Rudy Ricciotti vê a arquitetura como um produto do seu contexto, combinando o poder da criação com uma genuína cultura de reconstrução e amplificação dos ecos de outrora. Nascido em 1952, o arquiteto e engenheiro francês já apresentou ao mundo uma série de trabalhos experimentais premiados, que se caracterizam pelo uso inovador de materiais – em especial, o concreto –, aplicados com preciosa imaginação aos mais diversos ambientes.

Ao longo de toda a carreira, Ricciotti nunca quis tomar de refém aquilo que já existe. Distinguindo-se da abordagem arquitetônica praticada amiúde, a destruição não faz parte da sua construção. Sua visão contribui para a fluidez dos espaços, formulando um diálogo entre épocas, sem que uma projete sombras sobre a outra. Como o próprio arquiteto diz, mais do que nunca isso se faz necessário, pois é a partir do discurso e da poesia plural que se faz resistência. Indo contra os ditames da globalização, num só tempo Ricciotti resgata e amplia a beleza, a legibilidade e a funcionalidade da história. Nutrido de uma particular inovação-preservação, prova que é possível agarrar o real com uma mão e, com a outra, reescrevê-lo.

Para citar alguns de seus prêmios e ilustrar a dimensão do impacto de sua obra, só no ano de 2006 ele foi galardoado com o Grand Prix National d’Architecture e com a Médaille d’or de l’Académie d’Architecture. Teve participações marcantes, grifadas pelo pioneirismo, em projetos como: 

Departamento de Artes Islâmicas (Louvre) – Cercado pelas fachadas neoclássicas do pátio Cour Visconti, um véu ondulante de vidro tesselado surge imponente. É o teto da ala dedicada à cultura islâmica, representada pelo tapete, tão presente no ideário do Islã. Com o cuidado de não se sobrepôr às fachadas que a rodeiam, a ala foi elaborada ao lado de Mario Bellini.

Museu Jean Cocteau – Inspirada no clássico de Cocteau, A Bela e a Fera, de 1946, essa concepção cria uma mistura de linhas serpenteantes que, qual o filme, brinca com a luz e a sombra, jogando fumaça sobre o que é sólido e o que é poesia. Ricciotti resgata, assim, um pouco do aspecto sonhador de uma das figuras mais importantes da cultura francesa.

Le 19M, de Rudy Ricciotti para Chanel

Com o 19M, edifício parisiense que reuniu 11 ateliês do Métiers d’Art da Maison Chanel, também pôs em prática suas principais ideias como criador. O número presente no nome representa o dia 19 de agosto de 1883, data de nascimento de Gabrielle Chanel; já o “M” é uma somatória das palavras métiers, mode, mains e maisons – todas relacionadas ao artesanato. Vê-se, portanto, a necessidade latente de abraçar capítulos passados para só então desenvolver o condão de recontá-los, como Ricciotti tanto gosta de fazer.

Evocando visualmente a malha de um tecido de alta costura, o 19M é um edifício triangular de 25 mil metros quadrados e de pura cronologia. Por acolher uma coleção de empresas especializadas, é tido como um manifesto arquitetônico do alardeado savoir-faire francês. Antigo, mas atual; jovem, mas reverente. Mais um típico projeto ricciottesco, em que os microcosmos do agora se adaptam ao macrocosmos de antes – nunca ao contrário.

Em visita ao espaço, vimos de perto o trabalho do arquiteto, além de entrevistar cinco jovens artistas que dividiram com a gente suas concepções sobre moda, alta-costura, modernidade e o relacionamento do setor com a nova geração.

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Toco o interfone, aguardo alguns minutos numa esquina da rua Conde de Irajá, na parte mais estranha e confusa, de frente para um posto de combustível que funciona dia e noite abastecendo carros movidos a gás. O lugar está cheio de taxistas e motoristas de aplicativo conversando aos berros, com seus carros amarelos e azuis, pretos e prateados, com faróis de xenônio brancos ofuscantes, lanternas vermelhas, laranjas e bigorrilhos verdes reluzentes. Rafael Plaisant desce para abrir o portão e, enquanto subimos os lances de escada para seu apartamento-ateliê, noto que seus braços e pernas são repletos de tatuagens; uma caveira na mão esquerda, uma cigarra no antebraço direito, uma caravela numa das canelas, uma flor na panturrilha direita. A sala da casa é tomada de objetos de origens e usos dos mais variados: uma antiga vitrola acoplada a uma imponente televisão de 40 polegadas, uma luminária de alumínio industrial bastante grande e desproporcional adaptada e localizada sobre uma mesa de jantar, um par impecável de cadeiras Wassily, um sofá surrado, porém confortável, de desenho genérico de frente para a TV. Plantas trepadeiras bastantes comuns convivem com exemplares mais exuberantes. As paredes são completamente cobertas por gravuras compradas em leilões online, objetos de artistas autodidatas, pôsteres e trabalhos de artistas amigos. Isso tudo num cômodo de dezoito metros quadrados.

Atuando como tatuador há duas décadas, o exercício do desenho e da pintura sempre correu paralelamente a seu trabalho nos estúdios mundo afora. Ele revela, no entanto, que o isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19 foi o evento determinante para pôr em primeiro plano sua prática artística. Impossibilitado de tatuar e, ao mesmo tempo, cada vez mais mergulhado nos processos de pintura, Plaisant começou a utilizar o Instagram para tornar visível sua recente produção. Alguns meses e diversas pinturas vendidas depois, suas obras foram notadas na rede social por um jovem galerista nova-iorquino, que imediatamente propôs uma mostra individual, ocorrida no meio do ano de 2021.

Nas palavras do artista: “Em minhas obras, proponho explorar texturas e movimentos visuais em pinturas abstratas que evocam certos elementos simbólicos multiculturais e ancestrais. São composições simétricas, marcadas por profusão formal, que buscam discutir os limites entre as ambições universais das linguagens abstratas em contraste com suas vocações vernaculares, populares e pop. A pesquisa também tem como base certos ritmos da arquitetura déco, brutalista, do imaginário da ficção científica, dos quadrinhos psicodélicos e da arquitetura experimentalista e do anti-design dos 1960-1970”.

Estar diante de uma pintura de Rafael Plaisant é se defrontar, portanto, com um conjunto bastante heterogêneo de referências visuais e conceituais associadas simultaneamente. Mas que organização visual seria capaz de acomodar tal quantidade de elementos?

Plaisant parece, não sei se por alguma reminiscência de sua formação em arquitetura, criar um sentido de ordem baseado em composições sempre simétricas e geometrizadas. O artista consegue, dessa maneira, seja por justaposição ou sobreposição, acomodar formas abstratas, passagens tonais, acordes cromáticos e elementos lineares de maneira a produzir, apesar de toda a profusão de elementos, um sentido contemplativo, quase de transe, em suas composições. Podemos pensar nelas como grandes plantas urbanísticas de cidades impossíveis, como janelas de naves espaciais que cortam paisagens áridas, ou, ainda, como diagramas religiosos de alguma seita de origem obscura.

Suas composições abstratas remetem, por outro lado, às clássicas máquinas de pinball multicoloridas, muito comuns até pouco tempo atrás nos fliperamas de qualquer cidade do mundo. É importante salientar que Rafael é de uma geração de artistas que pertence à passagem da era analógica para a digital. Viveu, como vários de nós, uma primeira metade da vida ainda sob a égide da mão, o que pode explicar outra parte importante de sua prática: o fazer manual extremamente meticuloso. Seu método de construção passa, na grande maioria das vezes, pelo lançamento de um grande plano de fundo policromático, que é, dia após dia, sobreposto por elementos geométricos e lineares adicionados de maneira aleatória e equilibrados por seus equivalentes espelhados. Uma espécie de jogo de cartas que vai sendo reorganizado a cada nova rodada. Tudo isso guiado pelo uso de réguas e mascaramentos que ajudam e evidenciar, em suas estruturas, arestas muito bem definidas.

É importantíssimo ressaltar o papel da cor em seus trabalhos. Novamente, podemos perceber que o jogo baseado em certa aleatoriedade guia os movimentos do artista. Quero dizer, com isso, que sua articulação, longe de ser um golpe de sorte, funciona mais como uma improvisação musical, em que a nota cromática ou acorde anterior propõe uma pergunta visual que é respondida pela nota ou acorde seguinte. Dessa maneira, acordes bem equilibrados, baseados em analogias cromáticas ou de temperatura, são surpreendentemente associados a cores fluorescentes e hipersaturadas, formando articulações de cor imprevisíveis.

Por fim, talvez faça pouco sentido continuar tentando nomear a multiplicidade de sentidos proposta nas composições do artista. Como toda boa pintura, a obra de Rafael Plaisant se constitui fundamentalmente pela força de sua intrigante presença.

Sapos triunfando contra as cobras, de Kawanabe Kyōsai (1879)

Quando o Fogo está em posse dos Urubus e a Natureza sofre consequências drásticas, como a forte cisão entre seres vivos, o Sapo é quem devolve o brasa ao seu devido lugar. Eis o mito d’O Grande Dia dos Guaranis-mbyá. Mas, voltando o olhar ao herói dessa mitologia, fica a pergunta: como pode o Sapo crepitar tantas interpretações?

Tatá Piriri ilustra o mito d’O Grande Dia na capa da Amarello Fagulha. Arte da capa de Xadalu Tupã Jekupé.

Na Idade Média, sabe-se que ele era relacionado a manifestações do mal e bruxaria. E engana-se quem pensa que essa visão é exclusividade da Europa Medieval. Lembremos do popular cântico brasileiro que versa sobre o bom e velho Sapo Cururu. Ao que tudo indica, esse Sapo não lava o pé, e não o faz porque não quer (o que, em outros casos, seria um vislumbre de empoderamento). Se ele está agindo conforme a própria vontade, por que, então, cair na interpretação do “mas que chulé”? Se o anfíbio tivesse seu merecido lugar de fala, ele decerto dispararia textões contra os haters do seu pé, coaxando “meu pé, minhas regras”. 

E quais outras visões de mundo o Sapo faz arder?

A Princesa e o Sapo

A Princesa e o Sapo

O conto The frog prince (1812), dos Irmãos Grimm, relata aquele bê-a-bá já tão ressoado: bruxa má transforma um príncipe em Sapo, ele perereca até o castelo da princesa e ela, hesitante, deixa-o entrar pra, eventualmente, vê-lo na forma humana e tudo mudar. O conto vem do folclore alemão, cujas lendas chegaram aos irmãos enquanto viajavam por vilarejos europeus em busca de histórias.

“Sapo enterrado”

Diz-se isso quando um time de futebol fica anos sem ganhar um campeonato. Em 1937, os atletas do Vasco da Gama se atrasaram e fizeram com que os adversários do Andaray esperassem por horas. Apesar da demora, a vitória por W.O. não foi reivindicada e, como retribuição, foi pedido ao Vasco pra que pegasse leve. Porém, o placar final foi 12×0, despertando a fúria dum jogador do Andaray, que, reza a lenda, teria enterrado um Sapo em São Januário, pra que o Gigante da Colina ficasse anos sem títulos. Depois disso, torcedores vascaínos de fato amargaram uma seca de 12 anos sem títulos.

Kermit, the frog

Kermit, ou Caco, é uma representação do homem comum (isso mesmo) largamente presente na cultura pop americana há décadas. Desde sua primeira aparição, em 1955, foi abraçado pelo público e ganhou espaço em tudo quanto é tipo de produção, da TV aos musicais. Amado por gerações e mais gerações, o líder dos Muppets virou um símbolo carismático dos EUA. 

Kaeru & Chan Chu

Kaeru, além de “Sapo”, também significa “voltar” em japonês. A tradição, que veio da terra do sol nascente e se firmou em terra brasilis, consiste em presentear pessoas queridas com uma miniatura do anfíbio, feito um amuleto de boa sorte. Já o Chan Chu é a representação chinesa do Sapo como símbolo de prosperidade. De acordo com a tradição, durante o dia estes Sapos devem ser deixados de frente à porta de entrada da casa, convidando a boa fortuna a entrar. Mas, à noite, devem ser deixados de costas, pra evitar que o dinheiro deixe aquele lar.

Chan Chu é a representação chinesa da prosperidade

Chuva profícua à vista

Na América Central, os Maias viam o barulho dos Sapos como uma manifestação do deus Chac, anunciando a chuva que fazia brotar verde em planícies secas. Além do crescimento de plantas, também eram relacionados à fertilidade humana.

Ponto é que, aqui ou acolá, o Sapo desses contextos diversos é o mesmo dos Guaranis. Apesar de parecer em paz coaxando distante dos excessivos debates virtuais, o anfíbio ora troçado ora adorado é o herói que nos cabe agora. Tal qual o vigente cenário fluido-cibernético, é a fagulha que desperta as mais distintas interpretações. Capazes de incendiar as bolhas em que vivemos e assim criar novos mundos, que tanto o Sapo quanto o calor da revolução possam fazer com que a comunhão chamusque pelo céu da atualidade.

Vermelho, amarelo, preto e branco são as cores que predominam na produção de Mulambö (1995), jovem artista carioca, nascido e criado entre a Praia da Vila de Saquarema e São Gonçalo. “Nasci João e cresci Mulambö”, conta. A referência do nome artístico vem dos tempos de criança, quando passava o dia inteiro na rua, jogando bola e brincando. Ao voltar para casa todo sujo, ouvia da mãe que estava todo esmolambado. “Quando eu comecei com a produção que tenho hoje em dia e entendi o que eu estava fazendo e o que eu queria dizer, reassumi esse nome por justamente querer estar sujo de tinta, sujo por estar fazendo os trabalhos da mesma maneira que ficava quando brincava, com a mesma vivacidade, vontade e leveza”, afirma.

Seleção (2019)

Mulambö acerta na escolha de palavras: trabalhando sobre diferentes suportes e com técnicas diversas, suas obras pulsam uma energia vivaz, uma singularidade que se apresenta no tom de ironia, metáfora e certo humor que perpassa sua produção. Porém, sua obra não é feita apenas de prazer; pelo contrário, o resultado rapidamente se transforma pelas questões sociais, políticas e culturais que estão ali traduzidas através da arte.

Desigualdade social, racismo, corpo negro, marginalização, pobreza, discriminação, estratificação social são temas imprescindíveis que conformam o universo de sua poética. Ele retrata a realidade em que cresceu – sua, da família, dos amigos, dos seus pares e de sua cidade. É aqui que as cores utilizadas pelo artista ganham evidência: “As minhas cores surgem da ideia de placa de informação, placa de trânsito e, principalmente, da placa de ‘Perigo Correnteza’ que vemos nas praias. O que procuro com essas cores é um sentimento de urgência, de que preciso falar o que falo, como nessas placas, porque é uma informação que precisa ser captada de primeira. E é isso que quero para o meu trabalho, porque não temos mais tempo a perder, nossas histórias precisam ser ouvidas”. 

Utilizando materiais tão diversos quanto tijolos, vassouras, pás, pneus, giletes, arame farpado, bandeiras, madeira e papelão, o artista cria um repertório único que, se nasceu da necessidade, por não ter onde comprar materiais, transformou-se em escolha: utilizar materiais que estão próximos em diversos sentidos, utilizar a subjetividade dos próprios materiais encontrados para falar sobre si e sobre a sociedade. O resultado são obras que provocam no espectador uma tomada de consciência imediata. Os desenhos, esculturas e instalações surgem, de fato, como avisos, como se dissessem: “cuidado, racismo estrutural”, “atenção: zona de desigualdade”.

Orcas vivem mais quando têm avós (2021)

Em algumas obras, o recado é direto, como é o caso, por exemplo, da obra Entrada de Serviço, que consiste em uma placa homônima, instalada em três exposições distintas. Em 2019, na entrada do Centro de Artes da UFF; um ano depois, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage; e, em 2021, no IMS Paulista, por ocasião da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros. O objetivo é claro e transparente: inverter a ordem, transformar a porta principal da galeria em uma entrada de serviço. Já As dificuldade de manter os pés no chão (2019) consiste em um chinelo Havaianas comum, no qual as tiras foram substituídas por arame farpado. Em Queria um pincel, ganhei uma vassoura (2018), Mulambö transforma, com a pintura, uma vassoura em tridente. De objeto simbólico do lugar que a sociedade branca destinou – e muitas vezes ainda destina – aos negros, encarregados de serviços de manutenção e limpeza, a vassoura é transformada em instrumento para a resistência.

Entrada de serviço

Em outros trabalhos, como Disfarça e chora (2020), uma série de desenhos feitos em tinta acrílica sobre papelão, o que sobressai é uma poética visual sensível, que fala sobre força e resistência através do traço e das cores, restituindo, a partir da pintura, o direito de chorar àqueles que a sociedade impõe que baixem a cabeça e trabalhem, aguentem. Em G.R.E.S. e Saquarema, o que pulsa é a vivacidade da cultura: a cultura popular, o carnaval, a praia, a família. Cenas que simbolizam um dos muitos “Brasis” que temos em nosso país.

Vila Saquarema (2021)

O início da sua trajetória nas artes visuais foi marcado pela relação com o universo das histórias em quadrinhos e dos desenhos animados. Outro ponto importante, considerado pelo artista como formador de suas referências e fundador do seu olhar e poética, é justamente sua relação com o carnaval e, para além do evento em si, uma ideia de carnavalização. Conforme conta, a convivência com a escola de samba está presente em sua vida desde sempre: “A família de minha mãe vem de escola de samba, somos da Acadêmicos do Sossego, então essa paixão e essa forma de ver a vida me influencia para além do artista, em tudo que faço”.

Iemanjá (2021)

Sua trajetória, embora recente, é marcada por essa consciência precisa sobre a estruturação de um sistema que por muito tempo foi feito por brancos para brancos. Conforme escreve em seu livro homônimo, Mulambö,publicado digitalmente e disponível em seu site: “Pouca coisa mostra pra gente que nossos corpos são feitos para produzir pensamento, sensibilidade e presença, mesmo que a gente produza isso desde sempre”. Mulambö sistematizou seus objetivos e correu atrás dos seus interesses. Não desistiu até encontrar uma linguagem própria, através da qual conseguisse comunicar sua mensagem. Nesse percurso, encontrou pares como Carla Santana, Ana Bia Silva, Isabela Cabeço, Yhuri Cruz, Ana Clara Tito, Ana Almeida, Jota Mombaça, e lugares de produção descentralizados, afro-centrados e de origem suburbana, onde sua história encontrava ressonância. A partir dali, um primeiro projeto de exposição começou a ser gestado, e as coisas começaram a acontecer. 

Com pleno entendimento do papel da internet e das redes sociais para a promoção dos artistas hoje em dia, ele focou em produzir algo para aquele meio. E foram justamente seus desenhos digitais, publicados no Instagram e feitos sobre fotografias em preto e branco, apropriadas de outros fotógrafos, que chamaram atenção do professor e curador geral do Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), Marcelo Campos: “Quando conheci o Mulambö, fiquei bem impressionado com a obra dele e onde ele estava com as relações das imagens. Eram fotografias muitas vezes preexistentes, e ele então se apropriava dessas imagens e criava outros elementos. Criava intervenções, colocava cores, escrevia em cima das imagens, e isso dava um caráter muito original, muito singular ao trabalho dele, ao mesmo tempo que demonstrava uma relação muito direta com a ideia de uma representação mais popular, mas uma representação mais ampliada. Essas imagens, que pareciam ter uma espécie de comentário sobre o mundo de um modo muito dinâmico, me impressionaram bastante”, comenta ao se referir aos desenhos que compõem a série Xarpigrafias (2019).

A partir daí, veio o convite para o artista inaugurar uma nova galeria localizada dentro da biblioteca do MAR. Em 2019, Mulambö realizou Tudo nosso, sua primeira exposição individual. A mostra apresentou trabalhos de quase todas as fases do artista até ali, entre elas a série que era então a mais recente, Armas (2019). Um conjunto de pequenos desenhos feitos com guache sobre papelão. São personagens da vila, da praia, do carnaval. Corpos pretos com roupas brancas, sem rostos, munidos de seus objetos cotidianos, suas armas de resistência. Um conjunto de obras que deixava claro de onde vinha, com quem se comunicava e o quanto precisava ser ouvido.

Júlia Vermelha (2022)
Bandeira (2021)

Também faziam parte da exposição obras como Seleção (2018) e Arte preta tipo exportação (2019). A primeira, uma pintura em tinta acrílica e fita crepe sobre papelão, que retrata uma foto da infância do artista, com seus amigos, no time de futebol. Sem as faces aparentes, a fita crepe sobre os olhos veda ao mesmo tempo que anuncia qual foi o destino de cada um dos meninos: militar, traficante, pastor, PM, lutador, artista, modelo. Já Arte preta tipo exportação, uma pintura acrílica sobre juta, remete às sacas de café e a exploração dos corpos pretos como objetos, a comercialização dos corpos negros como se fossem mercadorias. “Esse é um trabalho sobre um lance que aprendi com a Jota Mombaça, que é a hipervisualização do corpo negro como objeto enquanto é invisibilizado como sujeito”, escreve Mulambö em seu site.

Para Campos, o trabalho de Mulambö tem uma característica muito própria na forma como ele, sendo carioca, retrata elementos da cultura local: “Ele exibe elementos que se ligam ao futebol, ao carnaval, à discussão em torno da cultura popular, mas, por outro lado, com muita consciência étnico-racial, e isso faz do trabalho dele um trabalho de mergulho, sobretudo de um profundo amor por discussões que estão vinculadas a uma espécie de Brasil mais profundo”, completa Campos.

Monumento (2021)

À exposição do MAR seguiram-se outras individuais, no Brasil e no exterior, bem como a participação em feiras, aberturas e exposições coletivas. Mas, como já anunciava na frase adesivada no chão da galeria do MAR – “Não tem museu no mundo como a casa da nossa vó” –, Mulambö reforça que a ascensão a um sistema consolidado das artes precisa necessariamente trazer um retorno para o lugar de onde ele vem. “A arte periférica nessa estrutura estabelecida nas artes chega como algo inevitável, mas que, ao mesmo tempo, sofre um apagamento muito grande. Para eles, é arte periférica apenas o que se encaixa nas expectativas deles. E eu entendo que meu trabalho se encaixa nisso de certa forma; é algo que eu fico constantemente pensando, como meu trabalho, meu corpo e minha história ocupam esses espaços. Tento sempre driblar a estrutura; em certos momentos, dar o que é esperado e, em outros, fazer projetos diferentes que me mantenham vivo e instigado a experimentar”, comenta. Seu interesse está também em levar arte e cultura para o lugar em que nasceu e cresceu, transformar outras vidas e mostrar para outras pessoas pretas, de origem suburbana, que arte e sensibilidade são um futuro possível, que outras histórias, parecidas com a dele, existem e precisam de espaço. “Meu movimento de estabelecer meu trabalho e produção em Saquarema, na casa da minha família, faz parte desse meu desejo”, completa.

É de lá que prepara sua próxima exposição individual, que será realizada no Instituto Pretos Novos, espaço localizado na Zona Portuária do Rio de Janeiro. “Depois de muita correria, aberturas, exposições e feiras de arte, essa exposição está vindo como um reencontro com meu trabalho, com o começo do meu trabalho, ao mesmo tempo que tento experimentar novas linguagens e coisas que nunca explorei antes. É justamente uma exposição onde vou poder experimentar livremente, graças à confiança que o espaço teve em mim”. A exposição está prevista para o segundo semestre de 2022.

#41FagulhaEditorial

Fagulha — Amarello 41

“Quando questões importantes rompem suas bolhas, o novo se faz.”

Em sua edição Fagulha, a Amarello faz um convite para que estejamos atentos ao novo e ao diferente como caminhos para a transformação.

Vinte e dois anos passados do início do século XXI e já conseguimos elaborar, enxergando com distanciamento, o que foram as últimas décadas. E para onde as décadas futuras apontam.

Vivemos um importante momento de transição. Fazemos parte de uma revolução sociocultural sem precedentes, com o acesso irrestrito à internet e os avanços da tecnologia.

A Internet surgiu como promessa para a comunicação, os negócios e as relações humanas. Depois de décadas, as redes sociais nos transformaram em produtos e nos adoeceram com seu fluxo insano de informação, alcance e estímulos visuais. Lado obscuro de uma ferramenta que, da mesma forma, tornou público, e ao alcance de muitos, debates importantes, antes restritos a nichos de vivências, interesse e privilégio.

É neste lugar que acredito encontrar a fagulha do nosso tempo. Quando questões importantes rompem suas bolhas, o novo se faz. Através da escuta do que é novo para você, do que não te pertence, do que é diferente de nós e daquilo que não nos é habitual, vemos nascer a faísca revolucionária que nos tirará do limbo humanitário em que vivemos há décadas.

Essa edição é uma reflexão da importância do tempo em que vivemos. É um chamado para que nossos olhos estejam abertos, conscientes, em resposta aos últimos anos, delicados e desafiadores.

Que o trepidar da fagulha de hoje abra caminhos mais luminosos em um futuro próximo.

Tomás Biagi Carvalho

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Fotos de Tomás Biagi Carvalho

Esta conversa foi feita em duas partes. A primeira aconteceu na exposição Choro, de Antonio Kuschnir, durante uma visita presencial guiada pelo artista. Com generosidade, Antonio foi compartilhando a subjetividade das imagens, tela por tela. É a primeira vez que ele faz uma exposição tão grande. Aos 21 anos, é o artista mais jovem a ocupar o Museu de Arte Contemporânea de Niterói.

A segunda parte foi uma conversa virtual com o curador, Victor Valery, de 27 anos. Como ele está em São Paulo, optamos pelo vídeo. A distância, entretanto, nos aproximou. Conseguimos furar a frieza da tela, e adentramos no calor dos assuntos.

Foi fundamental decantar a visita física para reviver o tema, dias depois. Aos modos da pintura, oscilar entre a proximidade e o recuo. Durante o texto, os dois diálogos se complementam. Juntos, conseguiram expor 72 telas no Salão Principal do MAC de Niterói. Em todas elas, há o jorro da vontade – encarnada no jorro pictórico e no jorro de lágrimas.

A semente de toda essa série foi meu primeiro desenho de choro, em setembro de 2018. Foi quando o museu nacional pegou fogo, e vimos ele arder ao vivo. No meu caso, além da dor coletiva, sofri intimamente, pois minha mãe é antropóloga e trabalhou lá por 13 anos, com pesquisa. Passei grande parte da minha vida acompanhando isso. Quando as chamas arderam, a gente sabia exatamente o que estava sendo queimado. Registros únicos de línguas indígenas que já foram extintas, por exemplo. Não tinha cópia, acabou. Foi uma perda para o Brasil, para a humanidade. Foi muito traumático. Eu nunca tinha pintado choro, nem desenhado. No dia seguinte do incêndio, eu estava na aula, rabiscando… Sabe aquele desenho que a gente faz meio no automático? Quando vi, tinha desenhado o museu pegando o fogo, e um rosto no primeiro plano. Era uma pessoa com a boca aberta, a língua para fora, aos prantos. Pensei: acho que tem alguma coisa aí. E o futuro foi provando que essas tragédias – e choros – não iam parar. 

Mas o choro já é uma elaboração, de certa forma. Muita gente não consegue chegar até o choro. Eu tenho dificuldade de segurar, então tive que aprender a chorar, mesmo em público.

Também prefiro tirar de mim do que perpetuar. Engraçado, eu não choro em público. A pintura chora por mim, ela coloca muitas coisas para fora. Também não lembro dos meus sonhos, é muito raro. Mas eles vêm parar nas telas. Um psicólogo me falou isso um dia, e eu acredito. 

Eu gosto muito de pensar no choro como extensão da gente, como parte do corpo. Depois de tanto isolamento, sinto que estamos voltando a revalorizar uma arte mais táctil, mais aqui-agora: pintura, escultura, teatro.

É uma necessidade humana, criar imagem com o corpo, sentir e expressar com o corpo. Mas eu acho que o teatro, como o cinema, tem um tempo marcado. Já a pintura não tem essa limitação. Você dá o tempo dela.

No sentido de você escolher se vai contemplar por segundos, horas ou anos?

Sim. Por ser estática, parece eterna. O David Hockney fez uma imagem que é muito emocionante, sobre a estaticidade. É uma cena com dois homens conversando e, acima deles, um leopardo imenso está prestes a atacá-los. Mas o leopardo não vai chegar, porque é uma pintura. O leopardo está preso, para sempre, no ar. Assim como essas figuras ao nosso redor, que nunca vão parar de chorar. Vão estar para sempre presas na tela, para o bem e para o mal. Eu gosto muito disso.

E tem uma liberdade muito grande, não só de congelar o tempo, mas de criar o que não existe.

A pintura cria um universo próprio. O Matisse tem uma história muito famosa, de quando ele pintou uma mulher com uma sombra verde, no meio do rosto. Ele estava expondo num salão, muito no início, e chegou um visitante e disse: “O senhor está maluco, pintando mulher verde”. Matisse respondeu: “Isto não é uma mulher, isto é uma pintura”.

É curiosa essa perseguição do que é real, né? Como se não existisse a imaginação, a
expressão livre.


Sim. É do humano querer expressar qualquer coisa que seja. Não à toa, quando alguém quer adoecer um povo, a primeira coisa que tira é a educação, a cultura. É o primeiro alvo dos ataques. Lembro que, quando criança, as aulas de arte eram meu refúgio. Com sete anos, eu entrei em um curso de artes no Parque Lage e nunca mais parei. Mas foi no ensino médio, quando comecei a estudar História da Arte, que compreendi a jornada e me enxerguei como parte dela. Tive uma professora que me disse: você tem que ter um caderno e andar com ele sempre, para desenhar todos os dias. Eu acatei, e comecei a preencher um caderno por mês. Percebi que era o meu caminho. Ou isso, ou nada. Senti que não tinha escolha.

E então você foi para a universidade, estudar Artes?

Isso. Eu escolhi estudar na Escola de Belas Artes da UFRJ, pois queria ter acesso a um ensino mais clássico, aprender a técnica. Conhecer os artistas, as épocas, fazer estudos, cópias. Queria ter tempo e espaço para treinar meu olhar e minha mão. Eu acho legal quem lê cinco livros do Foucault e do Deleuze antes de pintar uma tela, mas meu caminho é outro. Eu me conecto com a materialidade, com o ofício; gosto de ler sobre arte a partir dos escritos dos artistas, das autobiografias. Gosto de aprender com quem faz, com quem enfrentou crises semelhantes às minhas, em outras épocas. Ler os relatos em primeira mão.

E você costuma anotar suas ideias, processos? Você também registra seu trabalho de ateliê?

A pintura é meu diário. Eu não escrevo muito, mas pinto todo dia. Se alguém quiser ver como foram meus pensamentos em tal ano, é só pegar as pinturas, na ordem. Elas vão dizer mais sobre mim, e sobre o momento, do que eu.

Mas você persegue temas específicos ou retrata o próprio cotidiano?

Eu acredito na arte como uma grande história de amor. Tem coisa mais transcendental e de difícil entendimento do que o amor? E mesmo assim a gente sente, a gente sabe que sente. E a pintura também é difícil, a gente tem dificuldade com tudo, passa séculos na mesma questão. É uma coisa que vem da gente, que nós criamos, e que não conseguimos compreender. Mas não é só sobre o bom do amor. Há prazeres e agonias. Então não estou interessado em fazer uma pintura que seja puramente bela, seja lá o que isso for. A série Choro aborda temas sombrios, mas eu adicionei cor. Eu não queria cair nas obviedades da pandemia, botar todo mundo de máscara. Eu queria tratar de coisas maiores, mais abertas, questões que atravessam os tempos.

Mas você acabou pintando algumas cenas bem atuais, sobretudo naquela parede que mostra muitas interações com telas e celulares. 

Eu gosto de pintar natureza morta, e considero o celular uma natureza morta. É muito cinza, melancólico como um dia nublado. E gelado. É feito para juntar, mas muitas vezes separa. Quase todas as telas dos celulares que pintei estão vazias. Elas são o black mirror, quando a gente olha se vê refletido no nada, no preto.

É uma espécie de luto? Você chega a atacar o celular, em algumas telas.

Eu gosto muito dessa ideia do celular golpeado, sangrando. Acho divertido, pois poucas pessoas estranham. É um objeto tão humano que a gente pensa “ah é, se a gente matar, ele vai sangrar”. É a humanização do objeto e a objetificação do homem. Isso é do Marx, inclusive. Lembro que me marcou. Ele fala sobre as inversões da sociedade, que levam à alienação.

E essa coisa dos celulares serem meio angulosos, tipo umas pirâmides tortas?

Tem a ver com a perspectiva reversa, que é um conceito que eu tenho estudado, não tanto quanto gostaria. Mas é basicamente assim: você tem a perspectiva renascentista, que tem o ponto de fuga lá no final e tudo converge para ele – é geométrico, mostra os objetos em tamanhos proporcionais; acho que surge por causa da arquitetura, para ser possível projetar –, mas tem muitas imagens que seguem outra perspectiva, tipo os ícones bizantinos, que têm o ponto de fuga em outro lugar. Ele não está fixo no infinito, longe da gente. Está apontado para frente, está aqui, em nós. Como se nossos olhos fossem o ponto de fuga. As coisas abrem, como se você pudesse se mexer em volta do objeto. Os cubistas usaram muito isso. O David Hockney, aos 84 anos, está explorando a perspectiva reversa também.

Mas está para além do visível?

Sim, depende da experiência. Acho que a pintura é um dos meios pelos quais você pode chegar um pouco mais perto do invisível. Sinto que, se existe algo próximo do divino, é a arte. 

(Enquanto percorrem a galeria)

É legal esses observadores que você coloca. Aquela figura na porta lembra Velázquez.

Gosto desse exercício das múltiplas visões. Não só o que a gente está fazendo agora, olhando para as pinturas, mas essa metalinguagem. Uma figura olhando para outra, dentro da tela. Ou a figura olhando para o celular, e o celular olhando de volta, e as diferentes implicações que isso tem.

É um jogo de espelhos, né?

Exato. Quando é bem-feito, é maravilhoso. Não sei se você conhece o primeiro capítulo de As palavras e as coisas de Michel Foucault; ele fala sobre o quadro As Meninas, de Velázquez, que você citou. E olha que é raro eu ler e indicar um texto que não seja feito por artista. Mas esse é muito bom. Ele aborda a relação dos olhares, esse jogo do espectador virar personagem. Você, ao mesmo tempo, é obra e não é obra.

Essa aqui remete ao seu autorretrato e lembra aquele cavalo do Picasso. Muito forte essa coisa de a língua ser tão afiada que vira um punhal.

A destruição é, primeiramente, autodestrutiva. Essa língua com a lâmina mostra isso, né? Por mais que você tente perfurar alguém, antes você será perfurado. Eu gosto muito de olhar para a história, para o que já foi feito. Assumir isso. O Matisse é minha inspiração suprema, e ele nunca pintou uma cena violenta. Uma vez, ele foi chamado para pintar uma cena de violação, mas não conseguia resolver a imagem. Também me comovo muito com Bourgeois, Picasso, Portinari, Goya, Rubens – estes últimos representaram a barbárie muito bem. 

(A partir de agora, o passeio fica também virtual, com a participação de Victor Valery, o curador)

Victor: O Antônio provavelmente conversou com você, na visita, sobre o projeto curatorial e a expografia. 

A gente começou a visita pelo lado esquerdo, sentido horário. Eu entendi a primeira parede como o lugar das obras mais icônicas, atemporais. E tem pinturas de anos diferentes, um panorama mesmo. Aí, depois disso, tem esse outro momento, que é um estilhaço do assunto, né? Tem muitas telas, na parede toda.

Isso. A gente quis cobrir ao máximo, nos inspiramos nos grandes salões do século XVIII, que tinham obras do chão ao teto, de diversos tamanhos e autorias. Tem um apanhado plural, que vai de 2019 até 2022, como se o Antônio fosse muitos artistas ao mesmo tempo. Vai ter natureza morta chorando, escultura chorando, gente chorando. Vai ter chaga, sangue, retratos, paisagens. Um pouco de tudo que ele produz. Depois, vem a parede da tecnologia: todas as pinturas com celulares, computadores, eletrônicos. E, por fim, a última parte, que tem o maior painel, intitulado Apocalipse. Quando conseguimos definir que seria no MAC, eu combinei com o Antônio: “Vamos fazer uma coisa muito grande?” Começamos a conversar sobre mitologia, os sete pecados capitais, a Arca de Noé – ele estava numa fase de pintar animais. Depois veio a interferência dos doze trabalhos de Hércules e das dez pragas do Egito. Talvez seja uma das melhores obras produzidas por ele, até hoje. 

Acho que foi a tela que olhamos por mais tempo. A gente se aproximava, se afastava. Até nos sentamos no banco. Antônio comentou que dá vontade de andar dentro, sentir os bichos todos, as plantas passando. Ou exercitar o olhar: semicerrar os olhos e entrar na abstração. E aí vira outra coisa. Um mergulho na matéria, na cor. No lugar da onça, surge uma mancha amarela com pontos pretos. São tantos detalhes, que a contemplação fica meio infinita, né? O olho mergulha na imagem, como se fosse o corpo a mergulhar. Adentra fundo, sem tocar. Vi que, em muitos textos sobre a exposição, a questão dos celulares e tecnologias ganham destaque. Mas eu gosto da forma como ele vai trazendo questões históricas. Imagens que são às vezes bíblicas, às vezes pagãs. Imagens míticas, com aflições que estão aí desde os primórdios. É mesmo uma grande odisseia. Quando o Antônio descreveu tudo que estava ali, na tela do Apocalipse, fiquei espantada. Parecia impossível uma composição unir tantos mitos. O que mais me chamou a atenção foram as pragas, remetendo à pandemia, à COVID-19. Mito tem disso, né? Mostra que a história está sempre se repetindo, em uma grande espiral. E, por falar em espiral, eu percebi que ele desenha as feridas e chagas nesse formato. São quase galáxias. É interessante pensar uma ferida como uma galáxia; mostra a imensidão, a desproporção da dor. E, em suma, a galáxia é uma espiral, um vórtex. De certa forma, toda dor pode ser lida como um vórtex sem saída, uma espécie de espiral que vai te puxando para baixo. E, quando Antônio perfura isso, com a lâmina, vem o jorro do sangue – e o jorro do pranto – em uma ruptura que promove certo alívio. Então o choro não vem como ápice da tristeza, mas como sintoma da transformação, como explosão do vórtex.

É um efeito oposto ao que imaginamos, porque achávamos que as pessoas não visitariam por ser triste demais. A diretora de comunicação do MAC me perguntou: “Como é que a gente vai divulgar essa abertura? ‘Venham chorar com a gente?’”. Mas, no fim, vendo a reação do público, tem gerado mais ânimo do que tristeza. 

Eu fiquei com uma sensação forte de alívio. Como se as pinturas de Antônio fossem um convite à catarse. Saímos de lá com esse banho de choro, 72 telas esguichando na gente. E o sangue, das cenas mais trágicas, não parece trágico. Dá alívio também. É uma espécie de sangria, de cura. Mas o maior alívio foi quando vi a imagem do celular sendo morto. Um celular é um grande vórtex, né? É quase hipnótico. Então fiquei impactada com as imagens que rompem isso. E com as ferramentas que rasgam, perfuram.

E tem as lâminas nas línguas. Isso aparece até no autorretrato dele. Estar vivo é sofrer, é meio assim. A gente nasce aflito e vai morrer aflito. Mas eu gostei muito disso que você falou, sobre a exposição não gerar dor, mas alívio.

E não acho que é uma sensação só minha. Eu estava vendo as selfies das pessoas na exposição, e tem muita gente tirando fotos com as telas, sorridentes. E elas posam como quem está na frente de uma cachoeira, são fotos vibrantes. Tem uma coisa solar na visita. 

Eu também notei, e achei incrível isso. Ou quando as pessoas imitam as feições de dor, debochando do trágico, com humor. 

E tem os dois painéis, que foram pintados coletivamente e que são bem leves. Um, inclusive, fica suspenso pelo teto, e o outro cobre a parede do museu, diretamente. Achei interessante que, nesses painéis, não há figuras humanas, nem objetos. É uma grande estampa, como se o choro tivesse virado esse mar de choros. E tem muitos traços circulares, espiralados.

E as paredes do MAC, apesar de serem retas, têm qualquer coisa de circular. O teto é curvo, e a pintura central puxa a atenção para o meio do salão. Então as pessoas olham as obras desenhando um giro com o corpo.

A própria arquitetura do museu também, né? Para chegar ao salão do MAC, Oscar Niemeyer desenhou aquela rampa errante, com um trecho espiralado. Ele tinha essa conexão com a espiral; no Palácio do Itamaraty tem uma escada bem icônica nesse formato. E soube que, nos anos 50, ele projetou uma enorme espiral de concreto que seria o símbolo supremo da cidade de São Paulo. Mas o concreto do monumento não resistiu à angulação e desmoronou. Precisaram cobrir com juta e gesso. A obra acabou sendo descartada. Muita gente fala do Niemeyer como o herói das curvas sinuosas, inspiradas no corpo feminino, no erotismo. Mas deram pouca atenção a outro Niemeyer, vulnerável ao fracasso, preso no vórtex – ou na Aspiral rumo ao céu, que ruiu. 

No MAC, a espiral é coberta por um tapete vermelho. 

Tão vermelho quanto o sangue das perfurações de Antônio. 

A última tela da exposição, após o Apocalipse, é a primeira pintura de choro que ele fez. O começo da jornada está no final, sugerindo que fim é começo – de outro ciclo. Outra espiral. 

Você acha que a fase choro vai retornar?

Ele não está mais pintando os choros, por enquanto. Mas eu não acho que o choro vai acabar agora. Se a gente pensar que os quadros foram pintados de 2019 a 2022, imagino que, no futuro, algo vá fazer ele ressuscitar essa estética de choro e ressignificá-la também. Isso eu acho interessante. Entender para onde que vai. Pois, enquanto a vida está aí, o choro não para de ser uma latência, né? 

É. Choro é água, vai continuar a fluir, como um rio que corre. É natural da água encontrar caminho (ou redemoinho). 


Desenolvimento Marginal “Adaptações
Foto: Xadalu Tupã Jekupé

Nos últimos anos, Xadalu Tupã Jekupé tem se destacado com uma das mais potentes vozes da arte contemporânea no Brasil, pois vem desenvolvendo uma trajetória que evidencia seu compromisso com a descoberta de si em consonância com a vocalização de temas tão caros à nossa atualidade, como o enfrentamento da obliteração sistemática das culturas e das genealogias guaranis, tocando as disputas territoriais e as políticas de morte direcionadas contra os povos indígenas.

Invasão Colonial meu corpo nosso território, 2019, fotografia e impressão digital, dimensões variáveis.

Sua relação com as ruas se dá a partir da coleta de materiais recicláveis para sustento familiar, seguida pelo primeiro emprego como gari na Prefeitura de Porto Alegre, onde a periferia e o ambiente urbano despertaram sua atenção para as dinâmicas sociais que instauram-se nas grandes capitais. Isso o levou a uma pesquisa sobre os apagamentos e distanciamentos genealógicos, a uma odisseia em busca de autocompreensão, o que seria impossível sem a análise da história do Brasil e das políticas de mestiçagem. Em suma, ele recuperou sua identidade guarani-mbyá, que havia sido sobrepujada pelos processos coloniais ainda presentes hoje.

Entre seus projetos recentes, podemos destacar a residência realizada no Instituto Inclusartiz (Rio de Janeiro), que resultou em Tekoa Xy ‘A terra de Tupã’, exposição de inauguração do Centro Cultural do Instituto, seguida de intensa agenda de exposições, como a individual na Fundação Iberê Camargo (Porto Alegre), Antes que se apague: territórios flutuantes, título homônimo de seu vídeo desenvolvido nessa mesma residência em 2021, onde retorna à beira do Rio Ibirapuitã evocando narrativas e imagens de sua genealogia matrilinear, entrecruzando três gerações na reconstituição de episódios da década de 1940. Este ano, ele também inaugura duas individuais em São Paulo; a primeira, integrando a programação de inauguração do Museu das Culturas Indígenas, seguida por uma individual no Centro Cultural São Paulo, ambas concomitantes à sua participação em coletivas como Histórias brasileiras no MASP e o 37º Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna. Atualmente, ele trabalha em outra individual para a reabertura do Museu Nacional de Belas Artes, dando início a uma nova etapa, guiada por uma revisão histórica de suas coleções e práticas museais.

Nhemongarai, da série Cosmovisão, 2019, água-forte, água-tinta e carimbo sobre papel, 82 x 31 cm (cada parte).

Esses projetos são marcados pela presença de obras como a instalação Invasão Colonial meu corpo nosso território (2019), que poeticamente entende seu trabalho como meio de divulgação em prol da proteção coletiva, colocando em evidência o genocídio dos povos indígenas iniciado com a colonização das Américas, mas enfatizando a atualização da violência letal por meio de invasões, garimpo e grilagem, e Nhemongarai (2019), que integra a série Cosmovisão, na qual aborda a complexidade da realização de rituais devido ao aumento expansivo das plantações de organismos geneticamente modificados (OGM). Logo, a invasão das plantas sem variabilidade genética nas plantações da sua comunidade acabaram por esvaziar o poder místico do milho, que anteriormente era um elemento central nos rituais de conexão com o mundo espiritual.

Yvy Tenondé, 2022, acrílica sobre tela, 150 x 90 cm. Coleção Museu Nacional de Belas Artes.
Tatá Piriri, 2022, acrílica sobre tela, 200 x 120 cm. Coleção Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Em Nheru Nher´y (2021), Xadalu Tupã Jekupé realiza um processo arqueológico, revirando a relação entre os povos indígenas e os assentamentos católicos no Sul do Brasil e reformulando traços de monumentos arquitetônicos que exemplificam o triunfo da cultura católica sobre as comunidades locais. Assim, elabora uma instalação protagonizada pelas cabeças que sustentam a Catedral Metropolitana de Porto Alegre, alertando que a cidade foi sobreposta aos que ali habitavam, efetivando um exercício de retomada próximo ao de trabalhos anteriores, nos quais ele remarcava territórios no centro da cidade como áreas indígenas, restituindo espaços de comércio da produção cultural após a expulsão dos artesãos pelas forças estatais.

Nheru Nher´y, 2021, acrílica sobre tela e Silk Screen. 380 x 280 cm (pintura), 400 x 500 cm (parede). ©2022 Nilton Santolin

As obras atualmente em cartaz na Fundação Iberê Camargo trabalham temas relacionados às cosmogonias guarany-mbyá, criando cenas relacionadas aos episódios que geraram o mundo como conhecemos, apresentando perspectivas para além dos tradicionais modos de compreensão pautados tanto pelo cientificismo cartesiano quanto pelas narrativas originadas nas religiões cristãs. Assim, elabora uma perspectiva outra sobre o modo como a gênese pode ser narrada e amplia os modelos de compreensão poética do presente, tornando-se um condutor da comunicação entre os juruá (não indígenas) e sua comunidade. Mais do que uma narrativa em prol da ampliação do acesso às histórias narradas à beira da fogueira com os anciãos da sua comunidade, ele nos apresenta uma antítese a Ulisses e distintas escalas de separabilidade entre os seres, propondo o entendimento de um sistema que considera a reconexão com a natureza, pequenos anseios de equiparação entre as matérias que compõem universos visíveis e invisíveis. Fagulhas que anunciam um novo tempo que se instaura.

Fotografia de Denison Fagundes

Xadalu Tupã Jekupé (Alegrete, 1985) vive em Porto Alegre (RS) e sua pesquisa desdobra-se em pintura, serigrafia, vídeo, fotografia e objetos. Articula múltiplas linguagens ao tensionar a cultura ocidental e os saberes indígenas, encarando sua prática artística como um recurso contra o apagamento das culturas autóctones nas Américas, com foco especial na aniquilação sistêmica das memórias ancestrais no Rio Grande do Sul. Reverte esses processos a partir do diálogo e da reintegração com os povos guarani-mbyá em prol do resgate e do reconhecimento da sua comunidade, que habitava as margens do Rio Ibirapuitã, antiga Terra Indígena Ararenguá (Alegrete).

Nesse sentido, seu percurso se inicia na arte urbana, a partir de uma análise da relação estabelecida entre a cidade e seu entorno, evidenciando distintas possibilidades de ocupação territorial de áreas historicamente expropriadas. E a depuração de seus interesses logo direciona seus trabalhos para as instituições, convertendo acervos e espaços expositivos como locus para inscrição de culturas anteriormente subjugadas. Desse modo, seu movimento de descoberta e a retomada de sua genealogia familiar levam a entender o pertencimento como uma prática de compartilhamento, que traz à tona não apenas os embates culturais, mas também o regime de violência letal resultante dos conflitos oriundos da disputa por demarcação de terra no Brasil.

Na capa desta edição da Amarello, Xadalu Tupã Jekupé apresenta a obra inédita Tata Piriri (2022), aludindo aos mitos de origem relacionados com a posse do fogo e as cisões advindas dessa relação, na qual o enigma da existência humana atravessa o domínio e a manipulação de materiais combustíveis que liberam luz e calor. A criação e o controle do fogo marcaram uma mudança na conexão entre homem e natureza, influenciando na alimentação a partir do desenvolvimento de métodos de cocção, na manutenção da temperatura corporal pelo uso como fonte de calor e na proteção do coletivo diante de outras espécies. Não por acaso, essa tecnologia integra quase a totalidade dos mitos de origem da humanidade. O trepidar da brasa, que, segundo a sabedoria guarani-mby, é transportada na boca do sapo, advoga o equilíbrio entre os quatro elementos clássicos articulados na explicação da natureza e da complexidade da matéria.

Nesta pintura, o domínio do fogo não se dá por meio da agência humana, mas do sapo, anfíbio capaz de inter-relacionar todos os elementos em seus ciclos vitais, necessitando da água e da terra e, também, invocando o ar para mudança de sua configuração corporal. Desse modo, o fogo passa a ser encarado não como deflagrador das queimadas que, entre 1985 e 2020, devastaram quase 20% de todo o território nacional, problema que na atualidade soma-se ao desmonte sistemático das estruturas e políticas públicas que promovem a proteção ambiental. Nesta cosmogonia, o transporte e o compartilhamento do fogo apresenta-nos um novo modelo de interação entre as matérias que compõem nossa biosfera, uma fagulha como proposta para a ruptura diante do modelo de desenvolvimento atual. 


Em 1766, fez-se ouvir uma reclamação vinda de quitandeiras que trabalhavam em frente ao prédio do Senado (região onde hoje é a Praça XV de Novembro), no Rio de Janeiro. Mesmo pagando “pelo ponto”, elas estavam recebendo ameaças de despejo. Diante da situação, escreveram formalmente para a Mesa da Câmara dos Vereadores. Conseguiram como aliado o procurador da Câmara Municipal da Colônia e, como resposta, receberam o parecer favorável, que determinou que as quitandeiras retornassem ao seu local de trabalho, sob a alegação de que o “bem comum” deveria ser priorizado.

O vocábulo “kitanda” tem origem da região centro-ocidental da África, onde se referia a espécies de feiras e mercados organizados especialmente entre os povos de origem quimbundo. As vendas eram realizadas na rua, e as principais agentes do comércio eram mulheres, que trabalhavam majoritariamente com itens alimentícios como peixe seco, frutas, legumes, doces, sem deixar de lado a venda de fumo, aguardente e outros objetos e utensílios. Esse formato se mantém nos centros urbanos, demarcando um espaço físico de disputa, protagonismo negro e feminino e, especialmente, possibilidade de criação e encantamento político, subjetivo e simbólico.

O “causo” e marco histórico que envolveu as quitandeiras no século XVIII sinaliza um avanço em relação à cidadania plena no Brasil, mas demonstra também uma questão essencial para a discussão que veremos a seguir: a capacidade de organização, articulação e incidência política de mulheres negras, entre elas as empreendedoras e artistas. 


Pintura Quitandeiras da Lapa, 1818 Henry Chamberlain

A pintura de Henry Chamberlain é apresentada aqui como recurso artístico, social e político situado em determinado espaço-tempo. Não representa, de forma alguma, um retrato totalmente fidedigno da realidade, mas uma possibilidade de interpretação desta. Entremos nela.

A cena ilustrada por Chamberlain apresenta algumas pistas interessantes para nosso caminho entre a kitanda e o samba. A predominância de figuras femininas é um dos primeiros aspectos que chamam atenção. Sejam escravizadas, escravizadas de ganho, libertas ou livres, as mulheres negras possuíam uma forte circulação nas áreas urbanas do Rio de Janeiro, sendo essenciais na economia da cidade e na manutenção das atividades no que é considerado o centro da cidade. Forneciam alimentos para os que iam e vinham e, também, para aqueles que mandavam e desmandavam. É das mãos de mulheres negras que vem a comida que alimenta a economia e a política carioca. O caráter semiambulante é outro que chama atenção. Era possível perceber bancas, espaços de certa forma estruturados, porém muitas das quitandeiras vendiam seus quitutes e utensílios em vasilhas equilibradas sobre a cabeça, ou em tabuleiros ou cestos. Coexistiam as quitandas “estacionárias” e as quitandas ambulantes. O terceiro aspecto que cabe ressaltar é a presença de instrumentos musicais na pintura. As quitandas eram também locais de troca, encontro e reinvenção subjetiva e artística entre indivíduos negros. Muitas vezes vistos como “arruaça”, os “divertimentos das gentes negras” ocorriam dentro de uma lógica de inventividade constante.

Enquanto circulavam as quitandeiras no Rio de Janeiro, nascia, em Santo Amaro, Hilária Batista de Almeida, posteriormente conhecida por Tia Ciata. O fluxo entre Bahia e Rio de Janeiro reforçou um roteiro transatlântico de identidades negras, que marcou muitos dos fenômenos culturais e epistemológicos que construíram nosso país. As “cidades negras” possuíam diálogos neste e em outros planos. Aos 22 anos, Ciata chegou ao Rio de Janeiro, indo morar na região da Pequena África e, depois, na área da Cidade Nova. Iniciada no candomblé na Casa de Bambochê (nação Ketu) e continuando seus preceitos na casa de João Alabá (Rio de Janeiro), Ciata despontou como uma incentivadora e mantenedora das práticas religiosas e culturais negras, mesmo diante da forte repressão implementada pelo Estado brasileiro. Sua casa na Praça Onze tornou-se espaço de encontro e criação entre grandes nomes do samba no Rio de Janeiro. Formava-se, assim, um dos mitos criadores do samba no Rio de Janeiro, onde a figura central é uma mulher negra.

Assim como as quitandeiras, Tia Ciata retomou o elo entre o que hoje chamamos de empreendedorismo e as artes negras. Conhecida como “tia baiana”, foi uma das responsáveis por fortalecer o ofício das baianas quituteiras, que, assim como as quitandeiras, vendiam seus produtos e tinham grande influência na comunidade. Destacam-se também tias baianas como Dona Bebiana, Dona Carmem, Dona Amélia, Dona Perciliana, entre outras.

Mesmo sendo essenciais para a existência do samba, as mulheres negras não escaparam do silenciamento e das diversas opressões derivadas do machismo e do racismo. Dona Ivone Lara – uma das pioneiras no samba –, por exemplo, teve seus sambas muitas vezes apresentados por seu primo Mestre Fuleiro, uma vez que mulheres compositoras eram vistas ainda com muitos preconceitos. Ainda assim, foi a primeira mulher a assinar sambas, especialmente na área de sambas-enredo.

Clementina de Jesus era neta de escravizados. Nascida em 1901, Quelé, como ficou conhecida, ajuda-nos a visualizar como a escravidão estava e ainda está perto. Subvertendo a lógica de subjugação da intelectualidade negra, Clementina passeava entre o samba, o jongo, o lundu e diversas outras manifestações da musicalidade negra. Tanto que, além de “Quelé”, ganhou um segundo apelido, “Rainha Ginga”, tamanha era a força da ligação entre África e Brasil que vinha das produções da sambista, que lançou 11 álbuns ao longo de sua vida e carreira.

Assim como Clementina, a história da sambista Jovelina Pérola Negra também é um desenho da realidade brasileira quando falamos de mulheres negras. A carreira no samba começou quando a artista tinha mais de 40 anos, pois grande parte da vida de Jovelina foi dedicada à profissão de empregada doméstica. O apelido “Pérola Negra” marcava um forte aspecto da sua carreira: a valorização da negritude. Importante destacar que, diferente de outros compositores e cantores (em grande parte homens e/ou brancos), o reconhecimento veio tarde, e Pérola Negra não recebeu em vida o retorno financeiro que merecia. Ficou plantada a semente do samba e aberto o caminho que sambistas negras percorrem hoje.

Tia Ciata, Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus, Dona Dodô da Portela, Leci Brandão, Elza Soares, Tia Surica, Alcione, Teresa Cristina, Mariene de Castro, Fabiana Cozza, Mart’nália, Nilze Carvalho e tantas outras marcam a presença ininterrupta das mulheres negras no samba. Embora muitas vezes invisibilizadas pelo machismo e pelo racismo, não há samba sem as mulheres negras, responsáveis por criar estratégias de organização coletiva extremamente sofisticadas, tanto no âmbito operacional quanto no simbólico – alimentando em suas quitandas, disputando narrativas para a manutenção dos espaços de convívio comunitário, compondo, tocando, cantando, sambando e existindo. Repito: não há samba sem a mulher negra.

Desde as quitandeiras, passando pelas tias baianas, as sambistas cariocas, as compositoras e todas as “engenheiras do samba”, podemos perceber que foram as mulheres negras que acenderam a faísca que hoje mantém o samba aceso como fenômeno musical e espaço de sociabilidade.

Muito além de arte e empreendedorismo, kitanda e samba formam uma ponte para a manutenção de tradições africanas e lembranças de algo que nunca devemos esquecer como sujeitos em diáspora: nossa identidade negra.

Na última década, a representação de minorias políticas na mídia se tornou um assunto com muito espaço e alguma tração. Muitos também apontam, no entanto, que a moeda da “representatividade” pode ser uma armadilha, valorizada de maneira isolada. Grandes corporações como a Disney estão mais do que dispostas a incorporar minorias como protagonistas, às vezes encenando narrativas de emancipação política, mas isso tende a se dar de uma maneira que suaviza conflitos e arestas. 

Do ponto de vista da crítica, a valorização do cinema negro, por exemplo, na forma de uma “tokenização” (para falar como o crítico e produtor Bernardo Oliveira), periga apenas estender o velho circuito de apropriação capitalista da criatividade popular, como tanto se fez no século XX com a música negra em particular. 

A bandeira da “representatividade” não pode ficar restrita a botar dentro da tela pessoas diferentes daquelas de sempre (ou, mesmo, a colocá-las por trás das câmeras). Tampouco pode ser reduzida a uma camada de conteúdo, em que qualquer narrativa de empoderamento seja vista como um gesto emancipador. A diversidade precisa alcançar todo o circuito, e não só a superfície, se quiser se fazer valer. 

Não sou exatamente um especialista nesta questão. O que estudo, além de literatura, é comunicação e tecnologia, teoria de mídia, o campo que alguns, como o inglês Matthew Fuller, chamariam de ecologia dos meios de comunicação. Essa é a dimensão que quero invocar aqui. 

Representar, afinal, não é só atuar, escrever, dirigir uma cena. Produtores, editores, donos de revista e jornal, todos estão implicados em gestos de representação. Não só estes, mas ainda programadores de plataformas, engenheiros de dados, gestores públicos, servidores de agências de controle. Se a nossa vontade é democratizar nossa comunicação, equalizar nossos canais culturais, a diversidade implicada do circuito precisa ser repassada de cabo a rabo. 

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O pensador canadense Marshall McLuhan disparou o campo anglo-saxão dos estudos de mídia nos anos 60 propondo que o “o meio é a mensagem”, ou seja, a forma com que a informação chega importa tanto quanto o conteúdo. Muniz Sodré, professor da UFRJ e um dos mais notáveis teóricos brasileiros da comunicação, retoma e amplia essa ideia dizendo que a televisão não é só um modo de transmitir um conteúdo, mas é uma forma de vida, parte integral da composição de um novo tipo histórico de ambiente imersivo e interativo. O mesmo poderia ser dito das nossas plataformas atuais.

Por isso mesmo, Sodré também nos adverte há tempos que, dentro desse espraiamento progressivo da tecnologia sobre a sociedade, os atos políticos genuínos envolvem a possibilidade de quebrar a forma midiática dominante. Justamente porque vivemos hoje no interior de plataformas digitais, torna-se cada vez mais importante a necessidade de contrabalancear o poder das coreografias que nos regem por meio da introdução de outras – criando forças de distribuição que preencham os intervalos deixados pelas formas dominantes, por exemplo, ou mesmo (nos casos em que isto é impossível ou pouco estratégico) arranjando formas de utilizar as plataformas dominantes atuais de modo “errado”, em direções contrárias àquelas que seus parâmetros esperam. 

Não que seja fácil. Afinal, como argumentam teóricos como Friedrich Kittler e Wendy Chun, os dispositivos digitais tendem a reproduzir as estruturas de poder que os produziram. Neste sentido, vários dos problemas que enfrentamos hoje em nossa ecologia digital atual já se encontravam latentes na formação da cultura do Vale do Silício. A chamada “ideologia californiana” se consolidou durante as décadas de 80 e 90 na forma de um utopismo digital com inspirações diluídas da contracultura dos anos 60, mas centrado sobretudo no poder do usuário como consumidor, em interfaces cada vez mais fáceis de usar e na crença do poder libertário da informação conectada em rede.

Tanto as primeiras redes de TCP-IP (como a ARPANET) quanto o protocolo de transferência de hipertexto (desenvolvido no CERN) eram infraestruturas públicas de pesquisa, desenvolvidas dentro de um espírito científico colaborativo (ainda que com um pano de fundo militar). Mas a visão que triunfou desde a década de 90, sincronizada com o triunfo político do neoliberalismo, foi a da privatização progressiva da internet, tomada como uma nova fronteira a ser conquistada por empreendedores titânicos. Depois do estouro da primeira bolha especulativa, no final do milênio, tivemos a expansão acelerada, principalmente a partir da década de 2010, do tamanho e do valor de um punhado de plataformas e redes sociais.

Algumas tentativas de manter a visão utópica da internet como um bem comum continuam aí, mantendo-se como podem (Wikipédia, a lista Net-time, Scihub, etc.), mas, fora da pálida possibilidade de intervenção estatal para quebra dos monopólios, o cenário para uma internet mais diversa não anda muito animador. 

Além dos riscos já notórios à democracia e à competição, a concentração extrema do poder digital na mão de um grupo muito pouco diverso de pessoas leva a uma série de pontos cegos e distorções graves, reforçando patologias sociais já existentes (desde erros no reconhecimento facial de pessoas não brancas ao uso de algoritmos de Big Data em direito penal).

A questão urgente de ampliar a diversidade na tecnologia, portanto, não deveria se concentrar em buscar incentivos para criar um Steve Jobs negro, ou um Mark Zuckerberg que acontece de ser uma mulher latina, mas em promover publicamente uma cultura técnica de inovação sistêmica e coletiva, uma ecologia digital democrática em que figuras românticas nocivas como o bilionário visionário não tenham o espaço que ainda têm hoje.

***

A pandemia escancarou de maneira escandalosa o tanto que a saúde de uma sociedade depende da saúde de suas redes de comunicação. Não só o Brasil, mas quase todo o mundo dito desenvolvido teve muita dificuldade em fazer com que as pessoas acreditassem nos especialistas e seguissem as recomendações científicas, mesmo num caso de vida ou morte. 

O negacionismo teve concentração intensa na extrema-direita, mas o fato é que se espalha por toda a sociedade, dos mais aos menos escolarizados, dos hippies aos fascistas. A crise de credibilidade e confiança em especialistas e instituições não é bem um problema técnico de comunicação, no sentido de ser algo que se resolveria com um sistema melhor de publicidade e checagem de fatos (embora essas coisas possam ajudar, em alguns contextos). Aponta para uma cisão social muito mais profunda. O fato, que a pandemia tornou mais claro do que a eleição de 2018 já havia tornado, é que hoje vivemos em bolhas de informação que mal se tocam, preenchidas por valores e imagens radicalmente antagônicos.

Parte do desafio, hoje, de comunicar a gravidade da emergência climática, por exemplo, parece derivar da dificuldade profunda de criar laços de credibilidade numa ecologia midiática tão pulverizada. Num mundo em que o dinheiro fala mais alto do que tudo, com camadas diversas de publicidade dominando o discurso público, as pessoas têm todos os motivos concebíveis para serem paranoicas com o que ouvem por aí. Tampouco podemos ficar tão surpresos assim com a falta de credibilidade em especialistas em geral, quando tanto espaço nos canais das correntes dominantes é dado para tecnocratas cínicos que defendem os interesses de sempre, mesmo nas situações mais absurdas, diante dos sinais mais extremos. Num mundo assim, fica difícil simplesmente pedir para as pessoas acreditarem nas instituições e pronto, sem deixar claro que algumas delas precisam, de fato, ser transformadas radicalmente.

Na maior parte do século XX, o modelo midiático dominante foi o dos meios de massa, em que um único “mainstream” (ou corrente dominante) era concentrado em alguns poucos canais de informação. Desde o início do novo milênio, esse modelo de concentração midiática em alguns canais dominantes com capacidade grande de controle do que circula vem sendo substituído, aos poucos, por uma ecologia de meios muito mais dispersa (mesmo que perigosamente concentrada num punhado de plataformas).

No Brasil, as novas camadas de comunicação digital recobrem um país ainda marcado por uma profunda concentração midiática de caráter oligárquico, tanto regional quanto nacionalmente. Apesar da proibição legal explícita, é de amplo conhecimento o controle oficial ou extraoficial que inúmeros políticos eleitos em cargos do executivo e do legislativo têm de concessões de rádio e de televisão, por todo o Brasil. Além disso, um pequeno punhado de jornais e canais de televisão, concentrados no Rio de Janeiro e em São Paulo na mão de poucos grupos e famílias, ainda se compreende como constituindo a opinião pública relevante, no sentido de formadora de consenso político (mas com uma força que parece ter minguado bastante nos últimos anos). 

Com todos os seus limites e problemas, a internet de fato trouxe um começo de equalização do acesso à informação (mesmo que precária e ainda bastante parcial), principalmente a lugares profundamente desiguais como o Brasil. Num país onde tudo está tão concentrado na mão de poucos, não se pode desprezar a potência radical de democratização que a internet ainda pode trazer, por baixo dos jardins fechados das plataformas.

A solução para a torre de Babel atual de desinformação não pode ser um retorno à banda estreita e concentrada de antes, mas é claro que tampouco pode ser uma ecologia totalmente horizontal em todas as direções, sem mediadores e especialistas, sem regulamentação e responsabilidade legal, sem alguns nódulos concentrados e canais institucionais robustos. 

Críticos e curadores precisam ainda ter o seu lugar, mas não como implementadores de uma tecnocracia vertical em bloco, moralistas de ocasião ou sacerdotes de distinções sociais arcaicas fantasiadas de apreciação cultural. Críticos devem ser sensores e não censores, sugere Kodwo Eshun. A equalização geral dos canais culturais é totalmente necessária, é para ontem, mas não pode querer dizer a dissolução de tudo numa mesma massa pastosa e entrópica – que seja, antes, o triunfo da diferença, com todo seu ruído, toda sua amplidão. 

Em A negra de… (La Noire de…, 1966), obra-prima do cinema senegalês dirigida por Ousmane Sembène, uma garota de Dakar é levada, por um casal de burgueses europeus, para trabalhar como babá em Antibes, na Côte d’Azur. Oferece de presente aos patrões aquilo que as línguas europeias designam sob o nome fetiche (palavra francesa originada do português feitiço) – no caso, uma máscara ritual. Característica da sociedade iniciática Kore, da etnia Bamana, essa máscara é dotada de um poderoso significado em sua cultura de origem. Aqueles que a portam, ensina a sabedoria Kore, detêm conhecimento para renascer como homens completamente formados. Nada disso, entretanto, transparece aos patrões franceses. Eles apenas acrescentam aquele – aos seus olhos – estranho objeto a tantos outros que ornam suas paredes, como se fosse mais uma cabeça de animal empalhada após a caça. Fetichizam o fetiche, transformando-o em signo de curiosidade antropológica e de distinção cultural.

Essa máscara e sua dimensão simbólica, tal como exploradas no filme de Sembène, ecoam em nossos debates contemporâneos sobre a restituição, por nações europeias, de objetos de arte africanos surrupiados às suas terras originárias. 

Tal discussão, decerto, não é nova. Remonta ao contexto de descolonização, entre os anos 50 e 70. A primeira formulação oficial de um pedido de restituição parte da Nigéria, em 1972. Desde então, o tema converteu-se em uma polêmica mais ou menos constante, que conhece períodos de arrefecimento e de recrudescimento. Os anos 70 foram movimentados nesse sentido. Em 1973, o presidente do Zaire, Mobutu Sese Seko, denunciou na ONU a “pilhagem bárbara e sistemática” dos tesouros culturais do continente. O Festac ’77 (Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana), realizado em Lagos, em 1977, com a participação de nomes como Wole Soyinka, Miriam Makeba, Stevie Wonder e Gilberto Gil, foi marcado pela controvérsia da máscara da Rainha Idia, esplêndida peça em marfim do Benin guardada no Museu Britânico. Autoridades inglesas recusaram as solicitações de empréstimo emanadas pelos organizadores do evento, temerosas de que ela não retornasse. As reclamações africanas ganharam ainda mais publicidade no ano seguinte, quando Ahmadou-Mahtar M’Bow, diretor da Unesco, enunciou um apelo pela devolução do patrimônio cultural às nações espoliadas. Em resposta, a imprensa europeia publicou caricaturas com imagens dos salões do Louvre vazios.

A querela reacendeu na virada dos anos 2010 aos 2020. Emmanuel Macron, presidente da França, deu-lhe o impulso inicial. No Burkina Faso, em 2017, proclamou que a “herança africana não pode existir somente em coleções privadas e em museus europeus”. No ano seguinte, seu governo recebeu um contundente relatório defendendo as restituições de peças obtidas por meios fraudulentos ou violentos. Macron realizou seu propósito, em 2020, ao devolver obras importantes a Madagascar, ao Senegal e ao Benin, aonde chegaram sob fanfarras. 

Iniciada na França, a discussão não deixou indiferentes outras nações europeias. Em 2021, a Alemanha assinou, em Lagos, um acordo para a devolução de peças adquiridas de forma violenta, as quais integrarão o acervo do Museu de Arte Africana Ocidental de Edo, na Nigéria. A Bélgica remeteu à República Democrática do Congo um inventário com obras originárias de sua ex-colônia, facultando pedidos de restituição. Movimentações semelhantes observam-se na Holanda. São atos que ganham seu pleno sentido em uma época que vive os impactos político-morais do Black Lives Matter e dos protestos massivos decorrentes da morte de George Floyd, nos Estados Unidos.

Tem-se uma noção mais precisa da justiça dessas restituições quando se pensa na ferocidade das potências europeias ao se lançaram sobre tesouros africanos e asiáticos, entre outros. O saque do magnífico Palácio de Verão, a noroeste de Pequim, em 1860, durante a Segunda Guerra do Ópio, pelas tropas da Rainha Vitória e de Napoleão III, é, ainda hoje, um tema sensível na China. Essa catástrofe cultural irreparável exigiu milhares de soldados britânicos, dedicados ao aniquilamento total dessa Versalhes oriental, sob as ordens de Lord Elgin (célebre espoliador dos mármores do Partenon). Motivou, à época, o retumbante protesto de Victor Hugo, o que lhe valeu homenagens dos chineses: “Um dos vencedores encheu seus bolsos, e o outro, vendo isso, encheu seus cofres; e voltaram para a Europa de braços dados e rindo. Essa é a história dos dois bandidos. […] Diante da história, um dos dois bandidos se chamará França; o outro se chamará Inglaterra”. 

Tal receita de pilhagem e destruição não se restringiu à China. A África também sentiu seus efeitos nefastos. Foi assim que, em 1874, o reino de Ashanti, em Gana, viu seu maravilhoso palácio de Kumasi despojado e reduzido a cinzas pelos britânicos. Mais tarde, o mesmo destino funesto foi reservado ao palácio da cidade do Benin, na atual Nigéria, em 1897. Essa série de roubos não ficou restrita ao século XIX. Ainda em 1924, um jovem rapinador francês foi condenado por haver subtraído baixos-relevos a um templo no Camboja, para vendê-los no mercado negro. Poucos anos depois, ele se revelaria como um dos maiores romancistas do século XX: André Malraux. O mesmo Malraux terminaria sua carreira como o mais notável Ministro da Cultura de todos os tempos e como uma das estrelas do gabinete de De Gaulle (além de um entusiasta das artes então ditas “primitivas”).

Apesar de terem como fundo um passado tão pouco honroso, os atos de restituição recentes deixam questões em aberto. A presença de peças africanas, asiáticas, oceânicas ou pré-colombianas – adquiridas por meios dignos ou ignóbeis – em solo europeu contribuiu a fazer conhecer essas culturas, primeiramente, como objeto antropológico, mas também, ao longo do tempo, como portadoras de um valor humano (estético, religioso, intelectual) em nada inferior às mais altas criações dos colonizadores. 

A própria arte europeia, em fins do século XIX e na primeira metade do XX, bebera em fontes japonesas, astecas, africanas e indianas, na busca por renovação. Isso equivalia a reconhecer nas criações “bárbaras” ou “primitivas” virtudes que as estéticas ocidentais desconheciam ou negligenciavam – donde a importância da “arte negra” no cubismo ou da escultura mexicana para os surrealistas. Esse poderoso influxo em sentido contrário, da periferia ao centro, não continha apenas uma poderosa carga transgressora, ao subverter hierarquias racistas e coloniais. Também concorreu ao desenvolvimento de uma consciência de humanidade partilhada, refundando-a em bases mais igualitárias.

A depender do modo como são realizadas, as restituições contemporâneas podem manter e aprofundar esse caráter universalizante, por reconhecerem no sujeito outrora colonizado uma identidade própria e uma autonomia inalienável no trato com seu legado cultural, em pé de igualdade com o sujeito outrora colonizador. Podem também, por outro lado, reforçar uma tendência inquietante do nosso tempo, a de uma etnicização da cultura, que valoriza um objeto cultural na medida em que ele é expressão de um certo modo de vida particular, preferencialmente marginalizado ou subjugado, em detrimento do testemunho de que ele pode ser portador dos poderes da criação humana em sua vasta e variegada gama de realizações. 

Por isso, de maneira a radicalizar a dimensão universalizante e libertadora das nossas restituições, deve-se admitir que elas, por si sós, não bastam. Tendo na memória as violações do período colonial, uma ampla cooperação entre as nações ricas e pobres deveria organizar-se, de forma a permitir que uma infraestrutura segura e adequada se estabeleça nos países mais frágeis para acolher aquelas porções do seu patrimônio outrora saqueado criminosamente. 

Também caberia questionar: por que deveria haver apenas a arte africana ou pré-colombiana ou oceânica nos museus da África, da América Latina ou da Oceania? Se pensarmos em um horizonte universal a ser construído entre os povos – quem sabe, nossa única esperança em meio a tantas guerras autodestrutivas – por que provincianizar os acervos dos museus periféricos, ao passo que o Louvre ou o Museu Britânico ou o Metropolitano têm suas belas alas sobre distintas regiões do mundo, constituindo-se em instituições “universais” e enciclopédicas? O que há nas telas de um Rubens, nas estampas de Hiroshige ou numa escultura Gupta que as tornaria menos aptas a falar ao homem africano do que os bronzes do Benin ou as máscaras Dongo? Uma utopia universalista sonharia com a possibilidade de que todos os homens pudessem tomar posse, em condições de igualdade, não apenas de sua cultura originária, mas do conjunto da experiência humana, em suas mais distintas e longínquas expressões.

Em 1953, Chris Marker e Alain Resnais realizaram As estátuas também morrem (Les Statues meurent aussi), belíssimo filme-ensaio com imagens sublimes de estátuas africanas. Tinham em mente uma pergunta provocadora: por que elas estavam num museu antropológico e não num museu de belas artes, como o Louvre? Em nossa época, poderíamos nos perguntar também, provocativamente, não apenas por que bronzes beninenses estão em Londres, mas também por que não é provável vermos um Turner ou um Van Dyck na Nigéria ou na Guatemala.          

O cinema brasileiro pós-Retomada, ou seja, pós-Cidade de Deus (2002), encontrou formas múltiplas de expressão, alcançando uma pluralidade pouco vista até então. Entre as tendências mais significativas do período estavam as dos documentários e aquelas que buscavam o que Beatriz Jaguaribe chamou de choque do real. Nesse contexto, ganharam espaço as produções que faziam uso de imagens hipernaturalistas e as que apostavam nos planos longos emulando o tempo real, em uma ideia de fluxo, para repetir o termo usado por Luiz Carlos Oliveira Júnior. Mas, mesmo nesses filmes que objetivavam revelar a carne do mundo, como escreveu Jaguaribe, a intenção invariavelmente era provocar um “espanto catártico” no espectador. A realidade choca, mas sua representação pode chocar ainda mais, para certo cinema nacional do início do século XXI.

Entretanto, parece ter havido um momento em que nem o espanto dava conta de representar o vivido. Notadamente a partir da virada para a década de 2010, ganharam corpo vertentes de reflexão sobre o real a partir do irreal. Filmes como A alegria (de Felipe Bragança e Marina Meliande, 2010) e Trabalhar cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011) despontaram abrindo caminhos imediatamente percorridos por outros cineastas e núcleos de produção adeptos da distopia como ferramenta para pensar a realidade. Como se, depois do hiper-real, depois do fluxo que se aproximava ao real, depois do choque, apenas o absurdo fosse suficiente para retratar o país e o mundo hoje.

Isso para parte do cinema nacional, evidentemente. Mas parte significativa. Tanto que, aos poucos, essa vertente foi se mostrando multifacetada, com projetos estéticos bem distintos entre si, dos longas-metragens de gênero, como o musical Sinfonia da necrópole (Juliana Rojas, 2014) e o terror Morto não fala (Dennison Ramalho, 2017), os dramas com apelo fantástico, tal qual A febre (Maya Da-Rin, 2018), e os títulos de caráter ensaístico ou experimental, a exemplo de Riocorrente (Paulo Sacramento, 2013).

A Febre (Maya Da-Rin, 2018)

Nesse conjunto, chama atenção Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014), um filme que tem a realidade chocante como ponto de partida na conformação de um imaginário distópico. O pressuposto é o de um documentário: personagens reais convivem com as sequelas das agressões sofridas alguns anos antes em uma festa de black music na qual policiais, em uma batida, mandaram os brancos deixarem o local antes de espancar os negros presentes (o título do filme é a citação literal da ordem de um desses policiais). Contudo, na sucessão de acontecimentos da trama, em uma mudança surpreendente com relação à premissa, a narrativa acaba por incorporar elementos da ficção científica. Enquanto acompanha a vida de Chockito (que perdeu uma perna na ocasião e passou a ganhar a vida como artesão, usando sucata para produzir próteses para outros mutilados) e Marquim da Tropa (que ficou paraplégico e, como DJ, revisita o trauma fazendo música), o diretor também apresenta ao espectador Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), sujeito que vem do futuro em busca de provas das atrocidades cometidas pelo Estado contra excluídos. Não há discrepâncias nessa passagem de um registro a outro, visto que o real e o delírio ficcional mostram-se ambos absurdos. E a construção visual os aproxima. A “nave espacial” de Dimas, por exemplo, é um mero contêiner, compatível com o entorno pobre, e as luzes coloridas caóticas em seu interior remetem a ambientes que nada têm a ver com a imagem de um porvir asséptico e purificado das ficções especulativas mais deslumbradas do passado. Há coerência entre a desolação material daquelas vidas e as subjetivações que essa condição produz.

Há de se considerar que é difícil compreender tamanha brutalidade. Mais do que isso, é complexo representá-la, no sentido freudiano e, também, estético. Adirley Queirós, um homem negro vivendo na Ceilândia, próximo aos seus protagonistas, encontrou uma maneira inusitada de fazê-lo, que aproxima o universo fílmico do real ao mesmo tempo que ressalta seu afastamento de qualquer lógica humanista. Quanto mais real, mais tudo aquilo parece ser irreal. É quase uma afirmação de que a realidade é a própria distopia, e vice-versa.

Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014)

É interessante pensar Branco sai, preto fica sob essa chave, oito anos após seu lançamento. Por um lado, o longa se integra a um movimento de ocupação de espaços por parte de minorias e ao avanço da luta antirracista ao longo das últimas duas décadas; por outro, pode ser visto como um libelo denuncista das reações contrárias a esse movimento e a essa luta, reações estas que se confundem com a ascensão do bolsonarismo no país. A questão é que, em 2014, o bolsonarismo ainda era discreto, talvez imperceptível, se comparado às proporções que atingiu nos anos seguintes. A contundência do filme, por isso, destoa de grande parte de seus contemporâneos, mostrando-se mais próxima, nesse sentido, de produções posteriores, lançadas à medida que as denúncias de racismo e violência de Estado adquiriram maior urgência, sobretudo conforme os anos 2020 se aproximavam – e Bolsonaro chegava ao poder no país.

Um dos exemplos mais notáveis dessa “filiação”, por assim dizer, de Branco sai, preto fica se dá com Medida provisória (Lázaro Ramos, 2021). Esse filme começa em um registro realista, ainda que com atuações e encenação que lembram o falso naturalismo comum às telenovelas brasileiras, para só a partir do segundo terço da narrativa mergulhar na ideia distópica de expulsão compulsória dos cidadãos brasileiros de “melanina acentuada” rumo ao continente africano. Chama atenção, de cara, o não uso dos termos “preto” e “negro”, em um princípio de negação da raça e, consequentemente, do racismo. “Tenho empregada ‘melaninada’, até amigos assim”, afirma uma personagem branca lá pelas tantas, incorporando o discurso corrente que busca diminuir o preconceito de cor como problema social – sem se dar conta de que o está escancarando. Embora essa sofisticação do texto (a matriz é a peça teatral Namíbia, não!, de Aldri Anunciação, 2011) perca algo de sua profundidade na adaptação à linguagem cinematográfica, trata-se de um espelho rico e contundente da sociedade na qual Medida provisória foi gerado: uma sociedade que perpetua o legado de desigualdade e dominação de classe herdado dos tempos de escravidão a partir de estratégias discursivas que incluem uma falsa harmonia no convívio coletivo. Negar o racismo é um “anti-antirracismo” – disfarçado, sublinhe-se.

Cena do filme Medida Provisória

Outra frase do filme de Lázaro Ramos, esta proferida pelo protagonista Antonio (Alfred Enoch): “Será que a gente nota quando a História está acontecendo?”. É uma espécie de grito a defender que a distopia representa a realidade do Brasil atual. A narrativa também se conecta com episódios pontuais do noticiário recente, sendo o mais proeminente, talvez, aquele que faz a votação da aprovação da medida governamental de expulsão dos “melaninados” do país um simulacro da sessão do Congresso que terminou por afastar Dilma Rousseff da Presidência. O próprio desenvolvimento dessa proposta autoritária de expulsão do território nacional se dá com alguma semelhança do real na medida em que, inicialmente, não se apresenta como tal, e sim como um incentivo, vá lá, respeitoso – basta citar o anúncio oficial veiculado na TV apresentado ainda no primeiro ato do filme: “Seja quem você quiser, viva de acordo com sua raiz. […] Você que quer uma reparação social pelos anos de escravidão: o governo por um Brasil mais justo lhe oferece muito mais: a oportunidade de voltar para a África”. Também na ficção se pode dizer que, até certo ponto, não era possível imaginar o radicalismo de algumas ideias da extrema-direita, apesar dos sinais emitidos previamente.

Quando, em fuga, Antonio e André (Seu Jorge) berram, passos apressados e câmera na mão, que “esse vídeo é para o mundo inteiro nos ouvir: a vida no Brasil está insuportável”, eles estão fazendo um comentário que efetivamente funciona mais como comentário do real do que como construção da ficção que o representa. E isso já bem próximo do desfecho do filme, ou seja, no auge do delírio distópico. Como se a hiper-realidade outrora alcançável pela aproximação do real, via choque ou fluxo, passasse a ser acessada pelo afastamento delirante da fantasia.

Por mais que pareça controverso, por mais que seja relativo apenas à parte da produção, é assim, criando distopias, que o cinema nacional tem pensado o Brasil hoje.

#41FagulhaArteMúsica

Dois e dois são dois: André Lara e Lucas Nobile

André Lara é cantor e compositor. Nasceu no Rio de Janeiro, em um ambiente musical, bebendo da fonte e seguindo os passos da avó Dona Ivone Lara. Iniciou sua carreira como integrante da banda de Dona Ivone. “Investida Fatal” foi o seu primeiro samba, composto em parceria com a avó. O seu trabalho mais recente, “Meu Instinto”, é a música de trabalho de Diogo Nogueira. 

Lucas Nobile é jornalista, crítico musical e autor de “Dona Ivone Lara: a primeira-dama do samba” (Sonora Editora, 2015) e de “Raphael Rabello: o violão em erupção” (Ed. 34, 2018). Idealizador e pesquisador do documentário “Garoto – Vivo Sonhando” (2020). É colaborador da Ilustrada (Folha de S. Paulo) e da Rádio Batuta (IMS). Também é idealizador e curador da série “Muito Prazer, Meu Primeiro Disco” (2020/2021, Sesc Pi- nheiros). 

André Lara – O que você sentiu quando surgiu o projeto de escrever uma biografia sobre a minha avó? Um trabalho acerca dela, que tem uma história muito grande, que vai além da música. Como veio a ideia de fazer as entrevistas, de ir lá em casa conhecer o pessoal, conhecer minha família, e chamar outros pesquisadores também? 

Lucas – O projeto do Sambabook começou a ser gestado em 2014 e foi lançado em 2015. Na época, o pessoal da Musickeria, a produtora que realizou o Sambabook, chegou até mim via Hamilton de Holanda e Marcos Portinari, que é o empresário do Hamilton. O próprio Hamilton de Holanda, bandolinista, participou daquela edição do Sambabook – Dona Ivone, junto com a cantora portuguesa Carminha, cantando “Nasci pra sonhar e cantar”. Eu sou de São Paulo e, quando chegou o convite, eu estava dentro do ônibus. Obviamente respondi que sim na hora, porque eu, assim como você e sua avó, André, toco cavaquinho desde pequeno, sempre ligado ao samba e ao choro. Qualquer brasileiro ou brasileira da nossa geração – eu nasci nos anos 1980 – conhece pelo menos uma canção da sua avó, Dona Ivone Lara. Como a gente costuma dizer: ela povoou o imaginário brasileiro, essa identidade brasileira. Eu já conhecia toda a obra dela praticamente, de ouvir em casa, desde pequeno, em família, mas posso dizer que não conhecia tanto assim um lado alternativo da obra. O lado A e o lado B já estavam cristalizados na minha cabeça, nos ouvidos e no coração, porque Dona Ivone Lara é uma das maiores compositoras do Brasil, não só da história do samba – e felizmente o país inteiro conhece pelo menos dez grandes sucessos. Só para citar os mais conhecidos: “Sonho Meu”, “Alguém me avisou”, “Acreditar”, “Os cinco bailes da história do Rio”, “Tiê”, “Enredo do meu samba”, “Tendência”… Felizmente, sua avó deixou, pelo menos, entre 150 e 200 composições registradas, se não me engano, segundo o levantamento do ECAD, e tem pelo menos 10 grandes sucessos que qualquer roda de samba vai tocar. Para a feitura do livro, que comecei entre 2014 e 2015, estive aí na casa da família de vocês. Como você bem lembra, Dona Ivone já estava com a memória um pouquinho vacilante, devido à idade avançada. Ela estava com 92 anos na época, então era normal confundir uma história ou outra. Os encontros na casa da família de vocês tinham o objetivo de estar com ela para sentir o axé que ela transmitia, na verdade. Não era muito para confirmar uma história ou outra com ela. Por isso eu parti para entrevistar o maior número de pessoas possíveis que conviveram com sua avó, não só quem tocou com ela, mas quem também conviveu em outros ambientes. O projeto Sambabook conta a história do artista ou da artista homenageada por meio de sua obra. E Ivone lançou o primeiro disco aos 56 anos de idade, em 1978. Eu não podia começar o livro com a personagem principal já com 56 anos. Tive que contar toda a vivência anterior, que muita gente ainda precisa conhecer, que foi toda a trajetória dela como profissional da saúde. 

André – As pessoas conhecem a minha avó, pelo menos aqui no Rio de Janeiro – aí em São Paulo tem um reconhecimento bem maior do que aqui – mais pela carreira musical mesmo. Até hoje – eu trabalho como professor – muitos acham que é só a cantora Dona Ivone Lara, e a gente tenta mostrar esses outros caminhos para o pessoal mais novo, para essa juventude que está vindo. E mesmo muitas pessoas antes da nossa geração também não sabiam. Eu já fui abordado por pessoas bem mais velhas do que eu que não sabiam, achavam que era só cantora, compositora. É bem importante que eles conheçam também a história dela na enfermagem, na assistência social, além de mãe, avó e bisavó. 

Lucas – Eu acho que a gente ainda vive uma pandemia, e nessa pandemia muita gente passou a valorizar não só o SUS (Sistema Único de Saúde), mas os profissionais da saúde como um todo. E você falou que muita gente conhece Dona Ivone só como cantora e compositora. É um “só” entre aspas, porque já é muita coisa, né? Mas essa trajetória anterior – eu costumo dizer que nenhum personagem, na história da música brasileira, tem uma história de vida tão rica e tão diversa como Dona Ivone Lara teve. Não falo da obra em si, porque o Brasil é repleto de grandes artistas. Mas, pode pegar Tom Jobim, o gigante Milton Nascimento, Elis, Caetano, Gal, Gil, Cartola, Jorge Ben, Baden e tantos outros grandes artistas do Brasil, ninguém tem uma história de vida tão rica como Dona Ivone Lara. Não estou falando só da obra. Quem, antes de se lançar na carreira artística, dedicou quase 40 anos (37 anos) de vida a cuidar de pessoas com transtornos mentais? A gente tem que lembrar que, naquela época em que sua avó foi fazer enfermagem, depois se especializou em praxiterapia ocupacional, o Brasil ainda tinha um tratamento muito rudimentar nessa área psiquiátrica. Vi recentemente um documentário que passou sobre o Hospital Psiquiátrico do Juqueri, aqui no interior de São Paulo, que era um dos chamados manicômios. Dona Ivone Lara teve uma atuação muito importante ao lado da doutora Nise da Silveira – que recentemente até levantou uma polêmica, porque o atual governo federal quis retirar uma medalha sua como heroína da saúde, o que acho que diz muito sobre os tempos em que a gente vive. Para quem não a conhece, a doutora Nise da Silveira foi uma revolucionária da psiquiatria, ao tentar implementar um tratamento mais humanizado para os pacientes e acabar com práticas e procedimentos muito agressivos, como lobotomia, eletrochoque. Ela trabalhava muito, também, com as artes nesses tratamentos e, não à toa, vários internos do hospital do Engenho de Dentro que passaram pelos cuidados da doutora Nise acabaram se tornando grandes artistas. Ela trabalhava muito com as artes visuais, com as artes plásticas, e muitos deles ganharam exposições, não só coletivas, mas individuais, em grandes museus do mundo. E Dona Ivone tem uma atuação fundamental nesse sentido, quando ela chega para a doutora Nise e fala: “será que a gente não pode criar uma salinha aqui no hospital com instrumentos musicais?”. A doutora Nise aceita, acata, e Dona Ivone acaba até compondo com uma colega do hospital do Engenho de Dentro, a Teresa Batista. Elas fizeram uma valsa juntas, chamada “Pétalas esquecidas”, que foi gravada pela Marisa Monte. Então é isso. Que personagem. E eu costumo dizer que uma pessoa que dedica quase 40 anos da sua vida a cuidar do inconsciente das pessoas, de pacientes com transtornos, com distúrbios mentais, já denota uma sensibilidade gigantesca, uma doação da pessoa para com o outro ser humano, de acolhimento, de sensibilidade mesmo.

André – A gente mesmo, nessa época da pandemia, viu que muita gente ficou mal, com questões psicológicas, por ficar em casa, e a música surgiu como um remédio. Isso nos deu ainda mais certeza e comprovou que o que ela fazia, no sentido de ter o cuidado de tratar as pessoas de forma humana e utilizar a música como ferramenta primordial para esse atendimento, foi também o que revolucionou o tratamento dessas pessoas. Essa é uma causa que, mesmo hoje, com toda a evolução que conseguimos, ainda segue pouco debatida e precária.

Lucas – Precária e preconceituosa, né, André? 

André – É um tema que gera ainda muita exclusão. Certamente é algo que ainda precisa avançar muito. 

Lucas – A gente vive em uma sociedade feita muito mais para excluir do que para incluir, e é fundamental lembrar o trabalho de Dona Ivone Lara como assistente social. Ela localizava os parentes daqueles internos do hospital para quando eles saíssem; orientava as famílias para cuidarem de uma poupança, terem um rendimento, principalmente para que, quando eles tivessem alta, deixassem o hospital, pudessem ter uma ressocialização, voltar ao convívio social, o que é algo muito difícil até hoje. Como se não bastasse essa história brilhante na área da saúde, a partir dos anos 1970, sua avó tem a oportunidade de gravar seu primeiro disco, Samba minha verdade, samba minha raiz, e começa a ter músicas gravadas pelos grandes nomes da chamada MPB: logo de cara, Maria Bethânia, Gal Costa; no ano seguinte, de novo pela Bethânia, dessa vez com participação do Caetano e do Gil; e, a partir desse momento, ela começa a ser gravada a rodo, por Elizeth Cardoso, Elza Soares, Roberto Ribeiro, Clara Nunes. Mas, antes de se dedicar exclusivamente à carreira artística, ela teve uma trajetória de muitos anos ligada ao carnaval. 

André – Verdade. Essa relação dela com o carnaval vem de família, da sua mãe, Dona Emerentina, e do seu pai. Eles frequentavam muito aquele carnaval antigo, de rancho. Então ela tinha desde pequena essa convivência. Depois, com o tempo, conheceu meu avô, que era filho do Seu Alfredo Costa, o presidente do Prazer da Serrinha. E ela conseguiu ali, quando se juntou com meu avô, unir o útil ao agradável, que era o que ela gostava no carnaval. Em seguida, foi criado o Império Serrano, e ela teve a oportunidade de entrar na ala de compositores, já fazendo os sambas de terreiro e podendo gravar com o Silas [de Oliveira]. Uma coisa interessante que você falou, Lucas, sobre o acesso: ela pôde proporcionar acesso em várias esferas; na da saúde, dando oportunidade aos pacientes; no carnaval,  dando oportunidade às mulheres nesse meio de compositores, que era exclusivo dos homens. Geralmente, as mulheres ficavam na cozinha, fazendo comida. Ela gerou acesso também para as mulheres que gostariam de tocar, algo muito raro. No Império Serrano, por exemplo, ainda não vi uma compositora mulher além dela, apesar de ter havido sambas homenageando mulheres… Tem escolas com compositoras muito boas, graças a esse acesso que ela proporcionou nessa área. 

Lucas – Eu costumo dizer que, muito antes de Dona Ivone ser um ícone do sucesso, uma representante do sucesso, ela foi uma pioneira do acesso. Nesse sentido de representatividade. Em 1965, Dona Ivone acaba escrevendo seu nome na história ao se tornar a primeira mulher a compor e a vencer o concurso de um samba-enredo para desfilar no chamado Grupo Especial, com “Cinco bailes da história do Rio”, em parceria com o maior compositor de samba-enredo de todos os tempos, Silas de Oliveira – isso é consenso, Silas é como o Pelé –, e Antônio Bacalhau. Naquele ano, o Império fica em segundo lugar. Mas, antes disso, Dona Ivone já compunha. Tanto no Império Serrano quanto na escola anterior, Prazer da Serrinha, que deu origem ao Império Serrano, Dona Ivone já compunha sambas de terreiro, que eram aqueles sambas de quadra, sambas de meio de ano. Hoje em dia vem se perdendo muito essa tradição do samba de terreiro, como tinha na Portela, no Império, que revelava grandes compositores. Dona Ivone acaba tendo pioneirismo na questão da representatividade, de abrir portas, tornar-se um espelho para outras mulheres, que, até então, dentro das escolas de samba, ocupavam posições reservadas a elas, como fazer a comida. 

André – Ou mesmo produzir fantasias. Mas, da parte musical do samba, elas ficavam de fora. 

Lucas – No máximo eram as pastoras, né? Fazendo coro. 

André – Exatamente. E duas pessoas que colaboraram e permitiram que esse acesso fosse ampliado foram os primos dela, o tio Hélio e o mestre Fuleiro, que eram figuras representativas na escola. Fuleiro foi considerado o maior mestre de harmonia de uma escola de samba; ganhou o Apito de Ouro. Eles tinham esse acesso aberto à escola, só que botavam os sambas dela sem o nome dela, né? Sem estarem assinados por ela. 

Lucas – Porque não seria aceito, né? Importante dizer que não era aceito uma mulher…

André – É, não entrava. Depois, isso começou a mudar. Quando ela meteu o pé na janela mesmo, como eu falei, na porta. 

Lucas – Ela teve, então, essa facilidade com esses primos, como você falou, o tio Hélio e o mestre Fuleiro. E no Prazer da Serrinha, o sogro dela, Seu Alfredo, era dono da escola, então era um ambiente muito familiar. É uma trajetória de formação musical – só para lembrar também que, com esses primos, que eram grandes melodistas também, autores de melodias, Dona Ivone fez sua primeira composição, que foi “Tiê”, aos 12 anos de idade. Sua avó tinha 12 anos e fez “Tiê”, que até hoje é muito cantada. E teve a influência dos ranchos carnavalescos, vinda dos pais e do tio Dionísio, que era o Chorão, que ensinou ela a tocar cavaquinho.

André – O cavaquinho dela com sua afinação de bandolim. Quando aprendi a tocar, peguei o cavaquinho dela. Eu tinha estudado um número, só que na afinação normal (de sol, si, ré), e cheguei lá com o cavaquinho dela e disse “vó, vou te mostrar um negócio” – ela rindo. Peguei o cavaquinho e comecei a cantar, mas não saiu nenhum acorde! Ela falou “calma aí, dá aqui o cavaquinho” e explicou que estava na afinação de bandolim, o que me fez querer aprender alguns acordes com ela – isso foi graças ao tio Dionísio, que era um grande Chorão e tinha um grupo regional. Na casa dele, em Inhaúma, ia muita gente. Quando essas pessoas iam lá para ele apresentar o choro, ele chamava minha avó, bem nova, e pedia para ela tocar o choro que ele ia acompanhando. Como se fosse um gravador, sabe? Ele ensinava, ela chegava lá e tocava o choro ao vivo. Isso também faz parte dessa aprendizagem musical dela, que é bastante vasta. Sem contar o colégio interno… 

Lucas – Isso que você diz, do quintal do tio Dionísio, do Chorão, em Inhaúma – essas pessoas que você citou, André, que ficavam impressionadas ao ver a menina Ivone tão novinha centrando no cavaquinho, acompanhando o tio no cavaquinho, eram Pixinguinha, Jacó do Bandolim, Candinho Trombone. Convidados do tio Dionísio para aqueles saraus que ele realizava. Eles não sabiam que aquela menina já tinha ensaiado com o tio. Eles achavam que ela estava tocando de primeira e ficavam impressionados. Então, seguindo o fio dessa formação musical da sua avó, tem essa influência do choro, com o tio Dionísio, tem a influência dos ranchos carnavalescos, vinda dos pais – eles se conheceram num rancho famoso, chamado Flor do Abacate. Mas tanto o tio Dionísio quanto João da Silva Lara, pai de Dona Ivone, também saíam em um bloco chamado Africanos de Vila Isabel, que era um rancho só frequentado por homens. Só homens desfilavam no Africanos de Vila Isabel, nome que diz muito da ancestralidade e de toda influência do berço da sua avó. Dona Ivone tinha três anos e pouquinho quando perdeu o pai. Ela acabou sendo criada – ela e Elza, sua irmã – por uma mãe solo, Emerentina, que resolveu matricular Dona Ivone no colégio Orsina da Fonseca, uma escola pública. Naquela época, a escola pública era de muita qualidade, e as alunas, nesse caso, eram só mulheres…

André – Essa escola funciona até hoje, na Tijuca, só que agora é do município…

Lucas – Ali, as alunas tinham aulas não só da grade curricular tradicional, mas aprendiam sobre esporte, música e trabalhos artesanais. Na época, o governo Vargas chamou o maestro Heitor Villa-Lobos para cuidar de uma política cultural de educação cívica. Isso é muito contestado até hoje, mas as crianças tinham aula de canto orfeônico, que era a prática de canto em coral. Então elas cantavam em coro ou em duos, trios; aprendiam a abrir vozes, como a gente chama, fazer uma segunda voz, cantar em terças, cantar em quartas, em quintas, cantar em grandes grupos corais. Enfim, o Villa-Lobos chegou a reger um coro com mais de 30 mil crianças no estádio de São Januário, na presença de Getúlio Vargas. E, das professoras, sua avó teve aulas com Lucília Villa-Lobos, companheira do maestro Heitor, e Zaíra de Oliveira, companheira do Donga e grande cantora lírica. Acho que boa parte dos “la-ra-laiás” dela, aquelas introduções solfejadas, vem daí, dos contracantos também. 

André – Claro, com certeza. O ouvido dela era absoluto. Mesmo com muita idade, se você tocasse alguma coisa errada ou cantasse errado, ela tinha essa percepção muito aguçada. Era uma máquina de fazer melodia. Toda hora ela estava fazendo um “la-ra-laiá”. Se ia andar de carro, ir ao banco, alguma coisa, ela [ia cantando] “la-ra-ia-la-ra”. Acho que a mistura dessas aprendizagens todas, todas as vivências que ela teve, gerou essa coisa fenomenal nela de compor, de fazer melodias, contracantos. Os contracantos são melodias dentro de uma outra melodia. Há uma melodia principal, e a secundária – um “la-raiá-laiá” – é o contracanto por trás. Ambas se complementam para formar uma única música. Tem um disco, Bodas de Ouro, que ela gravou com Djavan, em que ela faz a introdução na música “Foi um sonho meu”. Uma introdução improvisada do nada. O maestro falou “Dona Ivone, faz uma introdução”, e ela criou essa melodia que, depois, acabou virando samba com Luiz Carlos da Vila e Bruno Castro. E Luiz Carlos tinha até medo de cantar essa música. Era uma música linda, “Nas escritas da vida”, que surgiu desse contracanto. Eu vivenciei muito isso quando era novo. Meus pais trabalhavam, então, quando eu chegava da escola, passava aquele horário de trabalho com ela, e às vezes ela me levava para gravações só para fazer contracanto. Ela chegava: “Vamos lá, André”. Aí eu ficava vendo aquilo: “Mas vó, você veio só para fazer o ‘la-ra-iá’?” E ela explicava as coisas todas… Eu era muito novo, não tinha essa noção ainda do que estava acontecendo. Isso aí se deve, com certeza, a essa vivência toda e ao dom dela. 

Lucas – Acho que você foi ao ponto. É essa confluência de vivências, e essas introduções solfejadas e os contracantos. É isso. A influência do choro, do canto orfeônico, dos ranchos carnavalescos, dos grandes melodistas de samba de terreiro com quem ela conviveu, incluindo os primos, e a gente não pode também esquecer da influência do jongo, da questão da ancestralidade, da travessia transatlântica. Os antepassados da sua avó, segundo ela, vieram de Angola. Vovó Teresa, que era tia dela; vovó Maria Joana Rezadeira, com quem ela conviveu muito… São ícones do Jongo da Serrinha. E esses cantos afro-brasileiros, de religiões de matriz africana, de ladainhas, de trabalhos, como dizem, isso também é algo que, como dizia Noel, não se aprende no colégio…

André – É, isso é só vivenciando mesmo. A tia Teresa – que foi quem a criou durante uma época da sua vida –, faleceu com “115 anos”, entre aspas, como diziam antigamente. Ela era a matriarca da família. Ela falava as coisas, e as pessoas tinham que parar, escutar, fazer o que ela pedisse. “Tem que fazer isso porque vai acontecer aquilo”. Coisa mesmo de ancestral. Aquela coisa que já vem de lá do outro continente. E ela era muito séria. Você falou dos contracantos: teve um episódio, quando ela foi gravar o primeiro disco, em que, quando ela chegou ao estúdio, os maestros renomadíssimos da MPB não esperavam nada ao se depararem com uma mulher negra, vinda do samba. Eles se surpreenderam com os contracantos, com as vozes que ela fazia. Viram essa percepção dela, essa musicalidade que ela trazia dentro de si, e isso se tornou uma marca registrada.

Lucas – Era como respirar, para ela. Tanto que era chamada para fazer contracanto em discos de vários grandes artistas da música brasileira. Para mim, talvez o mais significativo seja um samba do Paulinho da Viola que se chama “Não é assim”. Está num disco dele de 1982, chamado A toda hora rola uma estória. É muito legal porque na contracapa desse disco colocaram o nome de todo mundo que gravou em cada uma das faixas, então tem ali: “contracanto: Dona Ivone Lara”. Naquele disco, estavam creditando só os instrumentos, mas, no caso dela, a voz era seu instrumento. O contracanto era tão marcante que Paulinho da Viola resolveu creditar na contracapa daquele disco. 

André – E foram muitos discos. Ela foi até o fim da vida em atividade. Quando já estava mais idosa, ainda tinha aquele ouvido forte, aquele jeito dela, aquele carinho, aquela coisa com a música. Às vezes, no modo como ela respirava, a gente já aprendia alguma coisa. Às vezes ela ficava quietinha ali, respirando, e a gente dizia: “poxa, vamos aprender alguma coisa, deve ter algum ensinamento”. Porque foi uma história de vida muito bonita, rica, uma história de luta, de acesso, de empoderamento principalmente. Tudo que ela fez na música foram coisas maravilhosas. Até no partido-alto, que você toca um “la-ra-la”, ela fazia de um modo mais melodioso. Aquela mão da mulher, aquele cuidado, aquele carinho que ela tinha.

Lucas – Muito lirismo, né? Uma delicadeza, uma sofisticação, um refinamento e, ao mesmo tempo, muito espontâneo, muito popular. Melodias facilmente cantaroláveis. Você já sai cantando junto. Mas tinha um refinamento, uma erudição ali muito espontânea, intuitiva e natural. Além dessa riqueza e dessa obra dela, que é muito única, de acesso, de representatividade. Isso está tudo carregado na trajetória da sua avó. Se a gente for falar de representatividade, de feminismo, de luta antirracista, isso é Dona Ivone Lara. Com sucessos que nem sempre eram de autoria dela, como “Sorriso Negro”, que não era uma composição dela mas se tornou um hino do movimento negro na sua voz… Se a gente for falar de luta antimanicomial, isso também é Dona Ivone Lara. Não é à toa ela acabou ganhando o apelido de “primeira-dama do samba”, dado pelo grande Hermínio Bello de Carvalho, parceiro de Dona Ivone. E o Hermínio costuma dizer que deu esse apelido para sua avó por quê? Porque ela foi a primeira a cantar daquele jeito, como a gente já falou aqui – abrindo vozes e fazendo os contracantos –, a primeira a compor daquele jeito, com esse caldeirão de influências, referências e vivências que a gente já citou – do choro, do rancho carnavalesco, do jongo, do canto orfeônico. A primeira mulher a cantar daquele jeito, a compor daquele jeito, a tocar um instrumento de harmonia, que era o cavaquinho, a dançar aquele miudinho tão particular – o Caetano Veloso contou, para o livro, que já teve vontade de fazer um documentário só sobre o miudinho da Dona Ivone, que era algo muito particular, e a gente sabe também de onde vem: do jongo, da tia Teresa, desses antepassados, dos mais velhos – e, também, a confeccionar os figurinos com os quais ela se apresentava na avenida –  ela desfilava sempre na ala das Baianas da Cidade Alta, no Império – e nos palcos. Ela pode não ter sido a primeira nesses atributos separadamente, mas foi a primeira a reunir todas essas qualidades em uma pessoa só. Cantar, compor, tocar um instrumento, dançar daquele jeito e a fazer a própria roupa com que se apresentava. Então, por isso, a primeira-dama do samba.

André – E ainda deixou esse legado para nós. Estamos aí pesquisando, procurando ainda rastros que ela deixou de músicas. Estamos digitalizando isso para mandar para as pessoas. Agora vai ser lançado um disco do coletivo de mulheres aqui do Rio de Janeiro comemorando o centenário dela, com duas músicas inéditas que conseguimos achar nas fitas. Uma eu coloquei letra junto com a Bel, e terminamos a melodia. A outra, nós entregamos para elas, já estava pronta. Estamos fazendo uma pesquisa para continuar mostrando mais esse legado de obras musicais. Parece que uma música vai sair no disco da Elza Soares. Tem também nas plataformas o Baú da Dona Ivone, que é um projeto que o Bruno Castro fez, com obras inéditas dela interpretadas por artistas da música popular, o nosso cancioneiro, algo muito bonito. Continuando esse legado na música, e nas outras áreas também, como você pôde falar, desse trabalho na saúde mental, na luta antimanicomial, na assistência social. Muitas pesquisas sendo feitas sobre o trabalho dela, mostrando que ela fez o certo na hora certa. E só agradecer a isso tudo. Ela não pôde ver essas coisas acontecerem em vida, mas com certeza está na energia de todos nós. 

Lucas – Exatamente. Como disse um outro grande imperiano, seu Wilson das Neves: “daqui 200 anos, as pessoas ainda vão estar falando de Dona Ivone Lara”. Porque é esse legado que fica, não só na obra, mas nesse espelho, na sua representatividade, não só para outras mulheres do samba. Ou no mesmo período, ou logo depois, nasceram, surgiram Alcione, Lecy Brandão, Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus – que era mais velha que sua avó, e elas gravaram juntas, conviveram, tinham uma admiração mútua, um respeito mútuo. E acho que não só esses grandes nomes… Cristina Buarque foi uma das primeiras a gravar. Beth Carvalho, Geovana… E eu vou além: Clara Nunes, que estourou com mais de 400 mil cópias com Alvorecer, em 1974… A importância da sua vó, em 1978, quando Maria Bethânia grava “Sonho meu”, parceria da Dona Ivone com Nelson Carvalho. Foi a primeira gravação de “Sonho meu” e, com isso, Maria Bethânia, naquele disco Álibi, tornou-se a primeira mulher a vender mais de um milhão de cópias de um disco no Brasil. Na época, saíam matérias no jornal dizendo que mulher não vende disco, não é boa vendedora de disco… Tinha muito esse preconceito, e mais uma vez teve a mão de Dona Ivone ali, porque “Sonho Meu” foi um dos carros-chefes do disco da Bethânia. Enfim, o Brasil sempre foi uma terra muito fértil e pródiga de grandes intérpretes mulheres – Elizete, Elis, Gal, Bethânia, Clara, Nara Leão –, mas era muito incomum haver mulheres autoras, compositoras. Naquela época, a gente podia contar nos dedos, como Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran. Eram poucas mulheres compositoras. Então, Dona Ivone, além de ser uma grande intérprete, contribui para abrir essas portas para outras mulheres olharem e falarem: “ó, tem uma mulher compositora ali, eu também posso”. Hoje, felizmente, a gente vê muitas mulheres compondo. Eu acho que tem um pioneirismo, uma abertura de portas feita por Dona Ivone Lara. 

André – Ela passou por todas as gerações do samba. Desde aquela geração lá do Donga. Ela conseguiu passar por todas essas fases. Teve a Enfermagem, a assistência social e, depois daquela época, o Fundo de Quintal, a geração depois de Arlindo, Sombrinha, a minha geração, dos que vieram depois… Ela percorreu essas gerações todas do samba. Sempre com um trabalho muito bom, bem-feito, com muito profissionalismo. Desde aquela época do Teatro Opinião. E é isso aí, Dona Ivone Lara. 

Lucas – Exatamente, André. E até hoje, falando do samba, nessa geração de hoje, todas as pessoas ainda têm grande reverência por ela: Teresa Cristina, Fabiana Cozza, grandes cantoras que reverenciam Dona Ivone Lara, sabem da importância dela, conviveram com ela. E isso que eu estava dizendo, da mulher compositora que era incomum, hoje felizmente tem em profusão, e acho que essa influência e esse legado, nesse sentindo da mulher compositora, vai além do universo do samba. Acho que hoje a gente tem grandes compositoras que são conhecidas no Brasil inteiro, Isa, Ludmilla, todas têm um pouco do legado de Dona Ivone em si. 

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O clima de mudança nos impossíveis possíveis

por Marcele Oliveira

Eu — mulher, preta, periférica — vejo diariamente muitas de mim serem privadas de sonhar; eu —jovem, estudante, comunicadora, pesquisadora — contrario estatísticas e traço novas narrativas. Insisto em pensar no futuro. O sonho e o futuro, a meu ver, andam juntos e somente juntos podem construir um horizonte possível. Mas esse horizonte, que é democrático, empático, diverso, coletivo e digno para todo mundo é tido como impossível por conta da constante guerra que vivemos. E entre tantas batalhas vigentes, tenho me aprofundado no entrelaçamento de sonho, futuro e crise climática. 

A ciência alerta, desde a metade do século passado, que mudanças significativas no clima vão resultar em consequências catastróficas a curto, médio e longo prazo. Assim: tudo junto. Mudanças climáticas são as alterações na composição da atmosfera causadas pelo aumento das emissões de gases de efeito estufa oriundos da queima de combustíveis fósseis, que é a base e o sustento das atividades produtivas relacionadas ao nosso modo de vida moderno e, ironicamente, nada sustentável. 

O último relatório, divulgado em fevereiro, pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), destaca a urgência de ações concretas em relação aos efeitos das mudanças climáticas no planeta. De forma objetiva, precisamos globalmente alcançar a neutralidade de carbono até 2050 e acelerar alternativas para não superaquecer a Terra. Agora, pergunto: quem são os principais responsáveis pelas decisões centrais dentro desta temática? É claro que não somos eu e você. São as grandes economias, majoritariamente capitaneadas por quem sempre explorou tudo e todos ao seu redor, que geram 80% das emissões globais de gases de efeito estufa e não sofrem as consequências diretas dos desastres causados por essa irresponsabilidade. Injusto, não é? 

O cenário vem se agravando e vai balançar a 27ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 27), que será realizada em novembro deste ano no Egito. Cientistas apontam que o cenário de emergência já está ocasionando uma alta de eventos extremos, ou seja, temos mais tragédias climáticas acontecendo em todos os lugares e poucas ações efetivas de como lidar com elas, tornando-as cada vez mais graves.

Redução de emissões, mitigação e financiamento para adaptação com foco nos países em desenvolvimento e comunidades nas situações de maior vulnerabilidade são pautas que grandes agentes do clima, ONU e empresas estão, tardia e lentamente eu diria, considerando em suas agendas. Mas, novamente, são as grandes potências que verdadeiramente possuem recursos para se adaptar e reconstruir infraestruturas atingidas. E qual o nível de comprometimento delas com a pauta, entendendo que estamos falando diretamente sobre direitos básicos, como acesso a água potável e produção de alimentos para gente preta, pobre e residente de centralidades do sul global, com origens latinas, diaspóricas e ameríndias?

A real é que essas mudanças já são sentidas de forma bem agressiva em todas as partes do mundo, e aqui, no Rio de Janeiro, temos exemplos concretos de como o racismo ambiental se apresenta e nos priva de algo que é nosso direito: o convívio com um espaço urbano arborizado, saudável e preservado. Em Realengo, onde cresci e me construí, o Movimento Parque de Realengo 100% Verde luta há décadas pela implementação de um Parque Urbano-Ecológico em um terreno ocioso, onde funcionava uma antiga Fábrica de Cartuchos. Mesmo assim, a mobilização popular não impede a Fundação Habitacional do Exército (FHE), junto à Associação de Poupança e Empréstimo (POUPEX), de anunciar apartamentos de 66 m² a 76 m², com 2 a 3 quartos e 1 vaga de garagem no “poético” Residencial Realengo Verde, com conclusão de obras prevista para 2026. 

Já o Parque, sonho antigo, não tem previsão pública e, de acordo com a Fundação Parques e Jardins, segue em licitação aprovada para um projeto de implementação em somente 50% do terreno. É mole? Mesmo com os dados referentes às recorrentes enchentes na região, à precariedade dos serviços de saneamento prestados e ao aumento generalizado do calor, o interesse político e da especulação militar imobiliária está se sobrepondo não somente ao interesse dos moradores, mas também às reais necessidades de um território que clama por socorro. E o desmatamento daquele quadrado ao longo dos anos só nos assusta.

Esses ataques simbólicos e concretos se arrastam por toda Zona Oeste. Em Inhoaíba, o Fórum Socioambiental do Rio de Janeiro chama atenção para a criação de um Parque Urbano com estranhos interesses nada coletivos envolvidos. Em Bangu, diversas iniciativas se reúnem para pautar a urgência da criação de um centro de memória e cultura denominado Casa do Silveirinha, a ser localizado no terreno do antigo casarão onde viveu um importante diretor da antiga Fábrica de Tecidos, sendo assim mais um terreno verde ocioso visado pela lógica do capital, tal qual Realengo. Em Sepetiba, comunidades ribeirinhas e de pescadores tentam interromper a construção de termelétricas na baía, conscientes de que nem o Rio, nem o Brasil ganham com a construção de mais matrizes de energia à base de combustíveis fósseis. São lutas óbvias, mas, para o sistema que ama passar o trator na Zona Oeste, é mais fácil descredibilizar e ignorar as reivindicações dos moradores em prol da “melhoria e da urbanização”. E aí que está: melhoria para quem?

No Complexo da Maré, o data_labe, laboratório de geração cidadã de dados, aponta que as fontes dos órgãos oficiais da Prefeitura estão equivocadas em diversas afirmações sobre questões relacionadas ao serviço de saneamento básico dentro das dezessete favelas. Em Queimados, o Núcleo Ambiental em Defesa da Baixada afirma que não temos mais condições de perder casas e pessoas para enchentes por problemas que poderiam ser resolvidos com a revitalização e arborização de encostas. No Jacarezinho, chora-se mais uma chacina e discute-se o direito, já que não à vida, ao menos à memória e à dignidade. Em Japeri e Itaboraí, discute-se a precariedade do serviço de transporte público. Na Vila Kennedy, a importância do investimento em educação. Em Petrópolis, 230 vidas foram interrompidas e, a qualquer momento, podem ser mais, já que a urgência de um planejamento urbano real e inclusivo ainda não está solucionada. 

Com tudo isso, de onde tiramos forças para a resiliência climática, nome teórico para a vontade efervescente de mudar aquilo que aí está? Fato é que enfrentar o racismo ambiental é questão de saúde pública e precisa ser entendido como pauta central para a construção de uma sociedade mais igualitária. Chega de desastres naturais que de natural nada têm: esgoto a céu aberto, rios envenenados, poluição do ar, desmatamento desenfreado, tratores em áreas de preservação, mineração ilegal em terras indígenas, emissão de combustíveis fósseis ignorando fontes renováveis… Tudo isso é projeto. Projeto de perpetuação da tragédia – tragédia esta que atinge sempre as mesmas pessoas. E essas pessoas estão aí, dando a letra de que tipo de mudança querem para suas cidades, basta ouvir.

Não existe justiça sem equidade. Precisamos enfrentar as desigualdades, e isso só é possível conhecendo, de forma íntima e assustadora, que Brasil é este e a partir de quais ordens ele se ordena. A quem interessa a falta do Censo, a falta dos dados, a falta de interesse na preservação ambiental, a construção desenfreada e irregular de prédios concretos cinzas e o aumento do poder paralelo? 

Justiça Socioambiental, Justiça Climática, enfrentamento ao Racismo Ambiental. O que tudo isso pode significar quando 33,1 milhões de pessoas estão passando fome?

Bem, eu conceituo junto à equipe da Agenda Realengo 2030, inspirada no que trabalha a Agenda Rio da Casa Fluminense, que Justiça Climática é a luta por um futuro possível, é a luta pelos nossos sonhos. Justiça Socioambiental, eu ouso dizer, é a luta por cidades onde a gente possa viver. Repito: viver e não sobreviver ou só dormir, como propõe a lógica das cidades-dormitório. A gente precisa de cidades para pessoas e pensadas por pessoas, não pelo comércio ou pela especulação imobiliária. Justiça Socioambiental é a implementação de cidades que as pessoas possam usufruir. E, para chegar a estas cidades, temos que tratar educação ambiental como uma premissa essencial, um passo número um. 

Em uma sociedade desigual, as mudanças climáticas são potencializadoras dessas desigualdades, e seus impactos configuram mais um vetor de morte e dor para quem lida com a violência de formas diversas cotidianamente. É guerra, lembra? Falar sobre emergências climáticas é falar sobre a população pobre, preta e periférica, povos originários, mulheres, crianças, juventudes, ancestrais e comunidades LGBTQIAP+. 

O Racismo Ambiental, que é uma forma de expressar como a injustiça e a desigualdade afetam principalmente os grupos acima citados, tornou-se uma adequação indispensável dentro do debate da crise climática. Não dá para falar de mudança se não falarmos do combate ao racismo e da proteção dos sonhos que são, sim, superpossíveis. Sonhar tem que ser possível! E eu, junto a diversos e diversas apoiadores e integrantes da Agenda Realengo 2030, que realizou recentemente um Curso de Políticas Públicas na Ocupação Parquinho Verde, venho pensando no meio ambiente como uma centralidade, para Realengo e para a Zona Oeste. Uma centralidade que não normaliza absurdos sistemáticos contra o nosso território. 

Existe o nosso lado e existe o lado deles. E o lado deles é o lado que interrompe Doms, Brunos, Marielles e muitos outros nomes não nomeados que sonharam impossíveis possíveis porém impossibilitados pelo sistema capitalista e pelo projeto político de genocídio daqueles que organizam suas revoltas. 

O clima agora é de mudança para possibilitar um futuro possível e sonhador, que seja preto, verde e periférico. Inventivo, público, coletivo e tecnológico. Eu não vou vender o meu futuro. E eu não vou parar de pedir por justiça. Sim, porque sou teimosa, mas também porque sou sonhadora. É no meu sonho de cidade que mora a fagulha de esperança que me mantém viva e que não se destrói tão facilmente diante da tristeza e da raiva com o descaso ambiental. É o sonho que dita o caminho! O sonho que mostra as possibilidades daquilo que nos fazem acreditar impossível. Sonhos são a nossa riqueza. São o nosso lampejo do futuro. Portanto, digo repito e grito para todo mundo ouvir: sonhos são inegociáveis. Acredite!

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Os 10 anos da Lei de Cotas

Biblioteca Brasiliana e José Mindlin, da USP

Quem adentrasse a sala de aula de uma universidade pública até a primeira década do século XXI certamente poderia se deparar com uma imagem que mais seria adequada a um cenário de filme europeu ou norte-americano. No país da suposta “democracia racial”, pobres, pretos, pardos e indígenas não estavam representados nos espaços acadêmicos. 

Ao longo dos anos, a necessidade de se pensar em ações afirmativas para a promoção de acesso às universidades se fortificou entre os movimentos negros e, como consequência, em 2003, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) passou a reservar 50% de suas vagas para candidatos da rede pública e 40% para pretos e pardos. A implementação das cotas na UERJ contribuiu para ampliar o debate sobre meritocracia, desigualdades e diversidade nos espaços acadêmicos. 

Porém, o acesso ao ensino superior como resultado de políticas de ação afirmativa, que visam corrigir desigualdades existentes em nossa sociedade, falha ao não garantir a permanência desses estudantes nas universidades brasileiras.

No início de junho de 2022, o ministro da Educação, Victor Godoy, publicou em seu Twitter que o governo cortou R$ 1,6 bi de verba prevista para universidades federais, resultando no impacto direto sobre estudantes que vivem um quadro de vulnerabilidade social e necessitam de bolsa permanência, auxílio-alimentação ou auxílio-moradia, medidas que beneficiam milhares de alunos, dentre eles estudantes pretos e pardos. 

De acordo com O Globo, em 2020, mais de 270 mil estudantes precisaram trancar suas matrículas nas universidades federais, resultando em um recorde histórico.

 “Se não fosse o empenho da própria comunidade acadêmica, a evasão de estudantes universitários negros e pobres teria sido muito maior”, destaca Ana Flávia Magalhães Pinto, docente do Departamento de História da UnB.

Realidade dos estudantes

Quando entrou no curso de Pedagogia da Universidade de São Paulo (USP) pelas cotas raciais em 2016, Rodrigo Pereira pôde continuar os estudos graças à possibilidade de estabilidade que a USP lhe ofereceu: “Eu tinha conflitos com a minha família, então resolvi morar na USP. Eu me afastei da instabilidade que tinha na minha casa, porque ela era pequena e não tinha um lugar fácil para eu estudar, era só de um cômodo, tinha muito barulho. A USP me deu estabilidade e assistência para estudar”. O estudante ressalta que apenas as cotas não são suficientes para garantir a permanência dos alunos em vulnerabilidade que não podem estudar e trabalhar simultaneamente: “As cotas precisam vir junto com a permanência estudantil, a demanda de estudos excessiva”.

Indígena de etnia Kaingang, Marcos Kaingang, 27 anos, orgulha-se de ter concluído o curso de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O estudante ressalta a importância de olhar para a subjetividade de cada cotista ingressante no ensino superior: “Uma boa parte da realidade das comunidades indígenas não tem renda nem para pagar um cursinho, às vezes não tem com o que se alimentar. A realidade é precária e precisa ser contemplada nos processos pedagógicos”.

A história de Rodrigo e Marcos mostra como a situação de estudantes que vivem um quadro de vulnerabilidade social tornou-se marcante no ensino superior.

Os 10 anos da Lei de Cotas

Em 26 de abril de 2012, o partido Democratas (DEM) entrou com pedido de liminar que visava a declaração de inconstitucionalidade das cotas por critério racial adotadas pela UnB. O partido alegava que “as desigualdades entre brancos e negros não têm origem na cor e, mais, que a opção pela escravidão destes ocorreu em razão dos lucros auferidos com o tráfico negreiro e não por qualquer outro motivo de cunho racial” e que, naquele momento, “se institucionalizou na UnB um verdadeiro tribunal racial”. A ação movida pelo DEM motivou a necessidade de se debater o tema no Supremo Tribunal Federal (STF).

Por conta da participação de Geledés no tema de políticas de ação afirmativa na área da educação, a cofundadora da instituição, filósofa e ativista Sueli Carneiro foi convocada para defender a Lei de Cotas perante os ministros do Supremo.

 “Todos nós que lá estivemos fomos convidados pelo STF, para fazer a nossa defesa da política de cotas. Eu tenho certeza de que, para cada um de nós, foi um momento de muita tensão e muita responsabilidade, pois nós tínhamos a missão de oferecer argumentos da perspectiva da sociedade civil, já que estávamos falando com um dos poderes mais importantes da República, que é a Suprema Corte, e eles estavam dispostos a nos ouvir, então a responsabilidade de fazer uma fala competente nos preocupava”, relata a filósofa.

Por unanimidade no Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2012, a Lei nº 12.711, conhecida como Lei de Cotas, foi aprovada, garantindo o mínimo de 50% das vagas em universidades federais e no ensino técnico para o ingresso de estudantes oriundos de escolas públicas, de baixa renda, pretos, pardos e indígenas.

A celebração da primeira década de sua promulgação infelizmente não é apenas um motivo de comemoração para o movimento negro, que defronta uma futura avaliação do texto legislativo e a funcionalidade da ação afirmativa.

Em sua redação, a Lei prevê que, após completar dez anos, o programa de acesso às instituições de educação superior será revisto. A revisão visa discutir a efetividade do programa em âmbito legislativo, passando pelo Congresso Nacional e Senado Federal.

O ano de 2022 promete intensas mudanças políticas e uma eleição polarizada como nenhuma outra. Diante de um legislativo mais conservador e adverso a políticas públicas, o movimento negro percebe, nessa revisão, um potencial instrumento do que pode ser um dos maiores retrocessos para a história do país: o fim da política de cotas raciais. 

Desde que entrou em vigor, a política nacional permitiu a ampliação da diversidade dentro das universidades brasileiras e, principalmente, abriu portas e ofereceu oportunidades de um futuro diferente para milhares de pessoas ao longo da última década, mudando não só suas vidas como as de seus familiares. Uma revisão errônea e antidemocrática impossibilitaria que outros frutos como esses fossem colhidos no futuro.

Mesmo após a implementação da Lei de Cotas no Brasil, estudos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que, “entre 2016 e 2018, a proporção de estudantes [negros] de 18 a 24 anos de idade cursando ensino superior passou de 50,5% para 55,6%. Esse patamar, contudo, ainda ficou abaixo dos 78,8% de estudantes na população branca de mesma faixa etária nesse nível de ensino”.

Dessa forma, os dados evidenciam que, apesar da conquista possibilitar a inserção de um perfil de estudantes pouco visto nas universidades antes da política de cotas, ainda há um longo caminho para equiparar racialmente o espaço acadêmico. A disparidade de proporção entre estudantes [brancos e negros] é reflexo do racismo estrutural, que afeta não só o ingresso, mas também a permanência nesses espaços. Logo, o enfoque e a atuação para a efetividade das cotas deveriam estar centrados nesses problemas.

A luta constante do movimento negro 

Por mais de 15 anos, o movimento negro brasileiro lutou para que a Lei de Cotas não contemplasse apenas os alunos de baixa renda oriundos de rede pública de ensino. A conquista de uma política de cotas raciais é fruto de muita articulação e é um marco para a história do nosso país.

Durante 400 anos, defrontamos a escravização, tortura e maus tratos de povos africanos e afro-brasileiros. Há apenas 134 anos tivemos a abolição do sistema escravocrata, e o lastro desse período não se finda em 1888. O Brasil tem sua história marcada pelo cruel tratamento direcionado às pessoas negras e indígenas, seja pela escravização ou pelo genocídio. A desigualdade e subestimação firmada há quatro décadas ainda afeta a realidade brasileira, e o programa de cotas raciais iniciado em âmbito federal há apenas 10 anos ainda não se demonstra suficiente para fins de reparação histórica.

Desta forma, é importante afirmar a necessidade da permanência da política de cotas raciais em nosso ordenamento e, caso ocorra a reavaliação desse instrumento, que seja feita de forma correta e democrática. A esse respeito, a disputa pela narrativa de celebração e luta pela permanência da política é vislumbrada na iniciativa do PerifaConnection, “Um passo para dentro, muitos para o mundo: 10 anos da Lei de Cotas nas universidades públicas”, em conjunto com a Coalizão Negra Por Direitos, Nossas e o Observatório do Conhecimento.

Mesmo com os desafios pela frente, Sueli Carneiro afirma que, diante do atual cenário, o papel do movimento negro e da sociedade civil será “lutar pela permanência das cotas”.

Amar é um ato de descoberta. É um sentimento progressivo e expansivo; é construção e nunca determinação. Como nota o filósofo Byung-Chul Han, o eros, por meio de sua força universal, interliga o existencial, o artístico e o político e “mantém de pé a fidelidade do porvir”. Ou seja, a existência do seu amanhã jamais pode ser predefinida sem que levemos em conta a atividade e a disposição daqueles que se relacionam. Mas, como sabemos, muito do que já foi e é definido como “amor” vem da construção social de um determinado período histórico e seu contexto. O amor romântico, por exemplo, que conhecemos tão bem, vem se impondo desde o surgimento do modo de produção capitalista e a definição da propriedade privada, em que o homem se impõe à mulher e a restringe a seu domínio como forma de assegurar a hereditariedade de seus filhos e a transferência de bens pelas gerações. Muitas formas de controle e dominação dos corpos se manifestaram ao longo da história – e, é claro, também a resistência a elas.

Desde pelo menos a segunda metade do século XX, a busca pela liberdade amorosa ganhou corpo em forma de movimentos civis políticos, de medicina, de ciência e como cultura: o movimento hippie, a contracultura, o amor livre, a pílula anticoncepcional, o feminismo, Stonewall, o sufrágio universal etc. Em meio a tantos avanços, como é que amamos hoje? 

Para o filósofo transgênero Paul Preciado, as ideias e formas de viver e se relacionar que emergem na vida pública com esses eventos são responsáveis por uma crise epistemológica relativa a como a sociedade passa a perceber a diferença sexual. Novas comunidades e novos tipos de famílias, divergentes do modelo heterossexual e monogâmico, tiveram um impacto sobre a educação e o comportamento das novas gerações. As discussões sobre os corpos e os gêneros entraram na pauta do dia, abrindo um leque de possibilidades não normativas para que alguém defina sua identidade. A existência e as relações têm a porta da jaula do binarismo aberta: se conheça e seja quem você quiser ser, é possível. 

Ainda que uma onda conservadora venha ganhando forma ao redor do globo em pleno ano de 2022, seja através do governo ou de uma determinada religião, seja pelo conservadorismo ou pela violência, temos avanços consolidados com relação à política pública para mulheres e cidadãos LGBTQIA+. Se, por um lado, Estados tentam barrar certas ações que poderiam ser simples, como regulamentar a educação sexual nas escolas públicas; por outro, produções artísticas e culturais continuam quebrando tabus e paradigmas: séries como Pose e Sex Education; as paradas gay ao redor do mundo; a ascensão de artistas, no Brasil, como Laerte, Pabllo Vittar, Gloria Groove, Johnny Hooker, Liniker e tantos outros. 

Duas dessas produções me chamam atenção para pensar o amor nesses nossos tempos de cólera. Em 2017, Hooker e Liniker lançaram a música “Flutua”, uma história de amor gay em que o verso “ninguém vai poder nos dizer como amar” ganhou enorme projeção e foi cantado inúmeras vezes a plenos pulmões. Nos muitos vídeos da música sendo executada em performances públicas, como no festival Rock in Rio, vemos pessoas emocionadas, que tomam o verso como lição ou que o tem como gatilho para situações passadas de violência física ou psicológica, bem como pessoas que apoiam a assertividade da ideia e/ou que vivem em uma bolha em que independência da escolha amorosa não é problema. É certo que a canção marcou o final dos anos 2010, e o refrão que vem do título da música transmite-nos uma sensação de leveza em contraste com as questões colocadas pelos demais versos: fluir em meio às adversidades. 

Em 2019, estreou no Netflix a série britânica Sex Education, atualmente em sua terceira temporada, que aborda de forma suave e divertida os conflitos e dúvidas sexuais de adolescentes entre 15 e 17 anos, mas também de seus pais e professores. Seu enredo não se limita a abordagens superficiais sobre sexualidade e gênero, abordando mais do que o L e o G da sigla LGBTQIA+. Por isso mesmo, dialoga de forma mais efetiva com seu público real. Em uma cena da série, a personagem Ola, negra, de cabelo curto, que usa roupas que podem ser consideradas tanto masculinas quanto femininas, busca entender sua própria identidade ao ter um relacionamento hétero sexualmente frustrado e passar a ter sonhos homoeróticos com uma colega da escola. Pesquisando na internet e conversando com o personagem Adam, ela se descobre “Pansexual”. Adam, cujo estereótipo podemos definir como o do hétero padrão, passa a se descobrir como bissexual, o que mantém em segredo para sua família e comunidade, até que começa a tratar do fato publicamente. Seu histórico inclui praticar bullying contra o personagem gay e negro Eric, um garoto nigeriano que gosta de se maquiar, usar salto, peruca etc. A terceira temporada da série foi uma das mais assistidas da plataforma de streaming, com quase 900 milhões de visualizações e aprovação de cerca de 80% da crítica. 

Tais números nos levam a crer que o verso cantado por Liniker e Hooker nos trazem alguma verdade: “eles não vão vencer […] ninguém vai poder nos dizer como amar”. A presença tão constante do sexo no imaginário e no cotidiano dos adolescentes da série (e, como sabemos, na vida real), que acabam se conhecendo muito mais cedo do que os adultos com quem convivem, nos leva a refletir sobre a observação de Preciado: as gerações seguintes à chamada revolução sexual não se adaptam à normatividade, pois lidam com a essência plural do amor e do ser humano de maneira mais aberta e com muito mais informação do que as anteriores. Seria a Geração Z mais apta ao amor livre? Isso é bom ou ruim? Vai acabar com a família nuclear? 

O que estudiosos da questão vêm mostrando é o contrário. A psicanalista Regina Navarro Lins, autora de mais de 10 livros sobre relações amorosas, expõe em sua obra que é saudável nos abrirmos às novas formas de amar e torná-las públicas. Disso depende a felicidade de pessoas que estão casadas mas não sentem mais desejo sexual pelo(a) parceiro(a); ou que têm desejo por mais de uma pessoa; que querem viver uma experiência sexual independente do parceiro(a) ou junto com ele(a) e mais outro(a)s; que, por medo de julgamentos, acabam deixando de lado sua vida sexual e, junto com ela, o apreço pela descoberta, pela aventura, pelas novas e velhas amizades, pela autoestima e a própria felicidade. Se os modelos familiares se ampliam e são aceitos, ao contrário de sua extinção, eles ganham força. Como dizem, é nos jovens e nas crianças que nossas esperanças são plantadas, pois é neles que vemos florescer novas primaveras. 

Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro

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Entre os anos 1990 e 2000, li muitas vezes textos bem-humorados que tratavam de questões da língua portuguesa, falando sobre curiosidades regionais ou apontando as formas “corretas” de falar determinadas palavras ou de estruturar certas frases. Nesse período, saber Português (com letra maiúscula) estava muito associado, no imaginário comum, a ser um profundo conhecedor da norma culta e de seu compêndio infinito de regras e, com especial triunfo, de exceções. O debate público contemporâneo, porém, tem substituído essa perspectiva predominantemente normativa por um questionamento permanente sobre o caráter ético e político de certas palavras e sobre o sentido social das variações e dos preconceitos linguísticos. 

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Não é que o estudo da norma não seja importante, afinal, é ela que dá estabilidade à língua e, sobretudo, acesso a uma quantidade expressiva de textos que pertencem à cultura erudita, além de ser um recurso importante de legitimação discursiva. No entanto, há um salto importante quando entendemos que essa norma não é neutra, pois também está marcada socialmente: ela reflete a normatividade de grupos sociais de prestígio, especialmente centrada em elementos culturais das elites, com seus devidos atravessamentos de raça e gênero, isto é, da cultura branca europeia e urbana e do gênero masculino heterocisnormativo. Tal como na política, as minorias são maiorias; há sempre muito mais gente fora da norma do que dentro. Além disso, a própria norma culta move-se, embora mais lentamente, mas sempre na direção de só assimilar as variações que esses mesmos grupos de prestígio incorporam. De outro lado, as variantes utilizadas por grupos sem prestígio social são associadas ao erro, à ignorância, à falta de educação e de cultura.

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Cultura é um conjunto de costumes, crenças, valores e conhecimentos que um grupo cultiva, estimula, conserva, passa de geração em geração. E, é claro, cada um dos estratos sociais tem sua cultura. As narrativas, as canções, os entendimentos de mundo, os saberes da cidade e os usos linguísticos que compartilham nunca representam falta de cultura, mas seu justo oposto: a preservação de uma cultura, outra. Os preconceitos linguísticos não são inerentes aos fenômenos linguísticos; eles são fruto de preconceitos culturais que, por sua vez, estão amparados em preconceitos sociais. 

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Em célebre texto, a cientista social Lélia Gonzalez defendeu a existência do “pretoguês” ao analisar as relações de racismo e sexismo na “Améfrica Ladina” (o trocadilho é dela também). Essa América, africana e astuta, teria sabido desde sempre resistir aos processos colonizatórios, subvertendo os dados culturais e linguísticos impostos. Assim, o rotacismo do “l” para o “r” (como em “probrema”), a falta de flexão nominal no substantivo (“as pessoa”), a falta de concordância com o verbo (“eles vai”), a dupla negativa (“não vou, não”) e tantos outros fenômenos linguísticos podem ser relacionados a processos de africanização da língua portuguesa. Ou seja, a contribuição linguística de povos africanos vai muito além de questões de vocabulário: está na fonética e também na morfossintaxe. Assim, isso que é estigmatizado como “erro de português” pode ser lido como um acerto anticolonial: a persistência de formas de falar é justamente a resistência de formas de ser e de existir no planeta. 

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Os caminhos da língua são ardilosos. Lembremos o clássico debate sobre o caráter racista da marchinha “O teu cabelo não nega”, de Lamartine Babo, que diz: “O teu cabelo não nega, mulata / Porque és mulata da cor / Mas como a cor não pega, mulata / Mulata, eu quero o teu amor”. A discussão passa pela semântica do verbo “pegar”, que parece empregado aqui no sentido de “ser contagioso”, de modo que o sujeito só aceita a mulata porque sua cor não “pega”. De outro lado, há quem argumente que “não pegar” também tinha o sentido de “não ter problema”, isto é, isso de ser mulata não pega, não é problema, não tem grilo, o que desfaria a hipótese racista. Independente da versão que adotemos, o próprio termo “mulato” gerou em si grande questão. Primeiro, por sua relação com o mito da democracia racial, que tem encoberto processos de violência histórica contra populações indígenas e afrodescendentes, e dificultado a formulação de políticas públicas de inclusão. De outro lado, discutem-se etimologias possíveis para “mulato” e sua possível origem na palavra “mula”, denunciando um processo de animalização na própria raiz do termo. Outros, como a historiadora Lita Chastan, defendem uma origem árabe para a palavra, que viria de “muwallad” e significaria “mestiço de árabe e não árabe”. 

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Independentemente da origem, é preciso lembrar que muitas palavras pejorativas tiveram seus sinais invertidos pelas próprias comunidades que sofreram violências. Isso quer dizer que a etimologia de um termo não basta para descartá-lo; é preciso observar seu devir. Lembremos, por exemplo, o uso da palavra “vadia” na “Marcha das vadias”, ou da palavra “queer” no universo LGBTQIA+. O mesmo pode se dar com “mulata”, e com aquela palavra de língua inglesa que devemos não pronunciar, mas que aparece em letras de rap ou hip hop, cantadas por artistas negros. Aliás, vale registrar que é diferente quando um termo é dito pelo próprio grupo social que subverte seu sentido originalmente depreciativo, e quando é dito por alguém de fora dessa comunidade.  

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Durante uma edição recente do BBB, o participante Babu Santana afirmou que preferia o uso do termo “preto” em vez de “negro”, que teria sentido originalmente negativo. Em reportagem do Estado de Minas, o cientista político Cristiano Rodrigues avalia a questão em termos geracionais. Segundo ele, nos anos 1970, houve uma forte recontextualização afirmativa da palavra “negro”, o que explica os “Cadernos Negros” na literatura e o “Movimento Negro Unificado” no campo das lutas políticas. A geração mais recente, mais distante daquele momento de troca de sinal do termo, tem preferido “preto” – curiosamente, nos anos 1990, havia quem dissesse que esta era uma palavra racista e que “negro” seria mais adequado. No mesmo conjunto, temos ainda  os termos das cotas raciais, que se dirigem a estudantes “pretos, pardos e indígenas”. Sem dúvida, o termo “pardos” contribui para a inclusão de pessoas não marcadas pelo privilégio da branquitude, ainda que haja todo o debate entre o colorismo (a importância de observar privilégios ou prejuízos específicos dependendo das tonalidades de pele) e o imperativo de se afirmar negro (independente da tonalidade, evitando subdivisões internas e os muitos termos que, de algum modo, idealizam a miscigenação à brasileira). Vale lembrar, também, a provocação em uma recente exposição de Maxwell Alexandre, chamada Pardo é papel, que apresentou, sobretudo, representações artísticas de corpos negros. 

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Nas duas últimas décadas, tornou-se comum que entidades públicas e privadas lancem cartilhas apontando termos que devem ser evitados no cotidiano por seu caráter preconceituoso. Lembro, por exemplo, de uma que apontava o problema da palavra “denegrir” (que tem caráter pejorativo e se relaciona com “tornar negro”). Anos depois, o professor Renato Noguera escreveu um artigo chamado “Denegrindo a educação: um ensaio filosófico para uma pedagogia da pluriversalidade”, defendendo que devemos tornar os currículos mais “negros” em suas abordagens e bibliografias, ou seja, invertendo o sinal. Na mesma linha, a professora Aza Njeri diz muitas vezes em suas aulas que gostaria de “escurecer” determinado ponto (no lugar de “esclarecer”) e escolhe elementos para “sulear” a discussão (em vez de “nortear”). Ela também se entende como “digital confluence” no lugar de “digital influencer”, pois de fato é muito estranha essa profissão ocidental que se baseia em exercer influência sobre alguém. Aliás, Nego Bispo explica que nós, brancos, não somos exatamente “aliados” na discussão racial, mas que podemos exercitar a “confluência”, confluindo na luta contra as desigualdades. Assim, ainda que não se não apaguem nossos privilégios de classe e raça, podemos ao menos concretizar, com gestos efetivos, nossa não anuência com as estruturas que perpetuam nossos próprios privilégios, segundo nos lembra também Sueli Carneiro em recente entrevista a Mano Brown.  

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Nas aulas de História também há lugar para a discussão linguística. O tempo todo temos que pensar sobre escolhas como “invasão” ou “descobrimento”, como nos lembra um recente samba da Mangueira. Outro exemplo é a palavra “escravos”, antes tão naturalizada, que passa a ter um sufixo que a complexifica: “escravizados” (isto é, a escravidão não é uma condição intrínseca aos seres, mas uma processo imposto por alguém: escravo, escravizar, escravizado). Além disso, é importante repensarmos as substantivações que fazemos de termos que são, na verdade, adjetivos. Assim, também não pensemos em “os escravizados”, mas nas “pessoas escravizadas”. 

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O escritor indígena Daniel Munduruku nos ensina que “índio” não existe, que é um apelido pejorativo e generalizante. Por isso, defende “povos indígenas” (a palavra “indígena” quer dizer que são povos nativos da própria terra) ou ainda “povos originários” (que enfatiza seu caráter de origem). Nos dois casos, recomenda-se o uso do plural, deixando claro que há diversidade apesar dos traços em comum.

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Há quem questione o aumento da sigla LGBTQIAPN+, que veio a substituir GLS. Na sigla anterior, o gay vinha na frente da lésbica, e só sobrava como opção ser um heterossexual simpatizante (ou, o que me parece mais assustador, um “não simpatizante” do movimento). A passagem do L para frente e cada elemento novo acrescentado à sigla veio  trazer a notícia de outras formas de existir e outras particularidades de colocação no mundo social, oferecendo a dupla oportunidade de estar em um grupo de pertencimento.  

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Aliás, a homofobia, a bifobia, a transfobia carregam esse sufixo derivado do grego “phóbos, que tem mais a ver com medo do que com ódio, dando a dimensão de que só o conhecimento nos leva a abandonar o medo e o ódio do que nos é diferente. Isso se aplica não apenas às questões de gênero e sexualidade, mas ao ódio contra estrangeiros (xenofobia), contra as pessoas que não estão adequadas aos padrões corporais impostos pela norma social (gordofobia) e contra os pobres (aporofobia) – este último, como nos vem ensinando o padre Júlio Lancellotti.

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O surgimento de novos termos também vai tornando visível o que antes não era. Se mulheres são interrompidas por homens, temos o “manterrupting”. Se homens partem do princípio de que mulheres não conhecem determinado assunto ou que podem explicar melhor do que elas qualquer coisa, temos o “mansplaining”. Se uma pessoa tenta convencer uma mulher de que ela está louca, inventando coisas, ou fora de proporção, é “gaslighting”. Nomear é, também, dar a ver o que existe, permitindo que as mulheres se defendam, se posicionem e sobrevivam a essas formas de dominação. 

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Fico pensando no termo “barraqueira” (por vezes declinado no feminino) e sua provável origem na palavra “barraco”, que dá nome a habitações populares e estigmatiza um comportamento supostamente deselegante de pessoas associadas às classes mais baixas (ou seria melhor “classes mais pobres”, ou ainda, “classes mais pauperizadas”?). Soma-se a isso a relação com o gênero, reforçando a ideia de que mulheres são descontroladas, instáveis e histéricas. Aliás, a etimologia da palavra “histérica” vem exatamente de útero, e, não por acaso, a loucura, no avesso da norma, frequentemente estigmatizaou e perseguiu pessoas que não acompanham a normatividade homem-branco-classe-média, que exibe sua pretensa racionalidade a despeito de todo o horror que a masculinidade europeia promoveu e vem promovendo a partir de seus mitos “civilizados”.

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Outra discussão importante é a do gênero “neutro” (embora eu tenha reservas ao uso dessa palavra; melhor seria “linguagem inclusiva”). Diacronicamente, há a explicação de que o “o” que termina palavras masculinas tem origem na declinação de gênero neutro existente no latim. Nesse sentido, o que marcaria o gênero feminino seria apenas o “a”, e o masculino, a simples ausência do “a” (e não o “o”). Por isso, quando nos referimos a um grupo misto de pessoas, no plural, usamos o masculino (“Olá, amigos”). Mas, sincronicamente, é indubitável a associação do “o” ao masculino. E é evidente que, quando não marcamos a presença de mulheres, elas se invisibilizam. Por que não reafirmar, na língua, a presença das mulheres nos espaços? E aí caímos em outro problema: “amigos e amigas” ou “amigas e amigos”? Os homens na frente é um problema óbvio. O feminino na frente também não ajuda, se pensarmos no padrão cavalheiresco, de uma pretensa gentileza sexista do “ladies first”, tal qual “senhoras e senhores”. E nas duas hipóteses não ficam invisíveis as outras possibilidades de gênero, não binárias? Por isso, é uma opção adicionar o “e” como em “amigues”. Mas, se deixarmos só “amigues”, voltamos parcialmente ao problema do “todos”, generalizando ainda que pontuando a diversidade. Pois é, amigos, amigas e amigues, a questão é difícil. Outra opção é “amigxs”, mas há quem reclame dessa forma, difícil de pronunciar (e difícil de ler para aplicativos usados por pessoas com deficiências visuais).  

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A questão conservadora segue sendo defender um apreço não crítico pela norma culta, quando não uma reclamação interminável sobre a problematização dos termos (o “mimimi”, mais um neologismo de nossos tempos). Defendem a norma porque sabem que precisam dela para conservar o mundo tal qual está (mas fingem defendê-la por outros critérios). O fato é que a língua é sintoma e prenúncio, consequência e causa, acompanha as tensões sociais, traz dela questões novas e projeta futuros possíveis. E, ainda que não saibamos decidir o melhor termo para usar, é bom saber que o desconforto com a língua neste momento é sinal do desconforto com a estrutura desigual que nos atravessa a “todes”. Por isso, precisamos de cuidado com a linguagem – isto é, é preciso cuidar dela, oferecer-lhe o nosso cuidado. 

O tema é um assunto polêmico, porque o carinho que temos pelos animais de estimação tem mudado a percepção sobre o assunto. Mas os fogos de artifício fazem parte da História, de uma tradição que nasceu há 2.000 anos, quando os alquimistas estudavam fórmulas a partir da mistura de salitre, enxofre e carvão, inventando, então, a pólvora.

No século VII, os alquimistas do Islã teriam aprimorado o método ao acrescentar pirotecnia, criando chamas coloridas a partir da mistura de sais oxidantes de potássio. Por intermédio tanto dos comerciantes árabes quanto das expedições realizadas por diversos exploradores, como o mercador italiano Marco Polo (1254–1324), os fogos de artifício fabricados na China começaram a aparecer na Europa ainda no século XIV. Nesse mesmo século, começaram a surgir as principais fábricas dedicadas aos explosivos na Europa.

No Brasil, os primeiros registros de fabricação e uso de fogos de artifício datam de um período próximo ao século XVIII, tendo se popularizado a partir da chegada da família real portuguesa. Ainda nesse século, vemos surgir as primeiras fábricas destinadas aos fogos na cidade de Santo Antônio do Monte, em Minas Gerais, fazendo da região o principal polo produtor de fogos do Brasil. No país, o mais antigo fabricante ainda em atividade nasceu em Jacareí, no interior de São Paulo, vindo a construir sua fábrica em Santo Antônio do Monte, em Minas Gerais, onde tudo começou. Imigrante italiano da região de Palermo, Antonio Chieffi homenageou o português Diogo Álvares Correia, conhecido em tupi como “Caramuru” –  “homem trovão” ou “pau que cospe fogo” –, em referência ao estrondo da sua arma, que, estranha aos índios, intimidava toda a tribo quando disparada ao ar. 

A Fogos Caramuru teve tamanho prestígio em sua trajetória que foi a empresa escolhida como responsável pelo show de fogos na inauguração do parque temático da Disneylândia, nos Estados Unidos.

O Brasil hoje é o segundo maior produtor de fogos de artifício do mundo, perdendo apenas para a China.

A Floresta Amazônica é a maior floresta da Terra, com aproximadamente 7 milhões de quilômetros quadrados. Não é formada por um tipo único de vegetação, mas por distintos ecossistemas: florestas densas de terra firme, florestas estacionais, florestas de igapó, campos alagados, várzeas, savanas, refúgios montanhosos e formações pioneiras.

Ao buscar Amazônia no mapa, surge um ponto no meio do verde vasto que diz: “Amazônia, Maior floresta tropical e…” As reticências fazem parte do nome – só desaparecem com o excesso de zoom. Quando a aproximação fica extrema, a ponto de apresentar o contorno das árvores, o título cresce para: “Amazônia, Maior floresta tropical e biodiversidade.

É curioso pensar na relação das reticências com esta Floresta, justo o sinal de pontuação que indica uma ideia que ficou por terminar. Dona de uma história inconclusiva, a Amazônia parece não caber nas palavras. Estima-se que a presença humana na região começou há cerca de onze mil anos. Povos ágrafos – sem escrita – representam a maioria. 

A extensa biodiversidade é acompanhada de uma proporcional sociodiversidade. Apesar da ausência da grafia, estima-se que mais de mil línguas foram faladas na região até o século 16. Segundo o lingüista Aryon Rodrigues, a quantidade de línguas caiu para cerca de 240.

A lógica eurocêntrica de conhecimento não possui métodos que dêem conta de desvendar tamanha especificidade e complexidade cultural. Entretanto, muitos ramos da ciência dedicam-se à região, e a arqueologia tem papel fundamental – provando que os modos de interação com os recursos naturais eram completamente diferentes do que estamos propondo hoje para a região.

Há cerca de um mês, inúmeras notícias traduziram descobertas arqueológicas lideradas por Heiko Prümers. O grupo de pesquisa, que trabalha na região desde 1999, encontrou pirâmides, canais e estruturas incrivelmente complexas na região de Llanos de Mojos, na Bolívia. Os resultados foram publicados no dia 25 de maio de 2022, na revista Nature.

Décadas antes, outros pesquisadores já vinham decifrando a presença de assentamentos semelhantes, de grande e médio porte, próximos ao Alto Xingu, no Brasil e em toda a borda sul da Amazônia. Mas o grande impacto do estudo tem a ver com duas coisas: a precisão da escala e o acesso às imagens. As estruturas chegam a 4.500 quilômetros quadrados, que só se tornaram visíveis graças a uma tecnologia chamada LIDAR, na qual um laser ligado a um helicóptero escaneia a área.

A tecnologia é capaz de criar uma rede de pontos que apura a topografia. Depois, digitalmente, é possível distinguir a densidade do que foi escaneado – permitindo que toda a vegetação seja subtraída da imagem. O resultado é tão inédito – e improvável – que parece se tratar do reconhecimento do solo de um outro planeta. 

A escala permite que a estrutura seja considerada ‘urbana’. Além disso, o mapeamento foi capaz de revelar dois grandes centros monumentais, cercados por áreas periféricas – aos moldes de uma cidade típica, hierárquica. Isso entra em contraste com outros sítios arqueológicos da Amazônia, que possuem áreas dispersas, sem a nitidez de um centro.

Como o solo não possui pedras, as construções são feitas de terra e algumas outras matérias orgânicas, como madeira, cipó e palha. Além das pirâmides, há evidências de canais elevados, calçadas, plataformas, terraços, reservatórios e um sofisticado sistema de abastecimento e irrigação – permitindo o cultivo mesmo nas estações secas. Além disso, muros de fortificação foram erguidos ao redor das estruturas principais.

Um aprendizado se destaca: o sistema de gestão de terras e águas, prova a sustentabilidade de uma cidade que coexiste com a natureza sem degradá-la. Há hipóteses de que esse povo, nomeado como Casarabe, habitou a região por novecentos anos – de 500 a 1400 d.C., um século antes da chegada da colonização européia. Supõem-se que o despovoamento tenha sido efeito de guerras, epidemias e/ou secas severas. 

É apenas o princípio de uma descoberta que poderá ressignificar o passado – e o futuro – da grande floresta do mundo. O fato da região amazônica ser habitada por ágrafos não diminui a transmissão de sabedoria desses povos. São saberes inscritos em ações, em modos de vida. O desenvolvimento humano era – e é – vinculado ao desenvolvimento da natureza: em que sociedades convivem, mantêm e até melhoram os meios que a sustentam.

Junho é o mês de Santo Antônio, São João e São Pedro, comemorados pelas aconchegantes festas juninas. Era a festa mais esperada da minha infância, caracterizada pelas quadrilhas, retalhos, bigodes de carvão, peixes de papel e fogo.

A primeira vez que vi uma fogueira foi assim, em um junho frio. Lembro de ouvir alertas de perigo e histórias de queimaduras que tentavam amenizar a hipnose da chama, ou a euforia dos estalinhos, balões e rastapés. Mas o que eu mais amava na festa, depois da canjica, era o cheiro de fumaça e pólvora. Na época eu não sabia muito bem do que se tratava, mas inspirava fundo para guardar o odor na lembrança.

De acordo com a tradição católica, a fogueira faz parte da história de São João Batista, santo que dá nome aos festejos dos arraiás. Quando Maria engravidou de Jesus, sua prima Isabel estava grávida de João – ambas gestações foram anunciadas pelo mesmo anjo. Elas combinaram que, no momento do parto, acenderiam uma fogueira para avisar a chegada do filho. E foi isso que Isabel fez. 

É também com um aviso incendiário que a vida se inicia: quando o bebê coroa na saída da vagina, ele forma o círculo de fogo. A ardência avisa que está prestes a sair. Algumas mulheres conseguem perceber isso e até fazem o parto sozinhas, chegam a pegar o bebê com as próprias mãos.

Pois Isabel pariu João Batista, primeiro mártir da Igreja e o último dos profetas. Foi ele que batizou Jesus – o nome Batista vem daí. Também foi quem reconheceu o Messias, e passou a peregrinar com a notícia em mãos. Há um lindo depoimento de Luiz Antônio Simas que me ajudou a clarear a história católica – e, sobretudo, o sincretismo do Brasil: 

“Adoro São João. Nele vejo um detalhe comovente, que começa na Palestina e termina no São João virado em Xangô Menino. Como é que João Batista, primo de Jesus, um profeta iracundo, decapitado a mando de Herodes Antipas, virou na cultura popular o São João do Carneirinho? Isso é muito brasileiro. Aqui prevaleceu o João menino, filho de Isabel, primo de Jesus, aconchegando no colo o Cordeiro de Deus. O único santo comemorado no dia do nascimento, e não da morte. É linda a infantilização de João, o profeta que virou erê no cristianismo popular.” 

São João, Xangô menino
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)

Ai, Xangô, Xangô menino
Da fogueira de São João
Quero ser sempre o menino, Xangô
Da fogueira de São João

E ao pensar no menino e na fogueira, lembrei do parto de uma grande amiga, a Ayla. Ela teve seu primeiro filho no dia 24 de maio de 2019. Optou pela via natural e humanizada. A separação dos dois corpos traz muito frio para ambos, e a quentura é o antídoto. “Parto precisa de calor – a minha parteira falava. Para parir e abortar, você come coisas que aquecem, como a canela e a pimenta. Durante a gestação fiz umas dinâmicas para entender o que seria calor e frio, pra mim. Quando decidi quais pessoas estariam comigo no parto, fiz questão de convidar uma amiga para cuidar, literalmente, do fogo.”

Assim que a bolsa estourou, ela veio até a minha casa levantar a chama. Havia lenha para muitos dias, e o fogaréu acompanhou as doze horas de trabalho de parto e seguiu sendo alimentado por uma semana ininterrupta. Quando a madeira acabou, a substituíram por uma vela grande, e outra, e outra. Durante todo o resguardo havia uma chama acesa na casa, cuidada pela mãe, pela avó e por três amigas-madrinhas. Até que, no quadragésimo dia, a parteira voltou para fechar o ventre – e a vela foi soprada.

São João menino
Luísa Malheiros, 2022
(desenho feito por uma das madrinhas, cuidadora do fogo)

“A gente gasta muita energia durante o período, ficamos muito vulneráveis e abertas. O fogo é uma companhia para a transformação. Lembro que quando eu cozinhava, durante a minha gestação, a barriga perto do fogão deixava meu útero todo contraído. Ele fica inquieto, com o calor.”

Ela disse que os outros elementos também são grandes companheiros. O ar regula a respiração, acalmando o corpo todo. A terra dá firmeza e recebe os restos do cordão, e tem a água do líquido amniótico a envolver o pequeno corpo. 

Ela tinha preparado a banheira para o parto subaquático, mas não sentiu vontade de imergir. “Eu fui testando várias posições. Até que pus o pai sentado na cama, ajoelhei no rolo de yoga e me apoiei na virilha dele. Na hora H, antes da cabeça, duas perninhas começaram a se mexer, levamos um susto. Nico nasceu de parto pélvico, um tipo que não é recomendado ser feito na água.” Segue um desenho da Ayla, que mostra a posição, naturalmente escolhida:

Santo é aquele que comprova um milagre e São João não realizou nenhum. Mas seu nascimento, em si, foi considerado “o grande milagre”. O mesmo Anjo Gabriel, que avisou Maria sobre a vinda de Jesus, fez a anunciação de João – concebido pela prima estéril, em idade avançada. Mesmo com o corpo atrasado, Isabel encarnou o próprio milagre. Como canta Zeca Veloso, “todo homem precisa de uma mãe”. Todo santo, também.

O jovem São João Batista.
Escultura em mármore, de Domenico Pieratti, artista italiano nascido em 1600.
(É, por acaso, o primeiro homem batizado com o sobrenome que carrego. Sua mãe é desconhecida).