#8AmorArteArtes Visuais

Lego >> Louisiana

por Maru Scatamacchia Widden

Meu caso de amor com a Escandinávia começou em 1989, quando viajei em família para Dinamarca, Noruega e Suécia. A única lembrança forte que tenho dessas férias, contudo, é a de ter conhecido a Legolândia – uma cidade dinamarquesa feita inteirinha de… Lego! Jamais me esqueci deste dia. Para uma menina então com oito anos foi quase um sonho, e eu não podia acreditar que aquela mini-cidade-de-lego fosse de verdade. No último Natal, meu marido me deu uma viagem para a Dinamarca, e achei que quisesse me surpreender com uma nova visita à Legolândia. Afinal, ele sabia que essa memória de infância ainda me fascinava. Mas este não foi bem o presente, e confesso que, de início, fiquei muito decepcionada. Meu marido tentou me explicar calmamente, como um bom sueco, que iria me levar a conhecer o Louisiana, e que esta seria uma experiência surpreendente.

Tenho de admitir que estava certo. A visita superou minha viva recordação da Legolândia e me deixou em estado de êxtase, como se ainda fosse aquela criança.

O Museu de Arte Moderna e Contemporânea Louisiana fica 35 quilômetros ao norte de Copenhague, numa pequena cidade da costa chamada Humlebæk, e é um dos mais visitados do mundo. Seu nome foi dado pelo primeiro proprietário da estância, Alexander Brun, que teve três esposas chamadas Louise e as quis homenagear. Foi apenas em 1958, no entanto, por iniciativa do terceiro dono, Knud W. Jensen, herdeiro de uma das famílias mais ricas da Dinamarca, que a propriedade transformou-se em museu. Knud era um grande colecionador de arte e investiu boa parte de sua gorda poupança na idealização do Louisiana. Seu maior desejo era modificar a maneira como os escandinavos enxergavam a arte e a própria instituição “museu”. Queria, em suma, proporcionar ao espectador a sensação de estar em casa.

Para que fosse possível abrigar sua vasta coleção, Knud teve de expandir a sede da estância. Contratou, então, uma dupla de arquitetos modernos dinamarqueses, Vilhem Wohlert e Jorgen Bo, que passaram alguns meses estudando atentamente a área da propriedade e criando um projeto capaz de relacionar intensamente arte, arquitetura e natureza. O propósito era o de que se pudesse contemplar o museu como um todo: paredes, corredores, pinturas, esculturas, natureza e a vista do mar. O resultado foi despretensioso e magnífico. O visitante podia, por exemplo, observar uma escultura de Giacometti numa sala com janela de mais de cinco metros de altura e assim ainda avistar, ao fundo, um dos lagos da propriedade. Este foi, aliás, um dos pontos altos de meu passeio.

Os arquitetos foram fiéis ao desejo de Knud de estimular sentimentos de aconchego e tranquilidade – algo que se pode resumir na famosa expressão francesa “joie de vivre”. Foi o primeiro museu da Escandinávia a ter uma cafeteria, flores frescas e materiais de acabamento simples em vez de mármore, pilares e os jardins de palmeiras tão comuns nas instituições culturais nórdicas da época. Wolhert e Bo cuidaram de todas as expansões pelas quais o Louisiana passaria nos 33 anos seguintes e jamais permitiram que o projeto perdesse o ar convidativo.

Apesar de sua inauguração coincidir com um período muito próspero da Dinamarca, os anos 1960 do século XX, o modelo proposto pelo Louisiana causou controvérsia. Muitos achavam absurdo não se obedecer ali as regras de etiqueta então universalmente impostas aos visitantes de museus e válidas ainda hoje em algumas instituições. Era permitido, por exemplo, fumar dentro das salas de exposição e não havia sinais de silêncio ou pedindo para que não se encostasse nas obras.

Knud introduziu um conceito inovador e mudou a maneira como os escandinavos enxergavam a arte. Foi muito questionado por isso. Alguns chegaram até a chamar o Louisiana de “Circosiana”, pois, para enrijecidos críticos, estava mais para um circo do que para uma instituição séria. Segundo os mesmos detratores, cercado pela impressionante beleza natural da propriedade, seria impossível alguém se concentrar em arte naquele museu.

Aos poucos, porém, Louisiana conquistou e multiplicou admiradores: aqueles que entenderam o quão única era a experiência de passar uma tarde em meio a tantas coisas belas; aqueles que experimentaram as sensações de liberdade e felicidade decorrentes da interação entre arte e natureza. A fadiga, algo comum após longa visita a um museu sem janelas e sem vista (imagine-se no Louvre numa tarde de sábado), não tinha vez no Louisiana.

Para preencher as salas do museu e complementar sua coleção, Knud pediu obras de colecionadores privados e da Fundação Carlsberg – atualmente transformada no Museu Ny Carlsberg Glyptotek, em Copenhague. Originalmente, o acervo do Louisiana consistia apenas numa coleção de arte moderna dinamarquesa, da qual pretendia ser uma espécie de “santuário” e por meio da qual Knud queria declarar seu amor pela cultura do país. Alguns poucos entusiastas, contudo, questionaram por que uma estrutura tão vanguardista abrigava pinturas nem tão modernas, o que trouxe à tona o grande vazio que o Louisiana ainda não era capaz de preencher: não havia grande acesso à arte moderna e contemporânea internacional; para muitos, um grande buraco cultural na Dinamarca.

Como um bom empreendedor, Knud entendeu a necessidade de expandir o horizonte de sua disposição inicial e – apenas um ano após a inauguração do Louisiana – viajou para a Alemanha, onde teve contato com a produção de novos artistas, como de Kooning, Kline, Rothko, Vasarely, e também com a dos já muito bem conhecidos Picasso, Calder e Henry Moore. Ele admitiu que estava errado em relação ao acervo de seu museu e principalmente a respeito de seu significado para a Dinamarca. O conteúdo do Louisiana estava enraizado na tradição do país e, erradamente, não se abria à arte revolucionária internacional. Para modernizar a coleção, portanto, resolveu trazer algumas exibições contemporâneas internacionais e assim construir – lentamente e a partir dos artistas participantes da Documenta de 1959, da Vitality in Art de 1960 e do Movement in Art de 1961 – um novo acervo, aos poucos transformando o museu num centro de arte moderna e contemporânea. Hoje, a coleção contém mais de três mil obras, muitas de peso e importância internacional, e inclui nomes como Picasso, Dubuffet, Rauschenberg, Calder, Vasarely, Philip Guston, Miró, Jorn, Polke, Kiefer e Per Kirkeby.

Ao longo das décadas, a curadoria do museu tentou preencher todas as lacunas possíveis geradas pelos novos movimentos artísticos e foi capaz de construir uma coleção que abrange o novo realismo europeu, com Yves Klein, a pop art americana, com Warhol e Lichtenstein, e a arte alemã dos anos 1980, com Kiefer e Baselitz, além de algumas importantes vídeo-instalações dos anos 1990, com trabalhos de Bill Viola e Paul Mccarthy. Mais recentemente a instituição adquiriu obras de Louise Bourgeois, Philip Guston, David Hockney, Doug Aitken, Thomas Demand e Jonathan Meese, entre outros.

O Louisiana é um dos poucos lugares verdadeiramente especiais do mundo, e até hoje transpira uma atmosfera de conforto e aconchego. Entre passeios por seu extenso parque, repleto de esculturas, chás na cafeteria com vista para o mar, corredores envidraçados e obras de arte, oito horas de meu dia se passaram sem que eu percebesse que já era tempo de voltar a Copenhague. E não estava nem um pouco cansada…

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Amor imenso

por Tomás Biagi Carvalho

Um sonho de amor é o filme mais bonito que já vi.

A trágica história, a atuação espetacular de Tilda Swinton e a direção de arte impecável transformam a obra de Luca Guadagnino numa maravilhosa e dramática ode ao amor.

De origem russa, Emma Recchi, personagem de Tilda, é retirada de seu habitat para casar-se com um rico industrial de Milão. Tem três filhos, mas, visivelmente, não é feliz. Seu olhar é vago, distante, perdido em meio à espetacular casa art deco onde mora. A residência, cuja riqueza de detalhes enche os olhos de qualquer um, é a protagonista do filme, e o trabalho da set designer Francesca di Mottola, portanto, quase de direção.

O filme retrata a mudança de controle – no centro de uma família abastada – sobre o poder e o dinheiro. Afinal, em sua festa de aniversário, o patriarca, Edoardo, anuncia sua aposentadoria e, ao contrário do que todos pensavam, informa que os negócios familiares não serão cuidados somente pelo filho Tancredi, mas também por seu neto Edoardo.

Esse mundo ordenado e plácido começa a rachar justamente nessa ocasião, quando surge na vida dos Recchi a figura de Antonio, sócio do jovem Edoardo num restaurante em San Remo. Numa visita ao novo negócio do filho, Emma descobre sabores que parece nunca ter experimentado. A dureza da mulher de gelo quebra-se para sempre.

Lindo esteticamente, o filme tem poucos diálogos e abusa do silêncio, da trilha sonora e dos olhares. Não à toa impressionou tanto a crítica. Há tempos não despontava no cinema italiano alguém com a capacidade de um Visconti para utilizar a cenografia e os espaços vazios de forma tão dramática.

Conversamos com Francesca di Mottola – carioca que se mudou para Roma, com a família, aos sete anos – sobre seu trabalho e, particularmente, a respeito do processo de construção dessa maravilhosa obra.

Fale-me um pouco sobre você. Onde nasceu? Morou no Brasil?
Nasci no Brasil. Passei minha primeira infância aí e, aos sete anos, mudei-me para a Itália. Sou brasileira, mas minha formação é italiana.

Você fez faculdade de quê?
Fiz Theatre Design na Central St. Martins, em Londres, e então comecei a trabalhar com um pessoal de cinema, que estudava no mesmo prédio, produzindo curtas-metragens. Terminei a faculdade em 2001 e fui trabalhar no time de Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo (production designer e set decorator – três vezes vencedores do Oscar), com quem fiz Cold Mountain, na Romênia, em 2003. Depois, voltei ao Brasil. Passei três anos trabalhando com cinema aí.

Li mesmo que você fez aquele filme, Cleópatra, com a Alessandra Negrini.
Sim, como assistente de direção de arte.

Então, isso foi na época em que morava aqui?
Isso. Depois de algumas experiências profissionais aqui na Europa, senti o desejo de passar uma temporada no Brasil. Trabalhava no art department de Un Long Dimanche de Fiançailles, de Jean Pierre Jeunet, em Paris, e fiquei muito amiga da dupla PaulaGabriela (artistas plásticas cariocas, cuja obra é muito teatral). Elas então preparavam uma instalação e insistiram muito que o Brasil estava “bombando” em termos de artes e criatividade. Ao chegar ao Rio, introduziram-me ao mundo da arte contemporânea e da moda, e senti a energia criativa de que tanto falavam.

O que a fez voltar para a Itália?
Voltei porque recebi um convite para trabalhar novamente com Dante e Francesca, em Sweeney Todd (2007), de Tim Burton, em Londres; e também porque, apesar de ter uma conexão muito forte com o Brasil, sentia-me um pouco isolada.

O que mais fez por aqui?
Trabalhei três meses na Grande Rio, com o Joãozinho Trinta ainda vivo. O enredo era sobre a camisinha. Foi muito louco. Desenhei muito e contribui nos adereços dos carros. Depois, comecei a trabalhar com o diretor de arte Gualter Pupo e fiz um filme do Flávio Tambellini, Passageiro. Fiz vários trabalhos menores também, como a instalação de uma exposição sobre cinema brasileiro, sempre como assistente. Foi muito legal e aprendi muito no Brasil – uma ótima escola pra mim.

Seu caso de amor com o cinema começou na escola, né?
Começou. Sempre tive um relacionamento de amor com o cinema, mas, quando estive na Inglaterra, pude passar muito mais tempo no teatro e no cinema. Londres oferece abertura total e acesso a muita informação: teatro, cinema e exposições maravilhosas. Ia, toda noite, a uma peça ou a um filme. Aquele ano foi, informativamente, muito importante, período em que entendi que queria fazer cenografia.

Você identificou o que queria fazer.
Totalmente. Foi maravilhoso. A faculdade de cenografia era muito aberta, não só baseada em teoria do teatro, ou na parte técnica, mas dedicada também a estimular o desenvolvimento de ideias e a análise criativa de textos. Nisso, os ingleses estão muito à frente, tanto que os cenógrafos britânicos são meus preferidos.

Quais são esses cenógrafos?
De teatro, Paul Brown, Ralph Koltai, Richard Hudson e Rae Smith, com quem inclusive estudei. Ela fez os cenários de algumas peças grandes, como War Horse.

Em que momento você começa a se envolver no processo de criação de um filme?
Depende muito do relacionamento que estabeleço com o diretor. Se trabalho com alguém que já conheço, o processo se inicia muito cedo. Por exemplo, meu marido é diretor. Desenvolvemos juntos, agora, o projeto de um filme, que possivelmente filmaremos no ano que vem, no Brasil. Meu envolvimento nesse projeto, portanto, começou com o screenplay. Fizemos o location scout juntos, e meu trabalho já entrou no script. Mas, normalmente, sigo um roteiro já estabelecido. Tenho trabalhado com diretores que possuem uma visão muito forte sobre o que desejam, o que é legal, pois me oferecem uma rota definida, como foi no caso de Um sonho de amor. A pesquisa visual do diretor era imensa, e tive de dar sentido ao que já imaginara. Foi muito interessante, porque ampliei certas coisas; outras, tive de condensar.

Quais são suas influências?
Crescendo em Roma, estive cercada de arte a vida inteira. Fiz o liceu artístico quando pequena, e a história da arte sempre esteve presente em mim. É difícil dizer quais são especificamente minhas influências. Depende muito do projeto, mas, na maioria das vezes, busco inspiração em quadros, pintores e fotografias.

Você pesquisa, ou se trata de algo natural, que já está em você e que compõe seu repertório?
É como se já tivesse tudo dentro de mim. Daí, claro, amplio este campo de conhecimento e parto para a pesquisa. A de Um sonho de amor é ridícula. Tenho um folder tão lotado de imagens que sequer o consigo carregar.

Você pode contar um pouco sobre essa pesquisa?
O diretor já tinha uma grande parte dela, dividida da seguinte maneira: “A fábrica”, “A natureza”, “A cidade”, “O mundo de Emma” e “A Rússia”. Artistas do movimento construtivista russo, como Malevich, serviram de inspiração para contar o mundo da fábrica de tecidos e de seus trabalhadores; as imagens no ritmo da música de John Adams inicialmente foram estudadas como título de abertura, mas não levamos a ideia adiante. Entre os artistas russos, como referências, tínhamos pinturas de Kuzma Petrov-Vodkin, Ivan Kostantinovich, Ilya Repin, Zinaida Serebriakova, Valentin Serov Alexandrovich e Leon Bakst. Foram muitas as influências. Por exemplo, possuíamos imagens de muitos quadros de De Nittis, Sargent, e também Cézanne, Matisse e Vuillard.

Para a natureza, as referências partiram de fotos como as de Thomas Struth e de Fischli & Weiss, cujas “flores” inspiraram as cenas de amor campestre entre Emma e Antonio. Falar da natureza era importantíssimo porque era o mundo de Antonio; o universo onde se perdiam e para o qual – representado por sua casa em plena Ligúria – levou Emma. A natureza tem a ver com a paixão deles, com o amor, uma paixão mais forte que todo o resto.

Já o mundo de Emma iniciava-se na cidade. O diretor tinha várias imagens de fotógrafos nas quais a arquitetura é muito poderosa, como Andreas Gursky e Thomas Struth, e desenhos de Vespignani, Umberto Boccioni e Paolo Pace. Assistir aos filmes Rocco e i Suoi Fratelli, de Visconti, La Notte, de Antonioni, e ao documentário de Scorcese sobre Armani, Made in Milan, também ajudaram na pesquisa sobre como contar a cidade.

Finalmente, teve a casa, a principal locação. Com sua beleza pura e formal, situa-se como um mundo paralelo. Dentro de seus muros, que contêm as dinâmicas complexas de uma família, definem-se as relações com o mundo exterior. Embora esteja situada bem ao centro de Milão, faz – devido, por exemplo, a seus opulentos jardins – com que nos sintamos isolados. Serve de fortaleza para a família, mas também de prisão.

É uma casa particular?
Foi uma casa particular, que se transformou numa fundação que se ocupa de casas-museu na Itália, chamada Villa Necchi Campiglio. Quando a vimos pela primeira vez, estava vazia e em processo de restauração. Foi construída nos anos 1930 e se trata de um exemplo de arquitetura racionalista, então muito valorizado na Itália. Durante algum tempo, a casa manteve o que Piero Portaluppi, o arquiteto, originalmente projetara e desejara. Depois de alguns anos, os donos começaram a achá-la muito fria, muito austera, e chamaram um decorador importante nos ano 1950, Tommaso Buzzi, que possuía um estilo muito ornamental e que nada tinha a ver com a arquitetura original, o que resultou numa mistura de estilos muito esquisita. O desafio de meu trabalho foi, em primeiro lugar, mexer na decoração para que pudéssemos sentir a beleza fundamental do edifício, ocultando ou removendo muitos dos elementos adicionados pela intervenção posterior. Assim, permitimos que a elegância dos espaços e a riqueza dos materiais respirassem e se impusessem. Em segundo lugar – possivelmente, o maior desafio –, nos dedicamos a fazer com que os espaços grandiosos e minimalistas tivessem vida.

Através de minha pesquisa, estudei alguns exemplos de casas art déco para ter noção de como os interiores poderiam ser organizados de modo a que parecessem contemporâneos, já que o filme se passa em 2001. Logo percebi que todos os objetos, móveis e quadros escolhidos tinham de “pertencer” ao espaço e aos personagens que ali viviam. Por exemplo, tudo o que pertenceria a Emma seria extremamente feminino e delicado. Inspirei-me muito na obra de Anna Asp, na forma como define, em ambas as casas, os espaços internos em O Sacrifício (A. Tarkovski) e em Fanny e Alexander (I. Bergman), e também em Being There, de Hal Ashby.

De fato, o minimalismo da casa traz muita força à história…
O minimalismo nos interiores e a maneira como foram filmados esses espaços (os ângulos e os framings) fazem com que os personagens fiquem muito “pequenos” em comparação aos ambientes; ou seja, a casa é o símbolo de algo que os representa, mas, dentro desse set em que a família vive, há muitas áreas “vazias”, cujo ego de um pai e marido despótico não consegue preencher suficientemente. Emma anda por esses vãos, perdida, e parece estar em outro lugar, pois sente este vazio. Os filhos entram e saem da casa como se já não pertencessem ao lugar. Então, se de um lado foi importante dar vida à residência, para que o espectador acreditasse mesmo tratar-se de uma casa de uma família contemporânea, de outro, tivemos de calcular, de medir mesmo, para que se mantivesse o equilíbrio deste vazio, que reflete a melancolia de Emma.

Os figurinos também têm um peso crucial para a personagem de Tilda Swinton.
O estilo “Jil Sander” foi um acerto para os figurinos dela. Essa linha minimal, que desenha o corpo, sempre muito simples, muito austera, quase como uma freira, segura-a, controla-a. Afinal, não é uma mulher exuberante. As cores das roupas são bem fortes, como laranja e fúcsia, e servem para destacá-la do resto do mundo e das pessoas do filme. Nos frames em que aparece, você sempre a lê muito claramente. Ela pode estar andando na cidade ou no meio da multidão, e estará sempre em destaque. O corpo e o jeito de se movimentar da Tilda também colaboraram muito.

Conforme a história se desenrola, isso vai mudando…
Ela vai ficando mais livre; libertando-se dessa forma que a contém. No começo do filme, está em casa, sempre muito formal, muito dura. Quando, porém, mergulha na história de amor, de paixão e de liberdade sexual, transforma-se em outra pessoa, totalmente aberta, até chegar ao final, em que tudo se rompe e ela surge de preto.

O título do filme se dá por conta da personagem de Emma, que concentra todos os tipos de amor, de mãe, de esposa e de amante?
Não sei se você percebeu, mas há uma cena em que assiste, no quarto, com o marido, à parte de Philadelphia em que a Maria Callas canta um trecho da Tosca, “Io sonno l’amore”. O diretor é totalmente fanático por esse filme e pelo diretor Jonathan Demme. Ele quis fazer uma homenagem.

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Fofocas

por Vanessa Agricola

– O brasileiro ama uma fofoca, né?
– Ah, brasileiro adora.
– Por que será, hein?
– Não sei… mas não é só o brasileiro não senhora. Aquele Gossip Girl não é americano?
– É…
– E aquele programa tipo TMZ!
– Mas é sobre celebridade esse programa.
– E daí? Você acha normal os ingleses passarem o dia falando que a Kate Middleton vai separar?
– A Kate Middleton vai separar??
– Parece que sim, menina.
– Noooossa.

– Você viu que o Ruy Castro teve um AVC?
– Sério, um AVC?
– Não sei se foi um AVC, uma convulsão, alguma coisa dessas.
– Puxa…
– “Puxa”, você só fala mal dele.
– Eu falo mas eu gosto dele.
– Sei.
– Falar mal do Ruy Castro mata a minha vontade de falar mal dos outros.
– Vontade de falar mal dos outros?
– Todo mundo tem! Você fala mal daquela Fernanda todo dia.
– Eu??
– Muito mais divertido falar mal do Ruy Castro. Garota vazia…

– Não é ridículo ele usar o banheiro feminino?
– Não sei, não acho ridículo…
– Ah, vá, ele é homem!
– Mas usa saia.
– Mas tem pinto!
– Eu acho ele divertido.
– Ah, você é maluca.
– Deixa o cara ser mulher, qual o problema?
– Ele pode ser mulher, mas não pode usar o banheiro feminino.
– O que acontece no banheiro feminino de tão importante?
– Tudo! Você troca o modess, abaixa a calça, fica pelada…
– Você troca o modess e fica pelada dentro da cabininha!
– É, mas dá pra ver pela frestinha.

– Você viu que o Rafinha Bastos vai fazer o Saturday Night Live?
– Eu vi! Só não sei de quem que ele vai tirar sarro na Rede TV.
– Não tem famoso, né?
– Da Wanessa Camargo a gente sabe que não vai ser, hehe.
– Coitado…
– Coitado do Rafinha Bastos?
– Ah, ser trucidado por causa da Wanessa é foda.
– O marido dela é poderoso, ele devia ter pedido desculpa.
– Eu também acho. Eu pediria. Engole o orgulho, porra, se humilha.
– Apesar que esse cara não deve ser nenhum bonzinho.
– Não mesmo.
– Melhor amigo do Ronaldinho…

– Você viu quanto gringo?
– Nossa, tá me irritando muito isso.
– Como assim?
– Sei lá, tô xenofóbica.
– Você? A rainha dos gringos?
– Era. Não sou mais.
– Mas você lembra que só se interessava por gringo?
– Fala baixo!
– Desculpa. Mas por que você cansou de gringo, me conta.
– Sei lá… Cansa ficar falando outra língua…
– É?
– É. Chega uma hora você responde tudo em português.
– E o gringo??
– Não entende nada, gringo só fala inglês.

– Eu gosto da Xuxa.
– Ah, vai, cala a boca.
– Eu gosto!
– Eu acho ela uma retardada.
– Ela é amorosa.
– Ah, vá, ela batia em criança, amorosa nada!
– Eu nunca vi ela bater em criança.
– Procura no Youtube.
– Já procurei. Só vi foi Xuxa tomando esporro da Marlene Mattos.
– Credo, ela teve um caso com essa Marlene Mattos…
– Taí outra coisa que ninguém viu.
– Ai, que raiva, você gosta da Xuxa.
– Eu gostava dela quando eu era criança.
– Ah, vai, para!
– Você gostava de quem? Da Mara??

#7O que é para sempre?Crônica

Bicho-papão

por Léo Coutinho

Primeiro é o bicho-papão. Seus pais, querendo obrigá-lo a dormir, contam que debaixo da cama mora o tal monstro, que ataca no escuro, mas que você não corre risco se ficar comportado, quieto e se concentrar, ainda que não esteja com sono. Então, um belo dia, exausto de pavor ou com vontade de fazer xixi, você reage, controla o medo e bota o pé no chão. Sem levar a tal mordida, agacha, levanta a coberta e espia. Não ha bicho algum. Dali em diante, portanto, para fazer você dormir, seus pais abandonarão o chicote emocional e adotarão o torrão de açúcar, prometendo vantagens e facilidades se for obediente.

Na escola, é a vez do padre, do professor e do bedel. Unidos, dedicam-se antes a prevalecer sobre crianças do que a ensinar o beabá. Para eles, ser um bom aluno não significa aprender rápido, mas ser estudioso, disciplinado e obediente. Até que um dia você se cansa, deixa sua natureza curiosa, criativa e divertida fluir, e faz uma pergunta óbvia, porém tida como inconveniente, e, no lugar da resposta de quem deveria ensinar, recebe palmatória, advertência, suspensão ou coisa que o valha. Se mesmo assim não se emendar, a escola acenará com possibilidades de notas melhores e com a atenção especial do diretor. Os poucos que não se venderem acabarão expulsos.

Em família o processo é parecido. Se os avós e os tios não têm graça, compram a simpatia dos netos e sobrinhos com açúcar. Aos que não possuem sequer açúcar, resta impor a autoridade conferida pelos anos vividos. E para isso não precisam de motivo especial, basta a presença do pirralho. Um bocejo distraído pode ser entendido como falta de respeito. Quando você enfim percebe que o tempo ajuda, mas não determina o caráter nem a inteligência de quem quer que seja, resta a ameaça de que sem aquelas pessoas, que jamais escolheria como amigos, os Natais, que acontecem uma vez por ano, serão muito tristes para você e principalmente para os entes queridos de verdade. Quase toda gente fica.

Quando vem a hora de ganhar o pão, a ideia estabelecida é de que você, recém-chegado, está recebendo um favor por ser aceito naquele mercado de trabalho que funciona há anos, mesmo antes de sua existência. Ninguém ali precisa de você, mas curiosamente o pagam, ainda que pouco, pelo favor de aturá-lo. Portanto, não convém chegar antes do horário, sair depois e discutir ordens, por mais absurdas que pareçam. Se o chefe disser que dois e dois são cinco, você concordará e repetirá até ter a oportunidade de contar para o chefe do chefe que, na verdade, dois e dois são quatro. É das fases mais arriscadas. Se não for muito bem explicado, o chefe do chefe pode não entender e o demitir. Mas sempre há a chance de ganhar uma promoção, que, por sinal, é irresistível. Os que resistem se aposentam jurando que dois e dois são cinco, e vão para Peruíbe comer manjuba – o que, guardadas as proporções, não deixa de ser um prêmio.

A tirania do homem é para sempre. É o chamado instinto selvagem. Diante dela, há a opção de enfrentar o chicote ou se confortar com os torrões de açúcar. A maioria das pessoas prefere a segunda opção. Outras não aguentam e encaram as chibatadas. Os que sobrevivem levam cicatrizes profundas, que engrossam a pele e diminuem a sensibilidade, e que, tanto por imunizar a dor quanto por evidenciar as más lembranças, produzirão um novo ditador. Todos os homens da história que acreditaram no “olho por olho, dente por dente” acabaram cegos antes e banguelas depois, esquecendo-se de que a luta era pela liberdade, para no fim serem depostos pela geração consequente. Napoleão Bonaparte, Benito Mussolini, Fidel Castro, Muammar Kadafi que o digam. Por isso, muito melhor seria nem brincar com a hipótese do bicho-papão. Mas diante dela, antes que o monstro cresça e se torne realidade, convém sempre vigiar debaixo da cama.

#7O que é para sempre?Crônica

Para sempre é para poucos

por Hermés Galvão

Para sempre é para já. Para amanhã é para sempre também, para todos. Mas ontem, mudei de ideia. Porque vi o passado sentado ao meu lado, com cara de ontem, como quem sempre quis algo que durasse para sempre, mas nunca sentiu nada além de um sopro passageiro. E vi ali que para sempre é para poucos. E bons. Porque sempre é grande demais, é tempo demais. Difícil de alcançar, pela grandiosidade da coisa. Assim, ó: sempre é para sempre, muito mais eterno do que o tempo que dura. Pensar sempre é pensar grande, é ser maior que a própria vida em si. Será que te dou uma ideia da dimensão que para sempre pode ter? Está além do alcance, mas você ainda pode ser, há tempo. Porque não faz sentido estar onde se quer sem sequer saber o seu lugar. E sempre foi assim. Ontem mesmo vi. E por alguns minutos tive a impressão que aquela noite duraria para sempre. Até poderia, mas, de repente, para sempre ficou oco, sem sentido, como quando um diz para o outro “te amo pra sempre” só por assim dizer. E por assim dizer não me diz nada, nunca me disse. Não estimula, não sobe. Não rola. Rola no sentido de não acontecer e também no sentido “picatórico” da palavra. Por assim dizer, não me fala ao pau. E no broxar da noite, para sempre se tornou uma jornada longa e exaustiva, arrastada com uma internação, como assistir o soro fisiológico pingando, descendo lentamente pelo tubo até a veia. E para sempre nunca é a conta gotas. Para sempre é dose cavalar. É muito. Muito mais, muito maior. Para sempre. Sabe?

#7O que é para sempre?Crônica

Eternidade Sangrenta

por Leticia Lima

Contos de vampiros existem há milênios, mas vampiros evoluíram muito através dos séculos. Praticamente todas as culturas ao redor do mundo têm mitos referentes à criatura que sobrevive do sangue de outros, das chupacabras à Lilith, a primeira mulher de Adão na tradição judaica. Mas não foi até o final do século XIX que o vampiro atual começou a se formar. O Vampiro, que começou com Bela Lugosi e passou por Gary Oldman na adaptação cinematográfica de Drácula, do autor Bram Stoker, que foi de Brad Pitt e Tom Cruise na Entrevista com o Vampiro, de Ann Rice, e que finalmente se tornou a salsada composta por Crepúsculo, os Diários do Vampiro, True Blood e outras variações adolescentes hollywoodianas.

Mesmo aqueles que não são fãs do gênero – e confesso que sou – já conhecem todas as características básicas de um bom vampiro. Ele deve ser charmoso. Misterioso. Podre de rico. Sensível e, por trás dos dentes afiados, ter um coração muito humano (mesmo que não bata mais). Deve, é claro, viver eternamente. Na verdade, acredito que venha daí nosso fascínio por estes seres. Num mundo em que temos acesso aos recursos mais impressionantes, o que faríamos se tivéssemos todo o tempo do mundo?

Ganhar dinheiro, é claro. Sairiam pela janela aqueles empregos com carteira batida, escravos de nossa necessidade de ganhar o suficiente para pagar as contas ao final do mês. Com uma eternidade à frente, e sem ter de gastar no supermercado, por que não se arriscar com seu dinheiro? Roubar? Fraudar? Juntar uma fortuna familiar, mesmo que não seja de sua família? Não teríamos mais aquelas responsabilidades chatas que nos pesam, como a hipoteca ou o seguro do carro, a escola das crianças, o fetiche de bolsas da esposa.

Mas também não teríamos mais os laços familiares e de comunidade. Não teríamos mais as coisas que nos tornam, bem, humanos. Amor, amizade, carinho. Os laços que fazem a nossa vida valer. Ser mãe, pai, filha, filho, amigo, amante. O toque caloroso de uma outra mão, o carinho amoroso dos lábios de outro sobre nossos lábios, o olhar de pura admiração de uma criança. E então chegamos ao xis da questão – porque, apesar de sonharmos com a eternidade, livre de responsabilidades, confessamos que, no fundo, no fundo, sentiríamos falta dessas conexões. A vida eterna perde seu charme se tivermos de passá-la sozinhos, perdidos no ártico emocional.

Pois é aí que entra em cena o vampiro moderno, que pode ter o melhor dos dois mundos. Bill Compton e sua amada Sookie; Bella e Edward, que, de tão adoráveis, me dão ânsia; Damon e Stefan, os irmãos eternamente atormentados que disputam o amor de Elena – os vampiros hoje podem viver para sempre e também viver o momento, viver o amor, viver, de fato, a VIDA em cheio.

E se assim for, quem não gostaria de viver para sempre?

#7O que é para sempre?Amarello VisitaArquiteturaDesignEstiloInteriores

Amarello Visita: Ricardo Salem

Num tempo em que as únicas luzes do lugar eram das estrelas cadentes, Ricardo Salem – até então, por profissão, explorador do mundo – chegou à Trancoso.

Após uma temporada na Índia e na Europa, voltara ao Brasil com sede tropical – e foi assim que desembarcou no sul da Bahia, onde sentiria, enfim, o sabor das origens indígenas de seu povo.

Ricardo nunca pensara em ser arquiteto. Formado em Direito, tinha o sonho de se tornar diplomata, mas, em decorrência do AI-5 e, portanto, do recrudescimento da ditadura, logo desistiria. Não queria ser representante “dos milicos”. Foi para Londres disposto a “pensar” e se divertir um pouco ao lado dos amigos – também pensantes – Caetano e Gil. Em seguida, viajou pelo Rajastão e por Goa, onde adquiriu grande parte de seu repertório e de suas referências de estilo na decoração.

Refém dos encantos da mágica Trancoso, foi nesse pedaço histórico de terra brasilis que Salem resolveu ficar, 36 anos atrás, quando nativos e biribandos se misturavam a forasteiros, cineastas, mochileiros e intelectuais bicho-grilo para fazer do lugar mais uma bandeira da irmandade mundial Flower Power dos anos 1960. Sua vida passou a ser a daquela comunidade, com a qual estabeleceria profundas amizades – que atravessaram gerações e que permanecem ainda hoje.

No início, morava de favor com amigos, de galho em galho, até que resolveu ter sua própria casa. Comprou, então, um terreno no “quadrado”, a preço de banana, e começou a erguê-la – sempre com a ajuda e o conhecimento da comunidade local. “Naquela época, já tinham a cultura da marcenaria e da palha. Faziam uma colher de pau em minutos, construíam bacias para banho, mas era tudo muito tacanho e tive a oportunidade de aprimorar e sofisticar um pouco mais as dobradiças, a projeção de luz indireta, os acabamentos da palha, dando ângulo e funcionalidade a cada etapa da construção”, diz Salem.

Em terra de cego, quem tem olho é rei! Graças a este capricho extra e ao investimento na durabilidade dos materiais, Ricardo passou a ser procurado e se tornou o “fazedor de casas” da região. “Resolvi fazer algo, primeiro, que não caísse e, depois, que aproveitasse o material local da melhor maneira possível. Foi fácil, pois tudo que já existia na arquitetura indígena me parecia, com alguns melhoramentos, coisa boa!”

Assim, pegando gosto pelo trabalho, Ricardo desenvolveu uma marcenaria natural, que não usa prego nem vidro, e investiu no aproveitamento das linhas arquitetônicas locais, replicando em seus projetos, por exemplo, medidas das portas arredondadas das igrejinhas históricas.

Ricardo fundou uma escola de arquitetura baseada em elementos brasileiros e materiais rústicos, como madeira, tijolo de adobe, chão de cimento e detalhes em palha, e transferiu todo esse conhecimento para seu atual escritório, na mesma casa em que mora – a mais charmosa de Trancoso.

#7O que é para sempre?CulturaSociedade

Entre o muro e a Jabuticabeira. Eu vejo e me lembro, não vi, nem tava lá

por Helena Cunha Di Ciero

Certa vez, um pai contou-me que, quando pequeno, seu filho temia ir à praia. Um dia, ajoelhou-se junto ao menino para entender como via o mar. Compreendeu rapidamente sua aflição: aos olhos de uma criança, o oceano é uma imensidão assustadora.

Essa imagem ilustra o modo como vemos – em termos de intensidade – o trauma: o frágil indivíduo que lhe é exposto sente-se sem saída, sobrecarregado, obrigado a lidar com seus próprios recursos. Por isso é comum falar-se de experiências traumáticas na infância, já que, nessa fase da vida, estamos mais desprotegidos e menos preparados para o mundo externo.

Proveniente do grego, a palavra trauma significa ferida, que, por sua vez, vem de furo. Trauma é ruptura, cicatriz. Todos se utilizam banalmente desse conceito, sem saber do que se trata e sem refletir sobre o funcionamento da mente humana.

Vivemos à procura de satisfação e de nos desfazer daquilo que nos faz mal. Podemos dizer que estamos sempre em busca de prazer e de nos livrar do que é desagradável.

Em psicanálise, trauma é definido como um afluxo excessivo de excitação em relação à tolerância do aparelho psíquico: a quantidade de emoção é tão violenta e intensa que somos incapazes de suportá-la. Isso ocorre porque a pessoa ali exposta encontra-se despreparada, e o volume de sensações e de estímulos torna-se, em termos psíquicos, maior do que aquele que pode aguentar.

Na situação traumática, somos afogados por um excesso de emoções – como se uma cachoeira, durante a chuva, transbordasse, dentro de nós, sentimentos intoleráveis. Essa vivência ficaria armazenada, como uma explosão que tinge nosso mundo interno. O registro do ocorrido, porém, não permanece integralmente, tamanha sua força. Embora o estímulo traumático seja reprimido, sobram marcas e detalhes daquela cena. Um cheiro, um som, um lugar, uma cor, tudo de repente contaminado por aquela circunstância. De tudo fica um pouco – já dizia Carlos Drummond de Andrade.

Esse resíduo permanece então registrado em nossa trama mental; e de tal forma que, quando algo se aproxima daquele marco, sensações que pareciam adormecidas despertam. O trauma é uma vivência emocional que muitas vezes parece esquecida, podendo de súbito acordar, a despeito de nosso desejo de eliminá-la. Ficamos de alguma forma reféns dessa experiência, aprisionada, congelada dentro de nós, indigesta.

“I’ll carry it in my heart” – diz o poema de E.E. Cummings. Esse tipo de situação emocional acaba não sendo expresso em palavras, pois seu conteúdo muitas vezes é tão doloroso que se torna inominável. O inconsciente então se utiliza de imagens, representações cujo colorido emocional remete àquele momento.

Por isso são frequentes os sonhos que repetem uma passagem traumática. Durante o dia, a mente se dispõe a esquecer aquilo que a feriu. À noite, porém, com a censura adormecida, as imagens regressam. Esse retorno é uma tentativa, promovida por nosso inconsciente, de elaborar a vivência dolorosa. É como se, à noite, trabalhássemos de forma a digerir o que se passou, já que se trata de algo intoxicante. No entanto, a intensidade do fato é tamanha que este, para que a mente continue funcionando ao acordar, acaba reprimido.

Recentemente, vi a instalação da artista Rosangela Dorazio, que narra uma cena forte, ocorrida entre o muro e a jabuticabeira de uma casa durante sua infância. O que o expectador escuta sobre o episódio carrega sua imaginação com uma intensidade brutal. Ao ouvir o relato, feito por uma contadora de histórias de voz doce e suave, é como se fôssemos novamente crianças. Somos tomados por um sentimento de cumplicidade e horror, como se obrigados a testemunhar o incidente. Queremos fugir, esquecer aquela história, que, no entanto, permanece, impregnando-nos como uma memória que não quer ser esquecida e que, a qualquer momento, pode voltar a assombrar, tal qual um fantasma adormecido.

Entre o muro e a jabuticabeira, algo se passou. Eu vejo e me lembro. Vejo o muro, vejo a árvore – e isso me remete a uma situação. Contudo, não vi, nem estava lá, pois não aguentei testemunhar aquela cena. Meus pequenos olhos infantis tentaram se afastar, dividir minha mente, e fingi para mim mesma que a esquecera.

Mas há algo que se passou num espaço entre o cimento e as plantas. Ali, tomado de lembranças, nada mais crescerá. Nada que brotasse naquele canto poderia ser fértil. Aquela imagem, dali em diante, ficaria em mim, impregnada, enrijecida. Pois eu vi; não queria estar lá, mas estava. Não houve escolha.

#7O que é para sempre?Crônica

Lembranças

por Vanessa Agricola

Primeiro dia de aula. Três anos. Um menino mordeu minhas costas. Choro. Colo de mãe. Leite com farinha. Carinho. Beijinho. Consolo.

Revistinha de colorir e pintar. Lápis de cor. Um sapo dentro da piscina. Macaco que joga banana na minha cabeça. Zoológico. Bozo. Festa Junina. Sítio em Atibaia. “A Kika morreu, a Kika morreu!” Minha mãe chorando pela Kika. Mamadeira. Leite com Nescau. Casa de marimbondo. Bala Chita. Mamãe limpando minha orelha. Cotonetes. Um líquido rosa da Johnson. Toalha com capuz. Cavalinho de pau. Mudinha de roupa. Mudança. Viagem. G.Aronson.

Joãozinho e Maria. Cuca. O Sítio do Pica-Pau- Amarelo. Daniel Azulai. Vassoura piaçava. A zebrinha do Fantástico. Cid Moreira. Meu pai.

Aquela música do Caymmi: “Boi, boi, boi.” Cadeira de balanço. Vovó Alzira. A poltrona de assistir TV do vovô. Chacrinha. Domingo. Telefone de disco. Bibelô.

Brincar de escolinha com meus primos. Brincar de tudo com meus primos. Pique-esconde. Suco de caju. Quindim. O galinheiro. Medo de escuro. Dobradinha. Rock in Rio e Queen.

A separação de meus pais eu esqueci. Outras coisas importantes: aniversário de cinco anos, bolo de chocolate, fuscão preto, arroz com feijão. Paraty.

Mambucaba. Pereira Barreto. O uniforme de camisa xadrez bordado com Vanessa. “Vanessa, que nome feio”. Frase dita por Ádila, a menina malvada. Porrada na menina malvada na hora do recreio.

Cheiro de xampu da Turma da Mônica. A Turma da Mônica. Chico Bento. O Rolo. O japonês gatinho da primeira série. Foto 3 x 4. Fim de semana. Namoro.

Fralda de pano fedida. Selva de Pedra e Roque Santeiro. São Francisco de Assis. Noite de chuva. Dormir triste e acordar feliz. Pesadelo.

Cheiro de cabelo queimado. Chevette marrom. Andréia, primeira melhor amiga. Foi morar em Jacareí. Boneca Moranguinho. Saudade, gripe forte. Despedida.

Meia-calça branca com bota da Xuxa. Mochila da Company vermelha. A roupa da Viúva Porcina. Ana Alice, minha madrinha. New Wave com purpurina.

Carnaval no clube. A turma. “Olha a cabeleira do Zezé/Será que ele é/Será que ele é.” Fantasia de bailarina. Óculos de natação. Aula de piano, jazz, caligrafia, balé.

Nick. Raça Poodle com Tenerife. Dormir com Nick na casinha de cachorro. Xampu Tratto. Ração Frolic. A Pulga e o Percevejo. Carrapato. Esporro.

Andar a cavalo. Montanha. Férias em Campos do Jordão. Hotel Vila Inglesa.

Patins no gelo. Suco de cenoura com beterraba. Bife à milanesa. Macarrão.

Tia Nélia, Miss Vivian, Professor Nelson Basic Olic e Dona Elis. O Iluminismo. O Iluminado. Hello Kitty, He-Man, She-Ra, Giz.

Aquele estojo do Paraguai com régua e termômetro. Febre de 40 graus. Mononucleose. Diarreia. Vômito.
O primeiro porre de tequila. O segundo porre de tequila. O terceiro e último porre de tequila.

Mobilete Caloi verde. Trevo de quatro folhas. Amarelinha. Chocolate Surpresa. Tigre. As quatro estações. Mozart. Veneza.

Biotônico Fontoura. Própolis. Circo, mágico, o globo da morte. O dia em que vi o homem de duas cabeças no “Isto é incrível”. O dia em que achei uma nota de mil cruzados novos. Sorte.

O primeiro beijo foi no Leandro. Pêra, uva, maçã, salada-mista. Misto-quente. Gudang Garan. Maksoud Plaza. O Exorcista.

Boiar de barriga pra cima. Enterrar-se na areia. Ver o pôr do sol e o nascer do sol na praia. Os Goonies. O menino que tinha asma. Senhor dos Anéis. São Paulo, Nova York. Samambaia.

Correio elegante. Amar é… álbum de figurinhas. Julio Iglesias. Papel de carta. Legião Urbana, Kid Abelha, Elvis Presley. Tio Édio e Tia Marta.

Aquela música do Lobão: “Essa noite não/Essa noite não”.

Engraçadas as primeiras lembranças, vêm e nunca mais vão.

#7O que é para sempre?CulturaEducaçãoSociedade

Precisamos falar sobre Kevin

por Ana Paula Rocha

Um menino que mata colegas na escola em uma quinta-feira de 1999, alguns dias antes de completar dezesseis anos. O relato de sua mãe, de como entende a atitude de uma pessoa que saiu dela e a quem dedicou tempo e amor. Amor? Será que todos os seres têm mesmo capacidade de entender e absorver o amor? A maldade é uma característica adquirida ou congênita? Quanto o meio é capaz de influenciar o desenvolvimento do caráter de alguém?

Sempre achei que uma criança que cresce em um ambiente de amor, compreensão e segurança tem pelo menos 50% das ferramentas de que vai precisar (talvez sejam 80%, mas, depois do livro, tive de rever esses números). Os valores ali definidos, ou adquiridos, serão carregados para a vida e transportados para todas as relações estabelecidas no futuro: amizades, amores, filhos, netos.

Questionar o amor por um filho parece algo cruel. Somos instintivamente condicionados a amar um filho mais do que qualquer outra coisa. Eles são uma extensão de nós mesmos.

Eva e Franklyn tinham um casamento feliz. Gostavam um da companhia do outro, moravam em Manhattan, eram bem-sucedidos profissionalmente. Ela montou uma empresa de guias de viagem de baixo orçamento e viajava o mundo todo em busca das melhores recomendações. Teve contato com outras culturas e voltava para os braços de seu marido sempre renovada por seu aprendizado. Ele era um produtor de locação para comerciais de carros. Vivia contente com sua liberdade enquanto viajava pelo campo de janelas abertas, ouvindo música em sua picape, em busca do lugar perfeito.

Ela não queria ter filhos. A relação de afeto, cumplicidade, companheirismo e amor a deixava mais do que satisfeita. Não sabia se estava disposta a abrir mão desse equilíbrio. Ele queria mais. Precisava de mais. Sentia falta de poder transmitir amor para um filho, poder brincar no terraço, levar para as aulas, fazer o dever de casa e ver uma pessoa independente de você, ao mesmo tempo feita da sua própria matéria, tomar seus passos na vida.

Amor incondicional. Acho que esse é um mito e, paralelamente, um anseio de todos nós. Será que o amor de um pai é que o se aproxima mais desse ideal? Uma coisa é certa: na vida, essa é a única decisão para sempre. A ideia de que teremos uma continuidade nesse mundo é muito atraente. Nos ajuda a aceitar a morte. Nos ajuda a prezar a vida.

Kevin nasce em meados dos anos 1980. Franklyn insiste em que se mudem para uma casa fora da cidade, de modo a usufruírem das melhores escolas e de um jardim. Mais uma vez contrariada, Eva se rearranja para incorporar essa nova vida. Enquanto está em uma viagem a trabalho pela África, o marido compra uma casa que, para ela, é um pesadelo. O contrário do que considerava como lar.

Passada a tempestade, ele decidiu se afastar por um tempo do trabalho para cuidar do bebê. No período em que ela tinha viajado, tentaram algumas babás, mas nada muito duradouro. Kevin era um bebê muito insatisfeito. Urrava durante todo o dia, sem que fosse por sono, fome, frio ou dor. Nada o fazia contente. Só ela poderia assumir aquele fardo. O único momento de alívio era quando o pai chegava em casa e o menino mudava radicalmente de atitude. Ficava meigo e obediente.

Conforme vai crescendo, o comportamento diferente do menino se torna mais e mais evidente. Ele insiste em não tirar fraldas até os seis anos de idade. Não se envolve com atividade esportiva alguma, tampouco com música, filme, livro, brincadeira ou trabalho criativo. Simplesmente não tem interesses e não parece entender por que os outros gostam de coisas tão bobas.

A dificuldade de se conectar com esse ser faz Eva insistir em ter um novo filho. Precisa responder a si mesma sobre se é capaz de amar. Será que o problema é com ela? Mesmo com mais de quarenta anos, engravida; nasce uma menina, Celia. Dessa vez, a experiência da maternidade é diferente. Celia é uma menina adorável, que responde com sensibilidade a todos os estímulos trazidos pela mãe. Ela se encanta pelo mundo nos seus menores detalhes. Kevin não gosta muito da ideia de ter uma irmã, e apronta tudo que está a seu alcance para que essa criança não se sinta feliz.

Acho que um das coisas mais tocantes do livro é a forma da narrativa. Eva escreve cartas ao marido que está afastado. A sequência dos fatos é contada por ela. As emoções, as frustrações, a raiva e sua enorme tristeza. Sabemos que Celia e Franklyn foram afastados dela, e que agora vive uma vida simples, em uma casa pré-moldada em um subúrbio qualquer, e que mantém um emprego em uma agência de viagens da região. Ela relata sua nova vida ao marido, suas visitas a Kevin na penitenciária.

As cartas lhe servem como instrumento para entender o acontecido e qual a parcela de sua culpa na desgraça. É estarrecedor e muito, muito comovente. Apesar de sabermos que a genética tem papel fundamental na formação de um ser, é demasiado frustrante assumir que se perdeu o controle sobre uma tragédia.

Certamente esse livro não é para todo mundo.

#7O que é para sempre?CulturaLiteraturaSociedade

Freio de Mão

por Rose Klabin

medo

De acordar,
Do sono profundo.

De sentir,
De anestesiar.

Do ego,
Do alter.

Da última vez,
da que virá.

Passado, Presente, Futuro.

Da política, impunidade, desigualdade.

Do Marxismo, Capitalismo, Budismo, Turismo e Reumatismo.

Das ideologias tão enraizadas no nosso sistema educacional,
Da hipocrisia moral.

Do espelho que já não reflete.

Da desmoralização do espírito,
Da supervalorização do material,
Da degradação social.

Do passar do tempo
Do Tempo
Tic-Tac
Tic-Tac.

Puxa o freio de mão!
Que medo da velocidade…

Da fragmentação de pensamentos.

Do começo e fim – sem meio.
Do meio e fim – sem começo.
Do começo e meio – sem fim.

Para tudo porque estou com medo de esquecer de
respirar.

(junho de 2007)

felicidade – conversa com brecht

Sorriso de pai, beijo de mãe, abraço de irmão.
Voltar pra casa,
Sair de casa.
Voltar pra casa,
Sair de casa.

Dar Presente.
Sorrir, Sorrir, Sorrir.
Som de vitrola.
Céu aberto.
Feijoada, farinha de trigo, pimenta baiana.

Resoluções.
Inspiração.
Harmonia entre razão e emoção.
CRIAR sem temer errar.

Nolita numa manhã de sábado.
Warhol, Rauschenberg, Kruger.
Rollerblade no Central Park.
Portobello Market no domingo.
Rirkrit Tiravanija, Anish Kapoor, Pierre Hughes.
Retrospectiva do Fellini no BFA.
Mitte – Berlim.
A queda do Muro.

Um cego dançando.
Enzo Piazzolla
Inocência

Cadeira quebrada,
Mesa rachada.
Queijo velho,
Vinho novo.
Pannacota.

Aventura.
Dia a dia da cidade.
Escalar uma montanha
Areia da praia… deserta.

Conhecimento sem pretensão
Conquistar uma meta,
E que a meta seja simples.
Amar sem cobrar
Liberdade de expressão.
Compreender o quê?

Um banho morno.
Dançar música lenta.
Rachmaninoff à luz de vela.

Beauvoir et Sartre.
Um rabisco.
Um pedaço de papel rasgado.
Um cadarço de sapato velho
Uma caixa vazia… a ser preenchida.
Um olhar honesto.

Silêncio.

cenas urbanas

Sentada no consultório psicanalítico vejo pela janela a secura angular do horizonte paulistano.
Asfalto gasto.
Pisca-alerta e vira à esquerda.
Um beijo solto no ar.
Vozes anônimas.
Vestidos preto-e-branco.
Cores escondidas atrás do edifício de concreto cinza-escuro.
Para, anda, para, anda.
Tempo? Aonde foi?
Fazer, fazer, fazer… o que mesmo?
Jantar na casa do primo do amigo de alguém que comprou um carro importado novo.

Lá longe
Uma retrospectiva de Fellini – Roma.
Almoçar curry de barraquinha de rua na companhia de um bom livro – Delhi.
Cheiro de especiarias num bazar ao ar aberto – Istambul
Fumar um cigarro num café situado em alguma ruela desconhecida – Paris.
Sair do tube no Piccadilly Circus e baldear para Northern Line – Londres.
Máfia chinesa na Canal Street – Nova York.

A NASDAQ caiu
Outro Prozac

Medidas antiterroristas
Ninguém mais é livre dentro deste caos – nem eles, nem eu!

Verborragia intelectual
Esquerda-festiva
Gauche caviar
Champagne socialists
Tudo a mesma politicagem de bosta!
Tão canalhas quantos seus primos endinheirados

Conversemos sobre a desigualdade social e preguemos ideais socialistas – hoje à noite na vernissage regada a champagne Veuve Clicquot do artista plástico cujo nome foi citado na revista como a grande revelação do momento. Iremos todos lá, e falemos sobre a fome, a violência, da política do Cháves, do boom do etanol, das diferentes linguagens na arte contemporânea (Ah, a arte… tão chique falar disso!)

Hipocrisia moral.
Fogueira de vaidades.
Sejamos pacientes, pelo menos até o próximo quarteirão.

Alguém doou mil dólares para alguma instituição carente “famosa”.
Mentalidade filantrópica também garante um lugarzinho VIP nos círculos sociais mais requisitados.

A cidade engole e depois vomita

(junho de 2007)

ventos andarilhos

Vento que leva embora e traz de volta memórias de
Presente, passado e futuro,
Visões que se misturam num turbilhão de imagens.

Vento que leva embora e traz de volta
O gosto barato da burguesia endinheirada.

Vento que leva embora e traz de volta
O cheiro carregado de mofo do quarto de um hotel antigo
Situado numa rua sem saída do 13o arrondissement em Paris.

Vento que leva embora e traz de volta a temperatura baixa e seca
De um dia de inverno em New Hampshire.

Vento que leva embora a dor da desilusão e traz sentimentos de esperança
Para preencher o vazio.

Vento que enxuga a lágrima que escorre pela face.
Vento que molha com o beijo de um estranho.

Vento que assopra e cicatriza a ferida causada por espinhos venenosos
Encontrados em trilhas do passado.

Vento que suspira…
E neste libertador ato, transforma carimbos de um passaporte em histórias pra contar.

(agosto de 2007)

prosseguir colorindo

A fumaça do meu cigarro Free passeia.
Boca de lábios carnudos que engole meus olhos cansados – Amarelo.
Silhuetas de nicotina se desfazem na poluição
E dançam um pas de deux
Com a descarga cinzenta dos canos de carros nervosos na Marginal.
Suor amargo, rádio fora de sintonia, AM transmitindo o jogo do Palmeiras – Marrom.

Saudades lá de casa e daquela moça bonita,
Das flores entranhadas em seus cachos castanhos e
Do balançar de seus largos e fartos quadris
Carregando contra eles uma cesta de roupa suja – Laranja.
Mas e eu, o que sei sobre Teresa Batista, Gabriela ou Dona Flor? – Rosa.

Sei apenas cultivar sonhos românticos de uma existência menos sintética – Azul.

Pode ser que um dia eu esqueça de minha índole pós-moderna,
Dos meus medos condicionados pela violência urbana,
Das ansiedades alimentadas pela fome da cidade – Cinza.

Pode ser que um dia eu esqueça das luzes vermelhas dos faróis abertos e das luzes verdes dos faróis fechados – Preto.

Pode ser que um dia eu esqueça de que sentar neste café é preciso,
De que encarar esta folha é preciso,
Para que eu sinta o tempo parar.

O cigarro acabou – Branco.
(agosto de 2007)

oscar freire

Chame o segurança pelo rádio
Milkshake de chocolate suíço com canudinho de ouro
BlackBerries, I-Troços e geração torpedo
Faces plastificadas por plásticas desgastadas
Batom Chanel, sombra Dior, base Lancôme.
A bolsa “Weekend” da última coleção outono-inverno da Balenciaga
Ou será da Miu-Miu?
Tailleur Chanel – tão petit-bourgeois!

Adolescentes querendo ser gente grande (ou será gente-pequena?)
Abram alas porque eu quero passar nesse catwalk!
Escovas progressivas (que progresso?!)
Anel d’ouro branco e brilhante no dedo indicador do filho do dono de alguma nota que se leu na coluna social.
O mundo das etiquetas – tão bem-comportada essa gente!

Será que em suas maxi bags de it-grifes elas carregam ideias?
Ideias de verdade.
Será que dentro do bolso de seus manteaux de Kashmir existem sonhos?
Sonhos de verdade.

Ah! pena que eu esqueci a minha caneta Montblanc…
(junho de 2007)

carta

Amanheceu cinza e a cidade parece mais crua do lado de dentro. Quando faz cinza vemos e somos apenas contrastes, jamais nuances. Cinza dá verdade aos fatos. Pois as cores podem deformar. E as cores aqui soam como ilusões de ótica para que não vejamos realmente o que está no meio, por dentro. Quando está cinza, não. Vejo, pela janela, que tudo ganha um ritmo outro quando não escutamos o que se faz. Sinceramente, tudo parece melhor quando se olha sem escutar; imagino sons para as situações, ora música ambiente, ora um heavy metal. Sempre no volume máximo, preciso te contar: para que nunca saibamos o que eles, os que estão através da vidraça, querem dizer. Eles que passaram a legendar para se fazer entender, agora, por mim, ganham outra voz, ritmo dublado. É bom estar blindado, ‘redomado’. Passo, então, a ter uma janela de distância entre mim e os outros. Mas eu estava a te contar dos cinzas (porque você está do lado contrário, do lado de fora) que vejo agora, meio guache ou, sei lá, óleo. Mas nunca aquarela, tenho certeza. Porque nada em Nova York é delicado o suficiente para ganhar um dedo de tinta com três partes de água. Movimento indefinido para instantes indecifráveis; expressionismo concreto de cinza cimento, demão de Pollock com acabamento de Kooning. Para abstrair a ausência. Ainda é de manhã.

Carta de Hermes Galvão a Rose Klabin. Nova York,
outubro de 2011.

#7O que é para sempre?CulturaSociedade

Peso, Lânguida e Sísifo

Perplexos diante de um tempo de incertezas e mudanças, movimentamo-nos. Os lugares parecem cheios e nem por isso sentimos conforto ou segurança.

Nosso mundo ora parece ameaçador, ora divertido. Enquanto cada um cumpre sua trajetória, aproximam-se nossos personagens.

Uma mulher, feita de fios e camadas: Lânguida era seu nome.

Bela, vazia, de um andar macio que quase não pisava o chão.
&
Peso: uma criatura de massa, de cérebro enorme e seis patas, e com uma mala ocupada por montes de bagagens; sempre prevenido e tentando antever suas necessidades. Não tinha amigos, pois não os julgava necessários.

Além do óbvio, carregava amuletos porque acreditava numa sorte que nunca tivera, mas para a qual, se lhe aparecesse um dia, queria estar preparado.

E pensava em suicídio…

Aqui interrompemos nossa narrativa. Quem quiser saber mais terá de aguardar a publicação do livro e então descobrir, por exemplo, como nossos hoeróis encontram tal lenda viva.

Sísifo

Na Grécia Antiga, mais precisamente em Corinto, viveu um homem que – ao enganar os deuses e, pois, a própria morte – se tornaria um mito. Seu nome era Sísifo e diziam ser o mais esperto de todos os homens. Sua astúcia lhe rendeu uma fortuna como comerciante, até se tornar rei da bonita e próspera cidade de Corinto. Ali se produzia a mais bela cerâmica do mundo antigo, região sobre a qual os navios que vinham da península Itálica, pelo mar Adriático, eram atravessados de modo a chegar ao Egeu e continuar viagem ao Oriente.

E foi ali que Sísifo viveu, reinou e fez sua fortuna. Certo dia, andava por suas terras quando viu um pássaro carregando a linda Égina. A moça estava desaparecida, todos sabiam disso, e seu pai a procurava. Sísifo reconheceu, no disfarce do pássaro, Zeus – o chefe de todos os deuses do Olimpo. Assim, foi ao pai da moça raptada e trocou esse segredo por uma fonte de água para seu reino. Zeus ficou furioso! Como um simples mortal poderia ter a audácia de denunciá-lo?

Imediatamente, mandou Sísifo ao Hades – o mundo dos mortos. Mas ele, esperto, não se deixou vencer. Valendo-se de um truque, acorrentou Tânato, a própria morte, e voltou para o mundo dos vivos, resultando também em que, com a morte imobilizada, ninguém mais morresse nas batalhas. Irado, o sangrento deus da guerra, Ares, foi saber de Hades por que aquilo ocorria.

Descobriram então o truque de Sísifo e libertaram Tânato. O fugitivo, portanto, teria de retornar ao mundo inferior – e sua vida estaria acabada.

Sua esperteza, porém, não se esgotava e, antes de regressar, instruiu sua esposa a jogar seu corpo nu em praça pública, não lhe dedicando rito sagrado algum. A mulher, obediente, assim o fez.

Quando o astuto Sísifo novamente chegou aos mortos, convenceu o próprio Hades a que lhe deixasse retornar, uma vez que não merecera o cerimonial necessário.

Os rituais eram importantes. Se Sísifo não os recebesse, nenhum mortal os respeitaria mais – o que desmoralizaria o próprio senhor da morte, Hades. Sísifo teve de regressar aos vivos para reclamar seus rituais – apenas após os quais poderia morrer.

Mas, esperto, já traçara seu plano – e nele cabia tudo, menos o mundo dos mortos!

Assim foi: viveu até sua velhice, ali, perto de sua esposa, vendo seus descendentes, uma geração após outra, e só quando estava bem velhinho entregou-se ao reino de Hades.

A esperteza de Sísifo não passaria despercebida, no entanto, Zeus mandou-lhe um castigo terrível: para sempre empurraria uma pedra muito pesada morro acima, só para que, quando chegasse ao cume, a visse rolar para baixo. Essa foi a pena que Sísifo recebeu por enganar Zeus, querer driblar a própria morte e assim se igualar aos imortais do Olimpo.

********

O que pode significar o Mito de Sísifo? A busca – em vão – do homem pelo conhecimento? A dedicação para construir coisas e obras que perduram ou que serão destruídas? Seria o sol, que se levanta todos os dias? Uma metáfora para o empenho dos políticos em sua constante luta para chegar ao poder – uma jornada vazia e sem sentido? O esforço absurdo que fazemos – no curso de uma vida comum, em que acordamos diariamente, trabalhamos, empreendemos outras tarefas, comprometemo-nos com pessoas – mesmo sabendo que o fim será a morte?

Podemos também imaginar Sísifo como um homem conformado com seu destino?

Caros Peso e Lânguida,

Desafiei medos como um gigante, encarei a existência como algo possível e amorável. Usufruí de minha vida de jovem com toda força e vitalidade. Ah! Como era bom sentir a força de meus braços bronzeados, e como me diverti com minhas ideias e negociações, as quais me trouxeram tanto poder e dinheiro! Como era divertida a minha vida, cheia de emoções, de prazeres, de sofrimentos e de conquistas!

Tive tudo que um homem pode desejar: um casamento feliz, o amor das mulheres, prestígio político! Chorei de emoção, chorei de dor, chorei pela vitória e pela derrota. Nunca me acovardei nem temi ser roubado ou castigado. E ainda deixei no mundo descendentes, um deles ninguém menos que o próprio Odysseus! Reconheço que isso me levou à híbris e, portanto, a subestimar a força dos Olímpicos. Mas, como saber disso quando se é jovem e o mundo parece se desdobrar a seus pés e a suas ideias?

Ah, quanto se divertiu esse velho Sísifo que lhes fala agora! E como me divertia quando via meu nome falado em toda Ática, na Europa Central e até entre os bárbaros.

Meu nome saiu da boca de gente comum tantas vezes até entrar para a história, para a literatura, para a filosofia. Fui ao mundo para ser destemido como Aquiles, para celebrar cada gota de vida como Dioniso, cada grão de terra como Deméter. Meu destino se tornou uma metáfora importante para a humanidade. Afinal, o que significam a vida, o esforço e o tempo? O sol nascente e o sol poente? Minha sina de carregar essa pedra? O recomeçar todos os dias? O continuar de um trabalho, como uma linha vertical cruzando a horizontal do tempo… Na labuta existe sinceridade e um amor imenso à eternidade. Como as pessoas são tolas de subestimar os velhos: eles têm, dentro de si, dentro dessa aparência desdentada, toda a lembrança do corpo jovem, mais a memória do que viram, mais a certeza de sua finitude humana. E é com essa boca de velho que lhes falo.

Além do mais, posso ser um velho, mas me sobraram força e braço para empurrar a pedra. Não sou um deus – mas sou imortal. Reconheço que é tentadora e bela a ideia de me libertarem. Mas penso… Vivi há mais de três mil anos; vi muita coisa. O mundo se transformou enquanto eu rolava a pedra, e aqueles que pensavam na condição de Sísifo não percebiam que Sísifo sabia e via o que se passava com o mundo. Agora os problemas da humanidade parecem tão gigantescos. Afinal, o degelo polar e a mudança de clima não são tão monumentais quanto a guerra entre deuses e titãs!? E a imensa fome pela qual passa um continente inteiro, não será do tamanho daquela que se enfrentou quando Hades raptou Perséfone, e Deméter, enlutada, pôs todos os campos a secar? Vocês, esquisitos meninos de formas estranhas, têm vontade de me libertar. E a que devo ser grato? Por me darem a ideia que podem me libertar ou por me oferecerem sua imortal e valorosa amizade? Ou ainda por passarem para o mundo, mais uma vez, minha velha história?

E lhes pergunto ainda: do que querem me salvar? Qual a dor que vocês sentem ao me ver rolando a pedra?

Sísifo é homem com a pedra; se a pedra parar, Sísifo não mais existirá.

Um abraço do amigo,
Sísifo

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Eu poderia apenas dizer que sim

por Ana Bagiani

“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Apesar do Chico Buarque, de você e de mim, amanhã será outro dia. Apesar do Brasil, do Carnaval, do Natal, da guerra nos países árabes e até da paz mundial, amanhã será outro dia. Apesar dos anos, das décadas, da moda, dos terremotos e da tecnologia, o amanhã chegará. Apesar ainda do reino dos céus, da terra prometida, da ressurreição dos mortos, da vida eterna (amém), da Cinderela e do paraíso, o sol vai nascer a leste e brilhará absoluto no centro de nosso universo. E este sim, o sol, embora às vezes encoberto por nuvens, fumaça ou desgraça, despontará a cada novo dia.

Poderia dizer apenas que sim, há um infinito de possibilidades para além de nossos olhos. Que, assim como o horizonte, o que enxergamos é quase uma ilusão do limite inexistente. Também poderia dizer que, condição inerente, inexorável e irrenunciável da existência, a morte (e seu mistério) é o propulsor fundamental da vontade de viver, aquilo que torna a vida preciosa, única. Mas o que posso e vou afirmar é que, pensando no que é para sempre, só me vem à mente o que não é. Talvez minha dinâmica seja a da negação. Talvez minha lucidez seja minha maior condenação.

Diante da soberania e do esplendor do magnífico astro-rei, o que dizer da mínima e insignificante trajetória de uma vida? Hoje, 2011, acompanhamos em velocidade vertiginosa a evolução da criação da vida. E em outro canal da TV, simultaneamente, há um especial sobre a degradação de povos inteiros. Populações dizimadas, abandonadas à própria sorte, fruto da maior das mazelas: o esquecimento. Na verdade, não é privilégio dos nossos tempos a convivência de grandes avanços e enormes retrocessos. Há mais de quinhentos anos o homem europeu deu um grande salto evolutivo ao vencer o medo, superar o mar e chegar ao novo mundo. Mas este mesmo homem cometeu o maior genocídio da história. Exterminou tribos inteiras, e toda uma cultura se perdeu para sempre. Meu ponto é que, para o homem, não há limites. No que diz respeito a seus interesses, é incansável, invencível, destemido, egoísta. Até que um dia ele, este homem poderoso e absoluto, morre. Ele também morre, assim como tantos outros que morreram em seu nome ou pelas suas mãos. Herói, vilão. Tutancamon, Herodes, Siddartha, David, Moisés, Alexandre – o Grande, Julio Cesar, Jesus, Maomé, Tancredo, John Kennedy, John Lennon, Hitler, Lenin, Stalin, Fidel (ops!) – todos mortos. E, dentro de alguns anos (muitos, espero), você, leitor, e eu também estaremos.

Posto isso, a cabeça viaja em busca de sentido. O coração arrefece e logo tenta pulsar mais forte, como se quisesse garantir o bombeamento de sangue para sempre. Ah, coração… eu também queria que fosse assim. Mas não é. Então, o quê? O que habita nosso corpo que não seja perecível? O que é que há, para além do óbvio, que nos faz pensar em eternidade? Que poder é esse de ver, sentir, ouvir aquilo que já não mais existe? Seriam sinais de uma dimensão desconhecida, ou o simples desejo de ser imortal?

Contrariando todas as religiões, esoterismo e bruxaria, aposto na mente. No grande e desconhecido abismo que é o cérebro humano. O universo pessoal de cada um – sua mente – é um pedaço do grande painel holográfico em que consiste o planeta. Holografia é o princípio do todo em cada parte e, assim como o DNA (o código que nos define como somos), cada um de nós pode conter o universo, o todo. Nosso aproveitamento cerebral é baixíssimo, e um dos que melhor o utilizou desenvolveu uma teoria revolucionária para toda a história. A teoria da relatividade de Einstein abriu um caminho nunca antes imaginado e propôs possibilidades até então completamente ignoradas. Se as relações entre espaço, tempo e matéria não são mais absolutas, muitos fenômenos “sobrenaturais” podem ganhar status de eventos físicos. Assim como o bater de asas de uma borboleta na Ásia pode reverberar sobremaneira e se transformar em um tufão na América, as ondas de um som emitido há décadas, por se propagarem ininterruptamente, poderiam fazer este mesmo som ser ouvido hoje em algum lugar. Não se pode ainda comprovar. Tampouco duvidar.

Mas o que há em comum entre cada parágrafo acima é o que importa para este momento. Sim, acredito que haja algo que dure, que permaneça. Não sei se para sempre, até porque o próprio sol – fonte inspiradora para este devaneio – também pode um dia se extinguir. Mas há, de fato, uma coisinha que passa por todos os instantes, que faz com que cada coisa aconteça, inclusive este texto: a energia. E este é o ponto, a energia, seja ela do sol, da minha voz, de uma cachoeira, da dança dos índios, da música dos Beatles, do salto de um gato, da fúria do mar, da vida de um inseto, de uma planta que brota, de um bebê que nasce, de alguém que morre – esta fica. A energia que vem da transformação das coisas. De cada pequena coisa. De cada pequena coisa da grande coisa. De bom ou de ruim. Do choro e do riso. Da ação e da reação. Do gozo ao entorpecimento. Da explosão inicial ao fim de tudo. Do momento da concepção ao suspiro derradeiro. De mim e de você.

Em última instância, somos todos energia. Chame-a como quiser. Pra mim, é inconsciente. Não tem nome nem pronome pessoal. É atemporal. É o que faz com que me sinta comum, soberana, divina, profana. É o que é.

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Souvenires

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Amor Dantesco

“Era uma vez, uma nobre garotinha chamada Francesca…”

Poderíamos começar assim. Mas não se trata de uma fábula, muito menos de um conto de fadas; antes, sim, de uma história verdadeira, ocorrida durante a Idade Média, aos pés do castelo de Gradara.

Situado na costa adriática, entre a “Romagna“ e “Marche”, ali um casamento político uniu Francesca da Polenta a Giovanni Malatesta. Estamos em 1275. Francesca, filha de Guido, o senhor de Ravenna, era conhecida por sua beleza e serenidade; já Giovanni, de tão feio, era chamado de “o Aleijado”. O casamento foi arranjado para selar a paz com a família Malatesta, contra a qual o pai de Francesca estivera em guerra. Quando as famílias negociavam um acordo, Guido, por conveniência, concedeu Francesca para Giovanni, o filho mais velho de Malatesta da Verucchio, lorde de Rimini.

Giovanni era um homem culto; porém, de péssima aparência, com o corpo deformado. Guido sabia que Francesca não concordaria com o casamento, de modo que a união foi realizada por procuração, através do irmão mais novo de Giovanni, Paolo Malatesta, jovem e bonito.

Francesca e Paolo foram seduzidos pela leitura da história de Lancelote e Guinevere, e logo se tornaram amantes. Um certo dia, em setembro de 1289, Paolo foi flagrado em uma de suas visitas habituais à amada, talvez por Malatestino, seu irmão mais novo – “que traidor!” –, que então advertiu Giovanni. Este saía para Pesaro todas as manhãs, onde exercia as funções de prefeito. Neste dia, porém, fingindo manter a rotina, foi embora para logo voltar e, valendo-se de uma passagem secreta, surpreender os amantes se beijando – “um beijo casto”, como depois escreveria um grande autor. Cego pelo ciúme, o monstro atravessou-os com a espada, destruindo o elo de beleza que lhe era impossível, para que morressem num abraço do qual jamais pudessem se desvencilhar, e determinou que fossem enterrados no mesmo túmulo. Mais tarde, essa cena seria para sempre imortalizada em O beijo de Rodin. Na escultura, o livro que despertou o seu amor encontra-se na mão de Paolo.

A trágica história de luta, guerra, esplendor, poder, e, acima de tudo, amor sublime entre Francesca da Rimini e Paolo Malatesta foi imortalizada por Dante Alighieri em sua A divina comédia, no canto I, no primeiro Círculo do Inferno, em que o poeta, por meio de célebre verso, imagina encontrar os amantes ainda colados em um arrebatamento de amor “… e questi che mai da me non fia diviso la bocca mi bació tutto tremante”.

Os versos de Dante, especialmente aqueles que se referem a Francesca, merecem, indubitavelmente, a máxima consideração do ponto de vista histórico, porque escritos poucos anos depois da suposta data do acontecimento e por tratarem de famílias famosas, que comandavam o temido domínio perto de Ravenna, onde o poeta passaria os últimos anos de sua vida. Esses versos têm o valor de uma verdadeira “crônica”; ou melhor, de um ato público, que as testemunhas contemporâneas da tragédia não teriam endossado não tivessem achado no relato a mais perfeita consonância com a realidade.

Depois de Dante, inúmeros foram os poetas, dramaturgos, músicos e pintores que ligaram seus nomes à trágica morte de Paolo e Francesca. De Silvio Pellico a Byron e D’Annuncio; de Mercadanete a Mancinel; de Zandonai a Caikowski e Pierre Maurice; de Ingres a Cabanel. Se é provável que cada um tenha colocado um pouco da própria alma, e um pouco do próprio coração, nessa história, cada um a seu lugar e época, revivendo o “fatal beijo de Gradara”, não se pode dizer, contudo, que algum deles tenha violado substancialmente a primeira e original versão “dantesca”.

Interrompido e sepultado para a eternidade, o amor de Francesca e Paolo, além de imortalizado por grandes artistas, é até hoje uma história envolta em uma aura de mistério, que atrai milhares de pessoas ao castelo de Gradara.

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Votos

por Carlos Andreazza

Num sábado recente, Carol cochilou no sofá enquanto víamos algo na televisão. Fechou os olhos, encolheu-se um pouco, de lado, posicionou a mão sob o queixo, para apoiar a cabeça – de um jeito delicado que é só dela – e repousou. Tive então, olhando para ela, uma sensação de grandeza, de segurança, de conforto, de paz. Respirei fundo, absolutamente deslumbrado, e suspirei… De repente, percebi, meu mundo estava todo ali, nela, com ela, descansando, apaziguado, lindo, protegido, entregue, resolvido, reunido, intenso, puro, tão poderoso e ao mesmo tempo tão simples, tão humano; tão meu, tão nosso – e experimentei o sublime sentimento da completude, uma forma de eternidade, a sensação de que me bastava inteiro ali, com ela, para sempre: porque meu mundo, senhoras e senhores leitores deste ilustre fanzine, meu mundo é a Carol, meu mundo, meu máximo, meu melhor, onde sou melhor, onde vou além, onde posso; e tive então vontade de chorar, e de abraçá-la, e de acordá-la, de sacudi-la loucamente para declarar meu amor, de esmigalhá-la num abraço forte, desesperado, e de abrir a janela e gritar à cidade minha alegria, de rufar ao universo como a bateria do Império Serrano, de bradar aos vizinhos que ali estava um homem realizado, pleno, pronto e urgente para singrar e vencer os mares de uma vida a dois, e no entanto, quieto, comovido, zeloso, guardião, eu apenas a observei, admirado, minutos a fio, e fui completamente feliz.

Sou completamente feliz, assim como sói a quem ama e é amado, e grato – muito grato – por ter consciência deste amor.

Nas noites ansiosas que antecederam o dia em que nos casamos, ao longo das madrugadas anteriores àquele desejado dia, sempre encontrei o sono – a tranquilidade – pensando no modo como Carol descansou naquela tarde de sábado; pensando em que tudo que me interessava estava ali, tudo de que preciso, nos metros quadros de alcance do meu corpo; pensando em que as coisas são bem mais singelas e autênticas do que impõem a propaganda e a pressa; pensando em que, nos momentos difíceis do porvir, quando algo não der certo, sempre a terei, minha Carol, para dormir e despertar ao meu lado, para criar e recriar um canto nosso, só nosso, para me oferecer uma palavra de carinho e incentivo, um longo abraço ou um frondoso sorriso, um beijo, e que é assim – desse jeito – que eu quero que nossa vida siga e se renove, de um jeito tão intimamente fabuloso quanto a imagem dela cochilando no sofá, com a mãozinha de princesa acomodando a cabeça; e ora agradeço pela graça de ter a mulher cujo amor me é ao mesmo tempo calor e sereno.

É nisto que acredito, senhoras e senhores leitores deste romântico fanzine, para sempre, por para sempre; é nisto que aposto, que me aposto, por horizonte, por fé, por fim, e amanhã ainda mais que hoje – mais, mais e mais: nos valores da família, na fortuna de ter amigos e no amor de minha Carol, na generosidade de minha Carol, no jeito dela, nos detalhes dela, na pele dela, no olhar verdadeiro dela, esta mulher cuja leveza rejuvenesce e dá norte à minha existência, ao meu universo.

É nisto que creio: em voltar para casa, para sempre, para ela.

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Fêmea

por Monica Rizzoli

#7O que é para sempre?Crônica

A nossa vida já é eterna

por Bruno Hoera

Se não está mais na internet, você praticamente nunca existiu

Desde que me lembro por gente, ao conhecer uma pessoa, tenho a terrível mania de enchê-la de perguntas. Gosto de saber sobre seus filmes preferidos, restaurantes prediletos e pessoas nas quais se inspira. Pratica esportes? Qual o livro de sua vida? Me mostre suas fotos! (Eu sempre quero ver todas)!

E, depois de muito ver e ouvir, solto a pergunta final – aquela que me apontará os verdadeiros valores de cada um: se você morresse nesse exato instante e todas suas lembranças fossem deletadas da memória, qual seria o único momento que guardaria por toda a eternidade?

Um silêncio repentino sempre decorre. São poucas as pessoas que respondem no ato e com convicção.

Porém, depois que a internet apareceu como necessidade de sobrevivência humana e, com ela, as redes sociais, tudo simplificou-se. Não há mais porquê afogar alguém em pontos de interrogação. Está tudo lá! Abra o Facebook e pronto; faça sua própria análise. Veja os filmes wannabe cult preferidos, o livro pseudo-intelectual da vida, os restaurantes caros prediletos, todas as fotos das incríveis viagens e a citação brega favorita.

Sinto, entretanto, que ainda fica faltando a questão que revela os verdadeiros valores. Falta também o silêncio repentino, a resposta que demora e a não-convicção. Tudo o que se vê é tão superficial e egocêntrico quanto uma foto tirada na frente de um espelho.

De qualquer forma, ando pensando: talvez essa minha pergunta já não faça mais sentido. Afinal, na era digital, não somos só nós que escolhemos o que ficará guardado. A internet simplificou muitas coisas e complicou tantas outras.

Tudo o que, de alguma forma, compartilhamos nas nossas redes sociais não é mais nosso. Assim, o que não está mais em nosso poder não tem mais nosso controle. Na verdade, não importa se você está vivo ou morto, as coisas que fez online estarão lá independentemente de sua vontade.

Por isso, considero a internet o canal da contradição: vídeos nos fazem rir, palavras nos fazem refletir, fotos nos fazem lembrar, mensagens nos fazem chorar. E, diferentemente das fotos reveladas e das cartas escritas à mão, essas informações nunca mais serão perdidas por completo.

Nossa caixa de cartas pode pegar fogo e nossas fotos podem perder a cor. Apesar disso, se jogadas no mar da grande rede, um dia serão encontradas pelo Google dentro de garrafas de vidro, boiando entre outras infinitas informações.

Não à toa, já foram criados sites especializados em deletar tudo a seu respeito antes que vire algo para sempre. 

Estranho é pensar que, se não está mais na internet, você praticamente nunca existiu.

Por fim, caso a gente se conheça e você me pergunte qual a única lembrança que guardaria por toda a eternidade caso morresse nesse exato momento, responderia rapidamente e com toda convicção: o dia em que acessei a internet pela primeira vez e descobri que podia fazer eternos todos os meus mais incríveis momentos.

Bruno Höera é publicitário, entusiasta das mídias sociais e acredita que a evolução da humanidade está na orkutização das boas ideias.

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Mutuus

por Márcio Simnch

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Opção pela Hipocrisia

por Fernando Grostein Andrade

Muitas gerações cresceram sob o lema de que o Brasil é o país do futuro; todas, no “passado” ou no “presente”, enfrentando um mesmo obstáculo: a hipocrisia. Explico: temos uma das cargas tributárias mais altas do mundo, e não é raro irmos a um médico e ouvirmos a recepcionista perguntar – “Com nota ou sem?”. Não é raro conhecer alguém que “tem que” sonegar. Não é raro saber de uma campanha eleitoral feita com “recursos não contabilizados”. Ou encontrar um camelô vendendo DVD pirata na porta de um cinema (o que, para alguns, também resulta da alta carga tributária). Com o assunto drogas, não poderia ser diferente. E custa vidas.

Nos últimos dois anos estive à frente do documentário Quebrando o tabu, em que pude registrar um pouco do trabalho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no combate ao consenso da “guerra às drogas”. Viajamos por dezoito cidades, passando por presídios, pelo Capitólio e até por um campo de papoula das FARC. Entrevistamos 168 pessoas, de chefes de estado, como Bill Clinton, até um menino, morador de favela no alto de um morro, que nunca se envolveu com o tráfico mas que ficou paralítico em decorrência de uma bala perdida.

Um episódio, contudo, não me sai da memória: um delegado que veio me dar uma bronca “por estar fazendo um desserviço à sociedade brasileira com o filme”. Afinal, o documentário defende que dependentes sejam tratados como pacientes, e discute uma porta de acesso à regulamentação da maconha. Meses depois, esse mesmo delegado seria preso por revender armas apreendidas a traficantes. Se é inocente, não sei; mas me pareceu mais um a manifestar pura hipocrisia.

Os motivos são vários: como alguém experimentado em combate, sabe quantos jovens morrem e matam com armas de guerra no tráfico de drogas; a maioria composta de afrodescendentes – como uma visita a qualquer cadeia no Brasil (e até nos EUA) pode revelar. Ele sabe também que esses jovens integram uma engrenagem perversa, peões para uma indústria que lucra, e muito. No Rio de Janeiro, existe um depósito com mais de cem mil armas apreendidas, de carabinas da vovó a fuzis e bazucas de guerra, a maior parte usada em disputa territorial entre traficantes. O delegado sabe, pois, que dificilmente alcançaremos o objetivo da ONU: um mundo livre de drogas. Sim, existem usuários e dependentes de todas as classes sociais, cores, preferências sexuais e profissões. Apesar de ser claro que podemos diminuir o dano causado pela droga, é utópico pensar que seja possível erradicar o consumo. No entanto, a opção do delegado, e da sociedade, é pela hipocrisia; afinal, que “se danem” essas vidas perdidas: o importante é manter a moral e os bons costumes em alta. Custe o que custar.

No caso específico da maconha, a hipocrisia é maior. Segundo a revista médica inglesa The Lancet, ela é menos nociva que o álcool e o tabaco – que são regulamentados. Hoje, cada vez mais, é usada como remédio. A heroína e a cocaína já foram legais e utilizadas como tal. Mas, dado o alto grau de compulsão que provocam, foram trocadas por medicamentos mais modernos, sem esses efeitos colaterais perigosos tão apreciados por alguns. Já a maconha vai na contramão. Dezesseis estados americanos já legalizaram sua versão medicinal.

Documentei na Holanda o único centro de produção de maconha medicinal legal da Europa. Tive de assinar um contrato para nunca revelar sua localização e pude até acompanhar a inspeção do governo por qualidade farmacêutica no processo. Entra-se ali só com roupa cirúrgica estéril. A farmacologista me explicou que as aplicações do produto vão desde um simples analgésico até o estímulo ao apetite em doentes terminais ou o combate à esclerose múltipla. Já foi até usado, num passado distante, pela rainha, de modo a enfrentar cólicas menstruais, ou por George Washington, para amenizar a dor de dente. A lista de doenças contra as quais pode ser utilizado é imensa. E, para livrar o doente do risco causado por fumar, existia até um aparelhinho, o Volcano, que emitia um vapor-d’água muito quente, que passava pela maconha e produzia um vapor cannabico.

No Brasil, acompanhei a disputa de dois grandes médicos pelo direito ou não de estudar a maconha medicinal. Para um deles, grande bobagem; para o outro, proibição inquisitorial que impedia o avanço científico. Um médico, hoje, que queria estudá-la no país será preso e possivelmente terá a reputação abalada; isso, mesmo que esteja examinado uma forma de livrar as pessoas da terrível dependência do crack – como é o caso de um renomado especialista brasileiro que teve suas pesquisas impedidas.

Em Los Angeles, pude registrar uma paciente que conseguiu reduzir, de oito compridos para um, a dose de um potente e perigoso remédio para dor ao combiná-lo com maconha medicinal. Outro, com câncer, recuperou o sono e sentenciou: “Não quero que o governo decida como vou aliviar minha dor”. Mas o que era apenas uma solução para dar acesso à maconha medicinal acabou se tornando mais.

O sistema funciona assim: um médico precisa receitá-la. De posse da receita, é emitida uma carteirinha que permite portar o produto. Com a carteirinha, o paciente vai até um dispensary e pode comprar sua maconha em paz, escolhendo inclusive a variedade mais adequada a sua necessidade. O tipo “sativa” dá disposição e energia. O “indica”, sono e preguiça. E todos dão fome.

Não é necessário ser brasileiro para imaginar o que aconteceu. Uma legião de médicos charlatões apareceu, um mar de carteirinhas foi emitido e muita gente que desejava apenas “fazer a cabeça” sem ser incomodado pela polícia encontrou ali seu refúgio. A sociedade americana, óbvio, sabe disso. Hipocrisia ou pragmatismo? Será que a maconha medicinal se tornou a medida socialmente aceitável para contornar o moralismo e dar um primeiro passo rumo ao fim da guerra às drogas? Não sei, mas já começo a pensar que talvez nem toda a hipocrisia seja necessariamente hipócrita.