#27PerspectivasCulturaSociedade

O Vale da Estranheza

por Allexia Galvão

O que faz de nós humanos? Serão os sentimentos e as emoções a expressão máxima de humanidade? Para além da racionalidade, somos capazes de sentir. Vivemos as primaveras, desejamos tomar banho de mar no verão, ou um chocolate quente no inverno. Estabelecemos relações com aqueles que queremos por perto, e também com aqueles que não queremos. Somos marcados pelos sinais do tempo, guardamos memórias (sejam elas quais forem) e experimentamos a solidão, o ápice do sentimentalismo humano que jamais poderá ser experimentado por qualquer inteligência artificial.

Muitas são as reflexões acerca da vida moderna — o que explica o grande número de espectadores das séries britânicas Black Mirror e Humans, assim como do sensível e premiado filme Ela, de Spike Jonze. Queremos saber até onde somos capazes de chegar no modo como nos relacionamos com a tecnologia e seus desdobramentos em nossa vida. O que diria Freud, a partir de seus estudos sobre a eterna “incompletude do Eu”, diante dos decorrentes avanços tecnológicos? Os robôs se tornarão nossos companheiros de metrô? Sistemas operacionais serão bons conselheiros de madrugada? Em 2015, a loja de departamento Mitsukoshi, em Tóquio, recebeu uma funcionária extremamente eficiente, mas com uma peculiaridade incomum. Seu nome era Aiko Chihira, recém-chegada de Kawasaki, uma cidade ao sul da capital japonesa.

Três dias após sua chegada à loja, em uma quinta-feira chuvosa, muitos curiosos pararam por alguns minutos para observar Chihira exercendo sua função. A maioria pareceu silenciosamente instigada e impressionada com seus traços e seus detalhes, com a coloração de seu rosto e seus finos contornos naturais, além da textura de sua pele, que mais parecia um pêssego. Mas em pouco tempo o interesse se tornava uma repulsa e os clientes viravam-se para trás e procuravam se afastar de Chihira.

O que distinguia Chihira de seus outros companheiros de serviço, além de sua inaptidão interpessoal e de seu hall de habilidades meramente curriculares, era sua aparência humanoide. Vestida em um quimono com tradicionais sandálias japonesas, Chihira foi criada para se assemelhar a uma mulher japonesa de 30 anos.

Os detalhes em seu rosto e nas mãos eram impecáveis. De longe, certamente seria possível confundi-la com um humano. Mas, assim que começava a se mover, ela era rapidamente identificada como uma máquina. Suas poucas dezenas de motores tornavam seus movimentos distintamente mecânicos. Sua cabeça e seu tronco giravam para a direita e a esquerda (ela também podia se curvar) e seus braços pareciam deslizar em movimentos pontuais e definidos.

Funcionária incansável, Chihira recitava um discurso preciso e bastante informativo sobre Mitsukoshi, a imensa loja de departamento. No entanto, de acordo com os outros funcionários, ela tinha um grande defeito: era incapaz de escutar.

De fato, Chihira era fluente em japonês, dominava inclusive a linguagem de libras nesse idioma, e ainda assim as perguntas dos clientes eram ignoradas. Na realidade, seus ouvidos, habilidosamente esculpidos como os de humanos, não respondiam. Ainda que soubesse falar e cantar em mais de uma língua, Aiko Chihira era um robô humanoide de tamanho humano real, mas incapaz de conversar — o que ocasionou sua mudança de departamento pouco tempo depois.

Chihira foi transferida para uma vitrine no sétimo andar da loja. Só os clientes que tinham paciência de passear até o último andar paravam para escutar Chihira tagarelar lá em cima.

A funcionária ainda não estava pronta para assumir os empregos das bio-unidades ao redor dela. Pelo contrário, ela e seus congêneres ainda geram muitos empregos para programadores, engenheiros, designers e guias ou acompanhantes humanos.

Robôs trabalhando ao lado de pessoas não são exatamente uma novidade. Em nossa realidade paralela/virtual, conversamos diariamente com máquinas, já estamos familiarizados com isso. Sabemos da importância dos avanços tecnológicos e rapidamente absorvemos tais avanços, que sempre nos confortam com algum tipo de facilidade. Como não ser grato a Siri, fiel escudeira e sempre disposta a nos atender?

Ocorre que a inquietude humana, tão presente em nossa essência, desafia cientistas do campo da robótica a buscarem a perfeição na reprodução (tecnológica) do ser humano. Os robôs contemporâneos ganharam aparências realistas e articulações corporais muito parecidas às do homem mortal.

Certamente o caminho ainda parece longo até que os primos de “carne e osso” do C-3PO (icônico personagem androide de Star Wars) sejam confundidos com um humano vivo em ação. No meio desse caminho existe um vale, muito observado e discutido por cientistas, que é o chamado Uncanny Valley (Vale da Estranheza).

Em 1970, o cientista japonês Masahiro Mori propôs uma teoria que identificava um aumento da nossa repulsa por robôs à medida que eles se tornam mais semelhantes aos humanos. Qualquer coisa com uma aparência altamente humana pode estar sujeita ao efeito do “Vale da estranheza”, mas os exemplos mais comuns são androides, personagens de jogos de computador e bonecos de vida.

Embora o efeito seja fácil de descrever, é muito difícil pesquisar um conceito tão circular e subjetivo. Cientistas e sociólogos estão envolvidos em um debate constante sobre as causas do Vale da Estranheza. Três conclusões sobre o efeito são perceptíveis ao entrarmos em contato com pesquisas sobre o assunto:

1. O efeito do Vale da Estranheza pode ocorrer no limite em que algo se move de uma categoria para outra — neste caso, entre robôs e humanos. As pesquisadoras Christine Looser e Thalia Wheatley olharam rostos de manequins que se transformavam em rostos humanos e encontraram o efeito de repulsa no momento em que o rosto inanimado começava a parecer vivo.

2. A sensação de repulsa está relacionada à nossa crença de que criaturas quase humanas possuem uma mente, como nós. Um estudo dos cientistas Kurt Gray e Daniel Wegner descobriu que os robôs causavam estranheza apenas quando as pessoas pensavam que eles tinham, assim como nós, a capacidade de sentir e experimentar as coisas.

3. O fenômeno do Vale da Estranheza ocorre devido a um desajuste em aspectos da aparência e/ou comportamento do robô, como a sincronização e a velocidade da fala e das expressões faciais. Ao reagir a surpresas, os humanoides mostram reação somente na parte inferior do rosto (não na parte superior), o que lembra o padrão de comportamento expressivo exibido por humanos com traços psicopáticos.

Segundo o cientista Andrew Olney, o contato com robôs pode parecer natural em um primeiro momento, mas os instintos básicos nos afastarão deles. Um androide pode ser quase idêntico a uma pessoa, porém um simples aperto de mão é suficiente para que alguém perceba que o “suposto humano” tem mão de borracha.

Refletir sobre a vida moderna se torna um exercício perturbador quando percebemos nossos próprios comportamentos robóticos e alarmantes, que cabem muito bem no universo ficcional mas, ao mesmo tempo, são muito próximos da realidade em que vivemos: passamos horas usufruindo de redes sociais, entramos em desespero toda vez que nos sentimos desconectados quando acaba a bateria de nossos celulares ou qualquer outro gadget tecnológico, construímos relações virtuais. Criamos máquinas e, às vezes, sem perceber, reproduzimos seus mecanismos. Somos vítimas das nossas próprias invenções.

Enquanto cientistas dedicam seu tempo à missão de recriar a vida humana, alguns humanos exercem condutas de máquinas e, assim, nos encontramos diante de um enorme paradoxo. “Pensamos muito e sentimos pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que inteligência, precisamos de afeição e doçura”, alertava Charles Chaplin em O Grande Ditador (1940).

Dentro do Vale da Estranheza habitam os nossos mais profundos sentimentos de inconformismo em relação à reprodução da existência humana pela tecnologia. Gostamos do que é de verdade. Chamemos, então, tal fenômeno de Vale da Esperança.

#27PerspectivasArteMúsica

Tramundo

Construir outras paisagens,
outros cenários imaginários,
não somente para encontrar lugares
mas sobretudo para localizar-se.

Ricardo Basbaum

Tramundo teve início no Natal de 2014. Era para ser apenas uma canção. Meu presente para Jorge. Naquele ano, nós decidimos criar presentes imateriais, guardados apenas pela memória, pelo afeto. A canção, que mais tarde viria a se chamar Desterro, falava sobre a incapacidade de lidar com a saudade da terra natal — a querência — e sobre Nanã, a orixá da lama, da vida e da morte. A música acabou não ficando pronta a tempo. Entretanto, trabalhar com esses temas despertou em mim um desejo imenso de pesquisa e aprofundamento. E o que, a princípio, era uma lembrança, se tornou um longo projeto cujas proporções só agora pude assimilar.

No começo, pensei em criar uma cidade fictícia do interior, localizada no Sul do Brasil e povoada, em sua maioria, por negros de descendência iorubá. Uma terra onde eu pudesse desenvolver narrativas que envolvessem tanto a cultura de matriz africana quanto os arquétipos e fábulas relacionados ao inverno e ao frio. Jorge era do Sul e vivia me contando da importância da comunidade negra em sua terra, Porto Alegre. Entretanto, senti um pouco de desconforto em lidar apenas com o imaginário gaúcho. Por suas especificidades e pelo meu distanciamento, tanto geográfico quanto cultural, decidi que deveria buscar uma nova abordagem. Dessa ideia inicial, trouxe comigo a questão negra e uma vontade um tanto vaga de trabalhar com cenários ermos e frios. Estes últimos me aproximaram dos filmes de Bergman e de seus diretores de fotografia. Desloquei o Rio Grande do Sul para a ilha de Fårö. Suas paisagens foram certamente a principal referência para o tratamento das fotos da Chapada Diamantina que utilizei nas colagens que fiz posteriormente.

Na tentativa de estabelecer um arcabouço para Tramundo, desenvolvi uma cartografia íntima. Na literatura, fui para Manoel de Barros e dele para Hilda Hilst. Dois poetas que, em maior ou menor grau, sempre estiveram presentes em minhas leituras. Foram eles que me permitiram elaborar, nas letras das canções, um atrito constante entre o ordinário e o sublime. Essa dicotomia, esse embate, permeou todo o projeto. Por conta de Barros, cheguei a Guimarães Rosa. Foi um achado. Nunca havia lido seus livros e foi bem difícil entrar em sua escrita. Comecei com Tutameia e me apaixonei por Miguilim e Grande sertão: veredas. Rosa dialogava muito intimamente com as minhas origens: minha família é natural de Itaperuna, interior do Rio de Janeiro, fronteira com Minas Gerais. Além disso, me fazia recordar constantemente de minha avó, Elza, de quem guardo muitas e boas lembranças (mais tarde, escrevi duas canções a seu respeito: Sete-Estrelo e Nazaré das Almas).

Rosa se configurou como uma das maiores referências de Tramundo, se mostrando o guia mais constante e generoso que eu poderia encontrar em meu trajeto. A partir dele, tive a ideia de que a cidadezinha fictícia que havia imaginado inicialmente se tornaria uma síntese de diversos sertões, de um Brasil não litorâneo e, predominantemente, cafuzo.

Iniciei a leitura de autores que pudessem contribuir com minha narrativa negra e caipira, caso de Aires da Mata Machado Filho, Alceu Maynard Araújo, Cléo Martins, José Ramos Tinhorão, Luís da Câmara Cascudo, Reginaldo Prandi, entre outros. Nesse momento, aprofundei mais ainda os meus vínculos com as religiões de matriz africana, voltando a frequentar terreiros e me relacionando mais intimamente com o candomblé. Dessa pesquisa surgiram as letras de Quibungo, Brejo dos Caboclinhos, Tapera do Besouro Menino, Chapada das Cantadeiras, Sumidouro, Estrada do Cabresto, Galo Tucado e Morro do Cafundão.

O Sul, que parecia ter ficado distante de meu imaginário, ressurgiu quando decidi ler Jorge Luis Borges. Inspirado em seus contos e nos pampas argentinos, escrevi Nuestra Señora de La Cochilla. Também foi da literatura hispânica que tirei a ideia do título do projeto: Tramundo, uma corruptela para Trasmundo, seção de poemas de Canciones, de Federico García Lorca.

A ideia de desenvolver uma narrativa alegórica, que já vinha se fazendo presente desde as primeiras escritas, se tornou irrefutável com a leitura de Esopo e Chamisso. Tendo animais, plantas e fenômenos da natureza como personagens principais, escrevi Rocinha dos Gotejos, Choça das Cigarras e Espinheiro Sabiá.

Ao criar uma geografia própria, também optei por um tempo ficcional, amalgamando os anos 1930, 1940 e 1950. Isso fica claro em duas canções: Boca do Mofo e General Euzébio Corriola. Esta última fala sobre a prisão e a tortura de um intelectual mineiro durante o Estado Novo (1937–1945). A temática surgiu por conta do livro Primo Levi, a escrita do trauma, de Lucíola Freitas de Macêdo. Foram os campos de concentração da Segunda Guerra que me conduziram aos presídios de Vargas e à Era de Ouro do Rádio.

Paralelo a leitura e escrita, fui em busca de uma identidade sonora para o disco. Cheguei a ouvir um pouco de música caipira, mas não consegui me identificar completamente, exceto por Pena Branca e Xavantinho, duas figuras monumentais que, desde a minha infância, me causavam encantamento. Meu sertão só começou a ganhar forma quando me debrucei sobre os discos de Elomar, Naná Vasconcelos e, mais adiante, Joni Mitchell e Nick Drake.

Ainda na dúvida se me apropriaria ou não da estética do frio, optei por ouvir Sibelius. Foi durante uma de suas sinfonias que o YouTube se encarregou de me apresentar ao compositor novaiorquino Morton Feldman. Sua música se converteu na mais constante trilha sonora de minha pesquisa: enquanto, na literatura, era arrebatado por Rosa e seu Grande sertão: veredas; na música, ficava aturdido com as peças de piano de Feldman e sua parceria com Joan La Barbara. A procura por uma instrumentação econômica, mas rica em timbres, me levou ao guitarrista Derek Bayley. Tanto ele quanto Feldman foram essenciais para que eu apurasse minha escuta e desse corpo à Tramundo. Foi neste momento que percebi mais claramente que o disco deveria ser um entrecruzamento do cancioneiro popular com a música folclórica, a música erudita e a de improviso.

Em janeiro de 2016, havia finalmente terminado de escrever as 17 letras. Elas foram, então, enviadas para diversos compositores, entre eles alguns amigos e colegas. Assim, surgiram as parcerias com Antonio Loureiro, Bruno Cosentino, Diogo Sili, Fabio Negroni, Filipe Massumi, Joana Queiroz, Luiza Brina, Mario Ferraro, Ná Ozzetti, Pedro Carneiro, Renato Frazão, Thiago Amud e Zé Manoel. Enquanto estes desenvolviam as canções, comecei a dialogar com artistas que viriam a constituir o núcleo duro do projeto, formado por Claudia Castelo Branco, Fred Ferreira, Lívia Nestrovski, Marcos Campello, Mario Ferraro e Zé Manoel.

A partir daí, tratei de desenvolver o material gráfico de Tramundo. Ainda em sua primeira fase, discuti algumas vezes com Jorge a respeito de como me apropriar de paisagens que só tive contato em minha infância. A ideia inicial era fazer uma espécie de deriva pelos sertões do país e registrar essa jornada. Entretanto, a falta de recursos e o meu pânico em viajar com um equipamento fotográfico tão caro me fez desistir dessa ideia. Obrigado a desenvolver um plano B, dei conta que todo o meu trabalho partia de apropriações e de uma sobreposição de narrativas. Jorge havia recém-chegado de uma residência na Chapada Diamantina e, pouco tempo depois, o local foi tomado por uma série de incêndios, se transformando em assunto constante nos telejornais. Fui à procura de registros de turistas que, tendo visitado a região, publicavam suas fotos em sites pessoais ou de turismo. Após seleção e tratamento, iniciei as colagens. Nesse processo, me inspirei em Lewis Baltz e, principalmente, Bergman e Richard Long. Por essa época, reencontrei Daniela e Ricardo, dois amigos que não via há algum tempo. Ricardo estava com um trabalho na Caixa Cultural. Fiquei muito interessado e decidi ler alguns de seus textos. Foi o que me levou a aprofundar a ideia de cartografia, paisagens e mapas. Um outro amigo, Luis, ao vir em minha casa e observar a parede repleta de colagens e anotações, me apresentou ao Atlas Mnemosyne de Warburg. A semelhança com o que eu vinha fazendo me motivou a olhar com mais atenção para dois projetos gráficos que havia desenvolvido anteriormente e que foram recusados: o primeiro, uma série de colagens de negros (em fotos de Augusto Stahl e Alberto Henschel) sobrepostos a mapas; o segundo, um díptico composto por figuras geométricas criadas a partir de cálculos renais e cujo resultado remetia às pinturas de Rubem Valentim. Os dois trabalhos dialogavam bastante com as colagens da Chapada Diamantina e foram incorporados a Tramundo.

Ao agrupar o material gráfico, percebi que o projeto ganhara uma nova dimensão, ou melhor, uma nova narrativa, tão importante quanto a musical. Entendi que, juntamente com o disco, se fazia necessário a publicação de um livro onde fossem incluídos todos esses trabalhos, como uma espécie de arquivo ou atlas que revelaria um outro percurso para Tramundo.

No final de janeiro de 2016, eu e Jorge nos separamos. Faltava uma semana para o Carnaval. As letras já estavam prontas e comecei a enviá-las aos compositores.

#27PerspectivasCulturaSociedade

O canto do cisne

por André Tassinari

No dia 9 de novembro de 2016, algo impensável até pouco tempo antes aconteceu. Donald Trump foi eleito o 45º presidente dos Estados Unidos. Este 9/11 foi considerado por muitos a maior tragédia americana desde o 11/9, quinze anos antes. Choque. Como uma nação tão “desenvolvida” pôde ter escolhido como seu líder alguém com valores tão ultrapassados? Com uma campanha marcada por extremos de xenofobia, nacionalismo, racismo e misoginia? Para muita gente, a eleição de Trump simboliza que o mundo está andando para trás. Que há uma guinada conservadora vindo com força total. Ou que chegamos ao fundo do poço. Será mesmo? Será que o fenômeno Trump não pode ser visto como o canto do cisne de uma minoria da população americana que não quer se adaptar à realidade do século XXI?

A expressão “o canto do cisne” é uma metáfora que se refere geralmente à última tentativa de fazer algo grandioso por parte de uma pessoa antes de sua morte. Dizia uma antiga lenda que o cisne branco passava a vida emitindo barulhos sem graça e só quando percebia a morte chegando cantava algo digno de nota. Não terá sido a eleição de Trump uma última chance de fazer barulho — antes de morrer — de uma minoria xenófoba, nacionalista, racista e misógina?

Mas, espera um pouco, como assim minoria? Ele não foi eleito pela maioria da população americana? Bem, Trump teve 63 milhões de votos. Hillary teve 66 milhões, o mesmo que Obama em 2012. Mas Trump ganhou nos estados decisivos para o colégio eleitoral americano, por isso foi eleito. Só esse dado já mostra que ele não foi escolhido pela maioria. Mas dá para ir além. Os Estados Unidos têm uma população de 320 milhões de pessoas. Portanto, Trump recebeu apoio de 20% dos americanos. Vinte por cento!

Ou seja, apenas um em cada cinco americanos demonstrou apoio a Trump com seu voto, mas eles tinham muito mais motivação para ir às urnas do que os 90 milhões de eleitores que decidiram ficar em casa. E o que os motivou tanto? Medo. Insegurança. Desespero. Preconceito. Os eleitores de Trump se iludiram com a ideia do “Make America great again”. Xô, muçulmanos! Vade retro, mexicanos! Lugar de preto é na cadeia, não na presidência, e de mulher é na cozinha, não na Casa Branca.

Ó, Senhor, dai de volta a América para os americanos! Infelizmente, para os trumpistas, a humanidade só anda para frente, apesar dos solavancos pelo caminho.

Não, as mulheres não vão voltar para a cozinha. As mulheres não só estão presentes em massa em todas as universidades, mas agora estão exigindo ser tratadas com o respeito devido — homens que adotam o “grab them by the pussy” não passarão. Em 2016, uma mulher teve um total de votos para presidente maior do que qualquer candidato branco na história, só perdendo para Obama em 2008. Outra é presidente do FMI. São mulheres as CEOs de ícones empresariais como HP, IBM, Yahoo. O abuso contra mulheres no meio empresarial é cada vez menos aceito. A empresa-sensação Uber tem colhido sérios danos à sua imagem pelo modo como trata as mulheres nos seus quadros. Exemplos de abuso no Vale do Silício têm levado a uma contínua reflexão e a ações para minimizar esse tipo de violência. Roger Ailes, fundador da Fox News — a TV americana em grande parte responsável por difundir o pensamento retrógrado por trás da eleição de Trump — foi afastado da empresa após um escândalo de assédio sexual com uma apresentadora. Grandes estrelas da TV estão percebendo que não têm licença para abusar só porque são famosos — Bill Cosby está prestes a ser julgado e provavelmente condenado à prisão.

Outra coisa que faz o cisne cantar: o mundo dos negócios não está colaborando para que as coisas importantes da “América” estejam nas mãos de americanos (de bem). Das três maiores empresas americanas, Google e Microsoft são conduzidas por executivos imigrantes da Índia. E a maior delas, a Apple, tem um CEO assumidamente gay. Oh, Lord! Pior do que isso só mesmo outro ícone do capitalismo americano, a Pepsi, que é comandada por uma mulher indiana…

Falando em ícones, dois dos mais famosos prédios de Nova York, Chrysler Building e The Plaza, estão em mãos estrangeiras. O primeiro é de um fundo de Abu Dhabi. O segundo, que foi comprado por Donald Trump em 1988, já foi repassado por ele para investidores árabes e agora é propriedade de um grupo indiano. Shame on you, Trump, por não ter achado um comprador local! E o que dizer de marcas que são a quintessência do American way of life, como Budweiser, Burger King e Heinz? Estão todas nas mãos atrevidas de um grupo comandado por (argh) brasileiros… O mundo está mesmo de cabeça para baixo. Alguém nos acorde desse pesadelo de ter um negro que nem americano é como presidente? In Trump we Trust.

Mas, afinal, quem é que confia(va) no Trump para ser o leader of the free world? Nem os próprios líderes do partido republicano queriam sua candidatura — e esses mesmos políticos com um mínimo de bom-senso já estão fazendo fortes críticas a Trump nesse início de mandato. As principais cidades americanas, como Nova York, Chicago e San Francisco, estão desafiando as ações de Trump contra os imigrantes e reforçando seu papel de cidades-santuário onde os infiéis estão a salvo das garras da Inquisição Federal.

Quem botou fé e assinou embaixo dos planos sectários de Donald Trump foram as pessoas brancas, mais velhas, menos educadas, das cidades pequenas e áreas rurais dos EUA. E elas precisavam aproveitar essa chance. Era agora ou nunca. Já em 2020, com ou sem muro, a proporção de latinos entre os eleitores crescerá, os mais velhos morrerão, um novo contingente de jovens votará pela primeira vez. Trump dificilmente seria eleito com a população americana de 2020, e dificilmente será reeleito — se chegar até lá. O canto do cisne tem prazo de validade. Então é bom tuitar, digo, cantar bem alto, quanto mais ofensivo melhor.

Ao comentar os inúmeros absurdos ditos por Trump durante a campanha, o republicano de carteirinha Clint Eastwood minimizou seu conteúdo, dizendo algo como “quando eu cresci, falar essas coisas não era considerado racista”. Claro, Clint. Quando você cresceu, existiam escolas, banheiros e ônibus SEPARADOS para brancos e negros. O casamento entre pessoas de “raças” diferentes era PROIBIDO por lei. Se você não evoluiu, Clint, azar o seu. Isso não se chama ditadura do politicamente correto, como você pensa; isso se chama progresso. Olhando the big picture, como dizem por aí, nós estamos evoluindo como raça — a raça humana.

Foto: Frank Ronan
#27PerspectivasCulturaLiteratura

O inventor do futuro

“Por mais distância que corras,
por mais dias que passem,
do teu coração não conseguirás
escapar.”


Tabu, Miguel Gomes

Estamos no futuro. A Los Angeles de 2019 nasceu do livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968), mas tornou-se popular a partir da adaptação de Ridley Scott para o cinema, em 1982. Blade Runner se cristalizou no imaginário do público ao dar contornos para um medo abafado durante o século XX. E se a aposta cega em tecnologia não nos guiar para um futuro melhor? E se perdermos o controle, como sugeriu Mary Shelley em Frankenstein, e nos tornarmos reféns das próprias criações? E se, quem sabe, o progresso irrestrito nos impuser uma realidade da qual seja impossível retornar?

A ficção científica é a arte de perguntar “e se” e nos entregar respostas improváveis. Neste campo, Philip K. Dick foi a mente mais pródiga por trás das especulações do que a realidade poderia ser. Dick nasceu em Chicago, em 1928. Aos quatro anos, os pais se separaram e ele foi morar com a mãe, em Berkeley. Estimulado pelo ambiente intelectual, o menino passava tardes inteiras ao som de música clássica, trilha perfeita para acompanhar os enredos de Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft. Tímido e pouco sociável, nas raras vezes em que era visto fora de casa se poderia apostar que estava a caminho do trabalho, em uma loja de discos, ou da Faculdade de Filosofia. Suportaria a vaidade acadêmica por um semestre, fato que lhe renderia a imagem de figura peculiar. Digamos que os EUA dos anos 40, com toda a paranoia comunista, não era o país mais adequado para quem se distanciasse do sonho americano. Criado em um lar não tradicional, Dick ficou conhecido como o jovem excêntrico que largou os estudos para vender discos e passar as noites escrevendo. Havia boatos de que escrevia ficção científica.

Depois de anos como escritor lado B, sobrevivendo às custas da esposa, Androides se tornou o principal título de uma fase fértil e vigorosa. Ainda que não tenha lhe rendido fama, a publicação lhe propiciou alguma dignidade. O livro arquiteta uma distopia muito bem transposta em Blade Runner. Na trama, Los Angeles deixara de ser a cidade ensolarada para se transformar em um lugar soturno, em que a chuva e a noite são as únicas certezas. Os carros ocupam o céu e letreiros de neon gigantes guiam habitantes desnorteados por ruas sujas e apertadas. Todos os idiomas são aceitos na Babel pós-bíblica e pré-apocalíptica. Neste urbanismo opressor, conheceremos Rick Deckard, um policial que volta à ativa para ganhar dinheiro a fim de trocar a sua ovelha elétrica por um animal de estimação de verdade. Para isso, precisa eliminar os androides que fugiram do novo planeta habitado pelos humanos.

A literatura de Dick chama atenção porque suas elucubrações não são meros rompantes de engenhosidade. Por trás de temas que abordam governos autoritários, o monopólio das corporações, universos paralelos e alterações de consciência, reside o interesse pela sociedade e a preocupação genuína pela natureza humana. Escrever sobre mundos semirreais foi a maneira de denunciar que operamos em uma realidade pré-programada, que vivemos em um mundo falso. Teoria menos acessível, porém similar à ideia platônica das sombras. O que era luz, no mito da caverna, assume para Dick a configuração de uma realidade paralela, a qual somente acessamos a partir de um ação que rompa o automatismo diário. Se Walter Benjamin denunciava a perda da experiência nas sociedades de massa, Philip irá além. A convicção do caráter invasivo da tecnologia lhe permitiu hipóteses nas quais o progresso não apenas artificializaria a experiência como também turvaria as características que nos identificam como seres humanos — inteligência, sentimentos e empatia.

Dick costumava repetir uma fábula que lhe fora contada na infância. A história trata de um casal de camponeses que recebe de um gênio três desejos. A aparição inusitada desorienta o casal, tornando o primeiro pedido um desastre. Como reparo, utilizam o segundo desejo, que corrige o primeiro mas causa novo problema. E assim sucessivamente. Dick contava a passagem com empolgação, pois no centro dela encontra-se a sua visão sobre o progresso. Assim como o casal, também parecemos despreparados.

Ex-Machina. de Alex Garland (2014)

Adentrada a carcaça futurista, Blade Runner apresenta uma reflexão antecipada por Dick 50 anos antes de filmes como Ela (2014) e Ex Machina (2015). Os debates sobre o que é ser humano e os limites entre homem e máquina circundam o protagonista, um sujeito perdido que tem de aniquilar robôs tão ou mais humanos do que ele. Avançamos convictos, sem considerar o paradoxo de que os homens são desnecessários em um mundo pós-humano. Diferentemente dos heróis de outrora, Deckard precisa salvar a humanidade dela mesma. O que se destaca na missão é a capacidade do policial de duvidar dos próprios méritos. Afinal, a paixão do protagonista de Ela por um robô é falha dele ou defeito da máquina?

Philip K. Dick nos revela um futuro no qual não se fala em avanço. Avançar é o destino dos que sabem para onde vão, e esse não parece o nosso caso. Progredir é pensar uma tecnologia que antes de nos prometer um mundo melhor, um lugar perfeito e correto, nos permita acesso a uma realidade não automatizada. E será nesse instante, nesse futuro, que nos depararemos com os nossos medos e limitações pela primeira vez — e os aceitaremos.

Ela, de Spike Jonze (2013)

Sempre me vi como um artista trágico, mas esse é um lugar-comum para quem procura coisas numa cidade que não nega variados níveis de violência. No entanto, conforme avanço nas minhas pesquisas urbanas, me pego desenhando florzinhas.



Essa atividade aparentemente pacata se dá por estudar a cidade do ponto de vista de um naturalista, explorando a paisagem e plantas, que, todos sabem, não têm voz nem olhos, mas se comunicam de forma lenta e sutil com quem tem a disposição de desacelerar-se das rotinas cotidianas.

Engana-se quem imagina uma busca pela harmonia e pelo murmúrio apaziguador. As plantas urbanas, em geral, costumam gritar alto.

Faz dois anos que estou à frente do projeto Cerrado Infinito, um trabalho de arte que consiste em descolonizar a paisagem vegetal da cidade por meio da construção de uma trilha de terra, onde planto, nas suas margens, espécies dos Campos de Piratininga, a paisagem de cerrado onde São Paulo se desenvolveu.

As plantas sobrevivem esparsas pela cidade, encontradas em condições de alta vulnerabilidade, e são coletadas e agrupadas para recriar essa paisagem esquecida. O processo é semanal, contínuo e aberto, feito com a colaboração de uma comunidade de pessoas que se formou ao redor, disposta a ajudar a plantar, semear e pensar por que substituímos 95% da nossa vegetação por espécies estrangeiras.

A descolonização sugerida vai além da dimensão material. Ao criar o local, desenvolvemos relações de intimidade com essas plantas, ressignificando e tomando conhecimento do chão onde vivemos e do processo de desenvolvimento que escolhemos ter.

É uma mudança de percepção que ocorre lentamente e que se torna explícita ao promover piqueniques aleatórios chamados de Descolonization!, onde fazemos associações artísticas, compartilhamos memórias, histórias e culturas mortas, pensando junto a importância do cerrado.

O Cerrado Infinito se torna, então, um processo de subversão do urbanismo que devolve ao território o estado de terreno baldio de onde as plantas vieram, zelando pela sua inutilidade, para que nada mais seja construído ali. Na cidade que não para de acelerar, comandada pela especulação imobiliária, o assunto tem um papel central se quisermos repensar o país.

Exagero? Poderíamos começar pelo básico: sem cerrado não teremos água, mas, como o nome do projeto diz, são assuntos infinitos que não cabem aqui e que são melhor entendidos visitando as plantas, ajudando na terra, tomando sol e batendo papo. Ou simplesmente desenhando flores.

#6VerdeArteNatureza

Paisagismo Inhotim

por Bernardo Paz

Assim nasceu Inhotim. Um lugar que não se acaba.

A primeira fase do paisagismo começou em 1986 e foi comandada pelo paisagista Pedro Nehring, meu amigo de infância, que planejou, projetou e executou os jardins em uma área de aproximadamente quinze hectares. Foram implantadas inúmeras espécies de palmeiras nativas brasileiras e outras exóticas, de várias regiões do mundo, assim como árvores arbustivas e herbáceas tropicais que se desenvolveram muito bem no local.

O projeto de paisagismo buscou sempre a exuberância, mas também muita harmonia entre as espécies, gerando dessa forma leveza e espontaneidade. Como se esculpisse a natureza, o artista Pedro Nehring harmonizou os jardins de Inhotim com caminhos, escadas e pátios com pedras enormes de quartzito e cristal rosado, hoje raríssimas, sempre em busca de uma forma que evitasse denunciar uma criação surgida pela intervenção do homem. A execução foi feita por pedreiros especializados de Minas Gerais e por um profissional italiano, que construiu os espaços revestidos com pedra tamborada. O mobiliário urbano é assinado pelo designer gaúcho Hugo França, que cria bancos e mesas utilizando resíduos florestais.

O resultado desse trabalho — que ainda está em curso — é uma reserva natural com mais de 1.400 espécies de palmeiras nativas e exóticas, e inúmeras outras, principalmente as naturais da flora brasileira. Foi assim que Inhotim recebeu o título de Jardim Botânico em maio de 2010. O Jardim possui um expressivo acervo, com mais de 4.800 espécies de plantas catalogadas e diversas ações científicas, educacionais e conservacionistas em desenvolvimento. O local abriga uma das maiores coleções de palmeiras do mundo crescendo nos viveiros e jardins. Também expressiva é a coleção de Araceae, família que inclui de imbés a antúrios e copos-de-leite, com cerca de quinhentas espécies, a maior coleção viva dessa família no Hemisfério Sul.

A aprovação do Jardim Botânico Inhotim foi um reconhecimento das atividades já desenvolvidas pela instituição: estudos florísticos, educação ambiental, catalogação de novas espécies botânicas, conservação in situ e ex situ e uso paisagístico de espécies raras. O Jardim Botânico tem como objetivo popularizar as atividades científicas através da educação ambiental e ainda desenvolver novas metodologias transferíveis para recomposição florística de áreas impactadas.

Também em maio de 2010, o Governo Federal, por meio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), reconheceu a Reserva Particular do Patrimônio Natural Inhotim. Localizada dentro do Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG), a RPPN possui área total de 145,37 hectares e é mais um local dedicado à proteção da biodiversidade no país. Situada no domínio da Mata Atlântica, abriga cerca de mil espécies de plantas vasculares, aquelas que possuem tecidos especializados para o transporte de água e seiva. A reserva é constituída por remanescentes da Floresta Estacional Semidecidual Montana encontrados em diferentes estágios de sucessão ecológica e alguns encraves de Cerrado no topo das serras. Além da diversidade florística, a reserva possui também três nascentes com origem dentro da área protegida.

Durante a Semana do Meio Ambiente 2011, o Inhotim inaugurou para o público, em caráter permanente, a visitação ao Viveiro Educador, local onde se cultiva grande parte da coleção botânica da instituição. O espaço é formado por um complexo horticultural destinado a pesquisas científicas, manutenção da coleção botânica e atividades educacionais, e abrange uma área de aproximadamente 25 mil m², com um acervo de mais de 4.800 espécies, distribuídas em 167 famílias botânicas, dentre as quais se destacam Arecaceae (família das palmeiras), Araceae (imbés, antúrios, copo-de-leite) e Orchidaceae (orquídeas).

É lá, no coração da coleção botânica do Inhotim, que está sendo cultivada a famosa “Flor Cadáver”, cientificamente denominada Amorphophallus titanum. A exótica espécie floresceu, pela primeira vez na América Latina, no Inhotim, no ano passado. O fenômeno chamou a atenção do mundo inteiro e demorou dez anos para acontecer, durando, contudo, apenas três dias.

Mais de quinze anos passados após a criação e a implantação dos jardins é que nos veio a ideia de transformar minha fazenda particular em um parque aberto ao público, a ser compartilhado e apreciado por milhares de pessoas. Logo em seguida começamos o projeto do museu de arte contemporânea, convidando artistas brasileiros e estrangeiros de renome internacional a expor seus trabalhos em um espaço já humanizado pelos jardins. Assim nasceu Inhotim. Um lugar que não se acaba. Aqui sempre será!

#5TranseArteFotografia

Sagitarius

por Jair Lanes

#8AmorHistória

O Amor: Uma breve História

por Leticia Lima

Nenhum outro tema ao longo da história inspirou tamanho interesse ou polêmica. O amor pode nos levar a grandes coisas, mas também a atos espantosos. Vivemos por amor e morremos por amor. O amor vem evoluindo desde os primórdios. Hoje, nosso conceito de amor está intimamente ligado a certos rituais românticos: rosas vermelhas, jantares à luz de vela, noivas de vestido branco, luas de mel em destinos distantes. Mas nem sempre foi assim.

O AMOR É SOBREVIVÊNCIA

Quanto mais regredimos no tempo, mais difícil fica descobrir provas arqueológicas que comprovem definitivamente a existência do amor. Porém, cientistas que buscam respostas para como nós, humanos, constituímos — em geral — uma sociedade de pares heterossexuais monógamos (mesmo que em série) vêm encontrando algumas explicações que remetem ao nascer da humanidade. Achados arqueológicos e a biologia comparada indicam que, à medida que evoluímos como hominídeos e que o tamanho de nosso cérebro aumentou, nossa fase de “infância” (ou de dependência) se estendeu, pois passamos a ter mais coisas para aprender antes de nos tornarmos independentes. Para garantir a sobrevivência de crianças vulneráveis, os humanos estabeleceram fortes laços entre pais e filhos, entre parceiros, entre grupos familiares e entre comunidades. Grupos que trabalhavam em conjunto aumentavam suas chances de competir por recursos escassos e, portanto, potencializavam sua sobrevivência. Como parceiros sexuais eram frequentemente escolhidos dentro do próprio grupo, os humanos desenvolveram também genes para formação de vínculos emocionais, cooperação e empatia.

Parece provável que os rituais sexuais entre nossos primeiros antepassados envolvessem machos dominantes, maiores e mais fortes que suas múltiplas parceiras. Já as fêmeas, menores e mais fracas, tornavam-se submissas e obedientes aos desejos do macho. Com o passar dos anos, no entanto, o dimorfismo sexual entre machos e fêmeas diminuiu e as mulheres ganharam um pouco de chão em termos de igualdade e responsabilidade comuns. É mais ou menos ao mesmo tempo que a monogamia em série aparece como comportamento, e vislumbramos o nascer do amor romântico.

Em seu livro Marriage, a History a autora americana Stephanie Coontz argumenta que os primeiros casamentos foram arranjados pelas famílias ou tribos dos noivos para cimentar os laços sociais e contribuir à estabilidade e à viabilidade econômica do grupo. Diferentes tribos, por exemplo, arranjavam casamentos entre si para criar obrigações recíprocas. Esse comportamento se tornou a norma durante milhares de anos.


O AMOR É DOCE

Ninguém sabe dizer ao certo de onde vem a expressão “lua de mel”, mas existem algumas teorias. Em 1546, aparece publicada pela primeira vez, definida como “a ideia de que o primeiro mês de um casamento é o mais doce”. O ritual em si é bem mais antigo, contudo.

“Lua de mel” tem raízes no antigo idioma nórdico e vem da palavra hjunottsmanathr, que significa “escondido”. Entre culturas do norte da Europa era comum “roubar” uma noiva de outra tribo. Muitas vezes isso levava à perseguição do noivo pela família da noiva, determinada a resgatar a moça e se vingar do “sequestrador”. O noivo e seu “prêmio” então se escondiam durante um período, até que os ânimos se acalmassem e o casal pudesse voltar tranquilamente para casa. Ajudados pela família dele, ficavam escondidos, na média, por um mês.

Já outros dizem que “lua de mel” tem sua origem em um antigo costume. Durante o primeiro mês de casamento, o pai da noiva presenteava os recém-casados com todo o mel que quisessem. Esse gesto garantiria a felicidade e a fecundidade do casal.

Ainda outros dizem que “lua de mel” simplesmente descreve o doce começo de um casamento, que, assim como a lua, rapidamente minguará. Em 1552, Richard Huloet definiu a expressão como “um termo comumente usado para descrever aqueles recém-casados, que no início são apaixonados e um ama demasiado ao outro, mas sua paixão inicial diminui, ao que dão o nome vulgar de lua de mel.”

No Ocidente, a “lua de mel” começou a tomar sua forma atual durante a era Vitoriana, quando casais faziam um tour pós-casamento, acompanhados por membros da família, para visitar todos os parentes que não puderam ir ao casamento. Já a Belle Époque viu seus primeiros casais viajando a sós, assim como fazemos hoje, graças ao crescimento do turismo em massa. A Riviera francesa era o destino mais buscado, e continua sendo muito popular até hoje.


O AMOR É POLÍTICO

A figura de Cleópatra concentra um dos maiores símbolos de poder, amor e desejo de todos os tempos. Também representa a ideia de que não só o amor é uma força poderosa, mas política. Em sua recente biografia da rainha, a autora americana Stacy Schiff desmistifica nosso conceito de Cleópatra como uma belíssima sedutora, à la Elizabeth Taylor. Em vez disso, defende que a rainha era uma política brilhante, com uma mente afiada e muito ambiciosa. Sem dúvida alguma, escolheu seus amantes a dedo.

Em 51 a.C., seu pai, Ptolomeu XII, faleceu, deixando o reino para Cleópatra VII e seu irmão mais novo, Ptolomeu XIII. Perante a lei do Egito antigo, Cleópatra foi forçada a casar-se com o irmão, uma vez que uma rainha deveria ter como corregente ou seu filho ou seu irmão. Cleópatra, que tinha apenas dezoito anos na época, casou-se, mas em seguida empurrou o irmão de lado, tirando seu nome de todos os documentos oficiais e se declarando regente única. Durante três anos reinou sozinha, mas os conselheiros de seu irmão, liderados por Potino, conspiravam contra ela. Em 48 a.C., conseguiram tirá-la do trono e exilá-la na Síria.

Mas Cleópatra não era do tipo de entregar os pontos e logo começou a juntar um exército ao longo das fronteiras do Egito. Mesmo assim, sabia que precisaria de um aliado muito forte para ganhar seu trono: precisaria do Império Romano. Então conseguiu engendrar uma reunião como Júlio César — foi contrabandeada para dentro de seus aposentos enrolada num tapete.

Se foi amor à primeira vista, jamais saberemos. Mas, seja lá o que tiver ocorrido, ela logo se tornou sua amante e, mais importante, havia encontrado um aliado no Império Romano. César ajudou a restabelecer Cleópatra ao trono, de onde deu luz a seu filho, Cesário. Porém, sua alegria durou pouco. Júlio César foi assassinado em 44 a.C., durante uma sessão do Senado, e Cleópatra foi forçada a fugir novamente.

Sozinha e vulnerável, tinha de agir rapidamente para defender seu reinado. Em 42 a.C., conheceu Marco Antônio, parte de um triúnviro que governava o Império Romano. Mais uma vez usou seu charme e inteligência para cair nas boas graças de um homem poderoso. Tornou-se amante de Marco Antônio, e logo ele passava a temporada de verão ao seu lado na Alexandria. O Senado romano não aprovou e declarou guerra contra o Egito. As forças de Marco Antônio e Cleópatra sofreram uma derrota retumbante nas mãos dos romanos. Marco Antônio cometeu suicídio a facadas e Cleópatra, após se deixar picar por uma cobra venenosa, logo se juntou a ele.

É o casal de amantes mais famoso e politicamente influente de todos os tempos.


O AMOR É (NEM SEMPRE) PURO

Foi a rainha Vitória, da Inglaterra, personagem que viveu uma das grandes histórias de amor modernas, quem deu início à tradição do vestido de noiva branco. O registro histórico parece sugerir que branco foi uma cor bastante requisitada para vestidos de noiva ao longo da história. Porém, só se tornou praticamente obrigatório após o casamento de Vitória. Se perguntarmos às pessoas hoje por que as noivas usam branco, a maioria dirá que a cor representa a pureza — ou virgindade —– da mulher.

As razões que levaram a rainha Vitória a escolher o branco em uma época onde a norma eram vestidos de cores fortes, como o vermelho e até o preto, permanecem misteriosas. Talvez tenha sido um ato de patriotismo da representante máxima da nação — a revolução industrial estava dizimando os artesões da indústria têxtil, que perdiam sua oficina às máquinas modernas. Talvez Vitória escolhesse seu vestido, coberto por uma delicada renda feita à mão, como forma de mostrar solidariedade. O branco, sem dúvida, seria a melhor cor para evidenciar o trabalho minucioso das rendeiras.

Mas qualquer que tenha sido sua razão para escolher o branco, sua opção iria mudar o conceito de vestido de noiva para sempre.

Explicar por que isso ocorreu também é difícil. Existem talvez algumas razões para tamanha influência. A primeira, digamos, é o fato de que Vitória foi uma das poucas mulheres a se casar já rainha, e não como princesa. Antes mesmo de ter um príncipe consorte, ela já tinha a coroa. Assim, era a mulher mais poderosa da Inglaterra e da Europa, e sua importância como figura influente no curso da história europeia e mundial não pode ser negada. Apesar de ter poucos poderes políticos diretos, seu parentesco e proximidade com outras famílias reais do continente — que mais tarde lhe renderam o apelido de “avó da Europa” — davam-lhe uma medida de influência pessoal sobre regentes como o tzar Nicolas II da Rússia e o kaiser Wilhelm II da Alemanha.

Uma segunda razão seria que ela e seu futuro marido, o príncipe Albert, estavam verdadeiramente apaixonados. Para nós, hoje, isso pode parecer um motivo um tanto tolo e óbvio, mas, na época, a estação elevada de Vitória a condenava a um casamento arranjado e politicamente vantajoso — manter um aliado, esfriar animosidades, fechar um acordo ou tratado. Muitos casamentos reais aconteciam apesar do noivo e da noiva serem pessoas incompatíveis, e muitos acabavam sendo extremamente infelizes. O casamento de Vitória e Albert fazia sentido politicamente, pois ele era o sobrinho do Leopoldo I, rei da Bélgica, e seu pai era irmão da mãe de Vitória, o que os tornava primos. Mas, incrivelmente, Vitória e Albert eram apaixonados também.

Casaram-se em 1840. Ela, em seu lindo vestido branco. Na noite de núpcias, escreveu em seu diário:

Nunca, nunca passei uma noite como essa. Meu querido Albert… seu enorme amor e carinho me fizeram sentir um amor divino e felicidade que nunca ousei sonhar em ter! (….) Oh, este foi o dia mais feliz de minha vida!

Tudo indica que tiveram um casamento feliz. Vitória dependia de Albert e contava com seu conselho para quase tudo, de política e religião a assuntos sociais. Durante o casamento, tiveram nove filhos. Em 1861, Albert morreu de febre tifoide. Vitória ficou arrasada. Tão arrasada que se enfiou de luto e só usou preto pelo resto da vida. Também deixou a vida pública e passou a viver como uma reclusa.

Seu reinado foi o mais longo entre monarcas britânicos: 63 anos no trono. Foi a mãe da Era Vitoriana, cujo rigoroso código moral proibia a mera menção da palavra sexo. E é também lembrada por sua linda história de amor com Albert e seu vestido de noiva branco.

Recentemente, porém, historiadores vêm questionando essa imagem da rainha, descobrindo que havia muito mais sobre Vitória e sua vida amorosa do que antecipávamos. Sua infância e adolescência, controladas por uma mãe sufocante e dominadora, sem dúvida contribuíram ao que mais tarde seria chamado de “moralidade vitoriana”. Sua reclusão voluntária após a morte de Albert colaborou para sua imagem de mulher puritana, uma viúva cuja libido morreu junto com o marido.

Contudo, quando a jovem foi coroada rainha, aos dezoito anos, o governo era liderado pelo primeiro-ministro liberal lorde Melbourne, que logo se tornou uma grande influência sobre a jovem e inexperiente rainha, que dependia de seus conselhos. Melbourne tinha um apartamento disponível dentro do castelo de Windsor e dizem que chegava a passar seis horas por dia com sua majestade. Logo circularam os boatos de um caso entre os dois, e o jornal The Times publicou, indagando: “É a serviço da Rainha — é digno de uma Rainha — faz jus à Rainha — é decente?”

Mas, uma vez que Vitória se casou com Albert, deixou de lado a companhia de Melbourne e os boatos se acalmaram. As fofocas mais interessantes sobre sua vida pessoal, entretanto, só viriam após a morte de Albert. Vitória — isolada e reclusa — carregava sempre consigo um retrato de seu querido marido falecido e, ao mesmo tempo, passava muito tempo com um de seus funcionários, um escocês chamado John Brown, que trabalhava em Balmoral, o lar da família real na Escócia. A amizade entre Vitória e Brown provocou uma onda de preocupação e indignação, e até surgiram boatos de um casamento secreto. A aprovação da rainha caiu drasticamente e a oposição política aproveitou o momento para propor — sem sucesso — o fim da monarquia e o começo da República.

Lorde Melbourne e John Brown não foram os únicos homens rotulados amantes da rainha. Diários de Vitória ressurgiram recentemente com revelações chocantes, detalhando um relacionamento emocional intenso entre sua majestade e Abdul Karim — um jovem empregado indiano que se tornou confidente e conselheiro dela. Karim chegou à Inglaterra quando tinha apenas 24 anos, para servir como garçom durante o jubileu dourado da rainha, em 1887 — quatro anos após a morte de John Brown. Ela tinha 68 anos. Vista a grande diferença de idade entre ambos, é improvável que fossem realmente amantes carnais. Porém, alimentaram os boatos passando uma noite sozinhos na casa onde ela e John Brown se encontravam. Seja como for, a moralidade vitoriana de que a rainha foi fundadora jamais toleraria esse tipo de comportamento.

Décadas se passaram, os boatos se calaram, e hoje lembramos dela como uma noiva “pura” e “virginal”, caminhando até o altar em seu vestido branco para encontrar o verdadeiro amor de sua vida — um sonho que toda noiva compartilha.


O AMOR É UMA DROGA

Ultimamente, pesquisadores têm buscado entender o amor através do cérebro humano, tentando achar respostas a perguntas milenares: por que nos apaixonamos por certas pessoas e não por outras? O amor pode sobreviver ao desgaste do tempo? Por que às vezes é uma droga?

De acordo com a Dra. Helen Fisher, antropologista da Universidade Rutgers e autora de cinco livros sobre o assunto, o amor é, sim, uma droga. Ela pilota um projeto que já foi apelidado de “o cérebro apaixonado”. Com seus colegas, analisa a mente de pessoas apaixonadas usando imagens de ressonâncias magnéticas do cérebro.

Os resultados do projeto comprovam que o amor é responsável pela produção de certas substâncias químicas. Os pesquisadores dividiram os participantes entre pessoas apaixonadas há pouco tempo e aquelas que ainda se dizem apaixonadas após dez, quinze anos casadas. O que descobriram foi extraordinário. O cérebro recém-apaixonado ativa certas células que produzem dopamina, um estimulante natural, e norepinefrina. Essas substâncias, fortes motivadores, fazem parte do sistema de recompensa e são responsáveis por sensações de prazer. Isso tudo acontece distante das funções cognitivas, no centro reptiliano do cérebro, que é associado com desejo, motivação, foco e vontade.

Como diz a própria Dra. Fisher, quando você se apaixona “ativa o mesmo sistema que é ativado quando ingerimos cocaína”, causando uma imensa sensação de euforia. A Dra. Fisher confirma: “O amor é um vício, com todas suas características. Você perde o foco, pensa obsessivamente na pessoa, passa a precisar dela, distorce a realidade, e fica disposto a tomar riscos enormes para conquistá-la.”

Após a primeira fase de paixão, vem o apego dos relacionamentos duradouros, caracterizado por sensações de tranquilidade, segurança, conforto e uma conexão emocional total. São sentimentos associados ao córtex pré-frontal, a parte mais evoluída de nosso cérebro, que abriga as chamadas funções mentais superiores, como a confiança, o respeito e o companheirismo. Podemos entender então que o amor é um vício que evolui, que libera diferentes substâncias químicas em suas diferentes fases.

Mas, entre paixões fulminantes e relacionamentos que duram décadas, todos nós já sofremos por amor algum dia. Mesmo assim, é um vício do qual espero que nunca nos livremos.

Letícia Lima é tradutora e revisora, muito raramente editora.

#5TranseAmarello VisitaArteArtes Visuais

Amarello Visita: Henrique Oliveira

Você é de Ourinhos, de 1973, quando e como veio parar em São Paulo?

Vim pra São Paulo em 1990, com minha mãe, fazer o colegial. Morei aqui até 96, quando voltei para         Ourinhos. Fiquei lá até 98. Foi onde tive meu primeiro ateliê. Fiz publicidade aqui em São Paulo e, quando voltei para Ourinhos, estava meio sem saber o que fazer. Aí, comecei a pintar.

Qual é a sua formação?

Depois de um ano e meio em Ourinhos, voltei pra São Paulo, em 98, pra fazer uma “exposiçãozinha” num boteco, e me inscrevi em alguns cursos de arte; no MUBE, com o Paulo Whitaker e o Nuno Ramos. Como estava gastando muito dinheiro, resolvi prestar artes plásticas na USP, que era uma ideia que tinha desde que me formei em comunicação.

Você sempre quis ser artista plástico?

Eu sabia que ia trabalhar com alguma coisa ligada a essa área; sempre desenhei e escrevi bastante, desde pequeno. Entrei na publicidade, um pouco por      desconhecer artes plásticas como uma profissão. Até prestei vestibular para artes plásticas, mas acabei não entrando. Então, fui prestar arquitetura e publicidade, e acabei entrando em publicidade.

Veio de família de artistas?

Não. Meu pai estudou economia, minha mãe fez direito, mas os dois trabalham com comércio.

De que forma repercutiu a Bienal de São Paulo no seu trabalho?

Foi um trabalho muito bacana. Nunca um trabalho meu fora visto por tanta gente. Consegui estabelecer uma relação interessante com o público, muita gente escreveu no meu site, mandou e-mail parabenizando, contando da experiência. Acho que foi bem bacana. [Nota do Editor: A Origem do Terceiro Mundo, obra que Oliveira apresentou na Bienal de São Paulo, foi inspirada no quadro “A Origem do Mundo”, de Gustave Courbet. A pintura causou escândalo no século XIX, ao retratar de forma explícita uma mulher de pernas abertas. A instalação de Oliveira se assemelha a uma vagina gigante, pela qual o visitante pode entrar. Lá dentro, encontra um emaranhado de túneis feitos de compensado de madeira. As curvas, reentrâncias e protuberâncias tornam esse labirinto orgânico.]

Você acredita que talento por si só acontece?

Acredito em talento, mas o talento é uma coisa… E tem que ter uma série de coisas, acho que como qualquer profissão, né? Tem que ter talento para aquilo que você faz, uma facilidade, um envolvimento com o trabalho, tem que ter foco, persistência, trabalhar mesmo. Artes plásticas exige muita disciplina.

Você tem uma rotina de trabalho?

Tenho. Trabalho à tarde e à noite. Venho todo dia, e trabalho, seja com as pinturas, seja com as esculturas, embora meu trabalho não seja só no ateliê. Há uma série de trabalhos que faço fora, nos museus, nas galerias, em viagens, é um outro esquema, mas sempre que vou trabalhar, estabeleço uma rotina.

Quais são as questões abordadas no seu trabalho?

O artista coloca a obra, as interpretações são individuais. Tem gente que pode olhar pros meus trabalhos com um viés da linguagem da pintura, de como esses movimentos são transpostos pra madeira, como uma lasca de madeira assume o papel de uma pincelada, dá movimento, e a relação com a superfície, que é de cascas e formas fluidas… Também tem questões mais formais, de linguagem e de pintura, e outras mais ligadas à antropologia, sociologia, política, às vezes o trabalho vira arquitetura.

Quais dessas questões você acha mais presentes no seu trabalho?

Quando faço o trabalho da madeira, como um em Porto Alegre, na rua, a madeira assume essa forma meio monstruosa. Um trabalho que é surreal, meio estranho, que se coloca de uma maneira estranha na cidade, no cotidiano do cidadão, e que ao mesmo tempo traz na matéria estes índices de decadência da cidade, de precariedade, no formato dessas coisas meio tumonares. Acho que aponta um pouco para a ideia dessas transformações, desses inchaços das cidades.

Como surgiram os tapumes?

Ah!, esse trabalho eu comecei a desenvolver quando estava na ECA, e veio de uma pesquisa sobre superfícies de pintura. Pesquisa que consistia em ver superfícies do mundo como pintura, muros velhos, paredes desgastadas, essas coisas assim. Estava fazendo essa ponte entre uma pintura plana, uma pintura moderna, rasa —– eu estava interessado nisso, e estava pesquisando também materiais usados na linguagem da pintura, e mais outros, utilizados em processos de colagens, de assemblagem… [Oliveira interrompe, pergunta se quer que baixe o som. Tocava então David Bowie, Oh pretty things. O volume foi diminuído]. Eu estava fazendo isso, daí comecei a olhar umas… deixe eu te mostrar. [Ele abre seu arquivo de fotos, super bem organizado, e mostra seus primeiros trabalhos].

A pintura anda junto?

Os dois trabalhos andam em paralelo. Tem uma instalação, que fiz agora, em Miami, numa galeria, em que os volumes são construídos iguais nos tapumes, só que recobertos com tinta seca, com lascas de tintas, o mesmo processo de pintura que faço sobre um pedaço de plástico, quando seca, tiro, e funciona como uma espécie de pele, daí eu vou cobrindo as esculturas.

Você cria um projeto ou eles apenas nascem?

Faço uns esboços, uns desenhos, que não preveem como o trabalho vai ser, o desenho serve, no mínimo, como um ponto de partida.

A maioria dos seus trabalhos são desmanchados depois de apresentados, como aconteceu com a Casa dos Leões (2009) em Porto Alegre. Você se apega a eles ou é fácil deixá-los?

Já começou assim, um pouco dessa ideia de trabalho temporário, já estou acostumado. Até mesmo porque são feitos para durar pouco, tanto é que quando faço um trabalho no meu ateliê, faço para que seja permanente. Então, é um outro tipo de construção, muito mais demorado, muito mais cuidadoso.

Existe algum trabalho com o qual você se sente mais realizado?

Tem uns trabalhos que gosto bastante, como o que fiz em Porto Alegre [Casa dos Leões, numa casa abandonada]. Acho que foi um bom trabalho, um antigo plano que eu tinha de fazer o retorno das madeiras para o lugar de origem — vamos dizer assim. Tirei o tapume que estava na casa e utilizei o meu. Aconteceu num momento em que meu trabalho já estava com maturidade, porque tinha esse projeto há tempos, só que, no começo, meus trabalhos eram muito simples, quase que uma reencenação da rua dentro do museu, da galeria. Não tinha muita intervenção, construção de forma, era muito plano.

Você se sente parte de uma tendência ou movimento, ou está por si próprio?

Isso é difícil de dizer, mas na pintura, por exemplo, com certeza há artistas que trabalham próximos. Nas instalações, acho, também. Hoje não existe mais coisa alguma exclusiva, tudo o que estamos fazendo já foi feito.

Quem você citaria na pintura e nas esculturas?

Na pintura, há alguns artistas internacionais. Acho que, de repente, as pinturas abstratas do Gerard Richter, em alguns pontos, têm coisas em comum com outros mais novos, a Fiona Rae, a Pia Fries; há bastante gente que trabalha com questões parecidas, a relação entre a superfície e a imagem que se forma. No Brasil, pouca gente trabalha nesse sentido. E, no campo tridimensional, acho que alguns artistas às vezes têm algum contato. Alguns pintores matéricos dos anos 80, como o Anselm Kiefer, ou o Nuno Ramos, naquela série das pinturas tridimensionais. A Anish Kapoor, que faz essas intervenções grandes nos espaços, o Ernesto Neto, o Tadashi Kawamata, que cria instalações com madeira também. Voltando pros anos 80, Frank Stella possui uma série de trabalhos tridimensionais que também tem a ver.

O que gostaria de fazer que ainda não fez?

O que gostaria de fazer que ainda não fiz? Muita coisa! Quero ainda produzir um trabalho no mato, na natureza. Quero fazer um trabalho na paisagem da cidade, como aquele de Porto Alegre, mas em um outro lugar, um lugar diferente um pouco, meio ruína também mas numa outra situação, não um predinho neoclássico, talvez um prédio semidemolido… Há um monte de projetos no caderno de ideias.

Onde recolhe o material para os tapumes?

Pego em vários lugares. Geralmente na rua, em obras, em caçambas. Às vezes numa favela demolida.

Mas é você que ainda pega?

Ah!, hoje em dia a galera tem recolhido mais do que eu!

Você recicla seu lixo?

Reciclo faz tempo. Separo pelo menos, né? Se vai ser reciclado…

Tapumes Henrique Oliveira 26 March – 9 May 2009 Commission, Rice University Art Gallery
#4ColonialismoCulturaSociedade

ZHǓNBÈI XIÀNG ZHŌNGFĀNG SHĒNGHUÓ FĀNGSHÌ

por Antonio Biagi

CTRL + C | CTRL + V | CTRL + X de Lucas Simões

Desde a Grécia Antiga, com mais ou menos relevância, as potências econômicas se estabeleceram também como potências culturais, exportando sua cultura como forma de dominação. Assim foi com o Império Romano, o renascimento Fiorentino, as navegações Holandesas e Espanholas, a Revolução Industrial Inglesa e, desde a primeira Guerra, as varias evoluções lideradas pelos Estados Unidos.

A influência norte-americana, com origem no poder econômico, bélico e diplomático, foi potencializada ao expoente pela venda de um irresistível way of life: belos carros, comidas rápidas e stars packaged pela mais (mais) excitante música, cinema e moda.

Até aí tudo tranquilo.

Desde 2001, e de maneira mais acentuada, desde o Credit Crunch em 2008, os Estados Unidos vivem uma séria apatia econômica e cultural.

Ao mesmo tempo em que problemas econômicos estruturais (por exemplo a maior dívida pública do mundo) se agravam, a população sofre ao ter de olhar para um umbigo cada vez mais obeso e um bolso cada vez mais magro que não atende à enorme lista de compras — que se mantém as long as antigamente. A frustração da sociedade Americana é aparente em Miami (claro), em Baltimore, na Califórnia e até mesmo em Nova Iorque.

Mais a economia patina, mais o cidadão comum parece ter perdido a confiança e o interesse pelo American Dream. Embora a figura de Obama tenha dado um sopro de renovação para a imagem dos Estados Unidos interna e externamente, a decadência da exportação cultural Americana, a longo prazo, parece irreversível (e agora com Trump, então, meu deus).

Getting ready for the Chinese way of life

Na segunda metade do século passado, os Estados Unidos dividiram influência com a União Soviética e, mais recentemente, com os chamados Bric: Brasil, Rússia, Índia e China. Dos quatro, a economia chinesa é disparado a maior. Em 2010, pelo primeiro ano a China é o maior investidor estrangeiro no Brasil. Em agosto de 2010, a China ultrapassou o Japão como a segunda economia e, seguindo esse ritmo, o seu PIB será o maior do mundo em quinze anos.

A pergunta é: qual será a influência do dinheiro chinês? Qual a estratégia do “Partido”, se é que existe uma? Até que ponto o Ocidente irá assimilar a China e, ao mesmo tempo, o caminho contrário?

Na prática, como é a casquinha mista chinesa? O hambúrguer? A Marilyn Monroe? Os clipes (nossa senhora!)? Hollywood? Bollywood? Shanghai-wood?

Ilustrando (não respondendo) a questão, colagens do artista plástico Lucas Simões.

* texto publicado na edição AMARELLO 4, na primavera de 2010. Segue valendo na era Trump, com excessão do Brasil como um dos promissores Bric. (R.I.P.)

#3MedoArteFotografiaModa

MC MX VII

#1MudançaModa

1915 Bloodshed and Oppulence

por Antonio Biagi

Uma apresentação Thimister de almas e vestidos

O designer holandês Josephus Melchior Thimister prepara sua coleção “1915 Bloodshed and Oppulence” para a Semana de Alta Costura de Paris em janeiro de 2012

O desenvolvimento da coleção nasceu do desejo do artista de compartilhar sua visão da equação arte e moda. A coleção tem algo em comum com o que se costuma ver nas passarelas: glamour e luxo, mas não se trata apenas disso. Sua criação se difere daquela em que o luxo e glamour sobram na mesma medida em que falta conteúdo com significado. O que se verá no desfile de Thimister é uma  apresentação de almas e vestidos. As raízes ele busca em seus próprios clássicos e cria reinterpretações para o contexto atual.  A proposta é a de criar reflexões que conduzam a uma nova abordagem sobre a construção.

Reflexões sem trégua nestes tempos de insegurança, catástrofe econômica e desolação ambiente. O caos vivido em 1915 pode ser facilmente transferido à nossa época, um tempo dominado pelo sofrimento, pela falta de esperança e pela sobrevida. 

O tema permite um distanciar necessário e uma análise de nossa sociedade que tenta encobrir o vazio, mas que, no fundo, anseia por uma vida mais plena, mais rica, em que supostamente a espiritualidade é valorizada. 

Composta de duas partes, o desfile alia o componente militar à alta costura.

O componente militar cospe explosões de branco sujos de sangue sobre almas imaculadas, um exército verde, reminiscências dos Cossacos Russos, meninas que se arrastam no sangue, assombradas pela falta de esperança. Um movimento sem ordem nem guia, buscando uma vida melhor, ao longe, em outras margens. 

Variações de verde que se esfregam a peles verme-lhas como que manchadas de sangue e bordados que colocam lado a lado o branco e manchas Jackson Pollock.

O componente Alta Costura Russa reflete uma aristocracia intocável e neurótica que ignora toda e qualquer responsabilidade, protegida hermeticamente do rude mundo exterior. Ela se esconde em um universo de torres de marfins, Vogues de luxo e atitudes imperiais. Desliza desdenhosa sem mostrar o menor sinal de medo ou fragilidade. Nuances imperiais de vermelho e creme enriquecidas por raios de prata dos ‘“vestidos samovar’’.

Os casacos de raposa branca desafiam o frio e o o-lhar dos pobres, mas, no final, as belezas Russas acabam por cair em desgraça junto aos primeiros soldados vítimas da guerra. 

A sociedade, conquistadora e vítima de si própria, propaga um misto de esperança e  aflição que contrasta com a opulência da extrema beleza e do luxo. Príncipes e indigentes, Botticellis bálticos e fantasmas rurais vivem juntos na tempestade e no vento.

O sangue e a lama, a sobreposição dos séculos, a fusão dos países, as lembranças da guerra, lufadas de beleza e riqueza, o incenso de profundas crenças ortodoxas que defumam as almas como faria uma voz de tumba.

Sobre o artista

Formado pela Academia Real de Belas Artes de Antuérpia, Josephus Melchior Thimister obteve diploma SUMA CUM LAUDE da seção de moda da Academia Real de Belas Artes de Antuérpia em 1987. 

Após passagens por Karl Lagerfeld e Jean Patou Patou, trabalhou como decorador antes de ser nomeado diretor artístico da Maison Balenciaga. 

Sua visão apurada, quase sucinta, mo-dernista, o fez ser considerado o sucessor natural do criador de visão estrutural. Durante os cinco anos em que dirigiu a Balenciaga, Thimister deu um sopro de modernidade à marca,  antes de criar a sua própria,  em 1997, com coleções de prêt-a-porter e alta costura.

Pode-se dizer que sua a primeira coleção prêt-a-porter foi considerada pré-couture: nela, uma edição limitada de 30 vestidos, todos pretos ou azul-escuros, que, à primeira vista, podiam até parecer simples, mas quando analisadas de mais perto, revelavam uma técnica de alto nível. Tecidos como crepe e seda apresentavam caimento impecável. Convidado pela câmara de alta costura, que buscava novos talentos, Thimister apresenta sua coleção com modelos que mostra um approach dife-rente de tudo o que já se vira no mundo da alta costura e demonstra sua singularidade quando o comparamos a nomes conhecidos da moda.

Seu minimalismo, contrário ao barroco (que é considerado, erroneamente, sinônimo de alta costura) confere um lado prêt-a-porter à alta costura.

O público se surpreendeu pela modernidade e o aspecto aparentemente simples das silhuetas. 

No entanto, criar modelos se mostrou ser uma das artes mais difíceis de se realizar. A técnica e o corte perfeito saltam aos olhos, mas isso não é tudo. 

As criações de Thimister exalam leveza e poesia da qual emana uma elegância desprovida de frescura. E ele fez mais: ao utilizar materiais pouco convencionais, abriu mão do tradicionalismo puro para inovar. Quando paramos para pensar em sua forma de criar coleções, as noções do que é o “efêmero” nos chega ao espírito.

Essa mesma noção nos é também evocada pelos títulos que o próprio artista dá a suas criações como “a luz do norte e o modo como ela se reflete”.

Em 1999, com o tema “O nascimento do pequeno príncipe e o paraíso perdido”, Thimister assinalou a chegada da alta desconstrução do mundo sagrado da costura ao reciclar tecidos rústicos e acrescentando acabamentos de alta costura, em rendas de seda e cetim. 

Antes de Thimister, nunca ninguém havia criado peças como as dele. Sua característica vanguardista se ilustra pela utilização de materiais como forros esgarçados e redobrados, pelo uso de materiais sintéticos como plástico e látex e a maneira como associa o uso de materiais, ora ultrasofisticados, ora brutos. Aí ficam evidenciadas suas múltiplas raízes:  belgas, nórdicas, poéticas, ligeiramente surrealistas que podem ser facilmente postas em oposição.

Sentimentos contraditórios se exprimem um sobreposto ao outro.

Thimister, que nasceu em Mastricht, nos Países Baixos, mora hoje em Paris.  Foi diretor artístico da marca italiana Genny e trabalhou para Charles Jourdan, entre outras diversas marcas de prêt-a-porter como consultor.

#3MedoArteArtes Visuais

Eu preciso destas palavras escritas

Um olhar sobre os bordados de
Arthur Bispo do Rosário

“Um dia eu simplesmente apareci!” Era assim que Artur Bispo do Rosário, o Bispo, costumava se apresentar. Nasceu em Sergipe, em uma cidade muito pequena chamada Japaratuba, por volta de 1910. Não se sabe, ao certo, porque em cada registro encontrado da vida dele há uma data: na Marinha — onde ele trabalhou de 1915 a 1933 e lutou boxe; na Light — onde trabalhou de 1935 a 1936; e na Colônia Juliano Moreira, onde ele ficou internado até morrer.

Na Light, era lavador de bondes e ônibus. Em 1936, sofreu um acidente em que teve seu pé esquerdo esmagado e foi obrigado a assinar um documento em que assumia, ele, toda a culpa pelo acidente. Mesmo assim, foi afastado por desacatar ordens superiores e, logo depois, dispensado completamente.

Esse acidente lhe rendeu uma causa trabalhista, e foi assim que o artista conheceu o advogado Humberto Leone, em 1937. Bispo e Leone se tornaram muito amigos, tanto que Leone o acolheu em sua própria casa, na Rua São Clemente, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Na casa, Bispo tinha um papel de “faz-tudo” e, mesmo depois que Humberto Leone morreu, ele continuou vivendo com a família Leone. Foi naquela casa que o artista começou a produzir suas obras e a formar seu santuário, e, também, foi lá que teve sua primeira visão. Era 22 de dezembro, quase véspera do Natal de 1938. Bispo saiu de casa se dizendo escoltado por sete anjos azuis. Dizia também carregar nas costas uma cruz, também azul. Dirigiu-se à Igreja da Candelária, a essa altura, sendo seguido pelos Leone e, quando chegou à Igreja, pediu para falar com o padre e disse “Vim me apresentar”.

Bispo se considerava um servo de Deus, um escravo obrigado a obedecer a uma voz que ouvia e que mandava executar sua missão de se retratar, inventariar e catalogar o mundo para Deus — seu Manto de apresentação é uma prova desse inventário para Deus. Nele, Bispo bordava o nome das pessoas que para ele, entrariam no céu, no dia do Juízo Final. Presentes em algumas de suas obras, as estrelas seriam a representação de forças que agem harmonicamente a serviço de Deus.

Aura Azul

Após ter sua primeira visão, Bispo foi internado com o diagnóstico de esquizofrenia paranoide: primeiro, no Hospital dos Enfermos, na Praia Vermelha, e logo depois na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá — “o lugar dos loucos”. Ali era respeitado por todos, de detentos a guardas. Bispo, ex-lutador de boxe, ajudava a colocar ordem no lugar usando a força física. Conquistou privilégios diferenciados: passear fora da Colônia e decidir se queria ou não comer. Mas o maior deles era o fato de possuir uma cela individual. Mais do que uma cela, o lugar era o santuário onde ele confeccionava suas obras e ao qual só permitia a entrada das pessoas que adivinhassem a cor de sua aura: azul. Quem errasse a resposta não entrava em seu mundo.

Musa

Foi na Colônia Juliano Moreira que Bispo viu Rosângela Maria pela primeira vez. Aos 23 anos, a estudante e estagiária de psicologia se tornou, além de analista, grande amiga e musa de Bispo, um homem que já beirava seus 70 anos, que dedicou a ela muitas de suas obras. Ele via em Rosângela “uma santinha”, a idolatrava como se fosse a Virgem Maria, além de se colocar muitas vezes no lugar de Jesus Cristo. Dela costumava escrever.

ROSÂNGELA MARIA
DIRETORA DE TUDO
EU TENHO

Por causa dessa idolatria e dessa forte amizade, um tanto exagerada e com aspectos de possessividade, Rosângela chegou a se afastar e só voltou quando ele chamou por ela depois que sofreu seu primeiro ataque cardíaco.

Bispo ficou internado algumas semanas, os médicos chegaram a dizer que ele precisaria parar de trabalhar e que sua cela precisava ser limpa, por causa da poeira acumulada, já que só ele podia mexer em suas obras. Ele gritou e se negou a parar de trabalhar, disse que fazia isso não porque queria, mas porque era obrigado (de novo disse que ouvia a tal voz que mandava nele) e que nada mudaria de lugar em sua cela. Mais uma vez, sua vontade foi respeitada dentro da Colônia, ninguém mexeu em sua cela e ele voltou a trabalhar nela.

O homem de uma só religião

A vida de Bispo do Rosário é marcada pela forte presença do sentimento de religiosidade. Esta, e não sua doença, é a questão central para a análise de suas obras. A ideia de sagrado e da religião sempre estiveram presentes em sua vida, que era cercada de inúmeros rituais criados e encenados por ele próprio.

Essas questões, entre mitos e ritos, nos remetem a procedimentos próprios dos homens das sociedades arcaicas, que seguiram modelos de mitos exemplares segundo suas crenças e religiões. A diferença é que Bispo cria seu próprio mito exemplar. Em ambos os casos, há uma paralisação do tempo real e a inserção de um tempo sagrado. A missa, independentemente de sua duração, termina somente quando o padre dá sua bênção final; da mesma forma, ao se trancar em sua cela para criar, Bispo só saía de lá quando dava por acabada a obra. Muitas vezes, perdeu tempo de quantos dias ou semanas se passaram. Outro ponto é a questão do espaço, determinado, nos dois casos, para que o ritual aconteça. Em Bispo, só os eleitos podiam ter acesso ao seu universo particular.

Mesmo com tantas semelhanças na forma de vivenciar sua religiosidade, existe uma grande diferença entre Bispo e os homens das sociedades arcaicas: Bispo produz arte através de seus rituais.

Com isso, é possível formar uma linha de pensamento para tentar mais uma vez desvendar o universo de Bispo, que é a soma de três vias: a religião católica, os registros do cotidiano — através dos materiais coletados no cotidiano do artista e manchetes de jornais que viram substrato para suas obras — e as sociedades arcaicas. Bispo realiza uma miscelânea dessas três vias, resultando em uma quarta: ele faz sua própria religião — que é baseada em preceitos da religião católica, matéria-prima de composição das suas obras, dos materiais do uso cotidiano e de como os ritualiza como os homens das sociedades arcaicas, com o diferencial de que produz arte.

Sim, Bispo criou sua própria religião e esta se tornou a religião de um homem só.

A vida e a obra

Não dá para separar o homem do artista. Bispo não apenas reproduz a realidade, mesmo que sua intenção seja inventariar o mundo para Deus — ele produz arte, carregada de mitos e ritos também presentes nas sociedades arcaicas, mas com uma identidade própria.

Muitas passagens de sua vida estão direta e literalmente ligadas ou representadas em sua obra. Símbolos dos locais onde trabalhou, como a Marinha, o endereço onde morou com a família Leone, o sentimento da religiosidade e da justiça que o acompanham por toda a vida.

#5TranseArquiteturaCidadeDesign

Lembranças de São Clemente

por J.P.M.

Um palacete e sua história

A campainha da porta de entrada talvez seja a única coisa que lembre o passado… Chega a dar arrepio de tão igual que era seu timbre, nos tempos de minha avó! Época em que o Palacete era, digamos, a porta da frente das casas do meu pai e do meu tio… Todas davam pra alguma parte dos jardins. A nossa dava para a horta, e a do tio, para a garagem e lavanderia. De qualquer maneira, a entrada/saída de todos os carros era pelo seu grande portão de ferro.

Sempre ouvi dizer que “é o dono quem faz a casa”. Não importa o tamanho, estilo, local etc. Nesse caso, todo o manejo e protocolo do palacete era ditado por minha avó, que ficou viúva antes de meu pai se casar e que comandava o batalhão de empregados, fornecedores e mantenedores com disciplina, porém com amizade.

Sua personalidade se espalhava pelo enorme casarão, em todos os vasos de flores, sempre vindos de seu jardim ou da casa de Petrópolis, da arrumação da casa em si, da mesa de jantar, dos menus que todas as manhãs ela ditava para a cozinheira-chefe que aguardava ser chamada no hall do segundo andar, que dava para o quarto de vestir e escritório. Depois fazia as contas com o mordomo e estava livre de seus afazeres “burocráticos”.

Outro detalhe que chamava atenção de todos de fora, menos de mim, pois nasci vendo aquilo como “fato feito”: ela abria os jardins da frente, que davam para a rua principal, para todas as crianças do bairro, onde haviam balanços e outros brinquedos. Achava um absurdo que crianças morassem em “apartamentos”.

Ah… Como me lembro de detalhes…

Dos jardineiros colocando estrume, que vinha das nossas cocheiras do Jóquei Clube, para adubar os canteiros de flores e os gramados.

Da minha avó, pequena de estatura, mas sempre muito magra e elegante, agachada nos canteiros da horta, arrancando tiririca e nos dizendo da importância de se trabalhar com as mãos na terra.

Da estufa, com os vasos de antúrios, avencas e orquídeas para serem trocados semanalmente nas salas e na capela da casa, com aquele cheiro de húmus inesquecível.

O galinheiro onde, no Natal, os perus engordavam. A diversão era ver os funcionários darem cachaça para os bichos se embebedarem e depois serem mortos com um corte certeiro no pescoço, colocados na água fervendo, depenados e levados em tabuleiros à cozinha para os preparos da ceia.

Na enorme garagem ficava parada eternamente a Rolls Royce de meu avô, que nunca vi circular, mas que se tornou palco para inúmeras brincadeiras e fantasias.

Minha avó era muito religiosa, de modo que ia à missa todos os dias na Igreja do outro lado da rua, nos jesuítas de Sto. Inácio, colégio onde meu pai, tios e nós todos, netos, estudamos. Era só atravessar a rua, facilidade que dava margem a muitas “fugas” na hora do recreio, assim como matanças das aulas chatas como Latim e Canto!

Tinha entre seus hábitos rezar um rosário em seu oratório particular, atrás do quarto de dormir, onde haviam centenas de escapulários, imagens de santos, terços de todos os materiais, medalhas, água benta, e uma coisa que me impressionava muito: uma “farpa da cruz de Cristo”, que meus avós receberam do Papa por alguma obra realizada para a Igreja, e que depois de sua morte doamos à PUC no Rio. Aliás, foi em seus salões que um grupo de intelectuais e novos cristãos, com o apoio financeiro dela, criaram a Pontifícia Universidade Católica do RJ.

Nos dias de seu aniversário, nas primeiras quintas-feiras do mês e em algumas ocasiões especiais, às 8h tinha missa na capela do segundo andar, aí sim, com a presença dos filhos, netos e funcionários, depois seguido de um lauto café da manhã.

Poderia ter sido uma beata chata, mas não. Era ativa em todos os sentidos.

Sabia temperar sua fé com o dia a dia do mundo à sua volta, principalmente sua família. E fazia tudo para agradá-los.

Apesar de sua vida social se restringir muito após a viuvez, e mais ainda depois da morte de sua única filha, a mais velha e adorada por todos — foi um câncer fulminante —, assim mesmo era de lei: todos os domingos, às 20h, reunia para jantar filhos, netos (depois dos 11 anos) e seus irmãos, com suas famílias, na enorme sala de jantar, numa longa mesa, onde ela sentava na cabeceira da esquerda, e seu irmão solteirão, meu tio-avô — que foi morar com ela depois da morte do meu avô num acidente aéreo —, na da direita.

Ai de quem faltasse sem uma boa razão. Havia sempre presente alguma autoridade do clero, literatura ou da política, quando o assunto invariavelmente era se o Brasil viraria comunista e nós todos iríamos para o “paredon a la Cuba”.

Às vezes algum artista protegido/afilhado, após o jantar, tocava suas músicas preferidas no piano do salão ao lado. Ela, abanando seu inseparável leque, olhava sorrindo para o além.

Os jantares de domingo e aniversários de família eram complementados com os chás de toda quinta-feira, quando ela recebia as amigas. Não havia convites, já era um costume: aquele bando de senhoras de cabelos grisalhos, roxo ou branco, que ela apelidava de “meninas” e que ao longo do tempo foram diminuindo pela evolução natural da raça. Mas era o dia que eu mais gostava. Mal chegava em casa do colégio, largava a pasta e corria pra cozinha do casarão para devorar as sobras dos doces e sanduíches.

Quanto a seus hábitos pessoais, ela tinha enorme apego aos netos, a quem reservava todas as manhãs. E a cerimônia de sua preparação era um teatro, sempre igual, mas fascinante para nós, crianças. Ela como protagonista, enquanto a camareira escovava os longos cabelos que depois iam se transformar num coque, presos por um grampo de tartaruga, contava histórias e passava água de colônia, pó de arroz e depois fazia em cada face uma bola de rouge, espalhando no rosto, dizendo que tinha ido à praia. Aquilo para mim era mágica!

Depois ouvíamos discos, dançávamos com ela, brincávamos, tudo nesse quarto de vestir onde os espelhos multiplicavam todos nós, fazendo ser uma festa.

Depois do despacho com o mordomo e a cozinheira, descia no elevador e ia esperar o carro na porta da frente (essa mesma da campainha).

Independentemente do tempo, levava um guarda-chuva que ficava batendo no mármore do piso, impaciente com a demora do motorista que sempre tinha uma dor de barriga na hora de sair.

Era uma visita a um convento de freiras, uma obra social ou a Copacabana para um passeio pela praia e depois nas mesmas lojas: Sloper, Bicho da Seda, Pernambucanas, onde comprava muitos cortes de tecidos para enviar aos necessitados, ou então, para mim, a melhor: uma ida à confeitaria Colombo no Centro. Na época das festas eram centenas de bolos, panetones, ovos de páscoa e outras guloseimas que seriam enviadas às obras que ela ajudava. Ficávamos na sala do gerente, que mandava me servir um bom lanche para eu sossegar e deixar ela fazer os cartões com sua caneta Parker preta e ouro, com uma letra firme e elegante.

Na Páscoa, depois da missa e do café da manhã, a caça aos ovos no imenso jardim; em junho a Festa de São João, em que um tio se encarregava dos fogos. A fogueira era enorme, assava milho, batata doce, pipoca, e nós, netos, fazíamos as bandeirinhas com metros e metros de papel de seda — era a nossa contribuição. Ela decorava tudo com lanternas japonesas embaixo das mangueiras. Era uma excitação ficar acordado “até tarde”. Em outubro, no Dia das Crianças, armava um circo no gramado e chamava o Fred e o Carequinha, a dupla mais famosa de palhaços daqueles tempos. Era uma alegria! No Natal fazíamos “presépio vivo” e o amigo oculto dos “mais velhos”.

Realmente era um feudo, no meio do trânsito da cidade que cada vez mais crescia, onde não havia lugar para esnobismos, tudo era normal e incrivelmente envolto de carinho e amor, afastando assim qualquer pretensão de show off.

#26Delírio TropicalArteMúsica

Bárbaro e nosso

por Guilherme Abud

Dedicado a
Oswald de Andrade, Rosa Magalhães, Eucanaã Ferraz
e, principalmente,
ao argonauta Caetano Veloso.

“Quem descobriu o Brasil foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval”, enredo que coroou a Imperatriz Leopoldinense, campeã do desfile das escolas de samba de 2000, hoje se desdobra e redobra na folia, que, dois meses antes de Cabral, já era orientada por Caetano Veloso.

“O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso” — assim disse Oswald de Andrade! ANDRADE, Oswald de, disse: “Só a Antropofagia nos une. Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses… Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.” Caetano tinha orientado o carnaval e organizado o movimento! Contra o índio de tocheiro, o índio filho de Dona Canô é a prova da alegria dos nove no matriarcado de Panamérica.

A Cruzada Cafona caminha à Terra Santa contra a Intelligentsia. Há Cruzada. Pecado é o julgamento da nossa cafonice. Da sua cafonice. Você é cafona. Caetano nunca teve preconceito em pecar contra os bons costumes de uma classe que se satisfazia em tocar apenas um acorde. Só. E o sol, dilacerando contra o vento, nos apresentou a síntese a queimar os nossos pés, da grande geleia geral que vinha a descer o morro de Mangueira, em verde e rosa nos parangolés tropicalistas, ao som daquele surdo-mór.

És matéria em obra do famoso oriki de Exu: “Ele matou um pássaro ontem, com uma pedra que somente hoje atirou”. Caetano surge a atirar pedras hoje para atingir as lógicas canônicas de ontem, e a cada novo passo, na sua obra, atira uma pedra rumo ao seu próprio espelho, que se espedaça, e retalha um caleidoscópio fundamentalmente quebrado. Requebrado. É Mulata ta ta, é Iracema ma ma. É a obra de Alencar, que sedimenta Oswald, a construir o vale de Joias, acalentando o ébrio Celestino em seu Coração Materno.

“…o contrassenso deve ser o mandamento de quem precisa disfarçar o mal-estar após mostrá-lo sem pudor…”, já dizia Eucanaã Ferraz em seu poema, 1, que está incrustado na orelha do livro Escuta. Caetano alegoriza o mal-estar para escancarar o contrassenso. Alegoria do Brasil real. Brega em sua essência. Messiânico. Esmiúça uma produção despida de preconceitos, vaga na sua fundamentação musical.

A inebriar a multidão, Angela Maria, Nora Ney e Nelson Gonçalves cantarolavam aquela canção de Celestino, sob o atento violão de Caymmi. Aquela canção de amor embalava o beijo de Marilyn Monroe no “eu” tridimensional onipresente de José Agrippino de Paula, transformando Santo Amaro em uma nova PanAmérica, a Panamérica alegórica que agora pertencia a Caetano Veloso. Santo Amaro, o santo, viu a multidão em procissão por lá adentrar. Clarice Lispector de mãos dadas a João Gilberto com sua bossa, Bob Nelson vestido de caubói e Elvis Presley a misturar seu chiclete na banana de Jackson do Pandeiro. Herivelto, Ary e Pixinguinha sambavam ao som da bateria de mestre André.

O transe entrou em Transe: um país e sua alegoria. Uma alegoria que ganhou vida e, como nos filmes mais tenebrosos, passou a assombrar seus entes alegorizados. Como recurso, sua Terra torna-se estrangeira. A Terra Transa em London. Em London, o experimentalismo existencialista existe. É a guitarra. É a vanguarda. É a sintaxe sintética misturada no caldeirão nostálgico de uma triste Bahia. Torna-se, assim, Demiurgo nas mãos do bruxo Mautner.

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, araçá azul fez ninho e avoou. E os discos viraram voadores a apontar contra os chapadões dos nossos narizes. Viva Palhoça! Viva a vaia viva da desilusão daqueles que não entenderam nada. Nada! Qualquer coisa não significa nada, ou significa, a marca dada por Torquato, Capinan, Macalé, Salomão e Leminski, em outras poucas palavras. De repente, na verdura eu vi a cor mais verde, a cor mais alegre e mais triste de acordes do purgatório que me levaram ao louvor a Jorge, aquele da Capadócia.

Seu caleidoscópio é a múltipla coloração carnavalesca dos afetos, afinal são muitos carnavais… O Tropicalista apedreja Deus e o Diabo, abraça a Divina Comédia, e se banha em chuva, suor e cerveja. Araçá voou, e logo João de Barro pousou para ver a filha da sua Chiquita Bacana entrar para Women’s Liberation Front. Desde que o samba é samba, os clássicos despertam — com despertadores de pífanos e pandeiros — como se nascessem feitos Macunaíma.

Circulado, despista as tréplicas narrativas formais. Ora, cinema é falado! Para Caetano Veloso, a pedra despedaça a narrativa cinematográfica e abraça a poesia, a fala e a filosofia. É a película de ensaios dos ensaios que reverberam o avesso do avesso do avesso. Seus personagens são ícones que falam! Que verborragizam experimentalismos. Circulador, circulando, despista o Genipapo Absoluto

“Caetano foi encontrado dentro da nova ordem antropofágica, de tanga e cocar, atirando pedras na ruína daquela escola em construção.”

Estrangeiro onde ardia em fogueiras o vapor barato da nova ordem mundial. Caetano foi encontrado dentro da nova ordem antropofágica, de tanga e cocar, atirando pedras na ruína daquela escola em construção. É tropicália ainda viva, é a terceira margem do rio. Pensaram que ele tivesse voltado americanizado, mas jamais se esqueceu da Bahia. Caetano é a onisciência do beijo de despedida, no cais, de Caymmi a Carmen Miranda.

No fio da navalha, valsa o ano de 2000, e apresenta sua Verdade!
Categorizando tua ternura sedenta, em redes de balanço e em mosaicos de palha. Meditou com Odara e Tieta a capacidade de estar só. E o sol agora é ocultado pelo eclipse total. A vida nunca passou de um grão.

Mas é na virada do século, já perdido no espaço de 2001, que Caetano apresenta ao vivo suas Noites do Norte. É a confluência musical que abraça a qualidade de não ter lógica formal. É o dom de iludir o espectador. Como Garrincha confundia seu marcador. De flertar com o caso para trançar o acaso. Zumbi e Haiti são lutas que rebarbam no último romântico que voa com Araçá Azul. Ele exalta a malícia de toda a mulher, de toda tigresa, sob o funk encenado num tapinha só. Só um tapinha. Só Eu e a Brisa à luz de Cajuína. É a desorganização de caminhos paralelos cruzados. A encruzilhada é sua passagem fundamental.

E, assim, a liberdade passa a ser compreendida na alegorização do país que nunca saiu de seu transe. Você não vai reconhecer Caetano quando ele passar por você. “Cê” ele passar, you don’t know me. Eu sou samba, desde que o samba virou rock. Quando me ouvir cantar, passará por Zii e Ziê, e verá que tudo em volta está deserto assim como dois e dois são cinco.

Sinótica. Diacrônica. É a incompatibilidade de Gênios. Gênio!

Deixo-te meu Abraçaço enquanto me deito na fazenda de areais. Teu coração vagabundo ainda teima ser um Coliseu transcendental. Do alto do teu estandarte, do bloco que reinaugura a cada carnaval, cintilam novas Lindonésias. O monumento segue hipermoderno, mas continuam a dizer nada do modelo do seu terno.

#26Delírio TropicalTelevisão

Televisão: nossa menina dos olhos

por Allexia Galvão

Televisão é feita de sonho e desejo. Um objeto complexo que resplandece luz, som e múltiplas histórias. É importante refletir acerca de uma televisão que compartilha com o cinema a linguagem da imagem. Intensa e pulsante então esta será, tal como uma canção da Tropicália. E, se somos o país do samba e do futebol, da tapioca e do acarajé, de Jorge Amado, Guimarães Rosa e Caetano Veloso, numa espécie de miscelânea tropical, por que não ressaltar a existência de uma televisão tipicamente brasileira, que através da dramaturgia retoma o diálogo com a brasilidade e com a dimensão do país?

O espaço de representação da televisão hoje, os papéis que lhe são atribuídos ou que desempenha demonstram o quanto ela se tornou parte integrante, se não integradora, do cotidiano de todas as pessoas em praticamente todo o mundo. No contexto do Brasil, a nossa dramaturgia televisiva pode ser considerada a substância de maior potência do imaginário nacional e, mais do que isso, ela participa ativamente na construção da realidade, num processo permanente em que ficção e realidade se nutrem uma da outra, ambas se modificam, dando origem a novas realidades, que alimentarão outras ficções, que produzirão novas realidades.

Desde que surgiu, no início dos anos 1950, a televisão faz parte do cotidiano e dos costumes sociais do brasileiro. A partir daí o caminho é ambíguo e complexo. Alguns preferem lançar culpas as mais diversas e das mais diferentes naturezas ao instrumento midiático em questão. Televisão passa então a ser o remédio para todos os males ou o agente responsável pelos mais variados e sérios problemas, sejam de natureza social, cultural, psicológica ou mesmo pedagógica. É preferível lançar um olhar otimista e viável sobre a possibilidade de transmitir mensagens que podem (e devem) se tornar temas de debate e de reflexão pelos telespectadores a partir de novas perspectivas e de uma maneira tipicamente brasileira de se contar histórias, de acordo com a nossa realidade e DNA.

Inquestionável é o poder e o alcance da televisão. E não podemos considerar a mesma como agente solitário do entretenimento ou da cultura, em uma combinação ou em alternância excludente. A televisão é feita de estética e possibilidade educativa e possui particularidades que podem modificar a experiência do espectador com as imagens através da emoção e dos sentimentos. Em um país onde nem sempre a educação e a cultura estão ao alcance de todos, a televisão deve se utilizar tanto do entretenimento quanto da cultura para a formação social do espectador. Desafio lançado às mentes criativas, produtores e programadores dessa complexa máquina. E se hoje essa então “televisão brasileira” ganha maturidade é preciso também ter coragem para subvertê-la.

A dramaturgia na televisão brasileira foi conquistando seu espaço enquanto objeto de promoção de identidade nacional, ganhando visibilidade em torno da cultural nacional, tornando-se indispensável para a compreensão da cultura contemporânea. Além do mais, elevada a principal produto de uma indústria televisiva, a dramaturgia seriada passou a ser um dos mais importantes e amplos espaços de problematização e representações comportamentais do Brasil, expressando os paradoxos de um país múltiplo de universos, todos eles disponíveis enquanto possibilidade temática, em um tempo propício para olharmos com maturidade esses temas pulsantes e encararmos todas as verdades de um Brasil complexo e ao mesmo tempo tão único e singular.

E, se estamos presenciando frequentes transformações no cenário da televisão mundial, sejam relacionadas às múltiplas plataformas, às novas tecnologias ou até na própria forma de consumir televisão, já que agora o telespectador ganha a liberdade de montar a sua própria grade, mais desafiador se torna a missão de fazer uma televisão com identidade cultural própria, que explore novas arquiteturas e novas narrativas. Não há fórmulas, mas, sem dúvida, é preciso seduzir o olhar, despertar paixões, inspirar o espectador e transformá-lo em participador, resgatando o conceito criado por Hélio Oiticica para caracterizar o espectador como parte da obra, estabelecendo assim um fluxo contínuo de troca e entrega.

O espectador passa então a ser o sujeito da experiência das imagens, não mais aquele que está somente adiante, com total afastamento, mas aquele que está no meio de, como nos sistemas imersivos. Neste caso, o espectador é parte construtiva da experiência proposta, não mais um elemento que assiste àquilo que passa, mas um sujeito interativo que escolhe e navega na dramaturgia e reflete sobre seus sentidos narrativos.

Pensamos então na formação de uma “Transtelevisão”, a televisão como interface, isto é, como uma superfície em que podemos transitar, e na teledramaturgia, que nunca morrerá. Muda-se o suporte ou o veículo, mas a dramaturgia está sempre ali. Faz parte do inconsciente coletivo ouvir histórias, ler e contar. A imaginação trabalha diferentemente, mas as emoções funcionam de forma parecida, se comunicam, estão ali, conectadas. Estaremos sempre abertos a uma boa história. O que precisamos refletir sobre é a questão da forma, sempre a questão mais delicada. Nos dias de hoje, em meio aos incontáveis estímulos de imagens e conteúdos que consumimos, precisamos continuar avançando cada dia mais em busca de uma modulação mais criativa de narrativa e linguagem.

Uma boa televisão está relacionada à busca incansável por novas modalidades de construção estética e narrativa. É necessário considerar utopias, sonhos, dramas e apocalipses, enxergar a responsabilidade e o papel que televisão exerce sobre o cidadão. Junta-se tudo e temos um grande catalisador de mudanças. Desejos e sonhos são capazes de mover qualquer coisa. Dificuldades são inerentes, mas a busca por rupturas e transformações persiste. Deixemos que exista a Televisão Popular Brasileira.

#26Delírio TropicalCulturaSociedade

Por uma Educação de Alma Brasileira

Um grupo de jovens pesquisadores se propôs a refletir sobre a alma brasileira

De muitos povos criamos o Brasil, um país miscigenado, pulsante, com sabores, cores e perfumes variados. A miríade de influências torna este um país rico em detalhes. Somos um povo complexo habitando um território exuberante. Nosso gingado não está só no carnaval. A capoeira, que é dança, se fez da luta.

Nossa trajetória nos mostra que em diferentes momentos — sentidos e vivenciados de modos tão diversos — tecemos nossa identidade coletiva. Identidade essa que não é natural, tampouco definitiva, mas que transparece aos olhos daqueles que se dedicam a observar. A tarefa, porém, não é tão fácil para aqueles que querem olhar os próprios olhos, as próprias mãos e pés. Refletir-se. Olhar-se no espelho da própria alma. Contemplar-se, ampliar-se, contestar-se.

Como colônia que fomos, nossa identidade parece sempre em xeque: “ora mais portugueses, ora franceses, ora mais americanos…”¹. Diante da inclassificável diversidade do país, parece que é mais fácil olhar para o mar do que para a imensidão de nós mesmos.

Apesar do esforço louvável que foi empreendido por alguns de pensar o Brasil a partir dos brasileiros, questões sobre nossa identidade ainda causam perplexidade quase um século depois. Na busca por respostas, olhar para fora e seguir modismos ou receitas internacionais pode gerar contradições e ambiguidades, reforçar uma cidadania capenga e estabelecer a dualidade em discursos que deveriam ser múltiplos e democráticos. Olhar para dentro, porém, traz seus próprios enfrentamentos: quem somos e o que queremos ser.

Reviver o Brasil que dança, cria, resiste e reza há mais de quinhentos anos nos permite esboçar alguns traços dessa alma. Dos primeiros encontros que se deram por estes lados aos processos antropofágicos e até mesmo ditatoriais que pontuaram nossa cultura, todos esses momentos colaboraram com a construção da identidade nacional. Tal qual Macunaíma, saltando e escorregando pelos tempos e espaços de nossa terra, é possível visualizar o amálgama multicolorido de dores e afetos que precisamos encarar: se o brasileiro é cordial e gentil como os antropólogos nos apresentam, também somos racistas e sexistas; o brasileiro é amoroso, mas também sabe ser violento; empreendedor, mas que terceiriza suas responsabilidades; esperançoso e também fatalista; vinculado a suas raízes e construtor de sua própria identidade nas brechas de um complexo de vira-lata.

Esses “movimentos” da nossa alma são o resultado de um profundo processo antropofágico que se deu nestas terras e que segue operante em nossa cultura quando entendemos que o selvagem, alegre, afetivo e musical, não deve ser substituído pelos valores da civilização moderna. Se esses valores ainda nos faltam, se a cidadania é capenga e a desigualdade, gritante, o que precisamos é incorporar, a nosso modo, as vantagens da civilização, sem perder nossa essência.

Foi diante dessas questões que um grupo de jovens pesquisadores de diferentes áreas se propôs a refletir sobre a alma brasileira, usando a educação como lente de aproximação. Primeiro, porque este é um locus de tensão por natureza, onde o velho encontra o novo e o controle encontra a espontaneidade, mas, principalmente, porque é pela educação que possibilitamos que nossos desejos de país criem bases para se efetivar.

Nossa educação tem sido, até aqui, muito mais um reflexo de nossas desigualdades, preconceitos e privilégios de classe do que resultado do nosso projeto coletivo de país. Ou seja, ela tem sido muito mais uma representação de quem somos do que uma alavanca em direção ao que queremos ser.

Assim é que esse grupo se dedica a investigar uma Educação de Alma Brasileira, uma educação que revele nossos traços regionais, que expresse nossa identidade e que inspire uma relação de aprendizagem que passa pelo reconhecimento do território, da multiplicidade cultural, das raízes e sonhos brasileiros. Desse esforço de pesquisa resultará um livro, a ser lançado em 2017, e uma exposição interativa.

O livro, financiado pela Fundação SM, Instituto C&A e Fundação Itaú Social, e que conta com o apoio do MEC e do Centro de Referências em Educação Integral, caminha entre as luzes e sombras dos movimentos da alma brasileira, definidos a partir de uma pesquisa de opinião aplicada a todas as regiões do país e ancorada por sociólogos, historiadores, psicólogos e antropólogos. Nessa obra estão detalhadas mais de vinte experiências de escolas e políticas públicas, históricas e atuais, além de retratados diversos educadores que contribuíram para uma educação de alma brasileira, representando o lado luminoso de um país contraditório.

Da ousadia de Nise da Silveira à esperança de Rubem Alves, das atuais experiências indígenas e quilombolas aos CEUs e CIEJAs, dos casos concretos às leis federais, todas diferentes, todas faces desse povo que não cansa de se reinventar para sobreviver.

Resgatando a tradição indígena de contar histórias, conta-se no livro mais uma versão, com olhos atentos ao que é consagrado, mas também ao que é pouco conhecido, ao que foi calado, mas que seguiu gritando no peito. São belas histórias que merecem ser contadas. Por uma educação que olhe com valor para si, por uma educação de alma brasileira.

Para saber mais acesse: www.facebook.com/educacaodealmabrasileira/ e http://vekante.com.br

1 – SHWARCZ, L., STARLING, H. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 16

ANTONIO SAGRADO é sócio da Vekante Educação e Cultura, idealizador e coordenador geral do projeto.

TATHYANA GOUVÊA é pedagoga e administradora, mestra e doutora em Educação e coordenou o grupo de pesquisa.

Fazem parte deste projeto Bruno Bissoli, Caio Dib, Mariana Vilella, Renata Ferraz e Vanessa Pinheiro. Com curadoria de Helena Singer, Pilar Lacerda, Cleuza Repulho, Rafael Parente e Natacha Costa.

#26Delírio TropicalArteMúsica

Dois e dois são dois: Luiz Tatit e Bruno Cosentino

Luiz Tatit é paulista, músico e compositor e graduado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo e em Música (Composição), pela Escola de Comunicações e Artes da mesma universidade. Fez parte do grupo Rumo entre 1981 e 1991, e hoje segue carreira musical solo.

Bruno Cosentino é carioca, também músico e compositor, formado em comunicação, e está fazendo mestrado em Letras pela UFRJ. Lançou seu primeiro disco, Amarelo, em 2015 e, desde então, já gravou o segundo, Babies, e tem mais dois projetos de disco no forno.

Luiz e Bruno se encontraram no estúdio de Tatit no Butantã, em São Paulo, para uma conversa sobre música brasileira, e entoação, tema recorrente na pesquisa de Tatit.

LUIZ TATIT: A ideia da entoação ajuda a gente a entender bastante a canção como linguagem e não como um gênero da música erudita, como se fazia antigamente. A canção era um gênero romântico, quando se compunha para falar de amor. Na verdade, canção, como acabou se implantando no Brasil, acabou tendo uma linguagem autônoma. Então isso faz a gente indagar um pouco o que permite esses tais cancionistas fazerem o seu trabalho se não pelo viés musical de um domínio da técnica. É interessante porque existiam maestros, na época, como o Gnattali, ou o próprio Pixinguinha, que podiam se encarregar de fazer as composições, mas eles pediam músicas para pessoas que sabiam compor: Ismael Silva, Noel Rosa, Sinhô, e até, numa fase anterior, Assis Valente, Dorival Caymmi — que não tinham nada a ver com formação musical. Eles eram violeiros que sabiam manejar um instrumento de uma forma às vezes até bem rudimentar. Isso nos faz pensar que havia um outro recurso melódico para se fazer as melodias e depois, evidentemente, a letra vinha quando você percebe que aquela melodia tinha também um lado prosódico, que é poder dizer alguma coisa. Quando a melodia adquire esse lado prosódico é que ela vira uma canção. Ela pode ficar sem uma letra durante anos, mas fica instigando alguém para produzir versos para ela. Isso está na base da composição. É esse tipo de coisa que eu acho que acaba caracterizando um núcleo de sentido para a canção. Isso me ocorreu ouvindo o Gilberto Gil cantar Minha Nega na Janela, “minha nega na janela / diz que está tirando linha” — ele faz muito bem o lance do samba, com um violão extraordinário — comecei a ouvir por conta disso, mas depois comecei a pensar na maneira que ele cantava aquilo. A música não é dele, mas você percebia qual era a música, porque era uma coisa tão próxima da fala que a gente percebia que aquele samba já tinha sido composto a partir de uma fala quase crua. Ele tinha harmonizado, colocado um ritmo impressionante no violão, mas se fosse o Germano Mathias cantando, que era o titular da música, não teria todo esse requinte. Ou seja, a composição já tinha uma identidade entoativa que dizia a que ela veio. Ela é uma espécie de marca para que algo que era apenas musical se torne também cancional. Essa é a base do pensamento entoativo. As pessoas não entendem direito a diferença entre melodia e entoação. Eu acho que a maneira de explicar é exatamente mostrar que é a mesma materialidade — tanto que você pode traduzir em nota. Mas se ela não tiver uma dimensão prosódica, não fizerem perguntas, não fizerem afirmações, hesitações, não vira canção. Depois você inventa e trabalha o tema. O tema, normalmente, é a última coisa que se consolida.

BRUNO COSENTINO: O que eu acho que exemplifica bem essa diferença é a canção Feitiço da Vila, do Noel Rosa. Porque nela conseguimos visualizar os muitos núcleos entoativos dentro da mesma melodia.

LT:
Sim, nela é fácil dividir unidades entoativas dentro de um percurso melódico, que é o mesmo, e você pode dividir em várias unidades entoativas. Mesmo assim, eu sinto que é difícil de entender. Às vezes as pessoas até entendem no exemplo, mas, quando muda a situação, já não entendem mais. Como trabalho esse tema há algum tempo, parece que é meio óbvio, mas não é. Às vezes, a entoação é um pouco confundida com a própria melodia e, às vezes, com fala, no sentido mais prosaico. Essa entoação musical tem fala dentro dela e tem melodia. É a mesma materialidade, é a mesma coisa. Não são diferentes. Mas são dimensões diferentes da mesma materialidade.

BC: Sabe que, por ter lido o que você já escreveu, e porque atesto isso a todo momento, ultimamente eu já não me preocupo quando faço uma canção e a melodia não fica definida, mas eu a deixo mal-acabada, deixo zonas de instabilidade nela justamente porque eu sei que, dependendo do momento em que eu for cantar, vou cantar aquela melodia de uma maneira, com mais raiva, com mais amor, e aí, dependendo do meu estado de espírito, a melodia vai ganhar outra inflexão, melódica mesmo.

LT: Deixa um pouco ao sabor da prosódia, mais do que ao sabor da melodia musical, né?

BC: Percebi que isso é uma coisa muito dos cantores de soul music americana, você escuta o Marvin Gaye, o Al Green, esses cantores falam muito durante a música, parece que eles estão decidindo tudo ali na hora. Acho muito bonito isso porque, no fim das contas, aparece mais a verdade da entoação.

LT: Isso. Dá credibilidade ao que está sendo dito. Como se fosse a concretização do fato objetivo, porque você reconhece a entoação da sua língua. Fica parecendo realidade. A realidade é sempre ilusória, mas, quando essa ilusão é bem montada, é interessante porque você acredita mais naquilo, a argumentação fica mais fácil. E quando aquilo parecia que nunca poderia ter sido dito, como, por exemplo, as experiências de canção em música erudita, que eles estão pouco se lixando para o lado prosódico e às vezes só obedecem à questão do acento silábico, quando obedecem. Então simplesmente existe um texto ali e eles põem notas neles, não tem qualquer valor prosódico. Quando você ouve aquilo, parece que há uma inabilidade tremenda para fazer canção, mas o cara é músico. Carlos Gomes, por exemplo. Você vê as tentativas de canção, um melodista daqueles, quando vai fazer canção é um horror! As inflexões melódicas não coincidem com a forma como você poderia estar dizendo aquilo. Você não acredita. Fica parecendo caricatura.

BC: Esse afastamento do canto lírico em relação ao gosto popular vem daí? Você acha aquilo meio ridículo, não consegue ouvir, a voz é como se fosse uma clarineta, e não como voz humana portadora de um conteúdo linguístico…

LT: Exatamente. Ela é pensada como instrumento, e é comum ouvir músicos populares que são músicos no sentido ferrenho do termo que preferem que o cantor seja uma voz instrumental. Eles falam isso, “não, fulano canta muito bem, ele parece uma clarineta”. Do ponto de vista cancional, eles estão depreciando o cantor. Os músicos mais categóricos preferem que a voz seja um componente apenas, e criam um outro quadro de valores.

BC: Quando eu vi o documentário do Scorsese sobre o blues, se falava de como a estrutura do blues é simples, mas dentro daquilo você trabalha muitas maneiras de fazer. É aí que entra o sentimento e a singularidade do artista, o soul do lance. Existem guitarristas incríveis, cada um com seu jeito próprio de tocar, cada cantor com seu jeito próprio de cantar porque estão trabalhando dentro de um modelo bem delimitado. Por isso eles brincam à vontade. No blues a melodia é muito instável, dependendo, você ouve a mesma letra com melodias completamente diferentes, às vezes cantadas pelo mesmo cantor. E aí eu fico pensando como só agora estou começando a ter o que falar de mim. Coisas importantes aconteceram na minha vida e foram me dando mais conhecimento sobre mim mesmo, e sou mais convicto daquilo de que estou cantando e escrevendo para cantar. Não que antes eu não fosse verdadeiro, mas agora parece que tá marcado na pele. Quando você vai fundo na ideia da letra e da verdade dela, isso que cria a melodia e a entoação, e a canção acaba sendo a afirmação da singularidade da pessoa a todo grau. Como se a vocação do cantor popular fosse chegar no centro dele próprio.

LT: É. O compositor precisa chegar à singularidade do sentimento que ele está tendo, e com isso ele tem que exercitar essa prática de fisgar esse conteúdo que é extremamente importante para ele e traduzi-lo da melhor forma possível. O problema da fala é que ela é precisa, ela é clara, mas ela desaparece — e a canção cristaliza aquilo para ser repetido sempre do mesmo jeito. Então a emoção da composição acaba se repetindo todas as vezes que você executa a música, mas você precisa ter técnica para registrar aquilo, porque, na verdade, é um perigo virar fala, porque se virar fala, ela é descartável. Ao mesmo tempo, ela é de grande atração porque ela dá exatamente essa singularidade do que foi vivido. Mas como perpetuar uma singularidade? Esse é o drama do compositor popular. Em diversas fases históricas, eles tiveram que se virar para isso. Teve uma época em que eles tinham que sair correndo quando tinham uma ideia — o próprio Fernando Lobo tem uma história de entrar na casa do Paulo Soledade, desesperado para que o Paulo pegasse um violão, porque ele não tocava nada e tinha tido uma ideia e ia esquecer. Assim eles conseguem armar o que ele estava pensando e registrar. O gravador era uma coisa difícil, profissional, ninguém andava com um gravadorzinho portátil. Depois, quando os gravadores ficaram mais acessíveis, os compositores começaram a andar com um. O problema é registrar, porque nossa fala é muito eficaz mas desaparece, então não é obra de arte. Então, além dessa singularidade emotiva que você está dizendo, que precisa ser de alguma maneira cristalizada, você precisa dominar alguma técnica. Hoje há uma facilidade tremenda. Para o cancionista é o mundo ideal. Ele tem a ideia e tem mil formas de registrar. Por isso que hoje nós temos muito mais cancionistas do que naquela época.

BC: É claro, não basta só sinceridade. Precisa dominar a parte técnica, mesmo como autodidata intuitivo. Mas quando isso acontece, parece que o trabalho do compositor popular está indissociável da sua própria existência. Anda muito junto: a sinceridade com o próprio sentimento, a lucidez sobre aquilo que você está fazendo, do que você está falando, se aquilo te toca fundo ou não. E o que é bonito é que esse trabalho do compositor — no meu caso, indo fundo nele —, ele é indissociável da minha própria vida. E como é grandioso um trabalho convergir para esse lugar.

LT: A rigor, qualquer modalidade artística deveria ser assim. Talvez o que a chama atenção na canção popular é que ela é uma canção popular justamente porque qualquer pessoa pode faz isso, a princípio. O que difere um falante comum do falante que compõe é o registro. Ele pode lembrar das notas e conseguir registrar no violão. Se ele não toca nada, é pior. Ele vai ter mais dificuldade, vai depender mais dos outros. Se ele, além disso, ainda tem um aparelhinho em que consegue imediatamente registrar aquilo, melhor ainda. Se ele tem formação musical, certamente ele vai lançar mão desse expediente para pôr numa partitura, como fazia e ainda faz o Edu Lobo, o Jobim e o Dori Caymmi.

BC: Muitos compositores populares ouviram muita canção e, porque ouviram muito, eles são capazes de fazer através da prática da audição.

LT: É comum que os compositores imitem uns aos outros. Tanto que às vezes falam, “eu fiz uma canção à maneira do Jorge Ben”. Quer dizer, você acaba incorporando até estilo dos outros na sua formação. Isso é bem de compositor popular. Mas as artes, de uma certa maneira, visam chegar nesse ponto. Todas elas. A canção, o que a gente se surpreende e gosta, é essa generalidade que ela tem, esse acesso quase que total. Basta a pessoa ser falante para ser um potencial compositor. Depois entram as questões técnicas.

BC: E também tem a coisa de ser a palavra dita e cantada. É como o teatro, que o próprio corpo está ali. É uma arte menos mediada entre os corpos, é o teu corpo que está ali falando aquilo, mesmo no registro da voz.

LT: É. Às vezes tem uma mediação do intérprete, que tem sempre o problema de fazer parecer que é ele o sujeito da história.

BC:
O problema que ele tem que resolver, né?

LT: O esforço do intérprete é fazer parecer que a coisa é com ele. Quanto mais ele conseguir fazer, mais ele será bem-sucedido na canção. Aquela coisa da Elis Regina, interpretando Atrás da porta, ela chora no meio da música… É uma necessidade de dizer que aquilo está acontecendo com ela. É ela mesma que está vivendo aquilo — e ela sente tudo aquilo, não é falsidade nenhuma, mas ela se imbui do personagem, e, na verdade, quem devia estar cantando e chorando era o Chico [risos]. O papel do intérprete é interessante na canção.

BC: Isso que você está falando, eu sinto falta, às vezes. Temos muitas cantoras incríveis, mas percebo que várias delas, você não percebe, na escolha de repertório, o lance delas. A artista ali por detrás das canções cantadas. Claro que você não precisa compor, necessariamente, mas ir atrás desse repertório que faça sentido para elas, de maneira que elas pudessem ter feito aquilo, enfim, quais são as questões, quais são os grandes temas da sua existência. Saber que ali existe uma mitologia pessoal, um mundo por detrás. O artista cria mundos, cria universos particulares e compartilha esses universos com as outras pessoas. Eu entro no mundo dos artistas que eu amo.

LT: A canção é interessante porque sempre o intérprete que está executando aquilo, é como se ele estivesse sempre dizendo “olhe para mim, sou eu”, “eu sou o sujeito disso que estou dizendo”. Às vezes convence e às vezes não convence. Às vezes — engraçado — convence pelo derramamento, como é o exemplo da Elis, mas às vezes convence pela objetividade do canto. Quem faz muito isso é o João Gilberto. Ele tem aquele canto objetivo, e de uma emoção tremenda, porque ele consegue cantar a canção como ela é, às vezes até alongando um pouquinho a nota em alguns lugares, mas com objetividade.

BC: Com contenção, né?

LT: Exatamente. Não é também uma questão de intepretação dramática. O lance do intérprete é sutil. Ele tem que ter um compromisso e gostar daquilo realmente. Porque, veja, num texto escrito, você tem recursos enunciativos, que a gente chama, por exemplo, os pronomes, quando você diz “eu”, quando você diz “para mim”, você tem formas de chamar atenção para si próprio. No caso da canção, basta ter voz que você já está dizendo “eu sou o sujeito”. Então às vezes a música é até objetiva, não fala “eu” — um dos exemplos que eu acho mais interessantes é Domingo no parque. Domingo no parque não fala “eu”, o rei da brincadeira é fulano, o rei da confusão é ciclano e, pronto, é a história deles. E é de uma emoção tremenda, a ponto de quem está cantando ir se empolgando. Tem até aquela coisa de subir o tom. “E o sorvete e a rosa / Ô, José! / E a rosa… / E O SORVETE E A ROSA”… quer dizer, está uma emoção extrema em quem está cantando. Então mesmo quando ela tem que ser objetiva, o intérprete acaba deixando vazar a emoção do “eu”, e mesmo que não diga “eu” aparece o “eu”.

BC: É, a voz sai de alguém cantando, e esse alguém é sempre o “eu” da história.

LT: A voz tem que sair de alguém. Exatamente. É a entoação outra vez. É alguém falando alguma coisa aqui e agora. Então não tem como se esconder [risos].

BC: E além disso tudo ainda tem o timbre do cantor. Que você até fala na introdução d’O Cancionista que ele é o portador da verdade da coisa também.

LT: De identidade. Sobretudo quando aquele timbre já fica associado ao cantor, a um cantor que você admira por alguma razão. Então o timbre diz, “eu estou aqui”. É uma questão enunciativa, que basta ter a voz que você já se reporta ao “eu” que está fora da canção.

BC: Quando penso naquela canção que o Tim Maia canta que tem uma letra banal, “é primavera, te amo, é primavera, te amo…”. Gente, o que é “primavera, te amo”? [risos] “É primavera, te amo, meu amor”. É uma letra que, escrita, é primária.

LT: É para ser dita daquela maneira.

BC: E ainda é dita por ele, com aquela voz, e aquele arranjo, aquela performance. Todas essas variáveis entram em jogo.

LT: É o caso famoso da Bethânia cantando É o amor. É uma coisa extraordinária. Você demora para entender que é a mesma música. Você fica, “mas que melodia linda”, primeiro reconhece mas não sabe de onde vem o reconhecimento. Aí só quando ela diz o refrão você fala, “pô, é essa música”. Então quer dizer que existem músicas maravilhosas feitas por sertanejos que a gente despreza no dia a dia, dizendo que fazem tudo igual e tal, e, de repente, basta você mudar o timbre de quem está cantando que tudo muda. Evidentemente que aí tem o savoir-faire dela, que soube conduzir aquilo de uma forma elegantíssima.

BC: O Eduardo Losso escreveu um texto dizendo que sempre se soube a diferença dos lugares que ocuparam e ocupam Clarice Lispector e Paulo Coelho na literatura. Na canção popular, por causa de um contexto socioeconômico muito específico na década de 60 — e quem conta essa história muito bem é o Marcos Napolitano no livro Seguindo a canção — que foi possível criar um ambiente de tensão saudável entre o risco artístico e o sucesso comercial. A partir de meados da década de 70, essa história já começou a degringolar. Quando vocês, a vanguarda paulista, surgem aqui em São Paulo, nos anos 80, as gravadoras já estão indo para outro lance, e aí tudo se arruína no ano 2000. A situação que eu percebo hoje dos cancionistas contemporâneos é que eles, materialmente falando, estão quase na situação de poetas, que vão ter que trabalhar na repartição pública, ter outro emprego porque não tem como viver mais de música.

LT: Hoje em dia?

BC: Sim. Porque é muito instável. São Paulo é um lugar que ainda tem alguma coisa.

LT: É, um respiro, né?

BC: Por causa do SESC, sobretudo, porque tem um capitalismo pequeno mas avançado, uma cabeça mais para frente, mas mesmo assim ainda é difícil. Em outras cidades é impraticável. Ainda mais no Rio, que tem o efeito Rede Globo, que distorce tudo, e tudo fica num tamanho enorme ou muito pequeno. Se, por um lado, o artista tem muito mais liberdade criativa e é dono dos seus discos, por outro, ele não tem alcance, e a canção mais autoral acaba perdendo relevância para a cultura do país. Uma coisa que era boa nos meios de massa, era que, apesar da assimetria de poder, da lógica comercial a todo custo e da cada vez mais frequente tirania dos donos das gravadoras, existia através dessas empresas a viabilidade técnica de canalizar uma parte da produção cultural para muita gente ao mesmo tempo. Nem todo mundo entrava. Mas, quando entrava — e houve um momento em que entrou coisa mais arriscada artisticamente —, aquilo era projetado para muita gente. Isso faz muita diferença para a educação sentimental do Brasil. E não é porque entrava canção de qualidade supostamente superior, porque esses gêneros de massa, pagode, sertanejo podem ser e são, muitas vezes, extremamente sofisticados e feitos por compositores e cantores fora de série, mas pelo simples fato de que entrava mais coisa e que o mercado assumia mais risco e não assume mais. Como você vê essa situação?

LT: Existem dois problemas aí. O primeiro é uma questão de qualidade. Quando você falou de Clarice Lispector comparando com Paulo Coelho, podemos criar uma maneira de ver as coisas em que não há distinção de mérito nos trabalhos. Uma coisa que é desprezada numa fase, mas de repente vira o autor de outra época, retrospectivamente. Acho que essa é a função do crítico, que é justamente estar aparelhado para conseguir mostrar coisas que as pessoas não estão vendo, e não ficar criticando obras de maneira geral. “Essa música, que parece tão banal, tem isso”. Saber revelar coisas. Foi o Tropicalismo que passou a limpo a história da música brasileira, dizendo, “olha, existem coisas muito interessantes no Vicente Celestino, na Carmen Miranda”, tudo que tinha sido desprezado, porque para a Bossa Nova só interessavam as coisas mais requintadas do ponto de vista musical. Os tropicalistas não, eles estavam mostrando que tinham coisas ótimas que vinham dos Estados Unidos, que o Jimi Hendrix e a Janis Joplin eram geniais, sem contar inclusive as músicas inglesas, que estavam tomando conta naquele momento. A coisa meio exagerada do Tropicalismo de aceitar tudo tinha essa função de dizer “cuidado com a coisa do mérito prévio, vamos ouvir direito”. Por exemplo, o Jorge Ben, que era considerado um sambista menor, quando cantava as coisas dele, e a plateia rejeitava por alguma razão, o Caetano ia lá e ajoelhava na frente dele, como quem diz “como é que vocês estão vaiando o meu maior ídolo? Se vocês gostam de mim vocês têm que gostar dele”. Sobre os veículos de massa, hoje não adianta estar na internet. Precisa ter um agente de prestígio, seja ele comercial, de qualidade técnica ou de algo inaudito. Alguma coisa tem que sustentar para as pessoas realmente irem atrás. Acredito que, de maneira geral, nós ainda não conseguimos compreender o que vai acontecer e o que está acontecendo, mesmo no presente. Eu acho que mudou muito para melhor. Eu sei que deu uma dispersão, não existe mais a centralização. Nunca mais vai existir. Nunca mais vamos voltar aos festivais. Isso não tem mais sentido. No entanto, quando você vai atrás, existem coisas maravilhosas, e todas partem de um patamar mais elevado. Agora, a questão da veiculação virou uma concorrência absurda.

BC: Porque todo mundo faz.

LT: Todo mundo faz, e não sabemos mais como consumir, como produzir, em que veículo colocar. Quem já tem reconhecimento tem a vantagem de não precisar fazer o nome outra vez, é mais uma questão de acertar o canal e estar presente. Quem ainda não tem nome fica um pouco desesperado, mas ao mesmo tempo, está descobrindo novas formas de apresentação, às vezes até de uma forma mais caseira. Outro dia eu fiz um show numa sala!

BC: O trabalho da minha geração está muito precarizado, porque estamos tentando fazer um nome numa terra arrasada. É claro que todo esse pessoal que veio antes, principalmente década de 60 e 70, já tem um nome, mas até eles estão fazendo turnês de voz e violão. O Caetano Veloso e o Gil estão fazendo turnê de voz e violão. Tem o Festival Cantautores, que é só do compositor com o seu instrumento.

LT: Até a Daniela Mercury está fazendo violão e voz! Ela até dança um pouquinho, mas o show é violão e voz.

BC: E você vê, muitos compositores que eram de gravadoras, tinham um super público, elas acabaram e, com elas, eles acabaram de verdade, como o Gabriel o Pensador, Cidade Negra, grupos que parecem serem sustentados artificialmente por um esquema comercial, e hoje as pessoas não tomam mais conhecimento.

LT: Eu tenho a impressão de que a gente não entendeu ainda, e nem daria mesmo, porque a revolução eletrônica é maior do que a gente pode captar, a gente vai entendendo a posteriori.

BC: Mas a economia condiciona muito a produção e até afeta formalmente o que fazemos. Fico pensando nos cantores de jazz de Nova York, que cantavam toda semana em uma boate, com uma porrada na plateia. Isso era o trabalho cotidiano do músico. Um glamour muito mundano. O artista era um operário, e isso está voltando um pouco. Acho muito bonito. O que falta é lugar para tocar. Mas eu tenho cada vez mais o desejo de cantar em lugar precário, mas com frequência semanal.

LT: Nos Estados Unidos, ainda é muito forte essa coisa. Eu não vou para lá, mas tenho um amigo que vai muito lá, o Manu Lafer — um grande compositor. Ele é médico também, então vai para lá por conta de pesquisas que ele tem que fazer e aproveita para dar uma olhada como está a cena musical. Ele descobriu uns músicos que parecem brincadeira. É como se achasse a Ella Fitzgerald. E ele traz para cá para tocarem junto com ele.

BC: Depois da indústria ter chegado num patamar tão grande de poder, o pessoal está retornando ao amadorismo que está na base, que, se por um lado, você ganha pouco dinheiro com isso, por outro lado, você traz a essência da música de novo.

LT: É interessante até para as pessoas poderem escolher o que querem assistir. O problema nosso é que isso se misturou com uma fase econômica e política horrorosa, que nós estamos passando. Então, a gente não sabe o que é um problema latente do país e o que é um problema das mudanças que nós estamos vivendo. Nós, mais velhos, já vivemos isso. Passamos até por coisa pior, nos anos 70 e 80. Por isso eu acho que passa. Daí vamos ver o que vai sobrar. Mas que vai melhorar, nesse sentido, vai. Não tem mais a regência dos empresários, das gravadoras. Isso já é um alívio.

BC: Eu acho muito estimulante a minha época.

LT: Não conseguimos prever o que vai acontecer. Só tentamos compreender para não descartar. Porque senão a gente fica aqueles caras “ah, antigamente que era bom”. Isso é uma bobagem. Primeiro porque é irreversível, e depois porque tem muita coisa surgindo, que, à medida que a gente vai compreendendo, vai percebendo como é interessante. Tudo isso está relacionado com a canção, porque a canção surgiu com a tecnologia, então ela se beneficia muito. O avanço da tecnologia tem muito mais benefícios do que prejuízos.

#26Delírio TropicalModa

A Estética da Gambiarra

por Melina Dalboni

“A arte existe porque a vida não basta”
Ferreira Gullar

Não confunda gambiarra com jeitinho brasileiro. Longe disso. A gambiarra pode ser vista como uma metáfora que representa um dos talentos mais pulsantes da nossa cultura: a elástica capacidade de inventividade. Embora seja popularmente usada como adjetivo para definir improvisações e soluções, nem sempre ideais ou às vezes até precárias, a palavra ganha nova conotação para traduzir um processo criativo de extrema originalidade que percorre de maneira profunda diversas manifestações culturais no Brasil.

O termo ganhou novo significado este ano ao ser usado para definir a limitação de recursos e o (por que não?) surpreendente sucesso da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2016, que misturou linhas de Niemeyer a Gisele Bündchen, apresentou escolas de samba com fantasias monocromáticas e desfilou bicicletinhas com penduricalhos comprados no mercado popular.

Um jornal britânico declarou que os brasileiros fizeram a festa com um décimo do orçamento de Londres, nas Olimpíadas anteriores, e que mesmo assim foram capazes de produzir uma das mais bonitas e impactantes cerimônias da história dos Jogos. Se faltou verba, sobrou inventividade para sobrepor a criação à escassez de recursos tradicionais. Alternativas e soluções pensadas para impressionar o mundo tendo como fornecedores lojistas do Saara, a região do Centro do Rio conhecida pelos preços e produtos populares, que renderam ao espetáculo a seguinte definição, publicada pelo New York Times: “deslumbrante e sem ostentação”.

Com a sensibilidade de quem escreveu o livro Cidade partida (1994), que traduziu o diálogo e a tensão entre morro e asfalto no Rio de Janeiro, o jornalista Zuenir Ventura, após ver jornais de todo o mundo positivamente surpresos com a festa que aqui foi produzida, ressignificou a palavra ao criar a expressão “estética da gambiarra”. Numa crônica publicada em agosto de 2016, escreveu: “Fernando Meirelles, Daniela Thomas, Andrucha Waddington e Deborah Colker, à frente de um time de ouro, apresentaram no Maracanã a sua ‘estética da gambiarra’, que, a exemplo do Cinema Novo, impactou o mundo”.

“Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Cinema independente para todos os criadores, por necessidade, por fome existencial. Em 1965, Glauber Rocha pegou um avião de Los Angeles a Milão para participar do congresso Terzo Mondo e Comunità Mondiale, em Gênova, e escreveu, durante o voo, o manifesto-tese “Estétyka da Fome”.

O crítico Ismail Xavier descreve a tese do diretor como: “Um estilo que procura redefinir a relação do cineasta com a carência de recursos, invertendo posições diante das exigências materiais e as convenções de linguagem próprias ao modelo industrial dominante. A carência deixa de ser obstáculo e passa a ser assumida como fator constituinte da obra, elemento que informa a sua estrutura e do qual se extrai a força da expressão, num estratagema capaz de evitar a simples constatação passiva (‘somos subdesenvolvidos’) ou o mascaramento promovido pela imitação do modelo imposto”.

A motivação a partir do que parece elemento limitador encontra impulso e força criativa no próprio obstáculo, tornando-o maleável e não apenas transponível, mas, principalmente, inspirador do processo criativo e de conceituação, transformando tudo (escassez, questões técnicas, limitações materiais e de recursos) em linguagem, conteúdo, significado, questionando a realidade árida a partir da sua ressignificação.

O fato é que a criação no Brasil muitas vezes não apenas ganha contornos originais porque não tem os recursos tradicionais ou ideais para realizar uma obra como ascende e se motiva exatamente por esta questão: a escassez que impulsiona a sobrevivência artística e determina sua originalidade. Cria-se porque a vida não é suficiente, ainda (ou exatamente por que) não se têm as medidas ideais de recursos financeiros e materiais para a criação artística.

A gambiarra é, aqui, não o tema ou objeto do qual tratamos. Ela se instala no ponto de partida do processo criativo. Sua estética é de tal modo intrínseca em nossa cultura que a limitação de recursos ideais deixa de ser mola propulsora (ou castradora), porque em alguns casos inexiste, para ser uma ideologia em que materiais menos óbvios ou nobres são ressignificados a partir do filtro da criação. Inúmeros designers e artistas brasileiros poderiam representar esta proposta ética e estética. Os cineastas brasileiros e os produtores de teatro não esperam a estrutura de Hollywood para botar suas obras de pé.

Na moda, a estilista Isabela Capeto, que trabalha com tecidos e mão de obra 100% nacionais, procura em mercados populares, como o Saara, materiais e objetos para bordar em seus vestidos, numa metáfora dos ateliês de alta-costura, que usam acabamentos, tecidos e bordados exclusivos. Transforma flores de plástico compradas em lojas de decoração popular em bordado de um delicado vestido de tule. Usa ráfia para criar franjas e formas novas para vestidos. Reaproveita tecidos e aviamentos recriando seu repertório pré-existente.

A inclinação para o uso de materiais mais rotineiros ou descartados dialoga com esta premissa, quando já não mais importa se a estrutura econômica ou técnica impõe limites. Nas artes plásticas, nomes como Nelson Leirner e Vik Muniz, numa arqueologia que desvenda e revela camadas de significados das coisas, mostram que o processo criativo individual – e absolutamente diverso um do outro – passa pela ressignificação de objetos cotidianos.

“O espanto e o fascínio pelas coisas levaram-no (Leirner), desde muito tempo, a colecioná-las. Leirner coleciona tudo, especialmente (…) as coisas mais simples”, descreve Agnaldo Farias no livro A arte do avesso. Adesivos e figurinhas infan tis deslocados do universo infanto-juvenil ganham ideologia sócio-política na série Assim É Se lhe Parece (2010), que povoa mapas mundi.

Vik Muniz, ao deslocar sucatas, restos de lixões e até mesmo alimentos para o centro de seus retratos, acrescenta camadas sensoriais e políticas à obra, como mostrou o documentário “Lixo extraordinário” (2010), com catadores do aterro sanitário de Gramacho.

Na televisão, o diretor Luiz Fernando Carvalho também pode ser incluído neste grupo de criadores que preferem o desconforto de novos materiais ou mesmo matéria-prima residual, como se pôde assistir na novela “Meu pedacinho de chão” (2014), com uma cidade cenográfica inteira construída com vinte toneladas de latões de tinta numa instalação criada pelo artista plástico Raimundo Rodriguez.

A estética da gambiarra não ganhou tese ainda, apenas a crônica de Zuenir e mais um punhado de reportagens sobre a abertura dos Jogos Olímpicos. Não serviu de bandeira para movimentos culturais, mas dialoga com o antropofagismo oswaldiano do final dos anos de 1920 e costura diversas manifestações.

Cabe lembrar ainda que gambiarra é uma extensão com lâmpadas, muito usada em festas populares para envolver e iluminar pequenas praças. Ela compõe de maneira epidérmica o repertório cenográfico da cultura popular e a arte que prescinde de público. Um objeto que traz luz e ilumina, por assim dizer, a nossa capacidade de dar novos significados às coisas e transformar em arte original do Brasil.

MELINA DALBONI é jornalista, trabalhou no jornal O Globo, e hoje integra o time de colaboradores do diretor de TV e cinema Luiz Fernando Carvalho.

ArquiteturaCidadeDesign

Dois e Dois são Dois: Shundi e Fanucci

César Shundi, arquiteto responsável pelo Shundi e Iwamisu Arquitetos Associados, professor no Senac e FAUUSP, se encontrou numa manhã de segunda-feira com Francisco Fanucci, um dos fundadores do Brasil Arquitetura, para conversar sobre o Estúdio Vertical, projeto que faz parte da Escola da Cidade, escola de arquitetura e urbanismo sediada no centro de São Paulo de cujo corpo docente ambos fazem parte.

César Shundi: É importante falarmos da Escola da Cidade para um público que não seja somente os interessados em arquitetura. Ela é uma associação formada por arquitetos, como uma alternativa ao ensino de arquitetura e urbanismo, e tem uma história muito ligada aos seus próprios fundadores. A escola desenvolve uma série de atividades incomuns no meio acadêmico, até porque é uma instituição que não tem um antemodelo por trás. Seguimos a ideia de que os profissionais também podem trabalhar como professores e discutir essa disciplina que é tão importante para a nossa cidade. São os próprios arquitetos que fazem a sua gestão. Temos, por exemplo, programas como a escola itinerante – viagens feitas a cada semestre para lugares dentro e fora do Brasil, totalmente incluídos na grade curricular. Seminários internacionais já são práticas correntes no calendário da escola. O período é integral, e a carga horária é pesada, em termos de horas dedicadas à prática e ao ensino. Dentro desse currículo, além das disciplinas de arquitetura e urbanismo, existe uma disciplina que estamos coordenando nesse momento, o Estúdio Vertical: um fazer coletivo realizado por grupos de alunos de diferentes anos. Nesse semestre, temos quase duzentos alunos, cerca de vinte professores; é um trabalho amplo e que consome 30% da carga horária de um aluno ao longo do curso todo. Quando assumimos essa disciplina, sabendo, inclusive, do seu papel estruturador, decidimos abri-la para discussões mais amplas, inclusive sem direcionamentos claros – ao contrário, queríamos que o trabalho fosse guiado pelo interesse dos alunos, numa ideia de abertura, em que cada grupo pudesse explorar, a partir de um tema dado, diferentes possiblidades de aproximação e fazer com que o trabalho dos professores e dos alunos pudesse ser um processo de investigação mais aberto do que o tradicional.

Francisco Fanucci: O Estúdio Vertical surgiu no começo da escola, que surgiu de uma experiência em Mogi das Cruzes, na Universidade Braz Cubas, que estava muito decadente na época, 1990-91, e foi oferecida para o Ciro Pirondi, um ex-aluno da escola, para que ele a levantasse, pois havia pouca demanda e havia muito espaço ocioso. Quando o Ciro aceitou o convite, teve carta branca para reorganizar tudo, e chamou pessoas – eu, por exemplo – que nunca tinham tido experiência didática, acadêmica, anteriormente; pessoas muito ligadas à prática. Tudo começou muito bem; entramos em desenvolvimento de projeto, e as coisas começaram a progredir. Quando a questão econômica estava resolvida, a mantenedora começou a cortar nossas asas, e aí houve uma crise danada. Todo mundo que estava lá começou a sair – “por que não fazemos uma escola para nós?”. Foi muito difícil, mas muito difícil. Quer dizer, qualquer coisa fora de uma certa curva programada que existe hoje no Brasil para a formação de escolas de ensino superior é muito difícil. Por isso essa profusão de escolas. Hoje, existe vaga para todo mundo, mas os níveis são muito baixos, muito baixos mesmo. Temos muita oportunidade de fazer palestras por aí – você também, né, Shundi? – e o nível é assustador. Acho que isso é um processo que surgiu das reivindicações do movimento estudantil de 1968; eu me lembro, era “abaixo o 477”, um decreto que normatizava toda a questão do ensino, “abaixo o convênio MEC/USAID”, e uma outra palavra de ordem fortíssima era “mais vagas na universidade”. Quer dizer, “mais vagas na universidade” virou um mote, mas, de repente, criar uma universidade hoje virou a coisa mais lucrativa. Foi só para esse lado sem que, na base, se fizesse alguma ação que desse a condição para que isso pudesse acontecer. O quadro hoje é terrível. A experiência da Escola da Cidade é uma tentativa muito pequena, muito solitária e muito desamparada do ponto de vista institucional, precária até do ponto de vista estrutural, mas que tem um ingrediente que é o que a sustenta, de alguma maneira: esse desejo, de todos que estão lá, de fazer uma experiência um pouco mais aprofundada, um pouco mais livre. Uma das grandes teses que se discute exaustivamente hoje é a ideia da autonomia intelectual, especialmente a escola superior como um aprendizado que parte muito mais do aluno fazer, do estudante construir a sua própria maneira de pensar, mas isso fica muito só na retórica pedagógica. Conhecemos muito poucas experiências que tentam possibilitar esse tipo de condição para os estudantes. Acho que existem muitas coisas que não se aprendem na escola, e, com o Estúdio Vertical, os alunos aprendem a se organizar em grupos de cinco, e cada dois grupos têm um orientador que acompanha o trabalho do começo ao fim do semestre. Não chamamos de professor, mas de orientador. As conversas com as equipes são sempre com dois orientadores. É uma mecânica simples, mas garante algumas coisas que são fundamentais nesse processo. Os dois orientadores trazem as equipes que estão orientando; depois, o atendimento é individual a cada equipe. Isso na primeira etapa do trabalho. Na segunda etapa, troca-se o segundo orientador e, na terceira, troca-se novamente. Então os alunos acabam fazendo um trabalho coletivo, que é orientado por diferentes pessoas, com diferentes visões, e não economizamos polêmica, com os colegas e com o orientador. Colocamos sempre os alunos como protagonistas desse processo. O que se discute no EV é aquilo que os alunos trazem para a mesa; se não trazem nada, não há discussão e, consequentemente, não há trabalho. Damos as maiores condições possíveis para a emancipação intelectual do aluno, para discutir as questões da maneira como ele propõe – isso implica, é claro, os professores terem também essa disponibilidade, uma generosidade e um desapego daquilo que acham que sabem, mas que passa pela compreensão de muitos outros lugares. Não se trata da relação professor-aluno, de que o professor tem uma forma de conhecimento que vai passar para os alunos. O que acontece é um compartilhamento no desenvolvimento do trabalho entre todos, mas sempre guiado por aquilo que os alunos trazem.

CS: Em um exercício tradicional de arquitetura, seja de projeto ou de urbanismo, sempre se parte da premissa de estabelecer procedimentos claros, um determinado recorte de uma área ou de um programa para o aluno trabalhar. No nosso caso, decidimos abrir mão de tudo isso e colocar temas amplos, como tempo livre, no nosso primeiro EV, numa ideia de discutir o espaço na cidade dedicado ao lazer, ao ócio, e não ao trabalho – tudo o que apresente muita carência na nossa cidade. O segundo tema era simplesmente denominado “passagens”, uma ideia do percurso que temos e que pode ser trabalhado no campo da arquitetura e do urbanismo. São temas de cunho conceitual, e o que é interessante nessa abertura de tema é justamente permitir que os alunos estabeleçam contatos com outras disciplinas – por exemplo, as artes plásticas, a fotografia, enfim, atuações que no fundo estão relacionadas ao universo da arquitetura e do urbanismo e sobre as quais existe muito interesse por parte dos alunos. É só pensar na quantidade de arquitetos que hoje atuam em outras áreas do conhecimento, mas que, de alguma maneira, estão falando, sim, de arquitetura, de espaço, de cidade. E acho que, de alguma maneira, colocar um tema aberto como esse é afirmar que a profissão do arquiteto vai ser mais importante, vai conquistar mais espaço, à medida que também estabelecer contato com questões mais amplas, abertas, não ficando só restrita ao universo do projeto. Isso é uma questão importante para nós, porque, do ponto de vista da formação de um arquiteto, o que importa é a noção de processo, a medida que se dá quando inúmeros alunos, de diferentes anos, com diferentes bases, podem se juntar e discutir uma questão, para fornecer insumos para debater abertamente de um modo mais interessante. É claro que um aluno do primeiro ano não tem a mesma base teórica de um que está no quarto ou no quinto, mas, com temas tão abertos, essa diferença diminui, porque um aluno mais novo pode, sim, alterar o rumo de um determinado trabalho, assim como esse aluno pode aprender com a experiência de quem já está mais avançado no curso. Por isso a figura do orientador, e não do professor. Ele se vê também um pouco desarmado. Com temas tão abertos, ele é obrigado a repensar a própria postura. As perguntas e as respostas não são, evidentemente, diretas e objetivas. Não estão baseadas num espectro estreito, já definido e redutor do que é o campo da arquitetura; por isso, ele é obrigado a se confrontar com questões que não tinha enfrentado antes, passa a ser mais um componente da equipe e menos o cara que dita as regras de como tem que ser. Sabemos que as equipes e os orientadores são muito desiguais e que, nessa experimentação, existe uma margem que obviamente permite que muita coisa dê errado, então estamos trabalhando com o intuito de que a cada semestre isso possa ser melhorado, e de que a própria produção da turma como um todo sirva como motor para que a sua média seja elevada.

FF: Isso – é uma constatação também – que você chama de substituir a ideia de projeto de arquitetura por um processo, eu digo de outra maneira: é ampliar o campo do significado da palavra projeto de arquitetura. Tem um exemplo, que, aliás, você usa bastante, quando diz que fechar a Av. Paulista aos domingos não é um projeto de arquitetura stricto sensu. Não foi desenhado, não tem aquilo de pesquisa, não tem coisa nenhuma; no entanto, é uma ação arquitetônica de uma importância absurda na relação das pessoas com a cidade. No fundo, é um projeto de arquitetura, sim, um projeto de arquitetura para a cidade, que não se parece em nada com a ideia do que seja o projeto de arquitetura clássico. Isso é um exemplo, mas existem inúmeros outros em que as pessoas, de uma maneira ou de outra, estão fazendo projetos para a cidade. Eu acho que é esse tipo de projeto que estamos incentivando lá na escola. Gosto muito da ideia de que tudo é um projeto – todas as ações desse campo, que diz respeito ao lugar que as pessoas vivem, ao espaço da vida humana. Acho que tudo, no fundo, é uma reflexão permanente entre os homens sobre como é que, pela nossa ação, o mundo vai ser a nossa casa. Se você muda uma varanda da sua casa, muitas pessoas que passam por ali, na rua, são afetadas de alguma maneira, de alguma maneira o arranjo do espaço cotidiano das pessoas altera-se, sem pensar naquelas que usam a varanda. Então, mesmo no espaço privado, que é uma coisa que a gente quer trabalhar, acho que tudo interfere, tudo nos diz sobre a cidade. Não dá para emparedar, como fizeram no MASP, onde fecharam um espaço que era aberto, com os cavaletes de vidro, que, durante muito tempo, foram substituídos por um monte de parede. Quando um espaço se propõe a oferecer uma condição de convivência muito mais ampla, a impressão que dá é que há forças atuando em todas as direções do pensamento, transformadas em ações, que, às vezes, por alguns momentos, se sobrepõem e desconstroem um caminho.

CS: A um arquiteto que vá atuar nessa cidade não basta resolver um determinado problema, que é um pedido do cliente. Ao contrário, é até uma resposta naturalmente voltada a esses desejos de uma determinada encomenda, mas que isso também tenha uma contribuição para a construção da cidade, de sua melhoria, de sua história – uma ideia de transformação que não desconsidere nada disso que é fundamental. Os alunos, de certa maneira, já têm no seu DNA uma intenção clara de que os projetos têm que ter, por trás, uma formulação que se refira a todos, não só a resolver um problema no lote. E o que você falou, na verdade, a resposta clássica de um projeto é, sim, por meio de desenhos, maquetes, ilustrações, e o que está sendo discutido é que isso também é parte, mas, com isso, os nossos alunos se esforçam por meio de outras ações, algumas até de caráter mais acadêmico, no sentido da pesquisa propriamente dita, científica, outras experimentações do ponto de vista plástico, ou até mesmo projetos, desde que tenham essa vinculação com o problema da cidade. Acho que essa é nossa questão principal. Isso vai ao encontro, também, de a uma geração que me parece – é cedo para dizer – que não fica sentada esperando a próxima encomenda; ao contrário, tem uma vontade enorme de se apropriar do espaço urbano. É possível ver isso pela cidade, questões que dez anos atrás não eram pensadas e que hoje aparecem com muita força no sentido da apropriação do espaço público. Desde o Lago da Batata, a questão do Minhocão, o Parque Augusta… São questões que surgem no sentido de que as pessoas estão se mobilizando para ocupar o espaço da cidade com mais força. A Paulista é um exemplo, já, como uma resposta do poder público a todo esse movimento. Com isso, surge uma cultura de rua que está ligada à apropriação do espaço urbano, que vai contra um processo que a cidade enfrentou, nos últimos anos, de privatização completa, com condomínios que se cercam, são verdadeiros muros para a cidade, e não contribuem para a construção do espaço urbano, da rua. Tudo isso é uma resposta muito rápida a essas questões. É importante aproveitar o impulso dessa moçada, e obviamente pensar qual o rebatimento que isso tem nos outros projetos. Talvez essa seja a nossa função nesse momento.

FF: Esse conhecimento estabelecido, o conhecimento técnico, histórico de desenho, de compreensão dos mecanismos da cidade, todo o conhecimento acumulado pela experiência humana, consolidado, é indispensável. Só que não é bastante. Acho que o que a gente está trabalhando juntamente com isso é entender o espaço do EV como um espaço de conjugação, de desdobramento de todo esse tipo de conhecimento que as outras disciplinas da escola dão para os alunos. Ali é uma espécie de laboratório de ensaio, onde todos esses conteúdos, essas competências, que vêm dessa forma de conhecimento, estão ali e serão usados, só que será acrescentada também a disposição dos alunos e dos professores de entrar num território de risco, de dúvida, de questionamento, e aprender a trabalhar com isso, sem esperar respostas por parte de uma instituição. Porque não há essas respostas. Tanto que a própria avaliação que fazemos dos trabalhos é uma avaliação que… Evidentemente, quem avalia quase tudo é o orientador da equipe, mas ele não chega à metade; a outra metade é composta pelos outros orientadores e pelos próprios alunos. E os alunos avaliam duas coisas, que para nós são preciosas: a primeira, a autoavaliação, e a segunda, uma coavaliação, que é uma avaliação do processo como um todo. E isso permite uma espécie de construção de uma autocrítica. Quando a avaliação é só da parte do professor, a nota que o professor dá, por mais que seja objetiva, abrangente, no fundo, no fundo, o que está sendo avaliado é a performance do aluno como aprendiz, na visão de quem está de fora. E as coisas que se aprende com o erro? Às vezes, você aprende pra caramba tendo chegado a um resultado muito ruim no trabalho. Com isso, você faz o aluno pensar muito mais do que simplesmente receber uma nota. Ele também dá nota. Ele dá nota inclusive para nós. Quando ele dá nota para o processo todo, não é A, B, não é isso; é um comentário. Existe muita coisa previsível, mas às vezes a gente se surpreende bastante. Às vezes existem comentários que nos fazem mudar de direção. Acho que é uma maneira por meio da qual tentamos experimentar um espaço de autonomia do aprendizado, tanto para os alunos quanto para os professores.

CS: Eu me lembro que, quando a gente estava começando, alguns colegas que eram nossos confidentes falavam assim: “será que vai dar certo?”. E a gente também se perguntava, “será que vai dar certo?”, e, na verdade, quando mudamos o enfoque e encaramos isso como um laboratório, foi ótimo, porque nos deu liberdade para errar, e errar feio. A ideia de erro e acerto é interessante, porque, à medida que você não busca um resultado específico, abre as portas para coisas novas, que vão ser parte do processo de uma construção mais ampla, que não se encerra só no EV.

FF: O que nos estimula também são alguns resultados. Alguns trabalhos muito interessantes. Tem um trabalho de conclusão de curso que uniu, de certa maneira, os dois temas de que Shundi falou. O tema do primeiro semestre e o tema do segundo semestre. O primeiro, “tempo livre”, em Campo Limpo; depois, “passagens”. Da análise do contato que os estudantes tiveram com o bairro, o projeto final foi uma cenografia para um grupo de dança que se apresentava na quadra de uma escola. Trabalho maravilhoso aquele. Eles desenharam, executaram e gravaram a coreografia que foi feita para o cenário que propuseram. No ano seguinte, o tema foi “passagens”. Uma das meninas se aproximou do grupo de dança, aí voltaram para o Campo Limpo, começaram a trabalhar numa daquelas escadarias imensas do bairro, que existem quando as ruas acabam, propuseram, junto com os alunos, uma coreografia e desenharam um corrimão para essa escada. É um corrimão que cria situações para você, um corrimão que ajuda as pessoas, mas com o qual também se pode dançar. Uma maravilha. Executaram um trecho – não tinha dinheiro para todo o corrimão –, gravaram isso tudo, e foi a proposta do TC dessa menina. E outros vizinhos de outras escadarias têm nos procurado para fazer coisas… [risos]

CS: E o que é bonito é isso. O trabalho do urbanismo pressupõe, normalmente, numa visão clássica, uma ideia que vem de cima para baixo, do maior para o menor. Nesse caso, o desenho é de um guarda-corpo, uma coisa muito singela, mas que traz tantas discussões e abre tanto a questão que inverte um pouco a lógica das coisas. É bonito pensar também do ponto de vista contrário. Como de um pequeno ponto pode se discutir tantas outras coisas.