#10FuturoCrônicasCulturaLiteratura

A lembrança é uma coisa boa

por Léo Coutinho

A lembrança é sempre uma coisa boa, tanto no sentido de ser agradável quanto no de ser útil. Digo, uma má lembrança é positiva enquanto nos ensina o que não quereremos. Mas aqui vou falar das agradáveis, como só as memórias de infância podem ser.

Desconhecido (2011), de Theo Craveiro.

Dizem que a imaginação é na verdade a interpretação da memória. Por isso, Napoleão falou que é mais criativo quem sabe mais. E também é por isso que ninguém supera as crianças: absolutamente tudo para elas pode ser realidade. Só depois, com os filtros, é que vamos distinguindo o joio do trigo. Mas, se faz parte da infância, o joio agrada o homem.

Entre outras do século XX, a minha geração aprendeu amar e sonhar com algo que não faz sentido: motores a explosão e tudo o que os envolve, desde o cheiro até os sons, passando pela forma. Crianças urbanas, como eu fui, até na praia ou no campo desejavam os motores acima de tudo. É compreensível, dada a sedução das máquinas, a sugestão de autonomia. Mas, a rigor, tudo isso só serviu para criar dependência, e tão bruta que hoje sequer nos imaginamos livres dos carros.

Pior: a memória é tão boa que até no que tem de nojento pode confortar. Cheiro de óleo queimado, daquele vagabundo, de motor de dois tempos, das motos e das lanchas, é algo que me atrai. Misturado à gasolina, traz boas recordações, porque se dilui no meu tempo de criança, quando tudo era possível e real na minha imaginação.

Lembro-me de uma menina, a Gabriela Travaglini, filha de piloto de corrida, que, de tão aficionada, divertia-se até com WD-40, o spray anticorrosivo. Na volta dos passeios, a gente tinha de lavar as bicicletas para tirar o sal e a areia e depois bater o WD para proteger, e ela lá, divertindo-se com o aroma.

Dizem que, nas cidades mais evoluídas da Europa, estão conseguindo reverter os danos. Calçadas boas, transporte público eficiente e confortável, e as magrelas tomando o espaço dos carros no espírito das pessoas. Não sou mais criança, mas, ainda assim, esta doce realidade no meu sonho é absolutamente real.

Há alguns anos me tornei pedestre. Foi compulsório, não de propósito, mas o que de pronto me pesou como um fardo hoje considero tamanho privilégio que quase sinto pudor em publicar. E se aconteceu comigo, pode ser com todo mundo.

A minha cidade não ajuda muito. Em São Paulo, as calçadas estão péssimas, os ônibus agressivos, o metrô atrasado, e os taxis vão rareando. Bicicleta nem pensar, apesar da boa vontade daquele banco. E, mesmo assim, a minha vida melhorou muito, inclusive na busca do tempo perdido. 

Comecei a andar a pé e venho descobrindo as singelezas da vida que a infância automotiva me subtraiu. Há, em São Paulo, uma fauna e principalmente uma flora urbana surpreendentes, e a tendência é de melhora. Há a possibilidade de eu estar encantado como acontece com qualquer novidade, mas já são alguns anos de pedestrianismo e a sensação só aumenta.

Apesar da vida estar mais agressiva, de modo geral há um renascimento da simpatia. Os clássicos das casas amigas, que foram mortos pelas grades e muros, ou perderam relevância para os que ficaram dentro dos carros, como as flores na janela, as cadeiras no alpendre e os capachos desejando boas vindas, aos poucos estão voltando. As orquídeas, tão raras recentemente, já convivem tranquilamente no passeio público. A grosseria e a paranoia do arame farpado, das pontas de lança e cercas elétricas ainda predominam, mas acredito que chegaram ao auge e, de onde estão, só podem diminuir, minguar, morrer e deixar renascer uma cidade bonita e gostosa.

A esperança é onde o sonho encontra a realidade. Mas é algo sutil, que requer atenção para ser identificada. Por isso, para encontrar esperança, convém andar a pé e atento. Garanto: está por aí, basta querer encontrar. 

#7O que é para sempre?ArteFotografia

Sem título

por Rafael Levy

Após séculos de guerras, revoluções e disputas territoriais, que culminaram em nada menos do que no terror da 2a Guerra Mundial, a Europa parecia ter finalmente encontrado um caminho para o continente. Mesmo os desafios pontuais, representados tanto pela polarização da Guerra Fria quanto pela ascensão constante de grupos nacionais separatistas, não desmobilizaram a convicção em um projeto chamado União Europeia. 

Diante de um período de bonança econômica, paz política e bem-estar social, a Europa começava a desconhecer a possibilidade de mudanças profundas na sua estrutura, quando o século XXI bateu à porta. Nele, o desafio inédito de lidar com o fluxo migratório de milhões de pessoas, oriundas em sua maioria da África e do Oriente Médio, em busca de melhores condições de vida. 

Nesse contexto, Passport, do fotógrafo François-Marie Banier, é uma experiência de dar voz a essas pessoas, que são facilmente transformadas em números quando desembarcam nas fronteiras da Grécia e da Itália.

Conhecido no mundo cultural francês como escritor, ator e dramaturgo, Banier retrata os imigrantes nas ruas de Paris, de forma a evocar uma atualização visual e contemporânea de Os Miseráveis (1862), o romance clássico do seu compatriota Victor Hugo.

Concebido de forma a simular um passaporte, o livro se propõe justamente a denunciar o apagamento da individualidade daqueles que deixaram para trás suas identidades para recomeçar. A abertura, extraída da peça de Sófocles, Édipo em Colono, introduz a condição do estrangeiro, dando o tom para os versos livres de Atiq Rahimi. Escritor e cineasta afegão, Rahimi ilustra as fotografias reproduzindo a sua experiência como imigrante, após fugir de Cabul durante a guerra, nos anos 80.

Passport, de François-Marie Banier (Steidl)

Medo, preconceito, incertezas, peregrinação e busca por dignidade são alguns dos temas entregues ao caráter lírico de Rahimi. Se a experiência pessoal do afegão busca reconstituir o desejo e os sentimentos dos refugiados em território europeu, a nota final revela, por sua vez, o caráter contraditório da condição da própria Europa.

Assinada por Banier, o trecho final relembra o momento em que François se questiona sobre quem seriam esses homens, que, da noite para o dia, começaram a surgir nas ruas de Paris, ora na Place de la République, ora em frente à estação Gare de l’Est, e por vezes nas margens do Canal St. Martin. Quem são eles que ousam modificam o cenário desta França? Espelho de um continente fragmentado, em que franceses têm avós do norte da África; italianos, raízes austríacas; e alemães são filhos de turcos e húngaros, o espanto do autor está no próprio ato de ainda espantar-se com as próprias questões.

Esses homens somos nós. 


Passport
de François-Marie Banier

Steidl, 2020
72 páginas
www.steidl.de

CulturaModa

A Mão no Brasil: O tear rústico de Malhada Grande

por Juliana Ronchesel



A Mão no Brasil é uma série de reportagens originais, produzida para apresentar e valorizar histórias da manufatura e do trabalho artesanal brasileiro.

Desde os meus primeiros mergulhos no estudo de tecelagem, o que me encanta mesmo são as histórias contadas através das tramas. Por isso, quando Guto Carvalhoneto me contou sobre um grupo de mulheres tecelãs no qual há alguns anos ele abriga o projeto re.fluir*, em uma comunidade chamada Malhada Grande, no sertão da Bahia, fui logo arrumando as malas e segui.

Na estrada para Malhada, que pertence ao município de Paulo Afonso, avista-se o Rio São Francisco e de pronto sente-se o vento da caatinga alcançando. Aqui já dá para imaginar a grandeza que é esse lugar.

Chegando lá, percebe-se que em cada canto há um aprendizado, tudo ao redor convida aos pormenores. Dona São Pedro, Dona Dó, Dona Fernandina, Alice, Aline, Leia e tantas outras são mulheres seguidoras de toda uma trajetória de uma cidade onde tudo é calmaria e aconchego. É ancestralidade aos montes, da bisavó às avós, da mãe às tias, da vizinha à passante. É artesania que atravessa, do urdume aos tapetes, das tramas às redes. Dá para sentir que tecer ali é um ato de bravura. Uma maneira concreta de fortalecer a cultura local e o saber vivo das mulheres da região que, infelizmente, aos poucos, está se extinguindo com o avanço da tecnologia têxtil.

Dona São Pedro e o tear manual de Malhada Grande

Dona São Pedro, a matriarca da cidade, fez 94 anos naquele ano, era junho de 2019. Esse é o nome real que está em sua certidão de nascimento e que ficou com ela quase como uma permissão divina para reger com maestria toda sua comunidade. Ela conta que foi sua tia quem fundou os teares há mais de cem anos. O tear centenário segue ali, firme e forte, em uso. Conversando com ela, no dia de sua festança, eu era só admiração. Com ela senti amor, daquele que atravessa. Também senti uma vontade imensa em compartilhar tamanha sabedoria. Aprender com ela como trazer vida às linhas: “Sei que depois desse trabalho [os teares] nunca mais faltou dinheiro pra ninguém. Muito não, né. Mas cada qual aprendeu.”

Ouvir a voz doce de Dona Maria José, conhecida na comunidade como Dó, é se deliciar na sua maestria de pessoa que é amor por inteiro. Se eu pudesse, ficaria horas a fio de conversa com Dó. Costureira e tecelã desde os 7 anos de idade, o que não falta é causo e conhecimento de fios e meada. Nela encontrei uma voz de aconchego de quem vive para o que ama.

Nos dias de hoje, Aline é a tecelã mais nova ali, com seus 40 anos de idade, também rendeira e tece com toda sua bondade desde os 10 anos. É forrozeira de pé leve e sorriso contagiante. Ela e Dona Fernandina são as grandes tecelãs à frente da Associação. Tecem com tamanha perfeição e vigor que é de hipnotizar-se a cada manejo, em teares nos quais só se tece em dupla. Cada qual faz uma parte e, depois, dançam em conjunto. Lindo de ver.

Alice é daquelas que acalanta com umbuzada pela manhã e pede para o filho deixar um bolinho caseiro na entrada. É ela quem administra a Associação em seus horários vagos entre o trabalho no posto de saúde da cidade e os afazeres de casa. Conta que teme pelo que pode acontecer daqui para frente, pois, desde que fizeram a estrada nova, o movimento diminuiu bastante. A grande venda da artesania, além das feiras, é para os navegantes que cruzam pela estrada que corta a comunidade de ponta a ponta. Hoje, quase nunca se vê um carro forasteiro por ali.

Poderia me perder e escrever cada detalhe de cada uma das tecelãs que conheci e que atravessou aqui no peito, mas digo que, para conhecer mesmo, é uma tarefa de demorar-se por lá que vale cada escuta. Daqui de onde escrevo, imersa, respiro as lembranças dos cafés coados, com o sabor da umbuzada trazida toda manhã e o cheiro do bolo caseiro feito para a prosa do final da tarde, dos pés na terra úmida, das aventuras nas pedras rupestres e das confissões de um cotidiano tão sagrado, com elas deitadas em roda no chão gelado do salão de entrada, para refrescar.

A Associação é de mulheres que sorriem para os dali e os de longe. Para os desconhecidos e os de pertinho. Ali, transborda o poder matriarcal que mora junto a todas essas mulheres imensas. Entendi que a mulher no sertão quer mesmo é ser livre; afinal, força e amor elas têm aos montes.

Lá, senti que mergulhar no universo dessas tecelãs é criar um encontro com o sensível, é perceber seu ofício com seu verdadeiro valor – o valor de arte e da artesania. É conhecimento de repasse. O entrelaçado de fios pelas mãos delas se desloca além dos espaços físicos. É um estado de espírito em busca de troca, expansão e continuidade. É comunidade.

*re.fluir é um projeto idealizado por Guto Carvalhoneto, artista e estilista baiano radicado no Rio de Janeiro, com o intuito de ressignificar suas origens. O projeto deseja ampliar o repertório e o olhar de quem tem o mundo restrito em sua realidade árida e perdeu o brilho no convívio diário com seu ofício. Visa valorizar os saberes das tecelãs, tornando-as mentoras e educadoras de sua própria artesania. A experiência cultural imersiva permite reinvestir na comunidade local, proporcionando benefícios socioeconômicos e programas educacionais.

#6VerdeCulturaLiteraturaSociedade

O que é ser verde?

por Bruno Pesca

de Márcia de Moraes

O que é o Homem? Essa pergunta sempre esteve, ao longo da história da humanidade, no centro do que é a própria filosofia. Aristóteles disse, 25 séculos atrás, que o Homem é um animal racional. De lá pra cá, várias definições surgiram, inclusive algumas mais cínicas, como a de Fernando Pessoa, que escreveu que o Homem é um cadáver adiado. Mas, como a filosofia tem esse caráter de indagação eterna, e na agenda prática dos não-filósofos não há tempo a perder com essas coisas, algumas questões mais imediatas sobre o ser humano e, por exemplo, sua relação com a natureza ocupam às vezes o papel de pergunta-chave da existência. Por razões óbvias e merecidas, tenho achado sempre bom, ultimamente, rediscutir uma dessas questões mais provocativas: o que é ser verde?

Gisele Bündchen estampa capas de revistas em fotos na Amazônia e dá entrevistas sobre o meio ambiente. Nossa beldade máxima tem até, aliás, seu próprio desenho animado nos EUA, por meio do qual combate crimes ambientais e ensina o público infantil a preservar a natureza. Não consigo pensar em exemplo melhor para dizer que o tema está – e literalmente – na moda. Diversas outras personalidades internacionais têm investido tempo e, em alguns casos, muito dinheiro na tentativa de chamar atenção para assuntos como aquecimento global, desmatamento, poluição dos oceanos, queima exagerada de combustíveis fósseis, mau tratamento do lixo, assassinato de golfinhos etc.

Algumas abordagens são mais românticas, outras mais pragmáticas e construtivas. Não importa. O que interessa é que o debate social existe e, sejamos justos, vários resultados práticos decorrem dele. Nem sempre, porém, é fácil separar o que é de fato concreto do que é apenas retórico ou marqueteiro mesmo. Adepto da máxima de Gandhi – “seja você mesmo a mudança que quer no mundo” –, proponho, como primeiro passo, o autoexame.

Numa tentativa de me sentir mais verde, algum tempo atrás, viajei até Tuvalu, no meio do oceano Pacífico, para entender e mostrar na televisão brasileira o caso desse pequenino país, apontado como a primeira nação que desaparecerá totalmente do mapa por conta da elevação dos oceanos causada pelo aquecimento global. Assim como a equipe da qual faço parte, aprendi bastante sobre esse drama numa importante conferência global climática que acontecera em Copenhague, na Dinamarca, meses antes. Ali resolvemos que viajaríamos a Tuvalu para compreender melhor a questão, e assim fizemos. A viagem foi marcante, tanto pelo que vimos quanto, principalmente, pelo que ouvimos. Mas, entre o momento que embarquei no LAX (aeroporto internacional de Los Angeles) rumo a Tuvalu e o que pousei de volta nele, alguns sentimentos mudaram. Convicções deram lugar a incômodos, e o idealismo deu lugar à vergonha – confesso.

Durante certa época do ano, moro na Califórnia. A viagem a Tuvalu ocorreu nesse período. Entre todos que habitamos o planeta, o povo dos EUA é, notadamente, aquele que mais consome petróleo, energia, bens de qualquer tipo, úteis e inúteis. É o que mais gera lixo e o que mais polui per capita também. Se por um lado a China torna-se o maior poluidor atmosférico do mundo, por outro esse título não é fruto das demandas individuais chinesas. Nos EUA, contudo, a demanda do cidadão comum é implacável e, como diz o ditado, uma vez em Roma torna-se muito difícil não fazer como os romanos. A elevação dos mares que deixará Tuvalu submersa é atribuída ao aquecimento global, e esse, por sua vez, estaria relacionado ao comportamento humano. O sul da Califórnia, símbolo maior do american way of life, tem, por exemplo, mais carros do que habitantes, o que, entre outras mil coisas, ilustra muito bem essa atitude.

Um amigo em Los Angeles pagou quase duas vezes o preço de seu carro para que fosse um modelo híbrido, ou seja, com propulsão elétrica. “Não quero mais queimar tanto petróleo”, disse. Automóveis híbridos têm sido vistos cada vez em maior número na cidade, e é claro que, num lugar que respira imagem e aparência, a referência das celebridades engajadas com meio ambiente impulsiona o consumo green. Isso não parece ruim, pelo contrário. Mas será que faz mesmo sentido, do ponto de vista ambiental, optar por carros elétricos num país em que a energia termoelétrica tem origem no carvão? 

O carvão contribui em muito para o efeito estufa e para o drama de Tuvalu. Além disso, contém componentes chamados de sulfetos, que, em contato com o ar, formam substâncias que contaminam os lençóis freáticos. É, portanto, altamente poluidor, e nada que lhe é associado deveria ser chamado de green. Os carros elétricos dependem de energia elétrica, que, em boa parte do mundo, depende de carvão mineral. Esse detalhe um tanto óbvio é surpreendentemente desconhecido por pessoas supostamente educadas. É evidente que automóvel elétrico é bom, mas não há milagre: ir sozinho até um coffe shop dirigindo uma Yukon de quase duas toneladas, hábito típico da Califórnia, é sempre a-testar alienação ou indiferença ambiental. A não ser que o sistema de propulsão seja aquele igual ao do desenho dos Flinstones, em que se impulsiona o veículo por meio dos pés no chão.

Numa era em que os países emergentes e mais populosos do planeta caminham para ser o motor da economia mundial, e melhoram o padrão de vida de seus cidadãos, vale a pergunta: se centenas de milhões de pessoas tiverem recursos (seguimos nessa direção) para viver com os mesmos hábitos do cidadão do sul da Califórnia (o que parece ser a intenção das agências de marketing), será que o planeta sustenta? Não é, então, uma questão de dinheiro. Não é porque você possui dinheiro de sobra para pagar sua conta de luz que tem o direito de deixar o ar-condicionado ligado ao sair de casa, de modo a encontrar o ambiente agradável quando voltar. É como comprar comida fresca para jogar no lixo. Essas noções básicas de civilidade são bem assimiladas na Europa, mas ignoradas nos EUA. No Brasil e na maior parte do mundo, infelizmente, o padrão aproxima-se mais do estadunidense. Não é raro, numa manhã de sábado no Rio de Janeiro, por exemplo, assistir a todos os porteiros de prédios da zona sul “varrerem” suas calçadas com mangueira d’água e lhe gastarem (enquanto conversam sobre futebol) centenas de litros apenas para empurrar uma única folha de árvore até o bueiro – entupindo-o, aliás. Em países como a Inglaterra, enquanto isso, uma atitude dessas leva os vizinhos a chamarem a polícia.

Voltando à autocrítica, um outro hábito que me condena, além do de levar a caminhonete ao Starbucks, é o número excessivo de viagens de avião. Depois da ida a Tuvalu, meus companheiros e eu resolvemos neutralizar nossas pegadas de carbono calculando quanto teríamos emitido para chegar lá e plantando árvores que o compensassem. Fizemos isso. Mas, numa análise posterior, percebi que teria de plantar a Floresta da Tijuca inteira para sustentar meu estilo de vida de forma neutra em carbono. Viajar e descobrir o mundo por si mesmo é ótimo, e seria ótimo para o mundo, em diversos pontos de vista, se mais e mais jovens pudessem fazê-lo. Mas não do ponto de vista ambiental, certamente. Alguém poderia dizer que estou sendo severo demais; porém, dados são dados.

Precisamos ser capazes de avaliar nosso papel no mundo, e colocar o que sabemos acima de qualquer propaganda comercial. Cuidado com a propaganda. Se nem mesmo um cara que vai até Tuvalu – e posa de mocinho por isso – é, na prática, 100% inocente… O importante é ao menos tentarmos, com mais inteligência e esforço, seguir aquela máxima de Gandhi. 

Caso contrário, é a definição de Aristóteles sobre o Homem que parece não fazer sentido algum.

ArquiteturaCidadesDesign

Arquitetura Rural e os novos modelos de vida

por Revista Amarello

Fazenda da Boa Fé

Idealizada como a expressão de uma concepção de vida, a Arquitetura Rural busca soluções para integrar o mundo rural aos desafios atuais.

Leia a conversa com a arquiteta e fundadora Martina Croso Mazzucco

Normalmente, pensamos a arquitetura como um termo associado ao mundo urbano. O que é a Arquitetura Rural e como ela nasceu?

A “arquitetura rural” é uma expressão da minha pessoa, porque eu sempre fui muito ligada à natureza, à biologia, sempre gostei muito de estudar as plantas, os animais, o céu, a água, o solo, e, quando eu comecei a estudar Arquitetura, percebia que ela não ia até esse ponto. Na Arquitetura se fala muito sobre bem-estar social, sobre as dimensões humanas, sobre conforto ambiental da construção, mas a gente não amplia isso para como criar essa ponte de integração entre as pessoas e o ambiente natural, o mundo natural, ou como a arquitetura se integra a isso, porque ela não é – ou não deveria ser – uma cápsula isolada do resto do planeta. Então, como pensamos esse fluxo entre esse o ambiente construído e o meio biológico? E também pensando nas pessoas que vivem nesse espaço, porque acredito que as pessoas constroem seus pensamentos, seus valores, seus sentimentos, muito a partir do ambiente que elas habitam. Como que a gente incentiva isso, para as pessoas se integrarem melhor, ou se verem mais como parte da natureza? Foram essas as minhas primeiras reflexões logo que entrei na Arquitetura: que ambientes estamos criando? Essas reflexões me levaram a elaborar a estrutura teórica da Arquitetura Rural. Eu sempre vivi muito o ambiente natural, seja com a minha família, seja com o esporte. Há dez anos, comecei a frequentar a Serra da Mantiqueira e passei a perceber como a Mantiqueira estava mudando em decorrência da visitação de turistas – e o que são essas casas turísticas que ocupam a paisagem natural de repente, de uma forma um pouco congelada, sem um desenho que reflita a complexidade do ecossistema. Um dos motivos disso é porque temos poucos especialistas focados em desenhar o território rural. A partir dessas reflexões, entendi que queria desenvolver uma arquitetura voltada à propriedade rural como um todo. Fazemos o projeto de reflorestamento, restauramos as nascentes, criamos um sistema agrícola vivo, que respeite o solo, que respeite a biologia, e a arquitetura é um reflexo disso, dessa integração. A arquitetura precisa vibrar essa intenção de integração.

Existe um termo dentro da arquitetura para lidar com o mundo rural? 

Não, não existe. O nome Arquitetura Rural nasceu de uma forma quase ingênua, porque veio de uma arquitetura que tinha vontade de trabalhar com a área rural. Mas eu sinto falta também desse termo, um conceito de “ruralismo” que pudesse dialogar com o urbanismo. Na faculdade, o mais próximo disso era a arquitetura vernacular, que é a arquitetura dos povos, digamos assim. É a arquitetura feita pelas pessoas, sem o auxílio dos arquitetos, o que significa ser basicamente o que vemos no planeta inteiro fora das cidades: arquitetura indígena, arquitetura islâmica, arquitetura dos povos inuítes, etc. Nessa arquitetura, é possível perceber uma integração muito forte entre o objeto da construção e o ambiente no qual ele se encontra. Isso acontece porque quem projeta a edificação é também quem a habita, então está tudo muito afinado nesse sentido. Não é alguém de fora que tem essa ideia e implementa, é a própria pessoa que, a partir da percepção das suas necessidades e da percepção do ambiente, cria isso. A arquitetura vernacular me inspirou muito na construção da Arquitetura Rural.

A Arquitetura Rural nasceu logo após você sair da faculdade?

Não. Eu me formei e trabalhei com projetos de revitalização urbana de espaços subutilizados, e abri uma ONG que se chamava Nomas com outros cinco parceiros. A gente começou com a ideia de se tornar um braço de uma ONG estrangeira que se chama Architecture for Humanity, mas o processo de representar a organização aqui se tornou muito burocrático, então resolvemos desenvolver uma iniciativa própria com a intenção de revitalizar espaços urbanos que estavam subutilizados. Durou dois anos, mas nunca me encontrei muito na cidade. As coisas não faziam sentido de uma forma tão clara. Foi quando entendi que a Arquitetura Rural era o que me motivava, isso em 2016.

Como é o processo de trabalhar em um empresa que converge conhecimentos tão independentes como arquitetura, ciência da terra e economia?

A economia é uma parte fundamental, porque desenha os espaços físicos, desenha os ambientes, sejam eles ambientes naturais ou não. Quando comecei a estudar a fundo a agricultura – e a agricultura no nosso país é uma porção enorme da nossa economia –, eu percebi que é necessário entrar no desenho econômico e nos fundamentos da economia: que tipo de economia, com base em quais princípios, em quais valores, em quais ideias de lucratividade, crescimento e expansão estamos trabalhando. Você precisa estar atento a tudo isso para entender como desenhar e materializar esses sistemas. Além disso, a grande maioria dos nossos clientes são pessoas que querem mudar de estilo de vida, em uma transição para o mundo rural, e quais os caminhos possíveis a partir daí. Então você tem que auxiliar essas pessoas a identificar e criar novos nichos econômicos nesse novo território que elas querem habitar. Em geral, são dois os perfis que nos procuram. Aqueles que estavam no mundo rural mas tinham uma cabeça mais tradicional, uma abordagem mais convencional, de agrotóxicos, monocultura e tal, e que, de repente, se viram diante de uma nova geração – por exemplo, a fazenda foi herdada pelos filhos, e os filhos começaram a trabalhar esse novo olhar, a entender que alguma coisa tinha que mudar. Assim como recebemos clientes urbanos que querem ter um novo estilo de vida e buscam isso no campo. Normalmente, esse segundo grupo tem uma mentalidade radical, que vai da forma como você se alimenta até a organização do seu dia. Por isso, eu sempre falo que esse processo é um desenho de modelo de vida. Você vai revisitar muitas coisas com os clientes – quais são os conhecimentos que você tem hoje e quais conhecimentos você precisa adquirir para manejar essa propriedade de uma forma integrada. 

Em média, quanto tempo leva essa transição?

Vou dar um exemplo. A gente está desenvolvendo o projeto de uma agrofloresta numa propriedade em Itu, que está na família há quarenta anos. Eles estavam até pensando em vender essa fazenda, mas a pandemia os obrigou a passar mais tempo nela. Isso fez com que olhassem para ela de outra forma. Eles ligaram querendo fazer um projeto pontual na casa, mas a conversa evoluiu e passou a ser sobre a propriedade como um todo. Estamos estruturando um sistema agroflorestal que será um novo sistema econômico para a família. Começamos a trabalhar com eles há seis meses, e agora eles estão lá praticamente diariamente construindo, montando a agrofloresta. Eu diria, então, que essa transição pode acontecer em uns seis meses, porque não é apenas um projeto de arquitetura. Uma coisa é idealizar um projeto, outra coisa é implantar. Na implantação de uma propriedade rural, as escalas são muito maiores, então as ações que você toma – a não ser que você seja uma pessoa com um poder aquisitivo enorme, e mesmo assim não é indicado fazer uma transformação tão brusca –, você começa aos pouquinhos. Você começa adaptando um sistema aqui, fazendo uma construção ali, regenerando uma nascente, redesenhando a estrada, restaurando a floresta. São vários projetos dentro de uma propriedade rural. É uma coisa orgânica. Porque o ideal é que você também cresça com o projeto, você também se transforme como pessoa e passe a entender o funcionamento do ecossistema. Não é como uma construção, que você entrega a chave na mão do proprietário e isso está finalizado. 

Depois de apostar no boom urbano dos anos 70, você acha que o Brasil está reencontrando o seu interior, que é a própria essência desse país tão verde e natural?

Eu acho que o planeta está passando por isso, na verdade. Você vê em várias partes do mundo as pessoas voltando para o mundo rural e se interessando por ecologia, alimentação, na própria saúde, nas práticas naturais. É um movimento mundial e no Brasil poderíamos estar vivendo isso mais intensamente, especialmente se considerarmos o potencial que temos para abraçar isso como um estilo de vida, abraçar essa biodiversidade, como caminhos econômicos reais e viáveis, vivendo isso no nosso dia a dia. Mas, sem dúvida, acho que muita coisa mudou, e isso já está acontecendo.

Você sente como se houvesse um preconceito no Brasil com esse mundo rural? Um entendimento equivocado de que ele é menos desenvolvido e sem conhecimento?

Eu vejo que o mundo rural às vezes é tomado por um conceito um pouco marginal e alternativo. Acho que são estereótipos que a gente constrói e que precisam ser revistos. Porque, por exemplo, na nossa abordagem de trabalho, não tem nada de alternativo no sentido “hippie” da palavra, sabe? Trabalhamos de uma forma muito consciente, muito precisa, muito pé no chão. A gente olha para a natureza não somente através da ótica romântica, mas tentando entender o valor biológico dela, para a nossa sobrevivência, para a estabilidade do planeta. Talvez falte desmistificar o lado romântico disso e ver como uma coisa do nosso dia a dia mesmo. Eu vejo que as novas gerações estão chegando com outro olhar, com uma visão de muito mais naturalidade para esse assunto. Falar sobre natureza no dia a dia é normal, biologia não é uma disciplina à parte, é tudo que a gente vive. Então acho que isso deve estar cada vez mais integrado às nossas conversas, aos assuntos que a gente lê e pesquisa e entra em contato, na mídia, não só no setor de ciência do jornal, mas como um assunto que encontramos nas notícias, assim como cinema e arte.

Projeto Cabana OCA

Além da arquitetura vernacular, quais as principais referências para montar a Arquitetura Rural? 

A arquitetura islâmica tradicional, com sua estética detalhista e diversidade de materiais, sempre me chamou a atenção. Em seguida, me deparei com a arquitetura islâmica rural e passei a estudar muito as estruturas feitas de terra. Como trazer conforto ambiental para construções no meio do deserto? Como captar e utilizar a água em ambientes extremos? Passei a estudar também a arquitetura indígena, que foi referência para um dos nossos projetos, a Cabana OCA; e a arquitetura dos inuítes, que vivem no ártico, seus iglus e como eles trabalham a questão térmica dentro de construções de gelo. Além dessas referências, a permacultura é uma base teórica fortíssima dentro do nosso trabalho, porque ela faz a integração das várias disciplinas no desenho do território e na construção de modelos de vida. Estudei também ecologia – ecologia pura, processos biológicos e processos hídricos. A verdade é que combinei vários conhecimentos que se prestam a entender como as pessoas de diferentes partes do mundo, fora das cidades, fora do ambiente pós-industrial, vivem, produzem seus alimentos, se organizam socialmente e constroem suas casas. 

Quais são as principais tecnologias utilizadas nos projetos? 

Do ponto de vista do planejamento, trabalhamos muito com desenhos de sistemas hídricos e tecnologias biológicas. Pensamos como a integração da vegetação com o relevo e com a água pode produzir um ambiente de qualidade; como o consórcio entre plantas vai contribuir no aumento e na potencialização do sistema agrícola, por exemplo – isso é uma tecnologia, no sentido de que é um entendimento de como esses componentes naturais se integram e potencializam esses espaços. Do ponto de vista construtivo, a gente procura muito trabalhar com tecnologias de construção de terra ou madeira. E no aspecto mais tradicional, utilizamos o ArchiCAD, trabalhando com o planejamento em 3D da propriedade. Fazemos muitos desenhos a mão, muitos registros fotográficos, muita análise de dados de satélite e estudos de referências bibliográficas.

No contraponto dessa ideia de tecnologia, há algum saber ancestral envolvido e praticado?

Muitos, pois fui aprendendo no dia a dia, estudando e conversando com as pessoas. Eu acho que você nunca aprende tudo na sua área de atuação. Pelo menos eu percebi isso trabalhando com arquitetura rural, que a gente é muito interdisciplinar e multidisciplinar. Buscamos constantemente referências da física, biologia, ciências agrárias, economia, ciências humanas. Não poderia dizer que há um saber que fez toda a diferença. Como sempre dizemos ao apresentar a Arquitetura Rural, ela é um design de sistemas integrados. São vários sistemas pensados de forma unificada e interconectada. 

Entre os projetos, qual foi o mais difícil de ser implantado?

Certamente, o primeiro projeto foi um dos mais desafiadores. Eu estava num momento de tentar assimilar todo o processo. Apesar de saber a direção a seguir, ainda sentia uma insegurança sobre todas as ferramentas que precisaria. Além, é claro, de entender quais outros profissionais eu precisaria ter comigo para concretizar a visão de desenho integrado de uma propriedade. O projeto era o de uma propriedade rural de três hectares em São Bento do Sapucaí. Para um ambiente rural, é uma escala pequena, porém significa a transição de uma família que queria deixar a cidade para viver no campo. Quando começamos a desenhar o sistema, a área era um descampado com 30 mil metros só de passagem. Eu olhei para esse lugar e pensei, “nossa, como que a gente vai restaurar esse sistema? Como vamos criar o que eles querem – uma casa e uma pousada? Quais serão os valores dessa pousada? Qual será a experiência desse espaço?” A ideia foi construir um sistema agrícola que abastecesse a casa e a pousada, assim como uma área de reflorestamento que evoluísse para uma floresta natural. Nela, eles teriam uma área de manejo sustentável, em que viriam a utilizar a madeira de alguma forma, economicamente, no futuro. Planejamos o sistema hídrico, como a água seria captada, utilizada e reabsorvida através do sistema de esgoto. Abordamos a propriedade tanto na parte conceitual quanto na materialização da obra. No momento, estamos desenvolvendo um sistema agroflorestal para ser implantado numa região que vem passando por mudanças climáticas muito fortes, no interior de São Paulo. Atualmente, ele sofre com períodos de estiagem de seis meses e clima muito seco. O desafio desse sistema agrícola é como responder tanto às mudanças climáticas de hoje quanto às que virão. Ali, estamos trabalhando na modelagem da terra para captar a água da chuva no terreno, e a utilização de espécies que estejam adaptadas a cenários extremos. Em paralelo, pensamos no desenho social – quem serão as pessoas que vão cuidar dessa propriedade, com qual frequência e quais conhecimentos.

Onde se localiza a maioria dos projetos?

Temos um projeto no Tocantins, dois na Bahia e muitos aqui no Sudeste. Temos também um em Brasília, que foi fruto de um concurso. 

Concurso Ceilândia

Em um país com grandes diferenças econômicas, sociais e de pensamento como o Brasil, você acha que essa concepção de integração homem-natureza ainda é vista com preconceito ou desconfiança?

É uma pergunta difícil, mas eu acho que, talvez aqui, no Sudeste, tenhamos uma abertura maior para essa ideia. É possível que em outras regiões isso seja conversado mais como uma prática ancestral, ligado, quem sabe, ao fazer dos antepassados. Sinto que o Sudeste aposta nessa informação de forma mais midiática, e é provável que a concentração de poder aquisitivo ajude a levar a ideia adiante, com pessoas adquirindo propriedades e criando esses empreendimentos nos últimos anos. 

A Arquitetura Rural já pensou em operar fora do país? 

Sim, algumas vezes. Sempre comentamos um dado interessante, que é o de que as cidades e centros urbanos ocupam 3% do planeta. É um dado chocante, porque, no nosso mapa mental, as cidades ocupariam tudo, mas, no mundo real, as áreas não urbanizadas são a vasta maioria do território terrestre. Nós entendemos ser um desafio fundamental a restauração desses espaços, porque são mais de 2 bilhões de hectares degradados no mundo, algo maior que a América do Sul. E quando me refiro a degradados, quero dizer territórios em processo de desertificação, com quebras do ciclo hídrico, quebra do ciclo dos nutrientes, territórios em que as pessoas precisam migrar para sobreviver. Por ser uma profissão essencialmente multidisciplinar, a arquitetura precisa assumir para si a responsabilidade de participar de projetos que promovam uma melhora nos ambientes e na qualidade de vida das pessoas. Eu vejo a Arquitetura Rural atuando na restauração de territórios e na construção de modelos de vida mais saudáveis e mais compartilhados, colaborando um pouco para a harmonia e a felicidade de todos. 

Além dos projetos que realiza, a Arquitetura Rural também ministra cursos. Como eles funcionam?

Começamos a dar cursos em 2017, em parceria com o Instituto Terra. O Instituto Terra é a ONG do Sebastião Salgado, em Aimorés, que trabalha na revitalização e restauração da antiga fazenda da família. O instituto tem duas frentes. A produção de mudas para a restauração de nascentes na região — e eles têm um programa ambiental maravilhoso de conscientização da atuação nas propriedades da região — e uma frente educativa, que conta com um programa chamado NERE (Núcleo de Estudos em Restauração Ecossistêmica). Nessa frente, trabalham com aproximadamente trinta adolescentes durante um ano. É um programa em que eles ficam praticamente num internato, morando no Instituto Terra, e aprendem sobre diversos assuntos, como ecologia, agricultura, planejamento. Fazemos parte oferecendo um módulo de ensino sobre planejamento. A partir disso, começamos a oferecer cursos aqui em São Paulo também, na Escola de Botânica, e em algumas outras instituições parceiras. Normalmente, são workshops ou cursos de dois dias. No ano passado, realizamos um curso online chamado Introdução ao Planejamento de Propriedades Rurais. Ele é voltado para o público geral, interessado em aprender sobre o tema. Esse ano vamos lançar a segunda edição.


Saiba mais sobre a Arquitetura Rural

#3MedoCultura

Carmen: um tablado para pisotear o medo

por Roberta Ferraz

À Lilian Jacoto, pelas ruas de Sevilha

“Quando eu vos amarei?
Talvez nunca, talvez amanhã.
Mas hoje, certamente não.”

— Carmen, na ópera de Bizet,
quando abordada por jovens soldados

Sentada normalmente à espera da música, não se advinha, o estrondo, o susto, a antecâmara do grito que a percorrerá toda. Falo da ópera Carmen, composta por Bizet e estreada em 1875 no Opera-Comique de Paris, inspirado no romance de mesmo título, de Mérimée, escrita em 1845. Nesses dois minutos iniciais da ópera (experimente), nos é dado, como um tapa seco ou uma aguda queda, a brutalidade doce dessa personagem que o tempo todo canta e dança para si e para o além de si, a presença física e constante de sua própria morte.  

Nada ali é pequeno ou contido, e a maneira abrupta com a qual irrompe já anuncia o plano da obra, o lugar em que se desenrolará a trama: no picadeiro de uma tourada, no ritual antiquíssimo e trágico, dionisíaco, de fazer da vida um espetáculo de fogo, letal, em que tudo começa e termina ali – na arena, no jogo de forças, na arte de pisotear o medo e dar-se para a morte, astuta e fogosamente, no reverso absoluto da cantilena cansada da elevação moral cristã da dor culposa ou do elogio da longa vida calma, amena e sem fantasmas – a vida domada.

Antes de olhá-la, a essa grande narrativa musical que magistralmente ouvimos, gosto de, sem rodeios, ver a Carmen que se apresenta a mim: furta-cor, imagem de um labirinto vivo, pulsante, absorto com o sol dentro, completamente irrefreável, leve e perversa como uma criança, sóbria e densa como uma velha que conhece o efeito de sua ação e não choraminga pelos tropeços que sua escolha a faz pagar. É a moral do não-arrependimento, ou seja, da integridade plena à entrega do corpo e de si à ação, colhendo as consequências disso como se cantasse, alegrias ou elegias, tanto faz, Carmen canta – celebra a sua experiência –, ainda que a consequência última seja – e sempre é – a morte. Nisso vejo uma lucidez impressionante, rara, porque somada à ignição de uma vontade imperiosa; um misto resiliente de direção da vontade e de resignação. Como se Carmen, ela mesma, personificasse a alegoria da liberdade responsável, acolhida no caldo de sua especificidade: seu sexo. 

Quero tentar especificar um pouco mais a maneira como trato a ideia de ‘resignação’ aqui, e o que entendo sobre a especificidade dessa liberdade feminina em Carmen. Por resignação, penso algo muito diferente do que ronda a ideia de desistência, de aceitação vitimada. Há uma negatividade na resignação, uma tensão, que não faz do sujeito que se resigna um sujeito que simplesmente acatou seu destino e aceitou-o como prêmio ou punição. Na aceitação punitiva ou premiada há uma leve felicidade, um torpor melancólico ou mesmo uma renúncia passiva que tira o sujeito do embate e da arena. Já na resignação vejo uma lucidez da perda, uma atitude clara de que de nada adianta continuar ali, mas que mesmo assim, não se dobra perante isso, não faz disso o sinal de uma passividade, ou de uma tolerância autocomplacente perante si mesmo. A resignação não é conformista. É mais fria, mais mental, calculada. É um gesto estratégico para bem perder, o que pode ser sinal de, entre outras coisas, poder. Na ideia de resignação que quero traçar, sai-se de cabeça erguida, nem insolente, nem vitimado: apenas consciente de que se experimentou o efeito das próprias forças lançadas ao mundo. Esse é um traço fundamental da Carmen que me comove, a Carmen que gosto de olhar, a Carmen que leio. 

Outro traço que puxa o meu interesse é o fato dessa atitude bravia, de uma resignação forte, se dar numa mulher. E numa mulher que, apesar de traços solares (normalmente acentuado no caráter de heróis varonis), está inteiramente de acordo com seu corpo, está à vontade nele, ou seja, sabe e usa os seus mistérios. Não sei quantos já repararam, mas é extremamente difícil encontrar um personagem feminino nos romances literários e, principalmente, no cinema, que exponha sua opção libertária sem ter que negar ou esconder o seu corpo. As personagens femininas estão muitas vezes confinadas a esposas (a maioria esmagadora delas), amantes dependentes, pintadas com moral pejorativa (ainda a maioria) que, quando passam por um processo de individuação, ou seja, quando descobrem – tiram o véu, para si mesmas – sua presença, o fazem, normalmente, através de crise na família e no casamento. Como se o processo de individuação da mulher tivesse que, necessariamente, passar por aí. Isso pode ser compreendido como um atestado, proveniente de uma longa tradição cultural, de que estamos, ainda, sob os efeitos de representação da velha bula comportamental machista. Outro exemplo são as individuações através da completa masculinização da mulher, desde a mulher-todo-poderosa-treinada-para-ternos até a mulher-virgem, as virgens-guerreiras, como Joana d’Arc, que só puderam se individuar (no nosso imaginário patriarcal) porque mascararam sua feminilidade sem dono, sem casamento. Nada contra a opção de ninguém, adoro as virgens guerreiras, as matronas lacrimejantes, as meninas perigosas inspiradas em femmes fatales, as executivas histéricas. O que quero dizer é que, em Carmen, pode-se vislumbrar uma outra representação do feminino que se elabora em seus próprios termos, que negocia a partir de sua própria experiência: é uma mulher absolutamente sedutora, modelo arquetípico das tais fêmeas fatais, decotada e lúgubre, mas que se movimenta a partir de seu próprio centro. Em relação, como tudo que vive, mas não a partir do outro, como, normalmente, vemos a mulher ser representada. Carmen não é fruto da costela de Adão. 

Carmen parece escapar desses dois grandes esquemas (esposa e guerreira) que formam a tríplice imagem do feminino convencional (mãe, amante, virgem), que, fora de conotações patriarcais, não deixam de ser um manancial de riqueza e complexidade. Mas…já começo a tergiversar. Voltemos à Carmen. Ela é extremamente feminina no trato com seu corpo, ou seja, não esconde seus seios e sua vulva, mas, habilmente joga com eles. Com uma complexidade alta que a leva da autopercepção como toureira ao seu reverso como touro.  Assim, não se impõe como uma santa guerreira, através de sua virgindade. Pelo contrário, está mais próxima de um perfil de heroína trágica romântica, mas não daquelas que morrem de amor. Carmen se entrega, ama enquanto ama, mas está fora dos afetos oficializados ou da oficialização dos afetos (compromisso, casamento, etc). É libertária. 

O impacto da mulher toureira, que é por sua vez amante do toureiro – ou seja, a imagem da mulher que duplamente mata e dá-se à morte – fascinara Picasso que, entre os anos 1933-34 criara o ciclo ‘Toureiras’, fundindo num binômio erótico entre a mulher e o touro. Ainda depois, Picasso não hesitara em pintar, ele mesmo, em 1964, a sua Carmen, para ilustrar uma edição do romance de Mérimée. A Carmen de Picasso, inteiriça, é fortemente marcada pelo tal olhar farouche, selvagem, que, na descrição do novelista, diz “jamais ter visto noutro rosto humano, olhos de bohémien, olhos de lobo”. Ora, a meu ver, esse olhar, antes de um escudo, antes de uma faca – imagens de uma agressividade passiva ou ativa – é a imagem pontuada de uma concentração, de uma presença. A ameaça que o outro, em seu contato, diz sentir, “olhos de lobo”, não a vejo como dispositivo intencional daquele que olha, a Carmen. Muitas vezes, a sensação é de que ela não olha para fora, mas que está concentrada sobre si mesma, naquela hora em que o ser se reúne, hora de êxtase que também pode ser um espelho de uma hora de morte. Isso pode, obviamente, assustar quem olha, essa ‘possessão dionisíaca’ da presença sem medo. Bizet, intencionalmente, desloca a morte de Carmen para dentro de uma arena (diferentemente de Mérimée), logo após a morte do touro. Essa marcação aproxima ainda mais a experiência da paixão amorosa da ‘corrida’ de touros, o ritual preciso e transgressor da tourada, que sempre motivará a energia criativa do pintor espanhol. Picasso é também uma espécie de Carmen. Ou melhor, ambos, em sua virilidade e em sua feminidade – e na ambiguidade e mascaramento que esse encontro cria – são tocados por essa presença destemida, são tocados por Dioniso, ou por, quem sabe, aquilo que Nietzsche chamou ‘potência’. A própria palavra ‘carmen’ vem do latim carmina, que designa o canto, a forma rítmica e, posteriormente, o canto mágico, o encanto. Carmen canta para si mesma, e por isso encanta, nubla as coisas edificadas sobre estruturas densas, faz tudo girar, embaralha as referências, seduz, porque não teme as consequências de seu ser, responde firmemente ao seu propósito de ser livre, nem que tenha que morrer para isso. Morte jubilosa, altiva, autônoma.

Jean Baudrillard escreveu um livro provocador, Da sedução, em que elabora a ‘feminilidade’ como indistinção de peças num jogo sem razão, sem ser, sem possibilidade de concretude. Para ele, esse ‘poder’ do feminino revela-se na sedução que é mais um exercício estratégico do que uma luta com objetivos meramente sexuais. Ele diz: “A feminidade como princípio de incerteza. Ela faz vacilar os polos sexuais. Não é o polo oposto ao masculino, é o que elimina a oposição distintiva e, portanto, a própria sexualidade tal como se encarnou historicamente na falocracia masculina, tal como amanhã pode encarnar-se na falocracia feminina” . Trago esse texto porque, além de entender a liberdade como uma alta expressão sedutora, já que ela pode ser pensada como um bom drible, de corpo e raciocínio, entendo Carmen como um ser em movimento, um corpo em movimento, algo que não se pega, que não congela em tempo e espaço algum. Ela improvisa.  Ambígua, deslizante, assim como o mecanismo sedutor, que ultrapassa o argumento unicamente sexual. Aquela imagem já gasta, mas belíssima, do centro concentrado e da periferia em expansão móbil, dançante. No texto de Mérimée, essa andança é física. Carmen está, a cada página, em uma cidade diferente da Andaluzia, e exercendo ofícios distintos, tal como é de praxe na representação da mulher ‘cigana’ e da feiticeira. Lembro, por exemplo, de A Celestina, de Fernando de Rojas, escrito em 1492, já prenhe do gênero picaresco e satírico, em que a alcoviteira Celestina se desdobra em ofícios e malefícios na intenção de se aproveitar do amor de um jovem por uma jovem que lhe dificulta o acesso. Carmen vende laranjas, dança para os oficiais da guarda espanhola, é chefe de uma quadrilha de contrabando, etc. Você não sabe o que Carmen é, nem onde está. E ela está aí, à sua frente. 

Por motivos de época e mentalidades históricas, Carmen é descrita, muitas vezes, por Mérimée como uma ‘prostituta’, já que é casada e parece ser ‘usada’ por seu marido criminoso. Essa é uma leitura rasa, que evito. Como se, ultrapassando as lentes do contexto de produção da obra, vendo na personagem a figura lendária que ela viria a ser, preferisse ler, sempre, em Carmen, o gesto de recusa a enlaçar-se. Não por medo de amar – afinal, ela se entrega, sim, apaixonadamente a D. José, o que o faz perder a cabeça. Simplesmente, ela é assim. Movimento, bombas axiais, presença. Não por acaso, a metáfora dos nós e do enlaçamento percorre todo o texto da ópera, e cada vez que Carmen é presa, em segundos ela reverte a situação e está solta. Tal como Dioniso, nas Bacantes, de Eurípedes. Não se prende Carmen, todo laço é uma ilusão. 

Outra leitura ainda fundamental e contextual está na abordagem culturalista do tema, quando vemos D. José como um oficial de alta patente no exército andaluz, ou seja, símbolo explícito da autoridade oficial, versus Carmen, uma cigana sem pátria nem regimento, absolutamente à margem e causando ‘confusão’ na Espanha que se quer uniformizar a partir do Norte e não do Sul. Esse caminho de leitura é também vasto e pode muito bem vir a calhar no atual momento de exaltação dos estudos culturais.

A presença de Carmen se assemelha muito, na maneira como gosto de notá-la, a uma bela dança flamenca, bem tocada, bem dançada, intensa, que provoca um desconforto e uma emoção catártica, que provoca um tête-à-tête com seus próprios demônios. O bailador flamenco não está ali para encantar ou seduzir o outro, ele, ali, não dança para ninguém além de si mesmo, como se, exteriormente, na presença de outros (mas não para os outros) elaborasse, no espontâneo do ritmo, irrepetível, um ritual de cortes, estocadas, contornos, carinhos entre ele mesmo e sua dor. É o seu próprio terreno subjetivo que está sob a visada da sedução. Ainda quando a cena íntima do bailarino traz ao corpo a memória dos prazeres, e não de suas dores, não se trata de um autocortejo para o ego. Trata-se de insuflar a presença, não o eu. Quem está ali, habitando aquela dança, ultrapassa o esquadrinhamento do banal, do cotidiano e do profano. Como nas danças místicas, para o flamenco conta muito mais um corpo que se abra à presença do que um corpo fisicamente hábil, jovem e belo. Vê-se, muitas vezes, nas mulheres idosas, que dedicaram sua vida ao abrir-se à dança, o impacto denso e penetrante, viçoso até, desse corpo experimentado, requintado. Carmen, a meu ver, é uma dessas sacerdotisas que espantam o medo pisoteando-o. Sacerdotisa em que sol e escuro se confundem, e na qual a obra alquímica se elabora entre o vermelho e o negro, entre o vermelho e o branco. 

Pulsão controlada, olhos-adentro, precisão explosiva – jogo fatal em que se esquiva como se dança – seduzindo com o canto não exatamente o outro mas aquilo que ultrapassa a própria percepção de si, o outro de si mesmo; seduzindo assim, muitas vezes, o próprio medo. Carmen, esse tablado, essa arena – fenda destemida, oscilante entre entusiasta e resignada, fenda que não hesita, fenda que me protege, diversas vezes, dos meus embotamentos psíquicos, das minhas preguiças criativas. Como um amuleto, priápico e cheio de fertilidade, Carmen elabora essa imagem da arena em que se dança para pisotear o medo. Poema-canto de pés talhados para o risco. Com saia, leque, e castanholas. Com cabelos soltos e debaixo do sol. Entre o vermelho e o negro, entre o vermelho e o branco, num tom de rosa tocante, apaixonante, quase lilás, misterioso e fúnebre.

#2NuHQ

A natureza humana

por Fernando Dias de Souza

#1MudançaCulturaLiteratura

Meus livros

por Flávia Milioni

Flávia Milioni no peça O Quadro ou Pequeno Poema para o Fim do Mundo
foto de Renato Mangolin

Meninos do Brasil, de Ira Levin (1976)

“Espantosa aquela semelhança. Como dois grãos de ervilha. E mais espantoso ainda quando, além da semelhança de seus rostos macilentos e atitudes céticas, existe a de pais de sessenta e cinco anos e funcionários públicos, vítimas de morte violenta, com um mês de intervalo. E ainda a idade de suas mães, quarenta e um ou quarenta e dois. Como admitir tanta semelhança?

Lobo da Estepe, de Herman Hess (1927)

“Manteve o espelho suspenso diante de meus olhos (lembrei-me de uns versos infantis: ‘Espelhinho, espelhinho em minha mão’) e vi algo liquefeito e nebuloso, uma imagem inquietante voltada sobre si mesma, auto-atormentada, trabalhando em si mesma – eu próprio, Harry Haller. E dentro desse Harry Haller, vi o Lobo da Estepe, um lobo tímido, formoso, mas de olhar confuso e angustiado que ora faiscava com malignidade ora com tristeza, e essa figura de lobo corria incessante pelo corpo de Harry, como um afluente na correnteza do rio principal, com outra cor, turvo e agitado, lutando dolorido, devorando-se um ao outro para preservar a sua forma. Triste, muito triste me contemplava o lobo fugidio e meio plasmado, com seus belos e tímidos olhos.”

O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry (1943)

“- É claro que eu te amo, disse-lhe a flor. Foi por minha culpa que não soubeste de nada. Isso não tem importância. Foste tão tolo quanto eu. Trata de ser feliz. . .
Mas pode deixar em paz a redoma. Não preciso mais dela.
– Mas o vento …
Não estou assim tão resfriada… O ar fresco da noite me fará bem. Eu sou uma flor.
– Mas os bichos…
– É preciso que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas.
Dizem que são tão belas! Do contrário, quem virá visitar-me? Tu estarás longe …
Quanto aos bichos grandes, não tenho medo deles. Eu tenho as minhas garras.
E ela mostrava ingenuamente seus quatro espinhos.
Em seguida acrescentou:
– Não demores assim, que é exasperante. Tu decidiste partir. Vai-te embora!
Pois ela não queria que ele a visse chorar. Era uma flor muito orgulhosa …”

Comer, rezar e amar, de Elizabeth Gilbert (1981)

“Quando eu era pequena, minha família criava galinhas. Sempre tínhamos em casa mais ou menos uma dúzia dessas aves e, sempre que uma delas morria – levada por um gavião, por uma raposa ou por alguma misteriosa doença que dá em galinhas -, meu pai substituía a galinha perdida. Ele ia até uma granja próxima e voltava com uma nova galinha dentro de um saco. O problema é que você precisa tomar muito cuidado ao introduzir uma nova galinha no galinheiro. Não pode simplesmente jogá-la lá dentro com as galinhas mais velhas, ou estas a verão como uma invasora. O que você precisa fazer, isso sim, é colocar a nova ave dentro do galinheiro no meio da noite, enquanto as outras estiverem dormindo. Ponha-a em um poleiro ao lado das outras e saia de fininho. Pela manhã, quando as galinhas acordam, elas não reparam na recém-chegada e pensam apenas: “Ela já devia estar aqui, já que não a vi chegar.” O melhor é que, ao acordar com as novas companheiras, a própria recém-chegada sequer se lembra de que é uma recém-chegada e pensa apenas: “Eu já devia estar aqui antes…”



#36O MasculinoCulturaSociedade

O mal-estar na identidade masculina

por Juliana de Albuquerque

Em 2019, escrevi para a Folha de S. Paulo sobre o mal-estar na identidade masculina que parece moldar a política dos nossos tempos. Na oportunidade, eu tentei mostrar como, quem quer que tenha se mantido atento aos principais fenômenos políticos dos últimos anos, deve ter reparado que o debate público tornou-se aparentemente explosivo, cada vez mais a incitar a sanha de determinada parcela da população masculina por autoridade, domínio e controle.

Para a jornalista Catherine Bennett, colunista do jornal britânico The Guardian, as palavras de ordem utilizadas por políticos conservadores ao longo da campanha para o referendo do Brexit, em 2016, bem como durante o longo processo de desligamento do Reino Unido da União Europeia, exerceram um forte apelo entre os homens.

Igualmente, poderíamos dizer que os bordões da campanha de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos surtiram efeito semelhante. E que, também no Brasil, o apelo político ao tradicionalismo contou com o entusiasmo desse segmento social.

Diante destes e de outros fenômenos, a atenção da mídia voltou a concentrar-se nos homens. Só que, desta vez, ao invés de celebrar suas conquistas, buscou-se explicações para o que estava acontecendo. E, como se todos houvessem sido surpreendidos pelo desajuste de uma pessoa próxima, puseram-se a questionar com preocupação: afinal, o que querem os homens?

De lá para cá, não foram poucos os textos que surgiram sobre uma provável crise em nosso conceito de masculinidade. Muito se comentou da situação dos homens nas camadas da sociedade norte-americana que se sentiram desassistidas pelas lideranças políticas frente às consequências da crise econômica de 2008.

Em junho de 2016, o advogado e escritor J. D. Vance lançou Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis. Nesse livro, ele retrata o desespero das populações brancas em situação de indigência na região dos Apalaches, ressaltando como o desmonte da indústria metalúrgica na região teria afetado os homens que viram desaparecer, de um dia para o outro, seus empregos, o que contribuiu, dentre outras coisas, para a maior instabilidade das suas relações familiares e a erosão das tradicionais redes sociais de apoio: a escola e a igreja.

Em outubro de 2018, a socióloga Arlie Russell Hochschild escreveu para a New York Review of Books sobre a defasagem educacional dos rapazes, levando-os, muitas vezes, a incorrer em desvios comportamentais, e até mesmo crimes ou contravenções. Em dezembro do mesmo ano, os jornalistas Simon Kuper e Emma Jacobs publicaram no Financial Times uma matéria especial sobre a precária situação escolar dos garotos em países desenvolvidos. Denunciam os autores: “Eles são muito piores em leitura, estão menos propensos a frequentar uma universidade, e a liderança masculina na matemática está encolhendo (e tornando-se imperceptível em países como China e Singapura)”.

Sobre como as percepções da masculinidade impactam a vida dos jovens, uma das leituras mais interessantes de 2020 é a do recém-lançado Boys & Sex: Young Men on Hookups, Love, Porn, Consent, and Navigating the New Mas- culinity. Este livro é o resultado de uma pesquisa realizada pela jornalista Peggy Orenstein, que, em um período de dois anos, entrevistou centenas de estudantes do nível médio e universitário.

Orenstein, que fez carreira ao escrever sobre o impacto do feminismo na formação da identidade de meninas e adolescentes, chegou à conclusão de que, enquanto o horizonte de possibilidade das garotas se havia ampliado — graças ao questionamento dos tradicionais conceitos de feminilidade —, um fenômeno inverso estaria se fazendo perceber entre os garotos, para quem o ideal de masculinidade ainda é reflexo do modelo de homem da década de 1950, a incorporar qualidades como: o desapego emocional, a boa aparência e a robustez física, a desenvoltura atlética, o sucesso financeiro, a proeza sexual, bem como a dominância e a agressividade.

Para a autora, assim como as garotas com as quais tivera contato para escrever Girls & Sex: Navigating The Complicated New Language, os rapazes também parecem viver em constante estado de negociação – por um lado, tentam encarnar ideias mais atuais sobre gênero; por outro,
não conseguem abandonar antigas concepções. Orenstein também chama a nossa atenção para o fato de que, assim como no caso das meninas, os aspectos mais insidiosos do tradicional ideal de masculinidade persistiam reforçados pelas equipes desportivas, pela mídia e pela família. 45

Tal observação remete-me, uma vez mais, ao ensaio que escrevi sobre o tema, questionando se a contemporânea crise da masculinidade não seria um reflexo tardio da mesma crise de identidade que afetou as mulheres no surgimento da modernidade – esta caracterizada pelo impacto cada vez maior da ciência, dos processos de industrialização e do advento das novas tecnologias em nossas vidas, desafiando a autoridade da religião na sociedade e desmistificando antigas superstições e preconceitos. Isso gerou uma sensação de vertigem, como se já não soubéssemos mais qual de- veria ser o nosso lugar e função neste mundo, ao exemplo do que escreve o filósofo Friedrich Nietzsche ao discorrer sobre o tema da morte de Deus em A Gaia Ciência:

Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo?

Fragilizada por sua tradicional situação de reprimida, a mulher teria sido a primeira a sofrer com as reviravoltas do paradigma cultural. No entanto, em Stiffed: The Betrayal of The American Man, a escritora feminista Susan Faludi articula a hipótese de que, no século XX, a imagem que os homens faziam de si foi invariavelmente abalada pelas mudanças do antigo modelo econômico de produção para o de prestação de serviços – quando boa parte dos homens que antes se ocupavam de trabalhos pesados ou que não conseguiram se adaptar ao novo paradigma tornou-se mais vulnerável a demonstrações de ressentimento ante o sucesso de grupos anteriormente considerados submissos ou à margem da sociedade. Cumpre, assim, perquirir do futuro.

#36O MasculinoCulturaSociedade

Por que duvido da minha masculinidade

por Eugênio Bucci

A essa altura da vida (e da morte), quando o destino me concedeu o prazer de olhar para o meu passado com olhos de descoberta e de mirar o futuro sem tantas ansiedades, quando tenho uma certa aceitação das vergonhas e já não levo tão a sério a ideia de que sou especial ou bom, penso que o verso que mais me agrada em toda a extensão e profundidade do cancioneiro pátrio, da nossa música popular, é um que devemos ao gênio de Caetano Veloso: “Eu sou neguinha”.

É claro que preciso explicar melhor esse negócio – por isso, topei escrever o artigo que se segue. Às pupilas que me seguiram até aqui, rogo que não desistam. Não vou decepcioná-las de todo ao fim da curta jornada que nos aguarda.

Começo por dizer que nós, brasileiros, não somos brancos. Não apenas não somos brancos: nós não podemos sequer nos pretender brancos. Um pouco de África, ou mesmo muito, corre em nossas veias sem memórias, quero dizer, em nossas veias cujas memórias são guardadas por entidades inacessíveis às nossas vãs consciências. Mas o que mais me interessa agora não é a questão da cor, senão a questão do gênero que vem inscrita no verso “eu sou neguinha”. Aí é que mora o encanto. Eu realmente tenho dúvidas quanto às armaduras de masculinidade que emolduram aqueles que nasceram com um pênis – coisa que se deu comigo. Duvido das armaduras que nos amordaçam, que nos armam, que nos asfixiam. Eu mesmo, que me sinto gente – e de modo tão apaixonado, embora tímido – posso dizer que me sinta “homem”. Definitivamente, não sou como esses homens aí que tanto se jactam de ser homões. Eu não. O meu gênero não é o mesmo deles. A minha sexualidade não é igual à deles.

Pelo que sei de mim, digo que há tantas sexualidades quanto pessoas na face da Terra. Cada um é uma sexualidade. Cada um tem um jeito masculino e feminino de ser que é único, não é categorizável. Nessa matéria, o que mais me atrai é atirar-me. Deixe-me dizer melhor: o que me atrai é atirar-me “no acaso e amar o transitório” – para fiar-me em outro bom verso, este de Carlos Penna Filho.

No mais, se pararmos para pensar em que consiste o gênero a que chamamos “masculino”, talvez não encontremos grande coisa ali que não seja um invólucro, um sarcófago, um rótulo desprovido de espírito. Ou duvidamos disso agora, ou empenharemos mais e mais as nossas almas a emprestar vida artificial a invólucros ressequidos que não somos nós.

Tomo para mim o que Simone de Beauvoir disse sobre as mulheres: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Bem sei que a frase virou um chavão. Bem sei que os chavões são insuportavelmente insuportáveis. Bem sei que o uso indiscriminado e panfletário dessa frase de efeito – uma frase com defeito – logrou empobrecê-la e reduzi-la a uma palha morta do discurso político. Uma pena. No trecho em que a filósofa rabiscou essas palavras, no começo do livro “O Segundo Sexo”, ela carregava pensamento com ela e pretendia discutir mais o gênero do que o sexo. Ela queria dizer, e de fato disse, que é a cultura, não a biologia, que impõe o padrão de gênero, de tal sorte que a mulher só vira mulher depois de construída assim por força dos valores sociais que moldam a personalidade infantil de um ser em formação. Nas palavras de Simone de Beauvoir, “é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino”.

E por que eu, que sou um suposto homem, tomo para mim uma passagem tão ardentemente feminista? A resposta é simples: porque me ocorre que ela vale também para mim, assim como vale para as mulheres, isto é, vale para mim e para todos os homens do mesmo modo que vale para todas as mulheres. Também homem não se nasce. Também homem, torna-se. É tormentoso e sangrento o método pelo qual a civilização esculpe, com navalhas, formões e cinzéis simbólicos, o feitio do homem másculo sobre um pedaço de madeira virgem chamado criança. E esse processo não é indolor, assim como não é bom.

Ser um ser masculino é arcar com um arquétipo vazio – insisto no vazio – e pesado. Um estereótipo absurdo, porque anacrônico e ultrapassado. “Homem que é homem não chora”, canta Martinho da Vila. Ele tem razão, se o oposto de “homem” for a criança. Mas não tem razão, se o oposto de homem for a mulher. Homem chora quando perde a mãe. Todas as vezes em que perde a mãe. Mulher também. O resto é cultura.

Falemos um pouco mais de cultura. Atribui-se ao masculino uma certa agressividade perfunctória, invasiva, incisiva, que seria parte essencial da experiência humana. Tenho dúvidas. De outra parte, atribui-se ao campo dito feminino virtudes como acolhimento, abrigo, maternidade. Tenho dúvidas também. O masculino leva traços de linhas retas e ângulos arestosos; o feminino tem formas arredondadas, aconchegantes. Não sei não. O masculino encarna força; o feminino, leveza. O masculino governa; o feminino aquiesce. Ora, por favor.

A menos que se lide com essas categorias como polos de uma tensão indivisível, ou seja, a menos que se aceite que o feminino e o masculino não se apresentam sozinhos, mas sempre conjugados, como o yin e o yang, não há mais sentido – se é que um dia houve – em alguém se ver como uma península masculina ou uma baía feminina. Somos sempre as duas formas geográficas.

Eis, em suma, por que duvido da masculinidade que a mim se atribuiu. E mais ainda duvido da masculinidade que se proclama em certos brados tão em voga. A masculinidade – veja que ironia, que contradição – vem se tornando uma afetação gestual. Na onda de autoritarismos que varre o mundo se encena essa apoteose de masculinidade, com pelos como espinhos, com músculos feito aço, com armas e trejeitos alegadamente testosterônicos que, francamente, não passam de teatralizações performáticas e ficcionais.

E olhe que não me refiro apenas ao machismo, esse fator de ordenamento de discursos que nos submete a todos e a todas. Eu não me refiro apenas ao estreitamento linguístico e político do machismo, que, por vezes, pode até ser cavalheiresco sem deixar de ser machista. Eu não me refiro apenas ao machismo que oprime as mulheres e ultraja os homens que, como eu, duvidam desses padrões de masculinidade afetada, essa masculinidade exibicionista e tresloucada. Eu não me refiro, enfim, apenas ao machismo que só pode ser desmontado conforme se desmontem os enunciados peremptórios com os quais ele ergue suas fortificações. O combate ao machismo que se impõe como um grilhão sobre o que é humano (pois o machismo é desumano) só se faz por meio da costura e da descostura das palavras de que ele se serve. O machismo se enfrenta no enfrentamento dos signos. Só assim vamos nos livrando desse machismo que tantas vezes consegue nos transformar em seus agentes inconscientes (o pior do machismo aparece quando nos flagramos falando o machismo – ou pior, quando nos flagramos tendo falado o machismo por tanto tempo e tão bestamente).

Mas, além do machismo, eu quero e devo me referir à caricatura do macho que vem sendo agora convertida em signo político. É constrangedor quando nos damos conta da miséria ridícula das autoridades que “falam” em furos como se com essa palavra, “furos”, pudessem demonstrar sua superioridade fálica sobre as mulheres. Não vejo humanidade nisso. Duvido dessa hombridade funesta, um tanto escatológica. Penso que não quero isso para mim. Sinto que não tenho parte nessa barbárie dessas figuras medonhas que erguem o braço como uma cancela de quartel, que fazem cara de malvados, que se deleitam empunhando coronhas, eles, com sua vaidade ignara e seu desejo adestrado – um aterrador desejo obediente.

O que há de masculino em mim, nesta hora, diz “não”.

#36O MasculinoArtigo

O Nascimento do Homem-Todo

por Vicente Góes

Poder e Racionalidade

Existem duas grandes entidades capazes de uma transformação essencial na realidade que conhecemos, atravessada pela crise pandêmica do coronavírus. A primeira delas, já claramente nomeada no século XX, é a Complexidade. A segunda, vemos nascer hoje aos prantos na sociedade globalizada, a Incerteza, vivida como sinônimo de insegurança. Como entidades míticas, estão presentes desde o começo dos tempos, surgindo a cada Era com seus próprios nomes.

As duas grandes entidades desferem um agudo golpe narcísico no paradigma de masculinidade ainda cristalizado, que se baseia na articulação de Poder e Racionalidade. Esse masculino criou um mundo para sua morada, um conhecimento para sua expansão e uma ideia de vida para gozar de si mesmo. Fez desses dois recursos espada e escudo, martelo e prego, pena e papel. Ferramentas plasmadas nas organizações, na tecnocracia, no intelectualismo, nos poderes instituídos e suas polícias, na relação com a natureza e com dinheiro, resumidas hoje na imagem do homem branco de terno e gravata e seus análogos pós-modernos.

Por cerca de quinhentos anos, esse homem trabalhou intensamente, fazendo dos mundos, conhecimentos e vidas plurais um mundo único, um conhecimento único e uma vida única, ao ponto de ter atraído para si, o que é de toda mitologia ou soberba, sua própria ruína. Açoitadas, Complexidade e Incerteza lançam um adversário ferrenho, a subversão do que o homem buscou como qualidade: Corona simboliza “poder”, símbolo máximo do domínio sobre o mundo material. Vírus vem de virius, que significa “homem” – de onde surgem as palavras virilidade e virtude. 

Mas, como herói, esse homem fracassou retumbantemente, e, como Hidra, Complexidade e Incerteza apenas crescem à medida que as armas Poder e Racionalidade contra-atacam cada vez mais violentas. 

O Poder não pode senão reduzir a Incerteza ao contorno do nomos, do controle, do visível como matéria, conceito ou informação. Mas incerteza se faz sempre às margens, e assim, quanto mais poder, maior a marginalidade que ele produz. Das bordas da margem, no invisível e desconhecido, acena a Incerteza.

A Racionalidade não pode senão travesti-la de dedução e conjectura, fragmentando a Complexidade, dualizando a realidade – verdadeiro ou falso, risco ou segurança, sucesso ou fracasso. Mas a Complexidade mora justamente no entrecoisas, nos sentidos que atravessam as “partes” cortadas de realidade, e, assim, quanto maior a fragmentação (vide a realidade multitarefas do isolamento social em um contexto familiar), maior a Complexidade. 

Nas últimas décadas, este termo passou a significar o hype, como uma hipermetodologia que precisamos para lidar com uma hipernormalidade. Um esforço computacional – “big data” – e uma aceleração da linearidade que levanta voo – “exponencial”. Tudo como era antes, só que complexo. Como se o Tudo e o Todo não tivessem diferença. Por via das dúvidas, no elã quantitativo, ficamos com o Tudo em conotação de materialidade vantajosa, objeto direto do verbo ter. O homem-Tudo.

O problema pandêmico aciona uma atitude quase generalizada de interpretação, especulação e análise de dados de um lado e, de outro, o fechamento completo, negacionismo violento da ciência ou das possibilidades além da razão. Poder e Racionalidade, em ambas versões, fazem juntas o parto da certeza. Os dois lados pressentem a notícia de que sim, o mundo acabou. Para a arrogância reducionista do homem-Tudo, se seu mundo acaba, o mundo acaba e usamos a complexidade para farejar com pressa o que vai emergir – yes, nós temos tendências. Só podemos largar uma certeza por outra, mais atualizada.

“Emergir”, para essa masculinidade, se refere às novidades, padrões “obviamente inusitados”, kickoff da versão mais recente. O homem-Tudo já está expert no “novo normal”. “Antifrágil”, “Ágil”. Pela lente de última geração do Poder e da Racionalidade, a Vida se torna identificada com a estratégia de adaptação, resiliência, edeseja permanência através de suas atualizações.

Proteger-se na crise toma o sentido do isolamento e do acúmulo de recursos, mas ai de quem tocar nas minhas liberdades individuais – uso máscara seu eu quiser, “com quem o senhor pensa que está falando?”. Respondemos ao contexto atual com mudanças que ironicamente servem para resistirmos à transformação. Mudanças resolvem problemas, ao passo que transformações – habitar o que está entre, através e além das formas – deslocam as premissas do mundo.

As duas entidades passam a ser um problema para se resolver – o mundo V.U.C.A. –, e devemos conquistá-las criando uma certeza altamente desenvolvida ou ser derrotados, aniquilados pelo caos destruidor – antes ser engolido pelo caos que se vulnerabilizar.

Complexidade e Incerteza

Torná-las um problema é justamente o que nos obriga a uma direção única na interação com a realidade imposta: resolvê-las, planificando nossos próprios mundos.

A Complexidade, que desobedece a todos os sentidos da palavra plano, não nos coloca problemas – estes vêm de um pensamento inadequado ao seu contexto –, ela coloca a vida. A problemática da complexidade acontece quando, em vez de aceitarmos perder o posto do saber e controlar, insistimos nos sentidos que já temos para aquilo que ainda não se sabe (se oferece). “Tudo” é uma palavra estática. O homem-Tudo não consegue se deslocar para a complexidade. 

É necessário outro pensamento para descrevê-la e sustentá-la. Uma linguagem própria para a Incerteza, que aproxime a Complexidade, sem conquistá-la. “Emergir”, nessa linguagem, é como a escuta das lacunas, das fendas nascertezas. Precisamos agora mais de Sentido – uma finalidade, um ir em direção a, disposto a abertura do caminho, contendo em si o sentir, o desvelar – do que de Significado – uma correspondência fixada, nome de coisa, fechado, pretensiosa verdade –, pois o homem-Tudo carece do primeiro e excede no segundo. 

O que estamos vivendo como realidade social é flagrante dos limites de um modo de pensar e perceber a realidade. Como entidades sobre-humanas dessa mitologia contemporânea, Complexidade e Incerteza guardam uma benevolência misericordiosa uma vez arrefecido o ímpeto do homem-Tudo por Poder e Racionalidade.

As entidades não pedem necessariamente o fim desse homem, mas sua abertura. Abertura à Vida, que se torna identificada não mais à estratégia e à permanência, mas ao processo e à continuidade. Vida que não temos, mas nos atravessa; à qual não damos ordens, e sim damos passagem. Complexidade ela mesma, sem reduções interpretativas.

Proteger-se, então, como entrar em relação (mesmo que à distância), interdepender e deixar-se atravessar, compartilhar sentido mesmo que incerto. Incerteza deixa de ser insegurança quando nos ancoramos no sentido compartilhado. “O” mundo se dilui, fazendo emergir “os” mundos, e o que os pertence se torna um cosmo maior – o Todo.

Complexidade e Incerteza, escutadas pela masculinidade, falam de outro homem, o homem-Todo, cuja atividade é buscar coerências no lugar de certezas. Coerências em movimento. A orientação a uma verdade única (seja progressista ou conservadora), a um poder único, pode dar lugar à integração, à reflexão que assuma a frágil experiência de ser homem neste tempo. O homem-Todo aprende a descentralizar a si mesmo quando a multiplicidade do mundo se encontra em uma mesma atitude: escuta.

Permanência e Continuidade

A crise não pode ser escutada senão através de sua cacofonia. Poder e Racionalidade não estão dando conta e não podemos permanecer. Estamos impedidos de ser, neste momento, a demanda atendida, o problema resolvido. Não mais respondemos à realidade-problema, e sim integramos a realidade-questão. A crise transborda uma mera reorganização das coisas, um “fazer assim” em vez de “assado”, a busca apressada do “novo normal”. Inferir que há uma mensagem a ser capturada pode mesmo nos impedir de ouvi-la em sua própria voz

Ouvir. Pois a Incerteza quase nunca é algo que sabemos escutar. Pois o nascimento do homem-Todo não depende tanto da linguagem em que descrevemos esta crise quanto da linguagem em que a escutamos. Incerteza nos fala de transformação, e transformação não é uma solução de problema, mas a abertura à finitude de uma permanência. Incerteza ela mesma, sem interpretação.

A continuidade, no lugar da permanência, não fecha contornos visíveis. É processo, intuída no salto da semente ao ramo e deste ao fruto, sentida na sucessão de identidades que somos ao largo da vida e das gerações no tempo e simbolizada nos ciclos, nas espirais e toroides, mas não pode ser tomada pelo poder nem decifrada pela racionalidade.

Pode ser angustiante conviver com a diligência de não fechar contornos nas questões que vivemos, questões envolvendo identidade, destruição, morte, isolamento, finitude. Mas é justamente nessa atitude que podemos aproximar a Complexidade e quiçá aprender com ela a transferir nossa identidade ao que continua, mas não permanece.

A angústia é a marca de uma maneira de existir que intui seu fim. Esse mito, a partir da pandemia, se encerra com dois pontos, ao que segue o fim do texto e a continuidade do leitor:

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Pênis

por Veronica Stigger

Nos meus arquivos tenho quatorze páginas de pênis em várias línguas.


Veronica Stigger nasceu em Porto Alegre, em 1973, e vive em São Paulo desde 2001. Doutora em teoria e crítica de arte pela Universidade de São Paulo (USP), é autora de mais de uma dezena de livros, como Gran Cabaret Demenzial, Os anões, Delírio de Damasco, Dora e o Sol, Opisanie swiata e Sul. Por suas obras, recebeu os prêmios São Paulo de Literatura, Machado de Assis, Jabuti, Açorianos, entre outros.

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Redonda

por Bruno Cosentino

Segundo alguns mitos de origem, a criação é antecedida por uma forma circular, que representa a totalidade primordial. Somente quando o mundo é criado, se dá então o seccionamento – a diferenciação entre bem e mal, claro e escuro, céu e terra, masculino e feminino etc. Antes, portanto, está tudo contido nessa unidade redonda. O ovo é, por excelência, o símbolo dessas cosmogonias, mas não somente ele.  

No livro Os nagô e a morte, Juana Elbein dos Santos nos conta o mito do nascimento de Exú. Exú é considerado o primeiro nascido, da mãe e do pai primordiais, simbolizados pelas metades inferior e superior de uma cabaça, que recebe o nome de Igbá-odù. Os dois poderes – masculino e feminino – se comunicam e encontram equilíbrio no filho, associado, por isso, ao andrógino. O mito do andrógino tornou-se conhecido no ocidente através do discurso de Aristófanes, em O banquete1, de Platão. Ele nos diz que antes do homem e da mulher existia o andrógino, ser de duas cabeças, quatro braços, quatro pernas, que, devido à sua forma circular, se locomovia velozmente dando cambalhotas. Por isso, os andróginos eram muito fortes e pretenderam desafiar os deuses.

No amor, dizendo acto de o sagrar,
apertado o corpo do recém-nascido
no ovo solar, há ainda um outro
corpo incluído,
mas um corpo aquém
de ser são ou podre,
um repuxo, um magma,
substância solta,
com pulmões.

Luiza Neto Jorge, “O corpo insurrecto”

Andrógino, de Leonardo da Vinci

Ao saber da afronta, e com o intuito de enfraquecê-los, Zeus cortou-os ao meio – “como os que cortam ovos com cabelo”. O procedimento é rico em detalhes: “torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição” [grifo meu].

(Esse trecho me veio à cabeça quando, certa vez, trocando a fralda do meu filho, vi aquela cicatriz que começava no ânus, percorria o saco escrotal e terminava na pele que envolve a glande do pênis. Fiquei admirado, pois as tais pregas não polidas, assim deixadas por Zeus “para lembrança da [nossa] antiga condição [de andrógino]”, estavam ali, inscritas no corpo dele – eram a evidência irrefutável do antepassado ancestral. Pensei: “então, de fato, fomos um ser único e redondo, separados posteriormente em homem e mulher!”. É claro que o que se passa é o contrário: foi a partir da observação dessa marca de nascença que homens e mulheres trazem no corpo desde o nascimento que a história foi inventada para explicar o inexplicável: a criação. Mas a cicatriz do meu filho, que eu podia ver e cujo relevo podia sentir com os dedos, era por demais forte para me fazer acreditar no contrário – e aí está a pregnância encantada do mito na realidade concreta das coisas e do mundo.)  

Em manobra posterior, Zeus muda o sexo dos andróginos “para a frente – pois até então o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras.” Terminado o expediente e separadas as criaturas em homens e mulheres, as partes passaram a buscar para sempre a metade perdida. Essa é a moral da história. Como consequência disso, nutrimos algumas ilusões de retorno a esse um. A primeira se dá pelo sexo – o encaixe do pênis, que se projeta para fora, no buraco da vagina, seu receptáculo, recompõe a unidade originária –, nos corpos unidos de duas cabeças, quatro pernas e quatro braços, e através da despersonalização do gozo. Mas se dá também pela reprodução. E aqui, Platão encontra Exú. Filhos e filhas serão eternos portadores das essências masculina e feminina de pai e mãe e, portanto, necessariamente ligados à ancestralidade andrógina. 

(Ainda na barriga redonda da mãe, até a décima segunda semana de gestação, não há determinação dos órgãos sexuais no embrião, cujo desenvolvimento, a partir da mesma estrutura, se dará dali em diante, a depender da produção ou não de hormônios, e resultará no clitóris das meninas e na glande dos meninos, seu análogo. Os bebês, quando nascem, também possuem aparência andrógina — difícil dizer o sexo de um recém-nascido sem os sinais da cultura que o distinguem: brincos, cabelo, lacinhos, roupas, brinquedos etc.)

Assim, o feminino e o masculino se atraem – não se trata de gêneros, sequer de homem e de mulher, mas de energias contrárias postas em tensão em todas as pessoas, independentemente de orientação sexual ou de gênero – como desejo inconsciente de retorno à forma primeira. Impulso que liga os fios do início e do fim, como a descrever um círculo de proteção, uma mandala, ou a posição fetal em que aguardamos o nascimento dentro da barriga da mãe e na qual quedamos desamparados na hora fria da morte – quando, enfim, seremos absorvidos pela terra do planeta redondo. 

1 Todas as citações deste texto foram retiradas da edição bilíngue de O banquete, com tradução de José Cavalcante de Souza, pela Editora 34, de 2016.
#36O MasculinoArteCinemaDesignEstiloModa

A moda como a radicalidade da identidade

por Bianca Coutinho Dias

O filme Identidade de nós mesmos, de Wim Wenders, adentra o mundo da criação do estilista Yohji Yamamoto e promove um encontro do cinema com a moda. Saltando de um universo encerrado numa subserviência cega para um mundo vivo e pulsante em que se cria e recria o vestir – que é história, semiótica, linguagem, encontro –, reflete e analisa as configurações imagéticas do corpo no contemporâneo.

A obra retrata a moda mostrando sua possibilidade como campo do pensamento, onde algo atravessa e marca as subjetividades e o gesto que se inscreve na experiência com o outro. A forma como nos relacionamos com os signos do vestir dão pistas de nossas identificações e, no mundo contemporâneo, delineiam uma relação não somente estética, mas também ética.

Yohji Yamamoto é alguém que persegue a elegância radical pensando a arquitetura do corpo e do espaço, desestabilizando ideias fixas que rompem com a lógica discursiva opressora. A moda, para o estilista, é mediadora do encontro com o enigma das coisas, um mais além das significações parasitárias de elegância que só flutuam na superfície. Na sua criação, a moda é uma poética. Entre dobras, assimetrias, proporções inusitadas, corpos diversos, é uma linguagem que pode dar vida à mobilidade e fazer viajar, deslizar, peregrinar fronteiras, perder referências fixas, aportar em terrenos inseguros, esbarrar limites, tocar em nossa capacidade individual e coletiva de descortinar novas formas de habitar o corpo.

O encontro com Yamamoto revela que a moda pode ser o avesso das certezas e criar um grau de desestabilização necessária à reinvenção de si. São reflexões que nos possibilitam apreender o corpo como um território impossível de ser delimitado, já que este se modifica constantemente à medida que tentamos aprisioná-lo. É nessa riqueza corpórea, investida simbolicamente, que o trabalho se dá: um território movediço, fluido e impermanente.

Na construção da “identidade de nós mesmos”, tanto Wenders quanto Yamamoto tecem um corta-e-costura linguístico-visual, entre cores, vazios, linhas, formas, volumes, movimentos, e reiteram a ideia de Roland Barthes, da possibilidade de o sujeito, através dessa segunda pele, construir seu próprio estilo e ser capaz de tornar-se representante de si mesmo. Nessa medida, a moda torna-se capaz de produzir uma ruptura profunda no pensamento discursivo, e fazer um mergulho na irreverência absoluta, desarticulando o esquema tradicional da representação. Juntos, Yamamoto e Wenders recriam a moda, inspiram e instauram novos olhares, e a tessitura surgida desses entrelaçamentos conduz a um universo da imagem que, paradoxalmente, também a subverte.

Deparar-se com a obra de Yamamoto equivale a redescobrir algo que nem se desconfiava existir, sob as dobras do invisível de uma roupa: sua potência sígnica. Ao criar dentro de um rigoroso sistema, Yamamoto acaba por nos libertar, mostrando que as identidades e identificações são temporárias e carregam sempre algo da mais radical experiência subjetiva, que possibilita um encontro direto com o enigma de nós mesmos. 

Trabalhando entre o escuro e o claro, do preto a, no máximo, o branco, ele nos encanta com linhas eficazes, assimetrias e desconstruções quase poéticas, sustentando, em sintonia fina com sua equipe, uma espécie de marca polissêmica e ambígua, reiterando, assim, que a vida é um ato afirmativo e criativo, um ato movido pelo desejo. O que se evoca aqui, ao tratarmos de moda, são as textualidades corpóreas em que o corpo se encontra ressignificado na tênue fronteira entre o sujeito e o mundo. É onde está o signo privilegiado da vida, transitório como ela, algo que congela na fagulha do segundo e na permanente dissolução: efemeridade e eternidade. Oscilando entre os polos dessa tensão – o efêmero e o eterno – a moda acaba por constituir uma reflexão de inclinação e vocação filosófica.

O corpo proposto por Yohji Yamamoto é um corpo em suspensão de significação, um corpo vestido, perturbado e perturbador, cuja significação está sempre por vir e obriga a repensar o vestir em suas possíveis e, por vezes, ultrajantes subversões, fazendo com que a moda, ao romper com rígidos aprisionamentos simbólicos, possa inserir-se no quadro das estéticas e poéticas contemporâneas.

Win Wenders caminha com maestria com Yamamoto, no momento evanescente – entre o vestir e o despir, entre o pensamento e o ato criativo, no enfeixamento poético das esculturas têxteis, conduzindo-nos pelas dobras que ensinam sobre uma elegância aguda, que escuta o espírito de seu tempo numa relação sempre aberta e porosa com a imagem, num exercício que não separa a estética da ética, pois assim, como nos lembra Walter Benjamin, “o aspecto mais interessante da moda é sua extraordinária capacidade de antecipação”. E é importante que, em momentos de crise e redefinição do campo das trocas simbólicas, possamos estar atentos ao que veste e reveste a experiência e a relação com o mundo.

#36O MasculinoArteArtes Visuais

A Esfera Imaginal de Alex Červený

por Rodrigo Petronio

Desde a Antiguidade, artistas e preceptistas se preocupam com duas formas de imitação: a icástica (física) e a fantástica (metafísica). Como alternativa à hegemonia da pintura icástica greco-latina, o historiador de arte Jurgis Baltrušaitis (1903-1988) identificou na arte medieval um dos pontos culminantes do fantástico. Não as catedrais, a retidão românica, as ogivas e os vitrais. Mas as iluminuras, as gárgulas, os livros de horas, a planimetria, as anamorfoses, os bestiários, as tanatologias, o mundo às avessas, a carnavalização. 

Baseada em premissas metafísicas, a fantasia atravessa ordens distintas de realidade, enaltece a analogia, gira a grande cadeia dos seres e joga com o cosmos, em um louvor às metamorfoses. Não se preocupa em representar a natureza. Preocupa-se em representar o continuum da natureza. Os animais e os minerais, os vegetais e os humanos, os seres animados e os inanimados, o objetivo e o subjetivo: todas as substâncias participam umas das outras e se interpenetram neste drama divino. 

A partir dos séculos XVI e XVII, com a ascensão da perspectiva, do ponto cêntrico albertiano e daquilo que Marcel Duchamp definiu como arte retiniana, começa um novo ciclo hegemônico do icástico. O fantástico, denegado, migra para os tratados de alquimia e de magia, os livros de rebus e a hieroglifilia, as empresas e os emblemas, as teofanias heterodoxas, os labirintos de conceitos, os enigmas e os tratados de hermetismo, os gabinetes de curiosidades, as ilustrações naturalistas de uma fauna e de uma flora inexistentes, os relatos dos viajantes.

Nessa mesma época ocorrem dois fatos decisivos: a emergência do racionalismo e a conquista da América. Por isso, alguns autores identificam aqui um paradoxo fundamental. Enquanto a Europa coroa a cisão cartesiana entre sujeito e objeto, alicerce do projeto expansionista, a América se dedica a um movimento de contracolonização. Para tanto, reorganiza os signos flutuantes da fantasia e expande as fronteiras do imaginário, em poderosas operações de anacronismo deliberado (Didi-Huberman). 

Na esteira da grande arte dos séculos XX e XXI, brasileira e mundial, a obra de Alex Červený se baseia nestes dois movimentos complementares: navega na contracorrente dessa fratura entre sujeito e objeto e desbrava territórios imaginários livres, potencializados pela herança americana e pelo atavismo de uma fantasia robusta. 

Em Todos os Lugares, temos uma curadoria preciosa tanto da variedade formal quanto da riqueza imaginativa de seu universo. A exposição da Casa Triângulo abrange aspectos e fases da obra como um todo. O livro homônimo, publicado pela editora Circuito, concentra-se nas imagens e nas descrições de cidades ao redor do mundo visitadas pelo artista, intenso viajante. São visões complementares sobre o universo visual de Červený. Ambas abordam a multiplicidade de camadas e os caminhos apresentados por esta obra singular e multifacetada. 

Os lugares de Červený são entrelugares: espaços de intersecção. O grande campo vivo desses lugares-imagens relacionais é o corpo. Entendido como entidade fantástica, o corpo é orgânico, mas não biológico. É uma esfera animista de animação. O ponto privilegiado onde os seres da physis se reúnem e se dispersam, em movimentos de expansão e contração: o editus e o reditus de que falam os místicos. 

Ao enfatizar a figuração e a planimetria metafísica, desprezadas por muitos modernos, a obra de Červený ganha duplamente. Primeiro porque se vê livre para transgredir os pressupostos da ilusão realista e tridimensional. Segundo porque passa a atuar, de saída, em um espaço sem fronteiras, sem bordas e sem limites. Habita a identidade absoluta entre real e imaginário. A partir do místico sufi medieval Ibn ‘Arabī, podemos chamar essa esfera de mundo imaginal (mundus imaginalis). 

A variedade de técnicas, suportes e materiais da obra de Červený é admirável e singular na arte contemporânea. Parte da colagem, da assemblage, dos palimpsestos, das esculturas e das intervenções, passa pelos diversos tipos de gravura, incluindo clichê em vidro (cliché verre), técnica francesa rara do século XIX, e chega à pintura, à aquarela, à ilustração (Darwin, Boccaccio, Collodi) e ao desenho propriamente dito. 

Nesse sentido, o desenho pode ser visto como fio condutor do pensamento-imagem de Červený, não por acaso um exímio desenhista. Não o desenho entendido apenas como técnica, mas a linha explorada como conceito. Diferente do senso comum, a linearidade não é uma cesura, um corte, uma contenção. A linha é o prolongamento do olhar em direção ao indeterminado e ao inextenso. Em uma palavra: em direção ao infinito. 

Essa zona de indiscernibilidade linear se encontra no âmago desta obra. E se manifesta em uma de suas principais matrizes formais: a relação imagem-letra. Se as palavras e as coisas, os signos e seus referentes, a linguagem e o mundo nunca se romperam pela fratura aberta entre sujeito e objeto, um fino fio de ouro de Homero (aurea catena Homeri) conecta letra e natureza, texto e mundo, significantes e imagens, imagens e escrita. 

Por isso, corpos se fundem a letras. Letras emolduram o sexo. O umbigo aflora em um R. Um H divide o corpo de um humano. Um pênis é englobado em pleno gozo por um Q. Como queria Derrida, a escrita é anterior à fala porque a letra (gramma) é linguagem. Mas a escritura também é grama: as folhas simples da relva em que pisamos. A natureza é um livro anônimo. O mundo, uma assinatura infinita das coisas. 

Esta cosmologia singular de Červený transborda as demarcações constitutivas do texto e da textura, do grâmico e do gráfico, da granulação e da frase, da semântica e da cor. Por isso sua obra consegue operar modulações entre elementos aparentemente tão distantes quanto versos dos Lusíadas de Camões, duas gravuras de Cornelius de Bruyn (c. 1715), Aleppo e Jafa, um panfleto da revolução cultural chinesa e referências a telenovelas, a canções populares, ao cinema, à cultura pop e sobretudo aos signos circenses, um dos esteios e das principais inspirações desta arte do imaginal em estado puro. 

Jung definiu a alquimia como a linguagem do inconsciente. Červený define o inconsciente como a linguagem da arte. Por extensão, arte, inconsciente e alquimia têm em comum o fato de serem operações anímicas de pura transferência. Tudo nesses regimes é derivado, deslocado, flutuante. Não há sentido próprio. Há apenas significantes apropriados. A revelação profana da alquimia visual de Červený consiste nisso: uma misteriosa transmutação dos seres, entre a natureza e a linguagem, entre a letra e a figura, do nigredo ao albedo, rumo a uma improvável transfiguração.

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Itcoisa: Galinha de arame

por Raphael Nasralla

“Sogro rico e porco gordo: só dá lucro quando morto”.

Apesar do curioso dito popular, a história da família de seu Benedito Nascimento não segue a tradição. Seu Dito, como era conhecido, abandonou o fogão e a profissão de cozinheiro, em Campinas, para se dedicar a aperfeiçoar a invenção do sogro, seu Sebastião. Aos poucos, a forma de um pato, moldado a partir de uma cesta de arame, foi se transformando nas curvas de uma galinha, então um objeto mais útil e decorativo para armazenar os ovos.

A visão comercial do seu Benedito deu a largada para a produção artesanal das Galinhas de Arame, um objeto afetivo que desperta em nós as melhores lembranças do passado, como os momentos vividos na casa dos nossos avós e a alegria das confraternizações familiares. Tendo grande demanda na época da Páscoa, as Galinhas de Arame da família Nascimento ganharam novas cores e tamanhos, sempre preservando as técnicas e materiais originais, e agora tomam forma pelas mãos da filha do seu criador, Rosângela.

Saiba mais pelo Instagram @galinhasdearame

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Fotos de família de Gabriella Garcia

por Victor Gorgulho

O fazer escultórico é sempre uma espécie de dança entre o artista e seus materiais. Em constante negociação, conduzem um bailado ora conflituoso, ora harmônico, até uma decisão mútua em direção ao fim. Nessa dinâmica, seria ingênuo acreditar em qualquer inocência da matéria: uma vez presente, ela não se esquiva de falar, faz questão de ter voz ativa por todo o processo.

Esculpir, portanto, pode ser pensado como uma coreografia que rasga o espaço em movimentos capazes de deixar rastros de naturezas diversas. Em sua série Pilastros, iniciada em 2019, Gabriella Garcia arquiteta estruturas em gesso sobre bases de serralheria. O esqueleto, no entanto, nunca nos é visível. Quem fala, nesta dança, é a massa amorfa e inquieta do gesso, sobre a qual sobrepõem-se camadas de cor. 

Dentro da produção da artista, pouco ou nenhuma hierarquia se dá entre suportes e formatos. Assim, seus pilastros são pensados enquanto pinturas na paisagem, cujos tons de rosa, pastel, bege e afins evocam a gradação cromática dos movimentos do sol, do nascer ao poente. A coreografia diária do astro-rei no espaço sideral. 

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Em seu sentido original, a palavra coreografar pressupõe organizar os movimentos no espaço. Mas pode designar também um tipo de desenho, um movimento. Em grupo, a Foto de família de Garcia está pronta, cada integrante em sua posição demarcada, preparados para a abertura das cortinas. Em uma dança pontuada pelo gesto — pelas mãos da artista — cada escultura busca seu equilíbrio em um impreciso balé da forma. Edificam-se no espaço, rochosas, maciças e corpulentas. Leves, suaves e etéreas. Pura teatralidade e ilusão. 

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Se uma escultura é sempre um campo ampliado de possibilidades de significação, poderíamos ler os trabalhos de Gabriella Garcia como edificações fálicas, erguidas em direção ao alto. Na arquitetura greco-romana, as colunas desempenhavam o papel alegórico da força masculina, simbolizando a força dos deuses que sustentavam os templos. Os pilares eram tomados, então, como vértebras a fortalecer tais estruturas. 

Se lidas enquanto colunas, as esculturas de Garcia seriam falhas: tortas, enviesadas, retorcidas. Se está em jogo aqui certo duelo entre abstração e antropomorfia, são obras que recusam definições rasteiras, colocam em cheque qualquer desejo vão de binarização. Seriam falos em desconstrução. Falos sem fala. 

#36O MasculinoAmarello Visita

Amarello Visita: Thiago Soares

por Willian Silveira

Além da expressiva presença de palco, característica que o manteve em destaque durante duas décadas no prestigiado Royal Ballet, Thiago Soares chama atenção por outra qualidade, desta vez nada relacionada ao corpo ágil, forte e esguio, talhado à perfeição para o balé clássico. Desde o início, em Vila Isabel, quando dançar na rua era umas das tantas atividades para ocupar as tardes, até a dedicação integral e irrestrita exigida em Londres, Thiago exibe uma constante disciplina ao momento presente. A entrega consciente ao agora, traduzida nesta conversa como o mais puro amor ao processo artístico, tem sido o alicerce fundamental na trajetória de uma das mais exitosas carreiras de um bailarino brasileiro no exterior. Responsável por adicionar novas cores e texturas aos movimentos tradicionais do balé, Thiago Soares conversou com a Amarello para falar sobre as dificuldades do início da carreira, o silêncio diante da família, o potencial revolucionário da cultura e os atuais desafios da dança no Brasil.

Thiago, eu gostaria de começar recuperando o seu tempo de infância. Qual é a memória mais viva que você carrega do bairro de Vila Isabel, no Rio? 

Poxa, agora você me pegou. Em 2020, depois de ter vivido 20 anos na Europa, você me volta lá para Vila Isabel. Olha, o que me vem à mente é a 28 de Setembro, aquela avenida icônica, e certamente o som de samba da quadra da escola de Vila Isabel. Eu cresci ao som do samba de rua, do samba nas esquinas, nos bares, em um ambiente combinando essa musicalidade com os sons urbanos, das pessoas caminhando e fazendo compras. É algo bem característico. 

Em Vila Isabel você começa, junto com o seu irmão, a dançar em um grupo de dança de rua? 

Sim, foi em Vila Isabel que eu comecei. O meu irmão dançava nesse grupo de street dance e eu acabei me juntando a ele. É um grupo semiprofissional bastante sério, mas o meu irmão levava na brincadeira. 

Como foi a sua experiência no Centro de Dança Rio? 

O Centro de Dança Rio era uma escola que, na época, tinha mais ou menos 500 alunos, e entre eles não havia nenhum menino. Tenta imaginar uma escola em que a pessoa está lá para estudar exclusivamente dança, do meio-dia às nove da noite, e só tem meninas. É um sentimento muito estranho, porque você acaba refletindo, tentando entender se está no lugar certo e, se sim, que lugar exatamente é esse. 

Como o Thiago Soares de agora reconhece essa experiência do jovem Thiago? Pergunto isso porque a proporção de 500 alunas para um aluno não me parece mera questão estatística, e diz muito sobre o entendimento da dança no Brasil.

É, acho que, olhando para trás, entramos em outro aspecto. Óbvio, existe uma postura cultural em que o balé sempre esteve ligado à ideia de que não era coisa de menino. A escola ficava no Méier, uma região localizada no subúrbio do Rio de Janeiro, em que a maioria das pessoas é de classe trabalhadora. Ali, as famílias não tinham empregadas, então eram os pais que levavam os filhos nas suas atividades antes do trabalho. Qual é a probabilidade de encontrarmos um bairro assim, no Brasil, em que os pais acompanham os filhos homens no balé, naquela época? Estamos falando aqui de 21 anos atrás. Exatamente por não ser algo natural que o fato de eu estar lá, estudando balé no Méier, por minha própria conta, numa escola em que só havia meninas, me colocava num lugar bem fora da curva. 

Os seus pais sabiam do envolvimento do seu irmão com a dança de rua. Como eles enxergaram o seu movimento para o balé? 

Olha, na verdade, meus pais não tinham nenhuma proximidade com a dança por conta do meu irmão, não. Ele dançava na rua, e nós tivemos uma criação que deixava claro que o que acontecia da porta de casa pra fora era outra história. Então, o meu irmão saía pra noite, bebia, paquerava e também dançava. A minha mãe só foi saber que meu irmão dançava depois que eu era um bailarino profissional, quando mencionei isso em entrevista, porque ele não dançava profissionalmente. 

Você contou aos seus pais quando começou no Centro de Dança Rio, aos 16 anos? 

Não, não contei. Não por nada, mas, a partir dos meus 14 anos, eu estudava e depois tinha as outras atividades, ir para a rua jogar bola e bola de gude, ir para a festa junina. Eu não cresci numa geração em que contávamos tudo em casa. Minha família ficava atenta se eu estivesse me metendo em alguma furada, usando drogas ou bebendo demais, mas, fora isso, eu era criado na rua. Esse meu contato com a dança foi um processo de autodescoberta, sabe? Lembro que cheguei a comentar alguma coisa em casa, porque precisava de calça de moletom. Na época, não se usava malha, então pedi uma calça de moletom e lembro da minha mãe dizendo: “que calça de moletom o que, garoto, com um calor desses, tá maluco?”. Pensei que era um caminho para contar que dançava, mas a resposta me fez desistir da ideia. Meus pais só vieram a saber da dança quando eu tinha 18 anos. 

Chegou a imaginar se isso poderia ter sido um conflito, caso tivesse contado antes de se tornar um bailarino profissional? 

Com certeza. Em algum lugar, meu pai sentia que algo estava acontecendo. “Ah, o Thiago deve estar brincando de alguma coisa por aí”, sabe? Eles não captavam completamente que eu estava estudando e me dedicando seriamente. Então, certamente teríamos conflitos, porque sempre ouvíamos o discurso do pai de família pobre: “E aí, como é que vai ser? Quando é que vai ser a hora de trabalhar?”. O meu pai ficava largando essas indiretas, mas eu estava convicto de que, de alguma forma, eu estava no caminho certo. 

Até porque, pelo que você conta, a arte jamais surgiria nesse horizonte como uma possibilidade de futuro. No máximo, como um exercício ou um hobby, certo? 

Exato e, no fundo, eu sinto saudade disso, sabia? Do sentimento de achar lindo sem ficar planejando. Acho que a arte está num lugar de abandono, e que talvez aqueles foram parte dos melhores momentos que vivi como artista, de só seguir o que está acontecendo, seguir a minha intuição e energia, e desfrutar da conexão que se cria com a arte. No meu caso, essa conexão virou uma sinergia tão forte que mudou o meu futuro. Embarquei com tanta convicção, que isso tudo foi ficando mais sério e o sonho foi se tornando realidade. Mas aconteceu porque eu me deixei levar, não exatamente porque fiquei planejando e pensando “ah, agora vou contar para o meu pai”. O que me interessava era devorar as sapatilhas e as meias e sair dançando. Era algo natural, como quando você se conecta com alguma coisa, vira um pequeno projeto pessoal e começa a dar certo. Pensando hoje, sinto que não dramatizei nada em relação à dança. Eu não quis chamar atenção porque vinha de uma família pobre, com dificuldades, nem porque era um menino hétero naquele lugar que assumiram que não era para mim. A questão é que eu me sentia feliz da vida com a sensação de ser deslumbrado pela arte, de perceber que a dança conversava verdadeiramente comigo. Senti tão intimamente essa relação que segui em frente, convicto. 

Estando nesse lugar que você comenta que não era para você, você demorou para contar para os seus amigos? Eu não contei que dançava. Preferia dizer que fazia 

teatro, porque, assim, justificava quando precisava sair mais cedo para ensaiar. Você vai criando estratégias. Na minha época, não usávamos o termo “bullying”, porque bullying era a zoação, e ela estava ali sempre, então tinha que aprender a conviver com isso e fazer jogo de cintura. Diante daquela mentalidade machista e suburbana, era melhor falar que eu fazia teatro, do que me dedicar a mudá-la. Até porque estava começando a estudar dança e a me descobrir como bailarino, então era um pacto de silêncio comigo mesmo. Não me interessava fazer notícia como o bailarino do colégio. Esse momento de autodescobrimento e de silêncio era o meu ouro, algo que me fazia sentir especial. 

Avançando um pouco na sua carreira, quais são as suas fontes de inspiração como bailarino? 

Eu gosto muito de arquitetura, assim como filmes, música e literatura. Na verdade, depende do que estou em busca. Vejo outros dançarinos e coreógrafos, para saber o que meus companheiros estão fazendo, mas, em termos de ter um norte, sinto que sou um artista eclético. Algo que sempre me vem à mente é o interesse por cidades e lugares diferentes. De alguma forma, sempre estou em busca de histórias. No palco, a minha referência passa muito pela figura de Fernando Bujones. Lembro de vê-lo e me projetar nele, de admirá-lo profundamente. 

Foram duas décadas em Londres, atuando no Royal Ballet, começando como integrante do corpo de bailarinos até assumir a posição de solista principal de uma das mais importantes companhias de balé do mundo. Olhando com distanciamento, você consegue identificar o que o Ballet procurava em você quando o contratou? O que imaginavam que acrescentaria para a companhia? 

Olhando agora, percebo que sou um artista de identidade muito forte e com uma visível persistência. Acho que me deram uma chance porque acreditavam que eu era persistente o suficiente e que, de alguma forma, somando isso a uma expressividade única, valeria a pena o investimento. Lembro do dia em que recebi o contrato do Royal. Ele chegou em um envelope pardo. 

Era o seu sonho chegando pelo correio. 

Imagino que o de qualquer bailarino. Até pode ser que artistas de dança contemporânea queiram ir pra outro lugar, outras companhias. Mas, se você calça uma sapatilha, veste uma malha e almeja dançar balé clássico, bem, então não há nada mais impactante. Havia o deslumbre de ser, do ponto de vista pessoal, o lugar ideal, porque imaginava que seria possível viver dessa vida de bailarino que conhecemos, que também é um pouco ator, porque o Royal tem essa característica e trabalha com esse repertório. Para mim, era ao mesmo tempo perfeito e surreal. O Royal Ballet foi a faculdade profissional da minha vida, um divisor de águas. Foi a melhor oportunidade que tive de aprender e me desenvolver. Eu não seria o artista que sou se não tivesse recebido essa oportunidade. O Royal Opera Hall é uma fábrica de talentos, uma fábrica de produzir espetáculos e, se você joga direitinho, respeita a tradição, é humilde o suficiente para querer crescer e querer aprender para se tornar uma estrela, ele se torna um lugar fascinante. Primeiro, porque você vai residir em uma cidade de primeiro mundo, pra frente; segundo, porque tem o dinheiro pra fazer produções de 5 milhões de libras. Sem contar o repertório, que é robusto, com artistas do mundo todo. Se tivéssemos que sonhar e inventar um lugar ideal para um artista, inventaríamos novamente o Royal. Ele foi essencial na minha caminhada em me tornar um protagonista 

Nesse contexto, você teve a chance de interpretar praticamente todos os grandes protagonistas das peças clássicas. Qual foi o mais desafiador e com qual você mais se identificou? 

É engraçada essa sua pergunta porque sempre tive a característica de um bailarino alto e esguio, com muita dinâmica de giros e saltos, todos os elementos evidentes para assumir papéis de príncipe, conde e aqueles protagonistas mais óbvios dos grandes balés tradicionais. Assim eu comecei e fui ganhando chances. A primeira foi como o príncipe da Bela Adormecida, depois eu fiz o Solor, no La Bayadère, em seguida Albrecht, em Giselle, que eram os de mocinho da história. Porém, a partir dos 30 anos, comecei a receber papéis mais dramáticos, como Eugene Onegin (Onegin), e o Rei Leontes (Conto de Inverno, de Shakespeare), todos esses balés em que fui me surpreendendo com a minha própria capacidade dramatúrgica e com o lado mais obscuro da interpretação. Eu desconhecia essa habilidade em mim porque sempre fui muito solar, um bailarino em busca de hope and love, então a idade me deu a chance de acessar esses novos lugares, e perceber que tinha muito talento para eles. Minha carreira foi se tornando mais madura e eu fui amadurecendo nos papéis, nos personagens. Hoje, sinto que esses papéis mais dramáticos viraram a minha marca nos meus últimos anos lá. Acho que um que me acompanhou muito e que muitas pessoas me viram foi Onegin, do John Cranko, que é um papel dos mais importantes de dança das companhias de repertório. E eu acho que um outro é o príncipe Rudolf em Mayerling, que é um balé muito importante na Inglaterra, porque o coreógrafo é o mais importante da casa, o Kenneth MacMillan. Ambos são balés em que o protagonista é vilão, em que a história, superficialmente bonita, bela e plástica, irrompe no drama, na morte, na tragédia. Curiosamente, foram os papéis da minha fase madura que se tornaram a minha assinatura. 

Como era a sua rotina em Londres na época da companhia, e a sua relação com a dor? 

Era uma vida basicamente de e para o teatro. Acordava, tomava café e ia para o teatro, onde passava o dia inteiro. Às vezes, saía para algumas reuniões e, às vezes, tinha os nossos espetáculos à noite. Sobrando tempo, ia em alguns eventos sociais, algo que é bem importante por lá. Mas era muito uma vida de trabalhador das artes. E, com tanto teatro, vem muita dor, claro. Até no filme que fizeram pra mim na HBO tem um capítulo que se chama Dor, de tão presente que ela é no meu caminho e no dos bailarinos profissionais. Vejo a nova geração, artistas que têm por característica comunicar tudo, o tempo todo, no mundo digital, e me pego pensando que, se alguém quer ter sucesso com dança de alto rendimento, o que significa ter duas profissões em uma — atleta e dançarino —, entendo que isso só vai acontecer se você aceitar amar o seu processo, a sua reabilitação e aprender a lidar com as imperfeições, não apenas com a perfeição. A profissão de bailarino é esse processo tortuoso, aceitar que, talvez, você nunca estará contente o suficiente consigo mesmo. A maior parte da jornada será de dor e desconforto, porque as posições que nós impomos ao nosso corpo ele não foi feito para realizar. Se você não for capaz de aceitar um processo lento, doloroso e de muita dedicação, então esse não é um futuro para você. Por outro lado, há muita satisfação que advém do reconhecimento do público por tudo isso. É uma arte que lhe permite voar sem asas, e você a realiza sem depender de nenhum adereço ou aparato tecnológico. Receber aplausos somente por aquilo que você realmente é, pelas suas habilidades, resulta em um sentimento mágico. Em um mundo em que as máquinas são cada vez mais as estrelas, poder ser reconhecido pela sua capacidade de se mover é algo único. E a dor sempre acompanhará a busca pela perfeição. 

Depois de tantos anos fora, você abriu o seu estúdio no Rio de Janeiro. Como tem sido esse retorno e como você enxerga o cenário da dança no Brasil? 

Estou bastante feliz. Sinto que não estou completamente inserido no mercado, porque o meu estúdio tem uma pegada bem diferente do que há. Vejo que continuamos muito ricos quando o assunto é talento de bailarinos, de alunos, de professores e coreógrafos. Nós somos extremamente talentosos, e digo isso, até, sem me incluir, apenas analisando os meus colegas que estão aqui, que fazem acontecer e vivem de arte. Mas a indústria da dança talvez pudesse se ajudar mais aqui. Percebo que o artista brasileiro se profissionaliza ao máximo com os sindicatos e as documentações necessárias, porém no seu cotidiano, nas regras e na disciplina pessoal ainda é muito amador. Existe uma vontade de se documentar e ter um papel 

para se sentir protegido e respeitado, mas falta o aprendizado dessa disciplina, da seriedade, que é o que o circuito europeu tem bem mais do que nós. Percebo isso mais no Rio. Em São Paulo, a dinâmica me parece um pouco mais clara e organizada. Não falo de forma geral, mas, pela minha experiência, a dança brasileira encara a si própria como algo que existe unicamente para se colocar num palco, juntar plateia, ganhar patrocínio e bilheteria. Eu acredito que a dança pode mais, pode influenciar de forma mais profunda uma sociedade. Sinto que quando descobrirmos as nossas verdadeiras possibilidades, a indústria da dança no Brasil vai se encontrar em um lugar mais legal. 

Fala-se muito do esporte como catalizador de uma vida melhor para os jovens, especialmente em uma sociedade desigual como a nossa, mas pouco se escuta da arte, da dança, como tendo esse potencial de entregar uma nova realidade. Qual é o grande desafio que temos na formação de bailarinos de alto nível? O preconceito ainda é uma barreira nesse caminho? 

Olha, preconceito é a palavra do mundo, a grande cruz, este grande obstáculo que vem de todas as formas e maneiras. Ainda existe uma mentalidade um pouco antiga e retrógrada que não consegue realmente entender coisas muito básicas, imagina entender que a arte de dançar não tem absolutamente nada a ver com o sexo de alguém. Eu acho que outro obstáculo é essa história de, no Brasil, se seu filho quer fazer balé, bate a preocupação que meu pai teve: “Meu filho quer se dedicar ao balé, mas ele vai trabalhar? Ele vai ganhar dinheiro? Ele vai viver de quê? Ele vai ter aposentadoria?”. Isso tem a ver com a questão anterior. Onde é que a dança está num lugar robusto de uma indústria que se ajuda, que cria empregos, que gera mais oportunidades, que de alguma maneira pressiona o governo? E, ao mesmo tempo, de colocar em ação um governo capaz de enxergar os bem-feitos da dança? Clichê ou não clichê, eu sou um exemplo de que é possível. Nunca me considerei paupérrimo, mas tive inúmeras dificuldades, de pegar ônibus, de comer, e a dança me colocou no lugar que estou hoje, de rodar o mundo e influenciar muitas pessoas. Até meu próprio pai, que nunca tinha entrado num teatro, foi beneficiado, porque a cultura lhe possibilitou novas experiências, aprendeu sobre dança e aprendeu a ver novas realidades. Ele teve acesso às produções, conheceu coreógrafos e pessoas de quem ele nunca imaginaria estar perto, e isso, de alguma maneira, humanizou o meu pai, colocando-o em um lugar de entender melhor inclusive a si mesmo. A minha família toda foi beneficiada à medida que entendeu que novos horizontes são possíveis, a partir do que aconteceu comigo. É impossível negarmos o valor presente nessa mudança de perspectiva. 

O potencial da cultura se realiza por completo quando passamos a vê-la não como uma “bolha” voltada exclusivamente ao entretenimento, mas como parte integrada da sociedade, como um pilar educacional. 

Com certeza. Se um dia a cultura for tratada como prioridade, como na Alemanha, em que ela é pensada de igual para igual com a saúde e a educação, aí então vamos nos servir dos seus frutos. Essa é a circunstância que devemos almejar. 

Qual é o traço distintivo do bailarino brasileiro? O que só ele tem? 

Eu acho que é o fato de termos uma cultura popular muito rica. Essa mistura da nossa essência, que tem um DNA da cultura africana, reverbera numa movimentação com mais urgência, com mais suor, mais textura e cores. Uma vez uma coreógrafa falou isso de mim quando estava fazendo uma correção. Eu não estava sendo o mais perfeito do ensaio, mas as cores que eu estava conseguindo trazer estavam dando vida. Foi uma crítica e, ao mesmo tempo, um dos elogios mais interessantes que recebi. Ela disse: “Essa coisa do Brasil, essas cores”. Temos uma textura que vem também dessa liberdade, que é nossa culturalmente, e que levamos para encarar as regras rígidas do balé. Isso é algo único. 

Se pudesse definir um legado que gostaria de deixar com a sua trajetória e, agora, com a presença do estúdio em solo brasileiro, qual seria? 

Gostaria de deixar a persistência para algo que você ama, algo que conversa com você. Independentemente da sua arte, acho que seria persistência e o amor pelo processo. É isso que falo aos meus alunos, aos meus bailarinos. Se você consegue esse pacto de amar o processo, então você tem a chave para o movimento de estar sempre em busca, sempre em progresso. Até quando errar, vai perceber isso como parte do trabalho. Os resultados, as postagens incríveis, os aplausos, tudo isso é lucro, claro. Mas só será possível se estivermos em busca constante de novos movimentos e novos passos. 

#36O MasculinoArteCinemaCulturaSociedade

Pais astronautas, pais soldados

por Rafael Kasper

Eu vivo a 11.000 quilômetros do meu pai. Quando me mudei para Berlim, meu pai se tornou memórias e afetos dispersos em imagens e sonhos, um homem cuja voz, cada vez mais lenta, escuto em ligações de WhatsApp uma vez por mês. Depois de um ano e meio, visitei o Brasil e reencontrei um pai diferente do que havia me despedido, com pele mais murcha, barba branca em expansão irregular pelo rosto, olhos avermelhados e vazios, e espírito mais abatido pelas crises profissionais e existenciais dos últimos anos. 

Ad Astra, de James Gray

Como foi que meu pai se tornou esse corpo com pouca vida? Com essa pergunta, embarquei no voo Porto Alegre-Lisboa e comecei a assistir Ad Astra (James Gray, 2019). No filme, o major Roy McBride (Brad Pitt) viaja até Netuno para localizar o astronauta H. Clifford McBride (Tommy Lee Jones), seu pai e líder do Projeto Lima, cuja missão era buscar novas formas de vida no espaço. O projeto fracassou, Clifford está sem contato com a Terra há 30 anos, e cientistas suspeitam que sua estação em Netuno seja a causa de circuitos explosivos que ameaçam o sistema solar. 

A ida às estrelas é um percurso físico (pela Lua, por Marte, pelas novas fronteiras humanas na galáxia, por meio da adaptação tecnológica do corpo – Roy é o astronauta que se mantém “calmo, estável”, mesmo em queda livre), com metas objetivas (encontrar Clifford, destruir o Projeto Lima, estabilizar a vida na galáxia), mas também é uma ida ao interior, expedição subjetiva na qual Roy se confronta com o homem que se tornou (firme, voltado ao “essencial”, ele rompe com a esposa, Eve (Liv Tyler), para se dedicar apenas à ciência espacial). É, também, uma jornada de desconstrução do pai. Durante a viagem, a imagem do astronauta-pai começa a naufragar, de mártir da expansão interestelar a egocêntrico desequilibrado, preso num projeto frustrado, incapaz de retornar à Terra e colocar os pés no chão da vida pessoal e familiar.     

Durante o filme, lembro a frase dita por um amigo, dias antes, em Porto Alegre: “Fazemos terapia porque nossos pais não fizeram”. Teria Freud salvo meu pai? Talvez, se a missão de resgate psicológico envolvesse um freudianismo que enfrentasse os ideais formadores, e depois deformadores, da vida do meu pai: o homem produtivo, bem-sucedido, masculinizado pelos assuntos que pode (deve) falar (futebol, mulheres, talvez política) e pela supressão das fragilidades, dos sinais do feminino, das mensagens enviadas pela subjetividade em busca de ajuda. 

A compreensão de Clifford McBride passa pela viagem ao futuro e pelo questionamento do homem heroico, do astronauta norte-americano lançado ao espaço sideral, fugindo do espaço privado, do filho e da mulher, substituindo as frustrações das tarefas pessoais com uma grande tarefa histórica. No caso do meu pai, a compreensão teria que viajar ao passado e ao modelo de formação do homem segundo o germanismo carregado no nosso nome e encenado nas imagens fundadoras da família Kasper (a bisavó captura ratos em armadilhas improvisadas e arranca o rabo dos bichos com a própria mão, bate com cinta nas costas do meu avô e o tranca num quarto escuro por mau comportamento, e meu avô se torna silencioso, nem autoritário nem amoroso, refletido na incapacidade do meu pai de elaborar suas emoções).

Em Berlim, cidade das contradições alemãs, eu penso no meu pai enquanto vejo Frederico, o Grande, marchando eternamente no cavalo de bronze no meio da Unter den Linden. Aqui, pai e filho também habitam as lendas fundadoras. Berlim está devastada, metade da população foi queimada viva ou atirada no rio em guerras religiosas, e a dinastia dos Hohenzollern decide estabilizar e reconstruir a cidade. Dos escombros e da fome, Berlim se reergue como centro da Prússia. O contrato social se internaliza por meio do comportamento e da obediência dos súditos. O pai célebre dos Hohenzollern é Frederico Guilherme I. Ele se torna o Rei Soldado, criador do Estado em que 80% das receitas vão para armas e guarnições. Transformou a Prússia, principal força na unificação da Alemanha moderna, em “um exército com um Estado”. Disse que não olhava para mulheres, apenas para soldados altos: quando encontrava um, queria vê-lo com a farda da Prússia. 

Talvez as relações entre pais e filhos passem por planos frustrados e ideais desconstruídos. Em Berlim, o Rei Soldado cria a Prússia militarizada, mas não provoca guerras. Gosta demais do seu exército para induzi-lo à morte. Tenta incutir a masculinidade prussiana no filho único. Mas o filho do Rei Soldado prefere canções a canhões, e garotos a garotas. O pequeno Frederico se esconde embaixo da cama com medo do pai. Quando jovem, reúne os amigos – apenas garotos – para tocar flauta e recitar poesia. O rei invade o quarto, acaba com o recital, joga os poemas no fogo da lareira. Então, o jovem ama (fisicamente) um de seus amigos, e o pai manda executar o amante. Aqui, as tensões psicológicas começam a agir na história: o jovem Frederico se casará por aparência, não terá mais amantes homens, continuará lendo filosofia e poesia (se tornará o Rei Filósofo), mas começará guerras, contra a França, contra a Áustria etc., “escrevendo poemas de noite e liderando batalhões de dia”. Ele havia se tornado rei com ambição e, como se dizia em Berlim, “sem coração”. 

Depois da Segunda Guerra Mundial, em decreto de fevereiro de 1947, os países aliados decidiram abolir o nome Prússia, tida como núcleo do “militarismo e da reação na Alemanha”. Hoje, do Estado histórico Prússia-Brandemburgo, resta apenas o nome oficial Brandemburgo, região que circunda Berlim. Mas o que restou da Prússia mental? Como mapear e identificar, como tentar conter ou abolir a Prússia comportamental, a Prússia da vida controlada no relógio, da obediência sem crítica, da etiqueta à mesa sem debate ético na rua, do medo de expressar o que não está nas convenções, mas está na realidade dos nossos corpos, desejos, pensamentos? 

Sobrevoando o oceano em direção à Alemanha, com as estrelas acima de mim, eu viajo por esses símbolos e mandamentos de um masculino em declínio, passo pelos astronautas e soldados que viveram suas funções sem viver suas emoções, pela educação inflexível destinada a formar um homem ideal, mas não um homem humanizado, liberado para descobrir e explorar seu universo interior. Então, eu chego de volta ao meu pai, e percebo a distância entre ele e o que ele poderia ter sido, se as missões impostas por seus modelos formadores tivessem sido mais leves e mais livres.