado, as questões da tecnologia, dos seus avanços, da cibernética, das máquinas. Se olhando para o mundo hoje, o mundo capotado, o mundo que estamos, das telinhas e dos barulhinhos, e de um Donald Trump… essas coisas são compatíveis? A experiência íntima, da reflexão, do autoconhecimento, e ao mesmo tempo esse mundo acelerado da capotagem?

Eu vou te dizer que o mundo da capotagem pode ser o nosso Armagedom, porque as coisas estão totalmente atadas ao interesse monetário. Mas a um nível como nunca se viu. Agora, ao mesmo tempo, nunca houve tamanha liberdade também. O que eu lamento é o fato de não ter leitura. Ela ser substituída por imagens e bombardeios propagandísticos e por tudo, causa um enfraquecimento do espírito humano. Agora, veja bem, essas máquinas de comunicação… Hoje ninguém mais lê livro. Isso é o maior terror.

Mas tem uma questão sobre as máquinas de comunicação, que você já falou, que seria interessante você recuperar, que é quando você falou que, da megacorporação multinacional até a quitanda da esquina, ninguém resiste à sugestão da máquina.

Exato. 

Isso é ruim?

Não é ruim nem bom, porque depende. Se a máquina estiver irradiando algo que seja bom, seja instigante…

Depende da sugestão da máquina então? Porque eu lembro que quando você falou isso, primeiro você falou assim, que por isso todo mundo pensa que sabe – por causa da sugestão da máquina –, mas não sabem, porque não sabem como aquele resultado veio até si…

É isso aí. São várias coisas, muitas vezes opostas. Os opostos se atraem. Tudo o que existe é caos permanente. A ciência, os cientistas comprovaram, um exemplo de caos que eu gosto de dar é o seguinte: um buraco negro engole uma galáxia. O outro buraco negro engole uma galáxia, mas cria uma outra. Qual o motivo? É a mesma coisa que gente tá fazendo aqui. Não é fantástico?

Você tem escrito, composto, pensado, criado algo novo nos últimos tempos? O quê? 

O tempo todo. Às vezes jogo fora. A minha vida é essa: eu fico fazendo arte, em toda hora. Arte no sentido de brincadeira e arte o tempo todo. É intrínseco. Eu agora tô vendo aquela cortina balançando, falando com a gente, mandando um “olha nós aqui”, olha essa árvore que linda! Se entra ali um gatinho, um cachorro, eu enlouqueço. Eu falo com eles.

PRÉ, PÓS E NEO TROPICALISMO

Você começou a compor canções ainda nos anos 1950. Encontra-se com Gil e Caetano no final dos 1960 e começa a lançar discos em 1970. Caetano cita você em Sampa (“seus deuses da chuva”), e em Verdade Tropical ele cita você também como uma referência importante para ele. Você, Jorge Mautner, é um pré-tropicalista, um tropicalista ou um pós-tropicalista? 

Tudo isso. 

Há, para você, alguma diferença entre o que foi o tropicalismo, ser tropicalista e um pós-tropicalismo? 

Não, essa diferença é uma abstração para parecer lógica. Acabou.

Você sempre defendeu a importância de olharmos para as pautas das identidades. Essas questões identitárias parecem, hoje, ter centralizado definitivamente o debate contemporâneo. As coisas aconteceram do jeito que você imaginava?

Sim e não, em parte… Eu diria que 90% sim e está se encaminhando para isso.

No sentido de que houve bastante emancipação? 

Houve, é. E as próprias máquinas, quando elas se tornarem superiores àqueles que as manejam, vão ter esse nosso pensamento mais humano. As máquinas serão mais humanas do que os seres. 

Mas, por outro lado, há também especialmente nesses últimos anos um grande retrocesso, né, por exemplo, com um presidente do Brasil que é abertamente racista e machista.

Aí, realmente…

Isso já estava no campo das suas expectativas? Você imaginava que isso aconteceria?

Temerosamente sim. Sim, porque, veja bem, eu sei que se continuarem a queimar a Amazônia virão as tropas da China comunista, dos Estados Unidos, da Rússia e de toda a comunidade europeia ocuparem a Amazônia como ponto central, vital, para respiração e a vida do planeta. 

Desde os anos 1970, há um encontro entre contracultura e a indústria da cultura e do entretenimento. Do mesmo modo, essas pautas da identidade – as questões da negritude, da defesa do movimento LGBT, do movimento feminista – aparecem hoje mais ainda sob os holofotes das editoras, dos serviços de transmissão de canções, do serviço de audiovisual, do cinema. É uma relação ambígua?

É o sucesso das ideias. É a verdade inserida nessas coisas…  É direto. 

A tese da originalidade do Brasil enquanto amálgama de raças e culturas, que tem um parentesco com as ideias defendidas pelo Gilberto Freyre, a construção imaginária e discursiva desse país miscigenado racial e culturalmente, alegre e liberto sexualmente, essa tese está hoje sob profunda crítica desses mesmos grupos. O investimento seu na ideia do amálgama cultural precisa ser revisto? Você pensa criticamente sobre isso, diferente de como pensava? 

Não, penso cada vez mais aquilo que eu pensava. 

Mas você, hoje, tem um olhar muito mais crítico… Por exemplo, a insistência com a qual você fala da segunda abolição, da importância de resolver a permanência do racismo nas relações brasileiras. Isso, em si, já não é uma relativização daquela ideia muito mais cândida do Brasil enquanto encontro e mistura das raças? Não tem um papel importante para você, no seu pensamento, reconhecer que há um conflito e ele precisa ser lidado? 

Esse conflito precisa ser lidado. A proeminência desse sentido veio para ser decapitado. A coisa mais importante é a segunda abolição dos escravos. O Brasil ainda é o país que tem escravos e bem mal disfarçados. Então tem que ser isso, que é nosso amálgama. Isso tá em Guimarães Rosa, isso tá em todos os lugares. É o Kaos com K….

Mas o fato da mistura, Jorge, ela não afasta a realidade de que, por exemplo, o Brasil vive com uma grande parte da população, esta principalmente negra, sujeita a… 

A maior parte é negra e os índios são esmigalhados e são quase escravos. Ou seja, uma coisa não exclui a outra. Não é pelo fato de que o Brasil é um lugar que culturas e etnias se amalgamaram, isso não deixa de… Olha, o governo não governa. Ele é pequenininho. É tudo blefe. Por exemplo, já na época da escravidão, quando um quilombo se tornava muito forte, eles iam, a capitania, “olha vocês estão muito fortes, vocês têm que se mudar”, e o quilombo se mudava para 400 quilômetros e assim foi feito o Brasil. O único que se recusou foi o Zumbi dos Palmares, embora o pai dele concordou em mudar o quilombo. Mas ele insistiu.

Ou seja, mesmo a sua fé na ideia de amálgama não te impede de perceber que o racismo, por exemplo, é uma realidade grave no Brasil. 

Nossa senhora, claro! É. Aí é a história de poder, né, pura e simples. Imagina, os brancos geniais como Noel Rosa iam ficar com os negros, né? Fazer samba. Os outros que não tem essa… não precisa ser cidadão negro para ter emoções. É a igualdade que nós estamos falando. Egalité, liberté, fraternité. Isso o Brasil puxou raríssima exceção, nenhum país outro se compara ao Brasil, que é um continente e que foi feito assim e tem tudo isso. Agora é rápido, por causa da tecnologia.

O fortalecimento desses debates e também das redes sociais, também deu voz a esses grupos que eram, e ainda são mantidos de maneira subalternizada e que agora se manifestam, por vezes de forma incisiva, sobre os objetos culturais contemporâneos, que passam a ser olhados e julgados por esse prisma. Como você vê as dimensões progressistas ou autoritárias dessas novas manifestações públicas? Parecem em algo com a patrulha dos anos 1960, 1970, ainda que em outros termos, ou são completamente diversas? 

Ambas as coisas. O politicamente correto é politicamente correto. É óbvio, né? Pelo amor de Deus. Somos todos iguais. Não tem ninguém superior ou inferior. Essas categorias são categorias do escravagismo. São pensamentos de Adolfo Hitler… 

Ou seja, as pessoas que pertencem a grupos que são discriminados às vezes violentamente no Brasil, elas acompanharem criticamente o que é produzido e denunciarem o racismo, o machismo, você considera isso…?

Isso é mais do que certo. Isso é mais do que urgente. Isso vai resultar nas conclusões que eu cheguei de pacificação, digamos, de vida humana, de consideração ao próximo seja ele anão, gigante, negro, mulato, índio, sei lá. 

Todo tipo de gente…

É claro. E também os animais. Isso se estende… É um processo de inteligência lógica. O que se faz… Agora, o problema que eu vejo é o perigo da humanidade, é o que você tá vendo hoje… O coronavírus é uma tecnologia que serviu para eleger o Trump. O Zuckerberg – é montanha de açúcar o nome dele –, essa gente… E depois outra coisa, a coisa mais aterrorizante. Vou te dizer o que aconteceu: ninguém mais lê livros. 

Ficou célebre sua afirmação de que “Ou o mundo se brasilifica, ou vira nazista”. Nos últimos anos, estamos assistindo à emergência de um Brasil muito mais autoritário, violento e conservador do que esse Brasil que você defende. Como você vê essa tensão entre esse Brasil que você acredita, tem fé e ama, e esse Brasil que está se revelando, que é escroto, machista, autoritário, violento… 

É uma guerra aberta, declarada e clarissimamente identificada. Não tem nem entrelinha. Aí é claríssimo. Se eles não fizeram a reforma agrária e não deram educação, do jardim de infância até a universidade de graça para todos… 

Você pensa na morte? Você tem medo da morte? 

Olha, claro que eu tenho medo da morte. Não gostaria de morrer. Mas é inevitável. Você se rende aos fatos. A velhice torna você mais fraco, mais cansado. Já é um encaminhamento para isso. Mas haverá uma época em que os seres humanos vão viver mil anos, dois mil anos… 

Você falou mais cedo, enquanto a gente conversava, sobre como a sua cabeça e o fato de criar poeticamente, para você, é uma coisa ininterrupta. Nesse seu imparável fluxo de consciência e criação e pensamento, a morte entra? Ela habita seus pensamentos, seus sonhos?  

A morte sempre está presente. Se existe o nascimento, existe a morte. Em tudo. Para as hortaliças. Em tudo, tudo, tudo. Os astros. Um buraco negro engole uma galáxia. Matou a galáxia. O outro buraco negro engole uma galáxia, mas fabrica uma outra. Essa é uma pista. (Risos). 

Gostaria que você contasse a lembrança emocionalmente mais marcante da sua vida. 

Ah, meu Deus! Meu pai. Minha mãe. Meu padrasto. Minha babá, Lúcia, que era mãe de santo. Os meus amigos, minhas amigas. É difícil, hein, porque para a pessoa sensível todos os momentos são marcantes. Eu não posso dizer é esse, é aquilo. Não. É tudo. Não dá para diferenciar desse jeito. Isso é um equívoco. É tudo, mesmo porque por mais que você faça as coisas pensando e preparando, tem sempre o inesperado. E o inesperado ele é muito forte. Então sempre tem alguma coisa inesperada. 

A realidade pode, muitas vezes, superar a ficção. Revendo as Figuras, imagens capturadas pelo olhar de figurinista de Marcelo Pies, essa constatação é flagrante. 

O olhar treinado para vestir personagens, para transformar o corpo do ator em instrumento a favor do seu personagem, aqui faz outro caminho, busca e encontra personagens na vida da cidade. Conhecendo Marcelo, não posso deixar de imaginar sua própria figura longilínea e elegante, esse “dândi” de humor fino, buscando suas imagens pela cidade, perscrutando-a com seu olhar minucioso e preciosista. E encontrando, tal qual os viajantes de dois séculos atrás, Figuras em que roupas e vidas se interpenetram criando uma narrativa própria, ímpar. Através das camadas do vestuário ou de sua ausência, as histórias vão se revelando em não-palavras. 

A voz da matéria, tecidos e texturas, que se envolvem ou se afastam, o som das cores vivas ou mortas e das formas e corpos, principalmente os corpos, pois estamos falando de roupas que têm vida, roupas encarnadas. A força das Figuras é a roupa naquela pessoa específica, o olhar perdido que se soma à roupa, o cabelo arrumado ou em desalinho, o gesto. 

O Rio foi atravessado e as figuras, capturadas pelo olhar de figurinista do Marcelo – este olhar de aventureiro disposto a viajar no tempo e no espaço, atravessar diferentes classes e categorias e, por isso, livre das amarras do bom gosto, do certo e do errado, tendo como convicção apenas a relatividade de tudo e assim aberto para o belo que reside no ingênuo, no estranho, no triste. Capaz de captar a alegria do prazer de ser, como nos habitantes de Copacabana. 

Ah, Copacabana! Onde a praia é onipresente, invadindo o asfalto das ruas por meio da movimentação dos corpos desnudos beneficiados pela proximidade com o mar. Um homem, tatuado com o grafismo da legendária calçada dialoga com as gordurinhas de alguma passante que grita: “que se danem, eu estou viva!” E a septuagenária sorri com seus dedos pequenos e inadequados shorts cor-de-rosa. Copacabana, viveiro de mulheres sem idade, transformadas pelo sucesso de intervenções cirúrgicas, para quem os critérios de adequação, as faixas etárias, desapareceram junto com as rugas. Montadas em estampas de onça, caminham. 

Be casual” é outro slogan copacabanense capturado por Marcelo. Pode-se tudo em Copacabana. Delicioso desleixo e seu contraponto elegante. A senhora, num chemise clássico, nos tons dos manuais franceses, fragmento de um tempo que se foi, antes almoçaria na filial da Colombo, na então chique Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Hoje, degusta um sanduíche em uma franquia de fast food

Aqui está mais vivo do que nunca o ditado “quem foi rei nunca perde a majestade”. 

Crochês e turbantes revelam velhotas intrigantes, cujos armários pararam no tempo. Vestidas com peças de quarenta anos atrás, a própria juventude de suas usuárias é perpetuada na paralisia do modelito eterno. Ridículo ou involuntariamente criativo?

Um ponto de vermelho explode: em uma cadeira de rodas, sentada, uma senhora e sua cachorrinha, em seu colo, irmanadas no vestir. Figura poética. Como aquela que o batom vermelho transborda no rosto crivado de vida – e por que não? As imagens do Marcelo reiteram um sonho, digamos, tropicalista, onde tudo pode ser divino e maravilhoso. 

Nesta exposição, somos convidados a nos retirar dos nossos próprios umbigos e a nos debruçar sobre o outro. 

Aqui, o que vale são as Figuras, seu impacto e sua despudorada humanidade. 

O selvagem urbano, selvagem na sua capacidade de se recriar, usando cores, peças de roupa que protegem e revelam, por exemplo, a alegria de um piercing de falso brilhante na barriga, tornando o lixão menos inóspito. A beleza da não-beleza, a beleza de um moranguinho, estampado em uma t-shirt, em um cenário de lixo. Unhas cuidadosamente desenhadas fazem do corpo o espaço do sonho. Bravas Figuras cuja força estética avaliza a transcendência do ato de catar lixo. Mulheres-maravilha dos restos da cidade. 

Figuras que se criam dentro do quadro de suas, muitas vezes, parcas possibilidades, reiterando a infinitude criativa do aparentemente limitado. 

Homem parangolé, homem estopa, homem do chapéu embrulhado em jornal. Os mendigos e suas digníssimas assemblages, cujos corpos são a própria casa-casulo, em um mix cujo resultado estético é surpreendente e inspirador. Uma indiana drapejada em cobertores? Tem o olhar patético e as roupas sujas, mas usa colares. Vetores simbólicos de proteção ou o deleite do enfeite que distrai o podre?

O corpo que tudo carrega, vestes que extrapolam o vestir, vestir que se coisifica em trecos, tralhas, em uma metáfora da vida. Serão essas sobreposições em parte aleatórias ou possuem também uma escolha, um critério de decisão? Quantas questões levantam as Figuras

E quantas vezes passamos por tudo isso e não nos detemos?

Figuras: a invenção de si revela o binômio do olhar e do ver de Marcelo e seu prazer de encontrar personagens nas ruas e se deparar com o imenso potencial de ficção do mundo real.

Pedinte vestida para pedir. Figurino adequado, pensado? Trabalhadores prontos para a ação: o engraxate, de sapatos, – ironia – calçado de tênis. Panfletar, vender, carregar. O dono do burro sem rabo flagrado com um guarda-sol japonês. Objetos inusitados que interrompem o cotidiano, poetizando a imagem antes prosaica. Senhores tão cientes de sua própria elegância que terminam por transformar o que poderia ser considerado como equívoco em um tremendo acerto pessoal. Transeuntes, religiosos, hábitos fazendo monges, estrangeiros e estranhos, todos navegantes do pulsar do Rio de Janeiro do século XXI.

Desfile antropológico de figuras repletas de história, que um dia serão, certamente, fontes de pesquisa para olhares do futuro, quem sabe, desvendarem o passado. 

#39Yes, nós somos barrocosCulturaSociedade

Carnaval, a epopeia da comunidade serrana – Diálogos com a obra Serra, Serrinha, Serrano: O império do samba

por Priscila Carvalho

Em 23 de Março de 1947, na casa de Tia Eulália, situada à rua Balaiada, em Madureira, fora fundada uma das principais agremiações do carnaval carioca, o Império Serrano. A busca incessante por espaços onde a democracia, a liberdade e a coletividade fossem respeitados foi a motivação para que Sebastião de Oliveira, o Molequinho, e Elói Antero Dias, o Mano Elói, construíssem ali, naquele momento, as diretrizes que acompanham até hoje este então menino de 47. 

“Uma escola de samba” é o slogan do Império Serrano. Essa frase simples, porém, poderosa como a coroa imperial, traduz o empenho da comunidade em ensinar a arte do samba para os herdeiros do legado deixado por grandes mestres, tais como os já citados Mano Elói, Molequinho, Tia Eulália e outros tantos, como Vó Maria Joana, Tia Maria do Jongo, Silas de Oliveira, Wilson das Neves, Beto Sem Braço, Mano Décio e Dona Ivone Lara.

O antropólogo Roberto da Matta define o Carnaval como um ritual de inversão, uma alternância entre o cotidiano e o extraordinário. É na perspectiva dessa alternância, ou melhor, na concomitância entre estas duas realidades que Rachel e Suetônio Valença observaram e acompanharam de perto a trajetória do Império Serrano em todas as suas nuances: do dia a dia ao apogeu na avenida. Tais observações deram origem ao livro Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba, publicado originalmente em 1981 e reeditado em 2017.

Rachel Valença esclarece que não escreve do lugar de pesquisadora. Sua escrita se dá a partir das experiências de uma imperiana apaixonada. Tão apaixonada que foi ritmista da bateria da escola, atuou como diretora cultural e como vice-presidente da agremiação. Sua posição durante a construção da obra foi o de coletora de grandes histórias e amplificadora das vozes de personagens importantes. Subvertendo a ordem do cânone acadêmico, quem ensina é o samba.

Exuberância e suntuosidade, marcas estéticas do reizinho de Madureira

Suntuosidade, grandeza, exuberância e até uma certa pompa são marcadores estéticos importantes quando contemplamos uma majestade como o Império Serrano. 

Roger Bastide (1945) descreve a arte barroca no Brasil como “mais do que uma arte para decorar igrejas, mas, antes de tudo, uma maneira de viver”. Vemos muito desse viver barroco nas narrativas desenvolvidas pela escola para a avenida, porém, também a testemunhamos no dia a dia, na devoção quase religiosa desta comunidade pelo seu território e pelo seu pavilhão.

A grandeza alinhada à riqueza de detalhes, característica da arte barroca, se faz presente no visual e na sonoridade da Sinfônica do Samba, como é conhecida a bateria imperiana. 

O músico Edgar do Agogô ampliou o instrumento de origem africana, que tem originalmente duas bocas, acrescentando mais duas, criando assim o Agogô de quatro bocas. Esta alteração trouxe a cadencia que se tornou a identidade sonora da escola.  

(Edgar do agogô – criador do agogô de 4 bocas)

Serra dos meus sonhos dourados, samba de Carlinhos Bem-Te-Vi é uma poesia de amor e exaltação, que carrega elementos clássicos da literatura barroca, tais como o cultismo, ou seja, a exploração das sensações e emoções. 

Rachel e Suetônio Valença fizeram importantes observações sobre a estética e as narrativas de epopeia presentes nas letras de Silas de Oliveira no capítulo A suntuosidade me acenava.

“Quero sentir nas asas do infinito
Minha imaginação
Eu e meu amigo Orfeu
Sedentos de orgia e desvario
Cantaremos em sonho
Os cinco bailes da história do Rio”

Cinco bailes da história do Rio, samba de 1965, reúne os mecanismos necessários para trazer ao público toda a exuberância pretendida pelos compositores. Além de um samba imponente, o desfile de 1965 levou para a avenida uma arte até então inédita: as alas coreografadas, com a pioneira ala Sente o Drama.

“Ao erguer a minha taça
Com euforia
Brindei aquela linda valsa
Já no amanhecer do dia
A suntuosidade me acenava
E alegremente sorria”

Aos verdadeiros heróis da liberdade

Ruptura com padrões autoritários, resistência e luta por direitos são características estruturantes para a construção da identidade do Império Serrano. Tais características estão fortemente presentes, também, nas histórias de suas grandes estrelas.

Silas de Oliveira, nascido em uma família evangélica, precisou se afastar dos pais religiosos para que pudesse se dedicar à sua arte, o samba. Outra história de luta por igualdade é a de Dona Ivone Lara, a mulher pioneira na assinatura de um samba enredo, tendo composto junto à Bacalhau e Silas de Oliveira o antológico samba Os cinco bailes da história do Rio.

Um incontestável marco no que diz respeito ao enfrentamento e ao posicionamento político no Império Serrano é o samba de 1969, Heróis da liberdade

Passava noite e vinha dia
O sangue do negro corria
Dia a dia

De lamento em lamento
De agonia em agonia
Ele pedia o fim da tirania

Lá em Vila Rica
Junto ao largo da Bica
Local da opressão
A fiel maçonaria com sabedoria
Deu sua decisão, lalala

Com flores e alegria
Veio a abolição
A independência laureada em seu brasão

Ao longe, soldados e tambores
Alunos e professores
Acompanhados de clarim
Cantavam assim

Já raiou a liberdade
A liberdade já raiou

Essa brisa que a juventude afaga
Essa chama
Que o ódio não apaga pelo universo
É a evolução em sua legítima razão

Samba, meu samba
Tem a sua primazia
Em gozar de felicidade
Samba, meu samba
Leva essa homenagem
Aos heróis da liberdade, oh

Liberdade senhor

Durante seu depoimento para o documentário Menino de 47 – A resistência do samba, Rachel Valença descreve Heróis da Liberdade como o marco do fim de uma era. Composição de Manoel Ferreira, Silas de Oliveira e Mano Décio, o samba foi o último de Silas e Décio a levar a escola para a avenida.

Para além da sua incontestável importância para a história da agremiação, Heróis da Liberdade traz ao protagonismo os verdadeiros heróis do Brasil, heróis estes negligenciados por aquela que conhecemos como a História oficial. Em plena Ditadura Militar, a escola, com sabedoria e coragem, levou para a avenida um grito por democracia.

Atualmente, ao final de todas as edições do Samba na Serrinha, evento que ocorre no centro Cultural Casa do Jongo, localizado à rua Compositor Silas de Oliveira, em Madureira, Heróis da Liberdade é entoado enquanto todos os presentes se dão as mãos numa grande roda. É como se o samba tomasse os moldes de uma oração.

Foto de Cris Vicente

Não me pergunte para que samba eu vou. Eu vou para o Império Serrano sim, senhor

Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba é uma obra que revisita com emoção, cuidado e respeito a história do Império Serrano e das pessoas que fazem com que a alviverde de Madureira permaneça viva e dando frutos.  

Sua leitura nos envolve em uma viagem pelas origens da comunidade da Serrinha, origem essa que fala também sobre a construção social, política e geográfica dos subúrbios do Rio de Janeiro, reconhecendo as bases africanas que geraram, pariram e nutrem até hoje, dentre outras tantas coisas, muito do que temos de mais precioso em termos arte neste país, inclusive o samba, filho do Jongo.

O livro é também um tributo à fé do imperiano. Fé aos Orixás, expressa desde os jantares para os cachorros, passando pela fé em São Jorge, padroeiro da escola, chegando à fé devotada ao próprio Império e nas suas glórias. 

Como moradora de Madureira e vizinha do morro da Serrinha, posso dizer que viver aqui é respirar poesia e sonhar melodias, é honrar os bambas e é, acima de tudo, se emocionar ao ver nas crianças e jovens de hoje a continuação dos sonhos germinados lá em 1947. 

“A minha história já fala por mim
Sou resistência, orgulho sem fim
Tem poesia no ar, você já sabe quem sou
Pelo toque do agogô”

Minha pesquisa em artes se dá entre festas drag, escolas de samba e arte contemporânea. Sou um corpo que vive em constante trânsito entre a Amazônia e o Sudeste, cruzando referências globais e locais para refletir sobre a identidade brasileira e o cenário político contemporâneo. Sou bixa, preta e ativista pelos direitos da população LGBTQIA+, uma das primeiras artistas drag-themônia coroada na festa Noite Suja, na cidade de Belém, em 2014. Atualmente, trabalhando na direção e criação do documentário Themônias, para o edital da revista ZUM, do Instituto Moreira Salles. A produção conta um pouco das ações sociais e artísticas desse coletivo, que há quase oito anos vem transgredindo os conceitos artísticos sobre gênero, sexualidade, comportamento e arte drag na Amazônia.

Sou um(a) corpo(a) alienígena às normas comportamentais do Sudeste, da branquitude acadêmica e dos processos de embranquecimento. Já atravessei muitas fases até me afirmar politicamente como bixa preta. Entendo a importância de ter iniciado minha carreira artística nas escolas de samba de Belém, de não negar as referências visuais, cores, performatividades e sonoridades que aprendi com as deusas do samba e do axé. Há alguns anos, venho pensando na ideia de festa como potência estética, como lugar de encontro e afirmação política. Em 2022, completo nove anos ativos e ininterruptos no carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, atuando desde 2018 como destaque em carros alegóricos. Atualmente, desfilo pela escola de samba Grande Rio e busco em referências como Piná e Jorge Lafond uma investigação sobre a memória de corpos(as) pretas e performáticas em carros alegóricos.

O meio acadêmico busca sempre se auto referenciar tendo ainda o homem branco como protagonista. A estrutura museal também é uma herança do colonialismo, o cubo branco exalta o clássico europeu, a arte conceitual e o minimalismo. Existe ainda hoje uma tentativa de separar arte “erudita” e arte “popular”, reforçando aspectos do racismo estrutural. As instituições impõem determinados cânones em detrimento de outros e tentam formalizar, inclusive operando em nosso próprio comportamento social enquanto artistas. Sendo do campo da performance, eu quero justamente o inverso: pensando um hibridismo das linguagens, reunindo imagens que cruzam a moda com a dança contemporânea, a África e o Brasil, meu corpo se expande entre paisagens, estampas, figurinos, alegorias e saturações cromáticas. O excesso se torna uma afirmação consciente, a estética brega paraense é uma crítica direta às drag queens que querem construir uma imagem de supermodelos magras, caras e padronizadas. A ironia como recurso constante para não cair nos clichês estereotipados que tentam esvaziar e reduzir a produção artística afro-brasileira e amazônica. 

As referências da cena drag e club kid, estranhas à cena formal da performance art, provocam desconfortos, ganham formas infinitas, transgridem a própria percepção do corpo humano para um lugar da ficção; expande-se pelo tridimensional trazendo ideias sensoriais sobre cor, colagem e cotidiano. Em uma sociedade cristã de sexualidade reprimida, binária e cisgênera, acredito que minha obra vem transicionando as próprias percepções de humanidade na mesma medida que minha percepção de gênero vai se tornando cada vez mais fluida e não-binária. Desejo que o corpo colonial desapareça e dê lugar a outras formas ainda estranhas e não identificadas, donas de seus desejos, suas lutas e suas subjetividades.

Alice e o chá através do espelho (2014) | Paulo Evander Castro
Neon (2020) | Shai Andrade
Sereia (2019) | Allyster Fagundes
Foto de Caio Lirio

Na planta baixa das construções religiosas do barroco mineiro também se pode colher o enunciado de um esquema constante, embora agora devamos compreendê-lo também evolutivamente. De novo voltando à enunciação dos mais depurados traços culturais, poderíamos estabelecer como esquema básico horizontal um retângulo em cujo interior, na porção posterior e no sentido dos lados maiores, encaixam-se dois outros retângulos bem menores, que entre si deixam largo espaço. A porção anterior do grande retângulo, de todo livre, forma a nave, enquanto os dois retângulos menores servirão de sacristia e de recatadas zonas de serviços interiores, desenhando a capela-mor pelo vazio que deixam no centro do templo. Em Padre Faria, mais uma vez, o esquema está concretizado e, em escala mais farta, reencontramo-lo na matriz de Ouro Branco. Coincide, talvez, com um tipo histórico primitivo. No entanto, essa forma abstrata pode ser reencontrada nas construções posteriores, sendo frequente a transformação dos pequenos corpos laterais em simples corredores de passagem que conduzem a uma sacristia agora colocada ao fundo da construção e bastante mais ampla, como já exige o vulto dos serviços nos tempos de maior importância. No entanto, o esquema assume seu valor exato quando o vemos compor-se pelo crescimento da própria construção, a qual, não raro, se processou muito vagarosamente: as pequenas mutações técnicas da taipa ou da alvenaria e, também, certos pormenores de acabamento permitem uma perfeita reconstituição dos trabalhos, como se dá em Matozinhos. Ali, na forma atestada historicamente para a grande generalidade dos templos, e como o exigia a própria funcionalidade ritual, começou-se pela capela-mor; a nave, com as torres, veio depois, sendo sua contemporânea ou sucessora imediata a sacristia; mas, inegavelmente, os corredores laterais acolchetaram as três peças numa última obra de arremate. Mais uma razão para induzirmos um esquema – repitamos – menos como forma genérica comum às construções particulares, do que como um traço cultural que se liga à própria técnica e dela decorre. 

Não devemos, dado o próprio caráter da fórmula, levá-la a interpretações forçadas. Não obstante, uma última observação deve ser feita acerca das variações mais comuns. Estas são, como logo se vê, referentes à porção média da fachada. Ao que parece, decorrem de um desejo de enriquecimento que fez modificar ou recomeçar a obra às vezes muito tempo depois de estar concluída; tal reparo não autoriza negar-se que algumas fachadas com projeção média anterior assim se concebessem já no risco, sendo de temer uma longa controvérsia acerca desse ponto no caso de São Francisco de Assis. Para nossas afirmações, entretanto, pouco importará que seja um acréscimo ou uma previsão do projeto inicial em ambos os casos, o aparente desmentido da fachada lisa que aceitamos com elemento de nosso esquema básico, não o inutiliza mas até o reforça desde que se enquadra, por inteiro, em nossa conclusão acerca da dominância do funcional-construtivo sobre o ilusório-decorativo no barroco mineiro. De fato, quer tomemos uma fachada desfigurada por sucessivas reformas e hoje apresentando uma portada saliente – matriz do Pilar -, quer tomemos na projeção não apenas mais elaborada, senão também mais consistente, arquitetonicamente e mais dirigida aos efeitos plásticos – S. Francisco de Assis -, notaremos que a morfologia externa, assim tornada atípica, não entra em contradição com a morfologia interna, que, pelo contrário, ganha com mais modificações. É o que podemos notar nos vestíbulos de tais igrejas. Mesmo quando as paredes exteriores se tornam curvilíneas e as torres circulares, atingindo o máximo de barroquismo observável na zona do outro, a peça vestibular adquire nova e mais cabal definição arquitetônica, podendo-se afirmar o mesmo do coro que a domina superiormente. Basta, para percebê-lo comparar o caso da Sé de Mariana, grande construção bastante antiga, e sem modificações posteriores substanciais, onde o enriquecimento posterior não conseguiu acomodar-se em conveniente arrumação, e aquele exemplos já citados. Não podemos ignorar, à vista desses monumentos, dois pontos fundamentais: as modificações da simplicidade exterior são submetidas conscientemente a um uso interior legítimo e funcional; mantêm-se as formulações esquemáticas que se encontram, concretamente, nos exemplos mais singelos.

Difícil será, pois, encontrar na zona do ouro uma clara amostra de gratuidade barroca. Por vezes, a decoração interior cede à vocação curvilínea do barroco. Mas o faz de maneira a respeitar o retângulo fundamental da construção: tendo os altares laterais quebrado o ângulo reto da intersecção das paredes maiores com as asas do arco cruzeiro, a mesa da comunhão descreve, à volta de toda a nave, uma elipse que, tratada em madeira rica, escura e torneada, se torna a nota visual dominante, incutindo uma curvilinearidade no conjunto primitivamente retilíneo. Na verdade, o recurso não chega sequer a constituir um estratagema; baseia-se, apenas, num efeito óptico. Isso nos anima a não excluir do esquema sequer aqueles casos extremos – Rosário, de Ouro Preto, e a planta original de São Pedro, de Mariana – das igrejas de paredes curvas. Poderíamos deixá-las de lado exceções que são essas duas amostras (uma incompleta) em toda a zona, mas quer parecer-nos que a inflexão bombeada dos muros não desmente o esquema que, aqui, em curvas repete exatamente a compleição geral que encontramos, em outra parte enunciada por linhas retas. Mesmo o aspecto exterior vem confirmar nosso esquema de fachada, embora não queiramos exagerar o sentido de sua simplicidade de acabamento e decoração, vivo desmentido de qualquer imitação do europeu.

Por sumárias que sejam, as indicações registradas dar-nos-ão o direito de encaminhar uma primeira conclusão, provisória, sobre o caráter formal do barroco da zona do ouro e, consequentemente, enunciar os primeiros problemas que se levantarão em seu estudo sociológico. A conclusão é simples: o barroco mineiro tem uma morfologia específica, sem contradizer, ou ignorar os padrões barrocos. Poder-se-á, de futuro, erguer um conjunto de regras básicas para caracterizar as construções religiosas desse ciclo que se ligam organicamente a um mesmo complexo artístico. Para tanto, necessariamente, traçar-se-á toda a evolução histórica que, de tipos bem definidos e conhecidos – a construção europeia em geral e, particularmente a portuguesa; depois, o jesuítico, sua formulação no litoral sulino e sua lenta modificação das várias etapas do desbravamento etc. – nos tragam ao caso em estudo, posto que só tal análise conseguirá alcançar os pequenos porquês da forma final. Por enquanto, bastar-nos-emos com anotar a originalidade da versão mineira do barroco, relembrando seus dois grandes traços característicos – ainda é o barroco, sobretudo se atentarmos para a formalística decorativa, onde encontraremos as mesmas linhas, ritmos e princípios de composição europeus, mas já é um barroco diferente, sobretudo em contraposição aos padrões italianos de onde promana a estilística que inspirou toda a Europa e, também, a América. A mutação faz-se, sobretudo, no espírito geral das realizações, nas quais, inegavelmente, observamos uma inteira coerência entre os elementos utilitários e os puramente ornamentais, o que faz desaparecer um dos traços apontados como centrais no barroco europeu, qual seja o império despótico do decorativo, único elemento artístico capaz de levar à plena gratuidade, ao virtuosismo, e às principais formas de esplendor. 

Aceita a conclusão, abre-se uma problemática, assaz rica. De fato, todos os primitivos esquemas teóricos encontram-se modificados. Da formalística à Wölfflin, pouco resta, desde que desaparecem as contraposições marcadas entre o clássico e o barroco, e onde deveria imperar a forma aberta, pictórica, pouco clara, começam a misturar-se elementos de definição precisa, una, bem organizada e claramente marcada. No entanto, não nos interessa refutar a visão wölffliniana, pois, de toda a evidência, estamos em fase de um barroco velho, evoluído, talvez de um pós-barroco, razão pela qual, aliás, também não poderá interessar-nos sobremaneira a teoria da transição por via do maneirismo, porquanto não só aquela primeira transição, cumprida na Europa, aparece como elemento assimilado, mas ainda podemos indicar uma segunda transição, embora talvez de menores proporções, realizada já no Brasil. Deveremos, portanto, restringir-nos ao maior passo teórico, pesquisando apenas as relações entre o barroco e o absolutismo: se há uma permanência do barroco em Minas, dever-se-á ela à permanência do elemento absolutista? E, mais, se for afirmativa a resposta, quais os fatores responsáveis pelas sensíveis mutações sofridas pelo estilo? Interessando-nos particularmente as relações entre o político e o estético, tais como se enunciam na tese da conexão entre o barroco e o absolutismo, por certo admitimos possibilidades e variações especiais e locais da vida pública coletiva, das expressões pessoais ou grupais de poder, mando e prestígio, e até variações do sistema organizado de administração estatal; todos esses fatores poderão entrar em correlação ou paralelismo com  grande causa – o absolutismo – para determinar o aparecimento de um barroco de caracteres especiais.

Devemos, não obstante, insistir na redução simplificadora que vai sofrendo, com o próprio desenvolvimento da análise, nosso primitivo esquema teórico. De fato, colocando-se o problema, não tanto como a caracterização formal do barroco em contraposição ao clássico, nem tampouco da evolução primitiva que o teria trazido à sua plenitude, mas, marcadamente, como um problema de permanência de uma forma malgrado certas evidentes modificações, do aparcelamento teórico de que a princípio tivemos de servir-nos, resta-nos, em sua expressão mais simples, a relação barroco-absolutismo. A realidade social, a que se liga direta e coerentemente à realidade política, aparece-nos como a responsável pela definição de um determinado espírito e de uma certa forma de expressão estética, a conjunção entre ambas, feita sobretudo graças às forças políticas, levar-nos-á diretamente à caracterização de um complexo de manifestações artísticas a cujos traços gerais nos referimos por meio do termo “barroco”. 

Uma primeira conclusão, a que nos leva tal redução teórica do problema, dirá que, ao menos no caso do barroco, a criação artística obedece a uma formulação consciente e finalista: é o caráter próprio dos fenômenos de ordem política a consciência dos fins que inspira a criação ideológica e dirige a ação, e, ainda que tal fator não seja intrínseco à definição das realidades estéticas, tornar-se-ia peculiar ao barroco, contaminado pelo político que o sujeita e conduz. Em segundo lugar, precisamos anotar que nos encontramos a dois passos de um rigoroso determinismo, pois o condicionador a existência do barroco à do absolutismo levar-nos-á, de qualquer forma, a admitir que, posto o absolutismo, sempre teremos o barroco; as condições favoráveis ou desfavoráveis – cuja influência sobre uma forma artística poderiam provocar até a frustração completo no caso da conjunção entre uma forma política e a outra artística, ou seriam sobrepujadas pelas forças políticas, que, conscientes  da realidade social global, não poderiam desprezá-las, ou obrigariam tal forma artística a desvirtuar-se a ponto de criar-se como entidade diversa daquela que qualificamos inicialmente, comprometendo-se então toda primitiva hipótese relacional. Parece-nos inútil lembrar que, sendo a forma política em questão exatamente o absolutismo, não há rigor demasiado em supô-lo desfeito ou pelo menos desfigurado desde que se amoldasse ou cedesse a condição ambientais que se opusessem a seus fins. Ademais, Ballet não hesitou em caracterizar o próprio barroco como uma forma capaz de dominar e superar obstáculos, nessa capacidade encontrando seu traço essencial. Ora, desse modo, defrontamos apenas termos irredutíveis e inflexíveis. 

Tal rigor teórico não constrangerá o pesquisador do problema como se apresenta na zona do ouro. Na verdade, ali encontram-se o barroco e o absolutismo, as variantes, as modificações, as originalidades apenas poderão enriquecer a pesquisa e possibilitar o que, em grande parte, faltou aos teóricos europeus: a confrontação de uma mesma forma estética condicionaria politicamente tal como se apresenta em dois quadros geográficos, históricos e sociais bastante distanciados e diferenciados. Não obstante, a discrepância ambiental, sobretudo no que toca à história, exigirá um reajuste de termos, posto que não se terá como rígida e imutável a política do absolutismo e que percebemos, nos primeiros passos da análise preliminar, variações na estética do barroco. Enquanto – repitamos – não se evidenciar uma contradição intrínseca dos próprios fenômenos em questão, o que nos obriga a nova pesquisa, consideraremos como constantes o barroco e o absolutismo, mas parece-nos óbvio que, em tal constância, não se inclui nenhum traço de rigidez inflexível. Pelo contrário, estamos tratando com fatos sociais, isto é, vivos. 


Texto originalmente publicado no livro Barroco mineiro, de Lourival Gomes Machado (Editora Perspectiva, 1ª edição)

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Madureira, território barroco: escolas de samba e lugar de fala

por Mauro Sérgio Farias

Foto: Marcelo Brandt registra o carnaval da Portela

Depois de quase dois anos de pandemia, em meio a uma espiral de mortes por Covid-19 e muitos problemas econômicos, parece que 2019 foi há vinte anos. Ainda assim, quem acompanha mais fielmente o universo das escolas de samba do Rio de Janeiro certamente vai se lembrar do carnaval daquele ano, quando a Estação Primeira de Mangueira sagrou-se a grande campeã. O enredo, que homenageava lutadores sociais negligenciados pela nossa historiografia, como líderes indígenas, quilombolas e ativistas sociais, como a vereadora Marielle Franco, ganhou certa projeção fora do público habitual da festa. O desfile desfrutou de grande popularidade junto a uma significativa parcela da militância de esquerda, notadamente aquela mais próxima da intelectualidade forjada nos cursos de humanas das universidades públicas. O samba extrapolou os ambientes estritamente ligados ao carnaval e passou a ser entoado em manifestações e comícios com entusiasmo, podendo ser ouvido inclusive na voz de gente que nunca pisou em uma quadra de escola de samba.

A crítica levada à avenida tinha indiscutíveis méritos. Além de ser muito oportuna politicamente, foi construída com uma plástica inspirada e embalada por um samba que era uma verdadeira obra-prima musical. Rendeu um campeonato justíssimo e um maravilhoso hino de resistência.

Contudo, a justa vitória da Verde e Rosa e a popularização de seu samba-enredo ajudaram a cristalizar no imaginário coletivo a ideia de que o carnaval só é político se cantar a nossa luta contra a opressão em verso e prosa. Para muita gente, se o desfile não denunciar nossas mazelas estruturais da forma mais explícita, literalmente desenhando a tragédia de nosso passado escravocrata, ele não é engajado o suficiente. Como veremos mais adiante, essa é uma visão reducionista e simplificadora, que nem passa perto de dimensionar o quanto de resistência está embutida no ato de uma escola de samba desfilar, ou mesmo no fato de ela existir.

Assim como foram em outros tempos os Quilombos e as irmandades religiosas, as escolas de samba se constituíram como estratégia de sobrevivência de descendentes de africanos escravizados. Não à toa, os principais núcleos de irradiação do samba no Rio de Janeiro se formaram concomitantemente a um violento processo de segregação, quando, no começo do século XX, grandes contingentes de negros pobres foram expulsos do centro da cidade. As reformas urbanas do prefeito Pereira Passos, um projeto abertamente francófilo, higienista e excludente, forçaram esses grupos a ocuparem os morros e o entorno das paradas da estrada de ferro, constituindo as favelas e os subúrbios da cidade.

Dessa forma, as escolas de samba representam resistência no sentido mais essencial do termo. São espaços de socialização, ajuda mútua, lazer e expressão cultural de várias comunidades formadas a partir de resistentes, de sobreviventes da exclusão, da indiferença e do racismo. E, mais importante de tudo, elas constituem um espaço de preservação e de divulgação de saberes e práticas culturais de descendentes de africanos escravizados na diáspora. Elas são a afirmação viva e concreta da resistência e da identidade de um território. E é de um desses territórios, resistentes, aquilombados e representativos de uma herança cultural afro-brasileira, que parte a modesta reflexão que desenvolvemos aqui. Esse lugar surgiu a partir de ex-escravos oriundos das fazendas do interior do estado do Rio de Janeiro e de comunidades expulsas do centro da capital pela reforma urbana para a região em torno da estação ferroviária de Rio das Pedras. A iniciativa formou, na zona norte da cidade, o bairro que, posteriormente, veio a ser conhecido como Oswaldo Cruz.

A região formada por Oswaldo Cruz e pelos bairros vizinhos, como Madureira e Turiaçu, hoje constitui um pujante centro econômico, cujo comércio popular recebe visitantes de toda a cidade, principalmente nas lojas de atacado e de artigos religiosos. O tradicional Mercadão de Madureira é referência nesse tipo de comércio, sendo fácil encontrar quem cruze a cidade inteira em busca da diversidade e dos preços atrativos encontrados em suas lojas. Cortada por duas linhas de trem que dão acesso rápido ao centro da cidade, a localidade já é parte indissociável da cultura do Rio de Janeiro, tão célebre quanto muitos bairros nobres da cidade. Assim como Ipanema e Copacabana, a região já recebeu inclusive uma merecida homenagem musical que marcou seu nome na história da música popular brasileira. Composta pelo sambista Arlindo Cruz, a canção Meu Lugar, cujo refrão é tão simplesmente o nome do bairro de Madureira, é indispensável em qualquer playlist de samba que se preze.

Por sinal, a localidade também é berço da quase centenária Portela, histórica agremiação carnavalesca, reconhecida por sua trajetória de resistência e pela sua rica produção artística. O historiador, escritor e compositor Nei Lopes, profundo conhecedor do universo do samba carioca e da cultura afro-brasileira, nos dá uma ideia do quão importante é essa conexão entre as escolas de samba e seus territórios. Em seu Dicionário da Hinterlândia Carioca, no verbete sobre Oswaldo Cruz, ele faz questão de mencionar a Portela como a sua “mais importante expressão cultural”. Longe de ser um exagero, tal afirmação reflete o grau de importância da escola na vida da região em que ela está inserida.

O primeiro grande líder da agremiação também foi uma importante liderança comunitária da localidade. Seu nome era Paulo Benjamin de Oliveira, mas ele ficou eternizado como Paulo da Portela, o que, por si só, já dá uma boa ideia de seu envolvimento umbilical com a escola que ajudou a fundar. Paulo foi um batalhador incansável pelo reconhecimento das manifestações culturais de sua comunidade como legítimas e respeitáveis. Ele inclusive negociou, junto ao poder público, o aval para as festas e as apresentações carnavalescas da Portela e de outras agremiações, constituindo-se uma liderança reconhecida por todo o mundo do samba. O líder portelense empenhou-se pessoalmente no sentido de afastar os estigmas que sempre rondaram as manifestações culturais populares, como a feiúra e a marginalidade, incentivando os sambistas a se vestirem e se portarem com elegância e altivez. Era conhecido o seu lema segundo o qual sambistas deviam estar com “pés e pescoços ocupados”, o que se traduzia no cuidado em usar gravatas e bons calçados. Um esforço consciente em distanciar-se dos pés descalços que caracterizavam os negros escravizados.

Viver e circular pela localidade formada por Oswaldo Cruz, Madureira e bairros adjacentes é testemunhar cotidianamente a centralidade da escola de samba na vida comunitária. É topar com o legado de Paulo da Portela em cada esquina. É vivenciar, de forma concreta, conceitos aparentemente abstratos, como resistência e aquilombamento. Tudo isso está lá, visível nas mais variadas manifestações culturais do povo preto, que encontraram naquela região terreno fértil para crescer e se popularizar. Espaços como o Quilombo Urbano Agbara Dudu, o Jongo da Serrinha, o Baile Charme sob o viaduto Negrão de Lima, a Feira das Yabás, O Império Serrano, a Portela e incontáveis rodas de samba. Cada uma dessas manifestações é um galho nesse enorme baobá de resistência e ancestralidade.

Não seria exagerado afirmar que ter passado minha infância e adolescência imerso naquela atmosfera cultural constituiu minhas vivências, valores, preferências culturais e convicções ideológicas. Me fez ser quem sou, em suma. À primeira vista, se eu dissesse que Oswaldo Cruz é meu lugar de fala, talvez soasse como um trocadilho, uma subversão do conceito popularizado pela escritora Djamila Ribeiro, que estaria sendo utilizado em um contexto mais literal. No entanto, diante do impacto dessa vivência em minha forma de ser, de pensar e de agir enquanto preto, sambista e suburbano, posso tranquilamente dizer que levo Oswaldo Cruz na mente, na alma e na pele. Oswaldo Cruz, Madureira e a Portela são meus lugares de fala, não só enquanto origem geográfica, mas como fonte originária dos valores que defendo e das práticas culturais que perpetuo.

Integrar o Departamento Cultural da Azul e Branco me convida diariamente ao desafio de me debruçar sobre a história dessa escola e dessa localidade, que sempre me foram referenciais afetivos, e vê-los também como fontes de saberes ancestrais. Assim, eu posso, a partir deles, olhar para o futuro de nossa gente e de nossa cultura, guardando a prática, vinda de África, de aprender com o legado daqueles que vieram antes de nós. Como já cantou um de nossos grandes poetas, o eterno mestre Paulinho da Viola, “quando eu penso no futuro, não esqueço meu passado”. Esse passado rico de ensinamento e esse futuro repleto de possibilidades podem ser vivenciados cotidianamente em Oswaldo Cruz, Madureira e na Portela, meus lugares de fala.

No dia desse registro, há exatos 3 anos, cheguei na Praia do Forte, na Bahia. Mas como sinto que aqui o tempo não existe para além da eternidade cíclica dos sucessivos alvoreceres e entardeceres, entreguei minha vida. 

Na calmaria quase tediosa da beleza em repetição –  entre a lua cheia nascendo à esquerda e o sol esvaziado se pondo à direita, um diante do outro, em sua redondez prata e dourada – vivemos todos repletos de histórias, dons e talentos. Somos mistura cultural e miscigenação. Não existe uma fórmula para decantar as características de cada indivíduo e separá-las em diferentes identidades: 

“Yes, nós somos barrocos”.

Nas imagens retratadas aqui, as formas, cores e materiais nos guiam em direção a conclusões ilusórias. A memória está presente na silhueta, na época, na matéria-prima, nas representações, mas nada pode ser definido. Qualquer tentativa nesse sentido traz enganos, pois quando a razão conecta as informações, as conclusões desaparecem. 

A sensação de separação, no entanto, ainda existe. A mesma separação avistada pelo coqueiro mais alto, que calado, um dia gritou ao vento com a voz silenciosa de suas palhas: “nau à vista!” 

Aqui desembarcaram os pais, os filhos, os reis e as rainhas. Assim como o poder e a dor. 

Talvez isso explique porque, para a história, as verdades são tantas, mas mesmo multiplicada, não pode ser tratada no plural.  

Em meio a ampliação da Verdade: “Yes, nós somos barrocos”. 

Nas  ruínas do único castelo medieval do continente americano, sede do maior latifúndio que se tem notícia no mundo, tentamos traduzir em imagens tantos destinos por aqui vivos e vividos, trançados às mãos gigantes das donas Vavás de todas as gerações tupinambás, em palha, em fé, em ritmo, em oração, em proteção, pelas ondas e pela espera. 

Enquanto isso, o oceano avança e a primeira fila do exército guerreiro de coqueiros posicionados à beira mar têm suas raízes expostas. Na desigualdade das forças em desequilíbrio, sucumbem ao vento invasor.

Sem mais a ilusória sensação de proteção, o batalhão da segunda fileira do coqueiral, após um tempo de regozijo observando a tragédia dos semelhantes, inicia o cumprimento de seu destino, face a face com a imensidão do oceano. Assim é qualquer devastação. 

Para os verdadeiros reis, que tudo viram e tudo veem, o amanhecer se repete e com ele a oportunidade de mais olhos se abrirem, mais corações despertarem aquecidos pelo calor desse sol da Bahia. O mesmo sol do Sul e da Europa. O sol de todos – o sol Barroco. 

Amém! (de amem-se)

Esta ação cultural realizada na Praia do Forte-BA partiu da criação de uma coleção de arte de vestir por Thanara Schönardie, ostentando o luxo da verdadeira essência humana, aquela proveniente da grandiosidade de sua relação com a natureza, transcendendo tempos, culturas, raças e credos. No desfile de personagens míticos, o contraste entre a leveza das sedas e a palha de piaçava, importante material do artesanato tupinambá da região, se juntam às peças de moda praia e acessórios de empreendedores locais e à formação de um grupo de talentos iniciantes e profissionais do artesanato, fotografia e audiovisual da região em intercâmbio com artistas de outros locais do Brasil.


IDEALIZAÇÃO E DIREÇÃO: Thanara Schönardie 
PRODUÇÃO: Edi Mentz, Mailson Carvalho e Raphael Souza 
CASTING: Allana Pereira, Fernanda Andrade, Giulia Brugni, Halana Mirella, Juliane Calixto, Kalline Santos, Lara Beatriz, Malu Andrade, Nayane Marques, Netinho Guttenberg, Samylly Castro, Thiago Souza 
HAIR: Junior Noronha BEAUTY Lua Paiva 
VESTIDOS, BOLSAS E ADEREÇOS EM PALHA: Thanara Schönardie 
MAIÔS E ASSISTÊNCIA DE MODA: Forte Beach/ Jozilene Santos 
ACESSÓRIOS: Dalila Acessórios de Luxo

FOTOS REVISTA AMARELLO: Guilherme Nabhan 
ASSISTÊNCIA de FOTO: Clayton Andrade 
FOTOS DE DIVULGAÇÃO: Tiago Mota 
ASSISTÊNCIA DE FOTOS Gabriela Freire 
MAKING OF: Leandro Planzzo 
AGRADECIMENTOS: 40o Models Bahia, André Porto, APSA Sauípe, Jailson Marcos calçados, Alan Vilar 
#39Yes, nós somos barrocosCulturaSociedade

Retóricas visuais da Memeflix brasileira

por Giselle Beiguelman

Foi-se o tempo em que a visualidade da política se concentrava nas máquinas de propaganda do Estado e em campanhas de “santinhos” impressos, fotos e vídeos dos candidatos em comícios, carregando criancinhas em favelas, tomando café em bares da periferia e inaugurando obras. Hoje estamos diante de um novo arco de produção simbólica, que inclui a tomada das telas de TV no horário nobre, infiltrações ativistas na primeira página dos jornais e muitos memes.

Poucos momentos explicitaram tão bem essa nova condição como os que antecederam a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 7 de abril de 2018. No tempo-espaço do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo (SP), onde Lula ficou por 48 horas, a foto do ex-presidente carregado pela multidão, depois de um discurso histórico de 54 minutos, viralizou. De autoria de um até então desconhecido jovem de dezoito anos, Francisco Proner, foi compartilhada incontáveis vezes no Instagram e no Facebook e estampou o noticiário de veículos tradicionais, como o The Guardian e o The New York Times, sobrepondo-se às narrativas oficiais sobre o caso. 

Nesse movimento de passagem de tela a tela, elas vão se convertendo em múltiplas derivadas e podem implicar uma ruptura com o sistema de representações vigente e seus mecanismos de organização simbólica.”

O fenômeno de recontextualização dessa imagem está longe de ser um fato isolado e responde a uma lógica de apropriações que é característica das formas como se encadeiam os jogos políticos estéticos nas redes, da esquerda à direita. Não se trata aqui de abrir uma discussão sobre a história da apropriação na arte contemporânea desde a pop art. Tampouco de explorar as práticas do sampler e do remix, que pautam a cultura eletrônica e digital desde os anos 1970, e as particularidades das estéticas dos bancos de dados, tão fulcrais no contexto da net art. O foco aqui são as imagens que saem de uma mídia para outra, da tv às interfaces das redes sociais. Nesse movimento de passagem de tela a tela, elas vão se convertendo em múltiplas derivadas e podem implicar uma ruptura com o sistema de representações vigente e seus mecanismos de organização simbólica. 

Quando essas rupturas acontecem, desestabilizam a ordenação interna dos meios de comunicação de massa, e esse é um dos traços mais interessantes da ecologia midiática atual. A invasão do triplex do Guarujá (SP) pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ocorrida no dia 16 de abril de 2018, explicita essa relação. Na ocasião, trinta pessoas ocuparam por três horas o apartamento atribuído ao ex-presidente Lula, que o levou a ser condenado a doze anos de prisão. Mais do que funcionar como plano de tomada do apartamento, a ocupação-relâmpago do triplex foi porta-voz dos argumentos contrários à sua condenação. 

Os veículos de divulgação do protesto, contudo, não se resumiram às redes sociais, cada vez mais confinadas a bolhas, algoritmicamente dirigidas, e nas quais os grupos tendem a falar entre si e para si. O protesto invadiu a pauta dos principais noticiários da TV e teve sua mensagem estampada na primeira página dos jornais mais relevantes do país. “Se é do Lula, é nosso. Se não é, por que prendeu?” Essa era a mensagem que os manifestantes carregavam nas suas faixas e que se infiltrou nos veículos midiáticos tradicionais.

 Nesse contexto, a ação política torna-se happening e a regra do jogo passa a ser a consciência de estar “dentro” de uma futura imagem. Como assinala a pesquisadora Esther Hamburger, essas infiltrações midiáticas “ocorrem em ações políticas performáticas que antecipam, e até certo ponto provocam, a reverberação de imagens que inundam circuitos transnacionais, usualmente preenchidos por conteúdos produzidos por corporações especializadas na produção de notícias”. 

Algo que já estava enunciado com bastante força nas ações Zumbi Somos Nós (2007), do grupo Frente 3 de Fevereiro, mas que se torna socialmente transversal nas manifestações de junho de 2013. Afinal, como não lembrar que um de seus momentos mais marcantes foi a travessia da ponte Octávio Frias de Oliveira, em São Paulo, no dia 17 daquele mês? Roteiro até então incomum nos protestos, a ponte estaiada é o cenário que se entrevê ao fundo em vários programas jornalísticos da Rede Globo. Foi, por isso, o local escolhido pelos manifestantes para gritar palavras de ordem contra a emissora e pressioná-la a mudar o tom sobre os protestos contra o aumento de tarifas públicas. As declarações da jornalista Patrícia Poeta, no Jornal Nacional daquela noite, em defesa da cobertura até então realizada, inseria indiretamente os manifestantes no quadro e consumava o sentido da ponte ocupada, como imagem e dispositivo político. 

Os registros do performático desfile de moda dos estudantes secundaristas na ocupação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), em maio de 2016, em protesto contra a corrupção na compra da merenda escolar, evidenciam, nesse contexto, uma transformação radical em curso. Ela diz respeito aos meios de ver e dar visibilidade aos conflitos e às reivindicações, sem deixar de iluminar a diversidade dos corpos e sua dissidência dos padrões normativos. 

No limite extremo desses processos, ocorre uma inversão dos procedimentos que marcaram as relações entre arte, política e mídia nos anos 1970, durante a ditadura, quando as artes politizavam as mídias esteticamente. As infiltrações em jornais feitas por Cildo Meireles (1970), Paulo Bruscky e Daniel Santiago (a partir de 1974), ou no noticiário, como fez o grupo 3nós3, na intervenção urbana Ensacamento (1979), são alguns exemplos desse tipo de artivismo. Em ações como a “Alesp Fashion Week”, dispara-se outro vetor: é a política que ganha, via mídia, dimensões estéticas. 

É verdade que a relação entre imagem e política não é nova. Central nos totalitarismos dos anos 1930, constituiu o pilar de sustentação da sociedade do espetáculo conceituada por Guy Debord. Contudo, a associação entre imagem e política agora é de outra ordem. Mais que lugar e meio de transmissão de ideias e linguagens, a imagem é o próprio campo das tensões políticas. 

É na imagem, e não a partir dela, que os embates se projetam socialmente. Na explosão de fotos, vídeos e muitos memes que desembocam rapidamente nas redes, a imagem se converte em um dos territórios de disputa mais importantes da atualidade. Bolsonaro e seus apoiadores introjetaram rapidamente essa dinâmica, um dos ingredientes mais importantes de sua receita de sucesso rumo ao Palácio do Planalto, calibrados pelas redes sociais. Que o digam os manifestantes bolsonaristas gritando “Facebook, Facebook, WhatsApp, WhatsApp!!!” na Esplanada dos Ministérios, no dia 1o de janeiro de 2019. 

Não é de agora que as redes sociais se tornaram lugares relevantes nos processos políticos, e isso está longe de ser uma exclusividade dos apoiadores do presidente Bolsonaro”

Não é de agora que as redes sociais se tornaram lugares relevantes nos processos políticos, e isso está longe de ser uma exclusividade dos apoiadores do presidente Bolsonaro. Muito se falou sobre a importância das redes sociais em movimentos como a Primavera Árabe, o 15-M espanhol e o Occupy Wall Street, que aconteceram em 2011, e as Manifestações de Junho de 2013 no Brasil. No calor da hora, chegou-se a identificar a Primavera Árabe como a primeira revolução feita pelo Twitter. Pode-se dizer que há exagero nessas colocações, mas não há exagero algum em afirmar que, sem os recursos do Facebook e do Twitter, essas manifestações não ocorreriam da forma como ocorreram. Sua capacidade de divulgação global, alcance social e disseminação está diretamente relacionada a essas redes sociais. 

Discorri sobre essas questões em outras publicações, mas enfatizo aqui que o caso da chegada de Bolsonaro à presidência desloca o eixo dessas análises. No seu espectro, como veremos, as redes sociais são o espaço primordial de construção e realização da política. Nessa perspectiva, a saudação inédita em qualquer posse presidencial, levada a cabo pela militância bolsonarista para recepcionar a imprensa, em Brasília, naquele dia, fazia jus ao estilo do novo titular do posto, Jair Messias Bolsonaro, e indicava um redirecionamento das relações entre a internet e as ruas. Nas suas redes sociais, o presidente deixa claro que elas não foram apenas meios de acesso ao poder. Mais que veículos de comunicação pessoal, as redes são seu principal canal institucional e o lugar de construção de sua imagem. Imagem que é a linguagem pela qual está sendo escrita a história oficial de seu governo. 

Com mais de 35 milhões de seguidores, distribuídos entre suas contas no Twitter, Facebook e Instagram, o 38o presidente da República é um dos principais líderes mundiais nas redes. E isso é resultado de um trabalho milimétrico e militante, labutado entre teclados, câmeras e muitas, muitas lives, nas quais ganhou força um regime visual que faz toda a diferença nas regras do jogo político que o presidente Bolsonaro protagoniza. Durante a campanha presidencial, suas imagens atravessaram os mais diversos ambientes: de gabinetes a salas de estar, passando pela cozinha, a churrasqueira da casa, o caixa automático e até seu leito na UTI quando ele esteve hospitalizado. 

Em conjunto, os registros da campanha constituem um legado ímpar de imagens precárias, por vezes fora de foco, feitas com câmeras mal posicionadas, iluminação descuidada e ângulos distorcidos. Nos vídeos, ao fundo, frequentemente apareciam, de um lado, uma menorá, o candelabro judaico que é também parte da liturgia evangélica, e, do outro, uma moringa de barro, símbolo tão singelo da cultura nacional. Sobre a mesa, objetos variados: papéis com anotações, notas fiscais, livros de e/ ou sobre o político britânico Winston Churchill, tratados antimarxistas e celulares diversos. O importante era transmitir uma certa ideia de desarrumação geral, com cara de cenário improvisado, para naturalizar a cena e ganhar ares de informalidade e espontaneidade. 

Retoma-se aí a estética amadora consolidada pela apropriação da linguagem do vídeo caseiro que explodiu com o YouTube e que surge como estratégia de aproximação do “mundo real”. Essa estética pretende se contrapor ao imaginário tecnicamente perfeito do padrão de qualidade hollywoodiano (ou da Rede Globo), pela supressão de mediações. Como se a imagem produzida fosse um decalque do real, sem nenhuma interferência dos meios que a produzem e de quem os instrumentaliza. É nessa idealizada contraposição que reside a eficácia da estética amadora.

Às vésperas do primeiro turno, o então candidato falou de casa com seus seguidores na avenida Paulista. Com sombra no rosto, contra a luz, em um vídeo gravado em pé no jardim, tentando ver as imagens que lhe mostravam em outro celular, Bolsonaro levou seus eleitores ao delírio. Ao longo de toda a campanha eleitoral, diante das (próprias) câmeras, o candidato Bolsonaro ria, ficava sério, desafiava “a mídia”, preparava o pão com leite condensado do seu café da manhã, ia ao açougue e fazia churrasco. Aparecia no barbeiro, posava com a filha, descansava no sofá e compartilhava mimos recebidos de seguidores anônimos. De camiseta esportiva, shorts, e mesmo de terno e gravata, já no posto de presidente, ele não fala com seu eleitor, ele o exprime. E, ao exprimi-lo, como mostrou o semiólogo Roland Barthes (1915–80) décadas atrás, transforma-o em um herói, convidando o eleitor a eleger-se a si próprio.

Essa frequência vibratória não se desfez com a eleição. Pelo contrário. Da vitória no primeiro turno em diante, ela só cresceu. Em um dos seus picos de audiência, Bolsonaro quebrou todos os protocolos, postando a primeira foto oficial como presidente no seu perfil pessoal no Instagram. Seguiram a postagem mais de 1 milhão de likes. Não que isso seja um acontecimento incomum. As respostas às postagens de Bolsonaro são sempre acompanhadas de vários milhares de likes e aplausos aos seus feitos.

Trata-se de um verdadeiro ritual mobilizatório, uma estratégia de comunicação intensa que mais parece uma campanha eleitoral sem-fim. Mesmo depois de a administração das redes do presidente e de seus ministros passar a ser subordinada à Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República, deixando de veicular imagens da sua intimidade doméstica para incorporar o padrão da foto oficial, mas sem perder o elã motivacional, que fundamenta sua retórica visual. 

É justamente esse elã motivacional que afasta sua retórica visual do midialivrismo. Apesar de o presidente creditar sua vitória à independência dos grandes conglomerados de comunicação, uma prerrogativa de coletivos e redes como Jornalistas Livres e Mídia Ninja, sua visualidade amadora em nada dialoga com o midialivrismo. Nas práticas como a do Mídia Ninja, por exemplo, a tônica recai em um novo cinema insurgente, como chamou Ivana Bentes, e não em uma estética amadora. Prevalece aí uma “dramaturgia do grito”, forjada no corpo a corpo com o presente, em que a câmera se torna parte “de um animal-cinético, que filma enquanto combate e foge”. Uma câmera colada à respiração de quem produz a imagem de dentro dos acontecimentos, “em regime de urgência e precariedade”. 

Foi Barthes quem primeiro definiu o campo de uma retórica das imagens em texto que data de 1964, situando sua interpretação a partir do inventário de seus conotadores (o conjunto de associações que se acrescentam ao sentido original de uma palavra). Expande-se, com base nessa compreensão, o entendimento da retórica para além do discurso verbal, permitindo que se incorporem à análise “as convenções pelas quais [o discurso] é criado nos artefatos visuais e nos processos pelos quais influenciam os espectadores”. Nessa interpretação, as imagens transcendem o seu valor estético e funcionam como elementos simbólicos constitutivos de um sistema de comunicação, possibilitando que sejam pensadas no âmbito da experiência cultural e entendidas como constructo resultante de um trabalho coletivo. 

“Como uma prática”, escreveu o filósofo Arthur C. Danto (1924–2013), “a retórica tem a função de induzir o público a tomar determinada atitude em relação ao assunto de um discurso, isto é, de fazer com que as pessoas vejam a matéria sob determinado ângulo.” E esse ângulo, no caso do presidente, é estratégico. Sua retórica visual opera como um fator compensatório, que supre tudo aquilo que sua oratória não entrega. Não espanta que tenha se tornado um protagonista na torrente de memes e projeções nas fachadas de prédios de várias cidades que marcaram a pandemia do coronavírus no Brasil. 

Imagem característica da internet, os memes são imagens feitas para serem compartilhadas. Irônicos, expressam uma cultura de consumo rápido, que adere a temas do momento. Os mais disseminados são os que trazem imagens acompanhadas de textos curtos em letras garrafais, tecnicamente chamados de image-macro. Agregadores de linguagem, constituem o que Jacques Rancière chamou de “frase-imagem”. Um formato em que o texto não funciona como complemento explicativo da imagem nem a imagem ilustra o texto, mas os dois elementos se encadeiam para produzir um terceiro sentido. 

O termo “meme” foi cunhado muito antes do advento da internet, pelo biólogo inglês Richard Dawkins, em “O gene egoísta” (1976)”

O termo “meme” foi cunhado muito antes do advento da internet, pelo biólogo inglês Richard Dawkins, em “O gene egoísta” (1976). Alguns dos atributos que ele associou aos memes, especialmente quanto à forma de propagação e ao poder de contestação, explicam a popularização do conceito. Mais citada que lida, na teoria de Dawkins o meme é uma unidade replicadora que se alastra por imitação, sempre sujeito à mutação e à mistura, e que funciona como resistência crítica. Isso porque nos dá o poder “de nos revoltarmos contra nossos criadores” e de “nos rebelar contra a tirania dos replicadores [os genes] egoístas”. 

Foi nos anos 2000 que o termo ganhou força e a compreensão que temos dele na atualidade, explodindo nas redes sociais, pelo fluxo de compartilhamento, no Twitter, no Facebook e no Instagram. Nesse contexto, os memes expandiram-se, incluindo não só o mundo pop, como também o da publicidade e o da política, instituindo outra forma de comunicação visual, desvinculada do universo evolucionista de Dawkins. Para além das piadas com celebridades, torcidas de futebol, novelas e afins, os memes transformaram-se em uma espécie de comentário à queima-roupa de todos os acontecimentos cotidianos, constituindo um noticiário paralelo, baseado em imagens. Se antigamente valia o slogan: “Aconteceu, virou Manchete”, associado à primeira revista homônima do grupo Bloch, hoje o correto seria dizer: “Aconteceu, virou meme”. 

Migrantes e fluidos, compostos dos resíduos que saem de uma mídia para a outra, da TV às interfaces das redes sociais, os memes são instâncias midiáticas de alta circulação que produzem o apagamento dos seus rastros nos processos de deslocamento e apropriação contínua. De baixa resolução, bastardos e sem assinatura, são imagens pobres, no sentido dado por Hito Steyerl à expressão, que podem atuar como um contraponto aos sistemas de representação dominantes. 

Contudo, na atualização das mesmas imagens que são utilizadas recorrentemente, muitas vezes por grupos antagônicos, com novas legendas, revela-se uma contração do repertório visual que é criado nas redes. Conjugada ao imediatismo, à concisão e à volatilidade dos memes, essa repetição expressa, também, a impossibilidade de discussão e reflexão que impera no modelo atual de redes sociais. Isso ganha maior relevância na medida em que os memes passam a ser um instrumento político e cada vez mais usado nas campanhas eleitorais. 

A eleição presidencial dos Estados Unidos de 2016 deu a medida desse impacto. A produção de memes esteve presente desde as primárias do Partido Democrata, em fevereiro de 2016, em apoio ao candidato de esquerda Bernie Sanders contra Hillary Clinton, e marcou a disputa entre Hillary e Trump até o final do pleito. Não por acaso, a eleição entrou para a história da internet como a Grande Guerra dos Memes de 2016. No Brasil, foi ao longo do processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff que o uso de memes tomou o debate político nacional e vem assumindo protagonismo cada vez maior. 

Os memes dominaram a arena política de tal forma que o presidente Michel Temer chegou a proibir, em maio de 2017, o uso de sua imagem fora de contextos jornalísticos e de divulgação de ações presidenciais. Notificações foram enviadas a alguns sites e páginas humorísticas. O efeito foi bombástico e reverso. Em vez de serem controlados, imediatamente multiplicaram-se os memes com a figura do presidente. Reportagens nacionais e internacionais maximizaram os efeitos, culminando com o “troco” do Partido dos Trabalhadores (PT), que na época resolveu liberar todas as suas fotos disponíveis no Flickr para esse fim. O veto foi uma tentativa de reagir à forma como as redes se pronunciaram a respeito da delação da empresa jbs, que implicava o presidente Temer na Operação Lava Jato. O governo recuou nessa tentativa de controle, mas, para além desse fato pontual, ficava claro que estávamos diante de um novo contexto, não só da história da política, como também das imagens. 

Pesquisadores como a israelense Limor Shifman e, no Brasil, Viktor Chagas destacam que os memes da internet são um gênero midiático que assume múltiplas formas, mas que são sempre marcados pelo humor, com potencial para subverter as mídias tradicionais, e que se desenvolvem em razão de sua dimensão social nas redes. Outros teóricos, como os holandeses Geert Lovink e Marc Tuters, chamam atenção para sua capacidade de quebrar os limites do politicamente correto, indo muito além do que as mídias de massa poderiam suportar. Nesse flanco, abrem espaço para uma nova geração de imagens de ódio que têm se tornado recorrentes nas redes sociais. Nelas, conteúdos racistas, antissemitas, anti-islâmicos e homofóbicos são comuns. Da direita à esquerda, os memes ganham importância e seu formato de frase-imagem contamina o espectro estético da política e interfere no debate contemporâneo. 

Caso emblemático desse fenômeno ocorreu em janeiro de 2018, via post no Facebook feito pela deputada federal Cristiane Brasil. Indicada ao Ministério do Trabalho, Brasil decidiu gravar um vídeo no qual se defendia, a bordo de uma lancha, acompanhada de amigos marombados, em trajes de banho, visivelmente alcoolizados, da acusação de ter respondido a ações trabalhistas. O argumento, um tanto quanto nonsense para quem seria o titular da pasta do Trabalho, é que “todo mundo tem ações trabalhistas”. A explosão de memes que se seguiu à divulgação do vídeo acabou por abortar sua trajetória rumo à Esplanada dos Ministérios. 

Um dos bordões mais conhecidos da internet para abrir o compartilhamento de um meme sobre o Brasil é: “Regras: não há regras”. Se existia alguma dúvida sobre a precisão da frase, o vídeo a desfez para sempre. O affair Cristiane Brasil, no entanto, era só um prenúncio de outras séries inusitadas, como a batalha verbal entre os ministros do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que virou até um poema, com uma versão “interpretada” por Maria Bethânia (“ Gilmar, pessoa horrível”) e um funk (“MC Gilmar e MC Barroso”). 

Internacionalmente conhecido como um centro produtor e irradiador de memes, o Brasil tornou-se, com o coronavírus, não apenas símbolo da pior política de gestão da pandemia, mas uma verdadeira Memeflix. Não seria imponderável pensar que quem contará a história da nossa “coronavida” são os memes. Difícil lembrar todas as surpresas que vivemos ao longo desse período. Da adaptação ao isolamento social às declarações do presidente Bolsonaro, os memes fizeram a crônica de todos os momentos em uma espécie de jornalismo visual em tempo real. Nele, o cotidiano, os novos costumes e a intensidade dos reveses políticos do país foram registrados, acrescentando novas camadas à pandemia das imagens vivida a reboque do confinamento pandêmico.”


Ensaio originalmente publicado no livro Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera, de Giselle Beiguelman, pela Ubu Editora.
As notas de rodapé presentes no original foram suprimidas sem prejuízo ao conteúdo da obra. 

A atriz Adriana Esteves como Carminha, em Avenida Brasil (2012)

Uma das manifestações culturais brasileiras mais festejadas são as telenovelas, um produto nacional que evidencia uma face positiva do país ao serem exportadas para mais de 170 nações do planeta.! Barrocas e antropofágicas por natureza apresentam tramas seriadas envolventes, vários núcleos imbricados, tragédia e comédia mescladas, dramaturgos talentosos e atores que transmitem credibilidade, beleza e expressão. A TV Globo é a grande produtora, seguida de longe (na maioria das décadas de atuação) pelas outras emissoras, não menos esforçadas em apresentar suas criações. Assim, tentarei mostrar alguns momentos desta trajetória que marcou um público tão fiel quanto crítico. 

No ano de 1950, a televisão brasileira nasce como TV Tupi, pelo empreendimento visionário de Assis Chateaubriand, com apenas um aparelho de transmissão. Os técnicos e profissionais vinham do rádio e todos aprenderam empiricamente a como lidar com o novo meio eletrônico. É importante esclarecer que a tradição das radionovelas vem das narrativas folhetinescas dos jornais do século XIX, que acirravam a imaginação do público em torno do leitor. O público televisual, surpreendentemente, não se importava com a imagem aparente no monitor, cheia de interferências, chuviscos, linhas distorcidas, falhas, sem nitidez e muitos improvisos. Algumas produções foram memoráveis, apesar de algum som de galope se atrasar ou uma parede despencar de vez em quando. As cenas eram filmadas com a câmera grande, pesada, centralizada e imóvel como sendo a plateia do teatro. 

O governo Juscelino Kubitschek, na década de 1960, trouxe um grande impulso à mídia eletrônica e impressa como parte do processo de “popularização” do novo meio televisual, tornando-o economicamente acessível. Foi nesse período que a TV Excelsior e a Record surgiram. Também houve a introdução do videoteipe, tecnologia que possibilitava inovações como: a gravação e a apresentação em lugares diferentes ao mesmo tempo; a saída para cenas externas, que traziam mais verossimilhança à trama; e, principalmente, o fim dos improvisos, todos podiam estar bem preparados. Desta forma, a grade de programação se estabilizou e deu lugar à telenovela. Direito de Nascer (1964), de autoria de Thalma de Oliveira e Teixeira Filho, causou a primeira comoção nacional, e foi inspirada na radionovela cubana de Félix Caignet. O último capítulo foi transmitido no Ginásio do Ibirapuera (SP) e no Maracanãzinho (RJ) para milhares de pessoas mobilizadas.! Como não recordar Albertinho Limonta, Isabel Cristina e Mamãe Dolores, para quem os assistiu um dia? 

Não podemos esquecer o Golpe Militar de 1964, que redirecionou o país e gerou a mudança dos meios de comunicação. Em 1965, foi criada a Embratel que ampliou a transmissão simultânea dos programas em todo o território nacional. Bem como a inauguração da TV Globo, com o aporte do capital estrangeiro do grupo Time-Life, causando um estremecimento nas outras emissoras e evidenciando a hegemonia do eixo Rio-São Paulo.

Até então, permaneciam os textos adaptados de produções cubanas ou mexicanas, contudo, em 1968, surge uma telenovela renovadora de toda a dramaturgia de heróis maniqueístas e fórmulas esgotadas.! Beto Rockfeller, lançada pela TV Tupi (SP), concebida por Cassiano Gabus Mendes, Bráulio Pedroso e Lima Duarte, revolucionou a televisão e os lares brasileiros. E como aconteceu isso?

Voltando um pouco ao Barroco (séc. XVI), uma das características desse período foi a humanização dos personagens sacros impostos pela Igreja. O talento por trás desse processo foi o pintor Caravaggio, que utilizou como modelos os seus vizinhos, as prostitutas, o açougueiro ou o carroceiro da esquina para figurar os mártires da saga católica. Ele também criou uma forma de pintar mais próxima do natural, com mais contraste e drama, conhecida como “claro-escuro”. Traçando um paralelo com as telenovelas, tínhamos tramas “externas” à nossa cultura e em Beto Rockfeller foram adaptadas ao meio urbano da nossa classe média. O ator Luiz Gustavo protagonizou o anti-herói simpático e malandro, junto à Débora Duarte e Bete Mendes que ora sofriam, ora acertavam, ora erravam, projetando rapazes e moças comuns, humanizando a interpretação com naturalidade. Ainda nesse período, a Globo alojava Janete Clair, que não somente emplacou dezesseis telenovelas na emissora, como teve audiências altíssimas, na década de 1970, como Irmãos Coragem (1970), Selva de Pedra (1973), Pecado Capital (1975) ou O Astro (1978). Sucessos justificados da autora, que sabia apelar ao gosto popular ao mostrar núcleos de todas as classes sociais com autenticidade e dramas legítimos da alma humana entre o Bem e o Mal – elementos representados pelo período Barroco com o contraste drástico entre as cores claras (o Bem) e as escuras (o Mal).

As cores chegam aos monitores na década de 1970. O Bem-Amado (1973), de Dias Gomes, era uma sátira inteligente que criticava o regime militar através de coronéis do sertão baiano, que cometiam qualquer tramoia para permanecer no poder. E inaugura a fase das exportações da emissora. Só fica a dúvida de como traduzem o vocabulário peculiar de Odorico Paraguassú, quando diz: “depoismente”! Barroquíssimo!

Nesse período, ainda, foi implantado o “padrão Globo de qualidade” e a ampliação da Rede Globo no Brasil. Outro produto exportado é Gabriela (1976), de Walter George Durst. Baseada no romance de Jorge Amado, exaltava a cultura baiana com a morenice e a sensualidade de Sônia Braga. 

Sônia Braga em Gabriela, novela adaptada do romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.

Mesmo com tantos percalços, a década se encerra com a consagração do, recentemente falecido, Gilberto Braga. Escrava Isaura (1976) foi a novela que atravessou a Cortina de Ferro e chegou à África e à Ásia! Já Dancin’ Days (1978) foi uma febre que lançou itens de moda assinados por Marília Carneiro, como as meias Lurex com sandálias de salto alto. A trama era a rivalidade das irmãs pelo amor de Marisa, filha de Júlia e criada por Yolanda, resultando em que um sucesso absoluto em mais dearrebatou mais de 80 países. Memorável!

No ano de 1981, Sílvio Santos ganhou a concessão do Sistema Brasileiro de Televisão. Em 1982, passou a produzir obras adaptadas de telenovelas mexicanas, e recentemente, se tornou a quarta maior produtora de telenovelas da América Latina. Em 1983, surge a TV Manchete. Já a Globo simboliza o fim da Ditadura Militar e o início da Nova República com Roque Santeiro (1985), telenovela censurada anos antes, que foi reescrita por Dias Gomes, Aguinaldo Silva e Marcílio Moraes, e foi comprada por dezenas de países. A revista Veja, em 2016, a considerou a terceira melhor telenovela do Brasil. Quem não se apaixonou pelos personagens Viúva Porcina (Regina Duarte) e Sinhozinho Malta (Lima Duarte) exageradamente barrocos?

Porém, a instituição das maiores vilãs de todos os tempos foi introduzida por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, com a criação de Vale Tudo (1988), considerada a segunda melhor produção seriada do país, pela mesma revista Veja. Odete Roitman, que arquitetava as piores maldades, e Maria de Fátima, que além de roubar sua mãe, a renegava com todas as forças, são odiadas por todos até hoje. O assassinato de Roitman tomou a primeira página de jornais no dia de seu último capítulo, quando seria revelada a autoria do crime guardada como segredo de investigação do FBI.! 

Mas, nem tudo foram flores para a Globo… O verdadeiro tombo pela audiência foi com o lançamento de Pantanal (1990), de Benedito Ruy Barbosa na década seguinte, pela TV Manchete. Essa foi eleita a quarta melhor telenovela pela Veja (2016). A narrativa cinematográfica com longas tomadas da região pantaneira, ritmo lento e contemplativo, cenas de nudez e erotismo na natureza com afeto e vinculadas à trama amorosa, formaram a receita para a liderança da emissora mais nova. O fenômeno foi a coincidência com o Ano Internacional do Meio Ambiente, inaugurando a exaltação da consciência ecológica e do turismo na região Centro-Oeste. Juma Marruá virou um mito ao se transformar em onça pintada no imaginário do país.!

Todavia, a Globo, rapidamente, toma a frente com a inauguração do complexo cenográfico Projac (1995), onde passou a realizar toda a sorte de obras seriadas. Foi a década de introdução da tecnologia digital e da sofisticação das produções. Ao final da década e ao longo da seguinte, tivemos uma trilogia única: Terra Nostra (1999) e Esperança (2002), de Benedito Ruy Barbosa, e Passione (2010), de Silvio de Abreu. Obras de muito sucesso ao retratarem o desenvolvimento da colonização italiana aqui e as relações culturais entre os dois países: Brasil e Itália. Assim como Caminho das Índias (2009), de Glória Perez, contemplou a influência indiana no território nacional, e também teve ótimo desempenho na exportação.

E a produção mais bem-sucedida aqui e no exterior: Avenida Brasil (2012), de João Emanuel Carneiro. Considerada pela revista Forbes um fenômeno da televisão mundial, foi dublada para 19 idiomas. Todo o enredo gira em torno da vingança de Rita/Nina, que foi abandonada no lixão, um mundo nunca antes revelado na ficção televisual, pela madrasta Carminha. Na mesma novela, a classe dos emergentes foi retratada em todas as nuances. Espirais de relacionamentos enredam os personagens até o final, rendendo prêmios de melhores atores aos protagonistas pelas suas interpretações. E Carminha passa à galeria das vilãs adoradas por todos. Uma vilã multifacetada, manipuladora, mega-ambiciosa e ultrabarroca.!

Mas, ao considerar a última década, com o incremento das mídias digitais, a implementação dos streamings e lives, da onda de séries e da pandemia, que perdura há 2 anos, percebemos mudanças significativas na televisão aberta. Sem dúvida a concorrência por lazer está muito maior… A queda dos níveis de audiência foi vertiginosa, caindo até 50%, porém longe de ser uma ameaça às telenovelas.! É uma reviravolta semelhante ao surgimento do rádio em relação ao teatro, ou da própria televisão em relação ao rádio. O teatro continua firme, assim como o rádio e a televisão continuarão convivendo com os meios digitais. O custo de novas tecnologias, a extensão do nosso território e o poder aquisitivo da população… Ao pesar esses fatores, concluímos que as telenovelas abrangem grande parte do país, promovem uma troca riquíssima em termos de classes e cultura entre elas e, assim, lideram a preferência do público. 

Os “baixos índices de audiência” abrangem centenas de milhares de telespectadores, que revelam o potencial de amplitude do poder televisual, em comparação a outras mídias ou manifestações culturais, conforme alerta Arlindo Machado em seu livro A televisão levada a sério (2014)

Se analisarmos as pontuações, a Globo ainda representa aproximadamente o dobro do IBOPE diário da Record, com suas narrativas bíblicas, que, por sua vez, indica aproximadamente o dobro do SBT, com as adaptações mexicanas, salvo raras exceções, como as transmissões de jogos de futebol.

Dessa forma, o Brasil tem liderado a categoria seriada ao longo das décadas, fato que não descarta flutuações e trocas de posicionamento nos rankings de audiência ou mesmo de mídias. A inventividade brasileira tem sido prestigiada e celebrada ao mostrar tão bem a classe média, os sertões, o Pantanal, as imigrações, a vida no lixão ou a classe emergente em todo o mundo. E tudo isso, graças a nossa barroquice institucionalizada.

A ideia principal do trabalho que tenho feito sobre as florestas brasileiras – Amazônia e Mata Atlântica – é a de criar um diálogo com os artistas europeus que vieram ao Brasil para retratar pela primeira vez a exuberância da floresta tropical.

Fico imaginando a emoção e a surpresa desses artistas viajantes ao se depararem com uma floresta tão grandiosa, diversificada e diferente do que estavam acostumados a ver. É esse sentimento que tento resgatar, fazendo um trabalho, exatamente dois séculos depois, com uma tecnologia atual – a fotografia digital. Busco recriar uma volta no tempo, para transmitir a sensação de descoberta desses locais sublimes. A minha inspiração se deu muito a partir dos trabalhos de Debret (Forêt vierge sur les rives du Paraíba, 1834; Vallée dans la Serra do Mar, 1834), Rugendas (Forêt du Brésil, vers 1829: Forêt vierge près de Mangueritipa, 1835), Hércules Florence, Martius e, principalmente, do desenhista, cientista e arqueólogo francês conde Charles Othon Frédéric Jean-Baptiste de Clarac, de 1816. Este último, por incrível que pareça, fez o primeiro registro da floresta brasileira (La Forêt Vierge du Brésil), e para mim, sem dúvida alguma, a imagem mais espetacular e bela feita até hoje de uma floresta tropical. Creio até ser impossível que alguém um dia possa fazer uma imagem de floresta tão maravilhosa como esta.

O fazer deste ensaio fotográfico para mim é extremamente prazeroso, pois passar o dia todo caminhando no meio da floresta é uma forma de se reconectar com a natureza, algo ainda mais importante para mim, que sou uma pessoa urbana, tendo vivido sempre em grandes cidades. E nessas inúmeras caminhadas, tive muitos momentos emocionantes: um deles foi quando me deparei com uma recém descoberta Figueira-brava centenária, uma árvore gigantesca com raízes tabulares, formando um desenho maravilhoso. Essas árvores possuem uma energia incrível, elas impõem e merecem respeito, pois são como deuses da floresta – devem ser reverenciadas e contempladas. 

Espero que com estas imagens eu consiga também emocionar as pessoas, e que de alguma forma esses sentimentos ajudem na melhor conscientização sobre a importância de mantermos estas florestas de pé.

“Busco recriar uma volta no tempo, para transmitir a sensação de descoberta desses locais sublimes.”


A viagem de Cássio Vasconcellos

Por Daniela Bousso

A obra de Cássio Vasconcellos caracteriza-se como um trabalho de ultrapassagem das fronteiras entre fotografia e outros meios, e insere-se em um campo pós-disciplinar de operações artísticas. O artista enceta o  experimental como ponto de partida e designa um território de atuação que reúne técnica e subliminaridade. O seu modo de experimentar as imagens consiste em uma reorganização do imprevisível numa minuciosa trama de relatos. Na mediação imposta pela revisão constante, eis que surge o resguardo de um patrimônio vivo que subjaz em franca releitura, com a persistência da técnica aliada ao universo do fantástico. Ao inspirar-se nas imagens pictóricas produzidas pelos artistas viajantes que estiveram no Brasil no início do século XIX, visita florestas da Amazonia, a mata Atlântica de São Paulo e do Rio de Janeiro e produz uma série de tomadas in loco. Esta é uma escolha, uma maneira de produzir uma ecologia cultural, de reconstruir um sistema de identidades e criar novas imagens, recuperando parte da sua ancestralidade: o seu tataravô era Ludwig Riedel, o botânico que foi diretor da Seção de Botânica do Museu Nacional do Rio de Janeiro e integrou a expedição Langsdorff na década de 1820. 

Uma minuciosa pesquisa antecedeu as tomadas fotográficas que constituem a série “Viagem Pitoresca pelo Brasil”,  baseada, entre outras,  na obra “La foret vierge du Brésil”, de autoria do Conde de Clarac.  Nesta série absolutamente planejada, ele opera vários processos de transformação da imagem: ao fotografar, a matéria-prima é captada para acertar o processo posteriormente. Planejamento, seleção, interferência e seleção final, são etapas que respondem perfeitamente ao seu repertório atual e o seu desejo é remeter-nos à mesma sensação de emoção que os pintores viajantes como Rugendas, Taunay, Debret, Hercules Florence, Martius e Clarac tiveram ao visitar o Brasil. 

Para chegar a estas imagens, o artista percorreu caminhos arriscados, que ultrapassaram o que deve ser feito – em teoria – com o meio fotográfico e com o digital, este é o campo pós-disciplinar de sua ação. 

Ao retomar a imagem, ele produz a impressão de um gesto litográfico: desenha no computador folha por folha, a luz, são horas a fio desenhando – um processo digital artesanal onde a ação do dispositivo é completada manualmente – como nos primórdios da fotografia, quando os fotógrafos desenhavam sobre o papel fotográfico para ajustar contornos, cores.

Nesta reencenação da obra de Clarac, Cássio evoca a nossa consciência sobre a crise ecológica, sobre as questões de transbordamento do mundo atual. Ao reorientar o seu processo fotográfico, ao mesmo tempo em que se renova, produz ficção e fabulações. Por meio destas florestas, ele nos conduz a uma ecologia cultural a respeito do possível apagamento de um universo intocado, quiçá, por suposto em risco de dissipação, matéria de interrogação suspensa.


Barroco: substantivo masculino
1. Pérola de formato anômalo, caprichoso.
2. História da Arte: na pintura, escultura, arquitetura e artes decorativas, estilo, com elementos do alto Renascimento e do Maneirismo e ligado à estética da Contrarreforma, nascido em Roma c.1600 e cujas características básicas são o dinamismo do movimento com o triunfo da linha curva e (esp. na escultura e pintura) a busca da captação das reações emocionais humanas [Cedo internacionalizado, o estilo ganhou traços específicos em cada país.].

Dinamismo. Movimento. Triunfo da Curva. Captação das reações emocionais humanas. Contraste. Sagrado-Profano. Características do barroco enquanto estilo inserido na História da Arte brasileira e mundial, mas que em 2021 podem ganhar outros contornos. É preciso aquecer o barroco. É necessário estabelecer conexões entre a história da arte estudada nas universidades e a história da arte que é feita nas favelas, quebradas e periferias. O barroco está aqui. Desfragmentado, renomeado, mais preto, mais vivo. Ouso aqui pensar o barroco do meu lugar. De uma mulher negra e favelada, que pensa e escreve arte desde a favela. 

Do  Dinamismo:

Podemos entender que dinamismo é por essência a junção de forças que geram movimento. É esta uma das características do estilo barroco. Assim como era também uma das características de Dona Orosina Vieira. Vista por alguns historiadores como a primeira moradora do Conjunto de Favelas da Maré (Rio de Janeiro), Orosina construiu residência no Morro do Timbau (primeira favela da Maré), com madeiras sobre a área que ainda era mangue. 


Dona Orosina Vieira, considerada como uma das primeiras moradoras do Conjunto de Favelas da Maré.

No mesmo contexto, surgiram outras casas e núcleos familiares, intensificando o fluxo populacional da região, que hoje abriga mais de 140 mil pessoas. De uma casa sob o manguezal para um dos maiores conjuntos de favelas do país, o dinamismo foi palavra chave a partir da construção de mulheres e famílias essencialmente negras. O dinamismo estético apresentado no barroco também pode ser visto em estéticas faveladas. A pulsão do movimento é constante, desde a arquitetura, passando pelas gambiarras territoriais e desembocando em uma série de tendências que, como ondas, influenciam a sociedade como um todo. Biquíni de fita, alongamentos de unhas, descoloração de cabelos, “falhas” na sobrancelha não nos deixam mentir. A favela constrói uma visualidade dinâmica.

Do Movimento:

No livro “Cabeças da Periferia: Taisa Machado e a Ciência do Rebolado”, a atriz, pesquisadora e escritora conta que:

[…]eu tava no baile, e tinha um show de um MC que eu não vou lembrar  nome, e tinha uma dançarina com ele. Era um momento muito louco, era 2013, pegando fogo, e tinha um evento enorme no Complexo do Lins. Eu ia naquele baile todo sábado, e todo sábado devia ter umas 15 mil pessoas. Naquele dia tinha até mais gente, tinham duplicado o baile. […] Nessa noite tinha o tal do show desse MC com a dançarina. Ela era a famosa gostosa. Sabe quando você joga no Google “gostosa”? Aparece a foto de uma mulher tipo aquela. E ela tava de burca. Não uma burca ortodoxa, mas uma burca de show de funk, uma burcazinha que tapava só a cara. E dançando ela deu uma surra de bunda num cara. Surra de bunda é quando a mulher apoia os pés no ombro do cara e fica batendo com a bunda no rosto dele. Ela dançou pra caramba e os bandidos ficaram tão felizes com o show daquela mulher, que foram todos pra frente do palco. Eu tava lá na frente também. […] Eu não sei como me narrar nesse momento, mas com certeza eu tô trabalhando pra me narrar como eu narro essa mulher do baile.”

O causo narrado pela pesquisadora nos apresenta uma série de camadas. A favela. O baile. A dança. A burca. A surra de bunda. Todas elas permeadas e costuradas pelo movimento. Enquanto escrevo esse texto, observo as crianças correndo na minha rua, aqui no Parque União. Ao mesmo tempo ouço o som na rua paralela à minha. É sexta-feira, dia de baile do PU. As motos cruzam a favela, aceleradas na mesma via em que andam os pedestres, uma vez que por aqui calçada é raridade. Dizem que favelas como Nova Holanda e Parque União não dormem. Eu diria que não são apenas as duas. Diria que as favelas de forma geral não dormem. O indo e vindo infinito faz com que o movimento seja palavra essencial para pensar favela. Esse cotidiano insone e vivo reflete a necessidade de movimento de territórios, onde a inventividade se impôs como condição para a manutenção da vida.

Uma dançarina de funk de burca estabelece uma relação estética quase impensável. Mas esta relação se materializa quando falamos de barroco. Especialmente do barroco relido e revisto desde a favela. A conversa entre sagrado e profano ganha outro tom com o causo de Taisa. E é esse tom que me interessa.

Do Triunfo das Curvas:

Outra marca do barroco são as curvas, que sinalizam também o movimento, a dúvida, a fluidez. Porém, vivemos uma sociedade que por muitas vezes elege a linha reta. A firmeza, a dureza, a falta de flexibilidade e de “recheio”. O oco e reto. Assim, aqueles que apresentam a curva em suas ideias, corpos e modos de viver, acabam por ser marginalizados. Numa linguagem contemporânea a palavra “curva” virou sinônimo para falar de corpos (especialmente de mulheres) que fogem do padrão magro. Esses corpos muitas vezes são exotizados ou rejeitados. A sociedade brasileira ainda renega a curva.

Corpo-curva (Acervo pessoal da autora)

Em contrapartida, observo uma outra epistemologia da curva se formando em favelas e periferias, assim como em espaços LGBTQIA+. Formas outras de ver o mundo e de se relacionar com os corpos-curvas. Entendo aqui o corpo como plataforma de viver e de produzir arte. E as favelas são pioneiras no processo de fazer do corpo uma tela.

As unhas têm sido utilizadas como forma de demonstração de poder, autoestima e de afirmação ao longo da história da humanidade. No Egito Antigo – cabe lembrar que o Egito está situado em África –, o uso de unhas de marfim sinalizava status social, além da beleza estética. No Brasil contemporâneo, as extensões em materiais conhecidos como “acrigel” ou “fibra de vidro” marcam uma linguagem visual própria. Nesse quesito, a cantora Alcione aparece como uma referência destes corpos-plataforma artística, que permitem que os desejos, histórias e cores se apresentem como visualidade. Em programa de TV, Alcione relatou que “O povo lá em casa diz que gosto de um balangandã, de um colorido, é aquela raiz africana que a gente tem. Por isso essas unhas”. Alcione reforça a relação – não óbvia – que levanto aqui. O barroco tem muito a aprender com os balangandãs, com as “raízes africanas” e com as estéticas faveladas.

Cantora Alcione e suas unhas.

Da Captação das reações emocionais humanas:

O livro “O afrofunk e a ciência do rebolado” traz ainda uma reflexão sobre “o artista que se desenvolve na guerra”, a partir da mesma história citada por Taisa anteriormente. A dançarina de burca não interrompeu sua performance nem durante as rajadas de tiro disparadas durante o baile. A autora afirma que “Não tinha nada melhor do que o que aquela mulher tava fazendo na nossa cara, no meio de 15 mil pessoas.” A observação de Taisa, assim como o olhar de muitas e muitos favelados age como este captador das reações emocionais humanas. Estamos falando aqui de uma barroquice favelada ou de uma favela barroca, pensando que esses espaços não devem ser romantizados. Mas a proposta é que se veja também a favela como lugar de liberdade. Liberdade inclusive para ser barroca. É nessa liberdade que residem as emoções humanas, sentidas, vistas e vividas em intensidade por aqui. 

Esta ousadia conceitual de pensar o barroco a partir da favela – e vice-versa – vem de um desejo de nos provocar enquanto sociedade.  Vem da ânsia de ver mais favela na história da arte clássica. De rever os padrões de identidade nacional e os dogmas da Academia. Por isso, esse texto é um desejo. Desejo aqui um barroco com balangandã. Um barroco da gambiarra, que se constrói a partir de rolos de fio de “gatos” de luz. Um barroco forjado no movimento de expansão das favelas. Um barroco de curvas de mulheres lindas e pretas tomando sol na laje. Um barroco cada vez mais quente. Cada vez mais vivo.

#39Yes, nós somos barrocosCulturaSociedade

Mirar o Brasil para além do sincretismo: o vasto horizonte de palavras e práticas

por Celso Francisco Gayoso

O Barroco brasileiro enquanto experiência estética tem na coexistência de elementos sagrados e profanos uma de suas características, a isso é atribuída a marca sincrética. Contudo, é importante frisar que foram indígenas catequizados e escravizados de África os artistas que, mais diretamente contribuíram para a singularidade do barroco colonial brasileiro. Apropriações estéticas e epistêmicas, foi assim, do assenhoramento desses saberes e práticas afroameríndias que se constituiu a expressão artística “genuinamente” brasileira.  É durante esse mesmo barroco que ocorrem um sem-número de experiências culturais e políticas: lundus, emboladas, congadas, dança do Chorado, catiras, as irmandades pretas, os quilombos.

De antemão, é preciso salientar que o sincretismo não é de uso exclusivo do campo das religiosidades, mas que estende-se genericamente ao campo da cultura.  Dito isto, faz-se necessário também revisitar o termo. A ideia de construção societária do Brasil sob o signo do sincretismo foi responsável pela naturalização de um conjuntos de violências simbólicas e, sobretudo, físicas. A marca colonial decalca indelevelmente corpos, saberes e mentes. Mãe Stella de Oxóssi, na década de 1980, estabeleceu uma ruptura com essa terminologia ao afirmar que o sincretismo não é mais necessário, reivindicando o protagonismo do candomblé, rompendo suas ligações compulsórias com o catolicismo. Em Afrografias da Memória, Leda Maria Martins, ao observar alguns folguedos de origem de povos sequestrados em África, chama a atenção para a insuficiência do sincretismo na apreensão dos elementos culturais moventes dos reinados negros e congadas. Importante frisar que tratam-se de duas mulheres pretas pensadoras falando sobre um mesmo fenômeno. É a partir dessas considerações que o sincretismo se bota numa encruzilhada, que faz o termo qualificar não apenas processos de domesticação, como problematização que enredam revides, contudo é preciso ir para além do termo. 

Notem que a ideia de sincretismo estabelece uma tentativa de nomear fenômenos tão distintos a partir de fora, sem permitir efetivamente que aqueles que os realizam possam dizer por si mesmos o nome de seus saberes e práticas. Mais do que um vocábulo designativo, é preciso compreender essas cosmo percepções que ocorrem no vasto território brasileiro, em suas complexidades e singularidades. É preciso desprender-se da sanha eurocentrada, colonial, oficial e pretensamente universal de dar nome a tudo, há coisas que sequer nome têm. 

Se há algo a ser dito, é que as diversas matrizes culturais do contexto brasileiro operam numa tríade ética/poética/estética mesmo sem conhecer esses conceitos tão ocidentais. Assim, vale ampliar o repertório de vocábulos, fazer uso do pretoguês de Lélia Gonzales, das oralituras de Leda Maria Martins, dos quartos de despejo de Carolina Maria de Jesus, do retorno à casa de Nêgo Bispo, de aquilombar-se como propõe Beatriz Nascimento, da reza de Doninha do Tanque Novo, das ervas da Jurema. O sincretismo cada vez se mostra insuficiente para apreender a complexidade dessas experiências que vão muito além da religiosidade, ou do plano da cultura e transcendem à existência desses corpos que foram historicamente invisibilizados, juntamente com seus afetos, memórias e saberes. 

Bel Santos Mayer, num exercício de chamamento a esses afetos-memórias-saberes, propõe uma retomada das ideias de colo, casa e quilombo como instâncias de mediação necessárias para fruição das complexidades dessas experiências. É nesse exercício meticuloso de observação-acolhimento de vários entes (vivos e não-vivos), que constituem uma prática que se é possível avançar para além da visualidade apresentada, daquilo que o olho consegue apenas enxergar. Os povos originários do Brasil e os sequestrados de África sempre souberam da importância do estar em comum, da comunidade, e diferentemente da subjetividade europeia, que atribui a si a condição de sujeito e tudo que lhe é diferente, o estatuto de objeto; ancestrais, a vegetação, as águas, os bichos, tudo isso é preciso para o funcionamento de uma comunidade. 

De tempos em tempos, expressões de pretensão totalizante tornam-se populares e estabelecem a agenda de discussão, especialmente no campo das artes, para além dos espaços acadêmicos. O mais recente talvez seja o tal “Brasil profundo”, termo raso que, geralmente é atribuído aos lugares em que o brasileiro sudestino (no masculino mesmo) desconhece e se espanta ao ver e ter que reconhecer sua potencialidade estética; na incapacidade de apreender a miríade complexa dessas tramas culturais, reduzem-nas a um termo que parece simpático, mas que, por meio de um ardil linguístico, operam uma lógica em que os dominantes obtém dos dominados o consentimento para sua dominação.

Há momentos em que é preciso descansar as palavras, deixar nossas outras sabenças falarem, inclusive aquelas que desconhecem o vocabulário formal. A Totonha de Marcelino Freire diz: “Pra mim, a melhor sabedoria é o olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tem linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?”. Também isso de entender parece uma empreitada colonial entre a fruição estética e a vivência cotidiana. O Brasil para além dos centros não prescinde de compreensão ou nomenclatura, tampouco de ser entendido. Esse Brasil existe e é potente à revelia da tentativa de classificação, assim sempre foi e assim permanece, acapoeirando seus modos de pensar e fazer, deixemos para lá quem não quer ser perturbado, no querer apenas existir na potência de ser. 

Fotos de Beatriz Oliveira Pires
#39Yes, nós somos barrocosAmarello Visita

Amarello Visita: Quadra da Mangueira

Wesley Assumpção, também conhecido como Mestre Wesley, é o mestre de bateria do Grêmio Recreativo Escola Primeira de Mangueira. Oriundo da comunidade, começou desde cedo a desenvolver sua linguagem musical ao participar do “Mangueira do Amanhã”, projeto social fundado pela cantora Alcione, e como integrante do grupo de percussão Funk’n’Lata. Recentemente, o músico teve a sua trajetória levada às telas no filme “Mangueira em 2 tempos”, de Ana Maria Magalhães. 

O senhor poderia contar um pouco da sua história para quem não lhe conhece? Quem é o Mestre Wesley?

O Mestre Wesley é um rapaz, hoje, de 42 anos, nascido e criado no morro da Mangueira. Veio de uma família muito complicada, porque morar numa comunidade significa fazer um esforço para sair do caminho da criminalidade, e isso é muito difícil. E, na minha época, era mais difícil ainda, porque tinha a criminalidade dentro de casa. Meu pai era traficante do morro da Mangueira e, ao mesmo tempo, presidente da bateria da Mangueira. Então, quando eu cheguei na Mangueira, em 1987, vim através dele, porque ele queria que um dos filhos não entrasse no caminho da criminalidade e escolhesse alguma coisa na vida para se tornar uma pessoa do bem, uma pessoa positiva, uma pessoa que daqui pra frente poderia ser orgulho para alguém da família. E essa pessoa fui eu. Vim para a bateria da Escola quando era muito novo. No mesmo ano, a Alcione fundou a Mangueira do Amanhã, onde eu também me inscrevi e nela permaneci por muitos anos. Foi nela que me formei professor, diretor de bateria e, hoje, mestre de bateria. Sou alguém que lutou por muita coisa. Perdi meu pai no ano seguinte,  em 1988, morrendo como indigente, sem ser enterrado. Quando isso aconteceu, a família toda pensou que o filho mais velho iria se revoltar

para tentar vingar a morte do pai, e foi totalmente diferente desde o momento em que ele me trouxe para o mundo do carnaval – porque ele achava que eu tinha que viver alguma coisa dentro desse ambiente, dentro da música –, e hoje eu sou orgulho para a família. Hoje eu sou um cara que dá palestras sobre percussão para o Brasil inteiro.

Fizeram um filme sobre a minha história. Quando eu fui na pré-estreia do filme e me percebi contando a história que eu vivi, isso não tem preço, porque você passa a agregar algo na vida das pessoas. Hoje, tenho um projeto aqui de escolinha para a comunidade, mas perdi a metade dos alunos, porque é difícil você pegar uma criança e trazer para dentro da quadra para tocar porque eles não querem mais isso. Na minha época, não. Eu vinha para cá e ficava igual maluco, queria aprender. Hoje, se você não incentivar as crianças, eles não vêm para a aula. Antigamente, a Mangueira não tinha os cursos que tem hoje. Única Escola do Brasil que tem um projeto social para as crianças da comunidade. E você vai olhar os projetos e se tiver 10 crianças da comunidade, isso é muito. Se esse oportunidade existisse na minha época, eu teria me formado um maestro no Villa-Lobos, um músico profissional do Theatro Municipal, da Orquestra Sinfônica Brasileira. Eu fui lutando contra a barreira, contra a resistência, para chegar onde eu cheguei. Quando eu junto as crianças pra falar sobre percussão nas aulas de bateria, eu comento como é importante a bateria na vida de um ser humano. A Mangueira me levou pra conhecer o mundo, por que você não pode? Costumo dizer para eles o seguinte: “Se você não acreditar em você, ninguém vai acreditar”.

Pensando a música na Mangueira, como ela chegou na sua vida? Em que momento o senhor se lembra que pensou “Eu acho que a minha pegada é a música”? 

Em 1988, quando eu perco meu pai. Foi um baque na família. São três filhos. Eu, meu irmão e minha irmã. E logo que eu perdi meu pai, como eu era o filho mais velho, eu precisava sustentar a família, porque meu pai era traficante, mas não deixou legado nenhum. O máximo que ele deixou foi uma casa. Meu pai era muito difícil, minha mãe não podia botar a cara na janela que ele batia nela. Então ela não podia sair de casa. Como eu era o mais velho, eu vinha pra dentro da quadra, ficava olhando os ensaios. Eu desfilei e estreei na bateria, a gente tocando, na Mangueira bicampeã do carnaval, com meu pai ainda presente na bateria. No ano seguinte, aconteceu o que aconteceu e eu tinha que dar um jeito de levar um sustento para dentro de casa. Botei na minha cabeça que eu tinha que dar um jeito da música ser esse sustento. Aconteceu muita coisa ruim? Muita barreira? Aconteceu. Mas é o que eu falo: nunca desista de você. E eu falava “Deus, se eu te fiz alguma coisa de errado, o senhor vai me punir. E se eu não fiz, eu vou até o final e eu tenho certeza que uma hora o senhor vai me abençoar”. Quando eu tinha uns 10, 11 anos, comecei a participar da Mangueira do Amanhã. De repente, a Alcione monta um grupo de 30 ritmistas para tocar, durante três meses no Teatro Carlos Gomes, fazendo uma apresentação durante o show dela. Só os melhores, os mais destacados da Mangueira do Amanhã, e eu fazia parte disso. Aí tinha uma salariozinho. No final do ano, ela mandou cada um escolher dois presentes. Eu escolhi uma bicicleta e um videogame. Então ali as coisas começaram a caminhar e, meados de 1993, 1994, a escola principal me chama para virar um repique bossa do grupo de elite da bateria principal. Aí é onde eu começo a viajar o Brasil inteiro com a Mangueira, com a bateria, fazendo apresentações. O dinheiro começou a ser melhor do que quando eu iniciei, menor de idade. Então eu começo a ganhar dinheiro com a Mangueira viajando. E tinha um show da Mangueira, que em um momento entravam Dona Zica, Dona Neuma, Delegado, Mocinha e eu fazia o menino da Mangueira. Eu entrava com um pandeiro, no meio desses artistas todos, com a música da Mangueira. “O menino da Mangueira, recebeu pelo natal, um pandeiro…” [cantarolando]… Além de eu fazer parte desse papel que era o menino da Mangueira, eu fazia parte do repique. Então eu ganhava dois cachês. Eu chegava em casa e “Mãe, tá aí o sustento da família pro mês”. Foi aí que percebi que podia me sustentar e viver com música. De 1996 para 1997, o Ivo Meireles junto com o Alcir Explosão – que foi nosso mestre aqui e perdeu a vida para o tráfico – disseram: “O que tu acha da gente montar surdo, caixa, repique, tamborim, ganzá, botar baixo, guitarra e sopro?” Daí surge o Funk’n’Lata, e em 1998 faço a minha primeira viagem internacional, durante a Copa do Munda da França.  

Você tinha quantos anos? 

Eu tinha 17 para 18. Hoje, eu olhando as fotos – eu tenho essas fotos guardadas – eu falo “Caraca! Eu tava na Copa do Mundo de 1998! Eu toquei dentro do estádio da França, eu fui para Paris!” Eu fui para vários lugares do mundo com 17, 18 anos. Então ali a minha vida começa a andar. Quando eu volto da turnê internacional, eu volto com bastante dinheiro. Eu reformo a casa da minha mãe, dou uma estabilidade pra ela, mas eu tenho uma dor no meu peito, o meu irmão do meio vira traficante. Entra pra vida do crime, porque ele me vê, músico, voltando cheio de roupa importada, e o que que ele faz? Não vou ser igual meu irmão, mas quero ter o que o meu irmão tem. Com 12 anos meu irmão entra para o tráfico e não tem como tirar. Hoje ele é empresário, vive bem e tem orgulho do que faz, mas ficou três anos e sete meses preso. Hoje a família tá estabilizada. Perdi a minha mãe com essa pandemia. Tem um ano e seis meses. Mas o Funk’n’Lata ajudou a me estabilizar. Quando volto da turnê, recebo o convite  para virar o primeiro mestre de bateria da Mangueira do Amanhã, onde eu fico como mestre principal até 2003. Em 2006, o Russo me chama para ser diretor da escola principal e fico até 2010, quando o Ivo me chama para tocar na banda dele e eu me afasto da Mangueira como ritmista porque abriu outros leques, outros ares e eu vou conhecer outras formações musicais diferentes. Quando o Ivo assume presidente da Mangueira, ele me chama para o o carnaval de 2012, que foi o do Cacique de Ramos. Ele precisava de alguém para dirigir o carrinho de pagode junto com ninguém menos que Alcione, Jorge Aragão, Xandi de Pilares, Duda Nobre e Sombrinha e Luizito, quena época era nosso intérprete. A responsabilidade era muito grande e, após o desfile, entendi que eu estava pronto para qualquer desafio que me dessem dentro da Mangueira. Em seguida me afastei da Escola e em 2018, quando já havia desistido de um dia ser mestre da bateria da Mangueira, até pela minha idade avançada, o presidente me liga e pergunta quais os planos que eu tenho pra bateria.“Não entendi qual a pergunta do senhor”, eu falei.  “Porque eu vou trocar e eu tô pensando em você, mas eu preciso saber a proposta que você tem para a bateria. Vamos almoçar?” Eu fiquei a segunda-feira inteira sem dormir, só pensando no que eu ia falar para o presidente. Como eu desfilo aqui desde 1987, conheço todos os problemas que temos. Eu tenho tudo anotado e guardado em uma pasta. Quando chego no restaurante, eu jogo a pasta na mesa. “O projeto da bateria é esse aqui! Tem que mexer aqui, fazer isso, consertar aquilo, etc”. O presidente me anuncia mestre da bateria e eu sofro uma grande rejeição da comunidade e dos músicos, pelo tempo que fiquei afastado. A bateria chegou a rachar para fazer boicote para me tirar. Estávamos há 18 anos sem tirar nota máxima na bateria. Isso me mobilizou muito, recebi como um desafio pessoal. Eu começo a fazer um trabalho de formiguinha. Mexo no andamento, recuando ele. Mexo nas afinações, no desenho dos tamborins, altero a educação musical. Passo um pouco da minha experiência, de que quem ganha a nota é sempre a Escola, nunca você. Eu fui para a Marquês de Sapucaí com metade da bateria contra mim. Até que chega o carnaval, eu pego o megafone e falo para eles: “Ó, quem tá aqui não é o Wesley, é o comandante do barco, a nota não é minha, a nota é de vocês. Então pensem bem no que vocês vão fazer depois daquele portão ali, porque vocês não tão me sacaneando, vocês tão sacaneando a agremiação Mangueira. Então vocês têm que respeitar primeiramente a Estação Primeira de Mangueira, não a mim. Mas se vocês quiserem sacanear é um direito de vocês. Pensem bem no que vocês vão fazer porque o que eu tinha que fazer por vocês eu já fiz. O que eu tinha que fazer pela Mangueira eu já fiz, foi chegar até aqui com vocês.” E a gente entrou naquela avenida. Quando chega quarta-feira de cinza, a Mangueira tá indo muito bem nas notas. Na hora do quesito bateria, acaba a luz dentro da quadra e cai um toró d’água que fica por aqui na canela. E detalhe: acaba a luz na penúltima nota de bateria. Como é que eu vou ver a nota? Não tinha telefone com televisão digital. Um desespero danado. Eu já tinha escutado a primeira e a segunda nota, que foi 10, precisava de mais duas para tirar a nota máxima depois de 18 anos e dar o campeonato. Aí passou um menino, com telefone com televisão digital. Tomei o telefone da mão dele, já tinham dado a terceira nota 10, faltava o último jurado. Aí eu tô com o telefone dele na mão, tem uma poça de lama na minha frente, eu parado, com o telefone dele na mão, “quesito bateria, último julgador… Estação Primeira de Mangueira… – o maior silêncio – 10!”. Quando ele dá o 10, eu entrego o telefone pro menino e me jogo na poça de lama, da água da chuva, sabe? Pra tu tirar aquele peso das costas, de tudo o que você passou. 

Você pode falar um pouquinho sobre as especificidades de cada instrumento? Porque as vezes as pessoas acham que todos os repiques vão fazer a mesma coisa, que todos os surdos vão fazer a mesma coisa, sendo que cada instrumento desempenha um papel diferente e ainda tem o trabalho do mestre de bateria que pode colocar um molho mais diferente ainda. O senhor pode contar um pouquinho sobre isso?

Para explicar a diferença dos instrumentos eu vou dar o exemplo da Mangueira. Os surdos, aqui, todos eles tocam iguais. O único surdo diferente que tem na Mangueira – porque a Mangueira é a única bateria do mundo que não tem primeira, segunda e terceira, só tem um único surdo, que é o surdo de primeira – é um surdo que a gente chama de surdo-mor, que ele dá umas viradas no contratempo. Agora, as caixas tocam todas iguais, repique tocam todos iguais, timbal a mesma coisa, tamborim a mesma coisa, ganzá a mesma coisa. A única diferença é o repique show. O que é o repique show? Repique show é o repique guia que dá o andamento das bossas, da paradinha do samba enredo. Ele é que conduz a bateria toda. É uma brincadeira de pergunta e resposta. Tudo o que o repique pergunta, a bateria tem que responder. Então essa é a diferença do repique – a gente costuma dizer repique show, tem gente que diz repique bossa, outras escolas dizem que é repique principal. Então ele é destacado da bateria porque ele é que dá o andamento de tudo o que vai acontecer dentro de uma bateria. Ele que dá andamento se a bateria for correr; ele que dá o andamento se a bateria for pra trás; é ele que faz as perguntas da bossa e a bateria responde. Tudo acontece relacionado a ele.

O senhor falou uma coisa muito importante, que a quadra da Mangueira foi feita onde era um terreiro. A Mangueira tem uma tradição muito forte com o território, com a favela, é uma escola que tem uma história de negritude muito grande. Como entender a relação da Escola com essa ancestralidade? 

Eu não presenciei o nascimento da Mangueira no terreiro porque sou muito novo. Mas a história que dizem é que a Mangueira foi feita dentro de um terreiro de macumba, onde tinha muita mãe de santo, onde estavam as mães lavadeiras, onde os gatos serviam de couro para os tambores. Então tudo isso era num terreiro. Até que o nosso gênio, Angenor de Oliveira, nosso querido Cartola, tem a ideia de colocar o nome da nossa escola de Mangueira e tem a linda imaginação de colocar a nossa escola em verde e rosa. Costumo dizer que o Cartola, para mim, é um cara que tinha que ter uma estátua na entrada da quadra, do tamanho da quadra, porque hoje a Mangueira é o que é graças a ele. O Elmo, que foi nosso presidente na década de 1990, sempre fala: “A nossa escola é guerreira por isso, porque foi fundada dentro do terreiro das mães lavadeiras, dentro do espaço de uma gente de luta.” A Mangueira nasceu em 1928 nesse ambiente, quando as pessoas ali pegaram um tamborim, um surdo, um repique e resolveram montar uma escola de samba. O primeiro desfile oficial aconteceu em 1932, quando a escola ganhou o primeiro campeonato.

Você comentou que grava todos os ensaios para escutar quando chegar em casa. Do momento em que assume a bateria até incluir as inovações e as modificações a partir dos problemas que surgem, como funciona o seu processo criativo? Por exemplo, uma coisa que me chama muita atenção é o naipe de pratos, que mistura o que muitas pessoas consideram um instrumento dito erudito com o samba. O senhor pode falar um pouco sobre isso? 

O carnavalesco apresenta a sinopse, os compositores fazem o samba e depois levam para a quadra para as eliminatórias. Ali acontece o processo de afinar. Costumam ser quatro ou cinco sambas que se destacam entre 30, 40 sambas. Em 2022, foram 51 para escolher um. É a partir dessa seleção preliminar que começo a pensar em alguma coisa. Quando chegamos a três sambas, já consigo imaginar o que Escola vai levar para a avenida.  Em 2019, por exemplo, escolheram o samba da Marielle e eu era contra porque esse samba não tinha refrão, não tinha segunda. Era um samba que, nas eliminatórias, arrastava o tempo inteiro, a bateria não conseguia tocar ele, era um samba horroroso. Fui para casa contrariado e passei o domingo todo escutando a música. Em algum momento percebi que na parte  “Salve os caboclos de julho, quem foi de aço nos anos de chumbo…” [cantarolando] era possível inserir uma marcha. Estava dando quatro compassos exatos. Liguei para o carnavalesco para contar isso e iniciei a montagem desse processo. Tudo precisa funcionar dentro da letra e da melodia do samba, até porque a Mangueira não tem característica de fazer bossas exuberantes, com nove, 12, 14 compassos – como outras escolas fazem – porque a gente não tem surdo de resposta. Mandei vir uns dez atabaques, que pegamos emprestados do Candomblé e comecei a construir a marcha. Em seguida, percebi que eles não estavam dando vazão e resolvi colocar o timbal, que funciona mais com a Mangueira e com a arquibancada. Os timbales entraram como se fosse um ataque: : “tchum, Mangueira!”. O carnavalesco foi à loucura quando viu. Vou para a quadra e começo a passar para o ritmista, naipe por naipe. Boto um surdo num canto, caixa pro outro, repique pro outro, tamborim vai para um lado, ganzá vai pro outro. Ficamos um mês só nesse trabalho dos naipes antes de reunir a bateria toda, chamar um cantor e um cavaco. Vamos construindo as partes até chegar no todo que vai estar na Marquês de Sapucaí. 

O carnaval de 2020 foi o último que pudemos levar para a avenida antes da pandemia. Vínhamos do tema da Marielle e fomos para um outro samba muito denso, que gosto muito, mas não consigo sambar: “A verdade vos farás livres (…) / Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher / Moleque pelintra no buraco quente / Meu nome é Jesus da gente…”. É uma das coisas mais fortes que já ouvi na vida. Como aconteceu o processo desse samba? 

Muito parecido com o que se deu em 2019. Mas , na verdade, demorei pra entender a sinopse e o enredo desse samba. Achei ele muito perigoso, porque, como diz o ditado “O carnaval é da carne”. Você falar de Jesus, Jesus moleque, Jesus trans, eu acho muito pesado, mas eu respeito a opinião do carnavalesco. Ele queria contar um Jesus diferente, mas eu achei muito pesado, tanto que nosso instrumento tem um menino Jesus negro na favela, com um helicóptero no fundo, e ele com a mão furada, como se tivesse sido baleado na mão com a roupa do colégio. Eu só pensava o que eu podia fazer nesse samba. Quando encontrei a parte do “Favela, pega a visão”, logo lembrei que, como favelado, foi o Funk’n’Lata que me levou para conhecer a Europa  com 17, 18 anos. Então resolvi colocar um funk ali, e me parece que é a única parte do desfile que o público curte um pouco, porque o resto do samba a arquibancada toda fica parada querendo entender o que a Mangueira está passando na quadra. A Mangueira foi muito criticada por causa desse enredo.  No último carro, em que apresentamos um negro de cabelo louro, pra mim é uma das imagens mais fortes já feitas em todos os carnavais. Quando começa o desfile, eu vejo a arquibancada muito silenciosa, calada, porque as pessoas queriam entender o que a escola ia passar. E a própria escola e os seus integrantes estavam meio frios. Quando chegamos na dispersão, eu falei para todo mundo: “Vamos fazer de tudo pra gente tirar a nossa nota lá, porque a tendência é a gente não voltar, não, porque foi muito ruim”. E a quarta-feira de cinzas provou isso. A Mangueira ficou em sexto e voltou no dia das campeãs porque as notas da bateria seguraram. Tiramos quatro notas 10. Conseguimos salvar a Escola. 

Nessa edição da Amarello, estamos falando muito do Barroco, a partir de um ideia de que o movimento artístico está presente em algo da identidade brasileira, nos seus contrastes, cor e diversidade. O samba-enredo de 2020 tem muito desse jogo de luz e sombra, algo que as pessoas não estão acostumadas, a misturar  carnaval com temas sociais delicados da nossa sociedade. Como o carnaval pode contribuir para pensarmos – e repensarmos –  a identidade brasileira?  

Olha, eu acho que o nosso carnaval vem manchado desde a Ditadura. Se você aparecesse na rua com um tamborim, com uma lata, tu era preso. Então, não podia ter samba de terreiro, não podia ter samba em roda, que todo mundo ia preso. Eu acho que a discriminação já vem lá de trás. Então, o que que a Mangueira faz? A Mangueira tem um projeto social pra gente mostrar o contrário disso. Nesse projeto, eu dou aulas de percussão para pessoas de dentro e de fora da comunidade. Sempre que tenho a oportunidade, procuro mostrar um pouco da nossa cultura e falar sobre a cultura da favela, seja no Brasil ou fora dele. Recife tem favela? Tem. Fortaleza tem favela? Tem. Mas favela de lá não é igual a nossa aqui, que tem fuzis para tudo quanto é lado. Eu falo da favela porque é nela que eu vivo. As pessoas me dizem: “Eu acho que já tá na hora de você ir embora da comunidade”. Eu não vou, e sabe por que? Porque eu vou perder a minha raiz. É a partir dessa minha realidade que eu ensino meus filhos o que é o certo e o errado, não é saindo da comunidade que as coisas vão melhorar. Precisamos aprender a ter respeito pela decisão das pessoas. Para nosso país mudar, tem que mudar muita coisa. Tem que mudar educação, tem que mudar saúde, tem que mudar governo. Para mudar o país, a primeira coisa que tem que mudar é o sistema, e o sistema é muito difícil de lidar. Nós fazemos a nossa parte nessa mudança. O projeto social que falei já recebeu o Pelé, o Bill Clinton. O Philippe Coutinho saiu daqui. Muita gente saiu do projeto social da Mangueira. A Mangueira entende esse sentimento do Barroco, porque tem a proposta de mostrar pras pessoas que a gente consegue, se a gente se unir, a gente consegue sim criar uma nova realidade. Se o Brasil for um pouquinho mais unido, principalmente os negros, é possível ter esperança. Pra gente tentar mostrar alguma coisa, primeiro temos que mudar entre nós, cada um de nós. 

Mestre, muito obrigada!